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- 64.
Orientadores
Ficha catalográfica
II
Sumário
Sumário
III
Sumário
IV
Sumário
V
Sumário
VI
Sumário
Índice de figuras
VII
Sumário
VIII
Sumário
Índice de gráficos
IX
Sumário
Índice de tabelas
X
Agradecimentos
Agradecimentos.
O autor dessas linhas não gosta de escrever agradecimentos. Isso não por que
não sejam devidos, mas por serem sempre injustos: é impossível em uma obra de grande
extensão fazer justiça, reconhecendo o trabalho de todos que apoiaram sua execução.
Neste caso, a situação é ainda mais complicada, considerando que a tese foi o resultado
de uma pesquisa iniciada há mais de trinta anos. Várias pessoas ajudaram nas institui-
ções de pesquisa como no Arquivo Nacional, Biblioteca Nacional e Arquivo do Exérci-
to, um número difícil até de quantificar e impossível de nomear isoladamente.
Para manter uma tradição, no entanto, resolvi mesmo assim fazer uma declara-
ção de dívida a várias pessoas. Começo por minha família, especialmente meu pai, Jair
Homero, professor de história que apreciava assuntos ligados à história militar, mas não
o militarismo e que sempre incentivou a leitura, uma ferramenta indispensável para os
profissionais de nossa área. Foi seguindo o exemplo desse interesse que comecei a ler
cada vez mais sobre o tema e o que me levou a ter meu primeiro emprego, ainda antes
de entrar na universidade. Nesse, trabalhei com a pesquisa histórica sobre uniformes
militares da América do Sul para uma companhia irlandesa que fabricava soldadinhos
de chumbo, mostrando o caminho dos estudos de história material.
Na lista de dívidas, que estou tratando de forma abreviada, devo deixar meu tri-
buto de gratidão aos colegas do Museu Histórico Nacional, especialmente aos da Reser-
va Técnica. Entre todos eles, seleciono o nome de Juarez Guerra, com quem conversei
muito sobre o trabalho de catalogação de armas. Ele ajudou na redação desse texto, pro-
curando, encontrando e dando acesso às peças que precisava para ilustrar alguns pontos
da tese, algumas delas que me lembrava apenas vagamente de existir entre as dezenas
de milhares de objetos da variadíssima e estranha coleção do Museu.
XI
Agradecimentos
Também prestaram uma valiosa ajuda dando acesso às suas armas históricas os
colecionadores Sebastião Oliveira e Carlos Almeida Costa. Ambos possuem excelentes
coleções, com peças que não estão disponíveis em museus oficiais. Sebastião Oliveira,
além da troca de ideias sobre o tema, prestou o imenso favor de desmontar algumas de
suas armas, para poderem ser examinadas para a redação desta tese, algo que só poderia
ser feito em um museu público com imensa dificuldade, nem que seja pelo fato dos mu-
seus, normalmente, não terem as ferramentas adequadas para fazer essa desmontagem.
Voltando ao Museu Histórico, lá trabalhei com o amigo José Neves, também in-
teressado em história militar e com quem mantenho até hoje conversas sobre um tema
que é pouco conhecido e desenvolvido no Brasil. José Neves até auxiliou diretamente
nessa tese, como pode ser visto na fotografia da “Saracura” do mestre Valentim, uma
escultura de bronze que se encontra no Museu da Cidade do Rio de Janeiro e que ele
encontrou e deu acesso durante sua passagem por aquela instituição, há mais de vinte
anos atrás.
Aos colegas do IPHAN agradeço a compreensão por terem convivido com uma
pessoa que trabalha, por opção, com um assunto estranho e por terem aceitado a incor-
poração de algumas ideias na mecânica de trabalho da instituição. Infelizmente não pos-
so estender esse agradecimento a todos os chefes: alguns apoiaram a pesquisa direta-
mente, outros só merecem um “agradecimento” às avessas, por trem abandonado o setor
onde trabalhava – às vezes por anos. Isso deu tempo para a execução das pesquisas.
Nesse número de maus funcionários, não incluo Monica Costa, a quem agradeço por
rapidamente liberar a licença para completar esse trabalho. Isso depois do pedido ter
ficado parado mais de um ano e meio na mesa do chefe anterior, sem resposta, positiva
ou negativa. Coisas do serviço público.
Para encerrar esses agradecimentos, deixo registrada minha dívida com Carlos
Eugênio, por discutir por horas e horas esse assunto tão árido, dando sugestões que en-
riqueceram o trabalho. Também noto minha gratidão para com Flávio Gomes, colega
desde os bancos da graduação, que acolheu a proposta de orientar essa tese tão fora da
XII
Agradecimentos
Há problemas no texto, tudo por minha culpa. Não foram causados por falta de
apoio dos amigos, para quem termino escrevendo: obrigado!
XIII
Resumo
Resumo
Este trabalho faz um levantamento dos modelos explicativos clássicos – isto é, aqueles
que procuraram elucidar de forma geral a história nacional através de sua formação
econômica até a segunda metade do século XIX. A partir desse levantamento, aponta-
mos que ponto normalmente ignorado, mas que não é irrelevante, o papel das forças
armadas como criadores de uma demanda de fornecimento de produtos manufaturados,
levando ao surgimento de vários estabelecimentos especializados no atendimento das
necessidades das forças armadas. Vamos então tratar como algumas dessas instalações
se organizavam até o século XIX, numa situação que pode ser chamada de pré-indústria,
ou seja, quando não havia ainda ocorrido a transição para a fábrica moderna. Mesmo
assim, essas manufaturas militares estiveram à frente do processo de mudança da situa-
ção de manufatura para instalações fabris, com maior ou menor sucesso, na França, In-
glaterra e Estados Unidos. No caso do Brasil, entre essas manufaturas militares, desde o
século XVII, se encontravam vários estabelecimentos, os mais relevantes sendo os
trens, organizações destinadas ao fabrico e armazenamento de equipamentos bélicos, o
maior e mais relevante de todos sendo o do Rio de Janeiro, que se tornaria no Arsenal
de Guerra do Rio de Janeiro. A partir desses elementos podemos traçar uma comparação
entre uma situação pouco estudada, a das manufaturas militares – com base no Arsenal
do Rio –, com a apresentada nos modelos explicativos tradicionais da historiografia
brasileira, centrados em aspectos de econômicos da dependência de uma economia agrá-
ria, baseada em uma mão de obra pouco qualificada, a escrava. A proposta governamen-
tal no Brasil da primeira metade do século XIX, entre outros aspectos, era usar essas
manufaturas para criar uma base de industrialização para o País, seguindo um processo
que foi adotado nos Estados Unidos no mesmo período, mas com resultados muito dife-
rentes para o Brasil.
XIV
Abstract
Abstract
The present thesis makes a study of the classical explicating models of Brazilian history
– that is, those that envision elucidating the national history in general, through the eco-
nomic structures of the country up to the second half of the 19th Century. From this
study, we make a note about a question that usually is ignored, but should not be con-
sidered irrelevant, the role of the armed forces as originators of demands for the provi-
sion of manufactured goods. Those demands resulted in the creation of various manu-
facturing plants specialized in the supply of the needs of the armed forces. From those
starting points we will study how some of those installations organised themselves up to
the 19th century, in a situation that can be called pre-industrial, a moment when the tran-
sition from manufacture to modern industry had not occurred yet. Even so, those army
suppliers were in the forefront of the process of changing the production organization,
from one based in artisanal manufactures to the modern factory. This process had vary-
ing degrees of success in France, United Kingdom and the United States of America. In
the case of Brazil, among the military manufactures there were many army plants, the
most important being the trens, organizations created to make and store military equip-
ment, the biggest of all being the Trem of Rio de Janeiro, that would became the Arse-
nal de Guerra do Rio de Janeiro [Rio de Janeiro Army Arsenal]. From these elements,
we can trace a comparison between a understudied situation, the one of the military
manufactories – concentrating in the Rio de Janeiro Arsenal –, with the one presented
by the traditional explicating models created by the Brazilian historiography, centred in
aspects of economic history of an dependent agrarian economy, based on the use of an
unqualified workforce – the slave labour. The government proposal in the first half of
the 19th century, among other aspects, was to use those military manufactories to create
an industrialization base in the country, following a process that was adopted in the
United States of America in the same period, but with much different results.
XV
Introdução
Sumário
1. Introdução
1.1. Proposta
1.2. Quadro teórico
1.3. Metodologia
1.4. Plano da obra
1.5. Passos tomados
1
Introdução
1. Introdução
Depois de um curto período sem uso militar maior, o grande conjunto de edifí-
cios – que no início do século XX ocupava toda a ponta do Calabouço e boa parte do
bairro da Misericórdia – foi aproveitado em 1922 para ser parte das festividades da Ex-
posição Internacional do Centenário da Independência e parte dessa adaptação incluía a
criação de um Museu Histórico. Este seria o primeiro a ter um caráter genérico no cam-
po com uma abrangência nacional: antes da sua criação já havia alguns museus históri-
cos, como o do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro, particular, ou os museus do
Exército e da Marinha, mas esses últimos eram monográficos, ligados às duas forças
armadas. O Museu Paulista se aproximava muito da proposta do MHN, mas era uma
instituição estadual.
O Museu Histórico, que ao ser criado era muito pequeno, abrangendo apenas
duas salas do antigo complexo do Arsenal, teve em suas origens algumas condicionan-
1
Esse entendimento foi consagrado em 1998, quando o Conselho Consultivo do Instituto do Patrimônio
Histórico e Artístico Nacional (IPHAN) tombou o prédio e acervo do Museu Histórico Nacional, o
prédio sendo considerado como parte da coleção museológica. Ver: BRASIL – Instituto do Patrimô-
nio Histórico e Artístico Nacional. Processo de tombamento 1.392-T-97, Prédios do Museu Histórico
Nacional e Coleções que ali se abrigam, com exclusão da Coleção Bibliográfica. Arquivo Noronha
Santos, IPHAN. (mimeo.)
2
No final do trabalho incluímos um glossário com os termos e conceitos usados na presente tese, estes
estando marcados em itálico no texto.
3
Entende-se manufatura, no sentido estrito, como um local concentrado onde produtos são fabricados a
mão, isto é, sem o uso de máquinas. Difere da oficina por os meios de produção não pertencerem aos
trabalhadores. MARX, Karl. Capital. London, Encyclopaedia Britannica, c. 1952. Edição completa e
comentada p. 164.
2
Introdução
tes que hoje seriam consideradas como exóticas: a formação do acervo por parte de seu
primeiro diretor, Gustavo Dodt Barroso, foi direcionada por suas ideias e pelo poder que
lhe foi concedido pelo presidente Epitácio Pessoa.4
A proposta de criação não foi adiante naquele momento, tendo sido reiterada em
outros textos do mesmo autor, reproduzidos no livro Ideias e Palavras,7 de 1917, pois
Barroso tinha um forte interesse no campo da história militar. Fora o defensor de que o
1º Regimento de Cavalaria passasse a usar um uniforme histórico baseado na Imperial
Guarda de Honra e passasse a ser chamado de Imperial Guarda de Honra,8 o que acon-
teceu justo em 1922, ano das comemorações do centenário da Independência. Naquele
ano ele também lançou, junto com Washt Rodrigues, o livro Uniformes do Exército
Brasileiro,9 obra que ainda hoje é referência sobre o assunto, apesar do mérito disso
recair mais sobre o trabalho de pesquisa e de ilustração de Rodrigues.
Mais tarde, Barroso se tornou um autor prolifico de livros – escreveu 128 deles,
muitos dos quais voltados para a crônica de assuntos bélicos. Não eram obras de história
propriamente dita, misturavam fantasia com fatos, sem citar referências, mas no contex-
4
Ver: BRASIL – Decreto nº 15.596, de 2 de agosto de 1922. Cria o Museu Histórico Nacional e aprova
o seu regulamento. Ver especialmente o artigo 83, que autoriza o recolhimento de acervos de outras
instituições federais.
5
ABREU, Regina. A fabricação do imortal: memória, história e estratégias de consagração no Brasil.
Rio de Janeiro: Lapa: Rocco, 1996. pp. 107 e segs.
6
DUMANS, Adolpho. A ideia de Criação do Museu Histórico Nacional. Rio de Janeiro: Gráfica Olímpi-
ca, 1947. p. 98.
7
BARROSO, Gustavo. Ideias e Palavras. Rio de Janeiro, Leite Ribeiro e Maurilio, 1917.
8
Id. pp. 27 e segs. Este é um caso explícito de construção de uma memória, já que a Imperial Guarda de
Honra nunca foi uma tropa do exército, pertencendo à casa Imperial, até sua extinção em 1831, na
Regência. Além disso, o uniforme histórico da unidade é de 1825, não tendo relação direta com a In-
dependência. Finalmente, a unidade nunca foi de dragões, infantaria montada, sendo de cavalaria pe-
sada – a única do tipo a existir no Brasil.
9
BARROSO, Gustavo Dodt & RODRIGUES, Washt. Uniformes do Exército Brasileiro. Rio de Janeiro:
Imprensa Nacional, 1922.
3
Introdução
to da época tinham forte apelo popular por sua temática extremamente ufanista e nacio-
nalista. Nesse sentido, não podemos deixar de mencionar que Gustavo Barroso foi um
dos ideólogos do integralismo e chefe da milícia do partido, além de ser o maior autor
do antissemitismo brasileiro. Foi o tradutor da edição brasileira do folheto “Os protoco-
los dos sábios do Sião”, 10 um falso plano judeu para domínio do mundo, forjado no iní-
cio do século XIX na Rússia – isso além de escrever outras obras nessa linha. Apesar
disso, e de suas ligações com os políticos da “República Velha”, ele teve uma imensa
resiliência política, conseguindo sobreviver na direção do Museu mesmo em face de
fortes mudanças do poder, como a Revolução de 1930, a Intentona Integralista de 1938
e a redemocratização de 1945, perdendo seu cargo por apenas curtos períodos e efeti-
vamente permanecendo na direção da Instituição até sua morte, em 1957.
10
OS PROTOCOLOS dos Sábios do Sião. São Paulo: Agencia Minerva. 1936.
11
O museu foi recriado quarenta anos depois, com um grande número de peças devolvidas pelo MHN.
4
Introdução
abrangência temporal e de qualidade. Esse material não é o mais o centro das exposi-
ções há décadas e as coleções como um todo hoje são muito variadas, incluindo desde
objetos de uso cotidiano, como eletrodomésticos, até ícones tradicionais da museologia
clássica, ligados aos “próceres nacionais” e aos grandes eventos. Dessa forma, o acervo
formado anteriormente à década de 1960, não poderia – nem deveria – ser descartado e
ignorado e o autor desse texto foi designado para estudar e catalogar a coleção de arma-
ria, que hoje se encontra quase toda em Reserva técnica, isto é armazenada, mas que
precisava ser processada para usos eventuais tendo em vista. Isso se fazia mais necessá-
rio quando vemos que Gustavo Barroso tinha formado o acervo visando uma determi-
nada posição historiográfica, como colocamos acima, em ocasiões falseando a interpre-
tação sobre as peças museológicas. Um exemplo disso são as peças das Guerras Holan-
desas usadas por Barroso em suas exposições. Estas incluíam algumas que ele sabia que
não eram do período, mas que foram “reclassificadas” como sendo pertinentes ao as-
sunto, para enriquecer as exposições do tema, caro à historiografia militar nacional.12
Isso já era percebido na época da fundação do Museu, como vemos na crítica de Calix-
to, na imagem abaixo (Figura 1). Para o museu, era preciso revisar a catalogação do
acervo.
12
Para uma discussão disso, ver o trabalho do autor da presente tese: Armas que documentam as Guerras
Holandesas: revisitando um texto dos Anais e uma coleção do Museu Histórico Nacional. Anais do
Museu Histórico Nacional n° 32, 2000.
5
Introdução
Outro aspecto que nos levou a conceber o tema da presente tese é o conjunto ar-
quitetônico do Museu – como dissemos, ele foi o antigo Arsenal de Guerra do Rio de
Janeiro, depois “da Corte”. Os edifícios que existem hoje, com 19.000 metros quadra-
dos, apesar de ocuparem uma imensa área (Figura 2), são apenas uma parcela reduzida
daqueles que compunham o conjunto original (ver Figura 42), já que muitos dos seus
prédios foram demolidos nas obras de preparação da Exposição Comemorativa do Cen-
tenário da Independência, para criar espaços abertos para ela.
13
No Museu há um canhão de alma oblonga, para disparar duas balas ao mesmo tempo, de invenção de
um operário do Arsenal, José Francisco Barriga, em 1856. CASTRO, Adler Homero Fonseca de &
ANDRADA, Ruth Beatriz S. Caldeira de. O pátio Epitácio Pessoa: seu histórico e acervo. Rio de
Janeiro: Museu Histórico Nacional, 1993 (mimeo). Peça nº 015884 (ver Figura 14).
6
Introdução
14
Esta tese foi inicialmente desenvolvida por POMER, León. A Guerra do Paraguai: a grande tragédia
rio-platense. São Paulo: Global, 1981 (primeira edição em espanhol de 1965). O livro mais difundi-
do no Brasil a defender esse ponto de vista é: CHIAVENATTO, Júlio José. Genocídio americano: a
Guerra do Paraguai. São Paulo: Brasiliense, 1987. A primeira edição da obra é de 1979 – houve, pe-
lo menos, 32 edições.
7
Introdução
Desta forma, a presença militar era certamente era uma questão presente e im-
portante no Brasil até a segunda metade do século XIX. Esta questão se torna mais visí-
vel quando se percebe que a percentagem de participação militar na população acima
citada desconsidera as crianças (abaixo de 14 anos), idosos (homens com mais de 50
anos), todas as pessoas de sexo feminino e os escravos. Levando essas parcelas em con-
ta, temos uma cifra em que um em cada quatro ou cinco adultos livres do sexo masculi-
no estava ligado à atividade militar. Pessoal que tinha que ser suprido de alimentação,
uniformes, armas e munições, mesmo que isso fosse feito de forma precária, pois de
outra maneira não teriam efetividade alguma como força militar – e a própria história
nacional, com seus vários conflitos, prova que o exército funcionava bem o suficiente
para garantir a existência do País.
Notamos que o papel dos militares com a sociedade é um ponto central de al-
guns estudos sobre a história recente do Brasil, em termos de intervencionismo dos mi-
litares, 18 mas esses se preocupam com a questão política, uma visão tradicional da histó-
ria. A “nova história militar”19 tem uma aproximação mais ampla, em se tratando do
efeito dos militares na sociedade como um todo e vice-versa. Consideramos essa apro-
15
Frisamos que aqui estamos falando em termos de acumulação do capital, algo que é restrito à iniciativa
privada.
16
NOGUEIRA, Shirley. Razões para Desertar: a institucionalização do Exército no Grão-Pará no últi-
mo quartel dos setecentos. Belém: UFPA, 2000. (Dissertação de mestrado). p. 59. Dados de uma sé-
rie de 1784-1794.
17
MAPA da força militar das províncias, incluindo-se o Rio de Janeiro. Sl [182_]. Supostamente 1825.
Mss. BN. II-30,28,001.
18
Há uma grande bibliografia sobre o tema, que foge ao nosso trabalho. Apesar de ser uma obra antiga,
pode-se consultar o levantamento crítico feito Edmundo de Campos: CAMPOS, Edmundo de. A Ins-
tituição Militar no Brasil. Revista Brasileira de Informação Bibliográfica em Ciências Sociais-BIB.
Rio de Janeiro, n. 19, 1.º semestre de 1985. pp. 5 e segs.
19
A nova história militar propõe-se a trabalhar com outros aspectos do envolvimento dos militares com a
sociedade que não o estudo das ações de combate. O termo se tornou popular por meio de dois li-
vros: BARATA, Manuel Temudo & TEIXEIRA, Nuno Severiano. Nova história militar de Portu-
gal. Lisboa: Círculo de Leitores, 2004 (5 vols.) e, do mesmo ano, a obra: CASTRO, Celso; IZECK-
SOHN, Vitor; KRAAY, Hendrik. Nova história militar brasileira. Rio de Janeiro: Editora FGV,
2004. Não simpatizamos com o uso do termo, pois o mesmo teria sua definição baseada em um outro
conceito, qual seja, uma oposição a uma “velha história militar”, não tendo, portanto, significado por
si. Preferimos a prática inglesa, que chama o mesmo conceito de história social da guerra. A expres-
são, contudo, já se popularizou no uso da historiografia brasileira.
8
Introdução
ximação importante, pois é evidente que não se pode pensar o papel das forças armadas
como uma questão específica ou limitada aos períodos de conflito armado ou apenas ao
campo político. Tropas, equipamentos, fortificações e belonaves tinham que existir e ser
mantidas mesmo quando não havia uma guerra em andamento e isso envolvia um imen-
so aparato fiscal e logístico que não podia ser criado a partir do nada quando era neces-
sário. Há mesmo todo um campo de pesquisa, o ligado à teoria da “Revolução Militar”,
que aponta que a necessidade dos monarcas de obterem o monopólio da violência legí-
tima e a criação de exércitos permanentes e sua infraestrutura teria sido o elemento fun-
damental na formação dos estados nacionais.20
A ideia da Revolução Militar não se resume a isso, mas cabe apontar que antes
do período moderno (1452-1789) havia uma situação de extrema precariedade, na qual
os grandes proprietários de terras – e não os governos centrais – eram responsáveis por
todos os aspectos de sustento das forças envolvidas em uma campanha. A partir de en-
tão houve um processo de crescente envolvimento dos governos na montagem de es-
quemas em que a administração central assumia essas responsabilidades, inicialmente
com o fornecimento das munições, depois das armas, que passaram a ser padronizadas,
assim como o equipamento e a alimentação. Isso até chegar ao ponto do uso de fardas,
roupas uniformizadas, fornecidas pelo governo.
20
Para a questão do monopólio da violência, ver: WEBER, Max. Ensaios de Sociologia Rio de Janeiro:
Ed. Guanabara, 1982. p. 301 e segs. Sobre a revolução militar: ROBERTS, Michael. The Military
Revolution, 1560-1660. Belfast: Queen’s University, 1956.
9
Introdução
armadas produzissem equipamentos idênticos. Tal proposta era complicada por causa
dos problemas que isso implicava: não havia sequer unidades de medidas padronizadas
– o sistema métrico data da Revolução Francesa, antes disso cada país, às vezes cada
região de um mesmo país, usavam suas próprias medidas, incompatíveis com as dos
outros. Outra solução, que teve muita importância, foi a de concentrar a produção de
artigos militares em instalações manufatureiras governamentais, os Arsenais, que passa-
ram a adquirir grande importância em todos os países.
Há alguns trabalhos que tratam da história corporativa das instituições fabris mi-
litares, entre elas a Fábrica de Ferro de Ipanema (SP), administrada pelo Exército, sendo
um dos assuntos mais pesquisados, 21 mas a complexa rede das organizações de produ-
ção de artigos militares não é muito conhecida. Além das conhecidas Fábrica de Ferro e
Fábrica de Pólvora do Rio de Janeiro (inicialmente no Jardim Botânico, na Corte, de-
pois no município de Magé), tinha havido um estabelecimento de fabricação de Pólvora
em Salvador, no século XVIII 22 (ver Figura 3), sendo uma instituição que, ate onde sa-
bemos, não é citada em nenhum trabalho que trata da história da economia colonial, um
ponto importante, quando lembramos que a pólvora era um dos itens usados no escam-
bo de escravos na África.
21
Podemos citar as obras de FELICÍSSIMO Jr. J. História da Siderurgia de São Paulo, seus persona-
gens, seus feitos. São Paulo: ABM, 1969. E SANTOS, Nilton Pereira dos. A Fábrica de Ferro de
Ipanema: economia e política nas últimas décadas do Segundo Reinado (1860-1889). Dissertação de
Mestrado. Universidade de São Paulo, 2009.
22
PLANTA, Perfil, fachada e a metade do telhado da casa, em que se fabricou a pólvora na Cidade da
Bahia. 1751. Mss. Arquivo Histórico Ultramarino (AHU), Lisboa. Cópia disponível no Arquivo do
IPHAN.
10
Introdução
de Arsenal de Marinha em 1714 – era uma das duas instalações do gênero em todo o
Império Português, o outro arsenal naval sendo o de Lisboa. 23
23
SELVAGEM, Carlos. Portugal Militar: compêndio de história militar e naval de Portugal, desde as
origens do estado Portucalense até o fim da Dinastia de Bragança. Lisboa: Imprensa Nacional-Casa
da Moeda, 1991. p. 467. Deve-se dizer que havia outras instalações que construíam navios no Impé-
rio Português, como em Goa ou em outras capitanias do Brasil, mas essas não tinham o status de Ar-
senal.
24
Há um trabalho que trata tangencialmente do Arsenal de Guerra do Pará, sob o ponto de vista dos Afri-
canos livres: BEZERRA NETO, José Maia. O africano indesejado. Combate ao tráfico, segurança
pública e reforma civilizadora (Grão-Pará, 1850-1860). Afro-Ásia, nº 44, 2011.
25
Deve-se dizer que o Arsenal de Pernambuco é um dos com mais trabalhos acadêmicos, podendo-se
citar a dissertação de mestrado: CATARINO, Acácio José Lopes. Da oficina ao Arsenal: Estado e
redefinições urbanas no limiar da descolonização. Recife: UFPE, 1993. De forma mais resumida,
também há: VIEIRA, Hugo Coelho. Aprendizes castigados: a infância sem destino nos labirintos do
arsenal de guerra - 1827-1835. https://goo.gl/LwvuJa (acesso em outubro de 2015).
26
Há um trabalho interessante sobre os aprendizes menores do Arsenal de Mato Grosso: CRUDO, Matil-
de Araki. Infância, trabalho e educação : os aprendizes do Arsenal de Guerra de Mato Grosso
(Cuiabá, 1842-1899). Campinas: Unicamp, 2005. (tese de doutorado).
27
REPÚBLICA Rio Grandense – Regulamento para a administração geral do Comissariado de víveres e
transportes do exército republicano Rio-Grandense. Título II. Anais do Arquivo Histórico do Rio
Grande do Sul. Porto Alegre, 1980. vol.V. Porto Alegre: Instituto Estadual do Livro, 1981. 5. Cole-
ção Alfredo Varela. Correspondência ativa. p. 69 e segs.
28
PLANTA, Profil (1751), op. cit.
11
Introdução
As obras de maior fôlego tratando das manufaturas do governo que existem fo-
ram escritas há muito tempo, seguindo padrões que hoje não se adequam à norma aca-
dêmica. É o caso da obra de Juvenal Greenhalgh, 31 um oficial que tratou do Arsenal de
Marinha do Rio de Janeiro, escrevendo mais uma crônica do que um trabalho de caráter
histórico e mesmo assim, com falhas e lapsos de informação. Outra obra sobre arsenais
é a de Pimentel Winz, a História da Casa do Trem, 32 que trabalha com a descrição dos
fatos em torno do conjunto arquitetônico do Museu Histórico Nacional e suas proximi-
dades, usando uma grande quantidade de fontes – o livro tem 677 páginas, justamente
por causa da reprodução integral de dezenas de documentos.
Nenhum dos dois livros acima procura fazer uma interpretação da história das
instalações inseridas em um contexto maior, tanto em termos de história regional ou
nacional. Também não fazem uma crítica sobre os conceitos universalmente aceitos pela
29
Os laboratórios Pirotécnicos do Castelo e do Campinho (originalmente, a Oficina de Foguetes), assim
como a Fábrica de Armas da Conceição foram subordinados ao Arsenal de Guerra do Rio de Janeiro.
Para um estudo da Oficina de Foguetes, há nosso trabalho: Os primórdios da Indústria aeroespacial
no Brasil – o foguete de Halle do Museu Histórico Nacional. Anais do Museu Histórico Nacional
n° 34, 2002.
30
Alice Canabrava cita os decretos de 13 de maio de 1810, 12 de novembro de 1811 e a carta régia de 24-
1-1812, que tratam da Fábrica de Canos de Espingarda, CANABRAVA, A. P. Manufaturas e indús-
tria no período de D. João VI no Brasil. IN: PILLA, Luiz (org.). Uma experiência de intercâmbio
cultural. Porto Alegre: Universidade do Rio Grande do Sul, 1963. p. 166. Enquanto Saint-Hilaire tra-
tou brevemente da Fábrica de Armas de São Paulo. SAINT-HILAIRE, Augusto de. Viagem à Pro-
víncia de São Paulo e resumo das viagens ao Brasil., Província Cisplatina e missões do Paraguai.
São Paulo: Livraria Martins, 1972. p. 163. Mas os dados sobre essas instituições são sumaríssimos.
Ver também: CANABRAVA, op. cit.
31
GREENHALGH, Juvenal. O Arsenal de Marinha do Rio de Janeiro na História: 1763-1822. Rio de
Janeiro: Editora a Noite, 1951. Fazemos a ressalva que só depois de concluída nossa pesquisa toma-
mos conhecimento da obra: MALVASIO, Ney Paes Loureiro. Distantes estaleiros: arsenais de ma-
rinha e a reforma naval pombalina. São Paulo: Paco editorial, 2012.
32
WINZ, Pimentel. História da casa do Trem. Rio de Janeiro: Museu Histórico Nacional, 1962.
12
Introdução
1.1 Proposta
Conforme escrito acima, ainda não foi feito um estudo aprofundado sobre as ins-
talações fabris/manufatureiras do governo, pelo menos no que tange ao século XIX.
Entretanto, o número delas era muito grande – no levantamento que fizemos, apenas
tratando das instalações diretamente administradas pelas forças armadas, essas excedem
o número de vinte, algumas de porte muito grande. Esse número não inclui as empresas
civis relacionadas diretamente ao suprimento da atividade militar, mas que não eram
administradas pelas forças armadas, como as Fábricas de Armas das províncias e até
instalações que seriam consideradas inteiramente privadas, mas que se atrelavam a um
projeto de incentivo industrial do governo. Um exemplo dessas seriam as manufaturas
de algodão, as quais receberiam incentivos na forma de compras obrigatórias de tecidos
para as tropas.33
Outro problema desta temática, além de sua complexidade, é sua extensão cro-
nológica: o papel do governo na manufatura de artigos militares se iniciou, até onde
podemos constatar, com a fundição de canhões de Olinda, que funcionou naquela cidade
nas primeiras décadas do século XVII. 34 Apesar daquela instalação não ter sido bem
33
PORTUGAL – Alvará de 28 de abril de 1809. Isenta de direitos as matérias primas do uso das fabri-
cas e concede outros favores aos fabricantes e da navegação Nacional. Inciso III: “Todos os farda-
mentos das minhas Tropas serão comprados ás fabricas nacionais do Reino, e ás que se houverem de
estabelecer no Brasil”.
34
MORENO, Diogo de Campos [suposto autor]. Livro que dá razão ao Estado do Brasil. Rio de Janeiro,
Instituto Nacional do Livro, 1969. Edição fac-similar de manuscrito de 1612, sem numeração de pá-
ginas.
13
Introdução
sucedida, não houve uma solução de continuidade na atividade como um todo: há men-
ções à existência de Casas do Trem ao longo dos séculos XVII e XVIII, bem como a
outras instalações, como a já citada Fábrica de Pólvora de Salvador. O marquês de
Pombal implantou no Brasil uma rede de trens, com instalações no Rio de Janeiro, Ba-
hia, Pernambuco e Pará. Dessas bases, o esforço fabril das forças armadas continuou a
ser importante até a década de 1970.
Desta forma, tornava-se óbvio que um estudo que procurasse abarcar em pro-
fundidade toda a complexidade da história das manufaturas e fábricas do exército estaria
fadado ao fracasso, devido à complexidade e extensão do tema. Era necessário estabele-
cer recortes temporais e espaciais que permitissem uma análise de fenômenos nacionais
a partir de estudos mais objetivos, refletidos em um tema mais limitado, o Arsenal de
Guerra.
35
BRASIL – Laboratório Pirotécnico do Campinho. Relatório da Diretoria do laboratório Pirotécnico do
Campinho relativo ao ano de 1872. Augusto Fausto de Souza, Capitão Diretor Interino. Rio de Ja-
neiro, 13 de fevereiro de 1873. Mss. ANRJ, GIFI OI 5B 267.
14
Introdução
cumentação sobre o Arsenal de Guerra, mesmo com todas as suas falhas, parecia-nos
que a escolha dessa instalação específica parecia ser óbvia, constituindo-se assim um
primeiro recorte dentro do conjunto de manufaturas militares.
Sendo assim, e considerando que o fundo documental mais rico que encontra-
mos é o da série Arsenal de Guerra do Arquivo Nacional (IG7) e que este fundo concen-
tra-se no período posterior à chegada da família Real e, mais especificamente, após a
criação da Junta da Fazenda dos Arsenais, Fábricas e Fundição, pelo alvará de 1º de
março de 1811, nossa opção foi escolher o ano de 1808 como o momento inicial de nos-
sa pesquisa no que tange especificamente ao Arsenal. Isso permite trabalhar com uma
situação onde o País ainda se encontrava no período colonial tanto em termos formais
como políticos.
O recorte final seria um problema mais complexo, pois há uma série de fatos
marcantes que aconteceram do Brasil que poderiam ser usados como marcos delimita-
36
SILVA, Crispim Teixeira, Sargento Mor Intendente. Relação das Obras, Munições e mais Petrechos
que se tem feito no Trem de S. Majestade Fidelíssima do Rio de Janeiro, no tempo Governo do Il.mo e
Ex.mo Sr. Marquês do Lavradio Vice Rei e Capitam General de Mar e Terra do Estado do Brasil,
continuado de 31 de outubro de 1769, até 31 de Agosto de 1776. Mss. Coleção Particular.
15
Introdução
Os motivos para a escolha de um período tão amplo são diversos, mas um dos
principais é o relativo à base documental. Trabalhar com um período mais curto impli-
caria em fazer um estudo não tão completo quanto o consideraríamos desejável, já que a
própria complexidade administrativa do Arsenal de Guerra aumentou ao longo dos
anos, com uma crescente produção de documentos que esclarecem a forma de funcio-
namento do sistema. Na verdade, ao longo da redação desta tese vimo-nos forçados a
tratar de assuntos vários de períodos anteriores ao recorte acima, para poder contextua-
lizar o tema, especialmente quando falamos nos termos de nossas comparações.
O ano de 1864 parece ser uma escolha necessária. Por um lado, a produção de
material bélico cresceu de forma exponencial a partir daquele ano, de forma que seria
complicado trabalhar com o que aconteceu durante o conflito (1865-1870) – este pode-
ria ser, por si, o objeto de uma dissertação de mestrado ou mesmo um trabalho de dou-
torado, pela complexidade dos acontecimentos e seus efeitos na sociedade brasileira.
O ano de 1864 trás também outros acontecimentos relevantes, como o fim defi-
nitivo do uso de escravos no estabelecimento fabril, se adiantando em alguns anos no
que ocorreu no resto da sociedade brasileira e mesmo com relação ao caso de outras
manufaturas do governo, como a Fábrica de Pólvora, que continuou a usar cativos na
sua força de trabalho por mais alguns anos. 37
37
BRASIL – Arsenal de Guerra. Relação nominal dos escravos e escravas da nação sujeitos ao Arsenal
de guerra da Corte. Arsenal de Guerra da Corte, escritório da 1a Seção. Major Joaquim Jerônimo
Barrão, 1º ajudante. Rio de Janeiro, 23 de julho de 1865. Mss. ANRJ. IG7 27.
16
Introdução
Consideramos de vital importância para o trabalho uma análise dos modelos ex-
plicativos da economia brasileira na historiografia, com relação a uma manufatura no
período cronológico relacionado. Como foi dito, esse é um momento que é visto como
um “hiato”, entre um suposto término do artesanato colonial, em 1808 e um surgimento
de uma indústria brasileiro, a partir da tarifa Alves Branco (1844), sem ter havido mu-
danças sérias em termos de economia com relação à prática colonial, apesar de todos os
problemas que essa premissa traz. Consideramos que entender os modelos clássicos
tendo em vista nosso objeto de pesquisa torna-se um dos objetivos a serem alcançados,
tendo em vista as incongruências que se observam mesmo em uma análise sumária do
tema.
38
Este termo é usado por: PRADO Júnior, Caio. História Econômica do Brasil. São Paulo: Brasiliense,
1977. p. 257.
39
LISBOA, José da Silva. Observações sobre a franqueza da indústria, e estabelecimento de fábricas no
Brasil. Brasília: Senado Federal, 1999.
17
Introdução
A questão teórica tinha, portanto, mais valor do que os trabalhos empíricos indu-
tivos, que partiam do levantamento dos dados para montar uma visão mais compreensi-
40
SOARES, Luiz Carlos. A manufatura na formação econômica e social escravista no sudeste : um estu-
do das atividades manufatureiras na região fluminense, 1840-1880. Niterói: UFF, 1980. (Disserta-
ção de mestrado).
41
id. p. 2.
42
id. pp. 2-3.
18
Introdução
A nosso ver, a questão teórica adquire outro ponto de vista – a questão do de-
senvolvimento ou aplicação de uma teoria específica nunca foi primordial nas pesquisas
desenvolvidas. O problema que se colocava inicialmente e que nos levou aos estudos
foi, como colocado anteriormente, uma exigência do trabalho no Museu Histórico Naci-
onal, que demandava uma pesquisa empírica. Esta era voltada para a busca de respostas
a perguntas práticas e de uso imediato, sobre a história institucional do Museu, de seu
prédio e da formação de uma coleção específica, a das armas.
Considerando o que foi colocado acima, o método comparativo nos parecia ser o
mais adequado para realizar um trabalho que processasse de forma sistemática o materi-
al que já tinha sido recolhido, bem como o que seria obtido nas pesquisas específicas do
doutorado. A razão dessa escolha pode ser dita que foi oriunda de uma perspectiva tra-
dicional na abordagem da história econômica, que sempre se valeu de estudos compara-
tivos para a montagem de seus modelos teóricos, desde pelo menos o trabalho de Adam
Smith, A riqueza das nações, de 1776, onde ele procurava explicar uma dada conjuntura
em face da situação de outros países. É claro que esses estudos não são propriamente de
história comparada, tal como a entendemos hoje, mas podem ser considerados como
precursores do método.44
43
OLIVEIRA, Geraldo de Beauclair Mendes de. A pré-indústria fluminense: 1808/1860. São Paulo:
1987. (Tese de doutorado). pp. 6 e segs.
