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Mire Veja!

A Cenografia
de Paulo Mendes da Rocha
em sete atos
fernanda silva ferreira
são paulo | 2018

universidade presbiteriana mackenzie programaI


de pós-graduação em arquitetura e urbanismo
universidade presbiteriana mackenzie programa
de pós-graduação em arquitetura e urbanismo

Mire Veja! A Cenografia


de Paulo Mendes da Rocha
em sete atos

fernanda silva ferreira


são paulo | 2018
F383m Ferreira, Fernanda Silva.
Mire Veja : A cenografia de Paulo Mendes em sete atos /
Fernanda Silva Ferreira.
154 f. : il. ; 30 cm

Dissertação (Mestrado em Arquitetura e Urbanismo) –


Universidade Presbiteriana Mackenzie, São Paulo, 2018.
Orientadora: Maria Isabel Villac.
Bibliografia: f. 126-128.

1. Rocha, Paulo Mendes da. 2. cenografia. 3. Arquitetura cênica.


I. Villac, Maria Isabel, orientador. II. Título.

CDD 720.981

Bibliotecária: Giovanna Cardoso Brasil – CRB-8/9605


fernanda silva ferreira
são paulo | 2018

Mire Veja! A Cenografia


de Paulo Mendes da Rocha
em sete atos

Dissertação apresentada ao Programa de Pós-


-graduação da Faculdade de Arquitetura e Urba-
nismo da Universidade Presbiteriana Mackenzie
como requisito parcial à obtenção do título de Mestre.

orientadora: Profa. Dra. Maria Isabel Villac

são paulo | 2018


fernanda silva ferreira
Mire Veja! A Cenografia de Paulo
Mendes da Rocha em sete atos
Dissertação apresentada ao Programa de Pós-
-graduação da Faculdade de Arquitetura e Urba-
nismo da Universidade Presbiteriana Mackenzie
como requisito parcial à obtenção do título de Mestre.

orientadora: Profa. Dra. Maria Isabel Villac

Aprovada em ________ de _____________________ de 2018

banca examinadora

Prof. Dra. Maria Isabel Villac


Universidade Presbiteriana Mackenzie

Prof. Dr. Abilio Guerra


Universidade Presbiteriana Mackenzie

Prof. Dra. Marta Vieira Bogéa


Universidade de São Paulo

são paulo | 2018


Mire Veja!

Expressão utilizada reiteradas vezes por Guimarães Rosa, no romance


Grande Sertão: Veredas para enfatizar a necessidade do leitor se ater ao
que conta o narrador. Mire Veja é palavra de ordem para que Riobaldo
desvele a visão do leitor à medida em que a história é contada.
Mas é também um elemento estrutural da narrativa de Rosa, divi-
dindo simetricamente a obra em dois volumes. Ela é utilizada 14 vezes na
primeira parte do livro. Na 15ª vez em que aparece, ela divide o romance
exatamente ao meio. Na 16ª vez, ela surge na forma espelhada “veja mire”,
e então será utilizada outras 14 vezes até o final do romance.
Obviamente isto não é uma coincidência, é um artifício discursivo.
Na 20ª vez em que “Mire Veja” aparece no texto nos deparamos com
o “mirei e vi”, o que, para nós, equivale ao “foi então que vi e aprendi”.
“Mire Veja”, portanto, alerta e convida o leitor a rever o que não fora
percebido – demonstrando a importância que Guimarães Rosa confere
à experiência de aprender a ver.
Decidimos por incorporar a expressão no título desta dissertação,
para convidarmos o leitor a conhecer a obra cenográfica de Paulo
Mendes da Rocha e que juntos possamos aprender a ver o modo pe-
culiar como o arquiteto propõe formas e discursos quando interpreta
cada uma das histórias que ajudaremos a contar.
Para minha amada mãe Dalva
e em memória de meu querido
pai Cacazinho ( 1948-2010).

In Memorian de Erasmo Faria


da Silva (1925-2018).
Agradecimentos

A Prof.ª Dr.ª Maria Isabel Villac por percorrer comigo com generosi-
dade, incentivo e paciência este caminho. Obrigada pelo apoio na desa-
fiadora correção de rumo.
A Paulo Mendes da Rocha por me inspirar a Mirar e Ver.
A Bia Lessa por me ajudar a Mirar e Ver.
A José Wildzeiss Neto por dividir comigo, pela vida, sua cultura
e inteligência superlativas.
A Patricia Mannaro por sua paciência e apoio.
A Pablo Chakur pela parceria e companheirismo nesta e em outras
jornadas.
A meus amados avós pela lucidez e carinho diários.
A meus sobrinhos, Malu e João, por amar a tia mesmo diante da
ausência temporária.
Resumo

A presente pesquisa pretende divulgar a obra do arquiteto Paulo Mendes da


Rocha em um viés pouco conhecido, o campo da cenografia para teatro e ópera.
Desde a década de 1990, o arquiteto vem desenvolvendo uma consistente pro-
dução no âmbito da cenografia, sobretudo em parceria com a diretora Bia Lessa.
Nesta pesquisa percorreremos os sete cenários projetados pelo arqui-
teto, buscando compreender os procedimentos e conceitos contidos em seu
processo de criação.
Os estudos serão elaborados de forma individual e, a partir do entendi-
mento das partes, buscaremos compreender o todo, depurando o modo do
arquiteto pensar o espaço na arquitetura ou em outra materialidade.

Palavras-chave: Paulo Mendes da Rocha, cenografia, arquitetura cênica

Abstract

The aim of this research is to highlight the work of the architect Paulo
Mendes da Rocha in the field of scenography for the theater and opera.
Since the 1990’s, the architect’s production has been consistent although
little known, especially that in partnership with director Bia Lessa, designing
mobile stage settings having great symbolic impact.
We will cover the seven scenarios designed by the architect seeking to under-
stand the procedures and concepts contained in his creation process.
The studies will be elaborated in an individual way and, from the understand-
ing of the parties, we will try to understand the whole, debugging the way in which
the architect thought about the space in architecture and in another materiality.

Keywords: Paulo Mendes da Rocha, Ways of Exposing, Museums, Modern Architecture


Lista de Imagens:
Figura 2.5: Capa do catálogo de Il Trittico e folha 28 que apresentava Il Tabarro.
Fonte: Acervo Fernanda Ferreira
Figura 1: Imagens variadas do material levantado pela pesquisa. Fotos: Figura 2.6: Croqui de Paulo Mendes da Rocha para o cenário de Il Tabarro, no
Fernanda Ferreira Teatro Municipal do Rio de Janeiro. Extraído do catálogo do espetáculo.
Figura 1.1: Fotografia do cenário da peça Vestido de Noiva, de Ziembiński, Rio Fonte: Acervo Fernanda Ferreira
de Janeiro, 1943. Reprodução fotográfica Carlos Moskovics. Fonte: ENCI- Figura 2.7: Duetto - Il Tabarro - Puccini Teatro Municipal de São Paulo.
CLOPÉDIA Itaú Cultural de Arte e Cultura Brasileiras. São Paulo: Itaú Cul- Imagem extraída de vídeo. Disponível em: https://www.youtube.com/
tural, 2018. Disponível em: <http://enciclopedia.itaucultural.org.br/e watch?v=xbnnuzsPgbU. Acesso em:12. Out. 2017
Figura 1.2: Croqui do cenário de Vestido de Noiva, de Ziembiński 1943, indi- Figura 2.8: Croqui da disposição dos elementos do cenário em cena em Il
cando os 3 planos de atuação. Desenho: Fernanda Ferreira Tabarro. Desenho: Fernanda Ferreira
Figura 1.3: Maquete do Pavilhão de Osaka – Expo-70. Fonte: SPIRO, 2002, Figura 2.9: Visão geral do palco de Il Tabarro. Desenho: Fernanda Ferreira
p.96 Figura 2.10: Cartaz e programa de Suor Angelica -1990 – Fonte: CEDOC - Teatro
Figura 1.4: Paulo Mendes da Rocha, em seu escritório com a pequena tira de Municipal de São Paulo
papel, convite de Flávio Motta para jantar. Foto: Fernanda Ferreira Figura 2.11: Jornal O Estado de São Paulo, 11.ago.1990, Caderno 2
Figura 1.5: Croquis e memorial do projeto. Fonte: SPIRO, 2002, p.96 Figura 2.12: Jornal O Estado de São Paulo, 18.ago.1990. Caderno 2, p.03
Figura 1.6: Pavilhão do Brasil na Exposição Universal de Osaka, em 1970. Fonte: Figura 2.13: Croqui do cenário de Suor Angelica. Fonte: Acervo de Paulo
PISANI, 2013, p.181 Mendes da Rocha
Figura 1.7: Foto do pavilhão de Osaka em construção. Fonte: SPIRO, 2002, p.105 Figura 2.14: Capa do catálogo de Il Trittico e folha 32 que apresentava Suor
Figura 1.8: Prancha 6 apresentada no concurso para o Pavilhão de Osaka. Angelica. Fonte: Acervo Fernanda Ferreira
Elevações Fonte: SPIRO, 2002, p.103 Figura 2.15: Croqui de Paulo Mendes da Rocha para o cenário de Suor An-
Figura 1.9: Desfile M. Officer. 1999. Fonte: ARTIGAS, 2002, p.96 gelica, no Teatro Municipal do Rio de Janeiro. Extraído do catálogo do
Figura 1.10: Desfile M. Officer. 1999 Fonte: ARTIGAS, 2002, p.96 espetáculo. Fonte: Acervo Fernanda Ferreira
Figura 1.11: Desfile M. Officer. 1999 Fonte: ARTIGAS, 2002, p.97 Figura 2.16: Croqui do cenário de Suor Angelica. Fonte: Acervo de Paulo
Figura 2.1: Trittico da Paixão de Cristo, séc. XVI, autor: Nardon Pénicaud. Mendes da Rocha
Disponível em www.museudevora.pt Figura 2.17: Croqui do cenário de Suor Angelica. Fonte: Acervo de Paulo
Figura 2.2: Jornal Folha de São Paulo. 17.nov.1992. Seção Ilustrada, p.4 Mendes da Rocha
Figura 2.3: Jornal O Estado de São Paulo. 17.nov.1992. Caderno 2. Figura 2.18: Planta de palco de Suor Angelica. Desenho: Fernanda Ferreira
Figura 2.4: Capa do Catálogo de Il Trittico. Fonte: CEDOC - Teatro Municipal Figura 2.19: Corte do cenário de Suor Angelica. Desenho: Fernanda Ferreira.
de São Paulo Figura 2.20: Cenário de Suor Angelica. Desenho: Fernanda Ferreira
Figura 2.21: Escadaria do palco de Suor Angelica. Foto: Gal Oppido Figura 2.40: Jornal O Estado de São Paulo. 12.out.1992. Caderno 2. p.1.
Figura 2.22: Ensaio do espetáculo Suor Angelica. Foto: Gal Oppido Figura 2.41: Jornal Folha de São Paulo. 12.out.2017. Ilustrada.
Figura 2.23: Outro ângulo da escadaria do palco de Suor Angelica. Foto: Figura 2.42: Croqui da estrutura que compunha o cenário da Ópera dos
Gal Oppido 500 anos em uma de suas configurações em cena. Acervo: Paulo Mendes
Figura 2.24: Escadaria que subia do fundo do palco à boca de cena. Foto: da Rocha
Gal Oppido Figura 2.43: Memorial do projeto do cenário. Datilografado. 1992. Fonte:
Figura 2.25: Encenação de Suor Angelica. Fonte: Acervo pessoal de Bia Lessa Acervo de Paulo Mendes da Rocha
Figura 2.26: Encenação de Suor Angelica. Fonte: Acervo pessoal de Bia Lessa Figura 2.44: Estudo para composição das peças que compunham o cenário
Figura 2.27: Freirinhas escalando o cenário de Suor Angelica. Fonte: Acervo de Opera dos 500 anos – Popular e Brasileira. Estas tinham seções diver-
pessoal de Bia Lessa sas para dar profundidade às imagens projetadas na tela de fundo. Fonte:
Figura 2.28 a 2.31: Figura 2.28 a 2. 31 - Fotografias da fachada, forros e Acervo de Paulo Mendes da Rocha
portas da casa da família de Gabriel Villela em Carmo do Rio, MG, Figura 2.45: Projeto do cenário de Opera dos 500 anos – Popular e Brasileira.
que serviu de inspiração para o cenário de Gianni Schicchi. Fotos: Desenho: Fernanda Ferreira
Gabriel Villela. Figura 2.46: Corte esquemático do cenário da Ópera dos 500 anos. Desenho:
Figura 2.32: Figura 2.32: Splitting, 1974. Colagem em fotografia branco e Fernanda Ferreira
preto, 101.5 × 76.2 cm. Fonte: ttps://www.archdaily.com.br/br/01-27310/ Figura 2.47: Blue Feather, 1948. Autor: Calder. Disponível em www.calder.org.
arte-e-arquitetura-building-cuts-gordon-matta-clark. Visitado em Figura 2.48: Encenação de Ópera dos 500 anos. Fonte: Gal Oppido
25. mai. 2018 Figura 2.49: Encenação de Ópera dos 500 anos. Fonte: Gal Oppido
Figura 2.33: Cenário de Gianni Schicchi - 1992 - de G. Vilella. Fonte: Gal Oppido Figura 2.50: Encenação de Ópera dos 500 anos. Fonte: Gal Oppido
Figura 2.34: Capa do catálogo de Il Trittico e folha 36 que apresentava Gianni Figura 2.51: Encenação de Ópera dos 500 anos. Fonte: Gal Oppido
Schicchi. Acervo: Fernanda Ferreira Figura 2.52: Cenário Ópera dos 500 anos. Fonte: Gal Oppido
Figura 2.35: Croqui de Paulo Mendes da Rocha para o Cenário de Gianni Schic- Figura 2.53: Ensaio de Ópera dos 500 anos. Fonte: Gal Oppido
chi, no Teatro Municipal do Rio de Janeiro. Extraído do catálogo do espetá- Figura 2.54: Jor Jornal O Estado de São Paulo de 01.jun.1994. Caderno 2
culo. Fonte: Acervo Fernanda Ferreira Figura 2.55: Jornal Tribuna da Imprensa – RJ. 08.jun.1994 p.2 Seção Tribuna
Figura 2.36: Cenário de Gianni Schicchi - 1992 - de G. Vilella. Fonte: Gal Oppido Figura 2.56: Jornal O Dia- 01.jun.1994 Pg.03. Seção O dia D
Figura 2.37: Cenário de Gianni Schicchi - 1992 - de G. Vilella. Fonte: Gal Oppido Figura 2.57: Jornal O Globo. 03.jun.1994. Pg.18 – Seção Rio Show
Figura 2.38: Cenário de Gianni Schicchi - 1992 - de G. Vilella. Fonte: Gal Oppido Figura 2.58: Catálogo do espetáculo O Homem sem Qualidades. Fonte: Acervo
Figura 2.39: Cartaz da Ópera dos 500 anos. Fonte: CEDOC – Teatro Municipal Fernanda Ferreira
de São Paulo Figura 2.59: Cartaz do espetáculo O Homem sem Qualidades. Fonte: CCBB Rio
Figura 2.60: Croquis de conceituação espacial e estudo cromático para Figura 2.76: Colagem dos elementos de cena. Desenhos: Fernanda Ferreira
o cenário de O Homem sem Qualidades. Autor: Paulo Mendes da Rocha. Figura 2.77: Encenação de O Homem sem Qualidades e ao fundo a plateia que
Fonte: Acervo Jean-L. Leblanc era disposta no palco. Fonte: Acervo Bia Lessa
Figura 2.61: Croquis de conceituação espacial e estudo cromático para o cenário Figura 2.78 e Figura 2.79: Figurino com cores que sugerem a passagem das
de O Homem sem Qualidades. Autor: Paulo Mendes da Rocha. Fonte: Acervo estações do ano. Fonte: Acervo de Bia Lessa
Jean-L. Leblanc Figura 2.80: Encenação de O Homem sem Qualidades e plateia disposta no
Figura 2.62: Disposição das plateias - T1 Arquibancada a cerca de 2m da boca palco. Fonte: Acervo Bia Lessa
de cena. T2, arquibancada na posição final, abrindo espaço para o desfile Figura 2.81: Avião. Fonte: Acervo Bia Lessa
dos demais objetos de cena. Desenhos: Fernanda Ferreira Figura 2.82: Cenário de O Homem sem Qualidades e objetos de cena. Fonte:
Figura 2.63: – Estudo para dimensionamento da arquibancada de O Homem Acervo Bia Lessa
sem Qualidades. Desenho: PMR. Acervo: Jean Luis Leblanc Figura 2.83: Carro da mulher tronco em cena. Fonte: Acervo Bia Lessa
Figura 2.64: Croqui construtivo da arquibancada. De O Homem sem Qualida- Figura 2.84: Jornal O Estado de São Paulo. 22.ago.1994 Caderno 2.
des. Desenhos: Fernanda Ferreira Figura 2.85: Jornal Folha de São Paulo. 24.out.1994. Ilustrada
Figura 2.65: Croqui da arquibancada no espaço cênico de O Homem sem Qua- Figura 2.86: Cartaz do espetáculo “Futebol”. Fonte: Núcleo de memória do
lidades. Desenhos: Fernanda Ferreira Teatro Popular Sesi
Figura 2.66: Croqui a fábrica de cartolas. Desenho: Jean Luis Leblanc. Fonte: Figura 2.87: Jornal Folha de São Paulo de 31.out.1994. Ilustrada
Jean Luis Leblanc Figura 2.88: Croqui inicial do cenário de Futebol. Fonte: Acervo de Paulo Men-
Figura 2.67: Carro da mulher tronco. Desenho: Jean Luis Leblanc. Fonte: des da Rocha
Jean Luis Leblanc Figura 2.89: Croqui. Estudo para estrutura do cenário/ rampa. Fonte: Acervo
Figura 2.68: Carro dos livros. Criação Paulo Mendes da Rocha. Desenho: Jean de Paulo Mendes da Rocha
Luis Leblanc. Fonte: Jean Luis Leblanc Figura 2.90: Croqui. Estudo para estrutura do cenário/ rampa. Fonte: Acervo
Figura 2.69: Croqui de Lucélia Santos puxando o carro dos livros. Desenho: de Paulo Mendes da Rocha
Jean Luis Leblanc. Fonte: Jean Luis Leblanc Figura 2.91: Croquis dos objetos de cena. Fonte: Acervo de Guto Lacaz
Figura 2.70: Croqui do Cavalo. Fonte: Jean Luis Leblanc Figura 2.92: Estudo para dobragem da trave de futebol. Fonte: Acervo de
Figura 2.71 a 2.73: Serie de estudos para adereço – Avião. Desenhos: Paulo Guto Lacaz
Mendes da Rocha. Fonte: Acervo de Paulo Mendes da Rocha Figura 2.93: Desenho executivo para Lagosta. Fonte: Acervo de Guto Lacaz
Figura 2.74: Pablo Picasso. Guitarra 1913. Fonte: Tassinari, 2001 Figura 2.94: Croqui da Vela cênica do navio do capitão inglês e canoas dos
Figura 2.75: Georges Braque. Telhados em Céret. 1911. Fonte: Tassinari, pescadores. Acervo de Guto Lacaz
2001 Figura 2.95: Croqui da canoa cênica. Fonte: Acervo de Guto Lacaz
Figura 2.96: Corte rampa/ Cenário na posição inicial. Desenho: Fernanda Ferreira Figura 2.119: Montagem do cenário. Fonte: Sesc Consolação
Figura 2.97: Corte rampa/ Cenário na posição final. Desenho: Fernanda Ferreira Figura 2.120: Exposição: Grande Sertão: Veredas. Sesc Consolação. Fotos:
Figura 2.98: Croqui do cenário de Futebol. Desenho: Fernanda Ferreira Fernanda Ferreira
Figura 2.99: Corte esquemático do palco de Futebol. Desenho: Fernanda Ferreira Figura 2.121: Exposição: Grande Sertão: Veredas. Sesc Consolação. Fotos:
Figura 2.100: Encenação de Futebol. Foto: Lenise Pinheiro Fernanda Ferreira
Figura 2.101 à Figura 2.104: Imagens extraídas de Filmagem de trecho da Figura 2.122: Catálogo do espetáculo. Acervo: Fernanda Ferreira
peça Futebol, cedida por Bia Lessa. Rio de Janeiro, 1994. Fonte: Acervo pes- Figura 2.123: Leonardo Miggiorin dentro do cenário da peça. Fonte: instagram
soal de Bia Lessa Rio de Janeiro, 1994. Fonte: Acervo pessoal de Bia Lessa Figura 2.124: Cenário de Grande Sertão: Veredas. Foto: Fernanda Ferreira
Figura 2.105: Encenação de Futebol. Foto: Lenise Pinheiro Figura 2.125: Espetáculo Grande Sertão: Veredas. Foto: Hélvio Romero/
Figura 2.106: Encenação de Futebol. Fonte: Núcleo de Memória Cultural – Divulgação
SESI – SP Figura 2.126: Encenação do espetáculo Grande Sertão: Veredas. Foto: Daniel
Figura 2.107: Encenação de Futebol. Fonte: Núcleo de Memória Cultural – Roland
SESI – SP Figura 2.127: Exposição Grande Sertão: Veredas. Foto: Lenise Pinheiro
Figura 2.108: Encenação de Futebol. Foto: Lenise Pinheiro Figura 2.128: Grande Sertão: Veredas. Foto Lenise Pinheiro.
Figura 2.109 e Figura 2.110: Anotações de Guimarães Rosa em sua passagem Figura 2.129: Grande Sertão: Veredas. Foto: Lenise Pinheiro
pelo sertão brasileiro. Fonte: Documentário Os nomes do Rosa de direção Figura 3.1: Paulo Mendes da Rocha e Bia Lessa, na pré-estreia de Grande Sertão:
de Pedro Bial e Claufe Rodrigues. Imagens, extraídas de vídeo. Disponível Veredas. Foto: Paulo Freitas/ Divulgação
em: https://www.youtube.com/watch?v=weBWtXa9EFY
Figura 2.111: Exposição O Grande Sertão: Veredas. 2006. Foto: Andrés Otero
Figura 2.112: Catálogo da exposição Grande Sertão: Veredas, 2006. Acervo:
Fernanda Ferreira
Figura 2.113: Bia Lessa e Paulo Mendes da Rocha no cenário de Grande Sertão:
Veredas. Foto: Fernanda Ferreira
Figura 2.114: O Estado de São Paulo de 8 de out. de 2017. Caderno 2
Figura 2.115: Folha de São Paulo de 9 de set. de 2017. Ilustrada
Figura 2.116: Croqui do cenário de Grande Sertão: Veredas. Desenho:
Fernanda Ferreira
Figura 2.117: Planta do cenário. Desenho: Fernanda Ferreira
Figura 2.118: Montagem do cenário. Fonte: Sesc Consolação
SUMÁRIO

14 INTRODUÇÃO
14 Percurso e agradecimentos
17 Todo discurso é uma construção

19 1. CENOGRAFIA E ARQUITETURA
19A Cenografia no Brasil
22 Aproximações ao raciocínio cenográfico de Paulo Mendes da Rocha
28 Linguagem e intuição

33 2. A CENOGRAFIA DE PAULO MENDES DA ROCHA EM 7 ATOS


37 Primeiro ato – Il Tabarro
40 Segundo ato – Suor Angelica
53 Terceiro ato – Gianni Schicchi
59 Quarto ato – Opera dos 500 anos – Popular e Brasileira
68 Quinto ato – O Homem sem Qualidades
87 Sexto ato – Futebol
105 Sétimo ato – Grande Sertão: Veredas

120 3. AS VEREDAS DE PAULO MENDES DA ROCHA E BIA LESSA


124 CONSIDERAÇÕES FINAIS
126 BIBLIOGRAFIA
Lista de Abreviações 129 ANEXOS
CCBB Rio: Centro Cultural Banco do Brasil – 129 I. Entrevista com Paulo Mendes da Rocha
Unidade Rio de Janeiro 133 II. Workshop com Paulo Mendes da Rocha e Bia Lessa
CEDOC: Centro de Documentação Histórica 139 III. Conversa com Bia Lessa
PMR: Paulo Mendes da Rocha 142 IV. Entrevista com Gabriel Villela
SESI: Serviço Social da Indústria 144 v. Banco de imagens
Introdução

Percurso e agradecimentos

Nunca me relacionei com o universo do teatro além do entreteni-


mento cultural. Minha ignorância temática, portanto, poderia ser uma
barreira significativa para o desenvolvimento deste trabalho, mas opta-
mos por trazê-lo a campos mais confortáveis: a literatura e a arquitetura.
Em 06 de junho de 2017, Paulo Mendes da Rocha nos disse: “Todo
discurso é uma construção”1. Destas palavras fizemos nosso guia e hoje
compreendemos que o caminho percorrido até estas páginas foi uma
dedicada construção.
Além da pesquisa para tornar pública a obra cenográfica de Paulo
Mendes da Rocha há, por trás de cada palavra, a construção de um co-
nhecimento específico que jamais imaginamos adquirir.
A pesquisa foi iniciada com um tema diferente: Dois Museus e o Atlân-
tico: Lisboa, Vitória e a Museologia de Paulo Mendes da Rocha. Ela partia
da análise dos projetos dos dois museus, de maneira isolada, para que,
posteriormente, pudéssemos estabelecer relações entre eles. Acreditá-
vamos que a questão a ser decifrada estava no diálogo dos dois partidos
das implantações, tão semelhantes, e suas relações com o mar e com a
cultura das duas pátrias irmãs que ele separava.
Com orientação da Professora Maria Isabel Villac, investigamos o pro-
cesso de criação do arquiteto. Neste percurso passamos por seu currí-
culo, história da arte, o cubismo e a evolução da história dos museus no
Brasil e no mundo. Chegamos à Lina Bo Bardi e ao Masp, talvez pela

1 Paulo Mendes da Rocha. Entrevista concedida a Fernanda Ferreira, São Paulo, 06 de jun. de 2017, na
sede de seu escritório. [entrevista não publicada]. Encontra-se transcrita no anexo I desta dissertação.

14
necessidade de compreender, em outro arquiteto, a relação da arquite- Saímos do escritório do arquiteto com a certeza de que era preciso
tura com o design, o mobiliário, a museologia e a cenografia. Lina, assim mudar o objeto de estudo da pesquisa. Mas estávamos a três semanas
como Flávio Império, Hélio Eichbauer, Luis Carlos Ripper, entre outros, da banca de qualificação.
compunham a vanguarda da cenografia teatral brasileira que buscava, Em conversa com Maria Isabel Villac concordamos que a mudança
através de sua produção, trazer à luz a discussão sobre o que havia de de rumo poderia resultar em um trabalho mais interessante, mas deci-
arcaico e moderno no Brasil daquela época. dimos manter a banca de qualificação. Apostávamos que dela poderia
Foi neste ponto que tivemos contato com os projetos expositivos e vir grande contribuição para os próximos passos.
cenográficos de Paulo Mendes da Rocha, os quais instigaram nossa curio- Fizemos uma alteração no título do projeto de pesquisa e, em 17 de
sidade. A escassez de publicações, porém, dificultava alguns entendi- agosto de 2017, apresentamos à banca de qualificação, composta pelos
mentos. Visando preencher esta lacuna, percebemos que era necessário professores doutores Marta Bogéa, Lucas Fehr e Maria Isabel Villac, o
convocar a memória de Paulo Mendes da Rocha. projeto de pesquisa intitulado “Dois Museus e o Atlântico: Museu dos
Fizemos, então, o primeiro contato com o escritório do arquiteto. Era Coches e Cais das Artes. Lisboa, Vitória e a forma de expor de Paulo Men-
necessário ter acesso a seu acervo para que pudéssemos compreender des da Rocha”.
melhor estes projetos. Em 06 de junho de 2017, encontramos o arquiteto A pesquisa se interessava, especialmente, pelo contexto cultural e
para uma longa e produtiva conversa. simbólico da obra expositiva de Paulo Mendes da Rocha nos mais di-
Na primeira frase proferida por ele, deixamos de lado a lista de per- versos territórios em que transitavam. Para tanto, o trabalho foi estru-
guntas e entendemos que o mais interessante naquele momento era turado da seguinte forma:
escutá-lo e não sabatiná-lo.
INTRODUÇÃO
Fernanda, quando me falaram o que você iria estudar, eu achei muito 1. O PROCESSO CRIATIVO E O LUGAR DA ARTE
interessante porque tanto já se disse sobre a minha arquitetura. […] 1.1. O CAMINHO DO DESENHO E A CONSTRUÇÃO DO OLHAR
você tem que fazer disso uma tese. Você tem que construir a defesa
1.2. LINGUAGEM E AMÉRICA LATINA
“do que?” O que isso no fundo quer dizer? Quer dizer que temos uma
pobreza muito grande, uma dificuldade muito grande quando expri-
2. MANEIRAS DE EXPOR
mimos o que queremos dizer ao outro. As próprias palavras são muito 2.1. A EVOLUÇÃO DOS MUSEUS
poucas. Inventamos o que podemos falar. É tudo um discurso, o ato de 2.2. MASP, LINA E UMA NOVA FORMA DE EXPOR
você dizer ao outro. 2 2.3. PAULO MENDES DA ROCHA E SEU MODO DE EXPOR
2.4. PAULO MENDES DA ROCHA E O ESPAÇO DA ARTE
2 Paulo Mendes da Rocha. Entrevista concedida a Fernanda Ferreira, São Paulo, 06 de jun. de 2017, na 3. DOIS MUSEUS E O ATLÂNTICO
sede de seu escritório. [entrevista não publicada] Encontra-se transcrita no anexo I desta dissertação. 3.1. MUSEU DOS COCHES – BELÉM – TEJO

15
3.1.1. ARQUITETURA DO DESASSOSSEGO pouca informação relativa aos projetos, mas tivemos acesso aos cartazes,
3.2. CAIS DAS ARTES – VITÓRIA – BAÍA DO SUÁ catálogos e programas de todos eles, digitalizados.
3.2.1. CENTRO DE ARTE E NATUR KRAJCBERG E CAIS DAS ARTES A partir dos catálogos buscamos as pessoas da equipe técnica de cada
uma das peças. Começávamos a encontrar material iconográfico, textual
Após nossa explanação final, no último slide, incluímos a fala do ar- e pessoas que contribuíram muito para elucidação de dúvidas.
quiteto e uma nota apontando o desejo de mudança de rumo, transfor- Paralelo a isto, nos debruçamos sobre os acervos históricos dos jor-
mando parte do segundo capítulo em uma nova dissertação. nais e revistas da época.
Imediatamente a professora Marta Bogéa concordou, dizendo: Frequentamos sebos em busca dos livros que foram transpostos para
cena e, para nossa grande surpresa, foram neles que encontramos, em-
A primeira coisa que me chamou atenção quando eu te li, foi que eu me poeirados, os catálogos de Il Trittico – do Teatro Municipal do Rio de
incomodei, porque eu tenho uma joia na mão. E qual é a joia? O Paulo te Janeiro e o catálogo de O Homem sem Qualidades. Encontramos tam-
disse isso textualmente: Isto que você está falando me interessa muito. bém uma outra joia: a edição comemorativa de 50 anos da publicação de
Falar sobre os cenários, porque é disso que ninguém falou.3 Grande Sertão: Veredas, que vinha com o catálogo da exposição de Bia
Lessa para a inauguração do Museu da Língua Portuguesa.
A banca de qualificação reiterou nossa expectativa. A recomendação Neste processo, descobrimos a importância do facebook como ferra-
foi o redirecionamento do trabalho para a obra cenográfica do arquiteto menta de pesquisa. Através dele localizamos pessoas de extremo valor
e os professores citaram vários motivos: a falta de pesquisas e material para o processo de pesquisa aos quais agradeço imensamente a colabo-
disponíveis sobre a produção cenográfica de Paulo Mendes da Rocha, a ração recebida:
qualidade do material levantado durante a pesquisa – a banca entendia
que este material não deveria ficar restrito a um subcapítulo da disser- Bia Lessa: gentil diretora que, desde o primeiro contato, foi solícita e
tação – e a produção e difusão de conhecimento de importante viés da interessada na pesquisa. Forneceu boa parte do material fotográfico de
obra do arquiteto ainda desconhecida por muitos. O Homem sem Qualidades e técnico de Grande Sertão: Veredas, além da
A partir daquele momento demos início a uma longa jornada em busca enorme contribuição imaterial nas diversas oportunidades de conversa
de todo tipo de material que pudesse ter alguma relação com as peças. sobre seu trabalho em parceria com Paulo Mendes da Rocha;
Começamos pelos teatros. Visitamos os CEDOCS dos teatros munici- Eduardo Correia (assistente de Bia Lessa): uma das pessoas que
pais em busca de material acervado sobre os espetáculos. Conseguimos mais incomodamos neste processo. Com sua paciência e gentileza tirou
dúvidas, indicou caminhos e nos disponibilizou um dos materiais mais
importantes da pesquisa: a gravação de um trecho com cerca de 30 mi-
3 Marta Bogéa, em banca de qualificação realizada em 17 de ago. de 2017. nutos da peça Futebol;

16
Guto Lacaz: designer que gentilmente abriu as portas de sua casa, Gostaria de deixar registrado também os percalços pelos quais pas-
em São Paulo, para nos mostrar seus incríveis desenhos para os objetos samos, como a dificuldade de acesso a informações junto ao Centro
do espetáculo Futebol. Passou horas scaneando croquis para colaborar Cultural Banco do Brasil do Rio de Janeiro, que só nos deu retorno
com esta pesquisa; após mais de três meses de inúmeras tentativas e que, mesmo em posse
Gal Oppido: fotógrafo profissional, que nos forneceu cerca de 65 ima- de toda nossa documentação pessoal e acadêmica, além de carta da
gens dos espetáculos Suor Angelica, Gianni Schicchi e Ópera dos 500 Universidade solicitando colaboração, não permitiu nenhuma digita-
anos – Popular e Brasileira. Permitiu que invadíssemos seu estúdio e lização do material contido em seu acervo. Tudo o que conseguimos
passássemos horas mexendo em seus arquivos “analógicos”, como ele foi autorização para olhar, anotar e fotografar, através de um telefone
mesmo os chamava: gavetas e mais gavetas com envelopes contendo celular, as reportagens arquivadas. Postura bastante lamentável, visto
negativos e cromos. Nos confiou os cromos originais dos espetáculos, por que instituições como estas deveriam ter, por princípio, a difusão do
alguns dias, para que pudéssemos digitalizá-los. conhecimento como seu maior interesse.
Jean Luis Leblanc: assistente de cenografia, que nos orientou na elabo- Nos anexos desta pesquisa estão disponibilizadas todas as imagens
ração dos desenhos do cenário de O Homem sem Qualidades, uma das peças que não foram utilizadas na ilustração dos textos.
em que não havia registro gráfico do cenário, nem registro fotográfico que Nota: Todo material reunido por esta pesquisa foi entregue a Paulo
pudesse nos fazer compreender a espacialidade daquela montagem. Nos Mendes da Rocha e Bia Lessa para que possam manter consigo em seus
forneceu alguns croquis de sua autoria e de autoria de Paulo Mendes da acervos pessoais.
Rocha para que pudéssemos reconstituir o cenário inteiro.
Fátima Gonçalves: do Centro de Documentação da Fundação
Teatro Municipal do Rio de Janeiro, que nos enviou importante ma- Todo discurso é uma construção4
terial digitalizado.
Fabiano Cassettari: do Centro de Documentação da Fundação Poucas são as informações disponíveis acerca da obra cenográfica de
Teatro Municipal de São Paulo, que também digitalizou e nos cedeu Paulo Mendes da Rocha. As referências geralmente se concentram em
o material disponível de todos os espetáculos que foram encenados sua obra arquitetônica e desdobramentos.
no teatro. A presente pesquisa tem por objetivo registrar o conjunto da obra
Leonardo Cândido e Flávio Bassetti: do Teatro Popular do Sesi, que do cenógrafo Paulo Mendes da Rocha, identificando suas característi-
nos enviaram o cartaz e várias fotografias da peça Futebol. cas e intenções. Para tanto, decidimos não isolar cada cenário em um
Matheus Tavares: arquiteto carioca que, mesmo sem nos conhecer-
mos, gentilmente cedeu a esta pesquisa parte de seu tempo, dispondo-se 4 Paulo Mendes da Rocha. Entrevista concedida a Fernanda Ferreira, São Paulo, 06 de jun. de 2017, na
a ir ao Centro Cultural Banco do Brasil fotografar o acervo histórico. sede de seu escritório. [entrevista não publicada]. Encontra-se transcrita no anexo I desta dissertação.