44
Deve-se dizer que os estudos de história econômica que faziam comparações baseavam-se, muitas
vezes, em um preconceito explícito, criando uma “escala evolutiva”, de economias menos complexas
Continua –––––––
19
Introdução
Não cremos que caiba aqui uma discussão maior sobre a evolução da historio-
grafia que trabalha usando uma forma ou outra de comparação econômica.45 Contudo é
necessário apontar que na histórica econômica brasileira a comparação foi um elemento
de grande relevância, a partir de uma pergunta simples: por que o Brasil e os Estados
Unidos, partindo de bases semelhantes – ou até melhores para o país sul-americano,
como coloca Roberto Simonsen 46 – não desenvolveu uma sociedade industrializada no
século XIX?47 Ou seja, partiu-se de um problema acadêmico específico, sincrônico –
isto é, uma situação ocorrendo em dois países em um mesmo período histórico –, para
se tentar obter uma explicação para a situação contemporânea do Brasil na época em
que os livros foram escritos, meados do século XX, quando o País estava efetivamente
se industrializando depois de um período de atraso.
Outras pesquisas não adotaram esta opção metodológica, sendo baseados em li-
nhas sociológicas, buscando uma lei geral, um “sentido da colonização”,48 sem se fun-
damentarem, contudo, em uma pesquisa empírica profunda. Tal tipo de trabalho, abran-
gendo todo o território brasileiro em trezentos anos de história, seria extremamente difí-
cil de realizar, se levarmos em consideração o volume de informações que seria neces-
Continuação–––––––––––
para as mais avançadas, em um caminho unidirecional de desenvolvimento para um sistema visto
como o ideal, fosse este último um modelo utópico ou a própria sociedade ocidental contemporânea,
visão que era – ainda é – comum na historiografia ocidental.
45
Para uma discussão da história do método comparativo na história econômica, ver: BARROS, José
d’Assunção. História Comparada. Petrópolis: Vozes, 2014. pp. 8 e segs. e MAIER, Charles S. La
historia comparada. Studia Historica Contemporanea. Vol. X-XI (1992-93). pp. 11-32
46
SIMONSEN, Roberto C. Evolução industrial do Brasil e outros estudos. São Paulo: Companhia Edito-
ra Nacional, 1973. pp. 6 e segs.
47
Para outros autores que colocam essa pergunta, ver: LIMA, Heitor Ferreira. História político-
econômica e industrial do Brasil. São Paulo: Companhia Editora Nacional, 1973. pp. 271-272. e,
mais conhecido, FURTADO, Celso. Formação Econômica do Brasil. São Paulo: Companhia Editora
Nacional: Publifolha, 2000. p. 106.
48
PRADO Júnior, op. cit. Para o autor, o primeiro a desenvolver o tema, haveria uma síntese do caráter
geral da economia brasileira, que seria a exploração de recursos naturais em proveito do comércio
europeu. p. 102.
20
Introdução
Sendo assim, queremos deixar claro alguns dos sentidos seguidos em nossa pes-
quisa. Sem nos propormos a fazer um trabalho de histórica econômica, usando a termi-
nologia e metodologia específica da área, estudamos uma unidade manufatureira inseri-
da em um contexto em que, pelos modelos teóricos, ela não deveria existir.
Essa proposta resultou de uma pesquisa tradicional, buscando levantar nos fun-
dos documentais existentes as informações sobre a organização militar do Arsenal de
Guerra, através de suas especificidades, a partir de uma perspectiva de história instituci-
onal.50 Tratamos de sua organização, funcionamento, quadro funcional e, mais impor-
tante, a demanda que levou à sua existência e o resultado de seus trabalhos: os produtos
militares como uma parte dos mecanismos que o Governo tinha para assegurar sua exis-
tência. Também consideramos relevante à questão do quadro de operários, pois o Arse-
nal não era apenas uma manufatura, mas também era uma instalação inserida em um
universo onde a escravidão era dominante, a instituição tendo, portanto, que se adequar
à situação reinante, apesar desta estar em alteração, isso sendo bem evidente no caso do
Arsenal.
49
Há várias obras nesse tema. Uma recente é: CALDEIRA, Jorge. História do Brasil com Empreendedo-
res. São Paulo: Mameluco, 2009.
50
No sentido de campo que trabalha com “a análise histórica das instituições que integram a organização
administrativa do estado”. PORRAS, Juan Daniel Flórez. Guía Metodológica para las investigacio-
nes de história institucionales : modelo de orientación general. Bogotá: Alcadía Mayor de Bogotá,
2005. p. 35.
21
Introdução
da metodologia da história comparada, nosso objetivo era observar até que ponto a ins-
talação manufatureira do Arsenal se encaixa no modelo tradicional da economia escra-
vista no Brasil.
Nesse ponto, deve-se dizer que a historiografia dá uma grande relevância aos es-
critos e ações do Visconde de Cairu,51 um ardente defensor do liberalismo econômico,
que seria o representante intelectual de uma elite que teria retardado a industrialização
do País,52 este sendo um modelo que deve ser discutido, pois, apesar da influência do
visconde na política, o que ele defendia não se encaixa, pelo menos em parte, em uma
realidade observável nas ações do ministério da guerra, tal como já colocamos anteri-
ormente.
Sendo assim, fizemos, em parte, fazer uma comparação sobre uma realidade
palpável e os modelos teóricos tradicionais, discutidos no primeiro capítulo, para verifi-
car a validade do mesmo, ressalvando que o objetivo do trabalho não é elaborar a ques-
tão de forma de uma nova teoria ou modelo explicativo, mas sim centrar-se em eventos
concretos. Ou seja, a questão teórica, ao contrário do comentado por Soares mais acima,
não é um objetivo em si, apenas uma ferramenta analítica.
Mais tarde, no século XIX, o caso dos Estados Unidos, baseado em técnicas in-
troduzidas pelos franceses no século anterior, adquire maior importância, pois lá o papel
51
LISBOA, op. cit.
52
Entre outros, ver: ANDRADE, Rômulo Garcia de. Burocracia e economia na primeira metade do sécu-
lo XIX (a Junta de Comércio e as atividades artesanais e manufatureiras na cidade do Rio de Janei-
ro: 1808-50). Niterói: UFF, 1980. (Dissertação de mestrado). pp. 58-60.
53
PORTUGAL. Alvará de 28 de abril de 1809, op. cit.
22
Introdução
das forças armadas no desenvolvimento de novas técnicas fabris é marcante, pela neces-
sidade de se equipar forças de centenas de milhares de homens. Mesmo considerando
sua proximidade cronológica, o modelo fabril norte-americano não foi adotado pelo
Exército Brasileiro, tendo havido um conflito básico de entendimento de como estas
manufaturas deveriam funcionar.
54
OLIVEIRA, op. cit. pp. 6 e segs.
55
Trata-se de “uma sucessão de trabalhos que dependem um dos outros, até ao acabamento do produto
fabricado e à operação mercantil”, mas sem estarem reunidos em um local específico. OLIVEIRA,
op. cit. pp. 9-10. apud BRAUDEL, Fernand. Civilização Material, economia e capitalismo. t.2 (os
jogos das trocas). Lisboa, cosmos, 1985. p. 281. No caso, a repartição de costuras do Arsenal de
Guerra funcionaria nesse esquema.
23
Introdução
conectadas passo a passo, como o fio metálico na manufatura de agulhas, que passa
através das mãos de 72 trabalhadores”.56
Este último ponto é importante para nosso objeto de estudo, pois o Arsenal de
Guerra da Corte (AGC) tem uma situação anômala, se encarado em diversas dessas de-
finições, tendo características mistas, com aspectos de diferentes tipos de manufatura e
até de fábrica.
1.3 Metodologia
Em termos de história comparada, onde o método é relevante para se definir os
caminhos a serem seguidos em uma pesquisa, a questão que se coloca é a respeito de
quais seriam os parâmetros de comparação a serem seguidos. Esses já foram delineados
acima e seriam, inicialmente, como se deu, de forma geral, o incentivo governamental
ao desenvolvimento manufatureiro. Isso quando se observa especialmente o campo lo-
56
MARX, op. cit. p. 168.
57
id. p. 170.
58
Ver SOARES (1980), op. cit. pp. 100-111 para uma ampla discussão das definições de Marx sobre
manufaturas e fábricas.
24
Introdução
59
Para a França, ver ALDER, Ken. Engineering the revolution: arms & enlightenment in France, 1763-
1815. Chicago: University of Chicago, 1992.
60
Podemos citar textos que trabalham com essa questão os de CREVELD, Martin van. Technology and
War: from 2.000 b.C. to the Present. London: Brassey`s, 1991 ou MCNEILL, William H. The Pur-
suit of Power: Technology, Armed Force, and Society since a.D. 1000. Chicago: University of Chi-
cago, 1984.
25
Introdução
bilizaram por cada vez mais fábricas e arsenais de produção, que serviram como incen-
tivo ao surgimento de indústrias civis que pudessem fornecer os artigos necessários às
forças armadas.
Do ponto de vista dos modelos explicativos, a análise será bem menos comple-
xa, feita a partir da bibliografia já produzida sobre a história econômica do País, pois a
ideia é fazer a comparação com modelos, construções teóricas nacionais, isso não impli-
cando na produção de pesquisas empíricas sobre os fatos relativos aos temas desenvol-
vidos pelos diversos autores.
Do ponto de vista dos modelos explicativos, a análise será bem menos comple-
xa, feita a partir da bibliografia já produzida sobre a história econômica do País, pois a
ideia é fazer a comparação com modelos, construções teóricas nacionais, isso não impli-
cando na produção de pesquisas empíricas sobre os fatos relativos aos temas desenvol-
vidos pelos diversos autores.
Para os leitores que não estão acostumados com a metodologia da história com-
parada, cremos ser relevante apontar que a proposta metodológica desse ramo da histó-
ria não implica, necessariamente, na análise de dois ou mais aspectos que tenham seme-
lhança entre si, que tenham proximidade geográfica ou mesmo que sejam contemporâ-
neos. Assim, segundo José Assunção de Barros ao tratar do primeiro autor a sistemati-
zar a moderna história comparada, “o intuito de [Marc] Bloch era também o de liberar o
historiador das fronteiras artificiais que até então vinham sendo delimitadas pelas clau-
61
BLOCH, Marc. História e Historiadores: textos reunidos por Étienne Bloch. Lisboa: Editorial Teore-
ma, 1998. p. 121.
26
Introdução
27
Introdução
os processos adotados nos dois países. Entretanto, desistimos desse caminho por causa
do reduzido número de peças francesas existentes em coleções de museus brasileiros66 –
apenas dois canhões, um deles do período mais recente,67 bem como algumas armas
portáteis, menos de dez peças – inviabilizando a criação de séries de objetos e, com isso,
essa linha de pesquisa. Mesmo assim, pretendemos usar alguns objetos para ilustrar cer-
tos aspectos específicos da pesquisa.
Também usaremos uma grande quantidade de ilustrações – isso não por ser ne-
cessário em termos da proposta de pesquisa escrita, mas por causa da formação do au-
tor: fomos influenciados pela experiência de trabalho em um museu e no IPHAN, ór-
gãos onde o uso de imagens é fundamental em qualquer trabalho escrito, por serem ins-
tituições que trabalham com a cultura material. Desta forma, o procedimento de usar
figuras para ilustrar e documentar alguns pontos tornou-se uma segunda natureza para o
autor, que é difícil de ser ignorada.
Deve ficar claro que não pretendemos inovar com a metodologia de pesquisa a
ser adotada. A existência de fontes arquivistas e bibliográficas em quantidade permitiu
dispensar o uso de recursos especiais, como a análise de objetos da cultura material. O
trabalho de pesquisa propriamente dito, se resumiu nas tradicionais etapas de levanta-
mento e correlação de dados, visando a montagem de um arcabouço de fatos que nos
possibilitou a análise do assunto dentro do quadro teórico escolhido, para verificar a
validade das hipóteses, objetivos e conceitos apresentados, seguindo a formação e expe-
riência profissional deste autor.
66
Obviamente, há muitos desses objetos preservados em museus Europeus. De fato, há mais armas brasi-
leiras preservadas em museus Belgas do que existentes aqui (ver: GAIER, Claude. Prestige de
l’armuriere portugaise. La part de Liège. Liège, Musee D’Armes de Liège, 1991), mas não havia
previsão de fazer um trabalho de levantamento de campo no exterior, de forma que tivemos que nos
contentar com os acervos disponíveis no Rio de Janeiro, muito limitados.
67
Peças 015888 e 006920, o primeiro fundido em Rocheford, em 1793 e o segundo um canhão em data
não especificada, no reinado de Luís XIV. Cf. id.
28
Introdução
fundamental e deve ser vista como expandida, levando em conta não apenas as publica-
ções correntes, mas também as que fundamentaram as teorias sobre a formação econô-
mica do Brasil. Isso por ser parte da própria proposta da tese, a discussão dos modelos
teóricos sobre a questão econômica e como o nosso objeto de estudo se enquadra – ou
deixa de se enquadrar – nos citados modelos teóricos.
Para se entender o problema que se levanta com o estudo que está sendo feito,
foi feito um capítulo que trata dos motivadores de toda a questão do envolvimento dos
militares com um aspecto que pareceria ser estranho à sua cultura, o da fabricação de
produtos. Para isso é importante entender as demandas que a sociedade do mundo mo-
derno e contemporâneo criaram para a formação de grandes exércitos, que têm que ser
providos de equipamentos. Estes, por sua vez, são, de forma geral, inúteis para uma
sociedade em paz – um canhão não serve para nada a não ser para destruir, mas o faz de
forma muito ineficiente, se for analisado simplesmente como uma ferramenta de demo-
lição. No entanto, esses equipamentos são indispensáveis para a própria existência e
consolidação dos Estados modernos, criando uma lógica própria. Esta é aceita como se
fosse “natural” por todos, até hoje, mas que tem suas origens em necessidades específi-
cas, como é o caso do uso de uniformes – nada obriga que um exército os use e, na ver-
dade, o próprio termo “uniforme” é pouco apropriado para o período em estudo, já que
as roupas usadas pelos militares nada tinham de uniformes, variando para cada batalhão.
No entanto, as fardas são elementos fundamentais à própria cultura militar. Dessa for-
ma, abordar as condicionantes da produção de artigos voltados para esse “mercado con-
sumidor” específico é de fundamental importância para se entender uma das razões que
levaram a implantação de uma estrutura fabril nos países que estamos estudando.
O corpo do texto, que servirá de ponto base para o estudo, será a forma como os
governos organizaram a produção industrial voltada para o atendimento do consumo de
suas tropas, dando ênfase a organização do trabalho; a introdução de técnicas de produ-
ção de equipamentos com peças intercambiáveis e a mecanização da produção. Em se-
guida será feito uma análise da estrutura geral criada no Brasil para resolver o problema
do abastecimento militar, com suas unidades específicas, desde a Fábrica de Pólvora até
os Laboratórios Pirotécnicos.
29
Introdução
caso do Brasil, incluindo o uso de escravos, alguns altamente especializados –, sua es-
trutura de funcionamento, instalações, máquinas, ferramentas e processos produtivos.
Não se pode dizer que todas as fontes possíveis tenham sido consultadas, já que
a organização da documentação é precária, havendo material disperso em muitos outros
fundos e arquivos. Na verdade, alguns fundos de documentos, dependem até de uma
consulta direta, simplesmente para se saber qual é a sua temática geral, pois as indica-
ções arquivistas sobre eles sequer dão noção sobre qual instituição ou período tratam,
tornando qualquer pesquisa maior excessivamente exaustiva e improdutiva. Não esta-
mos falando do conteúdo específico dos documentos, mas sim do assunto geral dos ma-
ços, que apesar de terem a indicação de que eram relativos ao Arsenal de Guerra, podi-
am conter textos sem nenhuma relação com a instituição. Este seria o caso de papeis
gerados pelo ministério da Marinha ou da Justiça que, por um motivo ou outro, foram
incorporados ao acervo do Arsenal de Guerra e, depois, enviados para o Arquivo Naci-
onal.
68
O fundo “Arsenais de Guerra” do Arquivo Nacional (ANRJ) contém 516 maços de documentos.
30
Introdução
31
Capítulo 2 – Modelos explicativos da economia brasileira
Sumário
32
Capítulo 2 – Modelos explicativos da economia brasileira
Finalmente, um problema que afeta a questão dos modelos é que eles, com ape-
nas pequenas exceções, não trabalham com nosso objeto de trabalho explícito, as manu-
faturas do governo, representadas no caso específico pelo Arsenal de Guerra do Rio de
1
Para alguns breves comentários sobre essa bibliografia revisionista ver: TENA-JUNGUITO, Antonio &
ABSELL, Christopher David. Brazilian export growth and divergence in the tropics during the nine-
teenth century. IN: Working Papers in Economic History. WP15-03, May 2015.
https://goo.gl/7sp2SK (acesso em março de 2016).
33
Capítulo 2 – Modelos explicativos da economia brasileira
Janeiro. Isso por que as teorias clássicas econômicas desconsideram, em larga parte, o
papel do governo na economia, classificando seus gastos como “inúteis” ou “estéreis”.
Por exemplo, Adam Smith, no livro “A riqueza das Nações”, escreveu:
Esse pensamento é reproduzido por Marx, apesar dele não tratar especificamente
do caso das manufaturas do governo. Para ele, o objeto da acumulação do capital é a
colocação das mercadorias em circulação, “elas tem que ser vendidas, seu valor trans-
formado em dinheiro, este dinheiro novamente convertido em capital e assim uma e
outra vez”.4 Ou seja, a produção de bens e serviços que não sejam voltados para a circu-
lação geral resultaria na esterilização do capital, se aplicando o mesmo colocado por
Adam Smith com relação aos gastos públicos ou do setor de serviços – eram gastos pior
do que inúteis, pois prejudicavam a economia. No caso, vale a pena repetir, que a ques-
tão importante para Marx era a acumulação de capital, visando a sua reprodução, algo
que o governo não faria.
No entanto, ambas as visões, se faziam certo sentido nos séculos XVIII e XIX,
são complicadas hoje, pois ignoram boa parte das economias nacionais, o setor de servi-
2
SMITH, Adam. An Inquiry into the nature and causes of the wealth of Nations. London: Encyclopaedia
Britannica, c. 1952. p. 143.
3
id. p. 143.
4
MARX, Karl. Capital. London: Encyclopaedia Britannica, c. 1952. p. 279.
34
Capítulo 2 – Modelos explicativos da economia brasileira
ços.5 No caso das manufaturas do governo, podemos apontar que estas tinham outros
efeitos, além de sua relevância econômica direta, como será tratado nas páginas seguin-
tes. Podemos adiantar que havia seu papel indutor em outros setores da economia, atra-
vés da compra de insumos e produtos acabados já que as forças armadas constituíam um
importante “mercado consumidor” de produtos manufaturados.
Com essas ressalvas em mente, iniciamos trabalhando com um aspecto que con-
sideramos importante para se entender a singularidade do Arsenal, que seria a forma
como a história econômica vê a questão do surgimento de manufaturas no Brasil, a par-
tir dos modelos idealizados criados para fazer essa questão.
Daí se entende perfeitamente uma pergunta que se colocou de forma bem clara
no início do século XX: porque éramos – e ainda somos – um país subdesenvolvido, ao
contrário do que acontece com as potências europeias ou os Estados Unidos, mesmo
5
HAKSEVER, Cengiz & RENDER, Barry. The Important Role Services Play in an Economy. July 25,
2013. http://www.ftpress.com/articles/article.aspx?p=2095734&seqNum=3 (acesso em março de
2016).
6
Não se referindo especificamente à história, mas sim a filosofia e a sociologia, a própria presidente do
Brasil fez uma colocação sobre o excesso de disciplinas no ensino médio. Bom dia Brasil entrevista
Dilma Roussef. 22 de setembro de 2014. https://goo.gl/wZdbnO (acesso em fevereiro de 2016). Tal
visão é compartilhada por outras pessoas, que não questionam, contudo, a necessidade da existência
das disciplinas exatas.
7
Marco Túlio Cícero, filósofo, orador, político e advogado. CICERO, Marco Túlio. De Oratore. Cambri-
ge: Harvad University Press, 1967. p. 233.
35
Capítulo 2 – Modelos explicativos da economia brasileira
considerando que as condições iniciais do Brasil e dos EUA, no século XVIII, eram
semelhantes, ou até melhores para o Brasil, pois este último tinha um território maior e
exportações mais relevantes no período, por causa da exploração do ouro?8
Na construção dos modelos podemos dizer que há uma divisão cronológica usual
divide a historiografia nacional em três períodos: um anterior a 1838, o segundo inici-
ando naquele ano, com a criação do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro (IHGB)
e o terceiro a partir de 1931, quando alguns trabalhos hoje fundamentais foram escri-
tos.10 De fato, antes do século XIX, autores como Rocha Pita11 e Southey12, apesar de
terem sua utilidade, podem ser classificados não como historiadores, mas sim como
cronistas, relatando apenas os fatos, sem um embasamento ou mesmo uma abordagem
científica, em termos teóricos. Também não havia critérios que sustentassem suas pro-
postas de manejo das fontes, de forma que é muito difícil uma crítica ao trabalho de
pesquisa feito por esses autores. Mais importante, contudo, é que esses livros se dedica-
vam, quase que exclusivamente, aos campos político-militar e diplomático, ignorando
muitos outros aspectos, mesmo aqueles que mais tarde seriam considerados como liga-
dos a uma “história oficial”, como os econômicos.
8
Essa pergunta aparece tanto na obra de SIMONSEN, Roberto C. Evolução industrial do Brasil e outros
estudos. São Paulo: Companhia Editora Nacional, 1973. p. 6, quanto na de FURTADO, Celso. For-
mação Econômica do Brasil. São Paulo: Companhia Editora Nacional : Publifolha, 2000. p. 106. As
notas sobre a existência de melhores condições no Brasil com relação aos Estados Unidos no século
XVIII estão no livro de Simonsen.
9
Usamos o conceito de modelo explicativo tal como apresentado na obra: FONTES, Virgínia. História e
Modelos. In: CARDOSO, Ciro Flamarion Santana & VAINFAS, Ronaldo. Domínios da Historia:
Ensaios de teoria e metodologia. Rio de Janeiro: Campus, 1997. pp. 355 e segs.
10
IGLÉSIAS, Francisco. Os historiadores do Brasil, capitulo de historiografia brasileira. Rio de Janeiro,
Nova Fronteira; Belo Horizonte, MG: UFMG, IPEA, 2000.
11
PITA, Sebastião da Rocha. História da América portuguesa. Belo Horizonte, Itatiaia; São Paulo,
EDUSP, 1976.
12
SOUTHEY, Robert. História do Brasil. Belo Horizonte, Itatiaia : São Paulo, EDUSP, 1981.
36
Capítulo 2 – Modelos explicativos da economia brasileira
Uma segunda fase teria sido iniciada com a fundação do IHGB: anteriormente
tinham existido as academias dos “Esquecidos”, de 1724 e dos “Renascidos”, esta de
1759, ambas de curta duração – cerca de um ano. Estas tinham entre suas propostas es-
crever histórias do País, como seus membros efetivamente fizeram: Sebastião da Rocha
Pita, com sua História da América Portuguesa, de 1730 e Frei Gaspar da Madre de
Deus, com as Memórias para a História da Capitania de São Paulo (1797) ou José de
Miralles, com a História Militar do Brasil (1762).13 Dessa forma, o IHGB não foi a
primeira iniciativa sistemática de estudo de história do Brasil, mas foi a instituição que
apresentou resultados mais concretos, existindo até os dias de hoje, tendo se replicado
em cópias estaduais e órgãos especializados, como o Instituto de Geografia e História
Militar do Brasil (IGHMB), de forma que ele certamente marcou uma época.
A ênfase nessa visão de história era, como dissemos, na coleta e organização dos
fatos, de forma que foi feito um esforço para esse trabalho, através da Revista do Institu-
to Histórico e Geográfico Brasileiro. Esta ainda é uma importante fonte de informações
sobre o passado brasileiro, justamente por esse trabalho de sistematização de documen-
tos e livros raros. Essa ideia de que o Instituto não se restringiria apenas à coleta e re-
produção de textos é muito aceita pelos que comentam a historiografia do período, se
enfatizando que os trabalhos da época teriam uma visão acrítica, o que consideramos
uma injustiça ou, no mínimo, um anacronismo. Por exemplo, já no início da história da
13
RODRIGUES, José Honório. História da História do Brasil: 1ª parte historiografia colonial. São Pau-
lo: Companhia Editora Nacional, 1979. p. 144.
14
No original “story”, uma palavra que normalmente é traduzida como história, apesar do termo estória,
estar se tornando comum em Português, para designar um texto de ficção, em oposição ao estudo do
passado. Para evitar confusão, usamos o termo “conto”, que nos parece adequado.
15
FUSTEL DE COULANGES, citado em: REWALD, John. The History of Impressionism. IN:
O’BRIAN, John (ed.). Clement Greenberg: The collected essays and criticism. Volume 2: Arrogant
Purpose, 1945-1949. Chicago: University of Chicago, 1987. p. 235. (todas as traduções no texto são
nossas, a não ser que especificado em contrário).
37
Capítulo 2 – Modelos explicativos da economia brasileira
instituição foi feito um concurso para uma monografia sobre como se deveria escrever a
história do país, propondo, de forma implícita, que o historiador tivesse uma postura
crítica, reflexiva.16
É certo que esses autores do IHGB não tinham uma proposta que consideraría-
mos “moderna” ou “atual”, que criticasse a situação. Por outro lado, podemos dizer que
tinham posições políticas, expressas em seus trabalhos: Martius defendia o unitarismo
sob o Império e Varnhagen, em seus trabalhos, era conservador, favorável aos grupos
dominantes e a Portugal.17 Rio Branco,18 por sua vez, tinha uma forte visão militarista
da sociedade, tendo em vista a importância desse tema para as questões de relações in-
ternacionais naquele momento e podem-se citar muitos outros autores com propostas
embutidas na redação de seus trabalhos.
Uma última ressalva que é feita aos historiadores do período do IHGB é que al-
guns deles não fizeram trabalhos de síntese geral,19 uma crítica que vemos como parti-
cularmente estranha, considerando que poucos autores – até os dias de hoje – se pro-
põem a fazer tal tipo de trabalho e não parece ser coerente apontar uma falha em um
texto que não tinha o objetivo de atender a esse ponto. No entanto, a objeção faz sentido
quando analisamos o período subsequente na historiografia nacional – aquele definido
por Iglésias como sendo o momento da “contribuição da universidade”,20 que foi mar-
cado, justamente, por grandes trabalhos de síntese, que procuravam estabelecer modelos
explicativos, buscando entender o País de então como resultando de determinantes ori-
undos de seu passado colonial.
16
Comentários em IGLÉSIAS, op. cit. p. 67.
17
Id. p. 70 e 83.
18
RIO BRANCO, Barão de. Efemérides Brasileiras. Rio de Janeiro: Imprensa Nacional, 1946.
19
Por exemplo, Iglésias crítica Capistrano de Abreu por Isso. IGLÉSIAS, op. cit. p. 123.
20
id. p. 181.
38
Capítulo 2 – Modelos explicativos da economia brasileira
tação à situação política vigente, vista como inadequada para o Brasil de então. Isso em
um contexto da crise mundial causada pelo crack da bolsa de 1929 e da transição pela
qual o País passava, indo de uma sociedade agrária para uma mais urbanizada, na qual o
processo de industrialização era visto como vital (ver gráfico 1).
100
90
80
70
60
50
40
30
20
10
0
21
BRASIL – IBGE. Malhas territoriais, municípios. https://goo.gl/ixVST9 (acesso em julho de 2017).
22
PRADO JÚNIOR, Caio. Formação do Brasil Contemporâneo : colônia. São Paulo: Brasiliense, 2000.
p. 1.
39
Capítulo 2 – Modelos explicativos da economia brasileira
ceira.23 O primeiro a ser escrito com uma proposta de trabalhar a economia de forma
geral foi o de Vitor Viana, de 1922,24 elaborado no contexto das comemorações do cen-
tenário da Independência do Brasil. Entretanto, apesar de seu título, História da forma-
ção econômica do Brasil, realmente não se pode considerar como tendo atingido seu
objetivo – cremos que o impacto dessa obra na historiografia foi nulo, pois não passava
de uma coletânea de dados esparsos.25 O livro não tem uma clara ideia unificadora, a
não ser a de uma forte defesa dos princípios do liberalismo econômico. De forma geral,
contudo, deixa evidente que sua ideia era a de um país com uma economia dependente e
complementar a da Europa.26
No ano seguinte (1923), foi publicada a obra de Lemos de Brito, Pontos de par-
tida para a história econômica do Brasil,27que se liga mais a tradição documentarista da
história, do tipo estabelecido pelos historiadores ligados ao IHGB. É uma obra que, ape-
sar de seu título genérico, é dedicada ao período Colonial, sendo bem embasada em uma
pesquisa documental – em fontes secundárias, é verdade. Mesmo assim, foi o pioneiro
ao notar a existência de manufaturas militares no Brasil colonial, como a fundição de
Olinda e, principalmente, a questão da construção naval, apontada por ele como “a ver-
dadeira indústria fabril da colônia”. 28 Não é uma obra, contudo, que apresente uma sín-
tese analítica, uma conclusão ou mesmo uma proposta de explicação do porque a eco-
nomia nacional tinha evoluído como acontecera.
23
CALÓGERAS, João Pandiá. A Política Monetária do Brasil. São Paulo: Companhia Editora Nacional,
1960.
24
VIANA, Victor. História da formação econômica do Brasil. Rio de Janeiro: Imprensa Nacional, 1922.
25
id. p. 75.
26
id. Ver, por exemplo, a página 14 do livro.
27
BRITO, Lemos. Pontos de partida para a história econômica do Brasil. São Paulo: Companhia Editora
Nacional, 1980.
28
id. p. 252.
29
SIMONSEN, Robert C. História econômica do Brasil (1500/1820). São Paulo: Companhia Editora
Nacional, 1977.
40
Capítulo 2 – Modelos explicativos da economia brasileira
30
Coletânea publicada pós mortem.
31
FUNDAÇÃO Getúlio Vargas. Dicionário histórico-biográfico brasileiro – Dhbb. Verbete Roberto
Cocharane Simonsen. https://goo.gl/vdWjgS. (acesso em fevereiro de 2016).
32
AZEVEDO, J. Lúcio de. Épocas de Portugal económico: esboços de história. Lisboa: Livraria Clássica
Editora, 1978.
33
SIMONSEN (1977), op. cit. p. 293.
41
Capítulo 2 – Modelos explicativos da economia brasileira
propriedade Maria Yedda Linhares e Francisco Carlos Teixeira, 34 era uma proposta que
se adequava bem à visão conservadora da política do momento, pois pelos ciclos, o que
mudava era apenas a conjuntura – técnicas e/ou produto –, “permanecendo o essencial,
a inserção no mercado mundial”. 35
34
LINHARES, Maria Yedda & Francisco Carlos Teixeira da Silva. História da Agricultura Brasileira :
combates e controvérsias. São Paulo: Brasiliense, 1981.
35
Id. p. 19.
36
SIMONSEN (1977), op. cit. p. 436.
37
SIMONSEN (1973), op. cit. pp. 8-9.
42
Capítulo 2 – Modelos explicativos da economia brasileira
terno, conforme apontado por Maria Yedda e Francisco Carlos Teixeira. 38 Maria Yedda
também faz outras críticas aos conceitos embutidos nos ciclos, como o fato da proposta
só ter “favorecido uma visão compartimentada e estanque da história, como numa pro-
jeção de diapositivos: sai o pau-brasil, entra o açúcar e assim por diante”.39 Considera-
mos essa a principal e mais válida observação que é feita à teoria de Simonsen, pois a
tendência seria aceitar que houve de fato um processo de substituição de um produto por
outro, o item substituído “desaparecendo” da agenda econômica nacional, o que é um
absurdo.
38
LINHARES, op. cit. p. 11.
39
id. p. 11.
40
SINGER, Paul. O Brasil no Contexto do Capitalismo Internacional : 1889-1930. IN: FAUSTO, Boris
(dir.). História Geral da Civilização Brasileira. Tomo. III. O Brasil Republicano. Volume 1. Estrutu-
ra de poder e economia (1889-1930). São Paulo DIFEL, 1985. p. 355.
43
Capítulo 2 – Modelos explicativos da economia brasileira
4000000
3500000
3000000
2500000
2000000
1500000
1000000
500000
0
Anos
Açúcar Ouro
41
SIMONSEN (1977), op. cit. p. 383.
42
id. p. 253.
43
SINGER, op. cit. p. 355.
44
Capítulo 2 – Modelos explicativos da economia brasileira
mo por aqueles que apoiam a teoria dos ciclos, pois existiria um momento em que a
economia não teria um “motor”, devendo ter caído em profunda depressão, o que não
ocorreu, pelo menos em termos facilmente observáveis. Deve-se dizer que os livros que
tratam da questão de modelos econômicos no Brasil, praticamente sem exceção, têm
dificuldade de trabalhar com esse período, pois ele não se encaixa facilmente nas noções
preconcebidas sobre o funcionamento da economia.
100%
80%
Percentuais
60%
40%
20%
0%
1821-30 1831-40 1841-50 1851-60 1861-60
café Açúcar Algodão Outros
Aqui vale fazer um interlúdio para falar da tarifa, já que essa é central em várias
obras que tratam da economia no Império. Esse imposto foi criada pelo decreto de 12 de
agosto de 1844, assinado pelo ministro da fazenda Manoel Alves Branco, o texto legal
estabelecendo alíquotas que iam de 60% até 2% para a importação de produtos.46 Houve
vários motivos para a implantação da tarifa, um deles, apontado no próprio relatório do
Ministro da Fazenda, seria uma retaliação contra uma medida Inglesa que aumentava o
taxação sobre o açúcar brasileiro. 47 Assim, os artigos 20 e 21 do decreto de criação da
44
id. p. 355.
45
SIMONSEN (1973), op. cit. p. 14.
46
BRASIL – Decreto nº 376, de 12 de Agosto de 1844. Manda executar o Regulamento e Tarifa para as
Alfandegas do Império.
47
BRASIL – Ministério da Fazenda. Proposta e Relatório apresentado à Assembleia Geral Legislativa
na 1ª Sessão da 6ª Legislatura, pelo Ministro e Secretário de Estado dos Negócios da Fazenda, Ma-
noel Alves Branco. Rio de Janeiro: Tipografia Nacional, 1845. p. 33. Eram cobrados 63 shillings e
5% do valor açúcar brasileiro, 34 shillings e 5% do açúcar asiático e apenas 24 shillings do produto
vindo das colônias inglesas.
45
Capítulo 2 – Modelos explicativos da economia brasileira
tarifa explicitam que ela era uma reparação com relação aos países que “cobrarem sobre
quaisquer gêneros importados (...) maiores direitos de consumo”. 48
48
BRASIL – Decreto nº 376, op. cit.
49
Para um breve relato sobre intenção de guerra criada pela intervenção inglesa em Roraima, ver: CA-
LÓGERAS, Pandiá. A política exterior do Império. vol. III. Da Regência à queda de Rosas. São
Paulo: Companhia Editora Nacional, 1933. pp. 311-312.
50
IGLÉSIAS, op. cit. p. 42.
51
id. p. 34.
52
id. p. 34.
53
id. p. 37.
46
Capítulo 2 – Modelos explicativos da economia brasileira
Balança orçamentária
80
Bilhões
60
40
20
0
1823
1825
1827
1829
1831
1833
1835
1837
1839
1841
1843
1845
1847
1849
1851
1853
1855
1857
1859
1861
1863
-20
-40
-60
-80
-100
Gráfico 4 – Saldos e déficits do orçamento do Império.54
O gráfico mostra, em bilhões de libras esterlinas (valores atualizados), a longa série negativa de valores
da despesa orçamentária, quando comparada com as receitas governamentais, a situação sendo bem grave
pouco antes da implantação da tarifa Alves Branco. O problema só passaria a ser menos crítico bem mais
para o final do século XIX.
A tarifa e seus efeitos são controversos. Para alguns, ela não poderia ser conside-
rada como protecionista, “porque não havia indústria a defender”,55 mas, independente
de uma relação causal, o fato é que por essa época surgiram as primeiras manufaturas
civis de grande porte – as do governo, como os arsenais, já existiam há décadas. Desta
forma, sua importância como elemento relacionado com o processo de aceleração indus-
trial não pode ser descartada, sendo ela um elemento recorrente nos modelos explicati-
vos que tratam da industrialização brasileira, como dissemos acima, apesar de seus efei-
tos serem considerados como transitórios.
54
Dados extraídos de: CARREIRA, Liberato de Castro. História Financeira e Orçamentária do Império
do Brasil. Brasília: Senado, 1980. pp. 127 e segs. Os valores foram atualizados usando as cotações
médias da libra esterlina em cada ano, com a correção monetária sendo feita com os dados obtidos
em: https://goo.gl/rtcTbc. (acesso em dezembro de 2015). O parâmetro de conversão foi o do “valor
real” da moeda britânica, a menor de todas as atualizações monetárias disponíveis.
55
Comentário de Ferreira Lima, que rebate essa visão, apontando a importância da tarifa para o surgimen-
to de manufaturas. LIMA, Heitor Ferreira. História político-econômica e industrial do Brasil. São
Paulo: Companhia Editora Nacional, 1973. p. 263.
56
BAER, Werner. A industrialização e o desenvolvimento econômico do Brasil. Rio de Janeiro: FGV,
1977. pp. 4 e segs.
47
Capítulo 2 – Modelos explicativos da economia brasileira
Apesar da resistência da ideia dos ciclos, esse modelo explicativo foi questiona-
do, com sucesso, por Caio Prado Jr., em sua obra publicada em 1945. Não que ele negue
a sucessão de produtos primários na economia do Brasil, ele a reconhece explicitamen-
te,57 mas o autor aponta que não é a simples alternância desses que poderia explicar a
economia nacional.
Em suas obras, Caio Prado faz algumas observações de extrema relevância para
o entendimento do assunto da história econômica, a começar por sua contestação da
teoria dos ciclos. Apontava que havia problemas estruturais que perpassavam toda a
história do País e que, portanto, as conjunturas momentâneas, relativas a um determina-
do tipo de produto (açúcar, ouro ou café) não seriam fundamentais para a explicação do
Brasil. Esse último ponto é importante, pois para o autor havia a necessidade de se
compreender a estrutura e historicidade da sociedade, o seu “sentido”, algo que, em suas
palavras “se percebe não nos pormenores de sua história, mas no conjunto dos fatos e
acontecimentos essenciais que a constituem num largo período de tempo”.61 Continua-
57
PRADO JÚNIOR, op. cit. p. 20.
58
id. & PRADO JÚNIOR, Caio. História Econômica do Brasil. São Paulo : Brasiliense, 1977.
59
FUNDAÇÃO Getúlio Vargas, op. cit. Verbete Caio Prado Júnior. https://goo.gl/5xxBsU. (acesso em
fevereiro de 2016).
60
LEÃO, Igor Zanoni Constant Carneiro & SILVA, Newton Gracia da. A relação entre Caio Prado e
Celso Furtado. Economia & Tecnologia. Ano 07, vol. 27, out. /dez. de 2011. p. 100.
61
PRADO JÚNIOR (2000), op. cit. p. 7.
48
Capítulo 2 – Modelos explicativos da economia brasileira
va, apresentando a necessidade que havia de se estudar uma nação não em seus fatos
isolados, mas sua estrutura e organicidade – Caio Prado colocaria que a colonização “é
apenas parte de um todo, incompleto sem a visão deste todo”.62
62
id. p. 9.
63
id. pp. 16-17.
64
id. p. 369.
49
Capítulo 2 – Modelos explicativos da economia brasileira
cais, sem ter uma produção local de produtos manufaturados. Conforme o autor escre-
veu:
65
PRADO JÚNIOR (2000), op. cit. p. 20.
66
id. p. 290.
67
PRADO JÚNIOR (2007), op. cit. pp. 102-103.
50
Capítulo 2 – Modelos explicativos da economia brasileira
Após o término formal do período colonial, ou seja, 1808, Caio Prado aponta
que não houve nenhuma mudança brusca. Em primeiro lugar, havia a questão estrutural,
que não teria se alterado, pois a situação era dificultada pela ausência de uma postura
protecionista. A tarifa de 15% implantada junto com a abertura dos portos em 1808, não
permitia uma efetiva competição local com os produtos europeus,68 de forma que as
iniciativas de industrialização intentadas na 1ª metade do século XIX fracassaram. O
fim do protecionismo causado pelo exclusivo colonial causaria, segundo o autor, a ruína
do artesanato local, a ponto de haver uma interrupção no desenvolvimento econômico
do País, como ele coloca:
68
id. p. 134.
69
id. p. 257. Os grifos são nossos.
70
Para uma longa e bem fundamentada discussão sobre os problemas da tese de Caio Prado, ver CAL-
DEIRA, Jorge. História do Brasil com Empreendedores. São Paulo: Mameluco, 2009.
51
Capítulo 2 – Modelos explicativos da economia brasileira
Receita do Império
45
40
35
30
25
20
15
10
5
0
71
Dados extraídos de: CARREIRA, op. cit. pp. 127 e segs. A atualização monetária foi feita com base e m
no “preço real” da moeda britânica, atualizado a partir do sítio: Measuring Worth.
https://goo.gl/rtcTbc. (acesso em dezembro de 2015). Observe-se que o aumento da receita no final
da década de 1820 pode ser atribuído a uma taxa de câmbio mais favorável naquele momento, con-
forme pode ser visto no Gráfico 7, abaixo).
52
Capítulo 2 – Modelos explicativos da economia brasileira
Não nos alongaremos em sua trajetória profissional posterior, pois apesar de ser
muito longa, prolífica e extremamente importante em termos sociais e políticos, 73 não
nos parece ser relevante ao presente trabalho. Basta dizer que, segundo Francisco Iglé-
sias, a obra de Celso Furtado, a Formação Econômica do Brasil, é o “livro mais ecoante
dos últimos tempos no campo das ciências sociais e da historiografia”, Iglesias continu-
ando, dizendo que é “um livro seminal a bibliografia nativa: quanto se produz em ciên-
cia social o leva em conta”.74
72
FUNDAÇÃO Getúlio Vargas, op. cit. Verbete Celso Furtado. https://goo.gl/lPoBEJ. (acesso em feve-
reiro de 2016).
73
id.
74
IGLÉSIAS, op. cit. p. 226.
53
Capítulo 2 – Modelos explicativos da economia brasileira
Decorrente do modelo de Celso Furtado havia o fato de que não haveria necessi-
dade de um mercado consumidor interno na colônia, isso por dois motivos: primordial-
mente, a dinâmica da economia, sendo dependente da venda de produtos para a Europa,
não criaria esse mercado. Os engenhos e fazendas, geradores de renda seriam adminis-
trados por um grupo muito reduzido de pessoas, cujas necessidades podiam ser supridas
localmente, por uma produção de autoabastecimento ou por pequenas importações, en-
quanto a força de trabalho era escrava, ou seja, excluída do circuito de consumo.
Segundo ele, não havia sequer uma classe de grandes comerciantes locais, pois
essa atividade seria dominada por interesses da metrópole. 76 Portanto, fica implícito que
não havia outros grupos economicamente relevantes na colônia, só senhores e escravos.
A inexistência de pessoas que pudessem se conformar como um mercado consumidor é
de fundamental importância na explicação de Furtado, pois o autor, como resposta à
pergunta de que “porque o Brasil não se industrializou como os norte-americanos?”
responderia que os domínios portugueses na América do Sul foram criados como uma
colônia de exploração. Ai o objetivo, o sentido da colonização seria o da produção agrí-
cola para exportação, enquanto os Estados Unidos teriam sido estabelecidos como uma
“colônia de povoamento”, para o estabelecimento de excedentes populacionais ingle-
75
FURTADO (2000), op. cit. p. 100.
76
id. p. 100.
54
Capítulo 2 – Modelos explicativos da economia brasileira
Aqui devemos fazer uma observação: em vários momentos de sua obra Celso
Furtado, tal como Caio Prado, faz suposições e extrapolações, como quando diz que a
renda no Brasil deve (sic) ter diminuído com a queda dos preços do açúcar e a redução
da produção do ouro em Minas Gerais. 78 Não aponta, contudo, dados empíricos que
sustentem essas conjecturas, algumas contestadas em pesquisas posteriores de outros
autores. Tal é o caso da dinâmica econômica de Minas Gerais, que, segundo essas pes-
quisas posteriores, não sofreu uma retração e depressão com o fim da mineração como
seria de se esperar de seu modelo e como Furtado aponta que teria acontecido em sua
obra. A explicação para a manutenção de atividades econômicas relevantes na região
sendo que lá havia um mercado consumidor, a economia local tendo se realinhado para
superar os problemas da decadência da produção do ouro.79
Outro fator que também pode ser questionado é a relevância – ou mesmo a hipó-
tese – dos Estados Unidos terem sido criados como uma colônia de povoamento. Isso
independentemente da própria validade do próprio conceito de “colônia de povoamento
versus colônia de exploração”. A simples ocupação do espaço físico não era o pensa-
mento inglês que levou à colonização do território e essa classificação, de “povoamen-
to”, certamente não se aplica à região sulina dos EUA. Mais importante, a população
das treze colônias não era significativamente diferente da do Brasil no momento de suas
independências – era de cerca de dois milhões e meio em 1775 nos EUA e de dois mi-
lhões no Brasil de 1800. 80 A rápida diferenciação na quantidade de moradores das duas
áreas podendo ser facilmente explicável pela imensa imigração feita para os Estados
Unidos após a independência de lá: havia lá seis milhões de habitantes em 1800 e 24
milhões em 1850. 81 Um crescimento que o Brasil não acompanhou, mas essa diferença
77
id. p. 106.
78
id. p. 102.
79
Ver, por exemplo, LIBBY, Douglas Cole. Transformação e trabalho em uma economia escravista:
Minas no século XIX. São Paulo: Brasiliense, 1988.
80
Não incluindo 800.000 índios não assimilados que existiriam em 1819. Com esses, a população brasi-
leira perto da Independência ultrapassaria a norte americana na mesma época. Contudo, não se pode
considerar os nativos como parte do mercado consumidor. Os dados sobre os indígenas foram retira-
dos de: MARCÍLIO, Maria Luiza. Crescimento Histórico da População Brasileira até 1872.
https://goo.gl/7zTD4f. (acesso em março de 2016).
81
MCEVEDY, Colin & JONES, Richard. Atlas of world population history. Harmondsworth: Penguin,
1978. pp. 286 e 306. É bem verdade que a população de escravos no Brasil, de 30% em 1819, era
Continua –––––––
55
Capítulo 2 – Modelos explicativos da economia brasileira
não pode ser atribuída ao fato de um país ser colônia de exploração ou de povoamento,
já que o período colonial tinha se encerrado nos dois casos.
Esses pontos polêmicos, tendo em vista a falta de estudos empíricos por parte de
Celso Furtado geraram, inclusive, severas críticas, como a de Maurício Coutinho:
Das Minas, Furtado conhecia muito pouco; e menos ainda do que su-
cedeu à região mineira no século XIX. Suas conclusões, desse modo,
estão pouco referidas ao quadro histórico real. Pode-se dizer que se
sustentam, em grau bem maior do que no restante do livro, em racio-
nalizações construídas com base em um modelo geral de história eco-
nômica brasileira.82
Retornando à análise da obra de Celso Furtado, como apontamos, para ele havia
uma situação de total dependência, que resultaria em um modelo de economia interna
com as seguintes características:
4. O restante da economia colonial podia ser desconsiderado, pois não haveria um mer-
cado que absorvesse excedentes: era uma economia de subsistência, que não tinha
valor econômico 83;
5. Decorre daí que não havia monetização na economia interna, pois não havia também
um comércio interno significativo, nem o pagamento de salários, toda a renda se
concentrando na mão dos proprietários. Os senhores de escravos, por sua vez, rein-
Continuação–––––––––––
consideravelmente maior do que nos EUA pouco depois da Independência de lá – os cativos eram
apenas 18% da população norte-americana em 1790.
82
COUTINHO, Maurício C. Economia de Minas e economia da mineração em Celso Furtado. Nova Eco-
nomia. Belo Horizonte 18 (3), set./dez.de 2008. p. 362.
83
FURTADO, op. cit. p. 126.
56
Capítulo 2 – Modelos explicativos da economia brasileira
Tal situação de decadência, segundo o autor teria continuado até a “fase” seguin-
te, a da produção do café, que teria começado na década de 1830 e que só resultaria em
mudanças estruturais mais tarde. Furtado se referia a um período de três quartos de sé-
culo (1775 a 1850), o qual, por seu modelo, seria um de estagnação e retração econômi-
ca. Segundo suas colocações, o Brasil era um país dependente do mercado externo e não
havia, até o café, um produto de exportação que desse embasamento ao “sentido” da
84
COUTINHO, op. cit. pp. 363-364.
85
FURTADO (2000), op. cit. p. 97.
57
Capítulo 2 – Modelos explicativos da economia brasileira
Para Furtado, a retração econômica dos primeiros anos do Império seria a expli-
cação para a longa série de revoluções da Regência, bem como para o sentimento de
revolta que a população sentia com relação aos portugueses. Estes eram vistos como
responsáveis pela inflação e pela contração dos rendimentos, a renda sendo menor do
que no final do período colonial. 87 A retração econômica também seria uma das expli-
cações da não industrialização nacional, pois, como já colocado, não haveria um merca-
do interno para os produtos.
Esse atraso tem sua causa não no ritmo de desenvolvimento dos últi-
mos cem anos [1850-1950], o qual parece ter sido razoavelmente in-
tenso, mas no retrocesso ocorrido nos três quartos de século anteriores
[1775-1850]. Não conseguindo o Brasil integrar-se nas correntes em
expansão do comércio mundial durante essa etapa de rápida transfor-
mação das estruturas econômicas dos países mais avançados, criaram-
se profundas dissimilitudes entre seu sistema econômico e os daqueles
países.89
Uma argumentação lógica, que se encaixava na situação observável, pelo menos
aparentemente. No entanto, tem alguns problemas, os quais seriam, para o autor da pre-
sente tese, o “súbito” surgimento de um mercado interno a partir da década de 1850.
Este teria permitido as mudanças econômicas do período posterior, apesar da situação
estrutural, tal como definida por Furtado, de uma economia dependente, não ter se alte-
rado de forma fundamental. A base ainda era o latifúndio agroexportador, só havia mu-
dado o produto de exportação, do açúcar para o café. A introdução do trabalho assalari-
ado com o fim do tráfico negreiro poderia ser uma resposta para essa questão, mas não
se pode afirmar que seus efeitos tenham sido imediatos e instantâneos, como pareceria
ser o caso se colocarmos o momento de inflexão justamente no ano de 1850, quando
cessou o tráfico.
86
id. p. 112.
87
id. p. 103 e p. 113.
88
id. p. 111.
89
id. pp. 153-154.
58
Capítulo 2 – Modelos explicativos da economia brasileira
90
Gráfico adaptado de The Kondratieff Theory. https://goo.gl/gMlGDK (acesso em março de 2016).
91
FRAGOSO, João Luís R. Homens de Grossa Ventura: acumulação e hierarquia na praça mercantil do
Rio de Janeiro (1790-1830). Rio de Janeiro: Arquivo Nacional, 1992. p. 18.
92
FRAGOSO, João & FLORENTINO, Manolo. O arcaísmo como projeto: mercado atlântico, sociedade
agracia e elite mercantil em uma economia colonial tardia. Rio de Janeiro, c. 1790-c.1840. São
Paulo: Civilização Brasileira, 2001. p. 96.
59
Capítulo 2 – Modelos explicativos da economia brasileira
cipalmente, não podia ser vista apenas como um apenso dependente do mercado inter-
nacional.
93
NOVAIS, Fernando. Portugal e o Brasil na crise do antigo sistema colonial (1777-1808). São Paulo:
Hucitec, 1986. Observamos que Novais, ao contrário do que Iglésias coloca, foi o primeiro represen-
tante de uma instituição acadêmica no período da “contribuição da Universidade”. Simonsen, que era
professor universitário, era primordialmente um empresário, Furtado, após se formar, tornou-se um
pesquisador no serviço público.
94
id. p. 109.
95
id. p. 274.
96
id. p. 295.
60
Capítulo 2 – Modelos explicativos da economia brasileira
pelos modelos que previam a total dependência econômica, não só do Brasil, mas tam-
bém a de Portugal.
4 – o modo de produção escravista colonial teria problemas pela uma tendência geral de
estagnação técnica, com um crescimento da atividade produtiva sendo efetuada de
forma quantitativa e extensiva, de baixa produtividade;
61
Capítulo 2 – Modelos explicativos da economia brasileira
Em 1978 Jacob Gorender deu continuidade a essas ideias. 98 Tal como Caio Pra-
do Júnior, Gorender tinha uma ligação com o Partido Comunista, apresentando uma
visão de que a escravidão colonial do Brasil teria suas leis próprias, podendo ser classi-
ficada dentro de um modo de produção específico e totalmente novo, o já citado escra-
vista-colonial. Neste ficaria clara a natureza capitalista do escravismo que havia no
Brasil, ao contrário do que ocorria no mundo antigo, onde haveria o escravismo patriar-
cal.99 Essa visão é importante, pois ele, tal como Ciro Flamarion, criticava a postura de
que o sistema colonial só existia para transferir o excedente da colônia para a metrópole,
como desenvolvido pelos autores anteriormente mencionados. Por outro lado, Gorender
reforça a visão tradicional apresentada pelos autores das décadas anteriores, de que o
escravismo colonial não gerou um mercado interno e que a economia colonial, basica-
mente, acompanhava a situação conjuntural dos mercados dos países desenvolvidos, a
situação na colônia sendo incapaz de gerar, por si mesma, uma dinâmica própria.
O que consideramos importante nesse modelo é que ele não estaria restrito ao
período colonial. Tal como Caio Prado e Celso Furtado, e se encaixando na visão mar-
xista, o modelo considera que a questão fundamental da economia brasileira é estrutural
– Ciro Flamarion deixaria isso claro ao tratar do modo de produção escravista colonial,
dizendo que
98
GORENDER, Jacob. O escravismo colonial. São Paulo: Ática, 1988.
99
id. p. 42.
100
CARDOSO, Ciro F. S. Sobre los modos de producción colônias de América. apud FRAGOSO, João
Luís. Homens de grossa ventura: acumulação e hierarquia na praça mercantil do Rio de Janeiro –
1790-1830. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1990. 81.
62
Capítulo 2 – Modelos explicativos da economia brasileira
Como nos trabalhos anteriores, era claro a visão de que a economia colonial,
apesar de poder ter uma dinâmica própria, não era uma que permitisse a geração de ma-
nufaturas locais, novamente por não haver um mercado consumidor.
101
GORENDER, op. cit. pp. 481-484.
102
id. p 482.
103
Uma discussão disso pode ser vista em FRAGOSO, op. cit. pp. 74 e segs.
63
Capítulo 2 – Modelos explicativos da economia brasileira
Daí se entende que para Lapa não se possa explicar o comércio colonial em um
esquema meramente bipolar, como colocariam Novais, Ciro Cardoso 105 e Gorender,106
mas multipolar, no qual se deve levar em conta as transações entre:
1 – Metrópoles-Metrópoles;
2 – Metrópoles-Colônias;
104
LAPA, José Roberto do Amaral. O Antigo Sistema Colonial. São Paulo: Brasiliense, 1982.
p. 42.
105
Lapa cita: CARDOSO, Ciro Flamarion Santana. As concepções acerca do ‘Sistema Econômico Mun-
dial’ e do ‘Antigo Sistema Colonial’. IN: LAPA, José Roberto do Amaral (org.). Modos de produção
e realidade brasileira. Petrópolis: vozes, 1980.
106
GORENDER op. cit. 1980.
64
Capítulo 2 – Modelos explicativos da economia brasileira
65
Capítulo 2 – Modelos explicativos da economia brasileira
No seu modelo para o Brasil, Simonsen argumenta que as condições aqui não
eram tão favoráveis. A economia da colônia se baseava na exportação de produtos agrí-
colas tropicas e, se havia ferro e carvão, houve uma falha do governo em desenvolver
uma indústria siderúrgica. Isto por causa dos custos de transporte dos itens e devido a
não haver um mercado consumidor, uma observação que vai aparecer de forma recor-
rendo nos escritos de outros autores.
Para o autor, tal como descrito em sua História Econômica, a política de não
protecionismo e a falta de capitais seriam fatores predominantes até a instalação da tari-
fa Alves Branco, a qual, junto com o surgimento do café como produto de exportação,
teria permitido um primeiro movimento em direção à industrialização.111
Caio Prado Júnior aponta que no Brasil Colônia havia pequenas manufaturas:
olarias, caieiras (preparo de cal), cerâmicas, curtumes, cordoarias, têxteis e até de ferro,
algumas “relativamente grandes”,112 pois, de forma contraditória com o que escrevia,
para ele haveria um mercado local igualmente grande, em termos relativos. Contudo,
estas manufaturas teriam sido extintas pelo alvará de D. Maria, de 1785, que proibiu a
fabricação de têxteis mais elaborados. 113 Como Simonsen, o autor aponta que uma baixa
tarifa de importação de 15% (após 1808), impediria o surgimento de uma produção lo-
cal, bem como os problemas geográficos, de deficiência de fontes de energia (carvão) e
dificuldades de acesso ao minério de ferro.
Entretanto, dentro da proposta do autor, ele não considerava esses fatores con-
junturais, de tarifas e condições geográficas, como decisivos. Como já descrito, para ele
a questão era estrutural, de que a economia local era uma de agricultura de exportação,
fator que só começaria a ser corrigido a partir de 1880 – ou seja, no período de nosso
110
SIMONSEN (1973), op. cit. p. 7.
111
SIMONSEN (1977), op. cit. p. 436.
112
PRADO JÚNIOR (1977), op. cit. p. 107.
113
id. p. 107. Mais adiante no livro, ele aponta que as indústrias têxteis e de metais teriam conseguido se
estabelecer no período colonial, apesar da oposição portuguesa (p. 136).
66
Capítulo 2 – Modelos explicativos da economia brasileira
Celso Furtado não altera em muito o quadro acima descrito para a industrializa-
ção, apesar de dar mais detalhes sobre os problemas da industrialização. Por exemplo,
no capítulo que compara o Brasil com os Estados Unidos, tece interessantes considera-
ções sobre o período logo após a abertura dos portos até a assinatura do Tratado de Tra-
tado de Amizade, Navegação, e Comércio, de 1827. Esse manteve as taxas de importa-
ção vantajosas para a Inglaterra: naquela época havia um forte déficit do governo impe-
rial, por causa das guerras de Independência (1822-1826) e Cisplatina (1825-1828), e
isso levou a uma desvalorização da moeda (o câmbio realmente caiu pela metade entre
1823 e 1831).114 Uma consequência relevante apontada por Celso Furtado é que essa
desvalorização da moeda teria sido uma “medida protecionista” equivalente à criação de
uma taxa de importação de 50%, o que o levaria a questionar a afirmação sobre a não
existência de uma política protecionista teria sido a motivadora da não industrialização,
feita por Simonsen e outros.
114
CARREIRA, op. cit. vol. II p. 742.
115
Alexander Hamilton nasceu nas Antilhas Britânicas em 1755. Mudando para o que é hoje os Estados
Unidos, tomou parte das operações militares da Guerra de Independência norte-americana, sendo se-
cretário do general do General Washington, comandante em chefe norte-americano. Depois da Inde-
pendência, foi membro do congresso, tendo sido um dos assinantes da constituição. Foi o primeiro
secretário do tesouro (ministro da fazenda) dos Estados Unidos, na presidência de Washington e,
nesta função, publicou em 1791 um artigo sobre as manufaturas, propondo sua defesa por meio de
pagamento de bônus e tarifas protetivas contra importações, em linhas Colbertistas. No governo, su-
as posições políticas eram conservadoras e centralizadoras, defendendo um forte governo central.
Alexander Hamilton morreu em um duelo travado com Aaron Burr, em 1804. ENCYCLOPAEDIA
Britannica. London: Encyclopeaedia Britannica, 1952. Verbete Alexander Hamilton, pp. 121-125.
116
LISBOA, José da Silva [Visconde de Cairu]. Observações sobre a franqueza da indústria, e estabele-
cimento de fábricas no Brasil. Brasília: Senado Federal, 1999.
67
Capítulo 2 – Modelos explicativos da economia brasileira
12
10
8
6
4
2
0
Gráfico 7 – Taxa de câmbio médio (mil réis por libra esterlina), 1808-1865.117
Em vermelho, a linha de tendência do crescimento em longo prazo do câmbio. A abrupta queda do valor
do mil réis no período da guerra da Cisplatina (1825-1828 - seta) poderia ter atuado como uma barreira às
importações, mas não teve esse efeito. De qualquer forma, o câmbio, de forma geral, se estabilizou a
partir da maioridade do Imperador Pedro II, deixando de ser um fator contrário ao aumento de importa-
ções e inviabilizando a hipótese de Celso Furtado de que a taxa de câmbio atuava como política protecio-
nista.
Outro aspecto que Furtado aponta como tendo impedido a industrialização nesse
momento foi a falta de mercados: as tentativas de criação de siderurgia feitas por D.
João VI teriam falhado por não haver quem consumisse esses produtos. Segundo ele
uma proposta de industrialização tendo que começar por um mercado já existente, ci-
tando a situação dos têxteis grosseiros, para escravos.118 Fica explícito em seu livro a
visão de que a população local era insignificante para poder se considerada como con-
sumidora devido ao domínio do trabalho escravo na economia, o que impediria o sur-
gimento de uma economia de mercado interno.119 Isso foi um fator central na sua análi-
se, podendo ser usado como explicação por que o primeiro surto industrial do Brasil só
teria ocorrido no século XX, quando, após a abolição, já havia um mercado consumidor
suficiente para absorver a produção de manufaturados local.
Nícia Vilela da Luz, que tem alguns trabalhos especializados no estudo da indus-
trialização na primeira metade do século XIX120 e que trabalha mais de forma factual do
que em termos de modelos idealizados, aponta que houve um esforço de implantação de
manufaturas executado no período da primeira metade do século XIX, este esforço sen-
117
MOURA FILHO, Heitor Pinto de. Câmbio de longo prazo do mil-réis: uma abordagem empírica refe-
rente às taxas contra a libra esterlina e o dólar (1795-1913). Cadernos de História, PUC Minas Ge-
rais, v. 11, n. 15 (2010). pp. 23 e segs.
118
FURTADO, op. cit. p. 111.
119
id. p. 156.
120
LUZ, Nícia Vilela. A luta pela industrialização do Brasil. São Paulo: Difusão Europeia do Livro,
1961. LUZ, Nícia Vilela. A política de D. João VI e a primeira tentativa de industrialização no Bra-
sil. Revista do Instituto de Estudos Brasileiros, USP, n 5, 1968 e LUZ, Nícia Vilela. O industrialis-
mo e o desenvolvimento econômico do Brasil: 1808-1920. Revista de História, USP, nº 56, 4º Tri-
mestre de 1963. p. 7.
68
Capítulo 2 – Modelos explicativos da economia brasileira
121
LUZ, (1961). op. cit. p. 29.
122
Não conseguimos localizar sequer um exemplar dela nas bibliotecas universitárias do Rio de Janeiro,
apesar dela ter sido usada como obra básica de ensino nas universidades. Cf. SANTOS, Alessandra
Soares. Francisco Iglésias e as interpretações do Brasil: notas sobre um discurso historiográfico.
ANPUH – XXV Simpósio nacional de história – Fortaleza, 2009, Anais. https://goo.gl/2476Vv.
(acesso em fevereiro de 2016).
123
IGLÉSIAS, Francisco. A industrialização Brasileira. São Paulo : Brasiliense, 1986.
124
IGLÉSIAS, op. cit. p. 12.
69
Capítulo 2 – Modelos explicativos da economia brasileira
esforço manufatureiro. Ainda segundo ele, a falta de protecionismo em 1808 teria signi-
ficado o fracasso da tentativa da implantação de manufaturas por D. João VI, enquanto
o impulso dado com a tarifa Alves Branco teria sido meramente conjuntural, esta tendo
sido introduzida por causa de necessidades fiscais e não por uma proposta de incentivo a
manufaturas.
Ferreira Lima coloca que essas manufaturas coloniais teriam “um papel nada in-
significante, se levarmos em conta a época e o conjunto das suas realizações.”128 O au-
tor então passa a descrever as razões por que não houve um processo de surgimento de
manufaturas no final do século XVIII, repetindo o que já tinha sido colocado anterior-
mente, ou seja, a existência de leis restritivas; impostos sobre a produção (tecidos); a
existência de um mercado limitado, de três milhões de habitantes, com metade deles
escravos e trezentos mil índios; a autossuficiência das fazendas e engenhos; uma popu-
lação proletária que não consumia; limitações do progresso técnico; dispersão do agro-
negócio; deficiências dos meios de transporte e a escassez de capitais.129
125
LIMA, op. cit. Na introdução, o autor aponta que o livro estava pronto, basicamente, em 1961.
126
Oliveira Viana, que foi uma das fontes inspiradoras de Caio Prado Júnior, já apontava que o engenho
era uma “cultura industrial”, que “exige grandes cabedais”. VIANA, Oliveira. Evolução do povo
brasileiro. São Paulo: Companhia Editora Nacional, 1938. p. 73. No entanto, essa passagem, ao con-
trário de outras, não foi usada por Caio Prado.
127
ANTONIL, André João. Cultura e opulência do Brasil. Belo Horizonte: Itatiaia, 1982. p. 81 e segs.
128
id. p. 120. Geraldo Beauclair faz também um levantamento das manufaturas existentes na Colônia:
OLIVEIRA, Geraldo Beauclair Mendes de. A construção inacabada: a economia brasileira, 1822-
1860. Rio de Janeiro: Vício de Leitura, 2001.
129
LIMA, op. cit. pp. 121-125.
70
Capítulo 2 – Modelos explicativos da economia brasileira
De um ponto de vista central para nós, devemos dizer que todos os autores con-
cordam com uma periodização que mostra uma continuidade entre a colônia e a primei-
ra metade do século XIX. Mesmo aqueles que apontam que houve um esforço de im-
plantação de manufaturas no País entre 1808 e 1850 notam que esses fracassaram, de
forma que o estudo da situação do período colonial é relevante para se entender a situa-
ção na primeira metade do Império. Autores como Manolo e Fragoso chegam até a
afirmar que esse período seria uma continuação da situação anterior, um “colonial tar-
dio”, posterior a 1822, 131 apesar de todos os problemas conceituais que isso trás, por
causa da evidente mudança estrutural que foi o fim do Antigo Sistema Colonial e a In-
dependência.
130
id. pp. 272-273.
131
FRAGOSO, João & FLORENTINO, Manolo, op. cit. pp. 83 e 84. Tal assunto seria retomado e m
FRAGOSO, João & FLORENTINO, Manolo. Notas sobre o colonial tardio. Locus, vol. 6, 2000.
71
Capítulo 2 – Modelos explicativos da economia brasileira
força de trabalho existente no País era escrava. Segundo eles, o país ser uma colônia de
exploração, voltada para a exportação de produtos agrícolas primários.
A visão acima relatada certamente se encaixa nos modelos tradicionais, mas es-
barra em alguns problemas que não foram considerados, especificamente o simplismo
de sua premissa básica. Esta seria a de que o país seria dividido apenas entre senhores e
escravos – conforme colocou Caio Prado Júnior, o setor inorgânico, ou seja, o não en-
volvido diretamente com a agroexportação, seria composto por uma “nebulosa social
incoerente e desconexa”,132 sendo desconsiderada.
Outra hipótese sobre a massa da população seria a que esse grosso da população
formava uma “ralé”, sem destino, como colocou uma autora:
132
PRADO JÚNIOR, op. cit. p. 355.
133
FRANCO, Maria Sylvia Carvalho. Homens Livres na ordem escravocrata. São Paulo: IEB, 1969. p.
12. Apud MELLO, João Manuel Cardoso. O capitalismo tardio : contribuição à revisão crítica da
formação e do desenvolvimento da economia brasileira. São Paulo: Brasiliense, 1982. p. 77.
72
Capítulo 2 – Modelos explicativos da economia brasileira
que estamos falando de um número de pessoas que é numericamente, superior aos traba-
lhadores cativos, como se pode ver na tabela abaixo.
134
MARCÍLIO, op. cit.
135
Por exemplo, em 1787 um momento mais próximo do auge da atividade da mineração, a população
escrava do Mato Grosso correspondia a apenas 48,6% do total. SERRA, Ricardo Franco de Almeida.
Plano de Guerra e defesa da capitania do Mato Grosso enviado ao governador Caetano Pinto da
Miranda Monte Negro. Coimbra, 31 de janeiro de 1800. Mss BN. I-29,6,48.
136
CALDEIRA, op. cit. p. 15.
73
Capítulo 2 – Modelos explicativos da economia brasileira
Outro tipo de manufatura importante, citada por Ferreira Lima e muitos outros,
era a de construção naval – esta já foi objeto de alguns estudos, mas que carecem de
maior profundidade, pois não basta saber que se produziam navios no Brasil. Isso mes-
mo que considerarmos que o processo se iniciou mesmo antes da implantação das pri-
meiras vilas no Brasil, pois se construiu um bergantim em São Vicente, em 1527.137
Também não se leva em conta que a atividade teria uma constante e grande importância
ao longo de toda a Colônia e Império, inclusive com construção de embarcações de
grande porte, como naus de guerra e navios de longo curso, para o comércio de escra-
vos. É famoso o caso do galeão Padre Eterno, tratado na obra de Boxer. Esta observa
que, pela documentação da época, não faltavam carpinteiros e construtores navais no
Brasil e o trabalho desses resultou na construção “de um dos maiores navios construídos
no século XVII”. 138 Esta embarcação, lançada em 1659 foi incorporada à memória da
cidade, pois o local de sua construção ainda é conhecido como “ponta do Galeão”.
A questão relevante, que parece escapar aos que estudam do impacto da constru-
ção naval, é que para lançar um navio ao mar é necessária uma imensa série de insumos,
que demandam trabalhadores especializados para supri-los: cordoeiros, tanoeiros (para
os vasos usados a bordo), veleiros (e os tecelões que fabricavam as lonas), polieiros e
madeireiros (para o abate das árvores usadas na construção). Tudo isso afora os artesãos
que trabalhavam diretamente nas ribeiras, os estaleiros, como carpinteiros, ferreiros,
fundidores (para peças de bronze, tais como cavilhas e roldanas), calafates, torneiros e
feitores. Mesmo que se considere que parte desses trabalhadores era escrava, os mestres
destes seriam assalariados e constituíram um relevante “classe média” na colônia.
O parágrafo acima nos leva a um aspecto que gostaríamos de frisar e que será
abordado nos capítulos seguintes: a questão do papel indutor das manufaturas do gover-
no, inclusive os arsenais do exército, que não é abordado nos estudos de história eco-
nômica do Brasil Colonial. A própria existência desses é ignorada, assim como o papel
das forças armadas como um tipo de mercado consumidor.
137
SANTOS, Francisco Martins dos. História de Santos: 1532-1936. Vol. I. São Paulo: Revista dos Tri-
bunais, 1937. p. 27.
138
BOXER, C.R. Salvador de Sá and the Struggle for Brazil and Angola: 1602-1686. London: Athlone
Press, 1952. p. 310.
74
Capítulo 2 – Modelos explicativos da economia brasileira
139
FONTES, op. cit. p. 356.
75
Capítulo 3 - As forças armadas como consumidora de mercadorias.
Sumário
76
Capítulo 3 - As forças armadas como consumidora de mercadorias.
Antes de iniciarmos a trabalhar com a questão das forças armadas como uma
forma de mercado, ou seja, a dinâmica de suprimentos militares, é necessário definir
uma questão básica: o que é guerra ou, mais importante, o que é a história social da
guerra, o que no Brasil recentemente se convencionou chamar de “nova história mili-
tar”.
1
Militar prussiano (1780-1831), chegou ao posto de general de divisão e sua esposa publicou postuma-
mente seu opus magnus, o livro “da Guerra”, que é considerado o trabalho mais influente na filosofia
da guerra, tendo sido traduzido em todas as principais línguas do mundo. BASSFORD, Christopher.
Carl von Clausewitz. https://goo.gl/v8h54h (acesso em novembro de 2015).
2
CLAUSEWITZ, Carl Von. On War. Harmondsworth: Penguin Books, 1984. p. 101.
3
id. p. 119.
77
Capítulo 3 - As forças armadas como consumidora de mercadorias.
Do nosso ponto de vista, o importante é que esse tipo de estudo aborda, também,
todo o sistema de apoio, formal e conceitual, criado para o funcionamento das forças
armadas, incluindo todos os aspectos materiais, como os objetos, bem como os imateri-
ais, as pessoas e a criação de um suporte mental para sustentar moralmente os exércitos.
Esse esquema de apoio tem profundas implicações sociais, cujo conhecimento ajudaria
a entender a sociedade de cada região e tempo: um desses sistemas de apoio, talvez o
mais importante, é o referente à logística, a parte da organização governamental que
trata do sustento das forças militares através do fornecimento de meios e serviços. 7
4
HOBBES, Thomas. Leviathan. Chicago: University of Chicago, 1952. p. 85. (grifos nossos).
5
VEGETIUS, Públius Flavius. Vegetius: epitome of military Science. Liverpool: Liverpool University,
1993. p. 63.
6
CASTRO, Celso, et alii. Da história militar à nova história militar. IN: CASTRO, Celso; IZECKSOHN,
Vitor; KRAAY, Hendrik. Nova história militar brasileira. Rio de Janeiro: Editora FGV, 2004. p 12
7
BIBLIEX - BIBLIOTECA DO EXÉRCITO. Dicionário militar brasileiro. Rio de Janeiro: Bibliex,
2005. p. 548.
78
Capítulo 3 - As forças armadas como consumidora de mercadorias.
muitas vezes é ignorada até pelos profissionais do ramo, os próprios militares8: sem os
meios de subsistência adequados não existe um exército. Os soldados são seres huma-
nos, têm que se alimentar e receber alojamento como qualquer outra pessoa para pode-
rem sobreviver, sendo que eles sofrem de uma necessidade específica, que não afeta à
sociedade civil como um todo: têm que ser armados, municiados e receberem fardamen-
to.
8
Martin van Creveld, autor de dezessete livros sobre história militar, na sua obra Supplying War (abaste-
cendo a guerra), aponta que a falha em tratar aspectos logísticos é comum tanto aos historiadores ci-
vis quanto aos militares. Contudo, ele observa que os exércitos ao longo da história não podem se
mover independente de sua cadeia de suprimentos. CREVELD, Martin van. Supplying war:
logísticas from Wallenstein to Patton. New York: Cambridge University Press, 1990. p. 2.
9
BRASIL – Lei de 24 de setembro de 1828. Regula o fornecimento das rações de etapa do Exercito. A
lei previa que a carne fresca e o arroz podiam ser substituídos por meia libra de carne seca e 1/160 de
alqueire de feijão. Essa tabela de etapas permaneceu em curso até a década de 1880.
10
A transformação de unidades arcaicas de volume em peso depende da densidade do produto que, por
sua vez, é condicionada por uma série de fatores, como o tipo de farinha, granulação, humidade etc.
De forma muito geral trabalhamos com a densidade da farinha de mandioca como sendo de 800
gramas por litro e o alqueire como tendo 36,37 litros.
79
Capítulo 3 - As forças armadas como consumidora de mercadorias.
para alimentação, isso sem contar com dois litros de água, que normalmente podia ser
obtida na natureza. Tais números, que podem parecer pequenos, crescem de forma as-
sustadora quando pensamos que a alimentação não era fornecida para um homem, mas
sim para pelo menos um batalhão, a unidade militar formalmente devendo ter 800 sol-
dados (na prática, o normal era a metade disso). Desta forma, os valores a serem forne-
cidos passam então a serem bem mais críticos. Para um exército então, como o que ope-
rava contra os Farrapos, em 1845, com 9.254 homens, 11 isso implicava em um consumo
de diário de vinte toneladas, só de comida para os soldados. Essa questão, que é descon-
siderada por muitos, aparece aqui para mostrar as necessidades logísticas de uma força
militar, que podem escapar da visão de um leitor desavisado. Torna-se mais relevante
em nosso caso quando vemos que havia sistemas centralizados de abastecimento de
alimentos, que passavam pela burocracia do Arsenal de Guerra.
Tais fatores, como dissemos, são muitas vezes ignorados por amadores até por
profissionais. A tendência normal é achar que o poderio de um exército é medida pelo
número de “baionetas”, soldados armados, que se pode colocar em um campo de bata-
lha. Entretanto, isso é um erro, já que uma força que não tenha um mínimo de meios
para se alimentar desaparece rapidamente. O caso mais visível dessa situação é o das
tropas cercadas onde, apesar do chavão das ordens de “resistir até o último homem”,
isso raramente acontece. O problema não é a falta de coragem das pessoas e seus líde-
res, mas sua incapacidade de continuarem a combater sem combustível (lenha), comida
e, muito secundariamente, munições. Essas últimas se esgotam de forma muito mais
lenta do que os outros itens,12 apesar disso acontecer, como foi o caso da rendição do
Forte de Coimbra em 1864, no Mato Grosso do Sul, que teve que ser abandonado quan-
do as munições disponíveis acabaram. Isso por uma falha do sistema de suprimento do
exército imperial – especificamente o Arsenal de Guerra local –, que não enviou cartu-
chos do tipo adequado para o forte.13
11
BRASIL – Exército em Operações na Província de São Pedro. Mapa da Força do exército, quartel ge-
neral em Porto Alegre, 11 de março de 1846. IN: Anais do Arquivo Histórico do Rio Grande do Sul.
v. 7. Porto Alegre: Instituto Estadual do Livro, 1983. Coleção de Alfredo Varela. Correspondência
ativa. pp. 52-53. O mapa não inclui a força da Guarda Nacional destacada, possivelmente um núme-
ro semelhante aos soldados de linha citados.