17
capítulo. Entendemos que o mais adequado à narrativa não seja o es-
tabelecimento de divisões ou limites entre eles mas, ao contrário, ter
na confiança da interação e reciprocidade da experiência do teatro, a
descoberta do conceito abrigado em cada ato.
Lembramos que esta dissertação foi capitaneada por memórias e
depoimentos que nos permitiram desvelar o discurso que habitava em
cada uma das narrativas, e que, uma vez interpretadas pelo arquiteto,
se tornaram amparo físico para a experiência emocional realizada
pelo teatro.
Iniciamos com o percurso pela cenografia brasileira a partir da peça
Vestido de Noiva, de Ziembinski (1943), que introduziu no Brasil a ceno-
grafia de cunho psicológico. Posteriormente, abordaremos dois projetos
citados por Paulo Mendes da Rocha, como exemplos de projetos que
possuem relações com a cenografia e faremos algumas considerações
sobre o raciocínio construtivo do arquiteto.
A segunda parte deste caminho percorrerá a obra cenográfica de
Paulo Mendes da Rocha, passando pelos sete cenários projetados pelo
arquiteto. E por fim, focaremos na frutífera parceria de Paulo Mendes
da Rocha com a diretora Bia Lessa, que, ao relacionarem a arte cênica
com a arquitetura, proporcionaram a construção de cenários com forte
carga humana e emocional.

Figura 1: Imagens variadas


do material levantado
pela pesquisa. Fotos:
Fernanda Ferreira

18
1. Cenografia e arquitetura

A Cenografia no Brasil

Pâmela Howard, cenógrafa e teórica de cenografia, em seu livro


“O que é cenografia?” (2015) compilou uma infinidade de definições so-
bre o que viria ser esta arte. Dois cenógrafos brasileiros fazem parte
desta compilação: J.C. Serroni e Lidia Kosovski, com as seguintes defi-
nições para o tema:
“Uma matéria que amplia a poesia inscrita no gesto do ator” L. Kosovski1
(HOWARD, 2015, p.19)
“Cenografia é a dramatização do espaço” J.C. Serroni. (ibid, p.19)
De todas as definições contidas no livro de HOWARD a que, para nós,
melhor se enquadra no que mostraremos no decorrer desta dissertação
é a de Declan Donnellan e Nick Ormerod (Reino Unido): “A cenografia
cria um espaço para uma experiência” (HOWARD, 2015, p.22)
Há que se frisar que a cenografia e arquitetura possuem ligações es-
treitas e que diversos foram os arquitetos que levaram aos palcos as suas
visões de espaço cênico.
Segundo Howard (2015), o suiço Adolphe Appia (1862-1928) teria sido
o primeiro arquiteto cênico do século XX. Foi ele que introduziu uma nova
perspectiva espacial na cenografia, rompendo com o clássico “cenário
pintado ilusionístico […] Em 1911, em Hellerau, na Alemanha, Appia criou
o Espaço Rítmico: um arranjo de escadas e plataformas que fornecia mó-

1 Definição de cenografia, por Lidia Kosovski e J.C. Serroni, mencionadas no livro O que é cenografia?
de Pâmela Howard. A autora compilou, em 2009, as definições de cenografia dos 51 cenógrafos mais
relevantes do mundo.

19
Tal milagre explica-se pelo encontro de um drama irrepresentável se
dulos mutáveis verticais e horizontais”. (HOWARD, 2015, p.28). Este teria
não em termos modernos e o único homem porventura existente no
sido o ponto de partida para a libertação do cenário como representação Brasil capaz de encená-lo adequadamente. Vestido de Noiva de Nelson
figurativa de um texto. Rodrigues diferia com efeito de tudo o que se escrevera para a cena
Segundo J. C. Serroni (2015), no Brasil, um dos primeiros sujeitos entre nós, não apenas por sugerir insuspeitadas subversões psicoló-
de teatro a se preocupar com o cenário como elemento fundamental gicas, a seguir amplamente documentadas em outros textos do autor,
para o espetáculo, foi Procópio Ferreira, a partir dos anos 20. “Ele já mas, principalmente, por deslocar o interesse dramático, centrado não
percebia que a elaboração de cenografia deveria acontecer em con- mais sobre a história que se contava e sim sobre a maneira de fazê-lo,
numa inversão típica da ficção moderna. (…) O que víamos no palco
junto com a concepção cênica do diretor e que os cenários não deve-
pela primeira vez, em todo o seu esplendor era a mise en scène (só aos
riam ser entregues apenas a um bom pintor”. (SERRONI, 2015, p. 2.7) poucos a palavra foi sendo traduzida por encenação), de que tanto se
Mas foi Tomás Santa Rosa, com o cenário altamente expressivo de falava na Europa (PRADO, 2001, p. 40).
Vestido de Noiva (Rio de Janeiro, 1943), baseado na obra de Nelson
Rodrigues (1912-1980) e com direção de Ziembiński (1908-1978)2, que “Ele (Tomás Santa Rosa) foi o primeiro de uma série de cenógrafos
mudaria o panorama da cenografia brasileira por se voltar à realidade brasileiros a se preocupar com a questão da técnica e não da intuição
de cunho psicológico. prática do fazer da cenografia.” (PASSETTI, 2015, p.27.) Foi este tipo de
A peça estreou em 28 de dezembro de 1943, no Teatro Municipal do proposta que abriu caminho para o surgimento de uma “vanguarda da
Rio de Janeiro, e inovava por sua linguagem forte e por transplantar para cenografia teatral brasileira” (PASSETTI, 2015, p.27) composta por Flávio
o palco a profunda angústia do autor. Império, Lina Bo Bardi, entre outros.
Pela primeira vez, três planos eram usados simultaneamente, rom- Alguns outros artistas plásticos ou arquitetos também flertaram com
pendo a relação com o realismo dos cenários baseados em telões pinta- o universo cenográfico, como: Tomie Ohtake, Isay Weinfeld, Clovis Gra-
dos (SERRONI, 2015). A cena era dividida em: plano da realidade, plano ciano, Paulo Mendes da Rocha entre outros.
da alucinação e plano da memória e cada um deles era iluminado de Poderíamos aqui traçar paralelos, buscar em outras referências da
maneira diferente. cenografia arquitetos que contribuíram para este campo tão específico,
Segundo Décio Prado (2001), o grande sucesso de Vestido de Noiva, mas nosso interesse se concentra em Paulo Mendes da Rocha e seu dis-
se deu pelos diálogos desnudados, pelo talento de Ziembiński e pela curso. Desvelar a maneira como ele expõe suas ideias quando deslocado
ambientação cênica de Santa Rosa: a trabalhar no campo da arquitetura cênica.

2 Zbigniew Marian Ziembiński (1908-1978). Diretor de teatro considerado um dos fundadores do


teatro moderno brasileiro.

20
Figura 1.1 Fotografia do cenário da peça Vestido de Noiva, de Ziembiński, Rio de Janeiro, 1943. Figura 1.2: Croqui do cenário de Vestido de Noiva, de Ziembiński 1943,
Reprodução fotográfica Carlos Moskovics. Fonte: ENCICLOPÉDIA Itaú Cultural de Arte e Cultura indicando os 3 planos de atuação. Desenho: Fernanda Ferreira
Brasileiras. São Paulo: Itaú Cultural, 2018. Disponível em: <http://enciclopedia.itaucultural.org.br/e

21
“Tua alma é o mundo inteiro” – Sidarta –
Hermann Hesse
Ao analisarmos as obras do arquiteto e ao questioná-lo sobre a re-
lação da arquitetura e cenografia, Paulo Mendes da Rocha mencionou
dois projetos, que a seu ver, teriam relações com a arquitetura cênica: o
Aproximações ao raciocínio cenográfico Pavilhão do Brasil na Exposição Universal de Osaka, em 1970 e o desfile
de Paulo Mendes da Rocha “Corpo Público”3, 1999, da M. Officer.
O Pavilhão de Osaka é um projeto emblemático na carreira do arqui-
teto. Uma arquitetura efêmera – criada para ser posteriormente demo-
Segundo Maria Isabel Villac, Paulo Mendes da Rocha articula pro- lida – que teve a responsabilidade de representar o caráter arquitetô-
cedimentos eminentemente técnicos ligados ao território do conheci- nico-cultural brasileiro na feira internacional daquele ano, a primeira
mento e a planos imagéticos fundamentados em sua visão de mundo, na grande exposição do continente asiático.
observação das transformações da natureza para construção do habitat Este projeto, especialmente, possui características que se aproxi-
humano, com o ideal de cidade que desejamos construir, norteados por mam muito da cenografia. O arquiteto criou um substrato para que a
um forte compromisso histórico e social. (VILLAC, 2014) exposição de Flávio Motta pudesse ser exibida.
Para Paulo Mendes da Rocha, a manifestação artística nasce, funda-
Na realidade, porém, o importante para que a comunhão se estabeleça mentalmente, da necessidade de nos comunicarmos e definirmos uma
é que a própria arquitetura seja concebida e executada com consciên- estratégia para dizermos ao outro o que queremos dizer.
cia plástica, isto é, que o próprio arquiteto seja artista. Porque só assim
Em entrevista com o arquiteto4, ele nos deu um exemplo poético
a obra plástica do pintor e do escultor poderá integrar-se no conjunto
da composição arquitetural como um dos elementos construtivos,
deste discurso, a partir de um evento cotidiano. Flávio Motta queria
embora dotada de valor plástico intrínseco autônomo. Lucio Costa convidar o arquiteto e sua esposa para um jantar, mas como não o en-
(COSTA, 1962, p. 301) controu no escritório, deixou um bilhete. Poderia ter sido um bilhete
qualquer, mas não. Flávio Motta recortou uma pequena tira de papel
Neste sentido, a maneira como o arquiteto cria espaços parece ex- e escreveu o convite. Enrolou e colou as duas pontas. Segundo Paulo
pressar, integrar e sobrepor sua vivência a planos de raciocínio cons- Mendes, esta é a graça do raciocínio construtivo. A forma que devemos
trutivo, engendrando ideias, discursos e escalas antes mesmo que se dizer o que precisa ser dito, de maneira inventiva. Apenas há que se
materialize “a coisa”, como se refere o arquiteto àquilo que se constrói. saber construir o suporte.
Por ter um discurso fundamentado em bases sólidas, ele transita por
outras áreas de atuação como o design de mobiliário, arquitetura de
3 Colaboração: M.G. Corullon (Metro Arquitetos)
lojas, cenários, montagens expositivas e desfiles de moda com a mesma 4 Paulo Mendes da Rocha. Entrevista concedida a Fernanda Ferreira, São Paulo, 06 de jun. de 2017, na
desenvoltura com a qual produz arquitetura. sede de seu escritório. [entrevista não publicada] Encontra-se transcrita no anexo I desta dissertação.

22
Figura 1.3: Maquete do Pavilhão de Osaka – Expo-70. Fonte: spiro, 2002, p. 96

Quer ver outra coisa? O Flávio Motta passou por aqui e me deixou um
bilhetinho porque eu não estava. Mas não era só um bilhetinho. Era
comunicação. Não é uma beleza? Mas a forma foi ele que inventou.
Veja, no universo das coisas que você está estudando está o Pavilhão de
Osaka com a exposição do Flavio Motta. Na minha vida, como cenário,
como exposição, este projeto foi importantíssimo.5

Do memorial:

A Feira Internacional de Osaka é um encontro de grande significado


humanístico; um projeto para o mundo em que vivemos. O Pavilhão
do Brasil une a Praça da Amizade com o Grande Parque, num gesto de
confraternização, onde mostrará o trabalho de seu povo como contri-
buição para esse Projeto. É aberto para os Pavilhões vizinhos, Tchecos-
lováquia e Etiópia. O Chão será o mesmo que o de Osaka. Uma sombra
como a das árvores cobre parte do recinto. Chão de estrelas.
O piso terá ondulações suaves como das ruas de uma cidade onde o
passeio e o encontro se dão naturalmente. […] A luta por esta conquista Figura 1.4: Paulo Mendes da
Rocha, em seu escritório com
a pequena tira de papel, convite
de Flávio Motta para jantar.
5 Ibid. Foto: Fernanda Ferreira

23
será contada através da obra de nossos cientistas e artistas. Neste julgamento por estas qualidades, sendo fácil destacar o primeiro prêmio
sentido o Brasil fixa com Brasília e as novas cidades essa busca de um dentro das premissas que foram estabelecidas. As classificações seguin-
espaço e um tempo de constante significação humana. Esse trabalho tes foram muito difíceis.7
traz a história para o presente e se afirma como projeto. (ROCHA in
SPIRO, 2002, p.97)6

A recente viagem do homem à lua, o avanço das tecnologias, o con-


texto geopolítico mundial e a ditadura no Brasil denotavam um am-
biente extremamente diferenciado e rico para a época. Era, portanto,
um momento oportuno de mostrar ao mundo uma arquitetura funda-
mentada em um caráter notadamente brasileiro.
Como temática, a feira de Osaka tinha o “Progresso humano em har-
monia para humanidade”. A equipe coordenada por Mendes da Rocha
composta por Julio Katinsky, Marcelo Nitsche, Flávio Motta, Carmela
Gross, Ruy Ohtake e Siguer Mitsuttani, este último responsável pelos
cálculos estruturais, venceu o concurso público promovido pelo governo
com uma proposta de alma, notadamente, brasileira. Da ata do Júri:

Muitos concorrentes se deixaram levar pelos aspectos técnicos do pa-


vilhão. Como o Brasil não pretende mesmo concorrer com países su-
perdesenvolvidos (EUA e URSS gastarão cerca de 30 milhões de dólares Figura 1.5: Croquis e memorial do projeto. Fonte: spiro, 2002, p. 97
com seus pavilhões), essa ênfase sobre o lado tecnológico foi afastada.
O projeto vencedor escolheu uma abordagem nitidamente brasileira.
Ele apresenta como solução básica a libertação do terreno, com um As exposições mundiais são marcadas pelo forte caráter de reafir-
tratamento do chão elaborado sobre composição de espaço rico em mação da identidade cultural das nações, além de serem uma grande
formas e conteúdo. oportunidade para os países exporem suas tradições arquitetônicas,
Seu maior sentido de profundidade é uma poética inconfundível, muito culturais, sociais bem como as angústias políticas e ideológicas que de-
ligada às tradições brasileiras. O projeto se destacou desde o início do marcam períodos de suas histórias.

6 Trecho transcrito a partir da reprodução da prancha de nº8 do Concurso para o Pavilhão Oficial 7 Trecho da ata de julgamento do Concurso para o Pavilhão Oficial do Brasil Feira internacional de
do Brasil na Feira internacional de Osaka, Japão. Expo 70 Osaka, Japão. Expo 70, publicado na Revista Acrópole, São Paulo, 1969. N.361, p.13.

24
Não se pode negar essa preocupação influindo na fisionomia e no fun-
cionamento do Pavilhão do Brasil para Expo-70. É que o projeto emer-
giu também dessa visão histórica. Contém o estudo e o conhecimento
em torno da obra de Niemeyer, de Lúcio Costa, de Artigas e de tantos
outros que formam hoje um amplo e diferenciado quadro de arquitetos,
artistas contemporâneos, brasileiros e nem por isso menos universais.
(MOTTA, 1970, p.25)

“O Projeto do Pavilhão do Brasil na Feira de Osaka é o único projeto


de Mendes da Rocha idealizado como uma arquitetura representativa.
Para exibir seu caráter simbólico o edifício reúne em sua configuração,
uma colagem de elementos8 da história da arquitetura” (VILLAC, 2000,
p.132). Donde se pode verificar, de maneira mais próxima ao projeto, que
os perfis das vigas protendidas muito se assemelham aos arcos projeta-
Figura 1.6: Pavilhão do Brasil na Exposição Universal de Osaka, em 1970. Fonte: pisani, 2013, p. 181
dos por Oscar Niemeyer para a sede da Mondadori (1968) em Milão ou
mesmo o Itamaraty, em Brasília (1970). A cobertura, um grande tabu-
leiro composto por vigas em concreto protendidas e vidro, parece fazer
alusão ao teto da FAU-SP (1969), projeto de Vilanova Artigas.
Já o pilar, criado pelo cruzamento de dois arcos, desenhando uma cruz
no chão é, segundo Maria Isabel Villac, “a marcação de uma referência
geométrica e abstrata, que funda um espaço territorial e estabelece o
parâmetro relacional entre razão e natureza.” (VILLAC, 2000, p.144)9
Se para o arquiteto “a primeira e primordial arquitetura é a geografia”
e “o supremo museu é a cidade”, na feira de Osaka estes dois conceitos
foram aplicados com grande maestria.

8 Grifo nosso
Figura 1.7: Foto do pavilhão
9 Tradução nossa para texto Original: “[...]es la fijación de una referencia geométrica y abstracta, de Osaka em construção.
que funda un espacio territorial y estabelece el parámetro relacional entre lá razón y la natureza. Fonte: spiro, 2002, p. 105

25
até os projetos de Lúcio Costa para Jacarepaguá e Brasília, e de Oscar
O território criado, conforme descrito no memorial, remete às ruas
Niemeyer para a cidade Israelense de Negev, o ponto de chegada do
das cidades. Estas, democráticas, ao contrário do contexto de exceção percurso traçado por um projeto que, indo até os confins nacionais,
que vivia o Brasil, são abertas e fluidas. Sem fronteiras, o único limite assume validade universal. (PISANI, 2013, p.182).
proposto nesta obra é desenhado pela sombra da cobertura no chão. Uma
metáfora em forma de arte para representar a questão dual entre cidade
e natureza, entre tecnologia construtiva e possibilidade social.
A praça do café, sinalizada pelo pilar escultórico composto por dois
arcos cruzados, demarca um lugar eminentemente urbano, de caráter pú-
blico. Um local para o encontro, para conversas, uma vez que para o arqui-
teto, o grande motivo das cidades existirem é para que possamos conversar.

Então temos que dizer ao outro. É uma condição humana. É a conde-


nação humana. Transformar o pensamento em “coisa” para o outro
ver. É muito curioso essa coisa da dimensão artística. Toda ação nossa
tem uma dimensão artística. Não precisa ser artista, como se diz. Há
coisas que são necessárias. Outras são desejáveis.10 Figura 1.8: Prancha 6 apresentada no concurso para o Pavilhão
de Osaka. Elevações. Fonte: spiro. 2002, p. 103

No caso do Pavilhão de Osaka, o conceito expositivo da mostra ficou


a cargo de Flávio Motta. Infelizmente a exposição idealizada pelos vencedores não foi aquela
Segundo Daniele Pisani, eram evidentes: exposta na feira.
Já em 1999, Paulo Mendes promoveu a união entre o design de mobiliá-
[…]o diálogo e as mútuas intenções entre o pavilhão e a mostra pre- rio, cenografia e vestuário, com a criação de vestimentas para cadeiras no
vista por Flávio Motta […] que buscava delinear a progressiva apro- projeto espacial para o desfile “Corpo Público”11, da M. Officer. Neste pro-
priação da natureza por parte do povo brasileiro – entendida como
jeto, o arquiteto rompe com a rigidez da passarela retilínea e propõe uma
uma integração entre populações indígenas, os colonizadores, os imi-
grantes europeus e os escravos negros – ao longo de sua história, um
“série de recintos de estar fluídos, em que os gestos dos modelos perdem seu
percurso que, por meio de uma “revisão crítica do colonialismo, seria caráter de exibição artificial e se aproximam do cotidiano, da vida urbana.“
conduzido desde os primeiros assentamentos dos povos indígenas (ARTIGAS, 2002, p.96). Mais uma vez, Paulo Mendes retoma a questão mo-
numental da cidade para relacioná-la com alguma forma de arte.
10 Paulo Mendes da Rocha. Entrevista concedida a Fernanda Ferreira, São Paulo, 06 de jun. de 2017, na
sede de seu escritório. [entrevista não publicada] Encontra-se transcrita no anexo I desta dissertação 11 Colaboração: M.G. Corullon (Metro Arquitetos)

26
Figura 1.9 a Figura 1.11:
Desfile M. Officer. 1999.
Fonte: artigas, 2002, p.96

27
Em entrevista à Revista “Isto é” (1999), ao ser perguntado sobre como Ao investigarmos a obra cenográfica de Paulo Mendes da Rocha, per-
foi expandir os horizontes da arquitetura e ser responsável pela concep- cebemos que a intenção construtiva13 como forma de estruturar o seu
ção espacial de desfiles de moda para uma marca de roupas, M. Officer, na discurso – assim como ocorre na arquitetura – é também reiterada nesta
São Paulo Fashion Week de 1999, o arquiteto respondeu: materialidade. O raciocínio construtivo e a linguagem acabam por atri-
buir um valor humano ao espaço.
É interessante considerar que nossa existência é um discurso que se faz
de um modo arquitetônico – seja no modo como você anda, seja no modo Assim, pois, o racionalismo, na arquitetura de Mendes da Rocha, se
que constrói uma casa. Daí a simples ideia de tirar as figuras humanas, insinua de forma significativa e a intencionalidade, do projeto, busca
as mulheres, de uma marcha muito regular numa passarela retilínea e revelar “sempre um comprometimento nítido com o ideário da liber-
fazer com que o espetáculo flua de um modo muito mais parecido ao que dade, da independência e a procura de uma identidade entre ideia e
se anda na cidade (ROCHA, in ALZUGARAY, 1999 [internet]) desenho”.14
Para Mendes da Rocha, a objetividade não está “na ideia de mundo”,
No campo da arquitetura cênica, para espetáculos de teatro e ópera, senão “no mundo”. É a partir da consciência concreta do mundo — sua
Paulo Mendes da Rocha projetou sete cenários: Suor Angelica, Futebol, transformação através da apropriação do pensamento construtivo —
O Homem sem Qualidades e Grande Sertão: Veredas, para a diretora Bia que o arquiteto concebe o mundo das ideias. (VILLAC, 2014, p.6)15
Lessa; Il Tabarro para Jorge Takla; Gianni Schicchi para Gabriel Vilella
e Hamilton Vaz Pereira. E a Ópera dos 500 – Popular e Brasileira para O que nos parece importante ressaltar em relação à maneira do ar-
Naum Alves de Souza (1942–2016). quiteto formar, quer seja no campo da arquitetura ou cenografia é que
não há uma imposição quanto ao modo de utilizar os espaços, o que
demonstra que, em quaisquer materialidades, o objeto é sempre um
Linguagem e intuição suporte criado para uma ação no espaço e no tempo. Com este discurso,

O ser humano é por natureza um ser criativo12. No ato de perceber, ele


tenta interpretar e, nesse interpretar, já começa a criar. Não existe um 13 Grifo nosso
momento de compreensão que não seja ao mesmo tempo criação. Isto se 14 Paulo A. Mendes da Rocha, “Ideia e desenho”. p. única.
15 Texto original: “Por lo tanto, el racionalismo em la arquitectura de Mendes da Rocha se insinua
traduz na linguagem artística de uma maneira extraordinariamente sim-
em el sentido y la intencionalidade que el proyecto pretende revelar “como um claro compromisso
ples, embora os conteúdos sejam complexos. (OSTROWER, 1988, p.167).
com los ideales de la libertad, dela independência y com la búsqueda de uma identidade entre la
idea y el diseno”.
Para Mendes da Rocha, la objetividade no es la idea del “mundo” sino “el mundo”. Es a partir de
la consciência del mundo concreto – su transformación a través de la apropiación del pensamento
12 Grifo nosso constructivo – que el arquitecto concibe el mundo de las ideas”.

28
independentemente do campo de atuação, o que se propõe são ações Ao falarmos de processo de criação falamos necessariamente de
que nos sugerem uma aproximação com o fundar uma nova lógica de um procedimento que se inicia na mente, no intelecto, e é finalizado
ocupação espacial, que é, por princípio, livre de fronteiras. produzindo alguma forma de comunicação com o outro, quer este-
jamos falando de linguagem escrita, tocada, pintada, esculpida ou
A linguagem e a vida são uma coisa só. Quem não fizer do idioma o espe- desenhada.
lho de sua personalidade não vive; e como a vida é uma corrente contí- Catherine Otondo (2013), em sua tese de doutorado, investigou de
nua16, a linguagem também deve evoluir constantemente. Isto significa
que maneira o processo de projeto e construção de um artefato revela a
que como escritor devo me prestar contas de cada palavra e considerar
cada palavra o tempo necessário até ela ser novamente vida. 17
forma como Paulo Mendes da Rocha pensa a arquitetura e fixou-se em
duas instâncias: o desenho e o espaço construído.
Em sua pesquisa, ela percebeu que a função primordial do desenho,
Segundo Fayga Ostrower, os processos de criação só podem ser vistos no caso de Mendes da Rocha está intimamente ligada ao ideário, lugar
de uma forma global “como um agir integrado a um viver humano. De onde se materializa o raciocínio projetual. “As maquetes de papel e de-
fato, criar e viver se interligam”. (OSTROWER,1987, p.5) senhos no papel manteiga são suporte material pelos quais o arquiteto
É por meio de seu raciocínio arquitetônico que Mendes da Rocha realiza formalmente suas ideias.” (OTONDO, 2013, p.43.)
expõe ambiguidades articulando conceitos como espaço externo/ in- Otondo se apoia em Henri Bergson (2006) e seu livro “O Pensa-
terno ou espaço público/ privado, conferindo monumentalidade18 mento e o Movente” para discutir inteligência e intuição. Para Bergson
às suas obras através de sua consciência de mundo. Neste caso, “[…] o que dá sentido e direção ao pensamento é a intuição e não a inteligên-
a consciência não é tomada como uma espécie de “alma” ou “espírito cia. Ele sustenta que a inteligência é a forma do homem compreender
etéreo”, mas como o lugar onde interagem formas de pensamento”. o que há de estável na realidade. Já a intuição, por outro lado, é a forma
(SANTAELLA, 1983, P.42). do homem perceber uma realidade pelo seu interior e afirma que a
ciência constrói pela inteligência e a filosofia cria pela intuição. Ou
seja, a ciência organiza, combina, arranja, rearranja, enquanto a intui-
ção engendra relações de sincronia, em um jogo de aproximações que
16 Grifo nosso
17 Palavras de Guimarães Rosa. Trecho retirado do catálogo da exposição Grande Sertão: Veredas, avança em direção a uma possibilidade. (OTONDO,2013)
ocorrida em 2006, São Paulo. Direção e Concepção Geral: Bia Lessa Bergson ainda diz que:
18 Ao mencionarmos monumentalidade, neste caso, nos referimos ao conceito do manifesto pro-
posto por Sert, Léger e Giedion, (1943), “Nine Points on Monumentality”, que introduziu o termo A intuição de que falamos, então, versa antes de tudo sobre a duração
no vocabulário arquitetônico moderno ao reinterpretar a forma com a qual nos relacionamos com
interior. Apreende uma sucessão que não é justaposição, um crescimento
os símbolos que criamos. Para os autores a monumentalidade está ligada não a escala, dimensões ou
por dentro, o prolongamento ininterrupto do passado num presente que
nobreza de materiais, mas à existência de uma consciência e cultura coletivas.