12
CREVELD, op. cit. p. 35.
13
FRAGOSO, Augusto Tasso. História da Guerra entre a tríplice aliança e o Paraguai. I volume. Rio de
Janeiro: Imprensa do Estado Maior do Exército, 1934. p. 229.
80
Capítulo 3 - As forças armadas como consumidora de mercadorias.
3.2 Logística
Apesar de o termo logística ter sido incorporado na linguagem diária das pesso-
as, por causa de seu uso na área de administração, onde tem o significado dos processos
usados para o eficiente e efetivo transporte e armazenamento de mercadorias,14 a pala-
vra tem uma origem muito mais antiga e abrangente, sendo formalmente definido da
seguinte maneira pelo Exército Brasileiro:
14
COUNCIL of Supply Chain Management Professionals. Glossary of terms. https://goo.gl/xHihpo
(acesso em novembro de 2015).
15
BIBLIEX, op cit. p. 548
16
Pode parecer estranho, mas os Arsenais eram responsáveis pelo fornecimento de material de saúde e,
até, religioso, como as alfaias usadas em capelas e para missas campais. Há muitos documentos so-
bre isso, como o: BRASIL – Ministério da Guerra. Aviso do ministro ao diretor do Arsenal, José de
Vitória Soares de Andréa, mandando fornecer alfaias à colônia de Santa Thereza. Rio de Janeiro, 11
de Novembro de 1863. Mss. ANRJ. IG7 356.
81
Capítulo 3 - As forças armadas como consumidora de mercadorias.
recente, a maior parte dos autores concordando que vem do francês loger, alojar. No
entanto, outra origem da palavra, mais aproximada com o sentido moderno seria o ter-
mo grego logistike, significando cálculo, palavra usada pelos exércitos bizantinos no
século X para designar um oficial encarregado dos problemas administrativos das forças
armadas. Eram, portanto, atividades que sempre foram necessárias para garantir a pró-
pria guerra. 17
Hoje em dia, tal atividade cresceu a tal ponto que houve uma inversão da aparen-
te lógica da formação das forças militares: há mais pessoal empregado em atividades
administrativas e de apoio do que em combate. Na prosaica frase usada pelo exército
americano, a relação tooth to tail ratio (T³R), ou “relação dente para rabo”, referente ao
número de tropas empregadas em funções de combate em relação aos de apoio, a situa-
ção hoje é tal que há um homem na linha de combate (o dente) sendo servido por nove
na retaguarda, o “rabo” logístico, na pitoresca gíria do exército norte-americano.
19
17
11
7,5 7,2
17
BREEMEN, Henk van den (ed.). Breaktrough: from innovation to impact. Lunteren: The Owls Foun-
dation, 2014. p. 21.
18
MCGRATH, John J. The other end of the spear: the tooth-to-tail ratio (T3R) in modern military opera-
tions. Fort Leavenworth: Combat Studies Institute Press, 2007. p. 105.
82
Capítulo 3 - As forças armadas como consumidora de mercadorias.
unidades de combate, mas sim a dar apoio para que estas sim possam exercer a força
contra um oponente.
19
LANGINS, Janis. Conserving the Enlightenment: French Military Engineering from Vauban to the
Revolution. Cambridge: MIT Press, 2004. p. 125
20
CREVELD, op. cit. p. 11.
83
Capítulo 3 - As forças armadas como consumidora de mercadorias.
21
OFÍCIO de D. Diogo de Souza ao Conde de Linhares, Porto Alegre, 16 de dezembro de 1811. Revista
do Arquivo Público do Rio Grande do Sul. Setembro de 1923, nº 11. Porto Alegre: Escola de Enge-
nharia de Porto Alegre, s.d. p. 17.
22
CHILDS, John, Armies and warfare in Europe: 1648-1789. New York: Holmes and Meier, 1982. p.
154.
84
Capítulo 3 - As forças armadas como consumidora de mercadorias.
23
CREVELD, op. cit. p. 17.
24
MACCASKILL, Douglas C. Logistics in the Age of Marlborough. Strategy & Tactics Magazine, nr.
78. Jul-Aug. 1978. p. 36.
85
Capítulo 3 - As forças armadas como consumidora de mercadorias.
Étienne e de Charleville 25, foram criados por ele. Produziram 600.000 fuzis na última
década do século XVII e este modelo, pelo qual o governo se responsabilizava pelo for-
necimento de equipamentos uniformes para suas tropas, foi copiado pelos outros países,
apesar do processo desse procedimento ter sido lento.26 Na própria França o sistema de
fábricas governamental conviveu com os fornecedores privados, mas a simples ideia de
que a administração pública devia assumir essa função foi uma revolução na forma de
se pensar a guerra na Idade Moderna.
De qualquer forma, a medida mais básica e talvez de maior importância foi defi-
nir as necessidades das forças, tal como foi dito: isso teve uma influência marcante, até
os dias de hoje. Por exemplo, até aquele momento não se forneciam uniformes para as
tropas, essas indo para campanha com suas próprias roupas, o que resultava que, ao lon-
go de alguns meses, os homens estavam descalços e maltrapilhos. Le Tellier introduziu
um sistema de fornecimento de roupas, em prazos definidos, sem descontos no paga-
mento dos soldados. Isso abriu o caminho para o uso de uniformes, que se generalizaria
ao correr do século XVII, se tornando universal nas forças armadas do ocidente no sécu-
lo seguinte. Ou seja, o estado passava a assumir a responsabilidade por equipar suas
forças, mesmo em tempo de paz, um passo importantíssimo em termos de montagem de
um aparato logístico tal como entendemos hoje em dia.
O que é evidente nessas breves linhas é que houve todo um processo de transi-
ção, de um sistema logístico praticamente inexistente, para um cada vez mais complexo,
a ponto de que hoje em dia, como colocamos anteriormente, haja mais pessoas empre-
gadas em atividades de apoio do que propriamente combatendo. Esse foi um processo
mais ou menos universal, afetando mesmo economias atrasadas, já que a importação de
alguns produtos era inviável, como era o caso de uniformes. Uma das soluções foi, co-
mo no caso da França, a implantação de arsenais, para o fornecimento de peças de repo-
sição, armamento, equipamento e, principalmente uniformes e isso teve uma grande
influência na formação dos estados nacionais, como veremos a seguir. No entanto, vale
um aparte para apontar que, mesmo numa colônia como o Brasil, a ocupação das diver-
sas regiões foi acompanhada pela implantação de depósitos de artigos bélicos, trens e,
25
Criados respectivamente, em 1665 e 1675. MORTAL, Patrick. Les armuriers de l’État: du Grand Siè-
cle a la globalisation, 1665-1989. Villeneuve d’Ascq: Presses Universitaires du Septentrion, 2007.
p. 38.
26
LYNN, John A. Giant of the Grande Siècle: the French army, 1610-1715. Cambridge: Cambridge
University Press, 2006. p. 181.
86
Capítulo 3 - As forças armadas como consumidora de mercadorias.
mais tarde, os Arsenais, o principal deles sendo o do Rio de Janeiro, como será tratado
mais além.
27
ROBERTS, Michael. The Military Revolution, 1560-1660. Belfast: Queen’s University, 1956. O Texto
foi revisado e reeditado em ROBERTS, Michael (ed.) Essays in Swedish History. London:
Weidnfeld & Nicolson, 1967. A obra foi novamente reeditada em 1995, como parte da coletânea
preparada por Clifford J. Rogers: The Military Revolution Debate : Readings on the Military Trans-
formation of Early Modern Europe. Oxford: Westview Press, 1995. pp. 13-35.
28
Podemos citar, entre muitas outras obras, as de PARKER, Geoffrey. The military revolution, 1550-
1660 - a myth? Journal of Modern History, 48, June, 1976. e The Military Revolution : Military in-
novation and the Rise of the West, 1500-1800. Cambridge: Cambridge University Press, 1988, bem
como a de BLACK, Jeremy. A military revolution : military change and European society - 1550-
1800. London: Macmillan, 1991. e DUFFY, Michael (ed.): The military revolution and the State :
1500-1800. Exeter: Exeter University Press, 1986. Em português, o livro que mais trabalha com o
conceito é o de KENNEDY, Paul. Ascenção e queda das grandes potências: transformação econô-
mica e conflito militar de 1500 a 2000. Rio de Janeiro: Campus, 1989.
87
Capítulo 3 - As forças armadas como consumidora de mercadorias.
O exército não deveria mais ser uma massa bruta, no estilo suíço, nem
uma coleção de indivíduos belicosos, no estilo feudal; era para ser um
organismo articulado do qual cada parte respondia aos impulsos de
cima. A demanda por unanimidade e precisão de movimento levou na-
turalmente a inovação da marcha em cadência.30
Para tudo isso funcionar, era necessário que os soldados fossem treinados em
complexas manobras de grupo, aplicando sua força de forma combinada, como se fos-
sem peças de uma máquina. Como consequência, não era mais viável, como antigamen-
te, montar-se um exército a partir do nada, para apenas uma campanha, dispensando-o
em seguida: sem a mobilização permanente não seria possível manter o nível de conhe-
cimento das tropas de uma estação de campanha para a seguinte. Aqui cremos ser inte-
ressante notar que Nassau ordenou a preparação do primeiro manual de treinamento de
soldados, o Kriegskunst zu Fuss (ver Figura 5), que foi copiado por diversos países: só
na Inglaterra foram feitas três versões dele. O livro, feito objetivando atender um exérci-
29
ZUÑIGA, Melchor de Alcazar. Arte de esquadronar, y exercicios de la infanteria por el Maestro del
Campo D. Melchor de Alcazar y Zuñiga, Marqués del Valle de la Paloma. Madrid: Juan Garcia
Infanzon, 1703. p. 14.
30
ROBERTS, op. cit. p. 198.
88
Capítulo 3 - As forças armadas como consumidora de mercadorias.
31
GHEYN, Jacob de. The Renaissance drill book. London: Greenhill books, 2003. p. 33.
89
Capítulo 3 - As forças armadas como consumidora de mercadorias.
32
WEBER, Max. Ensaios de Sociologia Rio de Janeiro: Ed. Guanabara, 1982. p. 301 e segs. Ver tam-
bém: FOUCAULT, Michel. Vigiar e punir: história da violência nas prisões. Petrópolis: Vozes,
1989. p. 257 e segs.
33
BLACK, op. cit. p. 6.
90
Capítulo 3 - As forças armadas como consumidora de mercadorias.
çaram a haver ações operações militares que se desdobravam em escala global. A gran-
de potência do período, a Espanha, era o império onde “o sol nunca se punha”, tendo
colônias espalhadas das Américas ao Oceano Pacífico, incluindo, depois de 1580, as
possessões portuguesas na África, Ásia e América. Com a contestação das Províncias
Unidas dos Países Baixos34 ao domínio espanhol, a luta se expandiria para envolver
todos os continentes habitados, transformando o conflito, quando se generalizou na
Guerra dos Trinta Anos, no que alguns autores chamam da “Primeira Guerra Mundi-
al”.35
É importante apontar que esse crescimento das forças armadas ampliou em mui-
to o impacto da guerra e o da preparação para o conflito nas sociedades. Estamos falan-
do de dezenas de milhares de homens “improdutivos”, já que os soldados, em tese, estão
alijados do circuito econômico, pois em uma visão estritamente clássica de economia,
eles não produzem nada, como tratamos anteriormente. Além disso, seu potencial como
consumidores individuais é reduzido, eles sobrevivendo em um nível básico, de subsis-
tência, com fornecimento de necessidades mínimas pelo estado, apesar deles serem as-
salariados. Ver as forças armadas por esse aspecto improdutivo, contudo, é uma visão
simplista e que consideramos equivocada.
34
Na terminologia brasileira usa-se a palavra Holanda, para designar os Países Baixos (Nederland). Con-
sideramos o uso do nome como complexo, especialmente tendo em vista que a Holanda é apenas
uma das sete províncias que originalmente compunham a confederação. Na verdade, um dos nomes
do país, em holandês, é Republiek der Zeven Verenigde Nederlanden, a República das Sete
Províncias dos Países Baixos.
35
Durante a Guerra dos Oitenta Anos (1568-1648), de independência dos Países Baixos, estes iriam ata-
car as colônias luso-espanholas na América, como na invasão de Pernambuco, em 1630; na África,
com a conquista de Angola, em 1641 e, principalmente, na Ásia. Nesta última região, o conflito pra-
ticamente eliminou o império lusitano que existia ali. ISRAEL, Jonathan I. The Dutch Republic and
the Spanish world, 1606-1661. Oxford, Oxford University Press, 1986. pp. 117, 197, 271 e segs.
91
Capítulo 3 - As forças armadas como consumidora de mercadorias.
Isso sem falar no uso das tropas na expansão da base econômica dos países, co-
mo foi o caso das forças do Rio de Janeiro que participaram na Reconquista de Angola,
em 1648,36 uma das principais fontes de escravos do Brasil. Os cativos eram um “insu-
mo” indispensável para a economia agroexportadora, que fora tornado inacessível aos
luso-brasileiros pela ação militar da Companhia das Índias Ocidentais holandesa e que
foi recuperado por outra ação bélica. Além dessas questões, os militares consumiam
uma boa parte das mercadorias produzidas pela sociedade, gerando a movimentação de
recursos avultados, o que ativava o comércio.
36
BOXER, Charles. Salvador de Sá and the Struggle for Brazil and Angola: 1602-1686. London: Atho-
lone press, 1952. p. 257 e segs.
37
ROBERTS, op. cit. p. 218. (A tradução desse texto – e de todos os outros, a não ser que especificado
em contrário, é nossa).
92
Capítulo 3 - As forças armadas como consumidora de mercadorias.
ser de 220 metros,38 de forma que os pontos de flanqueamento podiam ficar mais distan-
tes (ver Figura 6). Na verdade, ficar mais longe uns dos outros era uma necessidade, por
causa da maior espessura das muralhas, às vezes de até 50 metros.
O traçado italiano era composto de uma estrutura específica, o baluarte (ver Fi-
gura 6), uma construção quadrangular, que se projetava entre dois lanços de muralha e a
partir da qual os canhões podiam flanquear os muros adjacentes.
38
O alcance com pontaria das armas de fogo era bem menor, mas essa distância, conhecida como “um
tiro de mosquete”, era a que disparos feitos em conjunto teriam efeito. Canhões tinham um alcance
muito maior, seu maior efeito sendo até a distância de quatrocentos metros. PIMENTEL, Luís Ser-
rão. Método lusitânico de Desenhar as Fortificações das Praças Regulares, & Irregulares, Fortes de
Campanha, e outras obras pertencentes a arquitetura militar. Lisboa: Antônio Craesbeeck, 1680. p.
21 e HUGHES, B. P. La puissance de Feu: L’efficacité des armes sur le champ de bataille de 1630 à
1850. Lausanne: Edita-Vilo, 1976. p. 32.
39
HALE, J. R. The Early development of the Bastion : an Italian Chronology, c. 1450-c.1534. IN: HALE,
J. R. Renaissance War Studies. London: Hambledon, 1983. p. 37
40
VIOLLET-LE-DUC, E. E. Military Architecture. London: Greenwich Books, 1990. pp. 238 e segs.
93
Capítulo 3 - As forças armadas como consumidora de mercadorias.
Este desenho de fortes teve um imenso efeito, se espalhando de forma muito rá-
pida por toda a Europa e por suas colônias – Francisco de Holanda, que fora enviado
pelo rei de Portugal à península italiana para observar os desenvolvimentos técnicos e
artísticos da região, construiu já em 1541 uma muralha fortificada usando o traçado ita-
liano na cidade de Mazagão, no Marrocos, ocupada pelos Portugueses. Como colocou
um autor:
41
DUFFY, Christopher. Siege Warfare : the fortress in the early modern world 1494-1660. London:
Routledge & Keegan Paul, 1979. p. 41.
42
Para um estudo de um caso específico dos gastos em fortificações, o de Siena, na Itália, ver PEPPER,
Simon & ADAMS, Nicholas. Firearms & Fortification : Military Architecture and Siege Warfare in
Sixteenth-Century Siena. Chicago: University of Chicago Press, 1986. A cidade-estado, incapaz de
arcar com os gastos da construção de novas fortificações para suas dependências, não teve condições
de mobilizar um exército capaz de resistir às tropas do Sacro Império, sendo ocupada.
43
GUILMARTIN Jr., John F. Os canhões do Santíssimo Sacramento. IN: Navigator, Rio de Janeiro, n°
17, 1981.
94
Capítulo 3 - As forças armadas como consumidora de mercadorias.
120
100
80
Navios
60
40
20
44
Na marinha Brasileira, chamavam-se esses navios em reserva de “desarmados”, isto é, não estavam em
situação de combater, apesar de poderem manter seus canhões e terem tripulações reduzidas. Em
1829, depois da paz com a Argentina, havia 29 navios desarmados, inclusive o maior da frota, a nau
Pedro I, de 74 canhões. No mesmo ano, apenas dezesseis navios estavam em serviço ativo. BRASIL
– Ministério da Fazenda. Documentos com que instruiu o seu relatório à Assembleia Geral Legisla-
tiva do Império do Brasil o Ministro Secretario de Estado dos Negócios da Fazenda, e Presidente do
Tesouro Nacional, Miguel Calmon Du Pin e Almeida, na sessão de 1829. Rio de Janeiro: Tip. Impe-
rial e Nacional, 1829, p. 320.
45
O ACHAMENTO do Atlântico Sul: relação anônima dos capitães-mores e Barcos do Reino se tem ido
vindo a Índia (1497-1696). IN: Anais da Biblioteca Nacional. Vol. 112. Rio de Janeiro: 1994. pp. 9-
34.
95
Capítulo 3 - As forças armadas como consumidora de mercadorias.
Esse processo foi um que se deu no mundo todo: as nações que não importaram
e assimilaram os valores militares europeus – e com isso sua estrutura de arrecadação
de impostos e de governo – ficaram sujeitas a serem elas mesmas conquistadas e trans-
formadas em colônias. Como disse Geoffrey Parker:
46
id. p. 154.
96
Capítulo 3 - As forças armadas como consumidora de mercadorias.
oficialidade daquele país era, basicamente, de extração nobre, um grande número deles
desertou da França quando a Revolução eclodiu e o exército ficou sem suas lideranças.
Dessa forma, o combate contra exércitos profissionais, altamente treinados como eram
os das outras monarquias europeias, se dava em situação de desvantagem para as forças
revolucionárias. Uma das formas encontradas para resolver esse problema foi a mobili-
zação popular, que para funcionar dependia basicamente de um sentido de patriotismo
para que o soldado continuasse a operar – nos exércitos tradicionais, rígidos, isso era
impossível, pois as tropas desertariam. 47
800.000
600.000
400.000
200.000
47
Vale a pena repetir a famosa frase de Frederico, o Grande: “a maior parte dos soldados precisa do olhar
de seus oficiais e o medo das punições, para induzi-los a cumprir seu dever”. LEE, Wayne E. War-
fare and Culture in World History. In: LYNN II, John A. The battle culture of Forbearance, 1660-
1789. New York: New York University, 2011. p. 97.
48
Dados obtidos em BLACK, op. cit. p. 6 e LYNN, John. The pattern of army growth, 1445-1945. In:
LYNN. John. Tools of war: instruments, ideas, and institutions of warfare, 1445-1871. Chicago:
University of Illinois, 1990. pp. 3 e segs.
97
Capítulo 3 - As forças armadas como consumidora de mercadorias.
ram adotadas. Mais importante, contudo, foram os passos tomados por cada país para
lidar com as necessidades militares, que não foram idênticos e não tiveram o mesmo
sucesso.
Por exemplo, a Inglaterra conseguiu sua expansão colonial não através do au-
mento da forças de terra – essas eram numericamente reduzidas até o século XX. 49 O
caminho seguido pelos britânicos foi o crescimento naval, eles se tornando a principal
força marítima mundial a partir da segunda metade do século XVII. Os meios usados
para se alcançar essa supremacia em termos militares-navais são vários, o estabeleci-
mento de uma burocracia para regular as atividades militares, como os Board of Ord-
nance (Departamento de Material Bélico) e o Navy Board (Departamento da Marinha)
sendo fundamentais. Estes eram encarregados do fornecimento de armas, com seus pró-
prios laboratórios pirotécnicos, fundições de canhões e fábricas de pólvora (Board of
Ordnance), enquanto o Navy Board mantinha vários arsenais reais, tendo sido respon-
sável, inclusive, pela criação do que é considerada como a primeira fábrica usando os
princípios de produção em massa, a fábrica de moitões de Portsmouth, que abordamos
no quinto capítulo. 50 E o papel indutor da marinha inglesa na formação de manufaturas
também foi muito grande. Como colocou Hobsbawn:
49
Isso não quer dizer que o recrutamento para as forças armadas fosse menos severo lá. Em 1801 o par-
lamento autorizou o recrutamento de 350.000 homens para o exército, marinha e para o Ordnance
Department. Em 1811, foram autorizados 514.000 homens, um imenso esforço. DEANE, Phyllis.
War and industrialisation. WINTER, J. M. (ed.) War and economic development: Essays in memory
of David Joslin. Cambridge: Cambridge University, 1975. p. 97.
50
COOPER, Carolyn C. The Portsmouth System of Manufacture. Technology and Culture. vol. 25, nr. 2
(Apr., 1984). The Johns Hopkins University Press. pp. 182 e segs.
98
Capítulo 3 - As forças armadas como consumidora de mercadorias.
51
HOBSBAWM, E. J. Industry and Empire : From 1750 to the Present Day. Harmondsworth: Penguin,
1985. p. 50.
52
Essa era a tripulação “em tempo de guerra”, de uma nau de 74 canhões do Brasil, a Imperador do Bra-
sil, que longe estava de ser a maior do período. Cf. MAPA de navios desarmados. Rio de Janeiro, 26
de abril de 1832, João Taylor, Chefe de Divisão. Quartel General da Marinha. IN: BRASIL – Minis-
tério da Marinha. Relatório do Ministro da Marinha do ano de 1831 apresentado à Assembleia geral
em 7 de maio de 1832. S.n.t.
53
Ver o discurso do Secretário da Marinha dos Estados Unidos, John H. Dalton, feito em Pittsburgh, 19
de setembro de 1997. DALTON, John H. Remarks as delivered by The Honorable John H. Dalton
Secretary of the Navy Biennial Convention of the Maritime Trades Department Pittsburgh, Pennsyl-
vania. 19 September 1997. https://goo.gl/VnkTEf (acesso em novembro de 2015).
54
Na época, o consumo de água doce, no mar, era complicado, pois não havia tratamento d’água eficaz e
a durabilidade da água em barris era pequena, o que não ocorria com o álcool. Dai a elevada quanti-
dade de bebidas que normalmente eram carregadas a bordo, apesar do número citado certamente ser
excessivo para um cruzeiro de seis meses: 3,5 litros, por dia, por homem.
55
KENNEDY, op. cit. p. 103.
99
Capítulo 3 - As forças armadas como consumidora de mercadorias.
construíam navios de maior porte para o governo, mas estavam disponíveis para dar
suporte logístico a eles e a marinha mercante era uma fonte – não inesgotável, é verdade
– de pessoal treinado.56
Talvez mais importante, foi a manutenção de um sistema fiscal que não era par-
ticularmente moderno, mas era considerado confiável, de forma que a Grã-Bretanha
conseguia financiar suas atividades governamentais em condições vantajosas. Por
exemplo, o Banco de Londres, que se tornaria um paradigma de instituição financeira,
foi fundado em 1694, facilitando a obtenção de empréstimos por parte do governo. Des-
sa solidez financeira surgiu a possibilidade de se fazerem mais gastos em tempo de
guerra: por exemplo, no período de 1600 a 1604, durante a guerra contra a Espanha, os
gastos militares corresponderam a 70,7% do orçamento inglês uma percentagem seme-
lhante aos gastos que foram feitas na Guerra da Grande Aliança (1688-1697), de 72,8%,
apesar dos valores envolvidos terem crescido nada menos do que 23 vezes (ver Tabela
3).57 Um sistema financeiro saudável permitia um nível de participação militar bem
além do que o tamanho dos exércitos de terra poderia indicar – um diferencial nas cam-
panhas militares inglesas foram os subsídios oferecidos pela coroa britânica aos seus
aliados, como as 670.000 libras esterlinas fornecidas à Frederico da Prússia pela con-
venção anglo-britânica de 1758.58
56
O termo presiganga, que no Brasil significava um navio prisão, surgiu, segundo a maior parte das fon-
tes, da expressão inglesa press gang, um grupo de recrutamento forçado para as forças armadas, uma
prática que deixou suas marcas mesmo no Brasil. Para uma discussão sobre a Presiganga, ver: SOA-
RES, Carlos Eugênio Líbano. A capoeira escrava no Rio de Janeiro: 1808-1850. Campinas: Univer-
sidade Estadual de Campinas, 1998. Tese de Doutorado.
57
WHEELER, Ames Scot. The Making of a World Power: war and the military revolution in seventy
century England. London: Sutton, 1999. p. d209.
58
SCHWEIZER, Karl W. England Prussia and the Seven Years War : Studies in allied policies and di-
plomacy. Lewiston: Edwin Mellen, 1989. p. 61.
100
Capítulo 3 - As forças armadas como consumidora de mercadorias.
A França, que, como dissemos, tinha o maior exército na Europa, teve seu ativo
papel militar nos séculos XVII e XVIII possibilitado também por uma administração
eficiente dos recursos locais, fundamentada no grande aparato burocrático voltado para
a questão da manutenção das operações bélicas. Um desses aspectos foi a construção de
um cinturão de fortificações para a defesa das fronteiras francesas pelo marechal Vau-
ban, que edificou ou modernizou mais de 300 fortificações. Essas obras defensivas,
imensamente caras – Neuf-Brisach, a mais marcante de todas, custou, até 1705,
2.916.565 libras tornesas, em uma época em que o salário mensal de um trabalhador era
em média de 19 libras tornesas por mês. Isso, junto com a manutenção de imensos exér-
citos, implicava na necessidade de um aparato fiscal eficiente, que conseguiu fazer com
que a França sobrevivesse com constantes e imensos déficits durante todo o período
moderno, com só duas bancarrotas – apesar da de 1788 certamente ter sido de funda-
mental importância no fim do regime, como observou um autor:
59
KENNEDY, op. cit. p. 87.
60
Utilizando programas de atualização monetária, este valor corresponde a oitocentos milhões de dólares
de hoje. Correção feita com base no “valor de trabalho” da moeda britânica, atualizado a partir do sí-
tio: Measuring Worth. https://goo.gl/rtcTbc. (acesso em agosto de 2017).
101
Capítulo 3 - As forças armadas como consumidora de mercadorias.
A influência técnica dos autores franceses era facilitada pelo fato de que seu idi-
oma era uma espécie de língua franca à época, sendo falada nos centros das monarquias
europeias do período: por exemplo, os sete volumes sobre teoria militar do italiano
Conde de Algarotti foram publicados em Berlim, em 1772, só que em francês.63 Até no
distante Brasil, quando era necessária a comunicação entre pessoas que não dominavam
o português, se usava a língua francesa: foi o caso dos oficiais mercenários enviados
para o Brasil em meados do século XVIII. Italianos, alemães e até um sueco, como o
general Funck, se comunicavam em francês, às vezes claudicante, como informava o
próprio Rei D. José ao conde da Cunha, em 1767 sobre Funck: “parecerá a V. Ex. (...)
um homem inepto, pela grande dificuldade que tem para se explicar em qualquer língua
que não seja a de Suécia, sua pátria”.64 Mas toda a documentação produzida por eles,
pelo menos no início, era em francês.
61
LYNN, op. cit. p. 9.
62
DUFFY, Christopher. The Military Experience in the Age of Reason. London: Routledge & Kegan
Paul, 1987. p. 18
63
AGAROTTI, Conde. Ouvres du Comte Agarotti. Berlim: G. J. Decker, 1772. 6 vols.
64
CARTA régia de 20 de junho de 1767 para o conde da Cunha. In: WINZ, Pimentel. História da Casa
do Trem. Rio de Janeiro: Museu Histórico Nacional, 1962. p. 524.
102
Capítulo 3 - As forças armadas como consumidora de mercadorias.
plomacia europeia e os efeitos do país na cultura militar não diminuíram com a Revolu-
ção Francesa, apesar dos valores da Revolução serem repulsivos às lideranças militares
do período, ligadas às nobrezas e casas reinantes nacionais.
65
Um caso muito citado é o da batalha naval conhecida como o Glorioso Primeiro de Junho, de 1794, a
frota francesa foi comandada pelo contra-almirante Louis Thomas Villaret de Joyeuse, que era ape-
nas um tenente até 1792, quando fez o “juramente cívico” à República. GARDINER, Robert. War-
ships of the Napoleonic Era: Design, Development and Deployment. Barnsley: Seaford, 2011. p.
112.
66
O serviço militar vitalício foi introduzido por Pedro o Grande em 1699. MOON, David. The Russian
peasantry: 1600-1930, the World the Peasants Made. London: Routledge and Keegan Paul, 1999. p.
83.
67
PORTUGAL – Regência. Decreto de 13 de maio de 1808. Sobre recrutamento para os regimentos do
Brasil.
103
Capítulo 3 - As forças armadas como consumidora de mercadorias.
afetando todos os homens – na verdade, a ideia era incluir toda a população em um en-
saio de guerra total. O radical decreto que instituiu a medida, chamada de levée en mas-
se (conscrição em massa), deixava isso muito claro, ao especificar que:
68
FRANÇA – Decrét qui determine le mode de réquisition des citoyens français contre les ennemis de la
France. 24 de Agosto de 1793. Artigo 1º. IN: DUVERGIER, J. B. Lois, Décrets, Ordonnances, Ré-
glements, Avis du Conseil-D’État. Tome Sixiéme. Paris: A. Guyot, 1834. p. 107.
104
Capítulo 3 - As forças armadas como consumidora de mercadorias.
Não cabe aqui discutir as campanhas de Napoleão e depois dele, basta dizer que
o exército francês surgiu, na primeira metade do século XIX, como o paradigma em
assuntos militares, que quase todos os países tentavam copiar, com maior ou menor su-
cesso. O mesmo acontecia com relação à marinha inglesa, a ponto de mesmo as tradi-
ções de um e outro serem copiadas, como o uso de uniformes de zuavos, inicialmente
uma tropa de argelinos a serviço da França, mas que tiveram unidades usando os trajes
típicos em vários países, como os Estados Unidos ou o Brasil. Em termos navais, quase
todas as marinhas do mundo (não a francesa, é claro) usam nas insígnias de seus oficiais
uma volta, lembrando o laço que o almirante Nelson usava para amarrar a manga de seu
uniforme, depois de perder o braço em combate.
69
CHEMINADE, Jacques. A citizen of all places, and a contemporary of all times. Executive Intelligence
Review. Volume 26, Number 2, January 8, 1999. p. 74
105
Capítulo 3 - As forças armadas como consumidora de mercadorias.
Mesmo assim, a influência francesa continuou no país até a 2ª Guerra Mundial, pois o
Brasil contratou uma missão militar naquele país, em 1919. Mas a adoção dos princípios
usados pelo exército europeu, tanto em termos logísticos como táticos ou de organiza-
ção nunca foi completa ou mesmo muita extensa, devido aos problemas da realidade
nacional.
70
George Orwell, em nossa opinião, resumiu bem a filosofia atrás da adoção do passo de Ganso: “uma
parada militar é realmente um tipo de dança ritual, algo como o balé, expressando certa filosofia de
vida. O passo de ganso, por exemplo, é uma das visões mais horríveis no mundo, muito mais aterro-
rizante que um bombardeio de mergulho. É simplesmente uma afirmação aberta de força; contida
nele, bem consciente e intencionalmente, está a visão de uma bota espatifando um rosto. Sua feiura
é parte de sua essência, pois o que ele diz é ‘sim, sou feio, e você não se atreve a rir de mim’, como
um valentão que faz caretas para sua vítima”. ORWELL, George. England your England.
https://goo.gl/DgcZTI (acesso em dezembro de 2016).
106
Capítulo 3 - As forças armadas como consumidora de mercadorias.
estava longe de ser hegemônica. Os países da África, Ásia e Américas podiam atender
suas necessidades sem terem que recorrer em massa à importação de produtos europeus
– mesmo porque isso seria tecnicamente inviável, dada a tecnologia de transportes da
época. A situação se reverte com a segunda Revolução Industrial, de meados do século
XIX, mas esta mudança não foi um instrumento indispensável na conquista do mundo,
que já tinha se delineado cem anos antes.
71
KENNEDY, op. cit. p. 148.
72
Id. p. 148.
107
Capítulo 3 - As forças armadas como consumidora de mercadorias.
Não que a questão técnica fosse inteiramente irrelevante, o efeito indutivo das
guerras para o desenvolvimento técnico e científico do mundo ocidental também já foi
trabalhado em livros74 e o abordaremos no capítulo 5 deste trabalho. Menos trabalhado
foi o papel do surgimento e consolidação das forças armadas nas economias nacionais,
apesar desses efeitos serem conhecidos de longa data. O rei Frederico, o Grande, da
Prússia, em uma das suas cartas com o filósofo d’Alembert, escreveu:
73
Este ponto pode parecer polêmico, mas como descrito mais acima, a partir do século XVII, com a Re-
volução Militar, nenhum grande senhor teve condições de desafiar de forma bem sucedida o poder
dos monarcas. Isso, contudo, não implicou em uma mudança conceitual na proposta de que só o go-
verno pode exercer de forma legítima a violência.
74
Entre outros, ver MUNFORD, Lewis. Technics and civilization. New York, Harcourt, Brase and Co.,
1934. p. 81 e segs.
75
CARTA de Frederico da Prússia a d'Alembert, Berlim, 18 outubro 1770. IN: FREDERICO, Rei da
Prússia. Œuvres de Frédéric le Grand. Berlin: Imprimiere Royale: 1854. vol. 24. p. 506
108
Capítulo 3 - As forças armadas como consumidora de mercadorias.
Deve-se dizer que as tropas podiam ser usadas para se abastecerem em tempos
de paz, como na própria Prússia, onde os soldados eram dispensados por parte de tempo
para trabalhar nas terras de seus senhores feudais. Algo semelhante acontecia na França,
onde os homens tinham autorização para exercer seus ofícios quando não estavam de
serviço – o que acontecia durante dez meses por ano, neste período eles não sendo pa-
gos pelo governo, tendo que sobreviver por seus próprios meios. 78 Mesmo no Brasil –
raras situações, é verdade –, os soldados tinham permissão para trabalhar na agricultura,
como aconteceu com o regimento enviado de Portugal para Macapá, em 1754. Mas este
era um caso de uma proposta mista, de colonização e defesa, não a situação normal das
tropas do Brasil.
No final, os soldados de toros os países tinham que ser abastecidas pelo governo
quando estavam nos quartéis, às vezes em situações que só podem ser vistas como de
tensão para os recursos locais: durante as guerras holandesas, o Padre Vieira calculava,
de forma subestimada, a população de Salvador em 3.500 pessoas, enquanto a guarnição
da cidade era de 2.500 soldados79 – praticamente um homem no serviço militar para
76
Para uma discussão do tema, ver: GOLDSTEIN, Joshua S. War and Economic History. IN: Mokyr, Joel
(ed.). The Oxford Encyclopedia of economic history. Oxford: Oxford University, 2003. Vol. 5. pp.
215-218
77
CHILDS, op. cit. p. 147.
78
Id. p. 58.
79
VIEIRA, Antônio. Discurso do Padre Antônio Vieira em que persuade a entrega de Pernambuco aos
Holandeses. s.d. [1648]. IN: Revista do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro, tomo LVI, parte
I. Rio de Janeiro: Companhia Tipográfica do Brasil, 1893. p. 42.
109
Capítulo 3 - As forças armadas como consumidora de mercadorias.
cada morador da cidade, certamente um grande estímulo para a economia local. O efeito
positivo era contrabalançado pelos impostos necessários para manter a tropa, que, de um
ponto de vista moderno, de “estado mínimo”, seriam considerados como “gastos esté-
reis”, mas não há dúvida que eram necessários – o documento de Vieira foi escrito em
1648, pouco tempo depois da Companhia das Índias Ocidentais ter mantido o Recônca-
vo baiano sob cerco, com uma frota estabelecida na ilha de Itaparica por vários meses.
Por sua vez, o abastecimento das forças foi se tornando cada vez mais complica-
do, à medida que as necessidades das forças foram aumentando. Não bastava mais sim-
plesmente alimentar os soldados: como já foi dito, era necessário fornecer uma série de
outros elementos, como armas, uniformes e equipamentos, de forma que os governos
começaram, crescentemente, a criar sua própria estrutura manufatureira, gerando em-
pregos nas cidades.
A articulação desse processo com nossa proposta de trabalho pode não parecer
evidente, mas quando falamos de uma estrutura burocrática necessária para a formação
de grandes exércitos e marinhas, não estamos tratando apenas de salários. A questão do
pagamento direto às tropas, por incrível que pareça, não é um fator decisivo no funcio-
namento das tropas não mercenárias. No entanto, a arrecadação de recursos é de funda-
mental importância para sustentar as forças em campanha e para prepara-las para as
operações, com a compra de uniformes, equipamentos e armas, o que, no caso do Brasil,
era feito pelo Arsenal de Guerra. Além disso, era necessário um aparato governamental
para distribuir esses recursos para as tropas, tudo demandando pessoal e impostos.
110
Capítulo 3 - As forças armadas como consumidora de mercadorias.
80
Apesar dos efeitos de longo prazo do tratado de comércio, ele era apenas uma parte dos textos assina-
dos. Com três artigos, é muito mais sucinto que os dois tratados militares assinados então, que lidam
com as operações bélicas na Espanha e das vantagens prometidas para Portugal por sua participação
no conflito, inclusive a garantia de posse da Colônia de Sacramento. BATISTA, Felipe de Alvaren-
ga. Os tratados de Methuen de 1703: guerra, portos, panos e vinhos. Dissertação de mestrado. Rio
de Janeiro: UFRJ, Instituto de Economia, 2014 (mimeo). pp. 114 e segs.
111
Capítulo 3 - As forças armadas como consumidora de mercadorias.
lusitanas eram consideráveis (ver Gráfico 11), quando vemos as dimensões e população
do país. Mas não se pode dizer que era uma força eficiente ou mesmo atualizada.
70000
60000
50000
40000
30000
20000
10000
Essa autonomia tinha grandes implicações militares, que afetaram toda a história
do Brasil colonial e, mais além, continuariam a ter efeitos por quase toda a primeira
81
MARQUES, Fernando Pereira. Exército e sociedade em Portugal: no declínio do Antigo Regime e
advento do Liberalismo. Lisboa: A regra do Jogo, 1981. p. 306.
82
Tal intenção é observável nos Regimentos dos Governadores Gerais, como o de Tomé de Souza. RE-
GIMENTO DE TOMÉ DE SOUZA, op. cit.
83
BRASIL- Governo geral. Auto que mandou fazer o Sr. governador e capitão geral deste estado do Bra-
sil dom Luís de Souza sobre o forte novo que sua majestade ordena se faça, para fortificação do por-
to desta capitania. IN: LIVRO PRIMEIRO do Governo do Brasil, 1607-1633. Rio de Janeiro: Minis-
tério das Relações Exteriores, 1958. p. 255.
112
Capítulo 3 - As forças armadas como consumidora de mercadorias.
metade do século XIX. Ao contrário do que coloca a historiografia militar, não havia
um “exército brasileiro”. Os livros de história escritos pelas forças armadas colocam as
origens da força no “compromisso de honra”, assinado por moradores de Pernambuco,
em 1645, se comemorando o dia 19 de abril de 1648, quando foi travada a batalha de
Guararapes, como o “dia do Exército brasileiro”, mas isso é uma construção que não
tem relação com a realidade. Sequer havia um “Exército português no Brasil”: cada re-
gião84 respondia, sozinha, por sua defesa, não havendo um esforço coordenado em caso
de necessidade. Sintomático disso são os bandeirantes paulistas, que quando atuavam
como parte de um programa militar governamental fora de sua região de origem, como
nas guerras contra Palmares ou contra os indígenas no Açu, faziam isso visando o lucro
pessoal e não como tropas do rei. Daí se explica a relutância deles em participar nas
guerras holandesas, onde não havia lucros a serem obtidos, os paulistas preferindo sa-
quear as reduções hispânicas que, no período da União das Coroas Ibéricas, eram parte
da mesma monarquia.
As consequências desse sistema foram que, como dissemos, não havia um exér-
cito unificado na colônia e, portanto, era muito difícil implantar uma grande infraestru-
84
No século XVII se consolidou um sistema em que havia capitanias principais e subordinadas, em ter-
mos militares: Maranhão e Pará, com o Piauí; Pernambuco, controlando toda a costa do Nordeste, do
Ceará até a área que viria a ser a província de Alagoas; a Bahia sendo responsável pela defesa de
Sergipe e Espírito Santo, enquanto o Rio de Janeiro se encarregava dos assuntos militares da costa
Sul. PORTUGAL – Decreto de 3 de setembro de 1810. Torna o Espírito Santo independente da Ba-
hia em termos militares. Estas capitanias centrais foram os locais onde mais tarde se estabeleceram
arsenais.
113
Capítulo 3 - As forças armadas como consumidora de mercadorias.
tura logística no Brasil. Apesar da presença militar ser muito significativa, era fragmen-
tada, como se no Brasil houvesse vários pequenos exércitos e não um maior. Dessa
forma, não havia um grande arsenal, estaleiro ou fábrica de armas, somente algumas
experiências locais, de menor impacto. São os casos da fábrica de pólvora na Bahia no
século XVIII 85 e de uma fundição de artilharia em Pernambuco no século anterior, sen-
do que há muito poucas informações sobre estas, de forma que não se sabe com certeza
se sequer chegaram a funcionar regularmente.86 Isso se entende quando percebemos que
não havia demanda suficiente em cada capitania para justificar investimentos na área
manufatureira militar, ainda mais considerando que a metrópole podia suprir diretamen-
te as necessidades locais.
Com a União das Coroas Ibéricas (1580-1640), o risco de uma investida estran-
geira cresceu de forma, literalmente, assustadora para os moradores. Portugal passou a
ter os mesmo inimigos da Espanha – as Províncias Unidas, Inglaterra e França –, e com
isso aumentou o risco da colônia ser investida por corsários desses países, potências
85
PLANTA, Profil, fachada e a metade do telhado da casa, em que se fabricou a pólvora na Cidade da
Bahia. 1751. Mss. AHU, Lisboa. Cópia disponível no Arquivo do IPHAN.
86
Sobre a fundição de Pernambuco há alguns documentos de época, como: MORENO, op. cit. Um artigo
do Diário do Rio de Janeiro, de 1862, menciona dois canhões fundidos em 1630 na Bahia, mas não
encontramos outros dados sobre isso. Cf. A exposição Nacional. Diário do Rio de Janeiro, 16 de
março de 1862. p. 1.
87
JOHNSON, Charles. A general history of the robberies & murders of the most notorious pirates. Lon-
don: Conway, 2009. p. 171.
114
Capítulo 3 - As forças armadas como consumidora de mercadorias.
navais. Isso ocorreria em diversos casos, como nas expedições lideradas por Robert
Withrington e Christopher Lister, que em 1587 ficaram um mês e meio pilhando o re-
côncavo da Bahia de todos os Santos. Quatro anos depois, Thomas Cavendish atacou
Santos, em 1595 Lancaster saqueou Recife durante um mês e Oliver Van Noort fez uma
tentativa contra o Rio de Janeiro em 1599. 88 No início do século XVII haveria outra
intervenção francesa, desta vez no Maranhão, a França Equinocial.
Uma ameaça ainda mais séria ocorreu por essa época, as guerras holandesas, que
marcaram profundamente todo o século XVII. Nesse momento, o tamanho, intensidade
e frequência dos ataques, cresceu – os neerlandeses fundaram seus primeiros fortes no
Brasil, no Amazonas, em 1599 e de 1630 a 1654 eles dominariam boa parte do Nordeste
Brasileiro. A expulsão dos invasores do Recife naquele último ano não terminaria o
conflito, o que só ocorreria com a assinatura de um tratado de paz, nove anos depois. A
Guerra da Restauração contra a Espanha só acabaria em 1668, mas não houve pausa nos
embates que ocorriam no território brasileiro: já tinha começado a campanha que levaria
à destruição de Palmares (1667-1695), seguida da Guerra do Açu (1687-1720), contra
os indígenas no Nordeste do País – isso sem falar na construção da Colônia de Sacra-
mento (1680) e o imediato contra-ataque espanhol que se seguiu.
Em termos de uma ameaça europeia, mesmo sem Portugal ter participado ofici-
almente das hostilidades, houve a Guerra da Grande Aliança (1688 a 1697), com ações
militares no norte, como a destruição, pelos franceses, dos fortes de Cumaú e Parú no
Amapá e Pará, criando uma sensação de risco no resto do Brasil. O mesmo ocorreu na
guerra da Sucessão Polonesa (1733-1738), quando a França ocupou Fernando de Noro-
nha e os espanhóis colocaram a Colônia de Sacramento sob cerco.
88
BERGER, Paulo et alii. Incursões de corsários e piratas à costa do Brasil – 1500-1622. IN: História
Naval Brasileira. Vol. I, Tomo II. Rio de Janeiro: Serviço de Documentação Geral da Marinha,
1975. 486 e segs.
115
Capítulo 3 - As forças armadas como consumidora de mercadorias.
de,89 ainda que isso isso representasse mais impostos para a cidade. Essa sensação de
medo e de a defesa das comunidades ser necessária gerou o grande número de fortes
construídos no Brasil.
Podemos continuar com essa lista de ameaças por todo o século XVIII, como a
Guerra dos Sete Anos (1756-1763), com a tomada da Colônia de Sacramento e a do Rio
Grande do Sul; a contra os espanhóis no Sul (1763-1777), nunca declarada, mas repleta
de ações militares; finalmente as da Revolução Francesa e Napoleônicas (1794-1815),
com alguns corsários atuando o Brasil. 90
Mesmo quando não havia uma fonte de tensão aberta, questões diplomáticas fa-
ziam com que a coroa – e a população – estivesse sempre em atenção contra uma possí-
vel invasão de outra potência, como quando o marquês de Pombal alertou o vice-rei
conde da Cunha “no caso de fazerem os ingleses uma expedição contra o Rio de Janei-
ro”,91 temeroso que os britânicos tentassem se apoderar do ouro das Minas Gerais, ape-
sar da longa tradição de aliança entre os britânicos e Portugal.
89
ROCHA PITA, Sebastião da. História da América Portuguesa. Belo Horizonte: Itatiaia, 1976, p. 200.
90
Um caso de corsários atuando nas costas do Brasil, na Bahia, pode ser visto em: FIEL relação do que
obrou a nação francesa nesta freguesia de Santa Cruz, desde o dia 8 até o dia 12 do mês de agosto
deste ano, e do valor e grandeza com que aqueles poucos moradores lhe impediram o paço. S. l.
(1796). Mss. BN, I – 4,2,38 e PORTUGAL – Rei. Provisão Régia dirigida ao Governador e Capitão
Geral da Bahia, determinando sejam premiados os oficiais da relação inclusa, que se distinguiram
na luta contra os franceses que atacaram a Coroa Vermelha nesta Capitania e castigados os que
não quiseram lutar. Lisboa, 25 de setembro de 1798. Mss. BN, II – 33,29,3.
91
PORTUGAL – Carta régia de 20 de junho de 1767 para o conde da Cunha. In: WINZ, Pimentel. Histó-
ria da Casa do Trem. Rio de Janeiro: Museu Histórico Nacional, 1962. p. 523.
116
Capítulo 3 - As forças armadas como consumidora de mercadorias.
Tudo isso sem tratar das ocasiões em que se cogitou entrar em guerra com a In-
glaterra em 1844 (Questão do Pirara), 1850 (Tráfico de Escravos) e 1863 (Questão
Christie), eventos em que o Império chegou a se preparar seriamente para um conflito
com a grande potência do período, mesmo que com poucas chances de vencer. Como
escreveu o ministro da guerra em 1844, ao falar contra a incorporação pelos britânicos
da região do Pirara, em Roraima: “antes ser vencido do que atentar contra a honra e a
dignidade nacionais”, 95 uma opção belicista, mesmo que no final o território tenha sido
cedido.
92
DONATO, Hernani. Dicionário das Batalhas Brasileiras. São Paulo: IBRASA, 1987.
93
BRASIL – Ministério da Guerra. Nota da quantidade e qualidade de armamento, equipamento, pólvora
e outros objetos cuja compra ou ajuste se encarrega de fazer na Europa o Major de Engenheiros
Francisco Primo de Sousa Aguiar. Jerônimo Francisco Coelho, ministro da guerra. Rio de Janeiro,
12 de agosto de 1857. Mss. ANRJ. IG7 376. Este valor pode ser atualizado monetariamente para a
quantia de cem milhões de dólares de hoje.
94
CASTRO, Adler Homero Fonseca de. La “cuasi guerra” de 1857-1858: Movilización brasileña para
atacar Paraguay en las negociaciones de navegación fluvial. In: CASAL, Juan Manuel. Paraguay:
investigaciones de historia social social y política (II). Estudios en homenaje a Jerry W. Cooney. IV
Jornadas Internacionales de Historia del Paraguay en la Universidad de Montevideo. Asunción:
Tiempo de Historia/Universidad de Montevideo, 2016. pp. 107 e segs.
95
CALÓGERAS, Pandiá. A política exterior do Império. Vol. III. Da Regência à queda de Rosas. São
Paulo: Companhia Editora Nacional, 1933, p. 312.
117
Capítulo 3 - As forças armadas como consumidora de mercadorias.
Cabe também notar que parece ser evidente que concentrar o estudo do papel das
forças armadas apenas nos momentos em que houve combates é arriscado, pois isso não
se encontra apoiado numa realidade concreta da situação vivenciada no Brasil. Mesmo
que as ameaças não afetassem todo o país, é importante levar em conta que as pessoas,
na época, muitas vezes não tinham ciência de que um problema militar era regional e
não “nacional” – a inteligência militar não era tão boa assim, como ainda não é, diga-se
de passagem. Em 1777, quando os espanhóis atacaram Santa Catarina, os moradores do
Brasil e a administração colonial não sabiam que a expedição era destinada para lá, ou
para Salvador, Rio de Janeiro ou Recife. Avisos foram emitidos para todos os governa-
dores de capitanias se prepararem para um ataque. Nada menos do que dezesseis fortifi-
cações temporárias sendo erguidas em Salvador, para lidar com a eventualidade de um
ataque espanhol naquele ano.96
96
CASTRO (2013), vol. 2, pp. 59 e segs.
118
Capítulo 3 - As forças armadas como consumidora de mercadorias.
ou mesmo uma invasão, o que justifica o altíssimo nível de participação militar na soci-
edade.
A força podia até fazer intervenções no estrangeiro: quando das ameaças de in-
vasão ao Paraguai em 1855 e 1857, a Guarda Nacional do Rio Grande do Sul e do Mato
Grosso foi mobilizada – 5.192 deles no Rio Grande do Sul, 98 sendo que para isso fosse
possível foi necessário que o governo baixasse um decreto, de questionável legalidade,
autorizando o emprego dos guardas no Exterior. Finalmente, na Guerra do Paraguai,
muitos batalhões de Voluntários da Pátria foram formados com base em unidades da
Guarda e a quase totalidade da cavalaria do exército em operações era de regimentos de
Cavalaria da Guarda do Rio Grande do Sul. Nas vésperas da Guerra do Paraguai, o rela-
tório do Ministério da Justiça aponta a existência de 107.116 Guardas,99 (ver Gráfico
97
Cf. LIMA, Henrique de Campos Ferreira. O exército Português. Porto: Livraria Lello, 1928.
98
RIO GRANDE DO SUL – Governo da Província. Informe do presidente da província de S. Pedro do
Rio Grande do Sul, Angelo Moniz da Silva Ferraz, apresentado à Assembléia legislativa provincial
na 1ª Sessão da 8ª Legislatura. Porto Alegre: Tipografia do Correio do Sul, 1858. p. 67.
99
FORÇA da Guarda Nacional, conforme os mapas que tem recebido essa secção. João Pedro de Almei-
da Franco. BRASIL – Ministério da Justiça. Relatório do ministério da justiça apresentado à assem-
bleia geral legislativa na terceira sessão da décima segunda legislatura pelo respectivo ministro e
Continua –––––––
119
Capítulo 3 - As forças armadas como consumidora de mercadorias.
13) apesar de esse número ser, ao mesmo tempo, parcial e pouco confiável, já que seria
praticamente impossível mobilizar toda essa força.
60000
50000
40000
30000
20000
10000
0
AL AM MT ES PB SC Corte CE PA RN SE PI PA SP RJ MG RS BA PE
Províncias
120
Capítulo 3 - As forças armadas como consumidora de mercadorias.
estivessem “destacados”, seu equipamento e armamento eram para ser fornecido pelo
governo, como no caso das milícias. A administração central sendo, em última instân-
cia, a responsável pelo abastecimento dessa força, um encargo para o sistema logístico
militar.102
Essa ação mais direta não se efetivou, por uma série de fatores, inclusive a resis-
tência local, pois as câmaras, como dissemos, financiavam com os impostos recolhidos
localmente as questões de defesa, não querendo perder o controle que isso permitia.
Nunca foi criado um “cofre centralizado”, que recolhesse os impostos das diversas capi-
tanias, redistribuindo o dinheiro para as regiões mais necessitadas. Os donatários das
capitanias que tiveram sucesso, especialmente a de Pernambuco, também sempre foram
muito ciosos de suas prerrogativas, restringindo as possibilidades do governo central.
Quando da criação do Governo Geral, em 1548, os colonos e o donatário de Pernambu-
102
Os armamentos da Guarda Nacional deveriam ser fornecidos pelo Ministério da Justiça. Na prática as
armas era repassadas pelo arsenal de Guerra ao Ministério da Justiça, que as entregava às unidades
da Guarda. Um desses casos pode ver no preparo de unidades Catarinenses durante a Revolução Far-
roupilha, o ministro da Guerra mandando fornecer, por conta do Ministério da Justiça, instrumentos
para oito batalhões de infantaria e dois corpos de cavalaria, bem como outros itens. BRASIL – Arse-
nal de Guerra. Aviso do Ministro, José Clemente Pereira, ao Diretor do Arsenal de Guerra, José dos
Santos Oliveira sobre o fornecimento de equipamentos e armas. Rio de Janeiro, 13 de junho de
1841. Mss. Arquivo Nacional. IG7 327.
103
Isto pode ser visto numa das histórias oficiais do Exército: BRASIL – Estado-Maior do Exército. His-
tória do Exército Brasileiro: perfil militar de um povo. Rio de Janeiro: IBGE, 1972. 3 vols. e O
EXÉRCITO na história do Brasil. Rio de Janeiro, BIBLIEX: Salvador, Odebrecht, 1998. 4 vols.
104
Ver: REGO MONTEIRO, Jônatas do. O Exército Brasileiro. Rio de Janeiro: Biblioteca Militar, 1939.
105
CARNEIRO, Edson. A Cidade do Salvador. Rio de Janeiro: Organização Simões, 1954. pp. 128-143.
121
Capítulo 3 - As forças armadas como consumidora de mercadorias.
co conseguiram até que o Rei proibisse a ida do governador geral para a capitania.106
Finalmente, a própria proposta militar para o Brasil, que enfatizava a ação local, não
amparava esforços centralizadores.
Gastei o tempo que me restava para fazer uma visita aos fortes e forta-
lezas nesta cidade e na baía, mas seu número é excessivo, quase como
que cada governador teve vontades diferentes das de Seus Antecesso-
res, deixando pela metade os trabalhos que cada um começou, para
106
GOUVÊA, Maria de Fátima Silva. Governo Geral. IN: VAINFAS, Ronaldo (org.). Dicionário do
Brasil Colonial (1500-1808). Rio de Janeiro: Editora Objetiva, 2000. p. 265.
107
CASTRO, Adler Homero Fonseca de. Muralhas de pedra, canhões de bronze, homens de ferro: forti-
ficações do Brasil, 1503-2006. vols 1 a 3. Rio de Janeiro: FUNCEB, 2013. pp. 25 e segs.
122
Capítulo 3 - As forças armadas como consumidora de mercadorias.
123
Capítulo 3 - As forças armadas como consumidora de mercadorias.
Outra questão que deve se levar em conta nessas estatísticas é que, na população
em geral, a proporção de soldados estava longe de representar a massa dos habitantes,
mesmo entre os homens: em um levantamento feito em Mato Grosso no final do século
XVIII aponta que em uma população de 24.000 pessoas, apenas 2.748 estavam em con-
dições de servir nas tropas – homens adultos livres, com mais de 14 e menos de 50 anos.
Ou seja, apenas 11,5% dos moradores da capitania.114 Neste sentido, aqueles que eram
efetivamente recrutados representavam uma parcela realmente significativa da força de
trabalho livre.
112
Um detalhe técnico que deve ser observado ao usar o termo “Regimento” no Brasil: ao contrário de
Portugal, onde os regimentos deveriam, teoricamente, ter dois batalhões, na América essas unidades
não eram divididas, tendo, portanto, metade do efetivo regulamentar das tropas europeias, pelo me-
nos até 1762, quando o Conde de Lippe transforma os Regimentos portugueses em unidades com
efetivo de batalhão. Isso, contudo, não implica que os regimentos do Brasil fossem necessariamente
menores do que os da metrópole, devido aos imensos desfalques das forças em Portugal. Cf. FER-
NANDO, Dores Costa. Guerra no tempo de Lippe e de Pombal. In: BARATA, op. cit. vol. 2. p. 341.
113
Os dados disponíveis sobre a população escrava, estimativas, variam de 33% da população no final do
século XVIII e 30% em 1650. LAGO, Luiz Aranha Corrêa do. Da escravidão ao trabalho livre:
Brasil, 1550 -1900. São Paulo: Companhia das Letras, 2014. p. 33.
114
SERRA, Ricardo Franco de Almeida. Plano de Guerra e defesa da capitania do Mato Grosso enviado
ao governador Caetano Pinto da Miranda Monte Negro. Coimbra, 31 de janeiro de 1800. Mss. BN.
I-29,6,48.
115
CHILDS, op. cit. p. 43.
124
Capítulo 3 - As forças armadas como consumidora de mercadorias.
Dessa forma, cremos ser evidente que as forças mobilizadas no Brasil colonial
eram consideráveis e elas tinham que ser alimentadas, vestidas e alojadas com recursos
levantados localmente, já que não vinham recursos financeiros de Portugal.
116
DUFFY(1987), op. cit. p. 17.
117
FERNANDO, op. cit. p. 334.
118
id. p. 341. Apud SCHAUMBURG-LIPPE, conde de. Cartas ao marquês de Pombal. Boletim do Arqui-
vo Histórico Militar, nº 4, 1933. p. 244-245.
125
Capítulo 3 - As forças armadas como consumidora de mercadorias.
dos melhores do mundo então, para isso sendo adotados os primeiros regulamentos do
exército, escritos pelo conde de Lippe.119
A tentativa de aperfeiçoar e unificar a situação militar deu certo por algum tem-
po, havendo no Rio Grande do Sul e Colônia do Sacramento, pela primeira vez, uma
real colaboração entre as forças da metrópole e diversas capitanias – Pernambuco, Rio
119
SCHAUMBURG LIPPE. Regulamento para o Exercício, e Disciplina, dos regimentos de Infantaria
dos Exércitos de Sua Majestade Fidelíssima – feito por ordem do mesmo Senhor por Sua Alteza o
Conde Reinante de Schaumburg Lippe, Marechal General. Lisboa: Secretaria de Estado, 1763. Ha-
via ainda outros três regulamentos escritos pelo conde.
120
PORTUGAL – Carta Régia de 20 de junho de 1767, op. cit. p. 525.
121
Devemos observar que a interpretação que o Arsenal foi criado 1764 é comum em obras secundárias,
mas todos os documentos do século XVIII chamam as instalações do Exército no Brasil Colônia de
“Trem”, ou “Arsenal do Trem” até 1811, quando de fato foi criado o Arsenal. PORTUGAL – Alvará
de 1º de março de 1811. Cria a Real Junta de Fazenda dos Arsenais, Fábricas, e Fundição da Capi-
tania do Rio de Janeiro e uma Contadoria dos mesmos Arsenais.
126
Capítulo 3 - As forças armadas como consumidora de mercadorias.
de Janeiro, São Paulo, Santa Catarina, Rio Grande do Sul e até uma companhia de arti-
lharia de Lagos (Portugal). No entanto, deve-se observar que o exemplo da Colônia de
Sacramento, que levou a essa ação no Sul do Brasil, é uma exceção, que se aproxima
em certos termos ao que ocorrera na Ásia Portuguesa duzentos anos antes, em um perí-
odo que o governo central português fazia investimentos diretos de defesa lá. Era uma
povoação que existia em função do comércio de contrabando, de uma mercadoria de
alto valor, a prata do Peru, sendo implantada em um terreno hostil e sem possibilidades
de se expandir, por causa do bloqueio espanhol. Ai, o esquema tradicional do Brasil,
dos colonos serem encarregados da defesa, era inviável, necessitando da intervenção
direta do governo.
Houve uma mudança de situação com a vinda da família real para o Rio de Ja-
neiro em 1808, em parte porque era necessário recriar a estrutura logística que tinha
existido na Europa, mas que não era mais acessível por causa da invasão francesa. Por
outro lado, foi necessário implantar uma administração efetivamente centralizada, que
aumentasse a eficiência do dispositivo militar na colônia. É nesse período em que Por-
tugal assume efetivamente, pela primeira vez, parte das responsabilidades militares no
Brasil, com o envio de uma Divisão de Voluntários para lutar no Uruguai, uma prática
tão estranha – e cara – que gerou descontentamento em Portugal,122 podendo ser consi-
derada como uma das causas da Revolução Liberal do Porto, de 1820.
122
MARQUES, Fernando Pereira. Exército e sociedade em Portugal: no declínio do Antigo Regime e
advento do Liberalismo. Lisboa: Regra do Jogo, 1981. p. 164.
127
Capítulo 3 - As forças armadas como consumidora de mercadorias.
Além disso, foi criada – praticamente do nada, já que o País só tivera uma frota
baseada aqui depois da vinda da família Real – uma marinha de guerra, que logo se tor-
nou muito poderosa, tendo inclusive naus de 74 canhões. Uma força que no auge da
Guerra da Cisplatina, em 1828, teria 76 navios e 8.414 marinheiros, 125 necessitando de
imensos gastos não só para alimentar e fardar esse pessoal, mas também para comprar
canhões e navios. Da mesma forma, foram feitos programas de fortificação na costa, os
maiores da história do Brasil – só em Pernambuco foram erguidos 26 fortes inteiramen-
te novos, sem contar os que foram reparados nesse período.126
123
Escritos em Portugal contra o Brasil. Correio Braziliense, XXVIII, 732. Apud RODRIGUES, José
Honório. Independência: Revolução e Contra-Revolução: as forças Armadas. Rio de Janeiro: Fran-
cisco Alves, 1975. vol. III, p.51
124
BRASIL – Província da Bahia. Relatório dos trabalhos do Conselho Interino de governo da Província
da Bahia, em prol da regência e império de Sua Majestade Imperial O senhor D. Pedro I e da Inde-
pendência política do Brasil. Bahia: Tipografia Nacional, 1823. p. 10.
125
BRASIL – Câmara dos deputados. Diário da Câmara dos deputados à Assembleia Geral Legislativa
do Império do Brasil. Seção de 3 de julho de 1828. Rio de Janeiro: Imprensa Imperial e Nacional,
1828. p. 4.
126
Dados levantados em CASTRO, op. cit. Vol. 3.
127
MAPA da força militar das províncias, incluindo-se o Rio de Janeiro. S.l. [182_]. Supostamente 1825.
Mss BN, II-30,28,001.
128
Capítulo 3 - As forças armadas como consumidora de mercadorias.
Figura 7) – e isso numa época que a população do país era quarenta vezes menor do que
na atualidade. Era um índice de participação militar de um homem para cada 34 habi-
tantes, sem incluir as Ordenanças, que por essa época já não eram mais um elemento de
defesa eficaz, apesar de ainda existirem e serem mobilizadas para treinamento. Sempre
se deve relembrar que os índices de participação militar devem ser vistos dentro do con-
texto da época, ou seja, excluindo menores de 18 anos e maiores de 50, mas também as
mulheres e, especialmente os escravos. Para efeito de comparação o Brasil hoje tem
forças armadas de 314.000 homens, com mais 404.000 policiais militares. São 718.000
pessoas dedicadas diretamente a atividade militar – 0,35% da população, ou um em ca-
da 284 habitantes do país.
Tropas de terra
15000
10000
5000 Linha
Milícias
0
GO
PI
RN
SE
SP
ES
AL
SC
MT
PB
CE
MA
MG
RS
PA
BA
PE
PC
RJ
128
id.
129
Capítulo 3 - As forças armadas como consumidora de mercadorias.
gastos militares, que tinham chegado a níveis insustentáveis com a Guerra da Cisplati-
na. Contudo, e mais importante, a Regência procurou implantar um novo modelo de
organização militar, diminuindo a importância do Exército – visto como um instrumen-
to centralizador e um fator de desestabilização – favorecendo uma nova milícia, a Guar-
da Nacional.
129
BRASIL – Ministério da Guerra. Aviso do ministro da guerra Manoel, da Fonseca Lima e Silva, ao
diretor do Arsenal de Guerra do Rio de Janeiro, José de Vasconcelos Meneses de Drummond sobre
uso do quartel do esquadrão de cavalaria para acomodar os Oficiais Soldados Voluntários da Pá-
tria. Rio de Janeiro, 5 de dezembro de 1831. Mss. ANRJ. IG7 44.
130
MONTEIRO, Jonathas da Costa do Rego. Relação dos fortes Existentes no Brasil em 1829 com indi-
cação de seu armamento. Revista Militar Brasileira, jul-set 1927. p. 218 e segs.
131
PONDÉ, Francisco de Paula e Azevedo. Organização e Administração do Ministério da Guerra no
Império. Rio de Janeiro: BIBLIEX, 1986. p. 250
130
Capítulo 3 - As forças armadas como consumidora de mercadorias.
132
BRASIL – Ministério do Império. Aviso de Estevão Ribeiro Resende, ministro do Império a João
Gomes da Silveira Mendonça ministro da guerra, a quota dos escravos no serviço das Fortificações
do Barro Vermelho. Rio de Janeiro, 15 de maio de 1824. Mss. ANRJ, GIFI OI 5B 243.
131
Capítulo 3 - As forças armadas como consumidora de mercadorias.
132
Capítulo 3 - As forças armadas como consumidora de mercadorias.
70000
60000
50000
40000
30000
20000
10000
133
A fonte básica dos dados do gráfico é: Leis de fixação das forças de terra do Império do Brasil, 1831-
1840. SCHULZ, John. O exército na política: origens da intervenção militar: 1850-1894. São Paulo:
EDUSP, 1994. p. 204.
133
Capítulo 3 - As forças armadas como consumidora de mercadorias.
Desta forma, é evidente que o nível de participação militar na sociedade era im-
portante na primeira metade do século XIX, pois o exército cumpria um papel social
que ia muito além de suas funções estritamente militares, servindo de polícia, fiscais nas
estradas, correios e outros serviços públicos, para os quais não havia funcionários do
governo imperial, além dos soldados dispersos pelas províncias. Isso exigia que uma
boa parcela dos recursos financeiros e administrativos fosse dedicada às forças armadas
(ver Gráfico 16), o que não era incomum no mundo – em 1838, o orçamento do governo
paraguaio dedicado a questões de defesa era de nada menos do que 94,5% do total de
gastos governamentais. 134 Ou seja, praticamente tudo o que o governo de lá arrecadava
era voltado para a questão militar. No Brasil isso não era muito diferente.
134
WHITE, Richard Alan. Paraguay’s autonomous revolution: 1810-1840. Albuquerque: University of
New Mexico Press, 1978. p. 208.
134
Capítulo 3 - As forças armadas como consumidora de mercadorias.
70,00%
60,00%
50,00%
40,00%
30,00%
20,00%
10,00%
0,00%
Mesmo os praças (sargentos, cabos e soldados) que, de fato, eram oriundos dos
estratos mais baixos da sociedade, eram assalariados e não escravos. É verdade que seus
vencimentos eram reduzidos e que ficarem crescentemente defasados, pois só houve
poucos reajustes durante todo o período estudado. Além disso, a alimentação (etapa)
dos homens era descontada de seu soldo, de forma que restava muito pouco para eles
gastarem com si, mas mesmo assim não estavam excluídos do mercado.
135
Dados extraídos de: CARREIRA, Liberato de Castro. História Financeira e Orçamentária do Império
do Brasil. Brasília: Senado, 1980. p. 127 e segs.
135
Capítulo 3 - As forças armadas como consumidora de mercadorias.
136
Dados extraídos de: CARREIRA, op. cit. Correção feita com base no “valor de trabalho” da moeda
britânica, atualizado a partir do sítio: Measuring Worth. https://goo.gl/rtcTbc. (acesso em dezembro
de 2015). Observamos que o índice de preço real é o menor dos disponíveis para cálculo de inflação
da libra, não sendo, necessariamente, o mais correto. Em outros casos, preferimos usar o índice do
“custo econômico. Para efeitos de impacto econômico, contudo, os dados são suficientes para mos-
trar o crescimento dos orçamentos.
137
JESUS, Raphael de. História da Guerra entre o Brasil e a Holanda. Paris: J.P. Aillaud, 1844. p. 359.
136
Capítulo 3 - As forças armadas como consumidora de mercadorias.
138
BRASIL – Ministério da Guerra. Relatório da Repartição dos negócios da guerra apresentado à as-
sembleia geral legislativa pelo respectivo ministro e secretário de estado Manoel Felizardo de Sou-
za e Melo. Rio de Janeiro: Laemmert, 1853. p. 14.
137
Capítulo 3 - As forças armadas como consumidora de mercadorias.
139
Cálculo baseado em um jornal, pagamento diário, de 600 réis para um servente. BRASIL – Arsenal de
Guerra. Ofício do diretor do Arsenal José Maria da Silva Bittencourt ao Ministro da Guerra, Mano-
el Felizardo de Souza e Mello, sobre vencimentos de soldados inválidos. Rio de Janeiro, 3 de outu-
bro de 1850. Mss. ANRJ. IG7 11. A listagem de equipamento de um soldado, com seus valores, po-
de ser vista no BRASIL – Decreto nº 547 de 8 de Janeiro de 1848. Aprova a Tabela dos preços de
diversos artigos de armamento, equipamento, arreios, fardamentos e mais objetos para o Exercito e
Fortalezas.
140
BRASIL – Ministério da Guerra. Relatório da repartição dos negócios da guerra apresentado à as-
sembleia geral legislativa na 1ª sessão da 6ª legislatura, pelo ministro e secretário de estado dos ne-
gócios da guerra Jerônimo Francisco Coelho. Rio de Janeiro: Tipografia Nacional, 1845. p. 29.
141
BARROSO, Gustavo Dodt & RODRIGUES, Washt. Uniformes do Exército Brasileiro. Rio de Janei-
ro: Imprensa Nacional, 1922. p. 45.
142
O autor da imagem cometeu um erro, pois em 1850 não havia tropas de granadeiros em serviço, o
equipamento mostrado é de um soldado de fuzileiros.
138
Capítulo 3 - As forças armadas como consumidora de mercadorias.
Esses custos não podiam ser encarados como gastos momentâneos: alguns dos
itens fornecidos aos soldados eram de longa duração, como as armas, que deveriam ofi-
cialmente resistir dez anos, mas que na prática poderiam ter um tempo de vida útil mui-
to menor, de acordo com as circunstâncias:143 o serviço em campanha representava um
atrito muito grande de todos os itens que eram fornecidos às tropas. Outras peças, con-
tudo, tinham que ser substituídas à medida que inevitavelmente se desgastavam – e isso
ocorria rapidamente e de forma constante, na paz e na guerra: sapatos tinham que ser
trocados a cada seis meses, se não antes, e o ministro da guerra, de forma muito realista,
escrevia o seguinte:
143
Somente em 1851, com um efetivo nominal de 16.000 homens, o exército comprou 11.640 espingar-
das, bem mais do que seria necessário se as armas durassem 12 anos. Relatório da comissão de exa-
me do Arsenal de Guerra. In: BRASIL – Ministério da Guerra. Relatório de 1853, op. cit. p. XXI.
144
Id. p. 29.
145
Usamos como base de cálculo um canhão de 9 libras, como os que eram usados na Fortaleza de Ville-
gaignon para saldar os navios de guerra estrangeiros. CASTRO (2009), op. cit. p. 297.
146
SILVA, Crispim Teixeira, Sargento Mor Intendente. Relação das Obras, Munições e mais Petrechos
que se tem feito no Trem de S. Majestade Fidelíssima do Rio de Janeiro, no tempo Governo do Il.mo e
Ex.mo Sr. Marquês do Lavradio Vice Rei e Capitam General de Mar e Terra do Estado do Brasil,
continuado de 31 de outubro de 1769, até 31 de Agosto de 1776. Mss. Coleção particular.
139
Capítulo 3 - As forças armadas como consumidora de mercadorias.
guai. 147 Mas, e o suprimento quando não havia um conflito? Como colocamos, os exér-
citos não deixam de existir quando não há operações militares ocorrendo, mas a questão
do suporte para essas tropas não é tratada na historiografia tradicional, militar ou civil,
como se as maciças forças militares existentes no País pudessem ser ignoradas e se sus-
tentassem no ar, sem apoio. Não se sabe sequer o número e efetivos das unidades milita-
res existentes no País no período colonial e nos primeiros anos do Império – dados so-
bre a estrutura de suprimentos para sustenta-las, então, são ainda mais ignorados e difí-
ceis de obter em bibliografia publicada. Consideramos isso curioso e, talvez, um erro
dos pesquisadores, já que há uma vasta documentação histórica sobre o assunto. Boa
parte da documentação produzida pela administração militar, tanto na Colônia, quanto
no Império, diz respeito à questão do funcionamento das forças armadas, sua adminis-
tração, fardamento, alimentação e alojamento.
Portugal tinha uma situação oposta: sem ser uma potência, a monarquia lusitana
dependia do não emprego da força militar para sua sobrevivência, pois a Espanha tinha
condições de derrotá-la, se não houvesse uma coligação que pudesse proteger o país.
Dessa forma, se entende a situação de recorrente despreparo das forças portuguesas, que
não eram vistas como sendo uma ocupação de prestígio: viajantes alemães no final do
século XVIII apontavam que mesmo as reformas do Conde de Lippe não tinham tido
um efeito duradouro no País, notando, certamente de forma exagerada, que:
147
Podemos citar as obras: BOITEUX, Nylson Reis. Aspectos Logísticos da Guerra do Paraguai. Campo
Grane: Life Editora, 2015. FIGUEIRA, Divalte Garcia. Soldados e negociantes na Guerra do Para-
guai. São Paulo: Humanitas-FFLCH/USP, 2001.
148
CHILDS, op. cit. p. 84.
140
Capítulo 3 - As forças armadas como consumidora de mercadorias.
mizado, com seu gorjal sobre seu queixo, deixar seu posto na guarda e
dirigir-se para seu segundo mestre, de forma a colocar suas meias, en-
tregar-lhe sua touca de dormir, ou pentear sua peruca.149
Uma das consequências desse despreparo e falta de confiança nas forças arma-
das era a confiança que era colocada nas fortificações, com a construção de grandes
praças de guerra, cidades com grandes circuitos murados, como Almeida, Elvas ou Se-
tubal. Como se escrevia na época em um memorial, perfeitamente aplicável à Portugal,
que seria “um estado medíocre”:
Um pequeno estado, que tem uma, ou duas boas, praças de guerra po-
de-se defender e manter-se algum tempo, até que algum de seus vizi-
nhos, que vê com zelos crescer o poder de um, e outro, junte as tropas
para o socorrer.
Os estados medíocres, que tem um corpo de tropa, e boas praças, po-
dem se defender por elas mesmas: Mas o corpo de tropa sem praça, é
forçado a desamparar tudo a um Exército superior: e as praças sem
tropas são obrigadas a se render, quando os víveres começam a faltar
[...].
Deve-se defender, como os estados medíocres, aqueles, em que as
províncias são separadas umas das outras.150
Inerente desse desprestígio e despreparo era uma ausência de uma cultura de
pensamento militar, havendo poucos livros publicados sobre assuntos militares em Por-
tugal, e esses com edições reduzidas. Manuais militares eram raros, os regulamentos do
Conde de Lippe – sintomaticamente escritos por um estrangeiro – continuaram a ter
validade até as guerras Napoleônicas, quando foram substituídos, em parte, pelos regu-
lamentos do marechal Beresford,151 ele também um estrangeiro.
No Brasil, que herdou muita coisa de Portugal, a situação era em parte diferente.
Aqui, o oficialato nas forças militares era visto com mais prestígio, sendo um dos cami-
nhos para o enobrecimento das pessoas. Por outro lado, era uma colônia, com limitações
muito severas – por exemplo, até 1808 não havia tipografias no País, de forma que não
seriam de se esperar publicações militares, apesar de oficiais do Brasil terem publicado
149
DUFFY (1986), op. cit. p. 298. Apud WARNERY, Charles E. Des Herrn Generalmajor von Warnery
saemtliche Schriften. Hanover: Helwing, 1786. vol. IV, p. 298.