29
avança sobre o porvir. É a visão direta do espírito pelo espírito. Nada mais na pessoa, refletindo processos de crescimento e maturação cujos
de interposto; nada de refração através do prisma pelo qual uma das faces níveis integrativos consideramos indispensáveis para a realização
é espaço e a outra é linguagem19 (BERGSON, 2006, p.29). das potencialidades criativas. (OSTROWER,1987, p.5)

Segundo Bergson, a intuição é primordialmente uma consciência ime- A solução projetual sempre diz respeito a uma série de operações que
diata, onde a visão mal se distingue do objeto. Em um segundo momento, são sintetizadas em um partido. Qualquer alteração, qualquer subtra-
é uma consciência alargada que interage com o inconsciente dentro de ção ou adição pode reduzir o processo a uma mera linguagem. Por este
uma dimensão temporal. Portanto, o “pensamento intuitivo é pensar em motivo, a obra de Mendes da Rocha continua sendo objeto de estudos
duração” (BERGSON, 2006, p.32) mais variados, os quais buscam compreender a forma como ele continua
Já Maria Isabel Villac, em sua tese de doutorado intitulada La Con- a produzir espacialidades singulares.
strucción de La Mirada – Naturaleza, Ciudad y Discurso em la Architectura “Isolar uma solução interessante de um partido estrutural, é ver no
de Paulo Mendes da Rocha (2000), aproxima a obra de Mendes da Rocha, detalhe um significado autônomo, um ornamento em si, uma citação”
por sua afinidade, com a produção artística e intelectual do Brasil nos (TELLES, 1994, p.87). Ou seja, não há como analisar pontualmente uma
anos 50/60 (Tropicália, Cinema Novo) e pela consciência dos dramas de sensação espacial. O espaço é espaço para o indivíduo pela sensação que
um Brasil subdesenvolvido, cheio de contradições, frutos de sua história lhe causa. Portanto, o espaço torna-se espaço a partir de um reconheci-
de colonização. mento pessoal. De uma relação intersubjetiva entre sujeito e obra, o que
Ainda em sua tese, justifica que seria possível estruturar a análise só pode ser alcançado no campo da poética.
das obras do arquiteto observando-se a dimensão crítica do olhar do
[…]nossa vida é totalmente urgente [..] Com a experiência do passado,
sujeito em relação ao artefato, discursando sobre os diversos fatores da história, você prevê a ação do momento, e isso realmente faz que
que compõem a construção deste olhar, versando sobre um complexo nossa existência seja extraordinária. Nós é que somos seres monumen-
sistema de significados e procedimentos, denominado “arquitectogra- tais.” (ROCHA Apud PISANI, 2013, p.305)
mas”, através dos quais o arquiteto ordena e concebe formas, estruturas,
materiais, sentidos e novos lugares. Benedito Nunes, em Crivo de Papel, argumenta que a concretização
da obra em sintonia com o apelo estético é que nos leva à percepção do
Na mesma ordem de pensamento, entendemos o fazer e o configurar imaginário ali contido. Para o autor, só há intersubjetividade em textos
do homem como atuações de caráter simbólico. Toda forma é forma poéticos. (NUNES, 1998).
de comunicação ao mesmo tempo forma de realização. Ela corres-
Analogamente, em nosso campo de pesquisa, podemos dizer que en-
ponde, ainda, a aspectos expressivos de um desenvolvimento interior
contramos intersubjetividade na poética do discurso da arquitetura de
PMR, que se traduz em um saber técnico com uma intenção artística.
19 Grifo nosso Como disse o arquiteto em entrevista realizada em junho de 2017:

30
As próprias palavras são muito poucas. Inventamos o que podemos
No livro Maquetes de Papel, o arquiteto aborda a questão experimental
falar. É tudo um discurso. O ato de você dizer ao outro. A dança é um
discurso. A gesticulação, a expressão facial. Há muitas formas de você do uso dos modelos de papel no processo de projeto, não como ferramenta
fazer o mesmo discurso. De dizer a mesma coisa. E para dizer a mesma para se descobrir uma espacialidade, mas sim, como forma de aferir solu-
coisa você pode convocar tudo o que é. Que é a tal dimensão inventiva ções projetuais que possam sustentar o projeto como um fato consumado.
da natureza humana. Ela aparece no ato de dizer ao outro. Portanto,
esta história do cenário e a arquitetura, é como se fosse tudo uma coisa Não se trata dessa maquete feita para ser exibida e, eventualmente,
só. Vários modos de expressão. Não há quem diga, muito bem, vale a vender ideias. É a maquete como croqui. A maquete em solidão! Não
pena lembrar, as palavras estão para um escritor, assim como as pedras é para ser mostrada a ninguém. A maquete que você faz como ensaio
de uma catedral para um construtor. Se você não construir direito as daquilo que está imaginando. O croqui, o boneco, um conto. Como o
palavras não servem para nada. Portanto o modo “de”, que é a questão poeta quando rabisca, quando toma nota. O croqui que ninguém dis-
do cenário, da apresentação, fazer ver é muito importante. Você pega cute. (ROCHA, 2007, p.22)
por exemplo um verso, para falar em frase feita, impossível de mudar
um verso conhecido. Vou dizer um que eu sei, que eu gosto muito: “Nas Mendes da Rocha recorre, portanto, às maquetes de papel como sín-
águas da praia, nas ondas do mar, quero ser feliz, quero te encontrar. tese espacial palpável de uma primeira ideia, a ser lapidada no decorrer
Nas ondas da praia nas águas do mar, quero ser feliz quero me afogar”.
do processo de criação.
Se você imaginar cada palavra impressa em chumbo, como se usava
“No momento em que acredita haver chegado a uma primeira síntese
antigamente, e embaralhar na mesa, uma pessoa que não conheça o
verso vai dizer. Isso é o que? Mar? Quero? Nas? Não quer dizer nada. da questão proposta, confecciona pequenos modelos de papel com ma-
Tem que arrumar daquele modo. É uma construção. Portanto, todo teriais corriqueiros encontrados em seu escritório: arame, durex, cola”.
discurso é uma construção. Com os poucos recursos que temos. No (OTONDO in ROCHA, 2007, p.11).
caso, palavras.20
Los adornos extienden la amplitud de la actividad del “arquitecto”
Na concretização do discurso, conforme afirmado por Otondo, o cro- que disena muebles, escenarios, espacios para exposiciones, joyas,
joguetes, móviles, fantasias eróticas. Esta amplitude de la nocio de
qui e a maquete de papel são os primeiros contatos do arquiteto com a
arquitectura que engloba dimensiones de transformación crítica y
espacialidade imaginada: “em seu processo de projeto, elabora uma única constructiva de la realidade, de la imaginación y de la subjetividade
maquete sobre a qual vai trabalhando e fazendo os ajustes necessários […] es la misma que alimenta uma renovación que se hace sentir em to-
num processo similar à uma lapidação.” (OTONDO in ROCHA, 2007, p.11). dos los detalles expressivos de las obras. La amplitude de la mirada
hacia la arquitectura es el reconocimento de uma similaridade, no de
valor, sino de atención a las escalas de lo mínimo y de lo inmenso em
la intencionalidade tectónica de arquitecto Paulo Archias Mendes da
20 Paulo Mendes da Rocha. Entrevista concedida a Fernanda Ferreira, São Paulo, 06 de jun. de 2017, na
Rocha (VILLAC, 2000, p. 322)
sede de seu escritório. [entrevista não publicada] Encontra-se transcrita no anexo I desta dissertação.

31
Voltando ao nosso campo de pesquisa, acreditamos que os cenários Neste ponto, podemos retornar às citações que fizemos de Bergson,
são operados da mesma maneira que estas maquetes experimentais. onde o autor afirma que o que dá sentido e direção ao pensamento é a
Eles são o primeiro contato com a ideia de mundo interpretada para intuição, que se aproxima e se distancia em direção a uma possibilidade,
cada texto, para cada história: o corpo, a relação espacial de uma ma- reiterando a ideia de experimentação.
téria com o texto – que assim como as maquetes em solidão – se desen-
volvem com meios econômicos, concretizando um ensaio do espaço O que você transmite é um discurso, uma lição, queira você ou não!
imaginado. Um ensaio com proporções, transparências, sombras e A arquitetura só pode ser assim, voltada para a dimensão da nossa per-
manência no universo. Então esses modelinhos tem um sentido muito
volumes aptos à interação humana.
importante, o de conter essa sabedoria. […] Porque eles prescindem
Independente do conteúdo das narrativas textuais, é da união do de uma cenografia: arvorezinha, bonequinho, carrinho, uma verda-
plano do conhecimento e do plano da imaginação que são evocadas as deira esparrela. O que queremos aqui é a maquete límpida, nua e crua.
referências para expressar um discurso crítico em relação ao mundo, Aquela que você faz sozinho, como quem toma nota de coisas pensadas.
fazendo com que afirmações interpretativas se tornem próximas ao A arquitetura é sempre um discurso sobre esse tipo de conhecimento.
universo de cada história. Sabemos o que vamos fazer. (ROCHA, 2007, p.22)

La unión de la intención constructiva, como forma de estructu- O que nos instiga é: os cenários não seriam a materialização de uma
rar la poética de discurso, al proyecto como hipóteses inventiva relação aberta do homem com o espaço imagético oculto no interior dos
y marca indeleble para futuros razionamentos, enmarca el racio-
textos e que, assim como as maquetes de papel – ainda que construídas
cínio arquitectonico. La convicción em esse raciocínio, hace que
Mendes da Rocha considere la arquitectura como manifestacion
a partir de operações simples e com meios econômicos – nos conduzem
social que se confunde com la amplitude de las instalaciones hu- às experiências espaciais únicas?
manas “[..] Quando eu vi discursos sobre arquitetura, se sucederem Para tanto percorreremos a obra cenográfica do arquiteto, buscando
os discursos […] Eu percebi que os navios, mesmo as movimenta- compreender o que move o raciocínio projetual de Paulo Mendes da
ções dos navios dentro de um porto, que não havia antes aquele Rocha neste outro tipo de materialidade.
porto […] tudo isso é arquitetura! A existência humana nas suas
instalações indispensáveis, é feita como uma grande arquitetura.
(VILLAC, 2000, p. 322)

É de extrema importância perceber o tanto de empirismo que há


no processo criativo, para “não pensar que a questão da erudição pode
abolir a experimentação” (ROCHA, 2007, p.26)

32
É muito oportuna esta questão do efêmero e do eterno.
Primeiro que eu não vejo a arquitetura como uma
coisa eterna. De qualquer modo eu considero que as
variantes que se faz quando se representa a mesma
peça duas ou três vezes, são simplesmente variantes.
[…] portanto a materialização, aqui ou na arquitetura,
é também um discurso para que continuemos.1

2. A Cenografia de PMR em 7 atos.

A carreira do cenógrafo Paulo Mendes da Rocha teve início em 1990


com a montagem de Suor Angelica, o segundo ato da trilogia, Il Trittico,
de Puccini. Esta também era a estreia de Bia Lessa na direção de um
espetáculo de ópera.

Esta era a primeira vez dele fazendo cenário e minha fazendo ópera. Então
eu liguei para o Paulo – a gente não se conhecia – e ele disse: “Você deve
estar enganada, deve estar ligando para falar com o meu filho”. E então eu
disse: “Não, não! É com você mesmo que eu quero falar”.2

Ao todo, Paulo Mendes da Rocha projetou sete cenários para teatro


e ópera, sendo quatro deles para Bia Lessa: Suor Angelica em 1990, 1992
e 1995; Futebol e O Homem sem Qualidades em 1994; e Grande Sertão:
Veredas em 2017. Os outros cenários projetados pelo arquiteto foram: Il

1 Paulo Mendes da Rocha. Em worksop ambientado dentro do cenário de Grande Sertão: Veredas,
São Paulo, 18 de out. de 2017, na unidade do SESC Consolação. [entrevista não publicada]. Encontra-
-se transcrita no anexo II desta dissertação
2 Bia Lessa, Idem.

33
Tabarro – o primeiro ato de Il Trittico – sob direção de Jorge Takla, em
1992 e 1995; Gianni Schicchi – terceiro ato de Il Trittico – sob direção
de Gabriel Vilella ,em 1992 e sob direção de Hamilton Vaz Pereira, em
1995. Na época, Paulo Mendes fora chamado por Emílio Kalil, então di-
retor do Teatro Municipal de São Paulo, para dar unidade compositiva
à trilogia de Puccini. Em 1992 projetou ainda o cenário de a Ópera dos
500 anos - Popular e Brasileira sob direção de Naum Alves de Souza,
também encenada no Teatro Municipal de São Paulo.
Neste capítulo percorreremos a obra cenográfica do arquiteto
pelo critério cronológico. Para Suor Angelica, apesar da ópera ter
sido encenada de maneira isolada em 1990, discorreremos sobre
ela juntamente com os dois outros atos de Il Trittico para que
possamos abordar a forma tríade com a qual a ópera foi concebida
por Puccini.

Il Trittico
Figura 2.1: Trittico da Paixão de Cristo, séc. XVI, autor: Nardon
Pénicaud. Disponível em www.museudevora.pt
Com origem Medieval, os tritticos tiveram sua afirmação compo-
sitiva na pintura, especialmente em obras religiosas, provavelmente
relacionadas à representação material da divina trindade cristã. Il Trittico de Puccini
Estas peças – em sua maioria pinturas – eram compostas por três
painéis unidos entre si por dobradiças, permitindo que os laterais bas- Consta que logo após concluir Tosca, Puccini concebeu a ideia de
culassem sobre o painel central. uma trilogia de óperas em um único ato, de conteúdo contrastante, de-
Tecnicamente, a análise compositiva de um trittico parte do painel nominada Il Trittico: Il Tabarro, Suor Angelica e Gianni Schicchi, em
central – onde normalmente encontra-se a iconografia dominante – ordem de apresentação, foram compostas entre 1913 e 1917 e apresen-
para os painéis laterais, denominados volantes. tadas pela primeira vez em 1918.
Conceitualmente, um trittico é uma obra composta em partes que, Supõe-se que haja uma sutil correspondência com a Divina Comédia
juntas, compõem um único argumento. de Dante Alighieri: Il Tabarro, peça opressiva e fúnebre, sugere alguma

34
relação com o Inferno de Dante. Suor Angelica, uma história de pecado No panorama político, a perspectiva era sombria. Em 29 de setembro,
e redenção por meio da graça divina, nos remete ao Purgatório. E a a Câmara dos Deputados aprovava o pedido de Impeachment e Fernando
comédia Gianni Schicchi, mais leve e divertida, seria uma alusão ao Collor de Mello, primeiro presidente eleito por voto direto após o
Paraíso de Dante.
Apesar de apresentada em três atos, talvez a denominação de
Tríttico não tenha sido a mais adequada para esta criação, uma vez
que o conjunto não abriga qualquer sequência narrativa que permita
estabelecer conexão entre as três óperas.
Nesta linha de raciocínio o que se constata é que os três episódios,
apesar de independentes entre si – uma vez que cada ato possui
começo, meio e fim – denotavam uma ascensão gradual das trevas
à luz e talvez seja esta a relação tríplice que se possa estabelecer
entre as partes.
Devido a independência entre cada uma das histórias, raras foram as
Figura 2.2: Jornal Folha de São Paulo. 17.nov.1992. Seção Ilustrada, p.4.
apresentações dos três atos juntos. A encenação de Il Trittico, em 1992,
foi muito comemorada pela crítica, pois este não era encenado desde
1919 (exatamente um ano após a estreia mundial, em Nova Iorque).
O contexto mundial deste ano era muito rico e merecia uma ence-
nação à sua altura.
O ano de 1992 foi um ano importante para a história por estabelecer
uma nova ordem mundial. O mundo passou a ter uma outra compo-
sição geográfica a partir daquele ano. Em 7 de fevereiro, era assinado
o Tratado de Maastricht, que viria a ser ratificado pelo Parlamento
Europeu em 7 de abril, por ampla maioria. No mesmo mês de abril, a
Bósnia e Herzegovina declarava independência da Iugoslávia. A Eu-
ropa passava a ter um novo mapa.
Já no Brasil, em junho de 1992, os olhos do mundo se voltaram para
a Conferência das Nações Unidas para o Meio Ambiente e Desenvolvi-
Figura 2.3: Jornal O Estado de
mento, que ficou conhecida como ECO-92. São Paulo. 17.nov.1992. Caderno 2.

35
reestabelecimento da democracia no país, era afastado do governo. A trilogia de Puccini foi encenada em duas oportunidades de
Assumiu a presidência da república, seu vice, Itamar Franco. Seria este forma completa, com cenários de Paulo Mendes da Rocha: em 1992
o divisor de águas econômico do país em direção aos anos seguintes, que no Teatro Municipal de São Paulo e em 1995 no Teatro Municipal
culminaria com o estabelecimento do Plano Real. do Rio de Janeiro. Nas duas vezes, a única diferença foi a direção de
Em 29 de dezembro, Fernando Collor de Mello renunciava ao cargo Gianni Schicchi, que no Rio de Janeiro ficou a cargo de Hamilton
de presidente da república, na tentativa de manter seus direitos políticos. Vaz Pereira.
Era um ano de incertezas, que assustava um país que, após anos de trevas,
havia se redemocratizado.
Mas também, 1992 era um ano a se comemorar. Era o cinquentenário
da chegada de Cristóvão Colombo ao território americano.
Nos parece, então, muito oportuna a encenação de Il Trittico, que das
trevas à luz, sinalizava alguma esperança em tempos difíceis.
Para esta missão, Emílio Kalil, o então diretor do Teatro Municipal
de São Paulo, chamou Jorge Takla para dirigir Il Tabarro, novamente Bia
Lessa para dirigir Suor Angelica (esta já havia dirigido Suor Angelica em
1990) e Gabriel Villela para Gianni Schicchi.
Paulo Mendes da Rocha já havia criado o cenário para Suor Angelica
de 1990 e foi chamado para projetar os demais cenários numa tentativa
de dar unidade compositiva às montagens.
Sobre os cenários, Paulo Mendes disse:

Para um arquiteto, montar esses três cenários e fazê-los solidários


com os recursos cênicos do palco representa um desafio. Que se su-
cedam de modo articulado e oportuno ao longo do espetáculo é uma
outra regência – a das máquinas, dos planos, dos artefatos, dessas
verdadeiras geringonças que devem simular o solene e o divertido.
Imagens que amparam a música e o discurso.3

Figura 2.4: Capa do Catálogo de


3 Depoimento de Paulo Mendes da Rocha, extraído do catálogo de Il Trittico, di Giacomo Puccini. Il Trittico. Fonte: CEDOC – Teatro
Teatro Municipal do Rio de Janeiro, 1995, p.27 Municipal de São Paulo.

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“Ma chi lascia il sobborgo vuol tornare…”
Partitura original de Il Tabarro4

Primeiro ato – Il Tabarro

O primeiro ato de Il Trittico, foi denominado Il Tabarro e se passava


sobre uma barca no Rio Sena, onde homens eram consumidos pela pai-
xão e pelo ciúme. A peça girava em torno de uma história de adultério,
sexo, desejo, paixão, ciúme e morte. Um estivador que, ao descobrir que Figura 2.5: Capa do
catálogo de Il Trittico e
sua esposa o traía, mata seu amante e revela o crime a ela de maneira folha 28 que apresentava
mórbida e cruel. Puccini, em seu argumento, tenta justificar a violência, Il Tabarro. Fonte: Acervo
Fernanda Ferreira
o adultério e o crime como sendo resultado das condições miseráveis da
classe operária parisiense do início do século XX. Como opção dramática, o diretor reposicionou a época de Il Tabarro,
Pela ambientação original, proposta por Puccini, Il Tabarro se passa- trazendo a encenação para um tempo mais atual, o pós-guerra, ao final
ria em Paris, num cais do Sena, no início do século XX. Às margens do rio, dos anos 40, porém conservando as mesmas características de miséria e
estaria ancorada a barcaça de Michele (o marido traído). O barco, seria contrastes sociais gritantes. Estes contrastes eram reforçados pelos três
uma destas embarcações típicas de transporte que navegam no Sena. Ela planos evidenciados no croqui de Paulo Mendes da Rocha (Figura 2.6):
ocuparia quase todo o primeiro plano da cena e se ligaria ao ancoradouro o plano da miséria – representado pelo cais do porto; o plano da barcaça,
por uma pequena passarela. A perder de vista, estaria o rio, a velha Paris que representaria o operariado e o plano da ponte que representaria os
e o ancoradouro de Notre-Dame. Ainda ao fundo, um céu avermelhado passeios da nobreza parisiense.
reforçava o cenário sombrio.
Infelizmente, não localizamos fotografias ou imagens claras deste O espaço cênico, que foi projetado para reforçar a sensação de con-
traste, mostrava na parte baixa do palco o cais, área dominada pela
cenário que nos ajudasse a reconstituí-lo com riqueza de detalhes. Tudo
prostituição, pela miséria e pela pobreza. A barcaça, por sua vez, era
o que conseguimos foi um croqui do arquiteto, um vídeo da apresentação uma alusão à vida nômade e difícil do operariado. Já a parte alta do
de uma ária da ópera, com baixa resolução, e uma descrição desta espa- palco – representada por uma ponte – era uma clara referência aos
cialidade feita por Jorge Takla, diretor da ópera, para sua apresentação passeios parisienses da burguesia abastada, onde dominava a alegria
no catálogo do espetáculo do Teatro Municipal do Rio de Janeiro. e a prosperidade da camada mais favorecida da sociedade parisiense.5

4 Trecho extraído do catálogo de Il Trittico, di Giacomo Puccini. Teatro Municipal do Rio de Janeiro, 5 Depoimento de Jorge Takla, extraído do catálogo de Il Trittico, di Giacomo Puccini. Teatro
1995, p.28 Municipal do Rio de Janeiro, 1995, p.31

37
Figura 2.6: Croqui de Paulo Mendes da Rocha para o cenário Figura 2.7: Duetto – Il Tabarro – Puccini Teatro Municipal de São
de Il Tabarro, no Teatro Municipal do Rio de Janeiro. Extraído Paulo. Imagem extraída de vídeo. Disponível em: https://www.
do catálogo do espetáculo. Fonte: Acervo Fernanda Ferreira youtube.com/watch?v=xbnnuzsPgbU. Acesso em:12. Out. 2017

38
As informações que levantamos, sugerem que a espacialidade deste
cenário teria a composição conforme croquis abaixo:

Figura 2.8: Croqui da disposição dos elementos do cenário Figura 2.9: Visão geral do palco de
em cena em Il Tabarro. Desenho: Fernanda Ferreira Il Tabarro. Desenho: Fernanda Ferreira

39
Suor Angelica: uma belíssima visão de Bia
Lessa de confinamento rompido pela luz da
paixão. Paulo Mendes da Rocha

Segundo ato – Suor Angelica

Suor Angelica (Irmã Angélica), composta em 1916, é um drama com


forte apelo feminista. A história se passa na Europa, no final de 1600 e
gira em torno de uma mulher reprimida por um sistema social patriarcal.
Internada à força em um convento, após o escândalo de ter tido um
filho, solteira, Angelica vive durante sete anos recolhida neste recinto,
oscilando entre o arrependimento e o desejo de conhecer seu filho, até
receber a visita de sua tia que a induz a renunciar à sua herança em
favor de sua irmã mais nova que iria se casar. Pouco antes de se retirar,
indiferente, a tia conta à sobrinha que seu filho ilegítimo havia mor- Figura 2.10: Cartaz e programa de Suor Angelica –1990 –
Fonte: cedoc – Teatro Municipal de São Paulo.
rido dois anos antes, em função de uma terrível doença. Transtornada,
Angelica se suicida.
Ao morrer, Angelica tem uma visão da Virgem Maria, que lhe apre- A montagem de Bia foi bem recebida pela crítica, mas não pela cen-
senta o filho que fora impedida de criar. sura, que vetou o uso de uma multidão de crianças nuas, que na concep-
A primeira montagem de Bia Lessa para Suor Angelica teve sua es- ção da diretora sugeriam a pureza e a inocência reencontradas.
treia em 1990 no Teatro Municipal de São Paulo, com cenário de Paulo
Mendes da Rocha. Esta seria a estreia do arquiteto como cenógrafo e de Para Bia, Suor Angelica, que está longe de ser a obra mais popular de
Bia Lessa à frente de um espetáculo de ópera. Puccini, oferece possibilidades de trabalho muito interessantes. Pri-
meiro pelo despojamento do cenário, uma verdadeira caixa, criada pelo
“Suor Angelica foi o ponto de partida desta produção. Quando vimos
arquiteto Paulo Mendes da Rocha, que simboliza o claustro onde se
que seria impossível produzir todo Il Trittico em 1990, resolvemos fazer desenrola o drama de Angelica cercada por freiras. “Essa simplicidade
pelo menos uma das óperas. O resultado encorajou a encenação aos levou exatamente ao trabalho de descobrir as muitas possibilidades
demais” (KALIL in Guzik, 1992, C.7), contou Emilio Kalil em entrevista a cênicas num espaço estático” A afinidade de movimentos que Bia des-
Alberto Guzik em 1992, quando o Teatro Municipal conseguiu viabilizar cobriu está, claro, ligada às possiblidades que a caixa-claustro de Rocha
a encenação completa de Il Trittico. oferece. (JOE, 1990, p.C1)

40
terrâneo. Um plano onde esse pequeno mundo interior gira em órbita
muito pessoal e particular, na qual a espera e a memória devem ser
abolidas, voltando as costas e ignorando o exterior que o contém.6

Aproveitando a mão-de-obra da empresa responsável pela restau-


ração do teatro e amparado na infraestrutura dos elevadores de palco,
criou-se um cenário rebaixado, com paredes em madeira que simulavam
as pedras do claustro, que nos impediam de ver, mas não de imaginar o
que se passava ali.

Figura 2.11: Jornal O Estado de São Figura 2.12: Jornal O Estado de São
Paulo, 11.ago.1990, Caderno 2. Paulo, 18.ago.1990. Caderno 2, p.03.

Nas três oportunidades em que Suor Angelica foi encenada, 1990 e


1992, no Teatro Municipal de São Paulo e 1995, no Teatro Municipal do
Rio de Janeiro, o cenário extremamente estruturado de Paulo Mendes
da Rocha foi mantido em sua totalidade.
A montagem de 1992, segundo Bia Lessa, foi mais fiel a seu projeto
original. “É que desta vez pude polir, depurar passagens, trabalhar efei-
tos que só me ocorreram quando o espetáculo já estava pronto” (LESSA
in Guzik, 1992, p.C7)
Conceitualmente, a montagem deveria retratar um ambiente opres-
sor, portanto a solução adotada foi a construção de uma enorme estru-
tura metálica, um calabouço reforçado pela verticalidade do cenário. Figura 2.13: Croqui do cenário de Suor Angelica. Fonte: Acervo de Paulo Mendes da Rocha

Em Suor Angelica, o que interessa é o conceito de clausura, de prisão


por opção, caracterizado pela ausência do mundo exterior. Para evocar 6 Bia Lessa, em trecho extraído do catálogo de Il Trittico, di Giacomo Puccini. Teatro Municipal do
cenicamente essa ausência, situei a ação em um plano inferior, sub- Rio de Janeiro, 1995, p.35.

41
Figura 2.14: Capa do catálogo de Il Trittico Figura 2.15: Croqui de Paulo Mendes da Rocha para o cenário de Suor Angelica no Teatro Municipal
e folha 32 que apresentava Suor Angelica. do Rio de Janeiro. Extraído do catálogo do espetáculo. Fonte: Acervo Fernanda Ferreira
Fonte: Acervo Fernanda Ferreira

42
As freirinhas brincavam no recreio jogando a bolinha. Nós rebaixamos Fixados à estrutura principal, uma série de perfis metálicos com se-
o palco, portanto a plateia ficava mais alta. ção circular, se projetavam além dos paineis possibilitando que as freiras
Então não se via as meninas, apenas se via a bolinha passando de um surgissem por portinholas e outras aberturas e escalassem o cenário.
lado para o outro e se escutava as risadas. O coro ficava escondido. Parte
do vedo das paredes que eram em madeira, eram falsos, feito com tela E aí, ópera é aquilo, tem as árias, os cantores têm que cantar em um
pintada na cor da parede, não se percebia a diferença. determinado lugar por causa da projeção da voz e o Paulo logo pensou
Elas cantavam atrás deles e isso dava uma sensação como se o convento a coisa das mulheres subindo pelas paredes e ele logo pensou em criar…
fosse enorme. Parte do coro estava no alto. Reservou-se umas cadeiras lá imagina, aqui é o fundo do palco e aqui é a plateia. Já que as cantoras
trás. Então havia uma sensação espacial de amplitude, parecia que você têm que ficar na frente para cantar ária, elas têm que estar aí, então
estava num convento. São coisas assim que se inventa para se seduzir. vamos acabar como fundo do palco todo. Aí ele pegou os próprios ele-
Há uma cena absolutamente encantadora. Quando a Suor Angelica está vadores do palco que já existiam no teatro, e eu acho que isso é uma
sozinha, no final, cantando o amor, ela vai ao jardim e tira a sandália e coisa importantíssima, trabalhar com o que se tem. E isso é uma das
lava os pés. É muito erótico. Fizemos uma mangueira que vinha por trás, coisas que eu aprendi com o Paulo. Quer dizer, não adianta projetar.
furava a parede e nela colocamos uma torneira. Então você vê a água no É preciso olhar o que se tem e trabalhar com aquela realidade. Aí o que
proscênio. Coisas muito bonitas. Água brilhando em pleno teatro. Uma ele fez: abaixou os elevadores, criou uma escada que vinha do infinito,
fonte. É incrível esta capacidade de transformar coisas em emoção.7 aquelas freiras surgiam do nada, subiam e a gente tinha na frente um
trecho de palco onde tudo acontecia. No final desta escadaria tinha
O cenário tinha uma característica vertical muito marcante. Com essa parede gigantesca, onde estas freiras subiam, pois elas estavam
exceção da boca de cena, as três outras faces do palco foram cobertas por enclausuradas, que eram as três faces do palco e lá em cima tinha uma
uma estrutura metálica, uma espécie de andaime revestido com placas janelinha, onde aconteciam coisas…Passava bicicleta, o mendigo dor-
de madeira, em uma proporção 2:1 que simulavam as pedras do claustro mia, que era como quem dizia, a cidade está lá passando. Então, o que
de um convento. Estas chapas eram intercaladas com um tecido, uma eu acho rico na questão do Paulo é a questão de trabalhar, concretizar
o discurso através de uma espacialidade.8
espécie de veu, pintado na mesma tonalidade das placas de fechamento.
Por trás destas se posicionavam os cantores, que distribuídos em vários
pontos do cenário, reproduziam a reverberação sonora semelhante às O palco, rebaixado 2,50 m na parte do fundo, ascendendo até o nível
grandes catedrais. da boca de cena, formava uma escadaria onde se realizaram parte das
encenações, mas de forma que se mantivessem ocultas para a plateia.

8 Bia Lessa. Em worksop ambientado dentro do cenário de Grande Sertão: Veredas, São Paulo, 18 de
7 Paulo Mendes da Rocha. Entrevista concedida a Fernanda Ferreira, São Paulo, 06 de jun. de 2017, na out. de 2017, na unidade do SESC Consolação. [entrevista não publicada]. Encontra-se transcrita
sede de seu escritório. [entrevista não publicada] Encontra-se transcrita no anexo I desta dissertação no anexo II desta dissertação

43
Figura 2.16: Croqui do cenário de Suor Angelica. Figura 2.17: Croqui do cenário de Suor Angelica.
Fonte: Acervo de Paulo Mendes da Rocha Fonte: Acervo de Paulo Mendes da Rocha

44
Com o uso deste artifício, Paulo Mendes da Rocha reforçava a sensação
de clausura e confinamento, eliminando a referência visual de horizonte
e transmitindo a sensação de que as freiras surgiam dos porões.
Na visão de Bia Lessa, “existem várias leituras para essa ópera. O claus-
tro pode ser a prisão, mas também pode ser o isolamento do mundo exte-
rior para um crescimento espiritual.”. (Lessa In JOE, 1990, p.C1)
O espaço cênico é também definido por sua dinâmica e por sua at-
mosfera. Compreendê-las significa identificar, por meio da vivência e
observação, a sua força dramática. O cenário de Suor Angelica possui um
arranjo rítmico em sua composição ambiental que reforça o discurso de
ser “um lugar onde todos os sentimentos pessoais são negados, onde o
cancelamento da personalidade e a destruição do ego são a meta final.
[…] São essas peculiaridades que distinguem e diferenciam a clausura
da prisão.”9.

O teatro, veja você, é uma coisa extraordinária. Você, diante de um texto


diz ao outro: Veja você e faz você ver aquilo que está escrito para um
outro ver. E o que é interessante, nesta mágica de trabalho que move
as emoções dos outros, que procura convocar e trabalhar a emoção das
pessoas, é não representar de modo visível o óbvio10.
Fazer deste “veja você” uma coisa extraordinária. É daí que vem a
ideia de “Vamos fazer as freirinhas desesperadas”, que é essa ima-
gem que existe, delas subindo pelas paredes. Mas vocês vão dizer:
Como? Ao fazer uma ópera os cantores sobem pelas paredes? Imagi-
nem vocês, uma estrutura como esta, escondida com madeira e uns
pregos do mesmo material que saiam fora e aí foi contratada uma
trupe de circo com as mesmas roupinhas das noviças, que de fato

9 Bia Lessa em depoimento extraído do catálogo de Il Trittico, di Giacomo Puccini. Teatro Municipal Figura 2.18: Planta de palco de Suor
Angelica. Desenho: Fernanda Ferreira
do Rio de Janeiro, 1995, p.35
10 Grifo nosso

45
subiam pelas paredes. Uma coisa maravilhosa. De um realismo
brutal, brutalista no sentido da palavra, transformou a imagem
em coisa.11 O que é muito interessante para um arquiteto é a ideia
de imagem e coisa. Você diz assim: Vamos fazer uma casa. É uma
imagem e de repente a coisa está lá. Não é preciso dizer que tudo
isso é uma mágica maravilhosa.12

A potência que há na criação espacial e sensorial de uma cenografia,


de maneira geral, não está apenas ligada ao espaço em si, mas principal-
mente, na participação deste espaço na ação narrativa. A cenografia é,
afinal, uma escrita não verbal em cena.
Em Suor Angelica a angústia do argumento se transporta para a cena
e as freirinhas escalam as paredes do cenário/convento na esperança de
espiar o mundo exterior.