150
MEMORIAL DA GUERRA apud MOURA, José de Almeida e. Movimentos da cavalaria com adição
para Dragões e infantaria e Obra utilíssima para todo o Militar oferecida ao Sereníssimo senhor In-
fante D. Antônio por... Cavaleiro Professo da Ordem de Cristo, Sargento mor de cavalaria Drago-
ens de Beja etc. Lisboa: Oficina da Música e da Sagrada Religião de Malta, 1741. p. 355-356.
151
BERESFORD, William Carr. Instruções para o exercício dos regimentos de infantaria por ordem do
ilustríssimo e excelentíssimo senhor (...), marechal e comandante em chefe dos exércitos. Bahia:
Manoel António da Silva Serva, 1817.
141
Capítulo 3 - As forças armadas como consumidora de mercadorias.
alguma coisa em Portugal, o exemplo mais notável sendo o brigadeiro Alpoim. 152 Mes-
mo depois, não foi parte da cultura do nosso exército a realização de pesquisas acadê-
micas ou empíricas ou mesmo a publicação de textos sobre assuntos militares.153
Também era difícil o desenvolvimento de uma teoria formal sobre a guerra, pois
a aplicação de doutrinas dependia da autorização de Portugal, onde tais assuntos não
eram vistos como atenção. Algumas formas específicas de organização militar foram
desenvolvidas no Brasil, como o uso de infantaria ligeira, mas isso por necessidades
locais, sem repercussão na metrópole. Mais importante, a estrutura militar implantada
desde o início da colonização, assim como as dimensões do País, dificultava em muito a
realização de grandes projetos militares, como a formação de um exército centralizado
ou mesmo a construção de sistemas defensivos eficazes.
152
ALPOIM, José Fernandes Pinto. Exame de artilheiros. Rio de Janeiro: Xerox do Brasil, 1987. Fac-
símile da edição de: Lisboa: José Antônio Plates, 1744.
153
O primeiro texto legal falando da adoção de manuais no Exército brasileiro data de apenas de 1850.
Dois dos três manuais citados eram portugueses, um deles datando de 1816(!). BRASIL - Decreto
nº 705, de 5 de Outubro de 1850. Determina quais as Instruções por que se devem regular as mano-
bras e exercícios das diferentes armas do Exército.
154
Na Idade Média as cidades podiam se expandir além das muralhas, bastando para isso que as casas
fossem construídas além do alcance eficaz dos arcos e flechas, apenas trinta metros, de forma que is-
so aconteceu em várias ocasiões. Na Idade Moderna o problema era bem mais complexo, pois a zona
que deveria ser mantida livre de construções em torno de uma fortificação correspondia à distância
do alcance de um canhão, no mínimo oitocentos metros, inviabilizando a expansão urbana extramu-
ros. A legislação portuguesa, por exemplo, controlava a construção de edificações numa distância de
seiscentas braças (1.320 metros) das muralhas. Curiosamente, essa é uma lei que ainda é corrente no
Brasil, tendo sido revalidada por um decreto-lei de 1941. BRASIL – Decreto-lei 3.4.37 de 17 de ju-
lho de 1941. Dispõe sobre o aforamento de terrenos e a construção de edifícios em torno das fortifi-
cações. Artigo 2º e incisos.
142
Capítulo 3 - As forças armadas como consumidora de mercadorias.
recursos locais, que dava autonomia às câmaras municipais, que arrecadavam os impos-
tos que pagavam sua própria defesa, sem uma intermediação do governo central. Por
sua vez, as dezenas de fortificações, apesar de não serem eficientes, cumpriam um im-
portante papel social, provendo postos de comando para moradores. Estes empregos
eram, muitas vezes, meramente honoríficos, mas tinham um papel social importante,
pois davam acesso ao mundo da elite política da sua cidade.155
Não podemos deixar de frisar a importância desse último ponto: apesar do Brasil
ser uma colônia e o serviço militar ser tratado com certo desprezo na metrópole, o ofici-
alato no Brasil, era visto como uma forma de enobrecimento, o que alcançava maior
importância considerando que não havia uma nobreza de sangue nativa. Aqui havia até
tabelas do governo, fazendo a comparação de honras que deveriam ser dadas aos mem-
bros das forças armadas e os titulares da nobreza – por exemplo, um capitão do exército
ou capitão-tenente da armada teriam as honras de um cavaleiro fidalgo e um brigadeiro,
as de um barão.156 Isso resultava em um maior prestígio para o serviço militar – de ofi-
ciais, é claro –, do que ocorria em Portugal, onde a fidalguia era mais comum.
Por sua vez os governos das capitanias e, mais ainda, o do Império, não hesita-
vam em se valer das forças armadas como ferramentas diplomáticas. Um exemplo disso
sendo o caso do emprego de fortificações para se garantir a posse do território. A Colô-
nia de Sacramento é o caso mais evidente dessa política, do uso de uma instalação mili-
tar feita com a intenção de fomentar o comércio de contrabando e garantir a posse de
um território que dificilmente poderia ser considerado como português.
155
FRAGOSO, João & FLORENTINO, Manolo. O arcaísmo como projeto: mercado atlântico, socieda-
de agraria e elite mercantil em uma economia colonial tardia. Rio de Janeiro, c. 1790-c.1840. São
Paulo: Civilização Brasileira, 2001. p. 69.
156
MATOS, Raimundo José da Cunha. Repertório da legislação militar atualmente em vigor no exército
e armada do Império do Brasil. Rio de Janeiro: Seignot-Plancher, 1837.vol. II, 1837. p. 285.
143
Capítulo 3 - As forças armadas como consumidora de mercadorias.
termos do acordo de navegação que lhes fora imposto, sendo necessária a mobilização
de uma grande força de terra e naval para invadir o Paraguai, caso esses não aceitassem
as imposições do governo brasileiro. 157
157
CASTRO (2016), op. cit.
144
Capítulo 4 - Pré-indústria e o primeiro surto manufatureiro no Brasil
Sumário
145
Capítulo 4 - Pré-indústria e o primeiro surto manufatureiro no Brasil
1
OLIVEIRA, Geraldo de Beauclair Mendes de. A pré-indústria fluminense: 1808/1860. Tese de Douto-
rado. São Paulo: USP, 1987. (mimeo).p. 9.
2
BRAUDEL, Fernand. Civilización material, economía y capitalismo: siglos XV-XVIII. Madrid: Alianza
Editorial, 1979. Vol. 2. p. 252.
3
MAURO, Fréderic (org.). La préindustrialisation du Brésil. Essais sur une économie en transition:
1830/50 – 1930/50. Paris: Centre National de la Recherche Scientifique, 1984.
4
SOARES, Luiz Carlos. A manufatura na formação econômica e social escravista no sudeste : um estu-
do das atividades manufatureiras na região fluminense, 1840-1880. Dissertação de mestrado. Nite-
rói: UFF, 1980. (mimeo).
5
OLIVEIRA, op. cit.
6
BRAUDEL, op. cit. p. 258.
146
Capítulo 4 - Pré-indústria e o primeiro surto manufatureiro no Brasil
vivemos. Temos assim dois universos, pelo menos, dois tipos de vida
alheios um ao outro e cujas massas, no entanto, se explicam mutua-
mente.7
Estamos, portanto, falando de uma situação de transição – o usual nas economias
agrícolas era que o trabalho com o plantio atraísse os trabalhadores, mesmo os do arte-
sanato, em uma situação sazonal. Como nos exércitos da época, o período de colheita
também implicava na captação dos trabalhadores para os empreendimentos agrícolas,
enquanto nos momentos de pausa no campo, essa mão de obra tendia a se dedicar a ou-
tras atividades, inclusive às das oficinas artesanais.8 Entretanto, a pré-indústria é dife-
rente desse modelo simplesmente agrícola, pois, apesar das atividades primárias ainda
serem dominantes, já há uma maior representatividade do artesanato, que é exercido de
forma permanente, mobilizando trabalhadores de forma constante. Isto em instalações
de maior porte do que a simples oficina que empregava basicamente um trabalhador
especializado, o mestre, como era o caso anterior.
7
BRAUDEL, Fernand. A dinâmica do Capitalismo. Lisboa: Editorial Teorema, 1986. p. 13.
8
OLIVEIRA, op. cit. p. 6.
9
BRAUDEL, op. cit. p. 263.
10
OLIVEIRA, op. cit. p. 6.
147
Capítulo 4 - Pré-indústria e o primeiro surto manufatureiro no Brasil
tema doméstico (putting out),11 no qual os artesãos continuavam a possuir suas ferra-
mentas, mas recebiam a matéria prima de um capitalista, trabalhando em suas casas e
devolvendo o produto acabado. Funcionava, basicamente como uma oficina artesanal
doméstica tradicional, a não ser pela propriedade da matéria prima e o fato de serem
empregados por um capitalista, que gerencia as atividades. Este último tipo de organiza-
ção é marcante, pois, apesar de muito primitivo em termos de organização, define um
momento decisivo na origem das empresas, por depender de um empreendedor, um ca-
pitalista, para gerenciar a produção.
Uma discussão gerando uma definição mais restritiva do que seria pré-indústria
surgiu na década de 1960. Esta trabalhava com o conceito semelhante, mas não idêntico,
o da protoindustrialização. Esta seria uma fase intermediária, antes do surgimento da
industrialização, com cinco características básicas: não era um processo nacional ou
internacional, mas sim regional; os empreendimentos não podiam ser classificadas co-
mo as antigas oficinas artesanais, pois as empresas passavam a produzir para um merca-
do local ou regional, vendendo seus produtos para fora de suas regiões de origem; era
uma atividade principalmente de áreas rurais, surgindo de uma relação simbiótica com o
comércio agrícola. Finalmente, “era ‘dinâmica: era definida como um crescimento ao
longo do tempo do emprego industrial de trabalhadores rurais”.12 Douglas Libby, ao
trabalhar com as pequenas manufaturas têxteis e de metais em Minas Gerais, se utilizou
deste conceito, para tratar das manufaturas que surgiram no ambiente rural de Minas
Gerais do Século XIX, as têxteis e de metalurgia. 13 Em outro texto, ele faz uma distin-
ção importante, em termos de identificação do que seria a protoindústria: para Libby “a
protoindustrialização pode ser definida como a produção em grande escala de bens in-
dustriais destinados a mercados distantes, baseada em mão de obra barata e campone-
sa”.14
Geraldo Beauclair de Oliveira, faz uma distinção que nos parece muito útil na
questão que estamos trabalhando, definindo a pré-industria como um conceito diferente
11
O sistema de putting out tem uma grande relevância para o Arsenal de Guerra, pois era a forma como
funcionava a “Repartição de Costuras” da Instituição, conforme trataremos em outro capítulo.
12
OGILVIE, Sheilagh. Proto-industrialization. https://goo.gl/V4OQSW (acesso em outubro de 2016). p.
3.
13
LIBBY, Douglas Cole. Transformação e trabalho em uma economia escravista: Minas no século XIX.
São Paulo: Brasiliense, 1988.
14
LIBBY, Douglas Cole. Protoindustralização em uma sociedade escravista: o caso de Minas Gerais. IN:
SZMRECSÁNY, Tamás & LAPA, José do Amaral (org). História econômica da Independência e do
Império. São Paulo: Hucitec, 2002. p. 238
148
Capítulo 4 - Pré-indústria e o primeiro surto manufatureiro no Brasil
15
OLIVEIRA, op. cit. p. 6.
16
MARX, Karl. Capital. London: Encyclopaedia Britannica, c. 1952. p. 164.
17
id. p. 164.
18
SMITH, Adam. An Inquiry into the nature and causes of the wealth of Nations. London: Encyclopaedia
Britannica, c. 1952. p. 9. Adam Smith copiou esse exemplo da enciclopédia de Diderot e
Continua –––––––
149
Capítulo 4 - Pré-indústria e o primeiro surto manufatureiro no Brasil
Esta é uma característica que voltaremos a tratar quando tratarmos do Arsenal de Guerra
da Corte.
Continuação–––––––––––
D’Alembert, que por sua vez citava um estudo de Perronet, de 1762. ALDER, Ken. Engineering the
revolution: arms & enlightenment in France, 1763-1815. Chicago: University of Chicago, 1992. p.
135
19
SOARES, Luiz Carlos. A manufatura na sociedade escravista: o surto manufatureiro no Rio de Janeiro
e nas suas circunvizinhanças (1840-1870). IN: MAURO, op. cit. p. 13 e segs.
20
BRAUDEL (1979), op. cit. p. 263.
150
Capítulo 4 - Pré-indústria e o primeiro surto manufatureiro no Brasil
21
KEMP, Tom. A Revolução industrial na Europa do Século XIX. Lisboa: Edições 70, 1985. p. 23.
22
BRASIL – Alvará de 28 de abril de 1809. Isenta de direitos as matérias primas do uso das fabricas e
concede outros favores aos fabricantes e da navegação Nacional.
23
Cálculo de inflação feito usando o índice de “custo econômico”, de acordo com o sítio Measuring
Worth. https://goo.gl/rtcTbc (acesso em outubro de 2016).
151
Capítulo 4 - Pré-indústria e o primeiro surto manufatureiro no Brasil
cujos resultados seriam aplicados nas empresas. Finalmente, foi estabelecida uma regra
para “privilégios industriais”, semelhante ao atual sistema de patentes, onde se dava
proteção, por até vários anos, às “descobertas” tecnológicas implantadas no País, mes-
mo que essas já fossem conhecidas na Europa.
insisto pois como pedi o ano passado em seu favor por um privilégio
de isenção de todo o serviço da Guarda Nacional, pois que a decadên-
cia deste Estabelecimento provem em parte de serem os aprendizes
alistados para a dita Guarda 25
Se o serviço militar dos artesãos era uma dificuldade para uma instalação gover-
namental – e justamente uma voltada para o apoio direto ao serviço militar – podemos
ter certeza que o recrutamento era mais grave para as organizações privadas.
24
BRASIL – Alvará de 28 de abril de 1809, op. cit.
25
BRASIL – Arsenal de Guerra. Relatório do Marechal João Carlos Pardal, diretor do Arsenal de Guer-
ra, ao Ministro da Guerra. Rio de Janeiro, 28 de fevereiro de 1848. Mss. ANRJ. IG7 10.
26
BRASIL – Alvará de 28 de abril de 1809, op. cit.
152
Capítulo 4 - Pré-indústria e o primeiro surto manufatureiro no Brasil
Nessa linha, em 1813, em São Paulo, foi estabelecida uma tecelagem de algo-
dão, privada, mas que se beneficiou da proteção estabelecida pelo alvará de 28 de abril
de 1809, ficando subordinada à supervisão da Real Junta de Comércio.27
Eram ações de apoio direto e indireto, mas o texto do Alvará não continha medi-
das mais eficazes, ou seja, algo que implantasse um protecionismo fiscal – e mesmo as
previsões do alvará não foram efetivadas, em grande parte.
Outra medida tomada nesse momento inicial, logo após a chegada da família
Real, foi a ação direta do governo no estabelecimento de manufaturas próprias, como a
Fábrica de Pólvora da Lagoa, no Rio de Janeiro (ver Figura 9), a de Ferro de Ipanema
(SP), as Fábricas de Tecidos da Lagoa e do Catumbi, também no Rio de Janeiro.
153
Capítulo 4 - Pré-indústria e o primeiro surto manufatureiro no Brasil
29
OLIVEIRA, Geraldo Beclauir Mendes de. A construção inacabada: a economia brasileira, 1822-1860.
Rio de Janeiro: Vício de Leitura, 2001. p. 91.
30
PORTUGAL – Decreto de 31 de outubro de 1811. Comete á Real Junta do Comércio do Estado do
Brasil a inspeção do Colégio das fabricas.
31
Arquivo Nacional. Junta de Comércio. Consulta da Real Junta sobre o estabelecimento do Colégio das
fábricas. Rio de Janeiro, 16 de novembro de 1812. apud OLIVEIRA (2001), op. cit. pp. 91-92.
32
id. pp. 91-92.
33
A estereotomia é o estudo das formas das pedras, tendo em vista suas possibilidades de corte e entalhe.
Tal profissão pode ser associada à escultura, no preparo de peças para estátuas. No entanto, cremos
que os profissionais da Missão Artística estivessem ligados a outro entendimento da profissão, o li-
Continua –––––––
154
Capítulo 4 - Pré-indústria e o primeiro surto manufatureiro no Brasil
Para a atividade de ensino, o governo instalou por decreto a Escola Real de Ci-
ências, Artes e Ofícios, que tinha um objetivo de formação de “artistas”, não como pen-
saríamos hoje, de belas artes, mas em um dos sentidos usado na época, de sinônimo de
artífice.36 No texto legal se previa também um subsídio para artesões que viessem para o
Brasil, para promover e difundir a instrução indispensável “não só aos empregos públi-
cos da administração do Estado, mas também ao progresso da agricultura, mineralogia,
indústria e comércio”.37 Vale frisar que o texto deixava claro que isso se aplicava aos
“ofícios mecânicos, cuja pratica, perfeição e utilidade depende dos conhecimentos teóri-
cos” das “ciências naturais, físicas e exatas”,38 ou seja, era uma proposta voltada para a
manufatura. Essa medida, contudo, não teve sequência, já em 1820 a escola passava a se
chamar Real Academia de Desenho, Pintura, Escultura e Arquitetura Civil, com um
currículo pouco ligado aos ofícios, esses desaparecendo totalmente das atividades da
Academia com a reforma da instituição, em 1831.39
Continuação–––––––––––
gado a construção civil, o tema sendo ensinado nas escolas de arquitetura no século XIX, sendo ne-
cessário o conhecimento de desenho de perspectiva isonométrica.
34
CARDOSO, Rafael. A Academia Imperial de Belas Artes e o Ensino Técnico. 19&20, Rio de Janeiro,
v. III, n. 1, jan. 2008. Disponível em: https://goo.gl/hiZ76T. (acesso em agosto de 2016).
35
ALMANAK do Rio de Janeiro para o ano de 1827. Rio de Janeiro: Imprensa Nacional, 1827. p. 214.
36
SILVA, Antônio. Dicionário da língua portuguesa - recompilado dos vocabulários impressos ate ago-
ra, e nesta segunda edição novamente emendado e muito acrescentado. Lisboa: Tipografia Lacerdi-
na, 1813. Verbete artista. p. 201.
37
REINO UNIDO – Decreto de 12 de agosto de 1816. Concede pensões a diversos artistas que vieram
estabelecer-se no país.
38
Id.
39
Para uma discussão interessante sobre o tema, ver: CARDOSO, op. cit.
40
PORTUGAL – Lei de 4 de dezembro de 1810. Cria uma Academia Real Militar na Corte e Cidade do
Rio o de Janeiro.
155
Capítulo 4 - Pré-indústria e o primeiro surto manufatureiro no Brasil
res”.41 O ensino dos futuros oficiais durava sete anos, dos quais apenas os três últimos
tinham cadeiras voltadas para assuntos militares, apesar de nesses anos continuarem a se
ensinar matérias ligadas às ciências.
Deve-se fazer a ressalva que essas políticas de fomento técnico não tiveram uma
continuidade nem foram uma unanimidade entre as próprias lideranças políticas do País.
Estas eram ligadas à agricultura de exportação, fator já notado por Celso Furtado42 e
elas não teriam interesse particular na questão da montagem de manufaturas locais, pois
isso não atenderia seus interesses específicos.
41
id.
42
FURTADO, Celso. Formação Econômica do Brasil. São Paulo: Companhia Editora Nacional: Publifo-
lha, 2000. p. 106.
43
José Maria da Silva Lisboa, visconde de Cairu (1756-1835), era baiano, formado em direito canônico e
filosofia em Coimbra. Teve vários cargos no serviço público, inclusive o de professor de economia
política. Escreveu vários livros, inclusive o Princípios da economia política, defendendo o liberalis-
mo. Era conservador, defensor da monarquia e foi deputado e senador do Império. BRASIL – Ar-
quivo Nacional. Mapa memória da administração pública brasileira. Verbete José Maria da Silva
Lisboa, visconde de Cairu. https://goo.gl/dFlca1 (acesso em outubro de 2016).
44
LISBOA, José da Silva. Observações sobre a franqueza da indústria, e estabelecimento de fábricas no
Brasil. Brasília: Senado Federal, 1999. p. 35.
45
Id. p. 35.
156
Capítulo 4 - Pré-indústria e o primeiro surto manufatureiro no Brasil
Privilégios de invenção
42%
16%
10%
32%
46
Id. p. 97.
47
ANDRADE, Rômulo Garcia de. Burocracia e economia na primeira metade do século XIX (a Junta de
Comércio e as atividades artesanais e manufatureiras na cidade do Rio de Janeiro: 1808-50). Dis-
sertação de Mestrado. Niterói: UFF, 1980 (mimeo). p. 62.
48
Id. p. 24.
49
id. pp. 26 e 33 e segs.
157
Capítulo 4 - Pré-indústria e o primeiro surto manufatureiro no Brasil
Eram apenas oito empresas “de base” – e isso com certa latitude –, as outras tra-
tando de bens de consumo, os mais importantes sendo o setor de sabão e velas, com 15
empresas e 438 funcionários (19,5% do total) e de chapéus, com 18 estabelecimentos e
50
id. pp. 153-154.
51
O Almanaque Laemmert de 1856, lista uma imensa quantidade de empresas na cidade do Rio de Janei-
ro, mas não é possível ter uma noção de suas dimensões ou sequer se eram simplesmente lojas de re-
talho, oficinais individuais ou algo maior. ALMANAK administrativo mercantil e industrial e provín-
cia do Rio de Janeiro para o ano de 1856. Rio de Janeiro: Laemmert, 1856. pp. 597 e segs.
158
Capítulo 4 - Pré-indústria e o primeiro surto manufatureiro no Brasil
52
BRAUDEL (1979), op. cit. p. 280. Braudel, na verdade, é mais contundente, considerando como em-
presas de tamanho reduzido algumas com mais empregados, como as fábricas de sabão de Marselha,
que tinham pouco mais de 26 empregados por unidade, em média.
53
Diário do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, edições de 29 de abril de 1849, 10 de outubro de 1850 e 17
de junho de 1852.
54
BRASIL – Ministério da Guerra. Aviso da 3ª Diretoria, 3ª Seção, do Ministério da Guerra ao diretor
do Arsenal de Guerra informando sobre contrato com Manoel Augusto dos Santos para fabricação
de bonés a 600 réis. Rio de Janeiro, 10 de dezembro de 1862. Mss. ANRJ. IG7 360.
159
Capítulo 4 - Pré-indústria e o primeiro surto manufatureiro no Brasil
55
Inclui os estabelecimentos de Francisco Miers, com 145 trabalhadores e o de Caetano da Rocha Paco-
va, com 73
56
SOARES, op. cit. pp. 20-23
57
id. pp. 18-19.
58
MELLO, João Manuel Cardoso. O capitalismo tardio : contribuição à revisão crítica da formação e do
desenvolvimento da economia brasileira. São Paulo: Brasiliense, 1982. p. 33.
59
LIMA, Carlos A. M. Artífices do Rio de Janeiro (1790-1808). Rio de Janeiro: Apicuri, 2008. p. 203.
160
Capítulo 4 - Pré-indústria e o primeiro surto manufatureiro no Brasil
60
MELLO, op. cit. p. 75.
61
EWBANK, Thomas. Life in Brazil; or a journal of a visit to the land of the cocoa and the palm. New
York: Harper & Brothers, 1856. p. 370.
62
SPIX, Johann Baptist von & MARTIUS Carl Friedrich Phillip von. Travels in Brazil in the years 1817-
1820. Vol. 1. London: Longman, 1824. p. 168.
161
Capítulo 4 - Pré-indústria e o primeiro surto manufatureiro no Brasil
63
DEBRET, Jean Baptiste. Voyage pittoresque et historique au Brésil. Tome II. Paris: Firmin Didot
Frers, 1835. p. 92.
64
id. p. 93.
162
Capítulo 4 - Pré-indústria e o primeiro surto manufatureiro no Brasil
65
BRASIL – Ministério da Fazenda. Proposta e Relatório do Ministério da Fazenda apresentados à
Assembleia Geral Legislativa na primeira sessão da décima legislatura. Rio de Janeiro: Tipografia
Nacional, 1857. Tabela 68.
163
Capítulo 4 - Pré-indústria e o primeiro surto manufatureiro no Brasil
mos ser interessante apontar, para futura referência quando tratarmos da repartição de
costuras do Arsenal de Guerra.
No caso da Santo Aleixo, cremos ser interessante fazer um aparte para notar a
proposta de criar uma integração vertical, não se preocupando só com o produto final, o
tecido, mas também com o principal insumo usado, o fio. Essa medida deve ter sido o
resultado de um problema específico do Brasil e que afetaria o Arsenal de Guerra em
todas as suas atividades, especialmente as de maior demanda, à produção de uniformes:
a falta de matéria prima produzida localmente, como trataremos no momento oportuno.
66
id. tabelas 68 e 69. Os dados dessas tabelas, contudo, devem ser vistos com certa cautela, pois há em-
presas que aparecem nas duas, com dados numéricos diferentes entre elas. Fizemos uma opção pelos
maiores valores de trabalhadores encontrados.
67
GESTAS, Aymar Marie Jacques. Conde de. A memória sobre o estado atual da indústria na cidade do
Rio de Janeiro e lugares circunvizinhos. O auxiliador da indústria Nacional. Rio de Janeiro, socie-
dade auxiliadora da indústria nacional, Rio de Janeiro, nº 3, 1837. p. 82.
164
Capítulo 4 - Pré-indústria e o primeiro surto manufatureiro no Brasil
De qualquer forma, na manufatura todos os equipamentos eram movidos por uma roda
d’agua, esta muito grande, de 9 metros de diâmetro, com a potência de 60 cavalos, mai-
or do que a maior parte das máquinas a vapor usadas em indústrias ou navios do perío-
do.68
Dados concretos sobre maquinas a vapor são mais escassos, mas existem: em
1820 já funcionava uma serraria a vapor no Rio, mas não encontramos dados sobre
ela.69 Mais tarde, a manufatura de chapéus de José Carvalho de Pinto e a de sabão e
velas de José Maria de Sá, ambas já existentes na década de 1840, tinham máquinas a
vapor.70
68
RIO DE JANEIRO – Governo Provincial. Relatório do Presidente de Província do Rio de Janeiro o
senador Aureliano de Souza e Oliveira Coutinho na abertura da 1ª sessão da 7ª legislatura da As-
sembleia Provincial, no dia 1º de abril de 1848. Rio de Janeiro: Diário de N. L. Vianna, 1848. p. 45.
69
MATOS, Raimundo José da Cunha. Memória estatística, econômica e administrativa sobre o arsenal
do exército, fábricas e fundições da cidade do Rio de Janeiro. Vila Nova de Famalicão: s.ed. 1939.
p. 14.
70
ANDRADE, op. cit. pp. 132 e 134.
71
OLIVEIRA (2001), op. cit. p. 88.
72
O relatório do ministro da marinha de 1858 informa que o navio tinha 2800 toneladas, o que certamente
está errado. O Tamandatahy tinha 35 tripulantes, um canhão de 6 libras e 16 cavalos de motor. Cus-
tou 20 contos de réis (cerca de 21 milhões de reais de hoje) e calava 1,22 m a ré e 1,04 m avante.
BRASIL – Ministério da Marinha. Relatório apresentado a assembleia geral legislativa na Segunda
Sessão da Décima Legislatura pelo ministro e secretário de estado dos negócios da marinha, José
Antônio Saraiva. Rio de Janeiro: Tipografia Nacional, 1858. p. 6. A atualização monetária foi feita
usando o índice do custo econômico. Cf. Measuring Worth: op. cit. (acesso em outubro de 2016).
73
BRASIL – Ministério da Marinha (1858), op. cit. p. 6.
165
Capítulo 4 - Pré-indústria e o primeiro surto manufatureiro no Brasil
74
INSTITUTO artístico de Fleuiss irmãos & Linde. Recordações da Exposição nacional de 1861. Rio de
Janeiro: Laemmert, 1862. Sem numeração de páginas.
166
Capítulo 4 - Pré-indústria e o primeiro surto manufatureiro no Brasil
75
Diário do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 16 de março de 1864.
167
Capítulo 4 - Pré-indústria e o primeiro surto manufatureiro no Brasil
preparo do produto completo. Além disso, é visível o uso de um trabalhador, que supo-
mos que fosse um escravo, por ser negro, estar descalço e sem camisa. Este desenvolve
uma atividade não especializada, a de foguista, alimentado de carvão a caldeira. No cen-
tro, encostado a uma coluna, uma pessoa que cremos ser um feitor, por estar usando
uma casaca e chapéu, enquanto os trabalhadores (são ilustrados quinze deles) estão em
mangas de camisa ou sem camisa, mas não são ilustrados como negros. Finalmente, na
esquerda aparecem algumas pessoas usando casacas e cartolas, que talvez sejam fregue-
ses ou pessoal da administração da companhia. Um microcosmo de uma manufatura
“moderna”, com técnicas mais atualizadas do que o Arsenal de Guerra tinha no período,
conforme discutiremos em outro capítulo.
Essa questão não era um problema teórico, a experiência prévia com situações
semelhantes era marcante e recente: na Guerra da Cisplatina, as Províncias Unidas do
Rio da Prata, apesar de estarem muito inferiorizadas em termos navais, mantiveram uma
grande campanha de corso e mais de trezentos navios de comércio brasileiros foram
apresados pelos argentinos e uruguaios. 76 Entre 1844 e 1850, a ação antiescravidão in-
glesa capturou dezenas de navios negreiros, vários deles em águas nacionais, às vezes
sob o fogo de canhões de fortes, incapazes de impedir a ação britânica.77 Entre 1838 e
1845 uma esquadra francesa tinha mantido Buenos Aires sob bloqueio, o que se repetiu
entre 1845 e 1850, agora com uma força naval anglo-francesa. Foram ações observadas
de perto pelo Brasil, por causa de seus interesses no Uruguai. A solução para evitar os
76
RODRIGUEZ, Horacio & ARGUINDEGUY, Pablo E. El Corso Rioplantense. Buenos Aires: Instituto
Browniano, 1996. Anexo II.
77
MACKENZIE-GRIEVE, Averil. The Last of the Brazilian Slavers, 1851. In: Mariner’s Mirror, 31,
1945, p. 4.
168
Capítulo 4 - Pré-indústria e o primeiro surto manufatureiro no Brasil
piores problemas de um eventual bloqueio seria prover o país de uma infraestrutura mí-
nima de produção, em caso de necessidade.
78
BRASIL – Ministério da Guerra. Relatório da repartição dos negócios da guerra apresentado à As-
sembleia Geral Legislativa em 14 de maio de 1845 pelo respectivo ministro e secretário de estado
Jerônimo Francisco Coelho. Rio de Janeiro: Tipografia de Barros, 1845. p. 8.
79
BRASIL – Ministério da Guerra. Relatório apresentado a Assembleia Geral Legislativa na quarta
Sessão da nona legislatura pelo ministro e secretário de estado dos negócios da guerra, Marquês de
Caxias. Rio de Janeiro: Tipografia de Laemmert, 1856. p. 32.
80
BRASIL – Decreto nº 491, de 28 de Setembro de 1847 – Autoriza ao Governo a emprestar a Joaquim
Diogo Hartley a quantia de cem contos de réis para auxiliar a sua fabrica de tecidos de algodão,
debaixo de certas condições.
169
Capítulo 4 - Pré-indústria e o primeiro surto manufatureiro no Brasil
daraí (RJ), não se firmou e viria a falir muito pouco tempo depois – em 1855 o governo
já buscava meios de ressarcir os valores do contrato de empréstimo. 81
Aqui vale ressaltar que uma das razões apontadas para a falência do estabeleci-
mento de Hartley na historiografia mais moderna foi a competição com a produção es-
trangeira e a falta de mercados para seus produtos.82 Entretanto, no caso cremos ser im-
portante notar que essa falta de mercados deve ser relativizada. Já em 1849 encontramos
documentação do ministro da guerra, perguntando se os produtos da manufatura podiam
ser utilizados na fabricação de fardamentos.83 Isto seguiria os termos do alvará de 28 de
abril de 1809, que poderia já estar “esquecido”, mas não foi o caso. A decisão dos arte-
sãos do Arsenal de Guerra foi favorável ao uso dos tecidos e a partir daí foi dada uma
ordem do Ministro, determinando que só fossem importados tecidos da Europa se as
manufaturas nacionais não os pudessem fornecer.84 A medida, mesmo na época, era
vista como protecionista, um autor escrevendo:
Sabem todos que por diversas vezes se tem tentado nesta Corte, e em
várias Províncias a criação de semelhantes Fábricas, e que não só os
grandes embaraços que a natureza da empresa opõe, como os opostos
pelos importadores de algodão manufaturado, fizeram perecer essas
empresas muito breve, arrastando o aniquilamento daqueles que ai
empregaram seus cabedais.
Ao estabelecimento do Sr. Hartley não caberá melhor sorte, se o go-
verno Imperial o não proteger. Embora o estabelecimento esteja sofri-
velmente montado, embora o empresário não se poupe à sacrifícios
para vencer todas as dificuldades; o que pode tudo isto se os importa-
dores de algodão empreenderem destruí-lo? Só uma proteção obstina-
da do governo o pode fortificar. E o Ex. Sr. Manoel Felizardo [Minis-
tro da Guerra] tanto compreendeu esta necessidade, que põe em ação
todos os recursos para animar a dita fábrica dando grande extração aos
seus produtos.
Para o obter S. Ex. ordenou que no Hospital Militar, Arsenal de Guer-
ra e corpos desta Guarnição, sempre que fosse possível se empregasse
o algodão da Fábrica Brasileira; e se são exatas as notícias que temos,
S. Ex. tem em vista dar maior latitude à sua ordem.85
81
Diário do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 23 de agosto de 1855.
82
LAHMEYER LOBO, Eulália Maria. História do Rio de Janeiro (do capital comercial ao capital indus-
trial e financeiro). Rio de Janeiro, IBMEC, 1978. p. 117.
83
BRASIL – Ministério da Guerra. Expediente de 24 de novembro de 1849. Diário do Rio de Janeiro,
Rio de Janeiro, 18 de dezembro de 1849.
84
BRASIL – Ministério da Guerra. Aviso do ministro Manoel Felizardo de Sousa e Melo ao diretor do
Arsenal de Guerra da Corte, José Maria da Silva Bitancourt. 14 de maio de 1850. Mss. ANRJ. IG7
404.
85
PROTEÇÃO à indústria manufatureira. O Liberal, Rio de Janeiro, 19 de janeiro de 1850.
170
Capítulo 4 - Pré-indústria e o primeiro surto manufatureiro no Brasil
O Ministro da Guerra chegou até a autorizar que treze dos menores que faziam
aprendizado no Arsenal de Guerra fossem entregues a Hartley, para receberem ensino
sobre o ofício e para servirem de apoio à iniciativa. 86
Em nossa opinião, mais interessante do que poderia parecer apenas boas inten-
ções, há registros de diversas compras efetivas de tecidos na manufatura Pedro de Al-
cântara, publicados no Diário do Rio de Janeiro: em 26 de fevereiro de 1850 foi pago a
Hartley o valor de 765$750 referente a algodão vendido ao Arsenal, 87 quantia que foi
seguida por outras: em 2 de maio, 1:004$350 rs; 1:294$4000 rs em 13 de maio e assim
por diante. Além disso, o tecido da Fábrica foi usado em outros Arsenais, havendo men-
ções do envio, pelo Arsenal de Guerra da Corte, de 444 varas (488 metros) para o Ma-
ranhão e 8.140 varas (8.954 metros) de algodão para o Arsenal de Pernambuco, esta
última remessa no valor de 2:035$000 rs.
“O Fabricante que até o presente não tinha dado o menor sinal de ar-
rependimento hoje parece esmorecido, apontando entre outras causas,
o alto preço do algodão, o empate do que existe fabricado, que sendo a
princípio mui procurado, não acha hoje compradores, o que lhe é tal-
vez devido à baixa do preço do algodão estrangeiro, e finalmente a es-
cassez do auxílio solicitado, pois tendo pedido 250.000$ não passou a
86
BRASIL – Arsenal de Guerra. Ofício do Diretor do Arsenal de Guerra, Jeronimo Francisco Coelho, ao
Ministro da Guerra, Pedro d’Alcantara Bellegarde sobre o retorno de treze menores ao Arsenal.
Rio de Janeiro, 23 de outubro de 1854. Mss. ANRJ. IG7 14.
87
BRASIL – Ministério da Guerra. Expediente de 19 de fevereiro de 1850. Diário do Rio de Janeiro, Rio
de Janeiro, 26 de fevereiro de 1850.
88
A cotação padrão da vara (unidade de medida equivalente a 1,1 metros) de algodão da fábrica de Har-
tley era de 250 réis, de forma que os valores acima correspondem a 110.000 metros de tecido. Diário
do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 2 de setembro de 1850.
171
Capítulo 4 - Pré-indústria e o primeiro surto manufatureiro no Brasil
89
BRASIL – Ministério do Império. Relatório da Repartição dos negócios do Império apresentado à
Assembleia Geral Legislativa na primeira sessão da oitava legislatura pelo respectivo ministro e se-
cretário de estado, Visconde de Monte Alegre. Rio de Janeiro: Tipografia Nacional, 1850. p. 33. O
grifo é nosso.
90
BRASIL – Comissão de Melhoramentos do Material do Exército. Parecer sobre a compra da Máquina
da Fábrica de Panos de Algodão de Hartley. Rio de Janeiro, 28 de junho de 1852. Mss. ANRJ. IG7
13.
91
BRASIL – DECRETO nº 547 de 8 de Janeiro de 1848. Aprova a Tabela dos preços de diversos artigos
de armamento, equipamento, arreios, fardamentos e mais objetos para o Exercito e Fortalezas.
92
BRASIL – Ministério da Guerra. Expedientes. Diário do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, edições de 10
de fevereiro, 14 de agosto e 16 de setembro de 1856.
172
Capítulo 4 - Pré-indústria e o primeiro surto manufatureiro no Brasil
De qualquer forma, em 1850 foi concedido um privilégio por dez anos para João
Marcos Vieira de Sousa Pereira, o proprietário da Imperial manufatura de calçado cari-
oclave à prova d'agua.95 Este tipo de calçado, carioclave, ou coiroclave, na França, era
considerado apropriado aos militares e era usado desde 1816 – nele, a sola não era presa
ao resto do calçado por fios encerados, como era comum então, mas sim por cravos,
fixados no interior do sapato por peças metálicas. Os cravos faziam que a sola se gastas-
se no mesmo ritmo do tacão (salto) e o sapato durasse mais, 96 de forma que os exércitos
inglês e alemão usaram uma bota que seguia os mesmos princípios até pelo menos a
Segunda Guerra, pois era apropriada para o uso em campanhas.
93
DECLARAÇÕES. Diário do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 9 de fevereiro de 1844.
94
ALMANAK, op. cit. p. 628 e pp. 674 e segs.
95
BRASIL – Decreto nº 677, de 6 de Julho de 1850. Concede a João Marcos Vieira de Sousa Pereira
privilegio exclusivo por dez anos para estabelecer nesta Corte uma manufatura de calçado cario-
clave com o titulo de – Imperial Manufatura de calçado carioclave á prova d'agua.
96
LA CHAUSSURE corioclave. https://goo.gl/JupoHn. (Acesso em julho de 2016).
97
RIO DE JANEIRO – Governo Provincial. Expediente de 8 de outubro de 1850. Diário do Rio de Janei-
ro, Rio de Janeiro, 2 de novembro de 1850.
98
BRASIL – Ministério da Guerra. Aviso do ministro Manoel Felizardo de Sousa e Melo ao diretor do
Arsenal, José Maria da Silva Bitancourt, encaminhando o contrato estabelecido com a Imperial
Manufatura. Rio de Janeiro, 5 de junho de 1851. Mss. ANRJ. IG7 404.
173
Capítulo 4 - Pré-indústria e o primeiro surto manufatureiro no Brasil
para a venda de quatro mil pares por mês, em 1852 – curiosamente, estes custando 100
réis a mais do que da manufatura nacional.99 Ainda assim, a Imperial Manufatura tam-
bém procurou obter um contrato com a Marinha. Apesar do contrato com o Exército, só
encontramos na documentação do Arsenal uma referência ao recebimento de sapatos da
Imperial manufatura – apenas seiscentos pares, em abril de 1853, o fabricante se des-
culpando pela demora na entrega, usando como justificativa a falta de mão de obra em
Petrópolis. 100
99
BRASIL – Arsenal de Guerra. Ofício da diretoria do Arsenal, Marechal de Exército José Maria da
Silva Betencourt, ao Ministro da Guerra sobre a compra de sapatos a José Maria Palhares. Rio de
Janeiro, 9 de julho de 1851. Mss. ANRJ. IG7 13
100
CARTA de João Marcos Vieira de Souza Pereira ao oficial maior da Secretaria de Estado dos Negó-
cios da Guerra, Libanio Augusto da Cunha Mattos. Petrópolis, 29 de abril de 1852. Mss. ANRJ. IG7
13.
101
BRASIL – Comissão de Melhoramentos do Material do Exército. Parecer sobre os sapatos Coirocla-
ve. Rio de Janeiro, 28 de junho de 1852. Mss. ANRJ. IG7 13.
102
Existe uma grande quantidade de obras tratando dos empreendimentos de Mauá, especialmente a Pon-
ta da Areia, a começar pela própria defesa do Barão: SOUZA, Irineu Evangelista de. Exposição do
Visconde de Mauá aos credores de Mauá & C. e ao público. Rio de Janeiro: J. Villeneuve, 1878.
Além dessa, podemos citar BESOUCHET, Lídia. Mauá e seu tempo. Rio de Janeiro: Nova Fronteira,
1978; CALDEIRA, Jorge. Mauá Empresário do Império. São Paulo: Companhia das Letras, 1999. A
obra que mais utilizamos no presente trabalho foi a: MOMESSO, Beatriz Piva. Indústria e trabalho
no século XIX: o estabelecimento de Fundição de Máquinas de Ponta d’Areia. Dissertação de mes-
trado. Niterói: Universidade Federal Fluminense, 2007. (mimeo).
174
Capítulo 4 - Pré-indústria e o primeiro surto manufatureiro no Brasil
ção com o mesmo nome, estabelecida pelo inglês Carlos [Charles] Colmann, em mea-
dos de 1844. O barão de Mauá, em sua Exposição, onde apresentava suas explicações
para o insucesso de suas empresas, chamava a empresa que fora comprada de uma mi-
niatura, do que seria o futuro estabelecimento. Mas a empresa de Colmann não era uma
manufatura pequena – em 1845 ela lançou ao mar uma barca a vapor, a Fluminense,
para a Sociedade Macaé-Campista, segundo a empresa, a maior embarcação feita no
Brasil até então,103 o estaleiro também sendo capaz de fundir ferro, uma tecnologia
complicada para o período. Ou seja, já havia uma importante base a partir da qual Mauá
poderia expandir seu empreendimento.
De qualquer forma, dois anos depois de Colmann estabelecer sua empresa, Mauá
comprou a fundição pois, segundo ele, “o Brasil precisava de alguma indústria dessas
que podem medrar sem grandes auxílios”. 104 No entanto, o próprio autor se contradiz ao
tratar dos “auxílios”, colocando a necessidade que havia de apoio governamental para o
empreendimento:
103
Diário do Rio de Janeiro, 3 de junho de 1845.
104
SOUZA, op. cit. p. 8. Grifos do autor.
105
id. p. 13. Grifos do autor.
175
Capítulo 4 - Pré-indústria e o primeiro surto manufatureiro no Brasil
Quadro de trabalhadores
800
700
600
500
400 441 505
300 343
281
265 273
200
122
100 148 181 162
85 130 101
73
0
Escravos Livres
106
MOMESSO, op. cit. p. 55.
107
id. pp. 124 e 125.
108
id. p. 123.
176
Capítulo 4 - Pré-indústria e o primeiro surto manufatureiro no Brasil
Um último ponto a comentar sobre a divisão dos operários da Ponta da Areia era
a escala das oficinas: em 1851 eram dez: de fundição de ferro, de bronze, mecânica,
ferraria, caldeireiro de ferro, serralheiros, construção naval, modeladores, aparelho e
109
Não conseguimos descobrir qual seria essa especialidade. Pelo número de empregados, cremos que
seria algo como o carpinteiro de machado nos arsenais do exército e de marinha.
110
MOMESSO, op. cit. p. 124.
111
id. pp. 124 e 125.
177
Capítulo 4 - Pré-indústria e o primeiro surto manufatureiro no Brasil
velame e de galvanoplastia,112 esta última uma novidade técnica na época. Quatro anos
depois, havia seis delas funcionando, as de maquinistas, malhadores, 113 caldeireiros,
carpinteiros, modeladores, e calafates. As duas últimas eram muito especializadas e de
emprego restrito, com um pequeno quadro técnico, por outro lado, as quatro outras ti-
nham, respectivamente, 70, 85, 67 e 117 trabalhadores,114 mais um mestre em cada ofi-
cina, uma média de 84 operários, o que mostra a grande escala da empresa, já que cada
oficina, isoladamente, era maior do que a maior parte dos empreendimentos do Rio,
como visto antes (ver Tabela 7, acima).
A empresa também tinha uma alta capacidade técnica, em 1848 podendo fundir
peças de artilharia até de calibre 36 libras – um objeto pesando perto de 3,5 toneladas.
Isso nos dá um indicativo da capacidade da sua fundição, já que uma boca de fogo tem
que ser feita de uma vez só, de forma que os fornos tinham que ser capazes de derreter
essa quantidade de ferro, pelo menos. A empresa também podia fabricar motores a va-
por pesando até 500 arrobas (7.300 kg) e, naquele ano, se estava construindo um “savei-
ro de ferro”, com lotação de 6.000 arrobas, 88 toneladas (Figura 13). 115 Ao longo da
história da instituição, ela fabricaria 72 navios completos, alguns de grande porte, inclu-
sive o segundo vapor com casco de ferro construído no País, o Corumbá, lançado ao
mar em 1860.
112
RIO DE JANEIRO – Governo Provincial. Relatório apresentado ao Exmo. vice-presidente da província
do Rio de Janeiro, o comendador João Pereira Darrique Faro, pelo presidente, o conselheiro Luiz
Pedreira do Couto Ferraz, por ocasião de passar-lhe a administração da mesma província no dia 5
de maio de 1851. Rio de Janeiro: Diário do Rio de Janeiro, 1851. p. 28.
113
A categoria malhador, na Ponta da Areia tem um sentido diferente do que era usual no Arsenal de
Guerra. Na empresa de Niterói, o termo aparentemente é usado como sinônimo de oficina de ferrei-
ros, seu mestre sendo um inglês, tendo também 84 operários qualificados. No Arsenal de Guerra, o
malhador era um servente, trabalhador braçal dos ofícios de ferro, apesar de as vezes ser contato en-
tre o corpo de artesãos.
114
MOMESSO, op. cit. p. 125.
115
RIO DE JANERIO, Relatório (1848), op. cit. p. 45.
178
Capítulo 4 - Pré-indústria e o primeiro surto manufatureiro no Brasil
116
BERTICHEM, Pieter Gotfried. Fábrica Ponta de Areia. BARÃO de Mauá, o empreendedor.
https://goo.gl/PZw7Yk (acesso em outubro de 2016).
117
Segundo BOITEAUX, seriam: Iguassu, Recife, Dom Pedro II, Paraense, Dom Pedro, Apa, Paraná,
Jaguarão e Corumbá, BOITEAUX, Lucas Alexandre. Das nossas naus de ontem aos submarinos de
hoje. Subsídios para a história marítima do Brasil. Diversos volumes. Rio de Janeiro, desde 1956.
118
Esse valor, pago em 1851, corresponde a aproximadamente a 540 milhões de reais de hoje. Cálculo de
inflação feito usando o índice de “custo econômico”, de acordo com o sítio Measuring Worth.
https://goo.gl/rtcTbc (acesso em outubro de 2016).
119
MOMESSO, op. cit. p. 77.
179
Capítulo 4 - Pré-indústria e o primeiro surto manufatureiro no Brasil
O exército também fez algumas compras na fundição: em 1851 tinha sido adota-
do um novo tipo de peça de artilharia, o canhão-obus João Paulo,121 e as peças necessá-
rias foram encomendadas na Ponta da Areia, cada uma custando 1:600$000 (peças de
24 libras) e 1:400$000 réis (peças de 12 libras, as mais comuns). 122 Só que eram muito
poucas armas – se destinavam a equipar a única unidade de artilharia de campanha do
Exército, que necessitava de apenas 24 peças. Uma bateria, seis canhões, também foi
fabricada, para ser presenteada ao governo do Paraguai em 1851 e outra foi enviada
para Mato Grosso em 1857, na crise com o Paraguai daquele ano.
O Arsenal fez outras encomendas junto a Mauá, como peças para foguetes de
Halle, máquinas para suas oficinas, como quatro prensas para fabricação de cartuchos,
instaladas no Laboratório Pirotécnico do Campinho e muita munição123 – desde a déca-
da de 1830 não encontramos menções ao fornecimento de projéteis pela fábrica de Ferro
120
BOITEAUX, op. cit. Vol. XXIV. Rio de Janeiro, 1971. p. 76.
121
A história desse tipo de canhão é desconhecida no País, apesar de ser o primeiro armamento desenhado
e fabricado inteiramente no Brasil. Pela documentação dispersa do Arsenal de Guerra, disponível no
Arquivo Nacional (série IG7 ) sabe-se que foi o material padrão da Artilharia de Campanha brasilei-
ra entre 1852 e 1861, ano em que começaram a ser substituídas por peças francesas, La Hitte. Algu-
mas ainda fizeram a campanha do Paraguai, sendo recolhidas aos depósitos apenas em 1868.
122
BRASIL – Ministério da Guerra. Aviso do ministro Manoel Felizardo de Sousa e Melo ao diretor do
Arsenal, José Maria da Silva Bitancourt, sobre diversas compras na Ponta da Areia. Rio de Janeiro,
17 de abril de 1852. Mss. ANRJ. IG7 13.
123
Entre muitas encomendas de munição, podemos citar: BRASIL – Ministério da Guerra. Aviso do Mi-
nistro da Guerra Manoel F. de Sousa e Mello ao Diretor do Arsenal de Guerra, Alexandre Manoel
Albino de Carvalho, autorizando a mandar fundir no Estabelecimento da Ponta d’Areia vinte mil
balas de ferro para pirâmides de calibre 30 e de 24. Rio de Janeiro, 27 de agosto de 1859. Mss.
ANRJ. IG7 406.
180
Capítulo 4 - Pré-indústria e o primeiro surto manufatureiro no Brasil
de Ipanema, que deveria fornecer este insumo para o exército – e outros equipamentos,
inclusive armas: 2.000 lanças para cavalaria, em 1860 (ver Figura 14). 124
124
BRASIL – Ministério da Guerra. Aviso do Ministro, Rego Barros, ao diretor do Arsenal de Guerra,
Coronel Alexandre Manoel Albino de Carvalho, sobre diversas encomendas feitas na Fundição da
Ponta da Areia. Rio de Janeiro, 19 de junho de 1860. Mss. ANRJ. IG7 368.
125
BRASIL – Ministério da Guerra. Aviso do Ministro da Guerra, Marques de Caxias, ao Diretor do
Arsenal de Guerra da Corte, autorizando a fundição de José Francisco Barriga. Rio de Janeiro, 26
de fevereiro de 1856. Mss. ANRJ. IG7 522.
126
HOGG, Ian V. A History of artillery. London, Hamlyn, 1974. p. 11
127
MUSEU Histórico Nacional, peça número de inventário SIGA 15.884. Para efeito de comparação co m
um canhão fundido no Arsenal de Guerra, ver a peça nº SIGA 15.883, fabricada em 1867. Deve-se
dizer que em 1856 o Arsenal de Guerra ainda era incapaz de fabricar canhões.
181
Capítulo 4 - Pré-indústria e o primeiro surto manufatureiro no Brasil
uma medida que afetou até os estabelecimentos do governo, pois até então era possível
que um importador que vendesse para o Arsenal de Guerra conseguisse “isenção de
direitos”, o que ficou expressamente proibido pelo decreto, implicando em um aumento
dos preços do material adquirido pelas forças armadas.128
O golpe mais importante nas manufaturas privadas como um todo foi a tarifa
Silva Ferraz (decreto nº 2.684, de 3 de fevereiro de 1860), que diminuiu as taxas de im-
portação de diversos produtos acabados. Além disso, houve uma mudança na política do
governo, que deixou de dar o apoio a manufaturas locais que era visível na documenta-
ção anterior. Mauá reclamou disso, ao falar dos investimentos feitos em suas oficinas:
De qualquer maneira a Tarifa Silva Ferraz, bem como medidas liberando a na-
vegação de cabotagem a navios estrangeiros (lei 177, de 9 de setembro de 1863), certa-
mente representaram sérios problemas para as manufaturas nacionais – era mais fácil
contratar um navio estrangeiro do que mandar fazer um em um estaleiro local, como o
de Mauá ou Miers & Maylor. Como colocou Ferreira Lima, a nova postura representada
pela lei de 1860 “prejudicou enormemente a Ponta da Areia, levando-a a uma decadên-
128
BRASIL – Arsenal de Guerra. Ofício do diretor do Arsenal de Guerra, Marechal João Carlos Pardal,
ao Ministro da Guerra, Manoel Felizardo de Souza, sobre a compra de quatro mil capotes salvos
dos direitos da alfândega. Rio de Janeiro, 20 de março de 1848. Mss. ANRJ. IG7 10.
129
SOUZA, op. cit. p. 10. Grifo do autor.
130
BRASIL – Ministério da Guerra. Portaria do Marques de Caxias, ministro da guerra ao diretor do
Arsenal. Autorizando mandar fundir na fábrica da ponta da areia as balas para as peças raiadas.
Rio de Janeiro, 15 de novembro de 1861. Mss. ANRJ. IG7 526.
131
BRASIL – Ministério da Guerra. Aviso do ministro da Guerra, Polidoro da Fonseca Quintanilha
Jordão, ao coronel diretor do Arsenal de Guerra, José de Vitória de Soares d’Andrea, remetendo
bocas de fogo inutilizadas para o Arsenal de Marinha para fundição de trinta e seis canhões de ca-
libre quatro do sistema La Hitte. Rio de Janeiro, 28 de fevereiro de 1862. Mss. ANRJ. IG7 515.
182
Capítulo 4 - Pré-indústria e o primeiro surto manufatureiro no Brasil
cia que lhe foi fatal”,132 a Fundição fechando em 1868, o encerramento de suas ativida-
des podendo ser considerado como representativo do fim do primeiro surto manufaturei-
ro civil do País.
Sendo assim, a fundição de Mauá – que foi o que consideramos ter se aproximou
mais do conceito de indústria piloto de Braudel, no Brasil, não conseguiu se firmar –
apesar dela ter apoiado a ação de outras empresas, fornecendo materiais. Não conseguiu
vencer a “rigidez e inércias” nas economias pré-industriais, como colocava Braudel.
4.7 Siderúrgicas
Fazemos essa entrada por causa da Fábrica de Ferro de São João de Ipanema,
pois esta foi parte da estrutura manufatureira do Ministério da Guerra, que vai ser abor-
dada no capitulo 6.
Sempre houve uma pequena produção de ferro no País no período colonial, arte-
sanal, usando forjas catalãs, o metal sendo usado, inclusive, na produção artesanal de
armas.133 O barão Eschwege, autor do Pluto Brasiliensis, escreveu:
Como colocado por Eschwege, a quantidade total de metal feito nessas forjas
não era muito grande: a proposta de criação da fábrica de ferro de Araçoiaba, em 1682
em São Paulo, previa a operação de cinco forjas, com a capacidade de produção de tre-
132
LIMA, Heitor Ferreira. História político-econômica e industrial do Brasil. São Paulo: Companhia
Editora Nacional, 1973. p. 264.
133
CALDEIRA, Jorge. História do Brasil com Empreendedores. São Paulo: Mameluco, 2009. p. 137.
134
ESCHWEGE, W. L. von. Pluto Brasiliensis. Vol. II. São Paulo: Companhia Editora Nacional, 1944. p.
341.
135
id. pp. 341-342.
183
Capítulo 4 - Pré-indústria e o primeiro surto manufatureiro no Brasil
zentos quilos de ferro por dia no total e 72 toneladas por ano.136 A quantidade pode pa-
recer expressiva, mas deve-se ter em mente que havia muitas perdas, pois o material
tinha que ser processado para a obtenção de metais da qualidade e quantidade necessária
para os serviços de uma indústria.
O consumo, por sua vez, era elevado: o único documento que encontramos sobre
pedidos de ferro para o Arsenal é de 1798, quando se pedia a importação de cerca de 76
toneladas de ferro em barra para as suas oficinas, tonelagem que se fosse realmente ad-
quirida equivaleria a 34,5% de todas as importações de ferro que efetivamente passaram
pela Alfândega do Rio de Janeiro naquele ano.137
Assim, a quantidade de forjas que existia no País – por comuns que fossem – só
tinha uma capacidade muito limitada, mesmo para atender ao próprio consumo local das
fazendas, sendo incapaz de fornecer material para as necessidades de oficinas, ainda que
136
TAUNAY, Affonso de E. História geral das bandeiras paulistas. Tomo X. São Paulo: Imprensa Ofi-
cial do Estado, 1949. p. 218.
137
Sobre requisição de ferro ver SANTOS, Manoel Francisco dos. Relação do que se precisa para forne-
cimento do real trem do Rio de Janeiro (...). Rio de Janeiro, 26 de fevereiro de 1798. Mss. Biblioteca
Nacional, I-31,21,40 Para ver as importações de ferro que passaram pela alfândega consultar AR-
RUDA, José Jobson de. O Brasil no Comércio Colonial. São Paulo, Ática, 1980. p. 562.
138
BRASIL – Arsenal de Guerra. Ofício Nº. 34, do diretor do Arsenal de Guerra, Antônio João Rangel de
Vasconcelos ao Ministro da Guerra, Manoel Felizardo de Souza e Mello. Rio de Janeiro, 30 de abril
de 1849. Mss. ANRJ. IG7 10.
139
id.
140
ESCHWEGE, op. cit. p. 440.
184
Capítulo 4 - Pré-indústria e o primeiro surto manufatureiro no Brasil
141
CARTA de Luiz Diogo Lobo da Silva, governador da Capitania de Minas Gerais a Luís António de
Sousa Botelho Mourão, governador da Capitania de São Paulo, Vila Rica, 21 de setembro de 1766.
DOCUMENTOS interessantes. Vol. XIV. São Paulo: Industrial de São Paulo, 1895. p. 182.
142
id. p. 182.
143
LIBBY, Douglas Cole. Transformação e trabalho em uma economia escravista: Minas no século XIX.
São Paulo: Brasiliense, 1988. p. 136.
144
id. p. 138.
145
ESCHWEGE, op. cit. p. 442.
185
Capítulo 4 - Pré-indústria e o primeiro surto manufatureiro no Brasil
fundições, mas a produção certamente ainda era reduzida: o autor encontrou dados par-
ciais, que mostram que trabalhavam nessas instalações 242 escravos e 72 jornaleiros,
sendo que 55 escravos estavam concentrados em uma instalação, a Patriótica.146 No
caso, a média de trabalhadores era oito cativos e dois livres por unidade, obviamente
sendo pequenas oficinas artesanais, o que, com umas poucas exceções, parece caracteri-
zar a situação da produção metalúrgica de Minas Gerais na primeira metade do século
XIX. Estas empresas sobreviveram e até se desenvolveram por causa do isolamento
geográfico, como apontado em um relatório do ministério da Guerra:
146
LIBBY, op. cit. p. 164.
147
BRASIL – Ministério da Guerra. Relatório do ministério da Guerra apresentado à Assembleia Geral
Legislativa na terceira sessão da décima legislatura pelo ministro Manoel Felizardo de Souza e
Mello. Rio de Janeiro: Laemmert, 1859. p. 15.
186
Capítulo 4 - Pré-indústria e o primeiro surto manufatureiro no Brasil
obra escrava, assumia um aspecto mais arcaico. Como Braudel coloca, era uma instala-
ção em que convivia a rigidez, inércias de uma sociedade pré-industrial, com os “mo-
vimentos limitados e minoritários, mas vivos e poderosos, de um crescimento moder-
no”.148
148
BRAUDEL (1979), op. cit. p. 258.
149
id. p. 6.
150
BRASIL – Exército em Operações. Relação dos objetos precisos ao Exército na Província de São
Pedro do Rio Grande do Sul, Antônio Elizário de Miranda e Brito. Quartel General em Porto Alegre,
18 de dezembro de 1838. Mss. ANRJ. IG7 323.
187
Capítulo 4 - Pré-indústria e o primeiro surto manufatureiro no Brasil
pra de seis mil capotes em janeiro daquele ano.151 Todos os que se apresentaram para a
venda foram importadores, pois não havia nenhuma empresa no Rio que pudesse fazer o
fornecimento com peças fabricadas localmente, apesar do valor ser bem elevado. Pela
menor proposta, de 6$800 réis por capote, “livre de direitos”, isso é, sem pagar os im-
postos de importação, se atingia um total, nada desprezível, de 40:800$000 réis. No
entanto, o produto importado era bem mais barato do que o feito por alfaiates privados
no Brasil (14$000 réis por unidade) ou mesmo no Arsenal de Guerra (10$730 réis por
peça).
O importante é que simplesmente não havia uma empresa nacional que pudesse
atender com produtos locais as necessidades do exército naquela situação e mesmo o
Arsenal teria imensa dificuldade em fazer o fornecimento, tanto é que se preferiu a im-
portação. Nessas circunstâncias, fica evidente que a implantação de uma manufatura
nacional seria muito difícil, ainda mais considerando a competição com os preços pagos
em Londres, muito inferiores aos locais. 152
151
Diário do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 21 de janeiro de 1851.
152
O Brasil e o Sr. Ministro da Guerra. O LIBERAL: periódico político e literário. Rio de Janeiro, 5 de
março de 1851.
153
BRAUDEL (1979), op. cit. p. 263.
188
Capitulo 5 - A pré-indústria e a produção de artigos militares
Sumário
191
Capitulo 5 - A pré-indústria e a produção de artigos militares
Para se aproveitar do maior poder de fogo que os navios europeus permitiam, era
necessário equipar os galeões com o maior número de canhões possível, e Portugal es-
teve adiantado nas técnicas de produção de bocas de fogo de bronze no século XVI e na
primeira metade do XVII, 3 chegando a montar fundições de Canhões na Ásia4 e até no
1
ALDER, Ken. Engineering the Revolution: Arms & Enlightenment in France, 1763-1815. Chicago: The
University of Chicago, 2007. p. 173.
2
Para uma discussão sobre a Revolução Militar na Ásia Portuguesa, ver: CASTRO, Adler Homero Fon-
seca de. Guerra e sociedade no Brasil Colonial: a influência da guerra na organização social 1500-
1665. Niterói: Dissertação de mestrado, UFF, 1995. (mimeo).
3
Para uma discussão disso ver: GUILMARTIN, John Francis. Gunpowder & Galleys: Changing Tech-
nology & Mediterranean warfare at sea in the 16th century. London: Conway, 2003. pp. 272 e segs.
4
Viterbo menciona a existência da fundição no Estado da Índia como já existindo há algum tempo em
1589. VITERBO, Sousa. Fundidores de artilharia. Lisboa: tipografia universal, 1901. p. 35.
192
Capitulo 5 - A pré-indústria e a produção de artigos militares
Brasil, 5 apesar de não se conhecerem maiores dados sobre essa última instalação – há,
contudo, vários exemplares de canhões feitos na Ásia Portuguesa, inclusive em museus
britânicos, como o fort Nelson, onde está um grande canhão de 48 libras, feito por Pedro
Dias Bocarro em 1640, na cidade de Chaul.6 Da mesma forma, há em museus várias
peças feitas na fundição de Lisboa no século XVII, sendo visível a grande qualidade
técnica deles, como no caso das recuperadas no naufrágio do galeão Santíssimo Sacra-
mento, que afundou em 1668.7
5
MORENO, Diogo de Campos [suposto autor]. Livro que dá razão ao Estado do Brasil. Rio de Janeiro,
Instituto Nacional do Livro, 1969. Edição fac-similar de manuscrito de 1612, sem numeração de pá-
ginas.
6
ROTH, Rudi. Portuguese bronze Leão, drawing nº 365. Journal of the Ordnance Society, volume 7,
1995. Capa.
7
Sobre o tema, ver: GUILMARTIN, John Francis. Os canhões do Santíssimo Sacramento. Navigator, Rio
de Janeiro, Serviço de Documentação Geral da Marinha, n. 17, dez. 1981.
8
O Museu Histórico Nacional, por exemplo, tem três peças de 1714, fundidas por Giacomo Rocca, arte-
são de Gênova. Peças do Sistema Informatizado de Gerenciamento de Acervos – SIGA 015890,
015893 e 015900.
9
MONGE, Gaspard. Description de l'art de fabriquer des canons : faite en exécution de l'arrêté du Co-
mité de salut public, du 18 pluviôse de l'an II de la République française, une et indivisible. Paris:
Comité de Salut Public, [1792]. p. 42
10
CARUANA, Adrian B. The identification of British Muzzle Loading Artillery : Part 2, the piece. The
Canadian Journal of Arms Collecting. vol. 22, n° 1 (Feb. 1984). pp. 15 e 16.
193
Capitulo 5 - A pré-indústria e a produção de artigos militares
do peso não era tão crítica. Como esses usos eram os que necessitavam do maior núme-
ro de bocas de fogo, a produção de peças de ferro era maior.
11
Refutando essa afirmação, que aparece em alguns autores, o autor do livro “A espingarda perfeita”, do
início do século XVIII, escreveu que “o nosso [ferro] tem excelentes provas na fundição de artilha-
ria”. FIOSCONI, Antônio & GUSERIO, Jordam. Espingarda Perfeyta. Lisboa: Antônio Pedrozo
Galram, 1718. p. 26.
12
CIPOLLA, Carlo M. Guns Sails and Empires: Technological innovation and the early phases of Euro-
pean Expansion, 1400-1700. Manhattan, Sunflower University Press, 1988. p. 56
13
BRASIL – Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional. Inventário Nacional de Artilharia.
Pará e Amapá. Belém: IPHAN, 2000. (mimeo).
14
BRASIL – Museu Histórico Nacional. Inventário Geral. Rio de Janeiro: Museu Histórico Nacional,
1990. (mimeo). Dossiê da peça SIGA 015897.
15
Chegou a haver duas obras tratando especificamente da fabricação de armas em Portugal: STOOTER,
João. Spingardeiro com conta, pezo, & medida. Anvers: Henrio & Cornelio Verdussen, 1719. Tam-
bém havia o já citado Espingarda Perfeyta.
194
Capitulo 5 - A pré-indústria e a produção de artigos militares
16
No sentido de que determinados avanços técnicos, introduzidos visando aperfeiçoar o funcionamento
de uma arma, mas que não eram essenciais, às vezes não eram introduzidos nas armas militares. Um
exemplo disso é o rolamento colocado nas molas da bateria (ver Figura 28). Esses rolamentos eram
usadas em algumas armas militares, resultando em um funcionamento mais suave. Entretanto, o
normal era ser omitido, por não ser indispensável, pois era dispendioso. REID, Stuart. The Flintlock
Musket: Brown Bess and Charleville 1715-1865. New York: Osprey, 2106. p. 11.
17
OBRIGAÇÃO e contrato de Antônio Cacella, morador de Alcobaça, mestre das oficinas das armas de
S. Maj. que há nesta vila. Lisboa, Alcobaça, 19 de dezembro de 1644. In: VITERBO, Sousa, A ar-
maria em Portugal. Lisboa: Tipografia da Academia, 1908. p. 49-51.
18
Aqui deve-se fazer uma ressalva: o leitor deve ter cautela ao ler a palavra “oficial” no presente texto.
Esta pode se referir a um militar detentor de patente ou a um artesão de nível intermediário, a etimo-
logia de ambos os termos sendo a mesma, a de uma pessoa que exerce um ofício.
19
ALDER, op. cit. p. 268.
195
Capitulo 5 - A pré-indústria e a produção de artigos militares
20
PORTELA, Miguel Ângelo. A superintendência dos tenentes de Artilharia Francisco Dufour e Pedro
Dufour nas reais ferrarias na foz de Alge e Machuca. Atas do XXI Colóquio de História Militar. Co-
missão Portuguesa de História Militar, Lisboa, 2012. pp. 505-520.
21
PINTO, Renato Fernando Marques. As indústrias militares e as armas de fogo portáteis no exército
português. Revista Militar, Lisboa, n.º 2495, dezembro de 2009. https://goo.gl/rjKvd9 (acesso em
outubro de 2016).
22
REGISTRO da avaliação das armas e munições. Salvador, 12 de setembro de 1722. DOCUMENTOS
HISTÓRICOS. Livro 1º de Regimentos. 1684-1725. Registro de provisões da casa da moeda da Ba-
hia. 1775. Vol. LXXX. Biblioteca Nacional. s.n.t. p. 311.
23
RODRIGUES, Manoel A. Ribeiro. 300 anos de uniformes militares do exército de Portugal: 1660-
1960. Lisboa: Madeira & Madeira, 1998. p. 38.
24
INGLATERRA – War Office. CARTA sobre o envio de armas a Portugal. Nottingham ao Duque de
Marlborough, de 13 de março de 1703. National Archives, Public Record Office, Londres. Mss WO
55-343 fl. 206.
196
Capitulo 5 - A pré-indústria e a produção de artigos militares
anos, de 1808 a 1814, Portugal recebeu nada menos do que 160.000 espingardas, 2.300
carabinas raiadas, 3.000 clavinas, 7.000 pistolas e 15.000 sabres da Inglaterra25 – uma
parte dos quais acabaria no Exército no Brasil.
25
PINTO, op. cit.
26
MINAS GERAIS – Governo. Ofício do Governador de Minas, Luís Diogo Lobo da Silva para o Secre-
tário de Estado da Marinha e Domínios Ultramarino, Francisco Xavier de Mendonça Furtado, so-
bre a necessidade das Tropas Auxiliares e Milícias serem equipadas com armamento do mesmo pa-
drão e igual calibre, assim como haver uma uniformização dos fardamentos. Vila Rica, 24 de agosto
de 1766. Mss. Arquivo Ultramarino. AHU_CU_017, Cx. 28, D. 28.
197
Capitulo 5 - A pré-indústria e a produção de artigos militares
1810, 51.000 pares dois anos depois, 15.100 no ano seguinte), camisas (49.000 em
1813), cantis (36.000 em 1812), cartucheiras (3.000 em 1810) e até uniformes comple-
tos (30.000 em 1810).27
Mesmo no Brasil, os dados sobre o passado colonial são esparsos, mas indicam
grandes dificuldades, apesar de haver uma estrutura de produção local já no período
Colonial. Por exemplo, há menção à fabricação de cartucheiras de couro na Bahia em
172228 e em 1775, quando foi necessário enviar tropas para o Rio Grande do Sul se fez
um esforço especial para a produção de sapatos, o governador de São Paulo enviando
ordens para fazer algumas centenas de pares de calçado, empregando para isso todos os
sapateiros de Santos, além dos que estavam sendo contratados na capital.29
27
COELHO, Sérgio Veludo. Os Arsenais Reais de Lisboa e do porto: 1800-1814. Porto: Fronteira do
Caos, 2013. pp. 140 e segs. Deve-se lembrar que a ocupação francesa de Portugal foi muito curta,
por causa da revolta na Espanha. A partir de 1809 já havia um grande exército português operando
com os ingleses.
28
REGISTRO da avaliação, op. cit. p. 311.
29
SÃO PAULO – Governo. Carta do Governador, Martim Lopes Lobo de Saldanha, para o comandante
de Santos, Fernando Leite Guimarães. São Paulo, 23 de outubro de 1775. DOCUMENTOS Interes-
santes, vol. LXXIV. São Paulo, s.ed. 1954. p. 246.
30
Como a proposta da tese era tratar do estudo comparativo com a França, foram coletadas diversas obras
sobre o tema, começando com a Encyclopédie de Diderot e D’Alembert (DIDEROT, M. &
D’ALEMBERT, M. Encyclopédie ou Dictionnaire raisonné des sciences, des arts et des métiers. Pa-
ris: Briasson, 1751. Vol. 1. Verbete Arquebusier, p. 704) e outras que serão citadas no texto.
31
YOUNG, H.A. The East India Company’s Arsenals & Manufactories. Uckfield: The Naval & Military
Press, s.d. Facsimile de um livro publicado em 1937. Este livro é interessante, pois tem um pequeno
capítulo, de oito páginas, sobre a fabricação de correame e arreios.
32
GAMEL, Iosif. Description of the Tula Weapon Factory: in regard to historical and technical aspects.
Washington: Smithsonian Institution, 1988. Esta é uma tradução de um trabalho publicado em 1828.
198
Capitulo 5 - A pré-indústria e a produção de artigos militares
O estudo comparativo, contudo, não fica inviabilizado. Há três assuntos que são
tratados na literatura produzida no exterior e que têm relação com a organização do Ar-
senal de Guerra da Corte: a feitura de uniformes, a de canhões e a de armas portáteis,
que serão abordados nas páginas seguintes, para que possamos apreender as condicio-
nantes que afetavam o funcionamento das manufaturas militares, para se estabelecer um
padrão de análise do Arsenal de Guerra da Corte, que será trabalhado nos capítulos sub-
sequentes.
5.1 Uniformes
A uniformidade dos Armamentos, fardamentos, equipamentos, utensí-
lios e sistema de serviço das Tropas, é muito conveniente, tanto á dis-
ciplina do Exercito, como á economia da Fazenda Nacional, e dos
próprios militares. Eles devem ser cômodos, elegantes, e pouco dis-
pendiosos. Em não havendo uniformidade, introduz-se o arbítrio, o
serviço padece, e a Fazenda Nacional fica exposta a desembolsos des-
necessários.34
33
Podemos citar: SMITH, Merritt Roe. Harpers Ferry Armory and the New Technology : the challenge of
change. Ithaca: Cornell University, 1977, THOMAS, Dean S. Confederate Arsenals, Laboratories
and Ordnance Depots. Gettysburg: Thomas Publications, 2014, 3 vols., e FARLEY, James J. Mak-
ing arms in the Machine Age: Philadelphia’s Frankford Arsenal, 1816-1870. University Park:
Pennsylvania State University, 1994.
34
MATOS, Raimundo José da Cunha. Repertório da legislação militar atualmente em vigor no exército e
armada do Império do Brasil. Rio de Janeiro: Tipografia Imparcial de F. P. Brito, 1842. Vol. III. pp.
245-246.
199
Capitulo 5 - A pré-indústria e a produção de artigos militares
De início o problema dos uniformes, apesar de hoje em dia ser considerado co-
mo algo de fundamental importância para os exércitos, pois são artigos que lhes dão sua
identidade, nem sempre foi vista como algo relevante. Nesse sentido, deve-se apontar
que a roupa usada pelos soldados tem duas espécies de função – a primeira, e que hoje
seria considerada como mais importante – é a utilitária, voltada para a proteção do ho-
mem dos efeitos negativos do clima. O outro papel da roupa militar é o diacrítico, o “de
sinalizar distinções internas e externas”35 na vestimenta, ou seja, desta servir como sím-
bolo de status, de identificação e pertencimento a um determinado grupo.
Menos danosa era a chuva, algo que não teve uma solução no período em estu-
do, além do uso de chapéus, por causa da dificuldade de manufatura de tecidos imper-
meáveis. Outro obstáculo que as roupas, supostamente, teriam que superar era a do calor
excessivo. Mas isso, por incrível que pareça ao nosso modo de ver, não era uma preocu-
pação dos militares até o século XX, as fardas simplesmente não eram pensadas nesse
aspecto. A única concessão ao conforto, em termos de proteção contra o sol sendo, no-
vamente, o uso de um chapéu. Mas mesmo este era mais usado por ser uma imposição
cultural da época, onde as pessoas normalmente os vestiam.
Aqui se deve notar que a moda tinha uma influência muito grande no traje dos
militares – até o século XVIII, as roupas usadas por eles tinham um desenho que se
35
ALMEIDA, Adilson José de. Uniformes da Guarda Nacional (1831-1852): a indumentária na organiza-
ção e funcionamento de uma associação armada. Anais do Museu Paulista: história e cultura mate-
rial. Vol. 8/9, 2000-2001. São Paulo: USP, 2003. p. 109.
200
Capitulo 5 - A pré-indústria e a produção de artigos militares
aproximava muito à dos civis. Um obstáculo causado por isso era com relação ao teci-
do: na Europa, de onde vinham os padrões de luxo no vestir, o tecido preferido era a lã,
adequado à situação climática de lá. A outra opção disponível era o linho, mas este não
era usado em uniformes, por causa de seu custo. Não se usavam roupas de algodão, pelo
menos de forma generalizada, até a segunda metade do século XIX.