Bom, acho que ficou claro que é uma exuberância extraordinária a


presença da Bia Lessa. Ela sabe tudo muito bem o que quer, por isso
é muito fácil pensar num cenário. Suor Angelica foi assim. Ela tinha
uma visão claríssima daquilo. E eu entro como? Ela não saberia cons-
truir. Aí eu junto um pedacinho de pau aqui, um prego ali e faço. Mas
já está feito.13

A espacialidade desta montagem pode ser conferida nas imagens das


páginas seguir:

11 Grifo nosso.
12 Paulo Mendes da Rocha. Worksop ambientado dentro do cenário de Grande Sertão: Veredas, São
Paulo, 18 de out. de 2017, na unidade do SESC Consolação. [entrevista não publicada]. Encontra-se
transcrita no anexo II desta dissertação
Figura 2.19: Corte do cenário de Suor
Angelica. Desenho: Fernanda Ferreira. 13 Ibid

46
Figura 2.20: Cenário de Suor Angelica.
Desenho: Fernanda Ferreira

47
Figura 2.21: Escadaria do palco de Suor Angelica. Foto: Gal Oppido

48
Figura 2.22: Ensaio do espetáculo Suor Angelica. Foto: Gal Oppido Figura 2.23: Outro ângulo da escadaria do palco de Suor Angelica. Foto: Gal Oppido

49
Figura 2.24: Escadaria que subia do fundo do palco à boca de cena. Foto: Gal Oppido

50
Figura 2.25: Encenação de Suor Angelica. Fonte: Acervo pessoal de Bia Lessa Figura 2.26: Encenação de Suor Angelica. Fonte: Acervo pessoal de Bia Lessa

51
Figura 2.27: Freirinhas escalando o cenário de Suor Angelica. Fonte: Acervo pessoal de Bia Lessa

52
ceito deste corte na fachada da casa da minha mãe. Eu expliquei para
Terceiro ato – Gianni Schicchi
ele que eu não tinha muito conhecimento de ópera e que eu queria
um cenário inspirado nesta coisa de herdeiros que vão depenando e
O Terceiro ato de Il Trittico, Gianni Schicchi, teve diferentes direções rapando a casa até deixá-la como Gianni Schicchi, sem nada. […] E foi
nas duas oportunidades em que foi encenado: Gabriel Villela, em 1992, muito gratificante este processo, porque, este senhor15, é um dos mais
na montagem do Teatro Municipal de São Paulo e Hamilton Vaz Pereira, nobres intelectuais brasileiros do campo artístico, da arquitetura.
em 1995, na montagem do Teatro Municipal do Rio de Janeiro.
Gianni Schicchi é uma ópera-bufa, uma comédia, que conta a história Ao descrever o processo de criação do cenário, Gabriel Villela nos
de um homem abastado que acaba de morrer e sua família finge chorar, contou que, além da influência plástica na fachada da casa de sua família,
mas na verdade está preocupada com a herança do morto. Corre um o conceito estético foi inspirado nos quadros populares com desenhos
boato de que o homem teria deixado todos seus bens para um convento, de perspectivas falsas.
o que de fato é confirmado na abertura do testamento.
A família, desesperada, procura Gianni Schicchi, famoso por sua cul- […]eu não acompanhei muito bem a construção de fato, a maneira
tura jurídica e por sua astúcia. como foi construído. Eu não interferi muito porque eu fazia a concep-
ção de iluminação e tudo estava filiado também ao figurino criado por
Ele resolve, então, tomar o lugar do morto, enganando o médico e o
Domingos Fuschinni, que era uma obra de arte a parte. E que casava
tabelião para fazer um novo testamento, indicando como beneficiário com esta arquitetura de um solarzinho mineiro. O Paulo acompanhava
a si próprio, enganando toda a família. Ao final do ato, Gianni pede ao tudo, ele tinha um olhar onipresente. E eu sugeri a ele esses quadri-
público que o absolva, aplaudindo, para que se livre da condenação ao nhos que têm muito no interior, que tem aquelas perspectivas falsas,
inferno. pintadas na janelinha. Aqueles com um fundo falso e que o fogão está
“Sugeri a Paulo Mendes da Rocha um cenário que ficou muito pare- numa perspectiva e a mesa em outro ponto de fuga. E esses quadri-
cido com a casa onde nasci, em Carmo do Rio Claro”. (VILLELA in Guzik, nhos naifes eram a grande ideia do espetáculo16. E quando o cenário
ficou pronto, em escala maior, foi talvez um dos cenários mais lindos
1992, p.C7). Já Paulo Mendes da Rocha, ao falar da criação do cenário
que já recebi de presente na minha carreira.
de Gianni Schicchi comentou que ele foi “o desdobramento de lindos e
divertidos desenhos de Gabriel Villela”.14
Na comparação entre as imagens 2.28 à 2.31 e a imagem 2.33, é pos-
Paulo Mendes é um gênio e como todo gênio ele tem o dom da humil- sível reconhecer vários elementos contidos na casa que serviram de
dade, da escuta. Ele respeitosamente tentou entender qual era o con- inspiração e que foram interpretados para o cenário.

14 Paulo Mendes da Rocha em techo extraído do catálogo de Il Trittico, di Giacomo Puccini. Teatro 15 Referindo-se ao arquiteto Paulo Mendes da Rocha
Municipal de São Paulo, São Paulo, 1992, s/p. 16 Grifo nosso

53
Figura 2.28 a Figura 2.31 – Fotografias
da fachada, forros e portas da casa
da família de Gabriel Villela em Carmo
do Rio Claro, MG, que serviu de
inspiração para o cenário de Gianni
Schicchi. Fotos: Gabriel Villela.

54
No quadro central, no plano acima, nota-se a forte referência do per-
fil da fachada da casa. Nota-se ainda a correspondência nos desenhos da
porta de acesso e portas internas, nos desenhos de forros e na coloração
preponderante utilizada nas paredes do cenário.
Ainda em relação à composição do cenário, o corte perspectivado pro-
posto pelo arquiteto nos fez lembrar os “Building Cuts” de Gordon Matta
Clark, artista e arquiteto americano. (ver figura 2.32) Em sua arte, Matta
Clark desmaterializava espaços arquitetônicos, encenando intervenções
em edifícios abandonados ou condenados. Tais intervenções consistiam
em executar cortes estruturais e demolições parciais. O intuito era criticar
a autonomia e lógica econômica do mercado imobiliário no pós guerra. Figura 2.32: Splitting, 1974. Colagem
Em relação à primeira montagem, esta foi a ópera que recebeu o em fotografia branco e preto, 101.5 x
76.2 cm. Fonte: ttps://www.archdaily.
maior número de mudanças na cenografia em 1995. com.br/br/01-27310/arte-e-arquitetura-
building-cuts-gordon-matta-clark.
A encenação passava principalmente na boca de cena e o cenário recebeu Visitado em 25. mai. 2018
o incremento de telões e imagens. Hamilton Vaz Pereira explica: “Schicchi
é fácil de ser entendido, mas os telões vão criar um efeito de multivisão para
mostrar o lado exterior à casa do personagem”. (VELOSO, 1995, D14)

Gianni Schicchi – notório advogado do diabo, condenado por Dante ao


inferno – vai à casa de Buoso Donati, poderoso e respeitado figurão da
Florença do século XVIII. Os parentes distantes estão em posse do testa-
mento do recém falecido, que os deserdara em favor da igreja de Cristo.
Schicchi, conhecedor das leis, resolve ajuda-los: Manda chamar o tabelião
para que escreva o novo testamento do morto. […] No começo deste século,
Puccini apresenta essa personagem da vida real de Florença como pai
zeloso que volta do inferno, um comediante que blefa em nome do amor,
um criminoso que delicia a plateia com um jogo de cena admirável.”17

17 Depoimento de Hamilton Vaz Pereira, extraído do catálogo de Il Trittico, di Giacomo Puccini.


Teatro Municipal do Rio de Janeiro, 1995, p.39. Figura 2.33: Cenário de Gianni Schicchi – 1992 – de G. Vilella. Fonte: Gal Oppido

55
Figura 2.34: Capa do catálogo de Il Trittico e folha 36 que Figura 2.35: Croqui de Paulo Mendes da Rocha para o Cenário de Gianni Schicchi, no Teatro Municipal
apresentava Gianni Schicchi. Acervo: Fernanda Ferreira do Rio de Janeiro. Extraído do catálogo do espetáculo. Fonte: Acervo Fernanda Ferreira

56
Figura 2.36 e 2.37: Cenário de Gianni Schicchi – 1992 – de G. Vilella. Fonte: Gal Oppido

57
Figura 2.38: Cenário de Gianni Schicchi – 1992 – de G. Vilella. Fonte: Gal Oppido

58
“Mesmo com toda a fama, com toda a brahma
Com toda a cama, com toda a lama
A gente vai levando”
Chico Buarque de Holanda

Quarto ato – Ópera dos 500 anos – Popular e Brasileira

A Ópera dos 500 anos – Popular e Brasileira teve sua estreia em 12


de outubro de 1992, ficando em cartaz até 18 de outubro do mesmo ano.
O argumento foi criado em 1990, quando a então Secretária de Cultura
do município de São Paulo, Prof. Marilena Chauí, sugeriu a realização de Figura 2.39: Cartaz da
um espetáculo que abordasse passado em presente, entrelaçando im- Ópera dos 500 anos.
Fonte: CEDOC – Teatro
portantes fatos históricos de nosso país e elegeu 1492 (a chegada de Co- Municipal de São Paulo.
lombo à América), 1792 (Inconfidência Mineira), 1922 (Semana de Arte
Moderna) e 1992 (Quinto centenário da América). O diretor, então, idealizou a montagem como uma grande “comemo-
Para esta montagem Emílio Kalil, então diretor do Teatro Municipal ração crítica” à chegada de Colombo à América, discutindo, de maneira
de São Paulo, convidou Naum Alves de Souza (1942-2016), um dos mais despojada, a descoberta do Novo Mundo através da dicotomia paraíso
respeitados diretores de teatro contemporâneo. versus inferno, a partir da realidade do Brasil contemporâneo.
Em sua montagem, Naum descartou a semana de 22, por entender
que ela nada tinha de relação com as demais. “Dentre as datas citadas, Procurei também revisar o conceito de descoberta, colocando-o como
optei por excluir a semana de 22 pois acredito que ela nada tem a ver choque, catástrofe cultural, e questionar a imagem do Colombo pro-
fético, messiânico, levantando as questões políticas que o impulsiona-
com brasilidade. Foi um movimento isolado, promovido por um grupo
ram. Para mim, Colombo queria se dar bem. Era um megalomaníaco.
pequeno e que não faz parte do processo evolutivo histórico do Brasil.”18 […] Formalmente, optei por um espaço não figurativo19, que funciona
Na época, chegou a ser cogitada e noticiada, a participação de Chico para sugerir o clima da cena. Este, como todos os trabalhos anteriores,
Buarque e Milton Nascimento na criação das músicas, mas estes desis- fala de um período muito grande, o que inviabiliza a existência de um
tiram e a composição musical ficou a cargo do grupo Pau Brasil. cenário narrativo.20.

19 Gifo nosso
18 Naum Alves de Souza em depoimento extraído do catálogo Ópera dos 500 anos. Popular e Brasi- 20 Naum Alves de Souza em depoimento extraído do catálogo Ópera dos 500 anos. Popular e Brasi-
leira. Teatro Municipal de São Paulo, 1992, s/ p. leira. Teatro Municipal de São Paulo, 1992, s/p.

59
Figura 2.40: Jornal
O Estado de São Paulo.
12.out.1992. Caderno 2. p.1.

Figura 2.42: Croqui da estrutura que compunha o cenário da Ópera dos 500 anos – Popular
Figura 2.41: Jornal Folha de São Paulo. 12.out.2017. Ilustrada. e Brasileira em uma de suas configurações em cena. Acervo: Paulo Mendes da Rocha

60
A crítica especializada, na época, fez boas considerações à montagem para redescobrir dialogicamente a América Latina. Nota-se em sua lingua-
do diretor, elogiando principalmente os figurinos, a coordenação das cenas gem, o tom de denúncia social alinhada ao dualismo cultural e afinidade
e a interação com o cenário de Paulo Mendes da Rocha. com a história do lugar.
A história é atemporal. O enredo fala de um arrastão na Praça Ramos de
Teatralmente é de uma boa eficácia. Os figurinos e a direção de Naum Alves Azevedo, misturando índios, trombadinhas, navegadores e reis com a dura
de Souza são notáveis pela capacidade de arrancar efeitos com simplicidade. realidade da praça no contexto atual.
A coordenação que Naum imprime às constantes cenas de “massas” revela
Com um roteiro sem linearidade temporal o cenário, que necessitava de
o talento de encenador que faria delícias em óperas e musicais. E que soube
aproveitar, com sabedoria, o espaço ora urbano, ora náutico, ora religioso, ora
uma composição com o mínimo de elementos, foi composto por um engenhoso
intemporal de Paulo Mendes da Rocha. (HAAG, 1992, p. 3) sistema de barras metálicas amarradas entre si (em um primeiro plano) e uma
grande tela ao fundo (ciclorama). Essa figura ia se alterando com o içamento
Ana Maria Ciccacio também escreveu sobre o cenário para o jornal das 2 peças principais e com a mudança das luzes, que projetavam imagens
O Estado de São Paulo: “Sobre o cenário, Paulo Mendes da Rocha foi enig- que sugeriam “a aparição de florestas, esquadras de navegação, andaimes de
mático. “Uso estruturas especiais, mudas e ao mesmo tempo sonoras.” (RO- cidades em construção. É algo aparentemente estável e que a luz revela mo-
CHA in Ciccacio, 1992, p.3) vente.” (ARTIGAS, 2002, p.98). Um emaranhado de barras de aço sobrepostas
América é um espaço aberto à realização plena. Assim como em um poema às suas próprias sombras, projetadas em um tecido no fundo do palco onde, no
modernista o poeta dá espaço para o leitor construir os sentidos possíveis. decorrer do enredo da peça, se formavam imagens sombrias que remetiam a
mastros de navios, florestas ou construções das cidades.
A América Latina é uma cultura. Não é fácil defini-la e nem sequer des-
crevê-la. Os que melhor têm expressado essa realidade esquiva são os
escritores. Mas nenhum desses poemas e romances é ou pode ser um
retrato realista; todas essas obras são imagens ou, mais exatamente, ima-
ginações do que somos.
Enfim, posso dizer algo, ao menos: A América Latina é uma realidade verbal.
Ou seja: uma língua. E aquele que diz língua, diz: visão de mundo. Que é uma
visão de mundo? Não é unicamente uma concepção de ideia: é uma ação e uma
criação. Um ethos e um conjunto de obras. É o mundo feito de muitos mundos.
Nossa realidade é plural e diversa, é um diálogo de povos que falam, na mesma
língua, coisas que são distintas e comuns, a um só tempo. (PAZ, 2010, p. 276)
Figura 2.43: Memorial
do projeto do cenário.
Há, em Mendes da Rocha, a clareza de produzir espaços que servem Datilografado. 1992.
Fonte: Acervo de Paulo
de lição política para organizar as independências do homem e do mundo, Mendes da Rocha

61
Figura 2.44: Estudo para composição das peças que compunham o cenário de Ópera
dos 500 anos – Popular e Brasileira. Estas tinham seções diversas para dar profundidade
às imagens projetadas na tela de fundo. Fonte: Acervo de Paulo Mendes da Rocha

62
A estrutura metálica era composta por perfis de chapa dobrada,
de seção quadrada, que tinham entre 8 e 25cm, totalmente articula-
das e apoiadas em apenas 2 pontos: dois pendurais a 30m de altura
no vigamento do urdimento do teatro e 2 pontos fixados ao piso do
palco. O peso da estrutura era de uma tonelada e duzentos quilos.
O cálculo estrutural ficou a cargo do Eng. Zavem Kukdgian.
Apesar de seu peso, a obra surpreendia pela leveza estética e pelos
efeitos visuais que criava.
Pelas características da estrutura, de sua montagem e ligações en-
tre perfis, acreditamos que o movimento gerado pelo equilíbrio entre
o peso próprio das peças, sua articulação e apoios era um movimento
de translação. Movimento este que nos faz lembrar um Calder.21
Assim como os móbiles de Calder, o cenário de a Ópera dos 500
anos denota uma incrível síntese artística, onde a forma plástica em
movimento mistura o tempo estético e o tempo real em uma mesma
experiência espacial.
“Partindo da abstração e suas especulações, ele (Calder) procura
chegar a uma modalidade de expressão artística, emancipada do
plano liso da pintura e do jogo de volumes da escultura, embora ti-
rando a cada uma dessas artes elementos que lhes são substanciais”.
(ANDRADE, 1948, apud MUNERATTO, 2011, p.141)
Para Mendes da Rocha a convicção no saber e no domínio da téc-
nica, questões recorrentes em seu discurso, são os elementos que
libertam o imaginário para propor espacialidades únicas.

21 Alexander Calder (1998-1976), artista plástico americano conhecido por suas esculturas – Figura 2.45: Projeto do cenário de Ópera
móbiles formados por elementos, simples e com cores fortes, suspensos por fios que se equili- dos 500 anos – Popular e Brasileira.
Desenho: Fernanda Ferreira
bravam mutuamente.

63
Figura 2.46: Corte esquemático
do cenário da Ópera dos 500
anos – Popular e Brasileira. Figura 2.47: Blue Feather, 1948. Autor: Calder.
Desenho: Fernanda Ferreira Disponível em www.calder.org.

64
Figura 2.48: Encenação de Ópera dos 500 anos – Figura 2.49: Encenação de Ópera dos 500 anos –
Popular e Brasileira. Fonte: Gal Oppido Popular e Brasileira. Fonte: Gal Oppido

65
Figura 2.50: Encenação de Ópera dos 500 anos – Figura 2.51: Encenação de Ópera dos 500 anos –
Popular e Brasileira. Fonte: Gal Oppido Popular e Brasileira. Fonte: Gal Oppido

66
Figura 2.52: Cenário Ópera dos 500 anos – Popular Figura 2.53: Ensaio de Ópera dos 500 anos –
e Brasileira. Fonte: Gal Oppido Popular e Brasileira. Fonte: Gal Oppido

67
E como a posse de qualidades pressupõe uma certa autotransformações. Em outras palavras: o homem moderno tende
alegria pela sua realidade, é legitimo prever que alguém para a “alternação” entre mundos discrepantes da realidade (Berger,
a quem falte o sentido de realidade até em relação a si 1970, p. 231)
próprio possa um belo dia, sem saber como, encarar-se
como um homem sem qualidades. (MUSIL, 2008, p. 43) Sob a tensão da dicotomia entre razão e emoção, ele encara todas as
possibilidades como viáveis e apesar de o tema central ser a moral, este
Quinto ato – O Homem sem Qualidades homem, que não se liga à nenhuma realidade concreta, tem na passivi-
dade analítica sua atitude natural.
A peça O Homem sem Qualidades teve sua estreia, para convidados,
em 01 de junho de 1994, no Teatro do Centro Cultural Banco do Brasil O Homem sem Qualidades é a bíblia do homem moderno […] Vivemos
do Rio de Janeiro, abrindo ao público e ficando em cartaz de 02 de junho num mundo sem lógica. A quebra da ética, da estética, dos parâmetros
de sentimentos, da família…a queda do socialismo, também do capita-
a 31 de julho de 1994.
lismo, enfim, hoje temos absoluta liberdade para sermos indivíduos no
O espetáculo foi bastante noticiado, principalmente pela partici- sentido da raça. (Lessa in MOCARZEL, 2014, p. D2)
pação da atriz Hanna Schygulla que teve sua performance gravada e
editada por Bia para ser projetada sobre a cena.
Adaptado para o teatro por Alberto Renault, parte do romance ho- A época em que o livro foi escrito – logo nas primeiras décadas do
mônimo e inacabado do escritor austríaco Robert Musil, O Homem sem século XX – era marcada por grandes relativizações. Outros romances
Qualidades teve um pequeno período de ensaios antes de sua estreia – contemporâneos a ele, Ulysses de James Joyce e Em busca do tempo
apenas três meses. perdido, de Marcel Proust, também esgotavam as palavras como meio
O romance de Musil percorre diversas tramas que se concentram no de se alcançar as grandes verdades e, assim, atingir um outro campo,
fato de Ulrich, o protagonista, um homem com cerca de 30 anos que, após mais abstrato, o dos sentidos.
tentativas de se tornar militar, engenheiro e matemático, resolve tirar
um ano sabático dedicando-se a compreender o real sentido da vida. Este O sujeito da experiência torna-se ratio enquanto lugar de produção
homem é uma alusão ao homem moderno marcado, principalmente, pela de abstração e artefatos. A redução do homem a subjectum, a ponto
arquimediano abstrato, transfere definitivamente a experiência para
perda da individualidade e por um pensar sobre infinitas possibilidades.
fora do indivíduo encarnado: “Surgiu um mundo de qualidades sem
Em constante mutação ele não se prende a ética ou verdades absolutas. homens, de vivências sem quem as vive […] o ser humano já não vive
O conhecimento é dinâmico e pode mudar a qualquer instante. mais nada pessoalmente […] e se dilui num sistema de formulas e
significados possíveis”. Escreve Musil, em O homem sem Qualidades.
O homem moderno, enquanto “homem sem qualidades”, está aberto (MATTOS, 1996, p. 209)
para um número indeterminado de transformações da realidade e de

68
Figura 2.56: Jornal O Dia – Figura 2.57: Jornal O Globo. 03.jun.1994.
01.jun.1994 Pg.03. Seção O dia D Pg.18 – Seção Rio Show

Figura 2.54: Jor Jornal O Estado de Figura 2.55: Jornal Tribuna da Imprensa – RJ. Figura 2.58: Catálogo do espetáculo O Homem Figura 2.59: Cartaz do
São Paulo de 01.jun.1994. Caderno 2 08.jun.1994 p.2 Seção Tribuna. sem Qualidades. Fonte: Acervo Fernanda Ferreira espetáculo O Homem sem
Qualidades. Fonte: CCBB Rio.

69
A parábola do homem despersonificado, onde o individualismo re-
jeita toda e qualquer ordem, assume a liberdade de se afastar de seu
repertório de vivências pessoais, livrando-se assim de toda fonte de
erros. Esta nova persona traz consigo tanto o arbítrio de produzir co-
nhecimento, quanto a liberdade de tomar suas próprias ações gerando
uma fonte infinita de possibilidades.
Olgária Mattos, em “Descartes: o eu e o outro em si” comenta que
“corpo e alma deverão ser compreendidos sem qualidades, a partir das
naturezas simples, aquelas que não requerem explicações e não serão,
assim, ilusões”. (MATTOS, 1996, p 204) É desta forma este homem que
se sabe sem qualidades – e a palavra qualidade aqui é tomada no sen-
tido da complexa natureza humana – acaba por parecer o mais lúcido Figura 2.60: Croquis de conceituação espacial e estudo
cromático para o cenário de O Homem sem Qualidades.
de todos. Autor: Paulo Mendes da Rocha. Fonte: Acervo Jean-L. Leblanc
No processo de transposição do texto para o palco, a ideia central de
Bia Lessa e Paulo Mendes da Rocha foi sugerir, por meio de artifícios es-
téticos e espaciais, a sensação de controle sob a qual o homem moderno
é constantemente submetido.
O recurso espacial para o cenário dispôs duas plateias frente a frente –
uma delas no palco – reiterando o discurso de constante vigilância que a
sociedade impõe. A cena, no caso de Musil, só existe através da observa-
ção, do ato de dar ou tirar “qualidades” de cada ação ou reflexão. Portanto,
a história só existe do ponto de vista de quem observa, de quem vê.
Ao mesmo tempo, foram distribuídas máquinas fotográficas e binó-
culos, fazendo com que os espectadores, não mais passivos, interagissem
com a cena.
Com o intuito de suprimir as referências espaciais, as laterais do palco
foram cobertas por cortinas verdes separando as coxias da área da cena.
O fundo do palco foi coberto por uma cortina preta, eliminando a refe- Figura 2.61: Croquis de conceituação espacial e estudo
cromático para o cenário de O Homem sem Qualidades.
rência de horizonte. Esta ambientação neutra seria o pano de fundo para Autor: Paulo Mendes da Rocha. Fonte: Acervo Jean-L. Leblanc

70
a dinâmica de palco estabelecida por Mendes da Rocha e Bia Lessa, que
era o grande desfile de objetos e adereços, que abordaremos mais adiante.
Ao discorrer sobre a decisão de ter duas plateias, Bia Lessa, em en-
trevista ao jornal Folha de São Paulo disse: O cenário “…é uma geografia,
não um cenário. Tenho a plateia clássica e coloquei uma arquibancada
dentro do próprio palco” (Lessa in CHIARETTI, 1994, p.5)

O que me interessava é o movimento. O que eu peguei, acho, foi esta a


ideia de ele, Ulrich, ser um homem genial e comum ao mesmo tempo.
De alguém que é ao mesmo tempo protagonista e não é protagonista de
nada. É um homem comum com genialidade, como todos nós. (Lessa
in CHIARETTI, 1994, p.5)
Figura 2.62: Disposição das plateias – T1 Arquibancada a cerca de 2m da
boca de cena. T2, arquibancada na posição final, abrindo espaço para
A plateia-cenário foi disposta no palco em dois tempos. No início do o desfile dos demais objetos de cena. Desenhos: Fernanda Ferreira

espetáculo a arquibancada móvel estava a apenas 2m da boca de cena


(T1). Após alguns minutos, quatro pessoas entravam debaixo da estru- O movimento que altera os tempos da encenação foi possibilitado
tura e a arquibancada era empurrada para trás fazendo com que o palco pela arquibancada, um elemento construído com simples e poucos re-
tomasse a configuração final (T2), onde permaneceria até a conclusão cursos: uma estrutura metálica composta por treliças feitas com barras
do espetáculo. (ver figura 2.62) do tipo metalon, com dimensões de 70×30×2mm. (Ver imagem 2.64)
Na parte inferior da estrutura foram instaladas rodas pneumáticas, de
O primeiro elemento cenográfico é a arquibancada. O segundo é a ideia forma a diminuir o atrito da estrutura com o piso do palco, fazendo com
do Paulo de utilizarmos carrinhos industriais para fazermos desfilar os que ela pudesse deslizar facilmente ao ser empurrada.
cenários. Fizemos a arquibancada com o último lance em balanço. Os ato-
A estética formal deste cenário faz dele um “cenário-processo”, que
res davam a volta em torno dela e trocavam de roupa debaixo do último
degrau. Os carrinhos resultaram em uma série de “adereços cenários”.22
se altera no decorrer da peça e que, ao ser composto por vários elemen-
tos, sugere sensações e espaços a partir do conteúdo do texto, sem a
possibilidade de que quaisquer deles sejam suprimidos sem prejuízo
de seu contexto.
22 LEBLANC, Jean L. O Homem sem Qualidade [mensagem pessoal]. Em mensagem eletrônica rece- Isso nos faz crer que este “processo” reitera, neste tipo de materia-
bida por fernanda@operaquatro.com.br em 28 de nov. 2017. lidade, o discurso arquitetônico de Paulo Mendes da Rocha: o fazer ver!

71
Figura 2.63 – Estudo para
dimensionamento da
arquibancada de O Homem sem
Qualidades. Desenho: PMR.
Acervo: Jean Luis Leblanc

72
Figura 2.64: Croqui construtivo da Figura 2.65: Croqui da arquibancada
arquibancada. De O Homem sem no espaço cênico de O Homem sem
Qualidades. Desenhos: Fernanda Ferreira Qualidades. Desenhos: Fernanda Ferreira

73
Além da estética espacial, há também que se direcionar o olhar poético para que o público veja, ou perceba, o cavalo trotando no palco.
para a dinâmica do palco e buscar a compreensão do sistema sen- O cavalo é um cavalo para aquele espectador que vive a experiência
sorial de organização do espaço que privilegia a construção de um no espaço.
sentido muito particular na transposição do texto para a cena: um
espectador que não pode revelar suas observações (representado Em O Homem sem Qualidades tinha uma coisa, que vinha da obra do
pela plateia clássica); e outro que externaria permanentemente Musil, que era a observação, a ideia de observação. Alguém que observa a
contemporaneidade! Aí o que se criou foi uma arquibancada móvel, lem-
suas impressões (a plateia inserida na cena). Na transposição do
bra Paulo? Essa história é incrível, quero falar do cavalo…É que quando
texto, o arquiteto projetou um enorme número de adereços, cerca abria a cortina, tinha uma plateia que ficava dentro do próprio palco e
de dezoito, que durante a encenação atravessava o palco em um a gente dava para essa plateia um kit fotografia – que eram aquelas
único sentido, marcado, da esquerda para a direita. Esta opção cê- câmeras descartáveis de papelão e binóculos – para que ficasse muito
nica revelava o espaço em que os personagens desfilavam suas ri- explícito que o que a gente estava falando era sobre observação.
quezas e mediocridades. E começava o espetáculo, abria aquela cortina e você não tinha espaço
Reforçando o conteúdo do livro, nada era disfarçado ou amenizado cênico. Depois aquilo ia se afastando e nessa, teve uma coisa muito ba-
cana, que até eu morro de dor porque o Paulo pintou o escritório dele.
por luzes, músicas ou figurinos. As revelações eram feitas de maneira
É que nas paredes tinham os desenhos do Paulo e tinha lá o desenho
crua às duas plateias. O tom da interpretação deveria transitar entre o do cavalo.
rigor e a espontaneidade, entre o atuar e o viver, em um diálogo franco Porque na obra tinha um cavalo e eu falei para o Paulo: “temos um
com o espectador. cavalo, vamos fazer um cavalo”. E como era o cavalo do Paulo? O
O mais interessante são as sensações transmitidas por estas cria- Paulo fez um imenso retângulo vermelho, que o ator sentava em cima,
ções. Há um cavalo, construído através de uma estrutura semelhante com uma roda na frente e atrás uma “roda” sextavada. Então, quando
a uma bicicleta. Porém, o formato de uma das rodas era “sextavada” e o ator pedalava, aquilo fazia o barulho de um cavalo trotando. Era
incrível.23
com o seu girar e bater no piso do palco, produzia o som semelhante
ao trotar. (ver imagem 2.70)
“Quadrupedante putrem sonitu quatit ungula campum” Virgílo em Havia ainda um avião, carrinhos e outros objetos que eram utilizados
Eneida. pelos atores na composição das cenas.
Assim como Virgílio, em Eneida, e Guimarães Rosa em Grande
Sertão: Veredas, que usaram artifícios de linguagem para dar às pa-
lavras a cadência necessária para reforçar a ideia de movimento ou
23 Bia Lessa. Em worksop ambientado dentro do cenário de Grande Sertão: Veredas, São Paulo, 18
uma musicalidade intencional para atingir o leitor, em O Homem de out. de 2017, na unidade do SESC Consolação. [entrevista não publicada]. Encontra-se transcrita
sem Qualidades, Paulo Mendes da Rocha se vale do mesmo recurso no anexo II desta dissertação

74
Figura 2.66: Croqui a fábrica de cartolas. Desenho: Figura 2.67: Carro da mulher tronco. Desenho:
Jean Luis Leblanc. Fonte: Jean Luis Leblanc Jean Luis Leblanc. Fonte: Jean Luis Leblanc

75
Figura 2.68: Carro dos livros. Criação Paulo Mendes da Rocha. Figura 2.69: Croqui de Lucélia Santos puxando o carro dos livros.
Desenho: Jean Luis Leblanc. Fonte: Jean Luis Leblanc Desenho: Jean Luis Leblanc. Fonte: Jean Luis Leblanc

76
Figura 2.70: Croqui do Cavalo.
Fonte: Jean Luis Leblanc

77
Figura 2.71 e 2.72: Serie de estudos para adereço – Avião. Desenhos:
Paulo Mendes da Rocha. Fonte: Acervo de Paulo Mendes da Rocha

78
Figura 2.73: Serie de estudos para adereço – Avião. Desenhos: Paulo Mendes da Rocha. Fonte: Acervo de Paulo Mendes da Rocha

79
A arte de Bia Lessa e a arquitetura de Paulo Mendes, fundidas As colagens e sobreposições destes artistas integraram a arte ao co-
neste cenário, nos sugerem um caráter experimental, aqui tomado tidiano criando linguagens dinâmicas e sem fronteiras. O transitório,
no sentido de experiência, que busca atingir visualmente aquilo que portanto, passa a ser incorporado como um lugar da arte.
a linguagem verbal não alcança e que, através de vários elementos “O espaço moderno, mais que um espaço de colagem ou um espaço
estruturadores do espaço, delimitam a coreografia no palco. Desta manuseável, é um espaço em obra. “(TASSINARI, 2001, p.48)
forma, a estética resultante da composição de todos os elementos Ainda sobre a questão da colagem, o autor relaciona diretamente o
no cenário de O Homem sem Qualidades parece reforçar a questão espaço e a arte, abordando a experiência sensorial no espaço onde “o
central do texto que discursa sobre um pensar iludido por infinitas equilíbrio na fusão de coisas e espaços proporciona uma troca de aspec-
possibilidades. tos entre o que é sólido e o que é vazio.” (TASSINARI, 2001, p.38) É isso
Sophia Telles, em seu artigo “A crítica é uma circunstância” aborda que nos ajuda a compreender a relação entre arte e espaço neste projeto
a questão do raciocínio construtivo e em sua argumentação ela afirma de Mendes da Rocha.
que ele “é uma totalidade que impede a análise tipológica de elementos
isolados” (TELLES, 1994, pg.87).
Com base no que expusemos até aqui, concluímos que o conceito
principal desta montagem era transmitir a transitoriedade da expe-
riência humana, fazendo com que o espectador ficasse diante de uma
colagem de cenas, objetos e acontecimentos, alterando a percepção
de temporalidade.
Alberto Tassinari, em seu livro O Espaço da Arte discorre sobre
qual seria o papel do espaço como mediador na compreensão da arte
moderna e contemporânea. O autor aponta, além do cubismo, a cola-
gem como a invenção mais importante da arte moderna por ter sido
responsável pelo rompimento dos paradigmas espaciais entre a obra
e seu exterior. Tassinari afirma que as colagens conferem uma outra
espacialidade à obra. (TASSINARI, 2001)
Na sua argumentação cita ainda Braque e Picasso como os respon-
sáveis por alterarem a temporalidade da arte, colocando-a como um
símbolo de futuro.
Figura 2.74: Pablo Picasso. Guitarra 1913. Figura 2.75: Georges Braque.
Telhados em Céret. 1911.

80
Figura 2.76: Colagem dos elementos de cena.
Desenhos: Fernanda Ferreira

81
A arquitetura de Paulo Mendes da Rocha articula dois planos, inte- concebidas. A literatura é motivo e motor de seu teatro, reflexo de
grados e superpostos. O primeiro plano é um procedimento eminente- leitura de extrema particularidade25. 26
mente técnico, aberto ao território do conhecimento. O segundo plano
reside na imaginação, moldada pela observação das transformações
da natureza, enquanto construção do habitat, que se expande como Em complemento à arquitetura cênica havia ainda outros detalhes
compromisso histórico «para além da estrita necessidade; como ex- sutis e elegantes na dinâmica de palco, como a passagem do tempo que se
pressão da cultura, alegria de viver; uma visão erótica sobre o existir e dava através da troca de figurinos os quais possuíam cores relacionadas
exprimir o espaço urbano que haveremos de construir, a partir sempre às estações do ano. (ver figuras 78 e 79)
de uma experiência em curso […] (VILLAC, 2014, p.5)

Portanto, o conjunto de objetos que se fez necessário para contar a Esse fluxo de atores que traçam trajetórias em movimento único de
história de O Homem sem Qualidades não pode ser reduzido à análise direção (entram sempre pela esquerda e saem pelo lado oposto, caso
este decida assistir a representação da plateia tradicional) numa zona
de cada um dos elementos. Há uma sobreposição, uma colagem de ele-
bem delimitada do palco, ora carregando ora empurrando complexos
mentos que forma uma totalidade conceitual na transposição do texto adereços, potencializa a verbalização frenética pelos atores do texto
para o palco e que pode ser observada por diversos ângulos (plateias) adaptado para o espaço virtual por Alberto Renault. Segundo Flora
num mesmo espaço. Süssekind, devido à forte instabilização do espaço cênico, objetos e
No texto de abertura do programa do espetáculo, um dos patro- atores parecem “por vezes não caber mais na sala de espetáculos”.
cinadores acena para a qualidade deste tipo de teatro, chamando-o (SÜSSEKIND, 2007, p. 346 apud ALLONSO, 2010. p.4)
de “teatro de textos impossíveis” pautado pelo trabalho em equipe e
onde cada detalhe é relevante e referenciado, e ainda complementa O resultado espacial deste processo pode ser visto nas imagens
dizendo ser este “um teatro contextual extraído de inesperadas en- a seguir:
trelinhas.” 24

Este é certamente o espetáculo mais bem acabado de Bia Lessa e ao


mesmo tempo o de mais “fácil” teatralização, pois a cada impasse na
mecânica de cena ela podia sempre recorrer à consistência do texto
de Musil. A inquietação de Bia Lessa não mais lhe permite trabalhar
textos teatrais, onde fatalmente se sentiria presa a marcações pre-

25 Grifo nosso.
24 Trecho extraído do catálogo da peça. Não há identificação de sua autoria. 26 Trecho extraído do catálogo da peça. Não há identificação de sua autoria.

82
Figura 2.77: Encenação de O homem sem Qualidades e ao fundo Figura 2.78: Figurino com cores que sugerem a passagem
a plateia que era disposta no palco. Fonte: Acervo Bia Lessa das estações do ano. Fonte: Acervo de Bia Lessa

83
Figura 2.79: Figurino com cores que sugerem a passagem Figura 2.80: Encenação de O homem sem Qualidades e
das estações do ano. Fonte: Acervo de Bia Lessa plateia disposta no palco. Fonte: Acervo Bia Lessa

84
Figura 2.81: Avião. Fonte: Acervo Bia Lessa

85
Figura 2.82: Cenário de O homem sem Qualidades Figura 2.83: Carro da mulher tronco em cena. Fonte: Acervo Bia Lessa
e objetos de cena. Fonte: Acervo Bia Lessa

86
“Chama-se parábola quando uma estória
quer contar outra coisa do que conta”
A estreia de Futebol foi muito noticiada naquele ano. Em meados
Fala do Padre, personagem de Futebol27 de março já circulavam notícias de que Bia Lessa havia sido convidada
pela direção do Sesi para montar um novo espetáculo. “Me pediram para
Sexto ato – Futebol pensar em três temas que gostaria de encenar. Decidi então abordar o
futebol”. (Lessa in HONOR,1994, p. D2).
Em 26 de outubro de 1994 estreava no Teatro Popular do Sesi, na Cerca de sete meses antes de sua estreia, Bia já avisava: “Não quero
Avenida Paulista, o espetáculo Futebol com concepção e direção de Bia torcida e nem bandeirinha, quero futebol e jogador” (Lessa in HO-
Lessa e texto de Alberto Renault. NOR,1994, p. D2). Nesta mesma reportagem, a jornalista já sugeria que
Não seria a primeira vez que Bia e Renault trabalhariam juntos. Eles esta não seria uma montagem convencional e que, apesar de Bia Lessa
já haviam levado aos palcos O Homem sem Qualidades, adaptação da ainda não ter muita certeza de como conduziria este processo, o resul-
obra inacabada de um dos mais importantes romancistas modernos, tado poderia ser surpreendente.
o escritor austríaco Robert Musil. Esta foi a montagem que, segundo
Rosangela Honor jornalista do O Estado de São Paulo, elevou a carreira
da diretora a um novo patamar. (HONOR, 1994, p. D2)
O ano de 1994 foi muito importante para o Brasil. Foi neste ano que
o então ministro, Fernando Henrique Cardoso, deixava o Ministério da
Fazenda para se candidatar à eleição à presidência da república, vindo a
vencê-la no primeiro turno em 3 de outubro.
Também foi em 1994, que no dia 1º de maio, Ayrton Senna morria ao
Figura 2.84: Jornal O Estado de São
sofrer um grave acidente no GP de San Marino. Este foi um duro golpe Paulo. 22.ago.1994 Caderno 2.
no ânimo do brasileiro, que só encontraria algum alento na vitória da
seleção brasileira de futebol, a qual conquistaria o tetracampeonato
mundial, na Copa do Mundo realizada nos Estados Unidos.
Futebol era, portanto, um espetáculo muito adequado ao seu tempo:
“estratégias de sobrevivência, descobertas, invenções e confrontos”.
(RENAULT, 1994, p.5) 28

27 Trecho extraído do catálogo da peça. Figura 2.85: Jornal Folha de São


28 Idem. Paulo. 24.out.1994. Ilustrada.

87
Não tenho nada pronto, nem o texto, conta. Reconhece que é uma peça
tampouco tensão real nos diálogos, além de criticar fortemente o de-
difícil de ser escrita e encenada porque o tratamento que pretende dar
à montagem é abstrato, sem começo, meio ou fim (HONOR,1994, p.D2) sempenho de atrizes e atores. Sem poupar atores, direção e produção,
finaliza seu texto sugerindo que o elenco, o grande cenário e os músi-
A 15ª peça da diretora lotou as sessões por todo o período em que cos foram os elementos que deram alguma sustentação ao espetáculo.
ficou em cartaz, até dezembro do mesmo ano.
A história se desenvolvia em um povoado fictício à beira mar que Também um embaraço, pode se dizer, é a produção do espetáculo. Com
vivia da pesca da lagosta e da plantação de cenouras e onde dois grupos um elenco grande, com um grande cenário móvel, com músicos ao vivo,
aliás, no pouco que sustenta a apresentação, Futebol não pode reclamar
disputavam o domínio de um porto marítimo.
de falta material. A falta é de outra ordem. (SÁ, 1994, p.5)

A peça é uma parábola. Há um lugar, que não é nenhum lugar deter-


minado, onde só existem formas angulosas. Em certo momento um
inglês traz uma bola. As pessoas vão descobrindo o redondo. No fundo,
a peça é também isso: uma discussão sobre a qualidade do ser redondo,
do redondo como gerador, uma reflexão sobre a descoberta do redondo.
A história avança entre as brigas e aproximações de duas famílias. É um
jogo, e também é uma guerra entre dois grupos. O futebol é isso, afinal.
(Lessa in CHIARETTI, 1994, p.5)

Para Umberto Eco, em qualquer narrativa fictícia ao se “construir um


mundo que inclui uma multiplicidade de acontecimentos e personagens,
não se pode dizer tudo sobre este mundo. Alude a ele e pede ao leitor que
preencha toda uma série de lacunas” (ECO, 1994, p.9)
Futebol não representou apenas uma alegoria à origem do esporte
mais popular no Brasil. Mais do que isso, foi uma versão com caráter
experimental, que mostrava a luta pela sobrevivência e onde os movi-
mentos de jogadores e torcida foram coreografados e desenvolvidos
sobre o plano inclinado, projetado por Paulo Mendes da Rocha.
Apesar da presença do público, a peça de Bia Lessa não foi propria-
mente um sucesso de crítica. Em uma delas, de Nelson Sá, do jornal
Figura 2.86: Cartaz do espetáculo Futebol.
Folha de São Paulo, afirmou não haver no espetáculo, ação no enredo, Fonte: Núcleo de memória do Teatro Popular Sesi

88
críticas, são inegáveis a engenhosidade e a consciência artística promovi-
das pela interação entre cenário, objetos de cena, trilha sonora e figurinos.
Esta dinâmica e a relação entre os elementos que ambientavam a
cena, as grandes alterações rítmicas de iluminação e musicalidade, jun-
tamente com a profusão de objetos e a geografia do palco, transportavam
o espectador a um tempo imagético. Umberto Eco comenta que “Proust
estava certo ao afirmar que este quadro multicolorido […] não está nas
palavras. Na verdade, ele é criado pela relação entre enredo e história,
que comanda as escolhas […] do discurso.” (ECO,1994. p.50)
Em entrevista com o arquiteto, no início desta pesquisa, ele nos con-
tou um pouco sobre este processo. Primeiro abordou poeticamente a
questão da história, que a seu ver era fascinante.
Figura 2.87: Jornal
Folha de São Paulo de
31.out.1994. Ilustrada. Existe um camarada da mesma idade que ela (Bia Lessa) muito interes-
sante, muito erudito. Neto de um dos maiores educadores do país, Abgar
Renault, esse menino (Alberto Renault) trabalhava com a Bia Lessa, ele
Outra crítica pouco favorável foi de Sérgio de Carvalho para o Jornal
fez coisas incríveis. Ele inventou essa história e virou teatro. O futebol.
O Estado de São Paulo. Em sua crônica intitulada “O futebol-espetáculo A história é a seguinte: Num lugar de uma pequena comunidade isolada
e o teatro-jogo” comparou o espetáculo à seleção brasileira de futebol do mundo, provavelmente uma ilha, havia uma população que vivia da
dirigida pelo técnico Carlos Alberto Parreira, na copa de 1994, susten- pesca, principalmente lagosta. Um dia apareceu pelo mar um navio de
tando que nem sempre a conquista de um título está vinculada a um belo um inglês e aportou ali e veio até a praia fez amizade. Voltou muitas ve-
desempenho em campo e lançou: zes e ensinou a turma da comunidade a jogar futebol. Porém o terreno
era todo ondulado, jogavam futebol num terreno que não era plano e
A parábola de Bia Lessa, a começar pelo argumento das famílias que jogavam com uma bola qualquer, de coco ou qualquer coisa assim. Até
“disputam o porto”, extraído de uma suposta etimologia da palavra que um dia ele trouxe uma bola perfeita e disse que a única forma de
desporto, investe no vazio dramático […] A única virtude interna, a se jogar bem era se jogar no plano. 29
dialética entre cenário, iluminação e trilha sonora, não sustenta a cena.
(CARVALHO, 1994, p. D5)

Há que se dizer ainda, que o teatro, como jogo dramático, encenado 29 Paulo Mendes da Rocha. Entrevista concedida a Fernanda Ferreira, São Paulo, 06 de jun. de 2017, na
no plano da possibilidade, não decepcionou neste espetáculo. Apesar das sede de seu escritório. [entrevista não publicada] Encontra-se transcrita no anexo I desta dissertação

89
A visão de mundo da cenografia revela que o espaço necessário para Concluímos que o ponto de partida do arquiteto para elaboração
o desenvolvimento de um espetáculo deve estar relacionado ao tempo deste projeto tenha sido o texto, relacionando seu conteúdo com a ideia
dramático. “Pensamos no espaço em ação, […] no que precisamos para daquele mundo que Bia Lessa e Alberto Renault queriam dividir com o
criar o espaço certo e como ele pode ser construído com forma e cor no público. Na entrevista que fizemos com o arquiteto esta questão nos pare-
sentido de aprimorar o ser humano e o texto”. (HOWARD, 2015, p.27) ceu ser reiterada por ele, demonstrando ter sido o texto a inspiração para
projetar a solução visual da peça. Porém, há que se incluir o elemento in-
Las obras de Paulo Archias Mendes da Rocha nacen de la emocion, son dutor da transformação desta inspiração em solução espacial, Bia Lessa.
transformaciones de la naturaleza que organizan emociones y, como
arquitecturas configuradas “para emocionar”, son aplicaciones de leyes
científicas mediatizadas por operaciones artísticas. Son construcciones O Paulo é uma pessoa extraordinária. E eu lembro que todos os projetos
que dependem de los procedimentos del arte. Así, la dimensión técnica ele fazia muito imediatamente. Não tinha muito processo, é uma con-
y constructiva de su arquitetctura está asentada en um programa vital versa, e o que eu acho legal é que o trabalho tem sempre uma relação
que busca la experiencia como clara evidencia de la objetivación de la muito profunda com o conteúdo, quer dizer, ele não trabalha a partir
subjetividad humana. de um traço, de uma beleza…Não! É sempre a partir de um conteúdo.
El programa vital, anterior a la técnica, revela que la subjetividad hu- (Lessa in PASSETTI, 2015, p.181)
mana adquiere dimensión real y racional cuando se inventa um desseo
que, em ultima instacia, es el argumento de su própria vida, y la ampli-
tude del argumento de su arte. (VILLAC, 2000, P. 286) Este é o grande atrativo de uma montagem ficcional.Ela pode até
ser inverossímil, mas traz consigo interpretações do mundo real. Para
A estética do futebol, como esporte, sua imprevisibilidade e a forma ECO, “a obra ficcional nos encerra nas fronteiras do seu mundo e, de uma
intuitiva como é jogado, sugerem aproximações com as questões espaciais forma ou de outra, nos faz levá-la a sério.” (ECO, 1994, p.84). E comple-
abordadas constantemente nos discursos de Paulo Mendes da Rocha. E menta, dizendo que ao formar este novo mundo tomam-se emprestadas
Bia Lessa também os afirma profundamente. Entendemos que é esta afi- as características geográficas do mundo real. Mesmo quando nos refe-
nidade, aliada à inventividade e a uma estética teatral provocadora, que rimos a uma fábula – que usam como artifício proporções diferentes
resultam em cenários tão interessantes. entre realidade e invenção – a síntese feita pelo espectador acaba por
estabelecer uma analogia com o que é possível no mundo real.
O cenário, do arquiteto Paulo Mendes da Rocha, evoca a esterilidade
geométrica para que o redondo da bola possa ser introduzido como uma
Temos, portanto, que “reunir todos os nossos conhecimentos adquiridos
espécie de redenção festiva do mundo, para além das fronteiras. A dire- no mundo real para tornar possível esse mundo irreal.” (ECO, 1994, p.87)
tora Bia Lessa quis traduzir cenicamente, além da estética do esporte, a Na figura 2.88 é possível verificar as primeiras intenções do arquiteto
ligação entre raciocínio e intuição que está na base do futebol. (MEDEI- na formulação espacial. Um espaço/síntese que é, na verdade, o ensaio de
ROS, 1994, p. D5) uma ideia imaginada, assim como faz um escritor que toma nota de ideias

90
para poder transformá-las em palavras e, consequentemente, em discurso.
É possível observar que, neste instante, o que existe é apenas a extensão
de um raciocínio, uma vez que o objeto já está totalmente configurado na
mente do arquiteto. “Com um sentido de dominar a imaginação para que
a coisa seja aquilo que você quer construir” (ROCHA, 2007, p.22)

É muito interessante como se trabalha. No teatro a gente trabalha com


o texto, com a ideia do outro, o que ele quer e tenta realizar. 30

O cenário projetado por Paulo Mendes da Rocha era uma grande


plataforma inclinada. Uma rampa, que permanecia na mesma posição
durante a maior parte do espetáculo, até que surgia efetivamente o fute-
bol e este plano, antes inclinado, ficava absolutamente horizontal para
receber a apoteose do esporte.

Daí, quando a gente fez Futebol, eu lembro que, nas primeiras con-
versas…porque tem aquele estádio31 dele que é deslumbrante e ele
ficou me explicando que o bom, que o difícil do estádio é o campo reto.
A drenagem que tem que ter. Que o resto é pura papagaiada, mas que
o bonito é a linha horizontal. E eu falei “o bonito é isso”, e a gente fez.
O espetáculo era uma rampa e o espetáculo acontecia todo nesta rampa
e no final do espetáculo, quando surgia o futebol, essa rampa ficava
absolutamente reta e nascia o futebol. (Lessa in PASSETTI, 2015, p.182)

30 Paulo Mendes da Rocha. Entrevista concedida à Fernanda Ferreira, São Paulo, 06 de jun. de 2017, na
sede de seu escritório. [entrevista não publicada] Encontra-se transcrita no anexo I desta dissertação
31 Bia Lessa se refere ao Estádio Municipal Serra Dourada, em Goiânia (Goiás), projetado pelo Figura 2.88: Croqui inicial do cenário de Futebol.
arquiteto em 1973 Fonte: Acervo de Paulo Mendes da Rocha

91
Figura 2.89: Croqui. Estudo para estrutura do cenário/ Figura 2.90: Croqui. Estudo para estrutura do cenário/
rampa. Fonte: Acervo de Paulo Mendes da Rocha rampa. Fonte: Acervo de Paulo Mendes da Rocha

92
Eu fiz o cenário feito com uma viga de ferro com uma articulação e As questões formais não são meramente ilustrativas. Elas estão rela-
umas ancoras que seguram. Na hora “H” entra alguém por baixo, você cionadas à compreensão e à interpretação do mundo. A rampa-cenário
nem percebe, tira as escoras e o plano fica horizontal e dá o grande fi-
e os objetos de cena, no caso de Futebol, não são uma metáfora destes
nal. Cenários móveis, nós fizemos. Chamava o calculista, via se o palco
aguentava a carga concentrada linear. Então eu contei tudo isso por elementos, mas uma vontade íntima e expressional da necessidade de
conta da questão dos adereços. Porque eu pensei e pensei muito nisso se dizer, informar, configurar e apreender esteticamente o mundo que
e a figura do navio, passando por traz uma silhueta de navio puxado por toma por alvo. (LIMA, 2009). Então pode-se afirmar que os sentidos são
um barbante qualquer. Lindo! 32 construídos na relação dos objetos projetados com o mundo, ou com o
espectador, e não no objeto em si. A expressão imagética é um aconte-
Além de Paulo Mendes da Rocha, criador da “geografia cênica”, outro cimento de linguagem, uma evocação.
profissional que ajudou na ambientação compondo o cenário com seus Neste ponto nos valemos das palavras Roberto Sarmento Lima em
adereços foi Guto Lacaz. O ilustrador e designer foi o responsável pela seu artigo “As razões da metonímia” (LIMA, 2009), quando cita o teórico
criação dos objetos de cena. francês Alain Frontier afirmando,
Em entrevista à autora desta dissertação o arquiteto comentou.
serem a metáfora e a metonímia, antes de tudo, “estilos”, “dois modos
Assim como os pescadores que chegavam com as canoas. As canoas diferentes de olhar as coisas e de as fazer ver”. Não são tão somente duas
se movem de um jeito peculiar porque o remo é atrás e descarrega as “figuras de retórica”, como os manuais redutoramente as classificam.
lagostas. Eu não fiz nada disso. Mas esse menino engenhoso, Guto Acrescenta Frontier: pela metáfora somos transportados a outro mundo,
Lacaz, é incrível. Sabe esse carrinho de puxar carga? Que tem duas talvez melhor do que este, enquanto, pela metonímia, ao contrário, não
rodas atrás e uma na frente? Pois bem, ele escondeu aquilo de algum nos afastamos nem nos distanciamos do mundo que se oferece aos nossos
modo que parece a canoa. (ver figuras 2.94 e 2.95) O movimento…e com olhos, como se nele de fato estivéssemos instalados. (LIMA, 2009, p.17).
uma vara, ele toca o chão como se estivesse remando. Aí descarregam
as lagostas. Que eram essas pinças de cozinha de pegar salada, cor de Guto Lacaz criou todos os objetos móveis que interagiam, ou não,
laranja. Até o barulho era de lagosta. Você via que não era, mas o ba- com o plano inclinado criado por Paulo Mendes da Rocha. As cenouras
rulho era de lagosta cozida. A vida é um teatro. Você tem que seduzir eram encaixadas no plano inclinado, sugerindo uma plantação. Havia
o outro para dizer o que você quer. Necessidades e desejos ao mesmo
também uma estrutura de candelabros que simulava a vela da embar-
tempo. É muito interessante. 33
cação do capitão inglês que introduziu o futebol na comunidade. (ver
figura 94). Além disso foram criados dois peões para atracar as canoas e
demarcar a posição do porto, uma trave de gol retrátil (Ver figura 2.92) –
32 Paulo Mendes da Rocha. Entrevista concedida a Fernanda Ferreira, São Paulo, 06 de jun. de 2017, na
sede de seu escritório. [entrevista não publicada] Encontra-se transcrita no anexo I desta dissertação que engenhosamente era recolhida e que emergia do plano inclinado –
33 Ibid. algumas canoas de pescadores e as lagostas (ver figura 2.93).

93
Figura 2.91: Croquis dos objetos de cena. Fonte: Acervo de Guto Lacaz

94
Figura 2.92: Estudo para
dobragem da trave de futebol.
Fonte: Acervo de Guto Lacaz

Figura 2.93: Desenho executivo para


Lagosta. Fonte: Acervo de Guto Lacaz

95
Figura 2.94: Croqui da Vela cênica do
navio do capitão inglês e canoas dos
pescadores. Acervo de Guto Lacaz

Figura 2.95: Croqui da canoa cênica.


Fonte: Acervo de Guto Lacaz

96
O cenário do Futebol, uma vez definido junto à Bia Lessa, como um O grande objeto/cenário era uma enorme treliça metálica sobre o
plano inclinado, demandava providências práticas para a consecução palco, com um apoio articulado no centro. Em uma das extremidades
do projeto. havia um braço móvel que, ao ser empurrado, levantava a parte baixa da
O primeiro passo foi se certificar de que o palco do teatro do Sesi pos- rampa. Na outra ponta, um pistão baixava até o limite do alinhamento
suía um porão capaz de acomodar a estrutura que faria o cenário pivotar. da treliça com o palco. (ver figuras 96 e 97). Na lateral oculta do cenário,
Era preciso saber, ainda, se o palco suportaria uma carga concentrada a trave articulada ficava recolhida até o momento em que a rampa ficava
nos pontos de apoio dos pivôs. plana e ela aparecia.
No processo de criação de um cenário há que se desconstruir o texto e
E essa peça que você lembrou (falando para Bia Lessa), Futebol, há uma depreender dele o espaço oculto no interior das palavras, compreender
mágica maravilhosa. Antes de mais nada, não é uma peça de biblioteca. sua dimensão e transformá-la em espaço.
Era uma história que não existia e foi escrita ao mesmo tempo foi in-
ventada ao mesmo tempo, que se ia apresentá-la. Foi o nosso querido
As próprias palavras são muito poucas. Inventamos o que podemos
Alberto Renault que resolveu escrever uma peça de teatro chamada
falar. É tudo um discurso, o ato de você dizer ao outro. A dança é um
Futebol. Aí a Bia me chama para fazer em um certo teatro, aí você vai
discurso. A gesticulação, a expressão facial. Há muitas formas de
ao teatro, ver os recursos que tinham lá. 34
você fazer o mesmo discurso, de dizer a mesma coisa. E para dizer a
mesma coisa você pode convocar tudo o que é. Que é a tal dimensão
Superada esta etapa, era preciso dimensionar a rampa e o espaço inventiva da natureza humana. Ela aparece no ato de dizer ao outro.
remanescente, para conseguir lograr a sensação do mar e do porto. Portanto, esta história do cenário e a arquitetura, é como se fosse
O Teatro Popular do Sesi possui boca de cena com 13,40m de largura tudo uma coisa só. Vários modos de expressão! Não há quem diga,
e 6,40m de altura. A rampa articulada ocupou 12,40m desta frente, si- muito bem, vale a pena lembrar, as palavras estão para um escritor
mulando o terreno inclinado e irregular de uma praia. Dois balizadores assim como as pedras de uma catedral para um construtor. Se você
não construir direito as palavras não servem para nada. Portanto o
a 1m do limite esquerdo da boca de cena demarcavam o limite entre
modo “de”, que é a questão do cenário, da apresentação, fazer ver é
porto e praia. muito importante.35
As laterais da rampa foram cobertas com um tecido cor de areia. No
fundo do cenário um imenso pano de fundo fazia as vezes de horizonte
e dependendo da iluminação, o efeito era de sol e de lua. O dia e a noite.

34 Paulo Mendes da Rocha. Em worksop ambientado dentro do cenário de Grande Sertão: Veredas, 35 Paulo Mendes da Rocha. Em worksop ambientado dentro do cenário de Grande Sertão: Veredas,
São Paulo, 18 de out. de 2017, na unidade do SESC Consolação. [entrevista não publicada]. Encontra- São Paulo, 18 de out. de 2017, na unidade do SESC Consolação. [entrevista não publicada]. Encontra-
-se transcrita no anexo II desta dissertação -se transcrita no anexo II desta dissertação

97
Figura 2.96: Corte rampa/
Cenário na posição inicial.
Desenho: Fernanda Ferreira

Figura 2.97: Corte rampa/


Cenário na posição final.
Desenho: Fernanda Ferreira

98
Essa coisa do Paulo, quando o cenário ficava completamente hori-
zontal, era um ohhhh. Porque realmente era a peça inteira e só no
último segundo que o palco ficava horizontal. A gente via essa coisa
que ele fala, que é tão bonito, que é a engenhosidade. E o Paulo diz
uma coisa bacana: o Pai dele era engenheiro e que ele nasceu vendo o
pai mudar coisas. As coisas sendo transformadas. Aquela montanha
no Rio de janeiro que virou aeroporto. Que você viu ela deixar de
ser montanha e virar aeroporto. Então o poder do homem de trans-
formar e de fazer. O engenho humano. Isso no Paulo é que eu acho
completamente extraordinário. Não há ideia, não há cena bonitinha.
É explicitar a ideia da engenhosidade do ser humano, da perspicácia,
da inteligência, disso que ele fala com tanta propriedade, que é falar
para o outro.36

O que esta montagem evidenciou é que o jogo de futebol e o tea-


tro se aproximam por meio de duas características muito fortes: a
plástica e o drama. Assim como um belo drible ou uma jogada genial,
no jogo de futebol, admira-se, no teatro, a solução formal, a plástica
do gesto e o movimento em cena. Tanto no jogo quanto no palco, a
ação contínua consiste em encontrar novas possibilidades para um
mesmo fim: superar o adversário, marcar um gol e atrair o público, se
possível, com uma jogada inteligente. Em Futebol, o resultado espa-
cial desta composição pode ser visto a seguir:

36 Bia Lessa Em worksop ambientado dentro do cenário de Grande Sertão: Veredas, São Paulo,
18 de out. de 2017, na unidade do SESC Consolação. [entrevista não publicada]. Encontra-se
transcrita no anexo II desta dissertação

99
Figura 2.98: Croqui do cenário de Futebol. Desenho: Fernanda Ferreira

100
Figura 2.99: Corte esquemático
do palco de Futebol. Desenho:
Fernanda Ferreira

101
Figura 2.100: Encenação de Futebol. Foto: Lenise Pinheiro Figura 2.101 à Figura 2.104: Imagens extraídas de Filmagem de trecho da peça
Futebol, cedida por Bia Lessa. Rio de Janeiro, 1994. Fonte: Acervo pessoal
de Bia Lessa Rio de Janeiro, 1994. Fonte: Acervo pessoal de Bia Lessa

102
Figura 2.105: Encenação de Futebol. Foto: Lenise Pinheiro Figura 2.106: Encenação de Futebol.
Fonte: Núcleo de Memória Cultural – SESI – SP

103
Figura 2.107: Encenação de Futebol. Figura 2.108: Encenação de Futebol. Foto: Lenise Pinheiro
Fonte: Núcleo de Memória Cultural – SESI – SP

104
O senhor mire veja: o mais importante e bonito, do mundo, é
isto: que as pessoas não estão sempre iguais, ainda não foram
Grande Sertão: Veredas é uma das obras mais importantes da lite-
terminadas – mas que elas vão sempre mudando. Afinam ou ratura brasileira. Escrita por Guimarães Rosa e publicada em 1956, ela
desafinam. Verdade maior. É o que a vida me ensinou. Isso chamou atenção pela linguagem original – repleta de neologismos – e
que me alegra, montão. Riobaldo (ROSA, 2006, p.19) pelo estilo linguístico inovador.
A história de Bia Lessa com Guimarães Rosa teve início há mais de
Sétimo ato – Grande Sertão: Veredas 10 anos, quando ela montou a exposição de inauguração do Museu da
Língua Portuguesa, projeto de Paulo Mendes da Rocha. Naquela opor-
Quando iniciamos esta pesquisa, Grande Sertão: Veredas ainda não era uma tunidade, Bia trabalhou apenas com as palavras, sobras de materiais de
realidade teatral. Tomamos conhecimento da estreia da peça após passar pela construção da obra, objetos e reproduções das folhas originais datilo-
banca de qualificação, mas não nos pareceu razoável ignorar esta montagem por grafadas e corrigidas, à mão, por Guimarães Rosa.
uma questão de tempo. Entendíamos que ela poderia contribuir, de maneira
fundamental, na investigação e na compreensão dos procedimentos contidos
no processo de criação, tanto de Paulo Mendes da Rocha quanto de Bia Lessa.
Após mais de 8 anos afastada dos palcos, Bia Lessa optou novamente por
adaptar um clássico literário. Ela já havia montado, anteriormente, Orlando,
de Virginia Wolf, O Homem sem Qualidades, de Robert Musil, Viagem ao
Centro da Terra, de Júlio Verne, entre outros.
Paulo Mendes da Rocha e a diretora não trabalhavam juntos no tea-
tro desde a última montagem de Suor Angelica no Rio de Janeiro, em 1995.
O hiato na parceria cênica durou vinte e sete anos e, a nosso ver, esta reto-
mada valia o desafio da ampliação do recorte.
Figura 2.109 e Figura
2.110: Anotações de
Quando fiz a exposição, senti que tinha cumprido meu diálogo com Guima- Guimarães Rosa em
rães… Mas aquilo ficou voltando em mim, e senti o desejo de voltar a viver sua passagem pelo
sertão brasileiro. Fonte:
a experiência do teatro, sobretudo num momento como esse, de um Brasil Documentário Os nomes
destrambelhado e de um mundo caindo pelas beiradas, com os princípios do Rosa de direção
de Pedro Bial e Claufe
escorrendo, escapando das mãos. É um momento em que precisamos con- Rodrigues. Imagens,
tar uns com os outros e por isso me veio o desejo de fazer algo coletivo, em extraídas de vídeo.
diálogo com esse tempo. Ou seja, estar junto e criar algo completamente Disponível em: https://
www.youtube.com/
diferente do mundo oficial. (Lessa in REIS, 2017) watch?v=weBWtXa9EFY

105
Quando eu montei a exposição no Museu da Língua que você fez a re-
forma (se dirigindo a PMR), a exposição foi feita com restos da obra
que lá estavam. Quero dizer que foi engraçado este processo. O que me
encanta na linguagem do Guimarães não é só a forma como ele conta,
é esse vai e volta sobre a coisa. Uma linguagem arcaica, mas ao mesmo
tempo inventiva, “a lá” Haroldo de Campos, e a forma como ele une
tudo isso. E surpreendentemente o que seria um problema, de como
encarar isso, do primeiro ao último dia, se via na boca das pessoas de
forma tão natural. E você acaba, mesmo sem entender algumas pala-
vras, entendendo tudo.37

O romance inova por não ter uma estrutura convencional, dividida


em capítulos. É um livro bastante extenso, com mais de 600 páginas e
dividido em dois volumes.
Com foco narrativo autorreflexivo, o texto é conduzido em primeira
pessoa pelo personagem principal – Riobaldo – um rico fazendeiro enve-
lhecido que conta a um forasteiro suas lutas, seus medos e amores. Não
há diálogo entre os dois e este interlocutor também não possui um nome,
sendo chamado por vezes de “senhor” e outras por “moço”.
Para Umberto Eco, “num texto narrativo, o leitor é obrigado a optar
o tempo todo” (ECO, 1994, p.12) e complementa dizendo que este leitor
empírico38 pode ler das mais variadas maneiras, pois não existe uma
lei que determina a forma que esta leitura deve ser feita. Isto acontece
porque, de forma geral, o leitor se utiliza do texto como um receptáculo
de suas próprias emoções. (ECO,1994)

37 Bia Lessa. Em worksop ambientado dentro do cenário de Grande Sertão: Veredas, São Paulo, 18
de out. de 2017, na unidade do SESC Consolação. [entrevista não publicada]. Encontra-se transcrita
Figura 2.111: Exposição O Grande Sertão: no anexo II desta dissertação
Veredas. 2006. Foto: Andrés Otero 38 O leitor empírico, para Umberto Eco é “você, eu, nós, quando lemos um texto” (ECO, 1994, p.14)

106
Em suas longas narrativas, o romance não segue uma sequência cro- ticos do sertão; o plano das reflexões, onde Riobaldo, já maduro, revê e
nológica linear, mas sim, uma sequência psicológica, orientada pelas avalia o seu passado e vida; e o plano mítico que se concentra nos con-
memórias 39 do jagunço Riobaldo. flitos representados pelas forças da natureza.
Para Jerusa Pires Ferreira, a memória é “mais que apoio, é matéria
prima, é lugar, é detonação, ponto de partida” (Ferreira in Nunes, 2001,
p.13). Segundo a autora, o ato de lembrar ordena falas e gestos, corpo e
mente, é coesão e transformação, mas é acima de tudo entendimento.
(Ferreira in Nunes, 2001).

A lembrança da vida da gente se guarda em trechos diversos, cada um


com seu signo e sentimento, uns com os outros acho que nem não
misturam. Contar seguido, alinhavado, só mesmo sendo as coisas
de rosa importância. De cada vivimento que eu real tive, de alegria
forte ou pesar, cada vez daquela hoje vejo que eu era como se fosse
diferente pessoa. Sucedido, desgovernado. Assim eu acho, assim é
que eu conto. O senhor é bondoso de me ouvir. Tem horas antigas
que ficaram muito mais perto da gente do que outras, de recente data.
(ROSA, 2006, p. 82)

O espaço da obra é o sertão mineiro, cujas paisagens foram descritas


pelo autor com enorme riqueza de detalhes. Apesar do enredo do livro
girar em torno das memórias de Riobaldo enquanto jagunço, o foco da
história é o encantamento dele por Diadorin, um jagunço que só se re-
vela mulher travestida de homem no momento de sua morte. E esta
morte marca o final da vida de Riobaldo na jagunçagem.
A crítica aponta três planos no romance: o plano da vida de jagunço,
que permite compreender os componentes sociais, geográficos e polí-

Figura 2.112: Catálogo da exposição Grande Sertão:


39 Grifo nosso Veredas, 2006. Acervo: Fernanda Ferreira

107
Na extraordinária obra-prima o Grande Sertão: Veredas há de tudo para
quem souber ler, e nela tudo é forte, belo, impecável, realizado. Cada
um poderá abordá-la a seu gosto, conforme o seu ofício: mas em cada
aspecto aparecerá o traço fundamental do autor: a absoluta confiança
na liberdade de inventar. (CANDIDO, 2000, P. 121)

Para Cândido “[…] é deslumbrante essa navegação no mar alto, esse


jorro de imaginação criadora na linguagem, na composição, no enredo,
na psicologia”. (CANDIDO, 2000, p. 121).
Em workshop com Bia Lessa e Paulo Mendes da Rocha, em 18 de
outubro de 2017, no Sesc Consolação, ambientado no cenário de Grande
Sertão: Veredas, a diretora enfatizou: “O livro começa com um travessão
e termina com o símbolo de infinito”40.
O início, com o travessão, aponta para o diálogo de Riobaldo com esse
interlocutor invisível, que é o próprio leitor.
Figura 2.113: Bia Lessa e Paulo Mendes da Rocha no cenário
de Grande Sertão: Veredas. Foto: Fernanda Ferreira
Afinal todo discurso é um confinamento. O escrito é um confinamento.
Tudo está ali. Tem que ter começo e fim, para não ter fim nunca. O pró-
prio Sertão Veredas não tem fim, com mais de 500 folhas, lá pelas tantas,
não tem final. O que é interessante é que nós continuemos a dizer.41 Em São Paulo, o abrigo não foi um teatro, mas sim, a área de convi-
vência do Sesc Consolação.
Com estreia em São Paulo em 9 de setembro de 2017, ficou em cartaz Desta vez temos um espetáculo-instalação em mais um cenário-
até 22 de outubro, encerrando a curta temporada paulistana para estrear -processo.
no Rio de Janeiro em janeiro de 2018. Esta estreia foi muito comemorada pelo público e crítica e foi muito
noticiada pelos veículos de comunicação. A exuberância visual comu-
mente proposta por Bia gerou grande expectativa.
40 Bia Lessa. Em worksop ambientado dentro do cenário de Grande Sertão: Veredas, São Paulo, 18
de out. de 2017, na unidade do SESC Consolação. [entrevista não publicada]. Encontra-se transcrita O tempo forneceu a Bia Lessa a clareza de concepção que sustenta a
no anexo II desta dissertação peça. Ela subtrai por um lado, para carregar nas tintas de outro. […]
41 Paulo Mendes da Rocha. Em worksop ambientado dentro do cenário de Grande Sertão: Veredas, Cada espectador recebe um fone de ouvido, com o qual se amplificam
São Paulo, 18 de out. de 2017, na unidade do SESC Consolação. [entrevista não publicada]. Encontra- as narrativas e os efeitos de som.
-se transcrita no anexo II desta dissertação

108
Cabe ao público fazer a síntese entre o que vê e o que ouve, fabricar o
sentido com os signos partidos que lhes entregam. (MENEZES, 2017, p.6)

Guimarães Rosa foi o construtor de uma nova linguagem e para a expo-


sição de 2006, Bia se valeu de materiais de construção para reforçar esta
ideia, por isso o uso dos escombros da obra. Mas agora ao transportar a
obra para o teatro, como enfrentar a questão da linguagem e da imagem?
Segundo Bia,

No teatro é necessária a criação de uma imagem. Então como fazê-la?


Uma antropóloga chamada Marina Vanzolini outro dia me disse que
na realidade o espetáculo não forma imagem. Ele evoca. E eu acho que
é um pouco isso. Chama os bichos, chama o sertão, chama o Riobaldo,
chama o Diadorin. Mas não é como se eles estivessem ali. É uma coisa
Figura 2.114: O Estado
que se transforma tanto que é como se eles se corporificassem. de São Paulo de 8 de
É como se você chamasse o espectador para fazer dentro de si o que ali out. de 2017. Caderno 2.
está só esboçado. Então, de alguma forma, sem que eu percebesse, eu
continuei sem a coisa de criar uma imagem. Eu continuei sem ter um
cenário. É um “não-cenário”, é um “não-lugar”. A imagem empobrece.42

O cenário está exposto ali, sendo a um só tempo cenário e instalação.


Enquanto não há encenação ele é parte integrante de uma exposição,
sonora e visual, onde o processo de criação do espetáculo é mostrado
através de vídeos de ensaios e depoimentos.
A opção cênica tem forte relação com a obra de Rosa, estando muito
mais interessada em provocações do que em conclusões. Para tanto, o
cenário propõe o confinamento e a escassez como recursos estéticos.

42 Bia Lessa. Em entrevista concedida, São Paulo, 13 de dez. de 2017 no Centro Cultura Banco do Figura 2.115: Folha de São Paulo
Brasil. [entrevista não publicada]. Encontra-se transcrita no anexo III desta dissertação. de 9 de set. de 2017. Ilustrada.

109
Figura 2.116: Croqui do cenário de Grande
Sertão: Veredas. Desenho: Fernanda Ferreira

110
Figura 2.117: Planta do cenário.
Desenho: Fernanda Ferreira

111
Questionada por nós acerca da relação da obra com o cenário e a
correspondência estética com a exposição do Museu da Língua Portu-
guesa, Bia disse:

A ideia do confinamento é a ideia de você criar um universo próprio em


que se está contando para o outro. Então eu acredito que ficaria mais
clara a ideia do visitante, de que há um outro que vem de um outro
universo. Como Guimarães diz, “o senhor é um homem circunspecto”;
“a sua inteligência vai me ajudar”. Então, esta primeira ideia do confi-
namento veio do Paulo (Mendes da Rocha), porque a minha primeira
ideia era que a plateia estivesse ali conjuntamente. Mas aos poucos a
gente foi vendo que não, que era importante que a plateia estivesse
muito perto porque queríamos que aquela violência estivesse na cara
de cada um, mas que tivéssemos a ideia de universos separados, muito
fechados. Então por isso o confinamento. É separado mesmo. Por mais
que seja uma separação de uma pequena gaiola, mas ela até dificultava
o olhar. As pessoas precisavam se abaixar para desviar das travessas.
Reforçar a ideia do “mire veja”. Para ver você tem que se esforçar. Você
está de fora, mas está ali.43

Enquanto espaço cenográfico, a instalação é constituída por uma


estrutura metálica tubular, um andaime, que definiu o espaço cênico
e expositivo. No entorno desta estrutura, em uma espécie de claustro,
está o espaço de circulação e plateia estabelecendo uma atmosfera que,
segundo os criadores, se relaciona com o discurso de Rosa através de
uma espacialidade estéril, fazendo com que o público seja o interlocutor
invisível, assim como acontece no livro.

43 Bia Lessa. Em entrevista concedida, São Paulo, 13 de dez. de 2017 no Centro Cultura Banco do
Brasil. [entrevista não publicada]. Encontra-se transcrita no anexo III desta dissertação. Figura 2.118 e Figura 2.119: Montagem do cenário. Fonte: Sesc Consolação

112
Aqui (falando sobre a montagem de Grande Sertão Veredas), de novo, a
gente retoma essa ideia de um público muito presente, quase dentro da
ação, mas ao mesmo tempo separado dela. E aqui ainda temos a questão
dos fones de ouvido, que foi uma coisa que nasceu de uma necessidade
real, porque o espetáculo foi pensado para ser no Centro Cultural do
Banco do Brasil, mas não cabia dentro do teatro, então tivemos que
pensar em fazer na rotunda. Mas ali tem um problema de acústica gi-
gantesco, que para a gente resolver ia necessitar de um dinheiro que a
gente não tinha e aí o Marcio Pilot (Projeto de Áudio e Sonorização),
falou: Bia, e se a gente fizesse com fones de ouvido? Então o que nasceu,
a princípio, como uma necessidade técnica, acabou explicitando a ques-
tão do observador porque você tem a plateia de uma forma coletiva, mas
quando você fornece o fone, você dá a essa plateia de alguma forma uma
individualidade. Como se aquela história estivesse sendo contada para
cada uma daquelas pessoas dentro do próprio ouvido.44

“A colheita é comum, mas o capinar é sozinho” Riobaldo (ROSA, 2006, p.51)


O que se propõe com este cenário é a destruição dos limites: a elimi-
nação de fronteiras entre o começo e o final do espetáculo. “Quando o
espetáculo termina, abrimos as cortinas e a exposição continua”.45
A montagem propõe ainda acabar com a distinção entre o teatro e as
artes plásticas; entre espaço cênico/ expositivo e espaço público. Ideias
reforçadas pelo caráter expositivo do cenário e pelo fato dele estar ins-
talado em uma área pública do Sesc.
É também proposta a eliminação da separação entre a plateia e ator.
Todos estão inseridos na mesma cena, com uma tênue estrutura física

Figura 2.120 e figura 2.121: 44 Bia Lessa. Em worksop ambientado dentro do cenário de Grande Sertão: Veredas, São Paulo, 18 de
Exposição: Grande Sertão:
Veredas. Sesc Consolação. out. de 2017, na unidade do SESC Consolação. [entrevista não publicada]. Encontra-se
Fotos: Fernanda Ferreira 45 Ibid

113
entre eles, que é a “gaiola de aço”. Além disso, discute-se também o fim
da distinção de gêneros. Nenhum ator sai de cena durante todo o es-
petáculo e fazem os mais variados tipos de personagens. De pássaros
a plantas, homens ou mulheres. Ao falar sobre gênero, Judith Butler
afirma que “o gênero não deve ser constituído por uma identidade está-
vel” (BUTLER, 2003, p.200), pelo contrário, a questão de gênero é com-
posta no tempo e embora haja corpos individuais que encenam estas
significações, em uma configuração binária, os atributos do gênero são
performativos, ou seja, são a maneira como o corpo mostra ou produz
uma significação cultural.
Muitos comparam Os Sertões, de Euclides da Cunha, com o Grande Ser-
tão: Veredas, mas há uma diferença fundamental entre as duas visões do
Sertão. Enquanto Euclides da Cunha fala do Sertão, Rosa fala como o Sertão.
Desta forma estabeleceu-se uma outra dinâmica de espaço e cena
muito mais alinhada à linguagem de Guimarães Rosa. Antônio Cândido
denominou de transregionalismo ou surregionalismo essa nova pers-
pectiva literária inaugurada por Grande Sertão: Veredas.
No cenário da peça as imagens foram ressecadas, esterilizadas, des-
saturadas. “Estamos diante de um palco sem cenário, atores vestidos
de negro e bonecos de feltro. As cores do sertão, com sua profusão de
pássaros, rios, bois, tiros e sangue, serão trazidas pelo que for escutado”
(MENEZES, 2017, p.C6)

Isto que está aqui é um modo de ocupar o espaço com a perspectiva


de contar aquilo que se sabe do Guimarães Rosa. Não é um percurso
meticuloso do texto do Guimarães Rosa, mas a partir da totalidade da
questão que ele colocou, que é a história do Brasil, de ocupação da Amé-
rica, do sertão, cercada de inúmeros acontecimento e fatos correlatos
necessários para percorrer o território, conhecer o lugar onde está.
Figura 2.122: Catálogo do espetáculo. Acervo: Fernanda Ferreira

114
E realizar as coisas no espaço. A história é maravilhosa, é infinitamente
discursiva, tem que ser revista sempre, inclusive a luz da situação atual.
Está aí a história do nosso Rio São Francisco novamente posta como
questão. Estão aí as questões do masculino e feminino da humanidade.
Isso é um tipo peculiar de nova edição da obra do Guimarães Rosa. 46

A América é, para o arquiteto, um território de múltiplas interações,


nossa existência é mestiça. “Não é mais uma questão do indivíduo” (RO-
CHA apud Villac, 2000, p. 245). A ocupação do território possui parti-
cularidades. O novo continente exige uma espacialidade ligada a uma
identidade local que encontra lastro na revisão crítica de nosso colonia-
lismo. Na América o território é livre, nega barreiras, muros, o espaço é
essencialmente público e não há espaço privado. O território é que orienta
o partido arquitetônico, ao passo que o projeto humaniza a natureza.

Mendes da Rocha não escapa à percepção do território latino-americano


elaborada por Gabriel Garcia Marques, como um mágico universo geo-
gráfico, cheio de surpresas e experiências inéditas. (SEGRE, 2006, p.69-70)

Para Mendes da Rocha a história da América Latina deve ser revista


não como evocadora de modelos, mas como base conceitual para pro-
dução de experiências do habitar humano na natureza.

Este cenário demorou muito tempo. Eu tinha o desejo de fazer um


espaço muito comprido, mas tivemos que ter um espaço cada vez me-
nor. Então foi rico pois a ideia de confinamento, essa sociedade que
não está dentro da sociedade e que é vista por nós de tão perto e ao

46 Bia Lessa. Em worksop ambientado dentro do cenário de Grande Sertão: Veredas, São Paulo, 18
Figura 2.123: Leonardo
Miggiorin dentro do cenário de out. de 2017, na unidade do SESC Consolação. [entrevista não publicada]. Encontra-se transcrita
da peça. Fonte: instagram no anexo II desta dissertação

115
mesmo tempo tão protegida. Podemos ver como espectador ou pode-
uma experimentação espacial que transcende o teatro e ampara as mais
mos entrar dentro dela e ver. Mire e veja! O Paulo uma vez me disse: a
gente não pode ver vendo senão a gente enlouquece. A gente tem que complexas questões humanas.
ter alguma defesa.47 Em tempos de grande retrocesso político, social e ético que o Brasil
enfrenta, Bia Lessa e Paulo Mendes da Rocha nos mostram que Grande
Assim como o sertão é lugar de poucos recursos, o cenário também Sertão: Veredas continua atual, discutindo a questão de gênero, a difi-
se desenvolve plasticamente com meios econômicos. Desta forma, a culdade do sertanejo e bandos sem lei dominando a parte central do
estética visual apurada faz com que o foco recaia sobre o texto de Gui- nosso país.
marães Rosa. E Paulo Mendes da Rocha conclui:
Por uma questão técnica – o fato do cenário estar numa área de convi-
vência, com acústica inadequada para uma apresentação teatral, fones de O que interessa é que esta peça, Grande Sertão: Veredas, feita pela Bia
ouvido foram dispostos para a plateia, amplificando a narrativa e os efeitos Lessa é um fato novo na literatura, no mundo das artes, no mundo do
teatro. E pode ser repetido quantas vezes se fizer necessário. É um tra-
sonoros. Cabe, portanto, ao espectador depurar o que vê, o que sente e o
balho feito. É uma nova edição muito oportuna e útil de um trabalho
que ouve e só então dar corpo e criar o sentido para o que lhes é colocado. interessantíssimo que é a saga deste homem desamparado no sertão.
Como no livro, o espectador – ou interlocutor – é cúmplice da história. Que é o que está aí até hoje.48
É neste sentido que a educação estética se liga à sensibilidade do su-
jeito. Na Poética do Espaço, Bachelard argumenta que “a imaginação ima-
gina incessantemente e se enriquece de novas imagens. É essa riqueza do
ser imaginado que queremos explorar” (BACHELARD, 1974, p.354)
Bachelard (1974) lembra ainda, que a topografia da casa para Jung,
sugere semelhança com a topografia da alma. Portanto a nossa alma é
um abrigo. Por este motivo a fenomenologia do imaginário não se limita
a fazer uma descrição da casa, dos objetos que lá estão, mas o sentimento
que envolve o habitante desta casa.
O cenário possui uma linguagem carregada de questões humanas e
sociais importantes, porém a contribuição mais significativa, a nosso ver,
é a apreensão do mundo que é tomado por alvo e é isto que proporciona
48 Paulo Mendes da Rocha. Em worksop ambientado dentro do cenário de Grande Sertão: Veredas,
São Paulo, 18 de out. de 2017, na unidade do SESC Consolação. [entrevista não publicada]. Encontra-se
47 Ibid transcrita no anexo II desta dissertação

116
Figura 2.124: Cenário de Grande Sertão: Figura 2.125: Espetáculo Grande Sertão:
Veredas. Foto: Fernanda Ferreira Veredas. Foto: Hélvio Romero/ Divulgação

117
Figura 2.126: Encenação do espetáculo Grande Figura 2.127: Exposição Grande Sertão:
Sertão: Veredas. Foto: Daniel Roland Veredas. Foto: Lenise Pinheiro

118
Figura 2.128: Grande Sertão: Veredas. Foto Lenise Pinheiro. Figura 2.129: Grande Sertão: Veredas. Foto: Lenise Pinheiro

119
3. As Veredas de Paulo Mendes
da Rocha e Bia Lessa

Premiados pela APCA em 2017, Bia Lessa, eleita melhor diretora de


teatro pela montagem de Grande Sertão: Veredas e Paulo Mendes da Ro-
cha, vencedor na categoria urbanidade com seu projeto para a unidade
do Sesc 24 de Maio, têm mais em comum do que apenas o reconheci-
mento da crítica. Trabalhando juntos eles possuem uma consistente
produção no campo da cenografia, como pudemos observar no percurso
que nos conduziu até aqui.
Dos sete cenários projetados pelo arquiteto, quatro foram feitos para
espetáculos dirigidos por Bia Lessa.
A diretora Beatriz Ferreira Lessa (1958) foi revelada na década de
80 e encabeça, ao lado de Gerald Thomas, o chamado teatro de imagens
dos anos 1980. Atriz por formação1, deu seu primeiro passo na direção
teatral trabalhando em teatro de pesquisa, parcialmente vinculado
ao Sesc da Tijuca, no Rio de Janeiro. Os espetáculos desta fase têm
em seus títulos a palavra “ensaio”, reforçando o caráter experimental
destas montagens.
A partir dos anos 1990, Bia envereda por novos caminhos traba-
lhando também com cinema, curadorias e cenografias para eventos de
artes plásticas e decoração.
A diretora é comumente celebrada pela exuberância formal de seus
trabalhos e a pesquisadora Flora Sussekind, ao abordar esta questão diz:

Figura 3.1: Paulo Mendes da Rocha e Bia Lessa, na pré-estreia 1 Formou-se atriz n´O Tablado, que é uma escola de teatro fundada em 1951 no Rio de Janeiro pela
de Grande Sertão: Veredas. Foto: Paulo Freitas/ Divulgação escritora e dramaturga brasileira Maria Clara Machado.

120
Bia Lessa costuma ser visual… O aproveitamento do espaço aéreo do quitetônica, conjuga na atividade projetiva as “projeções de um tempo
palco enquanto zona de imprevisíveis interferências (via papel picado, futuro ancoradas nas possibilidades do tempo presente e na memória”
como no Exercício nº 1, via folhas, areia, água, pedras, como em Orlando) (VILLAC, 2014, p.6).
ou enquanto lugar para desenhos diversos com linhas e cordas no vazio,
E o que acontece quando juntamos uma diretora provocadora e um
como as que atravessam e rabiscam o palco em Exercício nº 1 ou Cena
de Origem. […] É, pois, este aspecto plástico o que chama a atenção, de arquiteto com um grande saber técnico e com apurada intenção artística?
saída, nas encenações. (SUSSEKIND, 1992, p.43) Ao analisarmos a obra cenográfica de Paulo Mendes da Rocha para
Bia Lessa, percebemos que a intenção construtiva, como forma de es-
Outra característica de Bia é o grande apreço pelas montagens de truturar um discurso, assim como ocorre na arquitetura, é também
clássicos da literatura mundial. Além de Grande Sertão: Veredas, de Gui- reiterada nesta materialidade, ao atribuir valores humanos ao espaço.
marães Rosa e O Homem sem Qualidades, de Robert Musil, ela já havia
montado Orlando, de Virginia Wolf, Viagem ao Centro da Terra, de Júlio Desde a primeira ópera que eu fiz, que nós fizemos, eu nunca mais dei
Verne, entre outros, demonstrando forte habilidade para pôr em cena e um passo sem bater na porta do Paulo. Cada projeto que eu vou fazer,
seja ele qual for, desde uma reforma em um pequeno apartamento sei
movimento a linguagem textual destas obras.
lá onde, até todos os projetos que eu fiz na vida, eu sento e converso
Ainda segundo Flora Sussekind, “Bia Lessa opta por uma região parti- com o Paulo. Porque um pedaço do Paulo é arquitetura, mas ele é bem
cularmente marcada pela transitoriedade, pelo movimento2, por uma mais do que isso. Claro que na arquitetura que ele faz está todo o pen-
incontornável instabilidade – o branco (ou negro) do espaço cênico – samento do Paulo, mas ele é de fato uma pessoa extraordinária. Que
para esboçar, ali, sua forma mais característica de figurar a temporali- pensa a vida e o mundo de uma forma muito inusitada, muito própria,
dade” (SUSSEKIND, 1992, p.43) muito contemporânea. Eu sempre tenho muito desejo de mostrar o
Já o arquiteto Paulo Mendes da Rocha produz uma arquitetura que Paulo para as pessoas. Vira e mexe eu invado o escritório do Paulo com
turmas de amigos para mostrar o Paulo. Tem que ver o Paulo! Tem que
“tem, por princípio, um valor cultural intrínseco e uma expressão não
conhecer o Paulo!3
conformada com a realidade desigual da sociedade, apta a revelar as
contradições da realidade histórica e social no contexto da cultura”.
(VILLAC, 2014, p. 5) A relação de Bia Lessa e Paulo Mendes da Rocha é uma provocação
Segundo a pesquisadora, Paulo Mendes da Rocha demonstra “que a intelectual, pois a diretora propõe ao arquiteto oportunidades de deslo-
arquitetura forte não é um exercício erudito de associações e ordena- camento de determinados discursos arquitetônicos na direção de uma
ções de elementos, mas sim, a proposição construtiva e posicionamento
crítico” (VILLAC, 2014, p.6). O arquiteto, através de sua expressão ar-
3 Bia Lessa. Em worksop ambientado dentro do cenário de Grande Sertão: Veredas, São Paulo, 18 de
out. de 2017, na unidade do SESC Consolação. [entrevista não publicada]. Encontra-se transcrita
2 Grifo nosso no anexo II desta dissertação

121
bola de verdade. O que faltava era o campo horizontal. Então eu inventei:
outra materialidade, a cenografia. E neste deslocamento, Paulo Mendes
todo palco era um plano inclinado, os coitados jogavam futebol numa
da Rocha é liberado das amarras do cotidiano, impostas pela realidade ladeira horrível, a peça termina conseguindo se fazer o campo horizontal.
da arquitetura, para interpretar um mundo ficcional crítico. Eu inventei um engenho lá embaixo que tudo isso levantava e lá pelas
Os enredos de cada uma das peças fornecem subsídios ao arquiteto tantas ficava horizontal e eles jogam futebol maravilhosamente. E neste
para a livre interpretação. Em Suor Angelica, a clausura é o tema central momento se ouve, porque está gravado, o Maracanã num Flá-Flu.5
e a concepção cênica relaciona o espaço com uma estrutura política
e social apoiada em famílias patriarcais, fruto de nossa colonização e Já em O Homem sem Qualidades a questão é a vigilância e a imposição
história, onde a mulher é subjugada. O conceito de clausura é expresso comportamental e de valores da sociedade sobre o homem moderno.
como a angústia do tempo em que vivemos. A montagem mostrou, através de uma linguagem de imagens compreen-
síveis aos sentidos, a luta do homem moderno por auto realização. Daí a
[…]é indispensável você saber a reação do outro diante de sua existên- profusão de objetos e possibilidades cênicas.
cia, do seu modo de existir diante daquilo. Uma obra literária, uma obra Questionada por nós sobre a relação entre a plateia de O Homem sem
de arte, um discurso, seja poesia seja dança seja obra escrita seja vida
Qualidades e de Grande Sertão: Veredas, Bia disse:
comum, todo nós somos um discurso permanente.4

A gente fazia este espetáculo no Centro Cultural Banco do Brasil do


Em Futebol, a questão central é a luta pela sobrevivência, invenções, Rio e tinha um teatro pequeno e que na hora de montar o espetáculo,
o cenário virava o quarteirão. Assim, além da arquibancada, a quan-
conflitos, o pão e o circo. O futebol que distrai manipula o acaso, assim
tidade de objetos que tinha, saía ia pela coxia, abria a porta, saia pelo
como os atores, nesta encenação, manipulam o texto com jogos de pa- CCBB e ia até o final do Banco do Brasil, porque no fundo a gente tra-
lavras. É o cenário que contribui com a narrativa, quando o arquiteto balhava um pouco como se estivesse em um grande desfile, os objetos
propõe um plano inclinado que se relaciona com o inoportuno plano iam passando. Então, é curioso você (se dirigindo a mim) falar disso.
de jogo irregular das ruas e de tantos campos de futebol de várzea espa- Desse espectador que você está falando que era onde a gente grifava a
lhados pelo Brasil. ideia de observação e aqui (no cenário de Grande Sertão: Veredas), de
novo, a gente retoma essa ideia de um público muito presente, quase
A população não tem noção que não há no planeta nenhum espaço de dentro da ação, mas ao mesmo tempo separa dela.6
200x100m absolutamente horizontal. Todo campo de futebol é uma obra
extraordinária na natureza. Você construir este espaço horizontal. A es-
fera de borracha inflável que gira, tudo aquilo é algo incrível. E a peça é isso.
5 Ibid
O inglês foi se entusiasmando com os caras jogando, depois trouxe uma
6 Bia Lessa. Em worksop ambientado dentro do cenário de Grande Sertão: Veredas, São Paulo, 18 de
out. de 2017, na unidade do SESC Consolação. [entrevista não publicada]. Encontra-se transcrita
4 Paulo Mendes da Rocha, Idem no anexo II desta dissertação

122
muitos escritores que pudessem me ajudar na adaptação e todos me
E por fim, Grande Sertão: Veredas, que nos mostra que o romance de
disseram absolutamente não. E quando eu chego no Paulo, ele diz: “Va-
Rosa continua atual, discutindo a questão de gênero, fazendo reflexões mos fazer, vamos conversar”. Começamos os ensaios absolutamente do
existenciais e desenhando alegorias no tempo quando fala do desenvol- zero, sem nenhuma ideia pré-concebida. Eu tinha um pouco a imagem
vimento do país, transitando entre o regional e o metafísico. destes bonecos, que não fosse apenas teatro, que invadisse um pouco
a ideia sonoramente do cinema e que também tivesse essa coisa que
O que eu queria dizer, é que nada, nem o livro é a mesma coisa. Nada tem no romance que é o infinito. Ele começa o livro num travessão e
é a mesma coisa para sempre. Depende de nós. O modo de ver aquilo, termina com a última palavra “travessia” com o símbolo do infinito.
naquele momento interessa ver assim. Você, Bia, fez um trabalho novo. Então que tivesse um espetáculo de que alguma forma não acabasse.
Tudo é assim. Já me perguntaram qual o objetivo da arquitetura, que Por isso essa exposição. O espetáculo termina e começa a exposição.8
diabos pretende a arquitetura? Ela pretende amparar a imprevisibili-
dade da vida. Essa coisa de que a arquitetura molda o comportamento,
a função. É um pretexto para você construir assim. Porém você está Pudemos perceber, então, que da parceria entre Bia Lessa e Paulo Men-
amparando a imprevisibilidade da vida. Ali pode-se fazer qualquer des da Rocha o que se transmite é um discurso voltado à criação de uma
coisa. A nossa vida é um discurso sem fim. Nossa existência é um dis-
percepção peculiar de mundo, e que, ao evocar conceitos contidos em nosso
curso sem fim. É um mistério. Nós não sabemos nada.7
imaginário ou nossa memória, prescinde de uma forma figurativa óbvia.
Desta relação entre arquitetura e teatro criou-se, sobretudo, cená-
Sobre o início do processo de criação de Grande Sertão: Veredas, Bia rios móveis, com forte carga humana e antropológica, fundamentados
acrescenta: em uma afinidade discursiva que busca interpretar o mundo e propor
Então, quando eu decidi fazer o Grande Sertão: Veredas – eu tinha feito formas amparadas nos mais diversos territórios de conhecimento. “Nós
uma exposição que abriu o Museu da Língua Portuguesa. No momento somos só conhecimento. E esse conhecimento tem uma raiz, enquanto
em que eu criei a exposição eu vi que eu não podia utilizar nenhuma humano. A essência desse conhecimento é humana, enquanto artística”
imagem nela, porque qualquer imagem seria um empobrecimento da (ROCHA; VILLAC, 2012, p. 42)
obra, uma vez que o Guimarães diz tanto “O sertão está em toda parte, o
sertão também é da gente”, que qualquer imagem que eu colocasse por
mais deslumbrante que fosse eu estaria de alguma forma simplificando
o sertão. Dizendo: O sertão é assim. E o sertão não é assim. O sertão é a
metafísica do homem. Aí é obvio que eu fui bater no Paulo. Eu busquei

7 Paulo Mendes da Rocha. Em worksop ambientado dentro do cenário de Grande Sertão: Veredas, São
Paulo, 18 de out. de 2017, na unidade do SESC Consolação. [entrevista não publicada]. Encontra-se
transcrita no anexo II desta dissertação 8 Bia Lessa, idem.

123
Considerações Finais

“Mire Veja”.
A expressão enigmática tão presente em Grande Sertão: Veredas é um
mantra repetido inúmeras vezes por Riobaldo a seu interlocutor. Ela é
um pedido de Guimarães Rosa para que o leitor mantenha o foco no texto
e dele interprete o que puder, com a alma. E nesta entrega – sim, ler o
romance de Rosa é uma entrega – conclui-se que não há um único mire,
tampouco um único veja. Mirar e ver exige de nós atenção e adesão totais.
“Conto ao senhor é o que eu sei e o senhor não sabe; mas principal
quero contar é o que eu não sei se sei, e que pode ser que o senhor saiba”.
(ROSA, 2006, p.214)
Ao percorrermos a obra cenográfica de Paulo Mendes da Rocha, o que
nos parece importante destacar em relação à maneira do arquiteto for-
mar, quer seja no campo da arquitetura ou cenografia, é que não há uma
imposição quanto à maneira de utilizar os espaços. Isso reitera o discurso
de que em quaisquer materialidades a proposição é um suporte para a
“imprevisibilidade da vida”, que é uma ação no espaço e no tempo.
Neste sentido, verificou-se que a produção do cenógrafo não gera,
via de regra, um espaço figurativo óbvio, mas sim, a evocação de uma
ambiência como linguagem que revela a profunda interpretação e refle-
xão crítica, em relação a cada uma das narrativas textuais apresentadas.
“Um projeto sai da mente […] e você tem que ser competente para rea-
lizar essa transformação de uma ideia em coisa. Essa ideia, entretanto,
é tudo o que o homem pode pensar sobre a sua própria existência. É a
imagem que você tem de si mesmo e imagina que a sociedade queira
para satisfazer os seus desejos e, entretanto, exprimir também como
sua imagem” (ROCHA; VILLAC, 2012, p.41)

124
Em Il Tabarro e Gianni Schicchi, de Jorge Takla e Gabriel Villela a cenografia. E que tenhamos aberto caminho para futuras indagações
respectivamente, fica evidente a necessidade, por parte dos diretores, e pequisas a respeito de sua produção.
da proposição de cenários que tenham representações espaciais figu- Vivendo, se aprende; mas o que se aprende, mais, é só a fazer outras
rativas para se relacionarem com as narrativas das óperas. maiores perguntas. (ROSA, 2006, p.378)
No caso da Ópera dos 500 anos - Popular e Brasileira, de Naum Al-
ves de Souza, o arquiteto propõe uma delicada engrenagem, composta
por perfis lineares, em movimento de translação. Neste caso o diretor
liberou o arquiteto para interpretar e produzir um espaço não figurativo
para percorrer os 500 anos do recorte temporal da narrativa.
Já nos quatro cenários projetados por Paulo Mendes da Rocha para
Bia Lessa, evidencia-se que a afinidade discursiva entre eles, resulta
em consistente parceria que produz cenários com experimentações
emocionais e sensoriais marcantes.
O raciocínio arquitetônico de Mendes da Rocha e a arte cênica de
Bia Lessa colaboram entre si e nos revelam que, da união do plano
do conhecimento com o plano da imaginação, são evocadas as refe-
rências para transformação do espaço cênico em um espaço de ex-
periências.
Cada cenário possui linguagem impregnada de questões humanas e
sociais, porém, a contribuição mais significativa, a nosso ver, é a apreen-
são do mundo que se toma por questão e a relação do olhar do arquiteto
com esta ideia de mundo, que uma vez interpretada por ele, se revela
como uma forma.
É esta confiança que proporciona uma experimentação espacial que
transcende o teatro, a própria arquitetura, e ampara as mais complexas
questões humanas.
Enfim, o que se espera com esta dissertação é que tenhamos colabo-
rado para divulgar e ampliar o conhecimento da obra do arquiteto Paulo
Mendes da Rocha quando deslocado a formar em outra materialidade,

125
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São Paulo. São Paulo, 19 de março de 1994. Caderno 2, D5 São Paulo. São Paulo. São Paulo, 29 de junho de 1995. Caderno 2.

128
Anexos

I. Entrevista com Paulo Mendes da Rocha


II. Workshop com Paulo Mendes da Rocha e Bia Lessa
III. Conversa com Bia Lessa
IV. Entrevista com Gabriel Villela

i. Entrevista com Paulo Mendes da Rocha

São Paulo, 06 de junho de 2017. Sede do Escritório de PMR à Rua


Bento Freitas, 306, 5°and.

PMR: Fernanda, quando me falaram o que você iria estudar, eu achei


uma ideia muito interessante porque tanto já se disse sobre minha ar-
quitetura.
FSF: Pois é. Eu cheguei até esta questão no decorrer da pesquisa. No
início eu tinha uma curiosidade sobre os museus e estudando a Lina e
sua forma de expor e seus cavaletes…aí um dia conversando com a Bel,
pensamos: Porque não estudar a maneira do Paulo Expor?
PMR: Você veja, aquilo é uma coisa extraordinária. Porque a ideia do
quadro numa parede, a história do castelo. O quadro na parede do Cas-
telo é o quadro que o milionário compra e pendura na parede. O Museu
não precisa repetir isso. Então, como? Como fazer?
FSF: Este é o ponto, Como?! Eu cheguei à esta questão a partir do
estudo de sua obra. Começamos a estudar os museus e então algo nos fez
perceber que este estudo poderia abranger algo maior, que fosse além

129
do objeto arquitetônico. Percebemos que esta questão poderia abordar todo discurso é uma construção. Com os poucos recursos que temos,
outras maneiras de expor, por exemplo: montagens, cenários, mostras, no caso palavras.
etc. E então conversando com a Bel, ela disse: “ Fiz uma exposição para Por ser tão difícil dizer o que de fato você quer dizer, nossa imagi-
o Paulo em Barcelona e foi tão decisiva a forma como ele conduzia a nação é incomensurável. É por isso que existe essa quantidade infinita
questão, o raciocínio no plano expositivo. Isto pode ser muito rico”. de “modos de”, de formas de dizer. Eis o por quê a Lina fez a exposição
PMR: É. Você tem que fazer disso uma tese. Você tem que construir dela, porque no caso, mesmo a ideia daquele museu suspenso no ar, com
a defesa “do que”? O que isso tudo no fundo quer dizer? Quer dizer que aquele vazio embaixo. Você poderia encher de paredes lá dentro, poderia
temos uma pobreza muito grande, uma dificuldade muito grande de ter pilares que não faria a menor diferença. Mas não. Como fazer para
exprimirmos o que queremos dizer ao outro. As próprias palavras são mostrar que não tem nada? O vidro é transparente, o quadro pendurado
muito poucas. Inventamos o que podemos falar. É tudo um discurso, o nele. Pode até ter inconvenientes: brilha muito, tem que ter luz para ver
ato de você dizer ao outro. o quadro, mas ela achou que era isso e valeu a pena. Porque você inventa
A dança é um discurso. A gesticulação, a expressão facial. Há muitas uma forma de dizer ao outro o que de fato você quer dizer a ele. Outra
formas de você fazer o mesmo discurso, de dizer a mesma coisa. E para coisa importante do ponto intelectual, porque você quer dizer? Porque
dizer a mesma coisa você pode convocar tudo o que é. Que é a tal dimen- você não se contenta em pensar?
são inventiva da natureza humana. Ela aparece no ato de dizer ao outro. FSF: Porque é preciso dividir com o outro, tornar público, não é?
Portanto, esta história do cenário e a arquitetura é como se fosse tudo PMR: Porque é o que mais se deseja. É o dizer ao outro. Porque como
uma coisa só. Vários modos de expressão! Não há quem diga, muito bem, diria o filósofo: Se você sabe, como todos sabemos, que inexoravelmente
vale a pena lembrar: as palavras estão para um escritor, assim como vamos morrer, entretanto, não nascemos para morrer. Nascemos para
as pedras de uma catedral para um construtor. Se você não construir continuar. Então tem que dizer ao outro. É uma condição humana,é
direito, as palavras não servem para nada. Portanto, o modo “de”, que a condenação humana. Transformar o pensamento em “coisa” para o
é a questão do cenário, da apresentação, fazer ver é muito importante. outro ver. É muito curioso essa coisa da dimensão artística. Toda ação
Você pega, por exemplo, um verso, para falar em frase feita, impossí- nossa tem uma dimensão artística. Não precisa ser artista, como se diz.
vel de mudar um verso conhecido. Vou dizer um que eu sei, que eu gosto Há coisas que são necessárias, já outras são desejáveis.
muito: “ Nas águas da praia, nas ondas do mar, quero ser feliz, quero te O que seria interessante, seria talvez a questão da cidade e os âmbi-
encontrar. Nas ondas da praia nas águas do mar, quero ser feliz quero tos dos tipos de atividades que possam aparecer na área que você está
me afogar”. Se você imaginar cada palavra impressa em chumbo, como focando: cenário de teatro, montagem de exposição de artes, bienais
se usava antigamente e embaralhar na mesa, uma pessoa que não co- e outras coisas que nem me lembro. Pessoas do âmbito da arte, com
nheça o verso vai dizer. Isso é o que? Mar? Quero? Nas? Não quer dizer um diretor de teatro municipal ou como uma Bia Lessa, só se podem
nada! Tem que arrumar daquele modo. É uma construção. Portanto associar porque estamos na cidade. Dizem que a razão da cidade é con-

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versarmos. É difícil ficar velho, que você vê tudo de uma só vez, de tanto até. E a forma de fechar a loja com a escadinha é boa, não é? Senão eu
que você já pensou. teria que fazer um pavilhãozinho no térreo e aí eu teria que repetir isso
FSF: É. E na verdade não temos memória, não é? Tenho tido uma di- lá em cima. Assim não. Fecha e acabou. Veja, o avião é assim, não fui eu
ficuldade enorme de levantar material destas exposições, etc. Encontro que inventei essa porta. Tava lá. É só prestar atenção. Esse é um detalhe
poucas fotos, poucas evidências. interessante da criatividade, da invenção. Acabar com essa bobageira!
PMR: É oportuno diante disso, inclusive, criticar a estupidez brasi- Prestar atenção que há uma genealogia do raciocínio, uma genealogia da
leira. O Brasil já nasceu atrasado porque nasceu colônia. Portanto, de- imaginação, que uma vez é convocada para isso ou aquilo. A loja Forma
veria ser revolucionário desde a origem para sair dessa. Ao contrário, é uma boa lembrança.
se atrasa cada vez mais. Se você imaginar os cenários de teatro, feitos Deixa eu te contar uma coisa: eu fiz uma coisa muito interessante
por mim por exemplo, para o Teatro Municipal, que é uma instituição com a Bia Lessa. O Suor Angelica. O Emilio Kalil convidou-a.
e tanto, você irá bater lá e não há um só registro do que fizemos. Se você Existe um camarada, da mesma idade que ela, muito interessante,
for a Bienal, também não irá encontrar. Estamos empenhados em des- muito erudito. Neto de um dos maiores educadores do país, Abgar
truir memória. Renault, esse menino trabalhava com a Bia Lessa. Ele fez coisas incrí-
Veja você. O Niemeyer fez muita coisa, até cenário de filme, foi o “Or- veis. Ele inventou essa história e virou teatro. O Futebol.
pheu do Carnaval”. Se você precisar achar alguma coisa, vai sofrer. A história é a seguinte: um lugar de uma pequena comunidade isolada
FSF: E sobre seu envolvimento com a cenografia. Levantei algumas do mundo, provavelmente uma ilha, havia uma população que vivia da
montagens com a Bia Lessa: Suor Angelica, O Homem sem Qualidades, pesca e, principalmente, lagosta. Um dia apareceu, pelo mar, um navio
Futebol… de um inglês e aportou ali e veio até a praia e fez amizade. Voltou muitas
PMR: Ah, Puccini. Isso temos aqui. E o que mais? vezes e ensinou a turma da comunidade a jogar futebol. Porém o terreno
FSF: De maneira geral, o conceito é forma de expor. Então não estou era todo ondulado, jogavam futebol num terreno que não era plano e
focando apenas nos cenários. Penso em mostras expositivas, na Loja jogavam com bola qualquer, de coco ou qualquer coisa assim. Até que
da Forma, porque também é uma forma de expor, o Pavilhão de Osaka. um dia ele trouxe uma bola perfeita e disse que a única forma de se jogar
PMR: Ah, a Loja da Forma. É muito interessante. Fundamentalmente bem era se jogar no plano.
não fui eu que inventei. Mas veja, eu tinha que ter uma vitrine numa Então eu fiz o cenário assim: eu tinha a plateia, 4/ 5 metros de hori-
rua de transito rápido. A única forma de se ver, de quem vem da outra zontal e 8 metros de plano inclinado. Mas aí o comandante, com a bola
mão, seria erguer a loja. E, ao mesmo tempo, o edifício levantado libera de verdade, tinha que jogar no plano. E neste momento o cenário fica
o solo para o automóvel. Porque todo mundo que vai lá, vai de carro. Aí horizontal e jogam brilhantemente e você ouve, como música de fundo,
chega o arquiteto, a mulher que vem não sei de onde, o marido que vem gravado ao vivo de um fla-flu, os gritos da torcida. Não é lindo? Tudo isso
da fábrica e então são 3 ou 4 carros para uma compra. Meio anacrônico este menino, Renault, inventou. E a Bia Lessa transformou.

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Eu fiz o cenário visando uma viga de ferro com uma articulação e Então, ele já construiu a ideia para seduzir a irmã de desistir da ideia.
umas ancoras que seguram. Na hora “H” entra alguém por baixo, você É tudo um raconto. Eu tive muita sorte, pude acompanhar por meses
nem percebe, tira as escoras e o plano fica horizontal e dá o grande fi- os ensaios.
nal. Cenários móveis, nós fizemos. Chamava o calculista, via se o palco Você imagina. As freirinhas brincavam, no recreio, jogando as boli-
aguentava a carga concentrada linear. Então eu contei tudo isso por nhas. Nós rebaixamos o palco. A plateia ficavas mais alta, portanto. En-
conta da questão dos adereços. Porque eu pensei e pensei muito nisso, tão não se viam as meninas. Apenas se via a bolinha passando de um lado
e a figura do navio passando por traz uma silhueta de navio puxado por para o outro e se escutavam as risadas. E o coro, e estava escondido. Parte
um barbante qualquer. Lindo! do vedo da parede que era de madeira, era falso, feito com tela pintada
Assim como os pescadores que chegavam com as canoas. As canoas na cor da parede você não percebia. Elas cantavam atrás disso. Isso dava
se movem de um jeito peculiar porque o remo é atrás e descarrega as uma sensação como se o convento fosse enorme. Parte do coro estava no
lagostas. Eu não fiz nada disso. Mas esse menino engenhoso Guto Lacaz, alto. Reservaram umas cadeiras lá atrás. Isso dava a sensação espacial
é incrível. Sabe esse carrinho de puxar carga? Que tem duas rodas atrás de amplitude, parecia que você estava num convento. Coisas assim que
e uma na frente? Pois bem, ele escondeu aquilo de algum modo que se inventa. Há uma cena absolutamente encantadora, quando a Suor
parece a canoa. O movimento…e com uma vara, ele toca o chão como se Angelica está sozinha, no final, cantando o amor e ela vai ao jardim, tira
estivesse remando. Aí descarregam as lagostas. Que eram essas pinças de a sandália e lava os pés. É muito erótico, isso. Você sabe que fizemos uma
cozinha de pegar salada, cor de laranja. Até o barulho era de lagosta. Você mangueira que vinha por trás, furava a parede e colocamos uma torneira.
via que não era, mas o barulho era de lagosta cozida. A vida é um teatro. Você vê a agua, no proscênio. Coisas muito bonitas. Água brilhando em
Você tem que seduzir o outro para dizer o que você quer. Necessidades pleno teatro. Uma fonte. É incrível.
e desejos ao mesmo tempo. É muito interessante. FSF: Você também fez cenário de shows, não é? Para Marina Lima?
FSF: O Suor Angelica? Como foi a construção desta ideia? Porque a PMR: Fiz, fiz, este eu vou te mostrar porque é muito bonito. Mas ele
história é angustiante, não é? não foi feito. Não foi realizado. Justamente foi quando ela se afastou
PMR: Suor Angelica, é uma história belíssima. Porque o Puccini es- da música. Esse cenário, puxa, eu não me lembraria se você não falasse.
creveu esta peça para a irmã dele. Para convencê-la a não entrar para Mas eu vou te mostrar como eu fiz. Eu tenho uma maquete dele até hoje.
um convento. O convento era uma infâmia, porque as meninas que se Inclusive a maquete se faz para se conversar.
apaixonavam e engravidavam eram enviadas para lá para ficarem es- Aqui é a plateia. Aqui é o proscênio. Eu vou por uma figura. Isso é a
condidas. Tiravam o filho. Ele escreveu tudo isso para tentar dissuadir Marina Lima. Ela viu isso, ela ficou encantada. Aí a Marta (Moreira), que
a irmã de entrar para um convento. Coisa real. trabalha comigo, fez a Marina Lima. Você vê a escala. Quando você vir
A peça, portanto, é belíssima, carregada, porque o Puccini estava a figura, tem até trancinhas. A ideia é a seguinte: isso é uma fita de lona
vivendo esta emoção de não querer que a irmã fosse pra um convento. branca que você pode mexer com vara. Ela pode ficar aqui e a Marina

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cantando como em uma “balcone”, os músicos ficam aqui. São 3 ou 4 ii. Workshop com Paulo Mendes da Rocha e Bia Lessa
músicos. E isso é um retângulo branco, que se ela ficar na frente, ela está
na janela, sabe como é? E isso, articulado, avança sobre a plateia ou isso Transcrição do workshop com Paulo Mendes da Rocha e Bia Lessa
sobe e lá fica sob uma soleira. Como se saísse da porta e o palco termina no Sesc Consolação, em São Paulo, no dia 18.10.2017 às 19:30
aqui. Então isso é como uma casa. Ou ela sai de casa, ou fica na porta, ou
entra em casa e fica no balcão. Tudo isso sem sair do lugar. Bia Lessa: Desde a primeira ópera que eu fiz, que nós fizemos, eu
Vou te mostrar uma coisa que a minha filha Nana fez. Pode parecer nunca mais dei um passo sem bater na porta do Paulo. Cada projeto
bobagem, mas estamos falando de comunicação, cenário. Você dobra, que eu vou fazer, seja ele qual for, desde uma reforma em um pequeno
dobra o papel e depois recorta e faz um bonequinho. Veja, estamos fa- apartamento sei lá onde, até todos os projetos que eu fiz na vida, eu sento
lando de uma criança. Ela não fez apenas bonecos, ela fez o futebol. Eu e converso com o Paulo. E eu fico com vontade de ter o Paulo aqui hoje,
guardei, não resisti. Está perdendo a cor, não é incrível? porque um pedaço do Paulo é arquitetura. Claro que na arquitetura que
Quer ver outra coisa? Flávio Motta. Flávio Motta passou por aqui e ele faz está todo o pensamento do Paulo, mas o Paulo é de fato uma pes-
me deixou um bilhetinho e eu não estava. Mas não era só um bilhetinho. soa extraordinária. Que pensa a vida e o mundo de uma forma muito inu-
Era comunicação. Não é uma beleza?Mas a forma foi ele que inventou. sitada, muito própria, muito contemporânea, eu sempre tenho muito
E veja, no hall das coisas que você está fazendo está o Pavilhão de desejo de mostrar o Paulo para as pessoas. Vira e mexe eu invado o es-
Osaka com a exposição do Flavio Motta. Na minha vida como cenário, critório do Paulo com turmas de amigos para mostrar o Paulo. Tem que
como exposição, isso foi importantíssimo. ver o Paulo. Tem que conhecer o Paulo.
FSF: Eu levantei também a Bienal de fotojornalismo. Ele nunca deixou, mas na realidade meu desejo era passar o dia se-
PMR: Esta bienal foi interessantíssima, jornal, papel. Eu fiz imprimir guindo o Paulo com uma câmera. Porque quando ele vai no butiquim
todas as fotos num tamanho de folhas de jornal. Como se imprime jornal. comer uma azeitona, você aprende com ele uma porção de coisas. Então
Então eu inventei o seguinte: você imprime fotografias, 2 a 2. Você põe hoje, aqui, o mais importante é que possamos usufruir da pessoa do
uma vara em cima, uma vara embaixo e com um grampo você prende. Paulo aqui com a gente.
O próprio papel é estrutura. A vara debaixo é contrapeso. A vara é um Então, só para falar, quando eu decidi fazer o Grande Sertão: Veredas,
“T” de ferro de 3cm. Você só vê a foto. Imagina uma altura boa de se ver. eu tinha feito uma exposição que abriu o Museu da Língua Portuguesa.
A graça é como se dispõe isso na Bienal. Você olha pelos dois lados. E eu No momento em que eu criei a exposição, eu vi que eu não podia utili-
montei a exposição nesta área. No vazio da grande rampa. Você não pode zar nenhuma imagem na exposição, porque qualquer imagem seria um
ir ali, mas vê a foto. Não é bonito? empobrecimento da obra, uma vez que o Guimarães diz tanto “O sertão
Independente do chão. Tudo alinhado. É construção do discurso. está em toda parte, o sertão também é da gente”, que qualquer imagem
Qual é o discurso: Fazer ver o que está aí. Fotojornalismo. que eu colocasse, por mais deslumbrante que fosse, eu estaria, de alguma

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forma, simplificando o sertão. Dizendo: O sertão é assim. E o sertão não curso meticuloso do texto do Guimarães Rosa, mas a partir da totalidade
é assim. O sertão é a metafísica do homem. Aí, é obvio que eu fui bater da questão que ele colocou, que é muito interessante, que é a história do
no Paulo. Eu busquei muitos escritores que pudessem me ajudar na Brasil, de ocupação da América, do sertão, cercada de inúmeros acon-
adaptação e todos me disseram absolutamente não. E quando eu chego tecimento e fatos correlatos necessários para percorrer o território e
no Paulo, ele diz: “Vamos fazer, vamos conversar”. Começamos os en- conhecer o lugar onde está. E realizar as coisas no espaço. A história é
saios absolutamente do zero, sem nenhuma ideia pré-concebida. Eu maravilhosa, é infinitamente discursiva, tem que ser revista sempre, in-
tinha um pouco a imagem destes bonecos, que não fosse apenas teatro, clusive à luz da situação atual, daí a história do nosso Rio São Francisco
que invadisse um pouco a ideia sonoramente do cinema e que também novamente posta como questão. Estão aí as questões do masculino e
tivesse essa coisa que tem no romance que é o infinito. Ele começa o feminino da humanidade hoje e está aí, mais uma vez, a questão posta
livro num travessão e termina com a última palavra “travessia” com o com a luz e o brilho da Bia Lessa que tem esse modo de se fazer. Isso é
símbolo do infinito. um tipo peculiar de nova edição da obra do Guimarães Rosa.
Então que tivesse um espetáculo de que alguma forma não acabasse. Está feito. É um trabalho feito e que pode se repetir com as variantes
Por isso essa exposição. O espetáculo termina e começa a exposição, mas de cada lugar. Uma das características interessantes que nós consegui-
agora queria que o Paulo falasse. mos ver é que cada lugar deve ser resolvido a modo de revelar, aqui e
PMR: Bom, acho que ficou claro que é uma exuberância extraordiná- agora, qual é a vereda. Aqui ficou muito interessante. Iniciamos pen-
ria a presença da Bia Lessa. Ela sabe tudo muito bem o que quer, por isso sando no CCBB como outro espaço e no fundo é um trabalho. Um tra-
é muito fácil pensar num cenário. Suor Angelica foi assim. Ela tinha uma balho já realizado, um discurso, como se fosse uma tradução em outra
visão claríssima daquilo. E eu entro como? Ela não saberia construir. Aí língua. Uma versão que deve ser reiterada. A odisseia é uma questão do
eu junto um pedacinho de pau aqui, um prego ali e faço. Mas já está feito. homem diante do universo. É uma questão particularmente colocada, do
Se as coisas continuarem assim, eu já estou me vendo naquela pilha nosso sertão, da figura do cangaço e estamos entrevistando os jagunços.
ali. É o que vai sobrar de mim. É muito agradável trabalhar com Bia Lessa. Eu acho belíssimo tudo isso. Inclusive o uso do teatro como mais uma
Porque as coisas surgem com uma exuberância muito grande e de um tradução, mais uma versão da mesma coisa. O homem não vive sem isso.
modo inesperadamente novo. Uma nova interpretação. O que eu quero Sempre fez isso. Fazer para o outro ver.
dizer é que o que fica como extraordinário é o que se deu: uma obra nova. É indispensável você saber a reação do outro diante de sua existência,
Eis um novo discurso sobre a questão do “Grande Sertão: Veredas” como do seu modo de existir diante daquilo. Uma obra literária, uma obra de
o Guimarães Rosa pôs para o mundo. É uma versão, fruto de um trabalho arte, um discurso, seja poesia, seja dança, seja obra escrita, ou seja, a vida
que pode ser reproduzido quantas vezes quiser. Essa é que é a graça. comum, todos nós somos um discurso permanente.
Isto que está aqui, é um modo de ocupar o espaço com a perspectiva É a forma de estarmos juntos, temos que agradecer a invenção da
de contar, contar aquilo que se sabe do Guimarães Rosa. Não é um per- cidade, pois isso só é possível nas cidades. Arquitetura se faz para cons-

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truir a cidade. Por que diabos se faz uma cidade? Para que possamos No caso do sertão, está aqui a Camila, que foi quem desenhou isso
conversar. E por isso posso encontrar a Bia Lessa quantas vezes ela qui- tudo. O meu desejo primeiro era fazer plateia e público juntos. Pensei
ser. E vamos fazer o que tiver que ser feito, porque eu não faço nada para até destes bonecos serem bancos e as pessoas sentarem neles. E aos pou-
aquilo que ela já sabia. Por exemplo, aquelas meninas no cenário do Suor cos iam sendo mexidos e aos poucos esses defuntos iam se amontoando.
Angelica tinham que subir pelas paredes. Esta era a imagem. E daí só me Aí o Paulo defendia a ideia de que a plateia deveria ficar muito perto, mas
cabe pregar prego, construir parede. É muito fácil trabalhar com você. que ela tivesse fora deste ambiente.
Bia Lessa: Tem uma coisa que o Paulo fez na Angelica, porque era a Eu lembro que a primeira ideia que o Paulo teve e, que foi deslum-
primeira vez de você fazendo cenário e eu fazendo ópera e eu liguei para brante, era fazer um único patamar em que a plateia ficasse de pé e que
o Paulo, a gente não se conhecia, e ele disse: “você deve estar enganada, pudéssemos criar uma arena e que tivesse um patamar aqui e um outro
deve estar ligando para falar com o meu filho”. “Não, é com você mesmo atrás. Como se a plateia ficasse numa geral de futebol. Exprimida. Bus-
que eu quero falar”. cando ver. Numa coisa que eu falo muito do grande sertão é o “Mire veja”.
E aí, ópera é aquilo, têm as árias, os cantores tem que cantar em um Não basta sentar confortavelmente. Escolher ver, mirar e ver. Não basta
determinado lugar por causa da projeção da voz e o Paulo logo pensou ler a obra. Tem que ler mesmo. E aqui isso é exigido do espectador.
a coisa das mulheres subindo pelas paredes e ele logo pensou em criar… É uma peça de 2,4hs e que exige uma postura ativa do expectador.
imagina, aqui é o fundo do palco e aqui é a plateia. Já que as cantoras têm Uma das coisas fundamentais é isso, a coisa, a proximidade, a plateia
que ficar na frente para cantar ária, elas têm que estar aí, então vamos está muito perto da ação, mas ao mesmo tempo protegida. Ela está e não
acabar com o fundo do palco todo. Aí ele pegou os próprios elevadores está. Ela não faz parte, mas está ali.
do palco, que já existiam no teatro, e eu acho que isso é uma coisa impor- Eu queria pedir ao Paulo para falar um pouco do Futebol, que fizemos
tantíssima, trabalhar com o que se tem. E isso é uma das coisas que eu no Sesc, e queria que você falasse sobre ele.
aprendi com o Paulo. Quer dizer, não adianta projetar. É preciso olhar o PMR: O teatro, veja você, é uma coisa extraordinária. Você diante de
que se tem e trabalhar com aquela realidade. Aí o que ele fez: abaixou os um texto diz ao outro: Veja você, faz você ver aquilo que está escrito para
elevadores, criou uma escada que vinha do infinito, aquelas freiras sur- que você veja, portanto, fica interessante que nesta mágica de trabalho
giam do nada, subiam e a gente tinha na frente 1,5m de palco onde tudo que move as emoções dos outros, que procura convocar e trabalhar a
acontecia. No final desta escadaria tinha essa parede gigantesca, onde emoção das pessoas é não representar, de modo visível, o óbvio. Fazer
estas freiras subiam, pois elas estavam enclausuradas, que eram as três deste “Veja você” uma coisa extraordinária. É daí que vem a ideia de
faces do palco e lá em cima tinha uma janelinha, onde aconteciam coisas… “Vamos fazer as freirinhas desesperadas”, essa imagem que existe, elas
Passava bicicleta, o mendigo dormia, que era como quem dizia, a cidade subindo pelas paredes. Mas vocês vão dizer: Como? Ao fazer uma ópera
está lá passando. Então, o que eu acho rico na questão do Paulo é a ques- os cantores sobem pelas paredes? Imagina vocês, uma estrutura como
tão de trabalhar, concretizar o discurso através de uma espacialidade. esta, escondida com madeira e uns pregos do mesmo material que saíam

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fora e aí foi contratada uma trupe de circo com as mesmas roupinhas A esfera de borracha inflável que gira…tudo aquilo é algo incrível. E a
das noviças e que de fato subiam pelas paredes. Uma coisa maravilhosa. peça é isso. O inglês foi se entusiasmando com os caras jogando, depois
De um realismo brutal, brutalista no sentido da palavra, transformou trouxe uma bola de verdade. O que faltava era o campo horizontal. En-
a imagem em coisa. O que é muito interessante para um arquiteto a tão eu inventei: Todo palco era um plano inclinado para dizer, os coita-
ideia de imagem e coisa. Você diz assim: vamos fazer uma casa. É uma dos jogavam futebol numa ladeira horrível, a peça termina conseguindo
imagem e de repente a coisa está lá. Não é preciso dizer que tudo isso é se fazer o campo horizontal. Eu inventei um engenho lá embaixo em
uma mágica maravilhosa. E essa peça que você lembrou, o Futebol, há que tudo isso levantava lá pelas tantas fica horizontal e eles jogam fute-
uma mágica maravilhosa. Antes de mais nada não é uma peça de biblio- bol maravilhosamente. E neste momento se ouve, porque está gravado,
teca. Era uma história que não existia e foi escrita ao mesmo tempo, foi o Maracanã num Flá-Flu. Você chamou o Guto Lacaz, lembra? Para
inventada ao mesmo tempo que ia apresentá-la. Foi o nosso querido fazer os adereços. E esses homens pescavam lagostas. E olha o que o
Alberto Renault, que resolveu escrever uma peça de teatro chamada o Guto fez. Com esses carrinhos que tem uma roda só na frente, fazia o
Futebol. Aí a Bia me chama para fazer em um certo teatro, aí você vai ao movimento de uma canoa. E eles chegavam com as canoas e jogavam
teatro, ver os recursos que tinham lá. as lagostas no chão. Ele pegou essas colheres de pegar salada, cor de
Vocês não podem acreditar, mas a peça monta-se assim: num lugar laranja, que quando jogava fazia barulho de lagosta cozida. Era uma
onde havia um lugar à beira mar, fantasioso, onde havia uma população maravilha. Então foi muito divertido.
muito rudimentar que, entretanto, vivia do mar, pescadores. Aparece Bia Lessa: Essa coisa do Paulo, quando o cenário ficava completa-
neste lugar sistematicamente – porque acabou fazendo parte da rota mente horizontal, era um ohhhh. Porque realmente era a peça inteira
dele – um almirante inglês na época da navegação a vela. E como era e só no último segundo que o palco ficava horizontal. A gente via essa
atraente aquela ilha, aquele povo, ele sempre parava por ali e entre coisa que ele fala, que é tão bonito, que é a engenhosidade. E o Paulo diz
outras coisas ele viu que as pessoas não tinham muito o que fazer e en- uma coisa bacana: o Pai dele era engenheiro e que ele nasceu vendo o
sinou, como bom inglês, a jogar futebol. Mas não havia campo nem nada, pai mudar coisas. As coisas sendo transformadas. Aquela montanha no
só havia praia, pedra. Ele pôs uma bola de papel, enfim, passou uns dias Rio de janeiro que virou aeroporto. Que você viu ela deixar de ser mon-
lá e ensinou a jogar futebol. E de tal sorte que a coisa foi progredindo e tanha e virar aeroporto. Então o poder do homem de transformar e de
os nativos gostaram muito de jogar futebol, mas não podiam jogar bem fazer. O engenho humano. Isso no Paulo é que eu acho completamente
porque faltava – inclusive é uma lição muito interessante – até certo extraordinário. Não há ideia, não há cena bonitinha. É explicitar a ideia
ponto a estupidez que se faz do futebol hoje ainda este espetáculo. A da engenhosidade do ser humano, da perspicácia, da inteligência, disso
População não tem noção que não há no planeta nenhum espaço de que ele fala com tanta propriedade, que é falar para o outro.
200x100m absolutamente horizontal. Todo campo de futebol é uma PMR: O que interessa é que esta peça, Grande Sertão: Veredas, feita
obra extraordinária na natureza. Você construir este espaço horizontal. pela Bia Lessa, é um fato novo na literatura, no mundo das artes, no

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mundo do teatro. E pode ser repetido quantas vezes se fizer necessário. Bia Lessa: Nesse sentido tem uma coisa também de não ser perene,
É um trabalho feito. É uma nova edição muito oportuna e útil de um tra- tem 2 coisas, na verdade…Uma vez eu falei para o Paulo, “que projeto
balho interessantíssimo da saga deste homem desamparado no sertão. novo você está fazendo?”, e ele disse “Bia, na realidade eu não aguento
O que está aí até hoje. mais fazer projeto novo. Eu gosto de fazer reforma, porque eu acho que
Bia Lessa: Vamos abrir as perguntas? tudo já está feito. Até quando eu vou fazer projeto novo, eu mando os
Conv. 1: Paulo, você vem da arquitetura, onde as obras são perenes. meninos fazerem, aí eu chego lá e mudo tudo, mas já é uma reforma”.
Aqui você demora um tempo, é concebido aquilo, e demora um tempo Mas é essa coisa que eu acho, da transformação das coisas, de tudo ser
para gestar e, de repente, a gente tem 1,5 mês de exposição. Aí isso se uma ocupação humana. E este cenário, neste sentido, é um pouco assim.
desmonta. Como você elocubra esta história? Que começa de um jeito e que vai se transformando e que ele como uma
PMR: É muito oportuno esta questão do efêmero e do eterno. Pri- estrutura que não é nada, porque este ferro pode estar numa construção
meiro que eu não vejo a arquitetura como uma coisa eterna. De qualquer amanhã, porque esse ferro é uma estrutura tubular, comum, ele mesmo
modo eu considero que as variantes que se faz quando se representa a tem uma vida. E essa é a coisa bacana, de ir se transformando.
mesma peça 2, 3 vezes, são simplesmente variantes. Esta é uma obra Lembro que eu li uma vez do Paulo, que eu não lembro que prefeito
eternamente consagrada. O Grande Sertão: Veredas posto em cena, deste queria tirar a Praça do Patriarca e que ligaram para o Paulo, um jor-
modo, por Bia Lessa. Isso está feito pelo resto da vida. Pode ser feito nalista e disse: “Mas o que você vai fazer para não tirarem e lá?” E o
por quem quiser, tem que dar a autoria, e pode se fazer. Esta está feita. Paulo, disse, “não eu fiz, se quiser tirar tira, eu já fiz. Não é para ficar para
Portanto, a materialização, aqui ou na arquitetura, é também um dis- sempre” – “Mas virou um abrigo de mendigos” – “Mas você não acha
curso para que continuemos. Outra questão interessante, é a demora extraordinário ter virado um abrigo de mendigos, é a cidade”.
no tempo da construção de pedra e cal. E é isso que eu acho de uma importância enorme, essa coisa trans-
É que ela não é bem assim, que fica para sempre. Hoje em dia você formadora, é a ideia de compartilhamento, de modificar. De não pegar
ocupa de modo novo a mesma coisa. É uma coisa quase que teatral. Esse para si. De não ser “seuzinho”, de não ser “meuzinho”, então aquilo vai
Sesc novo da 24 de maio. Ocupou um prédio que foi a loja Mesbla, mas ficar para sempre. Está dado. Está dado ao outro. São opções do homem
para ocupar isso com outro escopo, isso é tão vulgar quanto a sede da ao longo da vida. Não há propriedade. Há pensamento. Há de passar ao
prefeitura que está no prédio que era das Indústrias Matarazzo. A indús- outro. Foi isso que eu aprendi trabalhando com o Paulo, usufruindo dele.
tria desistiu de ter aquele prédio para a administração, vendeu para o Fernanda: Este cenário que estamos foi feito para uma adaptação
governo. E o governo comprou sabe para fazer o que? O banco do Estado. de um clássico da literatura nacional. Vocês fizeram um outro cenário de
É que o Banco do Estado foi vendido para o Banco Santander e resolve- um clássico da literatura, “O homem sem Qualidades” do Robert Musil.
ram não vender aquela propriedade e voltou para o Estado. E o governo Eu gostaria que vocês falassem um pouco da relação da plateia com o
transformou em sede da prefeitura. espaço cênico nestas duas peças.

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Bia Lessa: Puxa, bacanérrimo você ter lembrado disso. No Homem Desse expectador que você está falando que era onde a gente grifava a
Sem Qualidades, tinha uma coisa, que vinha da obra do Musil que era a ideia de observação e aqui, de novo, a gente retoma essa ideia de um
observação. A ideia de observação. Alguém que observa a contempora- público muito presente, quase dentro da ação, mas ao mesmo tempo
neidade. Aí o que se criou foi uma arquibancada móvel, lembra Paulo? separa dela. E aqui ainda temos a questão dos fones de ouvido, que foi
Aí essa história é incrível, quero falar do cavalo…Que quando abria a uma coisa que nasceu de uma necessidade real, porque o espetáculo foi
cortina, tinha uma plateia que ficava dentro do próprio Palco e a gente pensado para ser no Centro Cultural do Banco do Brasil, mas não cabia
dava para a plateia um kit fotografia, que eram aquelas câmeras descar- dentro do teatro, então tivemos que pensar em fazer na rotunda, mas
táveis de papelão, binóculos, para que ficasse muito explícito que o que tem um problema de acústica gigantesco, que para a gente resolver ia
a gente estava falando era de fato da observação. necessitar de um dinheiro que a gente não tinha e aí o Márcio Pilow, fa-
E começava o espetáculo, abria aquela cortina e você não tinha es- lou: Bia, e se a gente fizesse com fones de ouvido? Então o que nasceu, a
paço cênico. Depois aquilo ia se afastando e nessa, teve uma coisa muito princípio, como uma necessidade técnica acabou explicitando a questão
bacana, que até eu morro de dor, porque o Paulo pintou o escritório dele, do observador porque você tem a plateia de uma forma coletiva, mas
porque nas paredes tinham os desenhos do Paulo e tinha lá o desenho quando você fornece o fone, você dá a essa plateia de alguma forma uma
do cavalo, que ele fez. Porque na obra tinha um cavalo. E eu falei: “te- individualidade. Como se aquela história estivesse sendo contada para
mos um cavalo, vamos fazer um cavalo”. E como era o cavalo do Paulo cada uma daquelas pessoas dentro do próprio ouvido. Tanto que tem
Mendes? O Paulo fez um imenso retângulo vermelho, que o ator sentava momentos que o Caio, fazendo o Riobaldo, vai para o microfone e fala
em cima, com uma roda na frente e, atrás uma, “roda” sextavada. Então, muito baixinho, porque a gente tem várias formas de narração. Várias
aquela roda trotava. Quando o ator pedalava, aquilo fazia o barulho de formas de se contar. Várias camadas. Então surgiu essa possibilidade de
um cavalo trotando. Era o próprio cavalo. E atrás tinha um buraco, que se trabalhar o som em 4 camadas. Uma que seria na realidade a trilha
ele falava: “Bia, vamos fazer esse cavalo fazer cocô” [risos] e a gente pe- sonora, uma segunda camada que seria dos ruídos e da ampliação do
gava uns repolhos de bruxelas e tinha um ator lá dentro que vira e mexe espaço cênico, a gente está vendo uma coisa crua então há uma ficção
jogava o repolho para fora. E tiveram tantos objetos que foram criados. entre o que se vê e o que se ouve. Uma terceira camada que seria do nosso
Eu não sei se você lembra, Paulo? A gente fazia este espetáculo no cen- inconsciente coletivo, aquelas músicas que a gente conhece mesmo sem
tro Cultural Banco do Brasil do Rio e tinha um teatro pequeno e que na conhecer que fazem parte da nossa alma e a última camada que é a da voz.
hora de montar o espetáculo, o cenário virava o quarteirão. Assim, além A fala no ritmo do Rosa. A forma como as coisas se dão. O que é absolu-
da arquibancada, a quantidade de objetos que tinha, saía ia pela coxia, tamente silêncio e lidar com a escala da voz humana como som, como
abria a porta, ia pelo CCBB e ia até o final do Banco do Brasil, porque no volume. Então o que era uma necessidade técnica, um problema virou
fundo a gente trabalhava um pouco como se estivesse em um grande outra coisa. É meio como se trabalha com o Paulo. Trabalha-se com o
desfile. Então os objetos iam passando. Então, é curioso você falar disso. que se tem. Que terreno é esse. O que se quer. E o que aquilo te provoca.

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A dificuldade talvez seja das melhores coisas que se tem. Facilidade não engraçado este processo. O que me encanta na linguagem do Guimarães,
leva a nenhum lugar. A dificuldade que nos faz pensar. não só a forma como conta, é esse vai e volta, a sobre coisa. Uma lingua-
Este cenário demorou muito tempo. Eu tinha o desejo de fazer um gem arcaica, mas ao mesmo tempo inventiva. A lá Haroldo de Campos.
espaço muito comprido, mas tivemos que ter um espaço cada vez menor. Como ele une isso. E surpreendentemente o que seria um problema,
Foi rico pois a ideia de confinamento, essa sociedade que não está dentro de como encarar isso, do primeiro ao último dia, se via isso na boca das
da sociedade e que é vista por nos de tão perto e ao mesmo tempo tão pessoas de forma tão natural. E você acaba, mesmo sem entender algu-
protegida. Podemos ver como expectador ou podemos entrar dentro mas palavras, entendendo tudo. E mesmo que nada tivesse dado certo,
dela e ver. Mire veja! O Paulo uma vez me disse: a gente não pode ver se a peça fosse uma merda, na verdade foi riquíssimo se debruçar sobre
vendo senão a gente enlouquece. A gente tem que ter alguma defesa. aquilo. E o retorno é muito bom.
Conv. 2: Eu queria chamar atenção que eu achei este cenário incrível PMR: O que eu queria dizer, é que nada, nem o livro é mesma coisa.
e ele me lembrou muito o Teatro Oficina. Essa concepção lá é perene. Nada é a mesma coisa para sempre. Depende de nós. O modo de ver
Muito bonito isso. aquilo, naquele momento interessa ver assim. Você, Bia, fez um trabalho
Bia Lessa: O que eu acho que de fato lembra muito a estrutura do ofi- novo. Tudo é assim. Já me perguntaram qual o objeto da arquitetura, por
cina, mas o que eu acho é que aqui muda a questão de não privilegiar, não que diabos pretende a arquitetura. Ela pretende amparar a imprevisibi-
facilitar o olhar do expectador. Lá no Oficina você não tem essa travessa lidade da vida. Essa coisa de que a arquitetura molda o comportamento
na altura dos olhos. Essa jaula, que de fato interrompe o olhar e faz com A função. É um pretexto para você construir assim. Porém você está
que a pessoa tenha que querer ver. Tem também a coisa do confinamento, amparando a imprevisibilidade da vida. Ali pode-se fazer qualquer coisa.
acho que a ideia espacial, apesar de esteticamente parecer o Oficina, o A nossa vida é um discurso sem fim. Nossa existência é um discurso sem
espaço cênico acabou por propor uma coisa bem diferente do Oficina. fim. É um mistério. Nós não sabemos nada.
O Oficina é um corredor gigante. Aqui é uma jaula. Os atores não podem
sair. Os atores só saem no final do espetáculo.
PMR: Afinal, todo discurso é um confinamento. O escrito é um con- iii. Conversa com Bia Lessa
finamento. Ou tudo está ali. Tem que ter começo e fim, para não ter fim
nunca. O próprio Sertão Veredas não tem fim, com mais de 500 folhas, lá Transcrição de conversa com Bia Lessa no Centro Cultural do Banco
pelas tantas, não tem final. O que é interessante é que nós continuemos do Brasil, em São Paulo, no dia 13.12.2017 às 18:30hs
a dizer. Quando a gente começou a querer montar a adaptação para Grande
Bia Lessa: Aliás, eu lembrei de uma coisa engraçada. Quando eu Sertão: Veredas, minha primeira vontade era chamar um grande escritor
montei a exposição no Museu da Língua, você fez a reforma. E a expo- para fazer este trabalho comigo e para minha surpresa, nenhum dos
sição foi feita com restos da obra que lá estavam. Quero dizer que foi meus grandes parceiros toparam fazer.

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Todo mundo com a visão de que seria algo totalmente impossível. Eu sou muito adepta da ideia de quando trabalhamos com um autor,
Então eu me vi tendo que fazer este trabalho sozinha. Então, neste pro- temos que trabalhar com ele como um colega, e não como um patrão.
cesso de adaptação, eu fiz quase uma não-adaptação. Eu fui selecionando Não temos que advinhar o que Guimarães queria dizer, mas temos que
tudo aquilo que eu entendia que tinha que estar e, paralelo a isto, a ideia encontrar naquilo que ele disse algo que nos toque. O que me interessa
era afastar todos os atores do conceito de representação, porque eu acho não é um intérprete, esta representação. Me interessa a criação. “Que
e continuo achando que o que interessava não era uma representação Julieta é esta que só você pode fazer”.
dos personagens, mas que cada um se colocasse ali dentro. Que eu não Todos os atores estão em cena todo o tempo, fazendo todo o tipo de
tivesse um Caio (Blat) interpretando Riobaldo, mas que eu tivesse o personagem. Plantas, pássaros, pessoas animais. E nós fomos perce-
Riobaldo do Caio. bendo muito rapidamente essa coisa do Guimarães de que o ser humano,
No primeiro dia de ensaio – mostrando fotografias – o que interes- as plantas, os animais, todos têm a mesma importância. Não há uma
sava era isso, era chegar na vida e esquecer a interpretação em teatro. importância maior de um sobre o outro. É tão importante você fazer as
Nossa representação de vida é algo totalmente aristotélica, velha, que- plantas, os cactos, os animais. Tudo era fundamental. E o importante
brada. Eu não queria isso. Na realidade a nossa consciência é uma cons- era “qual é o seu cacto, qual é o seu pássaro”. A ideia deste universo em
ciência envelhecida. E para este trabalho o que eu queria é que os atores que tudo é importante.
entrassem dentro de si. Que fossem espontâneos de novo. Eu acredito Desta vez nós registramos todo o processo. Todos os ensaios. Temos
muito que cada individuo é completamente diferente do outro e que cerca de 150 horas de gravação.
cada interferência que fazemos no mundo artístico, ou não, é a diferença Nós achamos que no universo da representação a tristeza é assim e a
que a gente tem do outro e não a semelhança. Então, o primeiro trabalho alegria é assado. Não. Na vida não é assim. Queríamos nos livrar daquela
era entrar nesta individualidade. Então eu pegava palavras ou frases do imagem de que a representação se afastou da vida. A representação é óbvia.
Guimarães, dava para cada um e dizia: “Você tem dois minutos pra pen- É que o livro começa com o travessão e termina com a palavra travessia
sar, fazer e isto tem que ter uma surpresa”. E a pessoa ficava atrapalhada, e o símbolo do infinito. Então uma das preocupações que nós tínhamos
não sabia o que fazer num primeiro momento, porque não dava tempo era de não ter cena. De uma coisa dar na outra. A ideia do rio caudaloso,
de o raciocínio entrar e então fazia. Em experimentação. Não tinha certo de que a coisa não tem fim. Ela continua e continua. Por isso fizemos um
nem errado. A ideia de romper com limites de radicalizar. E botar a cara espetáculo que era também uma instalação. Então o espetáculo não tinha
a tapa. Algumas pessoas não tinham lido o livro, outras tinham. Não teve começo meio e fim. O conteúdo do livro nos levou a isso.
trabalho de mesa. Eu pegava fragmentos soltos e trabalhávamos, de Além de tudo, fizemos uma preparação física fortíssima, porque eram
forma livre, sem controle. E a partir destes exercícios e do que ia acon- 2,40horas em cena e isso exigia um esforço físico enorme.
tecendo, nós fazíamos uma espécie de fichamento de emoções, gestos e Outra coisa muito trabalhada foi o como criar imprevisibilidade o
coisas que iam acontecendo. tempo todo? Não domesticando os personagens.

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Depois das cenas, dos tons achados era questão de lapidação. Horas e fundo. Um trabalho que idealiza primeiro e perseguem como chegar ali.
horas e horas de ensaios. Aí passamos a ensaiar com os elementos. O ce- Eu sou mais intuitiva. Eu não idealizo. Eu vou tateando.
nário. A questão do cenário era este “enjaulamento”, este confinamento. Conv. 2: E o espaço idealizado era no Sesc mesmo?
Outra coisa para nós era não pensar o sertão como o sertão mineiro, Bia Lessa: Não. Nossa ideia primeira era fazer no CCBB do Rio, mas
ou baiano. Era um sertão de cada um. Como o Guimarães diz: “O sertão por um problema técnico o CCBB propôs que adiássemos. Mas não havia
está dentro de nós”. E por isso o figurino era diferente, mas havia um como parar o processo, então encontramos no Sesc essa possibilidade.
padrão cromático que referenciasse um bando. FSF: O Guimarães tem muito a questão da palavra, o neologismo,
Quando a TV Globo fez a minissérie, eles contaram a trajetória do uma palavra sensorial. Na exposição você trabalhou com isso. Agora no
Riobaldo de maneira cronológica. E eu entendia que a beleza do livro teatro, como você trabalhou aspecto sensorial?
era justamente a trajetória emocional, as memórias. E nós fizemos Bia Lessa: É o Guimarães tem isso, as palavras que ele inventa.
questão de manter a trajetória da memória, assim como no livro, nós Quando ele diz “brisbrisa” é uma brisa outra. Ele trabalha as palavras
fizemos questão de manter a ordem emocional do livro. Não o tempo para que cada um tenha a sua decodificação de cada uma. Isso é lindo.
cronológico. O espetáculo manteve o vai e vem emocional do livro. E Neste sentido o Guimarães é muito rico e um facilitador. Porque é uma
era bonito que a plateia se encatava. E ela não ia embora. Acabava o obra aberta. Eu até acho que só foi possível fazer este trabalho, porque
espetáculo e as pessoas não iam embora. Ficabvam. E eu nunca tive o Riobaldo é todos os homens, é o homem dentro de si, revendo sua
isso na minha vida. trajetória, porque ele vive, porque ele morre, podendo amar o igual a
Quero contar uma história. ele, a linda discussão de gênero, amar um outro homem. É um jagunço
Durante este período que estivemos no Sesc, tinha um portairo in- feio, igual. Como eu amo um outro igual a mim? Essa compreensão que
crível. Um dia ele chegou pra mim e disse: “Dona Bia, eu descobri que aquilo fala de todos os homens.
teve uma minissérie desse espetáculo”. E eu respondi. Sim teve… O Toni FSF: 4: Queria fazer mais duas perguntas. Primeiro eu queria que
Ramos e a Bruna Lombardi…e tal. você falasse da diferença estética entre a exposição do Museu da Língua
Passou uns dias, ele de novo: Dona Bia. A sra. não sabe. Eu descobri e a característica do cenário tão seco como o da peça– instalação? E a
que tem um filme do Grande Sertão.” E eu: “Jura? O filme eu não sabia, outra pergunta é: Na última vez que nos encontramos, no Sesc junta-
que interessante”… Passados mais uns idas ele de novo: “ Dna. Bia, eu mente com o Paulo Mendes da Rocha no Sesc eu te fiz uma pergunta
descobri que tem um livro”! [risos]. É incrível como o Guimarães toca sobre a relação da plateia do Homem sem Qualidades e Grande Sertão:
as pessoas. Veredas. Naquela oportunidade você me disse que em uma era a questão
Conv. 1: E o Antunes? Poderia falar um pouco dele? da observação e no outro o confinamento. O livro tem um interlocutor
Bia Lessa: Eu trabalhei com o Antunes quando eu era muito jovem. que não é personificado. Ele não tem nome, não interfere na história, é
Ele é o meu mestre, mas eu sou o oposto dele. Ele pesquisa muito, vai a “o moço”, é “o senhor”? Porque a opção do confinamento?

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A ideia do confinamento é a ideia de você criar um universo próprio Mas não é como se eles estivessem ali. É uma coisa que se transforma
em que se está contando para o outro. Então eu acredito que ficaria mais tanto que é como se eles se corporificassem. É como se você chamasse
clara a ideia do visitante, de que há um outro que vem de um outro uni- o expectador para fazer dentro de si o que ali está só esboçado. Então de
verso. Como Guimarães diz, “o senhor é um homem circunspecto”; “a alguma forma, sem que eu percebesse, eu continuei sem a coisa de criar
sua inteligência vai me ajudar”. Então, esta primeira ideia do confina- uma imagem. Eu continuei sem ter um cenário. É um não-cenário, é um
mento veio do Paulo (PMR), porque a minha primeira ideia era que a “não-lugar”. A imagem empobrece.
plateia estivesse ali conjuntamente. Mas aos poucos a gente foi vendo
que não, que era importante que a plateia estivesse muito perto porque
queríamos que aquela violência estivesse na cara de cada um, mas que ti- iv. Conversa com Gabriel Villela
véssemos a ideia de universos separados, muito fechados. Então por isso
o confinamento. É separado mesmo. Por mais que seja uma separação Transcrição de conversa com Gabriel Villela, por telefone, em São
de uma pequena gaiola, mas ela até dificultava o olhar. As pessoas pre- Paulo, no dia 25.01.2018 às 15:30hs
cisavam se abaixar para desviar das travessas. Reforçar a ideia do “mire
veja”. Para ver você tem que se esforçar. Você está de fora, mas está ali. GV: Fernanda, peço desculpas pela demora no contato, mas é que eu
E sobre a estética da exposição, é engraçado porque que eu fui fazer raramente acesso facebook. Somente tomei conhecimento de seu con-
a exposição, a primeira coisa que me vinha é que eu não poderia ter ne- tato quando recebi seu e-mail. E eu faço questão de dar um depoimento
nhuma imagem, que qualquer imagem iria empobrecer a ideia do pró- amoroso sobre este grande homem brasileiro.
prio sertão. Por mais linda que fosse, uma imagem como as da Maureen FSF: Que alegria você ter me retornado, Gabriel. Confesso que achei
Bisilliat do sertão, aquilo diria “o sertão é assim”, e eu não poderia fazer que perderia a oportunidade de incorporar um depoimento seu ao meu
isso. Então foi que eu decidi trabalhar só com palavras e com os escom- trabalho. E era um dos cenários que eu mais gotaria de ter um depoi-
bros. E como o museu estava sendo construído eu ia trabalhar com uma mento. Falo isso porque eu tenho a sensação que os cenários de Il Ta-
metáfora simplória Guimarães constrói uma imagem. Então eu queria barro, com exceção de Suor Angelica, são representativos e não inter-
trabalhar com tijolo, cimento, pedra, areia. Coisas que remetessem a isso. pretativos. Mas eu precisava saber de onde vinha esta minha intuição.
E quando eu fui fazer teatro eu tive que enfrentar essa questão. A Paulo Mendes da Rocha, no catálogo de Il Trittico, disse que o cenário de
questão da imagem. Agora eu ia ter que ter imagem. No teatro é neces- Gianni Schicchi foi “o desdobramento de lindos e divertidos desenhos
sária a criação de uma imagem. Então como fazê-la? Uma antropóloga de Gabriel Villela”. Queria saber um pouco sobre isso.
chamada Marina Vanzolini outro dia me disse, que na realidade o es- GV: Paulo Mendes da Rocha é um gentleman, um homem de uma
petáculo não forma imagem. Ele evoca. E eu acho que é um pouco isso. cultura e caráter como poucos que cruzei em minha vida. Generoso.
Chama os bichos, chama o sertão, chama o Riobaldo, chama o Diadorin. Muito generoso. Me escutou com muita humildade, porque na época

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eu também passava por um problema familiar relacionado à herança perspectiva, a mesa em outro ponto de fuga. E esses quadrinhos naifes
e espólio. Então eu pedi a ele que fizesse um cenário inspirado na casa eram a grande ideia do espetáculo. E quando o cenário ficou pronto, em
de minha mãe. Então fiz alguns desenhos, mostrei fotografias. E ele fez. escala maior, mas foi talvez um dos cenários mais lindos que já recebi
E ficou incrível. de presente na minha carreira.
FSF: Como você chegou ao cenógrafo Paulo Mendes da Rocha? FSF: Gabriel, muito obrigada pelos esclarecimentos. Me ajudaram
GV: Paulo Mendes é um gênio e como todo gênio ele tem o dom da muito.
humildade, da escuta. Ele respeitosamente tentou entender qual era GV: Fernanda, por sorte eu estou no interior. Na casa de minha mãe. Eu
o conceito deste corte na fachada da casa da minha mãe, eu expliquei vou fotografá-la e já te mando as imagens. Eu espero que elas possam con-
para ele que eu não tinha muito conhecimento de ópera e que eu queria tribuir ainda mais com o seu trabalho. Também encontrei uma fotografia,
um cenário inspirado nesta coisa de herdeiros que vão depenando e ra- colorida, da encenação. Também te enviarei. Um grande beijo para vc.
pando a casa até deixa-la como Gianni Schicchi, sem nada. Mas foi uma
conversa santa. Este senhor, é um dos mais nobres intelectuais brasi-
leiros do campo artístico, da arquitetura, mas ele é antes de tudo um ser
“abençoado por Deus e feliz por natureza”. Um querido. A memória que
tenho é de conversar com um pedaço de Deus na terra.
FSF: Como foi o processo de criação deste cenário junto ao Paulo
Mendes da Rocha? Pergunto isso, porque você comentou que tinham
referência forte na casa de sua família.
GV: Na verdade, como o Paulo tinha uma equipe, inclusive Vera Ham-
burguer, que foi uma pessoa impressionantemente delicada, doce e ao
mesmo tempo da práxis e tem aquela coisa da dinâmica de ópera, que
é tudo sempre para ontem. De forma que eu não acompanhei muito
bem a construção de fato, o como foi construído. Eu não interferi muito
porque eu fazia a concepção de iluminação e tudo estava filiado também
ao figurino criado por Domingos Fuschinni, que era uma obra de arte a
parte. E que casava com esta arquitetura de um solarzinho mineiro. O
Paulo acompanhava tudo, ele tinha um olhar onipresente. E eu sugeri a
ele esses quadrinhos que tem muito no interior, que tem aquelas pers-
pectivas falsas, pintadas na janelinha. Um fundo falso, o fogão está numa

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Banco de imagens

Fig. A: Estrutura da arquibancada de O Homem sem Qualidades. Fig. B: Carro da delegacia de O Homem sem Qualidades.
Fonte: Jean Luis Leblanc Fonte: Jean Luis Leblanc

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Fig. C: Carro da delegacia de O Homem sem Qualidades. Fig. D: Estandartes de O Homem sem Qualidades.
Fonte: Jean Luis Leblanc Fonte: Jean Luis Leblanc

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Fig. E: Exposição Militar de O Homem sem Qualidades. Fig. F: Exposição Militar de O Homem sem Qualidades.
Fonte: Jean Luis Leblanc Fonte: Jean Luis Leblanc

146
Fig. G: Bilhete de PMR para assistente de cenografia de Fig. H: Detalhe de fixação do assento na estrutura metálica da
O Homem sem Qualidades. Fonte: Jean Luis Leblanc arquibancada de O Homem sem Qualidades. Fonte: Jean Luis Leblanc

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Fig. I: Carro da delegacia de O Homem sem Qualidades. Fonte: Jean Luis Leblanc Fig. J: CRoquis para carro dos livros de O Homem sem Qualidades.
Fonte: Jean Luis Leblanc

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Fig. k: Encenação de Futebol. Foto: Lenise PInheiro Fig. L: Encenação de Futebol. Fonte: Núcleo de memória
Cultural Sesi-SP Foto: Lenise PInheiro

149
Fig. M: Encenação de Futebol. Fonte: Núcleo de memória Fig. N: Encenação de Futebol. Fonte: Núcleo de memória
Cultural Sesi-SP Foto: Lenise PInheiro Cultural Sesi-SP Foto: Lenise PInheiro

150
Fig. O: Encenação de Futebol. Fonte: Núcleo de memória Fig. P: Encenação de Futebol. Fonte: Núcleo de memória
Cultural Sesi-SP Foto: Lenise PInheiro Cultural Sesi-SP Foto: Lenise PInheiro

151
Fig. R: Encenação de
Futebol. Fonte: Núcleo de
memória Cultural Sesi-SP
Foto: Lenise PInheiro

Fig. Q: Encenação de Futebol. Fonte: Núcleo de memória


Cultural Sesi-SP Foto: Lenise PInheiro

Fig. S: Encenação de Futebol. Fonte: Núcleo de


memória Cultural Sesi-SP Foto: Lenise PInheiro

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Fig. T: Encenação de Grande Sertão: Veredas Foto: Lenise PInheiro Fig. U: Encenação de Grande Sertão: Veredas Foto: Lenise PInheiro

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Fig. X: Encenação de Grande Sertão: Veredas Foto: Lenise PInheiro

Fig. V: Encenação de Grande Sertão: Veredas Foto: Lenise PInheiro

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