A lã, muito quente, junto com a questão da moda, fazia com o soldado recebesse
uma farda inadequada para um clima tropical ou equatorial. Para isso, basta ver que,
tanto no Nordeste Brasileiro quanto no Saara francês a composição do uniforme usado
até a Primeira Guerra era basicamente a mesma: uma sobrecasaca de lã, forrada, sobre
um colete (mas este deixou de ser usado no século XIX). Debaixo disso tudo, uma ca-
misa, com uma gravata de couro rígido, que impedia o soldado de abaixar a cabeça.
Complementavam os uniformes, calças e calçado, mas não roupa de baixo – as primei-
ras menções que encontramos ao fornecimento de meias e ceroulas são de apenas de
1866 e estas para prisioneiros de guerra paraguaios. 36 Obviamente, uma roupa extrema-
mente incômoda e pouca prática (Figura 16).
O uso de algodão nos uniformes só foi adotado muito tarde – no Brasil, as pri-
meiras menções que encontramos à distribuição de peças para “uniformes de verão”,
calças feitas de brim, são apenas de 1837.37 Só que depois dessa data, e até a década de
1930, se manteve o uniforme de lã para uso no “inverno”, mesmo onde esta estação não
era fria, como na Amazônia. Como um ponto anedótico, o uniforme histórico da Aca-
demia Militar de Agulhas Negras, que reproduz a farda usada no Brasil em 1852, era
confeccionado em lã até a década de 1980, quando foi substituído por uma mescla de
tecido sintético – isso por causa de problemas com cadetes, que desmaiavam em forma-
turas, por causa do calor da farda de lã.
36
BRASIL – Ministério da Guerra. Ofício da 1ª Seção da Diretoria Central, mandando fornecer peças de
fardamento aos prisioneiros de guerra Paraguaios a serviço da Escola Militar. Rio de Janeiro, Rio
de Janeiro, 8 de outubro de 1867. Mss. ANRJ. IG7 370.
37
BRASIL – Arsenal de Guerra. Declarações. Anúncio para costuras de uniformes. Diário do Rio de
Janeiro, 26 de setembro de 1837.
201
Capitulo 5 - A pré-indústria e a produção de artigos militares
38
O médico Sueco Gustave Beyer, ao visitar São Paulo em 1813 mencionava o elevado custo das roupas,
importadas, “apesar do país produzir lã e algodão em abundância.” BEYER, G. Ligeiras notas de vi-
agem do Rio de Janeiro à capitania de São Paulo em 1813. Revista do instituto histórico e geográfico
de São Paulo. Volume 12. São Paulo: Diário Oficial, 1907. p. 299. No entanto, não encontramos ne-
nhuma referência à compra de lã brasileira pelo Arsenal de Guerra.
39
COELHO, op. cit. p. 51. Já havia, contudo, tecelagens em Covilhã em datas anteriores. Um livro de
1737 recomendava que fossem usadas lãs dessa região para fardas as tropas. RODRIGUES, op. cit.
p. 36.
202
Capitulo 5 - A pré-indústria e a produção de artigos militares
culo XVIII as roupas dos militares não eram, basicamente, diferentes das usadas pelos
civis. Até aquele momento não era uma prática dos governos fornecerem roupas – de
qualquer tipo – a seus soldados. Quando era necessário reconhecer as tropas de um lado
de outro, se usavam recursos: por exemplo, nas Guerras Holandesas, no Brasil, um Re-
gimento da Companhia das Índias Ocidentais holandesa foi subornado para desertar
para o lado Português, mas os soldados desejaram voltar para o lado da Companhia.
Como escreveu frei Manuel Calado: “e dali por diante deram todos em trazer uns pape-
linhos brancos nas tranças dos chapéus, para divisa de serem conhecidos, e nos encon-
tros que tivéssemos com os do Arrecife lhes não atirassem”, 40 ou seja, a solução era usar
um sinal privado para que os soldados fossem reconhecidos. Roche, um pesquisador
sobre a história do vestuário, cita outros recursos usados para isso, como o uso de faixas
largas, de cores distintas, amarradas na cintura, chapéus de formas diferentes e vários
sinais distintivos no chapéu ou na sobrecasaca.41
40
CALADO, Manuel. O Valeroso Lucideno. Belo Horizonte : Itatiaia ; São Paulo : EDUSP, 1987. p. 118.
41
ROCHE, Daniel. La culture des apparences: une histoire du vêtement (XVII e-XVIIIe siècle). Paris:
Fayard, 1989. p. 213.
42
ROCHE, op. cit. p. 213. Para o mesmo costume em Portugal, ver: CUNHA MATOS, op. cit. p. 246.
43
MATOS, op. cit. p. 246.
203
Capitulo 5 - A pré-indústria e a produção de artigos militares
que tem lugar na constituição do absolutismo”. 44 Uma proposta vital para entender a
dinâmica dos exércitos, onde, a questão da aparência e do conforto dos soldados se su-
bordinava à ideia de criação de um sentimento de uniformidade e de ações na tropa.
Entretanto, longe de ser um sistema regular, o fornecimento de um fardamento realmen-
te padronizado por parte do governo demoraria muito tempo para se consolidar.
Mesmo uma possível “economia de escala” não se aplicava bem à questão – co-
mo colocado acima, era o costume que cada regimento de um exército tivesse seu pró-
prio “uniforme”, ainda que este seguisse padrão geral para cada país, como o vermelho
inglês ou o branco dos franceses. Os coronéis comandantes definiam como seriam os
forros das casacas, bem como alguns detalhes, como o padrão de cores dos canhões
(punhos), a colocação e desenho dos botões ou mesmo o corte da farda – como colocado
por Cunha Matos mais acima, um dos costumes era que os comandantes dos regimentos
dessem ao uniforme dos soldados de sua tropa as cores de suas casas nobres. A implica-
ção disso era que um exército “nacional” tinha tantos tipos de uniformes quantas fossem
suas unidades componentes – e esses trajes variavam com a mudança dos comandos dos
regimentos. Não havia um modelo geral que fosse seguido por toda a tropa e que pudes-
se ser facilmente copiado em uma manufatura centralizada (ver Figura 17).
44
ROCHE, op. cit. p. 213.
45
Estampas de uniformes militares do terceiro quartel do século XVIII, Mss. Arquivo Histórico do Museu
Histórico Nacional.
204
Capitulo 5 - A pré-indústria e a produção de artigos militares
46
RODRIGUES, op. cit. p. 36. TELLES DA SILVA, Tomás. Discursos sobre a disciplina militar, e
ciência de um soldado, dedicados aos soldados novos. Lisboa: Joseph Antônio da Silva, 1737. pp.
35-40.
47
SPENCER-SMITH, Jenny. Portraits for a King: the British Military Paintings of A. F. Jubois Drahone
(1791-1831). London: National Army Museum, 1990. p. 12.
48
BIBLIEX - BIBLIOTECA DO EXÉRCITO. Dicionário militar brasileiro. Rio de Janeiro: Bibliex,
2005. p. 800.
205
Capitulo 5 - A pré-indústria e a produção de artigos militares
com peles de urso, como são feitas, ainda hoje, as usadas pelos granadeiros ingleses da
guarda da rainha.
Outro motivo era “fabril”: não havia como aperfeiçoar muito a produção de rou-
pas nesse período. Mesmo onde era possível aplicar os princípios de divisão de trabalho
havia problemas, como no caso da manufatura de Marc Isambar Brunel em Battershea.
Lá ele introduziu máquinas para o corte do couro e uma para rebitar os sapatos, como
no tipo Carioclave (ver página 172). Mais importante, introduziu uma estrita divisão de
trabalho, suas operações empregando 25 operários, cada um executando apenas uma
tarefa.49
206
Capitulo 5 - A pré-indústria e a produção de artigos militares
rísticas antiquadas no período que estamos trabalhando, não havendo soluções para oti-
mizar a questão.
207
Capitulo 5 - A pré-indústria e a produção de artigos militares
Também se deve dizer que a feitura de uma boca de fogo exigia uma elevada ca-
pacidade técnica. O material preferido para peças de campanha, o bronze, era muito
caro, como já mencionamos. Mas era usado em quantidades prodigiosas: uma peça de 6
libras pesava perto de 250 kg e uma bateria de artilharia teria seis delas, ou seja, era
preciso uma tonelada e meia de bronze para as armas – e um canhão de 6 libras é uma
peça de pequeno porte, por qualquer padrão de medida possível. Como a arma tinha que
ser fundida de uma vez, era necessário um grande forno, capaz de derreter as quantida-
des de metal necessárias. Isso sem falar nos conhecimentos empíricos, como o ponto de
fusão de metais e as proporções dos elementos componentes da liga (cobre, estanho e
outros produtos que o fundidor julgasse necessários). A complexidade da manufatura do
produto gerava um grande interesse, não só por parte dos especialistas em assuntos mili-
tares, mas também por outros, já que as técnicas usadas na feitura dos canhões tinha
relação com a usada na fundição de sinos e estátuas.
Por sua vez, apesar do poder e simbolismo das bocas de fogo, deve-se dizer que,
apesar de algumas tentativas falhadas, o Arsenal de Guerra da Corte não produziu ca-
nhões em nosso recorte de estudos, que se encerra em 1864. Essa atividade só se tor-
nando importante na Guerra do Paraguai. No entanto, estudar os métodos de se fazer
canhões é importante em termos de comparação de como funcionava uma manufatura
militar e serve também para se entender uma questão que consideramos de fundamental
importância. Esta foi o papel dos engenheiros militares franceses na formação das bases
de uma racionalidade, valorizando o ensino técnico naquele país, algo vital para a com-
preensão dos métodos manufatureiros do final do século XVIII e primeira metade do
seguinte.
52
Uma discussão do papel dos troféus pode ser visto em: CASTRO, Adler Homero Fonseca de. O poder
político vem do cano de uma arma. In: MONTENEGRO, Aline (org.) 90 anos do Museu Histórico
Nacional em debate. Rio de Janeiro: Museu Histórico Nacional, 2014. pp. 111-123.
208
Capitulo 5 - A pré-indústria e a produção de artigos militares
cleo de madeira, o mandril, sob o qual se enrolavam cordas e argila, em cima dessas, era
feita a deposição de cera, com exatamente o formato do objeto final. A camada de cera
era então recoberta com argila, que então era aquecida. O calor fazia derreter a cera – o
processo chama-se, justamente, de cera perdida – e criava um espaço vazio no interior
do molde, na forma exata da peça a ser fundida. A alma era definida por meio de uma
peça cilíndrica de argila, também chamada de mandril, que era centrado no interior do
molde (ver Figura 19).
Feito o molde, este era colocado em posição vertical, abaixo do forno e o metal
fundido derramado em seu interior (ver Figura 19 e Figura 21). Depois de um longo
período de resfriamento, o molde era quebrado – não podia ser reaproveitado frisamos –
retirando-se a arma. O mandril era removido, deixando o espaço da alma no interior,
que tinha que ser fresado, para eliminar imperfeições, e o exterior finalizado a cinzel,
em um serviço semelhante ao de um escultor, devido à riqueza de detalhes e de decora-
ções, algo inerente ao gosto barroco.53
Como se pode ver, a produção desse tipo de arma em bronze era muito cara (ver
sequência de imagens a seguir), de forma que muitos países implantaram fundições go-
vernamentais para sua produção, como foi o caso da França, em Douai, Estrasburgo,
Lyon, para o Exército e Ruelle, da Marinha; Inglaterra, em Woolwich; a Espanha em
Sevilha e Barcelona, enquanto Portugal tinha a sua em Lisboa.
e
Figura 18 – Preparo para a fundição de canhões. 54
À esquerda: forno de reverbero para fundição de canhões, mostrando a complexidade da estrutura. À
direita, dando as formas externas básicas ao canhão, usando um escantilhão – no caso, uma tábua recorta-
da com o perfil da boca de fogo. Esse passo era fundamental para se padronizar a produção das armas,
ainda que esta fosse totalmente feita de forma artesanal.
Por sua vez, os canhões de ferro fundido, apesar de serem produzidos de forma
virtualmente idêntica, eram muito mais baratos, como já apontamos acima. Isso apesar
53
Em português, há uma boa descrição do processo de fabricação de canhões em: GUILMARTIN, op. cit.
54
Todas as imagens sobre fundição de canhões foram retiradas da enciclopédia de Diderot e D’Alembert.
DIDEROT, M. & D’ALEMBERT, M. op. cit. vol. 5. Planches.
209
Capitulo 5 - A pré-indústria e a produção de artigos militares
de exigirem uma infraestrutura maior para serem feitos: o ferro só se funde a 1540
graus, enquanto o bronze derrete a temperaturas de cerca de 1.000 graus. A diferença é
grande – é comum usar um forno de reverbero para fundir canhões de bronze, mas os de
ferro normalmente exigem um alto forno, uma estrutura bem mais complexa e que de-
mandava máquinas hidráulicas, para insuflar o ar necessário ao aumento da temperatura.
Curiosamente, isso poderia levar a crer que o governo teria mais condições de operar
uma fundição de ferro, no entanto, as maiores existentes, na Inglaterra e Suécia, eram
privadas, enquanto as francesas e espanholas eram governamentais.
210
Capitulo 5 - A pré-indústria e a produção de artigos militares
regular, para que os artilheiros soubessem o que esperar das armas que usavam e os en-
genheiros pudessem aplicar seus conhecimentos na construção de fortificações e assim
por diante.
55
Pintura de Johann Ernst Heinsius (1740-1812). DE BEER, Carel. The art of gunfounding: the casting of
bronze cannon in the late 18th century. Rotherfield: Jean Boudriot, 1991. p. 27.
211
Capitulo 5 - A pré-indústria e a produção de artigos militares
O sistema de Vallière foi, de certa forma, uma revolução: antes disso apenas a
Inglaterra tinha padronizado a produção de suas bocas de fogo, com o sistema Arms-
trong, de 1727. Entretanto, mesmo que todas as peças fossem feitas com base em um
desenho padrão, o sistema inglês tinha uma imensa variedade de armas: havia, por
exemplo, pelo menos cinco comprimentos de canhão para cada calibre. Uma peça de 9
libras de ferro podia ter seis, sete, sete e meio, oito e meio e nove pés de comprimento
(de 1,82 a 2,74 metros),56 pesando de 1270 a 1570 kg. Essa variedade complicava o
trabalho dos artilheiros, que tinham que lidar com armas de desempenho e comporta-
mento bem diferente durante o disparo. Mais importante, era um problema grave para os
arsenais, pois a palamenta e, principalmente, os reparos têm que ser feitos com suas
dimensões variando de acordo com o comprimento e peso da arma.57 Vallière, no entan-
to, decidiu fazer canhões de apenas um comprimento para cada calibre, simplificando a
produção de acessórios.
56
CARUANA, op. cit.
57
RIO GRANDE DO SUL - Presidência. Ofício do presidente de província, Francisco José de Souza
Soares de Andrea, ao Ministro da Guerra, Manoel Felizardo de Sousa e Melo, enviando as dimen-
sões das peças de 12 libras existentes em Porto Alegre, para manufatura de Reparos. Palácio do
Governo em Porto Alegre, 19 de novembro de 1849. Mss. ANRJ. IG7 336. Apesar das 36 peças se-
rem, majoritariamente, inglesas, foi necessário enviar uma relação detalhada de quatorze tamanhos
diferentes de armas, todos do mesmo calibre para que o Arsenal de Guerra da Corte fizesse novos
reparos para elas.
212
Capitulo 5 - A pré-indústria e a produção de artigos militares
58
MACLENNAN, Ken. Liechtenstein and Gribeauval: ‘Artillery Revolution’ in Political and Cultural
Context. War In History. 2003, número 10. p. 255.
59
CHARTRAND, René. Napoleon's Guns 1792–1815 (1): Field Artillery. Elms Way: Osprey, 2003. p. 6.
213
Capitulo 5 - A pré-indústria e a produção de artigos militares
O importante, contudo, é que a artilharia tinha o controle total sobre o que era
feito nos arsenais de construção, o que não era normal em outros tipos de manufaturas
francesas que supriam as forças armadas. Também se deve dizer que essas instituições
foram importantes na formação dos oficiais, pois os estudantes de engenharia militar
eram obrigados a os visitar, visando aprender
60
LANDMAN, Isaac. The founding of bronze guns, 1793. In: DE BEER, op. cit. p. 199.
61
ALDER, op. cit. p. 157.
214
Capitulo 5 - A pré-indústria e a produção de artigos militares
62
ORDONNANCE du Roi concernant le Corps Royal de l’Artillerie, 3 de outubro de 1774. p. 112, Mss
Service Historique de l’Armée de Terre. Apud ALDER, op. cit. p. 74.
63
id. p. 74.
215
Capitulo 5 - A pré-indústria e a produção de artigos militares
França. O general era um membro da artilharia, um serviço que na França era conhecido
como a Arme Savant, a arma intelectual ou, como era conhecida no Brasil, uma das
“armas científicas”. 64 Isso se devia ao fato da operação dos canhões e os trabalhos de
engenharia, que era subordinada à artilharia, exigir uma formação técnica, acadêmica, o
que não acontecia com os oficiais da infantaria e cavalaria, chamadas no Brasil de “ar-
mas combatentes”. Curiosamente, essa divisão entre armas “científicas” e “combaten-
tes”, fazia com que, na maior parte dos países – inclusive na França –, a artilharia fosse
um pouco menosprezada no serviço militar, justamente por ser considerada como uma
arma acadêmica, a nobreza dando preferência para o serviço nas “armas combatentes”.
Só que, na França, os artilheiros e engenheiros conseguiram superar esse problema,
usando justamente seu conhecimento científico.
64
BRASIL – Arsenal de Guerra. Relatório do Arsenal de Guerra, relativo ao ano de 1869. Dr. Francisco
Carlos da Luz, diretor interino. Arsenal de Guerra, 18 de abril de 1870. Mss. ANRJ. IG7 24.
65
LANGINS, Janis. Conserving the Enlightenment: French Military Engineering from Vauban to the
Revolution. Cambridge: Massachusetts Institute of Technology, 2003. p. 191 e segs.
66
Gaspard Monge, (1746-1818). Matemático, inventor da geometria descritiva. Foi professor de física em
Lyons quando tinha 16 anos, e de matemática na Academia Militar de Mézières em 1768, quando ti-
nha 22. Três anos depois, foi nomeado professor de matemática na Academia. Em 1780 passou a le-
cionar também hidráulica no Liceu de Paris e se tornou membro da Academia. Escreveu vários tex-
tos sobre matemática. Tornou-se ministro da Marinha em 1792-1793. Apoiou o esforço de produção
de artigos bélicos, seguindo o pedido do Comitê de Salvação Nacional, publicando a Description de
l'art de fabriquer des canons (op. cit.). Foi fundador da Escola Normal e da Escola Politécnica. Re-
cebeu, sob Napoleão, o título de Conde de Péluse. ENCYCLOPAEDIA Britannica. London: En-
cyclopaedia Britannica, 1952. Vol. 15, Verbete Monge, Gaspard. p. 705.
67
Claude Antonie Prieur-Duvernois, também conhecido como Prieur de la Côte d’Or. Membro da As-
sembleia e da Convenção na Revolução Francesa, se tornou membro do Comité de Salvação Pública
em 1793, trabalhando com Carnot no suprimento dos exércitos. Foi um dos fundadores da Escola
Politécnica e do Instituto da França, que agrupa as cinco grandes academias francesas. Trabalhou na
adoção do sistema métrico e na criação do Bureau des Longitudes, responsável pelo estabelecimento
Continua –––––––
216
Capitulo 5 - A pré-indústria e a produção de artigos militares
Deve-se frisar que tudo isso se inseria numa forma de pensar iluminista, que valorizava
o pensamento racional como a principal fonte da autoridade e legitimidade 68 – pode-se
dizer que as ações dos oficiais da artilharia francesa marcariam a supremacia da corren-
te filosófica dentro das forças armadas francesas, em um processo que teria grande in-
fluência na manufatura de armas naquele país.
217
Capitulo 5 - A pré-indústria e a produção de artigos militares
Revolução, entre os quais se incluíam nomes como Carnot,71 Prieur e Monge.72 A ques-
tão que consideramos ser relevante é que os oficiais militares, responsáveis pela produ-
ção de artigos bélicos ou fiscalização das manufaturas, tiveram um importante papel na
adoção de técnicas experimentais visando aperfeiçoar o funcionamento da arma. A fa-
mosa locomotiva a vapor de Cugnot, de 1769,73 foi resultado de experimentos feitos no
Arsenal de Paris,74 visando facilitar a condução de artilharia – Cugnot era capitão da
arma.
A questão das raízes da indústria moderna pode ser ainda vistas nos esforços dos
artilheiros franceses para o controle da produção de armas portáteis.
71
Lazare Carnot (1753-1823), era capitão de engenharia quando da Revolução Francesa, a quem se jun-
tou. Foi eleito deputado por Pais-de-Calais na Assembleia de 1791, sendo um dos deputados que vo-
tou a pena de morte para Luís XVI. Nomeado delegado dos Exércitos no Comité de Salvação Públi-
ca em 1793, participou de várias campanhas militares, obtendo importantes vitórias. Conseguiu so-
breviver à revolução do Thermidor, continuando a ser um membro do Diretório, o órgão executivo
da Revolução. Exilado por um curto tempo em 1797, retornou ao governo, sendo brevemente minis-
tro da Guerra, em 1800. Continuou a agir na administração militar sob Napoleão, sendo exilado em
1815, por ser um regicida. Foi o autor de um importante livro sobre fortificações em 1810. Por seu
papel nas ações logísticas ele recebeu o cognome de o “Organizador da vitória”. ENCYCLOPAE-
DIA Britannica, op. cit. Vol. 4, Verbete Carnot, Lazare Nicolas Marguerite. p. 939.
72
Não era oficial de artilharia, mas estava ligado à arma, por ser professor da Escola de Mézières. Ver
nota 66, acima.
73
DERRY e WILLIANS, op. cit. vol. I. p. 563. A carroço a vapor foi o primeiro veículo automotor da
história. A ideia que embasou o projeto sendo a obtenção de veículos para tracionar peças de artilha-
ria.
74
No século XVIII, o Arsenal de Paris não tinha mais funções fabris, servindo como residência a vários
nobres. Os prédios, contudo, ficava ao lado da Bastilha, uma casa de armas. CHEVREL, Claudine.
La Bibliothèque de L'Arsenal. https://goo.gl/zAc6EC (acesso em outubro de 2016).
75
WOODBURY, Robert S. The Legend of Eli Whitney and interchangeable parts. Technology and Cul-
ture. Vol. 1 Nr. 3, Summer 1960. p. 247.
218
Capitulo 5 - A pré-indústria e a produção de artigos militares
Por outro lado, a força hidráulica tinha alguns problemas. Eram necessários
grandes investimentos iniciais para a aquisição das máquinas, dos terrenos apropriados
e a construção dos prédios especiais. Também era preciso haver uma fonte de água com
76
MORTAL, Patrick. Les armuriers de l’État: du Grand Siècle a la globalisation, 1665-1989. Villeneuve
d’Ascq: Presses Universitaires du Septentrion, 2007. p. 31. Para efeito de comparação, a oficina do
Arsenal de Guerra da Corte ilustrada na Figura 50 (página 398), tem 450 metros quadrados.
219
Capitulo 5 - A pré-indústria e a produção de artigos militares
Perdemos um pouco de tempo falando das máquinas hidráulicas, pois esta era
uma questão de fundamental importância. Até a adoção generalizada dos motores a va-
por, a instalação de manufaturas que pudessem se valer das possibilidades da mecaniza-
ção dependia do terreno, como foi o caso tanto da Fábrica de Pólvora da Lagoa como a
da Estrela. Por sua vez, o Arsenal de Lisboa, localizado no centro da cidade, estava li-
mitado em suas possibilidades de uso de máquinas pesadas – o máximo que se conse-
guia lá foi a montagem de aparelhos movidos por animais, havendo uma abegoaria,78
um estábulo para abrigar os animais necessários ao funcionamento das máquinas de lá.
77
SMITHURST, Peter G. Gunmaking by machinery: birth of the consumer society. Lecture at the Impe-
rial War Museum, 20th June, 2011. https://goo.gl/LKS8H2 (acesso em outubro de 2016).
78
COELHO, op. cit. p. 233.
79
id. p. 63.
80
id. p. 245. Há sinais que essa prática continuou no Brasil, apesar de não ter sido comum: em 1827 o
Arsenal de Guerra publicou um anúncio para contratação “todos os cegos, e mutilados livres, que
Continua –––––––
220
Capitulo 5 - A pré-indústria e a produção de artigos militares
Continuação–––––––––––
possam ser empregados nos trabalhos de rodas e foles” Diário do Rio de Janeiro, nº 10. Rio de Ja-
neiro, 11 de agosto de 1827. p. 1.
81
ALDER, op. cit. p. 267.
82
Desenho baseado em: DAUMAS, Maurice. L’Archéologie industrielle em France. Paris: Éditions Rob-
ert Laffont, 1980. p. 94.
83
WOODBURY, op. cit. p. 247. Esse número refere-se ao Arsenal norte-americano de Springfield, em
1799, uma manufatura mais moderna que as oficinas tradicionais. p. 245.
221
Capitulo 5 - A pré-indústria e a produção de artigos militares
e regiões da atual Alemanha, a feitura de uma arma era dividida em uma série de pro-
cessos separados, a cargo de diferentes artesãos.
84
FIOSCONI & GUSERIO, op. cit. entre as páginas 4 e 5.
85
ALDER, op. cit. p. 176.
222
Capitulo 5 - A pré-indústria e a produção de artigos militares
cutando uma atividade repetitiva, com as ferramentas necessárias para a tarefa sobre a
qual tinham responsabilidade, aumentando em muito o volume produção. Só que, ao
contrário de um processo que consideraríamos “natural”, essa divisão de trabalho não
implicava em uma manufatura concentrada. Cada mestre tinha sua própria oficina
(Figura 25), trabalhando na produção de um componente específico, que depois era en-
viado para um atelier central, onde o produto final era montado por outro operário espe-
cializado, o ajustador.
Na prática a feitura de uma arma era dividida em uma série de processos mais
simples, mas ainda assim necessitando um elevado grau de especialização por parte dos
mestres. Em termos gerais, podemos trabalhar a fabricação da arma de fogo como com-
posta de três atividades principais: a feitura do cano, a do fecho e a ajustagem final,
sendo que alguns autores apontam a manufatura do cano como um processo que envol-
via a elite dos trabalhadores. Em Saint-Étienne, na França, na produção de cada cano
trabalhavam treze armeiros diferentes, em vários momentos do acabamento da peça.86
86
id.
87
FIOSCONI & GUSERIO, op. cit. pp 26 a 32.
223
Capitulo 5 - A pré-indústria e a produção de artigos militares
Menos sensível a problemas, mas um elemento bem mais difícil de ser feito, era
o mecanismo de disparo, o fecho. Enquanto um cano podia ser forjado e acabado em
menos de quatro horas de trabalho total, esse tipo de peça levava, na melhor das hipóte-
ses, 14 horas.90 No caso, a divisão de trabalho não é tão visível, apesar de existir em
alguns casos. O problema é que o mecanismo de disparo é complexo, com uma série de
peças interagindo mecanicamente, devendo estas ser ajustadas com precisão: o cão, com
a pedra de sílex, tinha que atingir o fuzil em um ângulo bem preciso, de forma a forçar a
88
DIDEROT & D’ALEMBERT, op. cit. Fabrique des Armes.
89
ALDER, op. cit. p. 174.
90
DIDEROT, M. & D’ALEMBERT, M. op. cit. vol. 5. Planches.
224
Capitulo 5 - A pré-indústria e a produção de artigos militares
A produção desse mecanismo não era uma atividade que pudesse ser deixada a
cargo de um aprendiz ou mesmo a de um trabalhador pouco habilitado – quando na
França Revolucionária foram montados emergencialmente diversos arsenais, usando
artesãos com diferentes ofícios para fazer os fechos, uma das oficinas, a do bairro Qua-
tre-Vingt, em Paris, subordinada ao Arsenal criado na cidade, tinha 83 operários fazen-
do essas peças. Em uma década, a semana de dez dias adotada durante a Revolução
Francesa, dezesseis desses trabalhadores fizeram três fechos completos cada, 28 deles
completaram dois e dezenove conseguiram acabar um. Os outros vinte artesãos não ti-
nham completado um mecanismo sequer em dez dias e a produtividade máxima por
artesão era de apenas três fechos por “década”. Um mestre das manufaturas tradicionais
conseguia terminar cinco desses mecanismos por década.91
91
id. p. 268.
225
Capitulo 5 - A pré-indústria e a produção de artigos militares
92
Usando os termos constantes do manual do exército: PEIXOTO, Luiz Ribeiro dos Guimaraens. Ensaio
da nomenclatura das pecas de que se compõem as armas em uso na infantaria e cavalaria do Exér-
cito brasileiro. Rio de Janeiro: Litografia do Arquivo Militar, 1855. pp. 4 a 6.
93
Curiosamente, o “Ensaio da nomenclatura” não dá o nome dessa peça, nem o da contra-chapa, que
retiramos da documentação do Arsenal. Cf. id.
94
Hoje em dia gatilho é outra peça do mecanismo, que na época se chamava de “desarmador”.
95
PEIXOTO, op. cit. p. 5. (Os números em vermelho foram colocados por nós).
96
DIDEROT, M. & D’ALEMBERT, M. op. cit. vol. 5. Planches.
97
ALDER, op. cit. p. 197.
226
Capitulo 5 - A pré-indústria e a produção de artigos militares
227
Capitulo 5 - A pré-indústria e a produção de artigos militares
Outra das consequências dessa forma de manufatura descentralizada era que se-
ria difícil para um exército se equipar de forma rápida ou regular, negociando com de-
zenas ou mesmo centenas de armeiros individuais – novamente em Saint-Étienne, po-
demos dizer que havia de cem a duzentos mestres fazendo armas em oficinas próprias, a
maior parte deles produzindo menos de dez espingardas por ano.102 Isso ainda mais le-
vando em conta que as forças armadas tinham que competir com o mercado civil, que
em situações normais correspondia de 160% a 240% da produção de armas militares,
uma boa quantidade dessas sendo de armas baratas, mais fáceis de fazer, destinadas ao
tráfico de escravos.103
102
id. p. 175.
103
id. p. 176. Os dados se referem às manufaturas de Saint-Étienne, na França, mas a mesma situação se
repetia em Birmingham (Inglaterra) e em Liège, Bélgica.
104
REID, op. cit. p. 12.
228
Capitulo 5 - A pré-indústria e a produção de artigos militares
dução de fechos e canos, que seriam enviados para a Torre, para serem acabados. A
manufatura de Lewisham, que começou a funcionar em 1807, usava rodas d’água e,
depois, um motor a vapor para mover diversas máquinas e tinha o objetivo de fabricar
50.000 canos por ano. Em 1810 empregavam 156 homens, entre os quais três feitores e
inspetores; 82 limadores de fecho; quatro limadores de canos; quatro fresadores de ca-
nos, sete desbastadores de canos e dez forjadores de canos. Estes conseguiram atingir
uma produção bem razoável, de 33.121 canos e 23.697 fechos em 1811 – se tomarmos
este último número como índice da quantidade de armas fabricadas, isso implicaria em
151 espingardas feitas por cada trabalhador por ano – um número bem razoável, muito à
media por trabalhadores das manufaturas do período. Mesmo assim, foram tomadas
medidas para aumentar a produção, como tornos de canos, máquinas de estampagem de
cães, a precisão sendo aferida por conjuntos de aparelhos de medição e gabaritos padro-
nizados. Curiosamente, Blackmore, um autor que estudou o assunto, aponta que o gar-
galo na produção era a fabricação de um dos elementos menos técnicos da arma, a coro-
nha, ainda feita inteiramente de forma manual, com um trabalhador especializando en-
carregado de todo o trabalho de talha para abrir os espaços para o cano e fecho, assim
como dar a forma final ao objeto. 105
O fim das guerras Napoleônicas impediu um avanço maior das técnicas de ma-
nufatura de armas na Inglaterra, apesar de uma nova manufatura governamental ter sido
instalada em Enfield em 1816. Na prática, o exército voltou a usar o sistema de compras
em armeiros privados de Birmingham. 106 A situação na Inglaterra começou a mudar em
1854. Naquele ano o país estava envolvido na Guerra da Criméia (1853-1856) e o sis-
tema de fornecimento de armas por empreendedores não estava atendendo às necessida-
des do exército. Para tentar resolver o problema, o governo criou comitê para estudar a
questão da fabricação de armas, com ênfase no estudo da possibilidade do uso dos mé-
todos dos arsenais americanos de produção de armas. O comitê executou uma série de
entrevistas com armeiros e engenheiros de renome, muitas das questões girando em
torno da viabilidade do funcionamento do sistema – havia várias autoridades que não
acreditavam ser possível fabricar armas usando primordialmente máquinas, mas a deci-
são foi pela importação de todo um conjunto de máquinas ferramentas norte-americanas
105
BLACKMORE, Howard L. Military gun manufacture in London and the adoption of interchangeabil-
ity. Arms Collecting, vol. 29, nº 4. pp. 115-117
106
id. pp. 117.
229
Capitulo 5 - A pré-indústria e a produção de artigos militares
para fazer armas segundo o sistema dos arsenais dos Estados Unidos, que, como trata-
remos mais abaixo, foi revolucionário. 107
Por sua vez, a França tentou resolver o problema, como já dito anteriormente,
montando “manufaturas reais” de armas: Saint-Étienne em 1665; Charleville, dez anos
depois; Maubeuge em 1701; Klingenthal – especializada na feitura de armas brancas –
em 1730; e Tulle, que fabricava armas para a Marinha e as colônias a partir de 1690. No
entanto, não se deve pensar em uma organização moderna para essas manufaturas, espe-
cialmente a de Saint-Étienne, uma cidade que já existia como centro produtor de arma-
mentos há séculos.
107
HOUNSHELL, David A. From the American System to Mass Production: 1800-1932. Baltimore: John
Hopkins, 1984. p. 61.
108
FRANÇA – Rei. Lettres patentes du Roi qui accordent au sieur Gau le privilège pendant 30 années,
pour l'entreprise de la manufacture d’armes blanches d’Alsace. Versailles, 20 de abril de 1765. Pa-
ris: Imprimiere Royale, 1765.
109
FRANÇA – Conselho de Estado. Arrêt du conseil d'état rendu en faveur de la manufacture royale
d'armes de Charleville. 15 de dezembro de 1767. Paris: Imprimiere Royale, 1767. O documento cita
os senhores Baudard de Vaudesir e Cotheret, “proprietários da Manufatura Real de Armas de Char-
leville”. O mesmo com relação à manufatura de Tulle, que foi transformada em Manufatura Real em
1777, sendo propriedade do Senhor Fenis de Saint Victour. FRANÇA – Rei. Lettres patentes du Roi
pour l'érection de la manufacture d'armes à feu établie dans la ville de Tulle en manufacture royale
pour le servise de la Marine. Paris, 27 de dezembro de 1777. Paris: Prault, s.d.
230
Capitulo 5 - A pré-indústria e a produção de artigos militares
110
COTTY, H. Supplément au Dicitionnarie de l’Artillerie. Paris: Librairie Militaire d’Anselin, 1832.
Verbete entrepeneurs des manufactures royales d’armas portatives. p. 188.
111
ARGENSON, Antoine-René de Voyer. Etat des fusils de soldats que les entrepreneurs de la manufac-
ture d'armes de St. Étienne sont chargés de faire fabriquer en l’anne present 1755 en consequence
des marchés qui leur ont passé le 20 decembre dernier. Mss. Biblioteque Nationale de France.
112
ALDER, op. cit. p. 324.
113
VIRET, Jéréme-Luther. L'industrie des armes portatives à Saint-Étienne,1777-1810. L'inévitable
mécanisation? Revue d’histoire moderne et contemporaine, 1/2007 (no 54-1), p. 191.
231
Capitulo 5 - A pré-indústria e a produção de artigos militares
O que era semelhante nos arsenais administrados por empreendedores era o sis-
tema de supervisão: em todos os casos, como já dissemos antes, a aquisição das armas
era feita pela Artilharia. Esta, apesar de não gerenciar diretamente a feitura das armas,
tinha o poder de fiscalização sobre os resultados finais, com um inspetor trabalhando
em cada Arsenal, este oficial sendo selecionado entre aqueles que demostrassem maior
aptidão técnica.114 O inspetor era apoiado por três controladores civis, que faziam a pro-
va dos canos, dos fechos e da arma montada.
Pelo sistema de peças intercambiáveis, cada elemento de uma arma deveria ser
feito de acordo com padrões rígidos de tolerância, de forma que todas as peças, do me-
nor parafuso até o cano, pudessem se encaixar em qualquer outra arma, sem ser necessá-
114
id. p. 74.
115
id. p. 128.
232
Capitulo 5 - A pré-indústria e a produção de artigos militares
rio um ajuste prévio. Isso tinha evidentes vantagens em termos de peças de reposição. O
famoso químico francês Réaumur,116 que defendia a adoção de chapas de fecho feitas de
ferro fundido, descreveu bem as vantagens do sistema:
Uma espingarda com um cano quebrado se torna inútil por que seu fe-
cho, ou peças do fecho, não podem ser adaptados à outra espingarda;
contudo, desde que todas as peças sejam do mesmo calibre [dimen-
sões], as de umas podem trocadas por aquelas de outras. Umas poucas
peças quebradas não mais tornarão todas as outras inúteis. O que resta
de uma espingarda muita estraçalhada servirá para reparar outra.117
Outro ponto positivo do sistema seria que, se uma parte do conjunto se danifi-
casse, como uma mola (um defeito comum), esta poderia ser substituída por outra por
um artesão, mesmo que este estivesse fora se sua oficina, como os armeiros dos regi-
mentos,118 ele não precisando de instalações fixas ou mesmo de ferramentas mais espe-
cíficas.
Por outro lado, a ideia de peças intercambiáveis tinha suas desvantagens. A prin-
cipal era ser muito mais caro, se feito usando as técnicas tradicionais. Um exemplo dis-
so é o caso percussor da proposta. Guillaume Deschamps tinha feito seiscentos fechos
por esse sistema em 1727, os testando perante o Rei. Mas a sua produção, ainda feita à
mão, exigia um controle de qualidade muito rígido para que as peças pudessem ser re-
almente trocadas entre um mecanismo e outro, de forma que os fechos custavam sete
vezes mais do que os normais. Isso tornava sua adoção inviável naquele momento, a
manufatura de Deschamps cessando suas atividades em 1735.119
Na verdade, nas condições da época, com a produção sendo dividida entre vários
artesãos e oficinas, a produção com tais padrões rígidos de controle de qualidade era
impossível. A proposta francesa, de montagem de Arsenais centralizados, apesar de ter
sido implantada de forma incompleta, teria sido mais adequada em termos de criação de
116
René Antoine Ferchault de Réamur (1683-1757). Cientista francês, em 1710 foi encarregado de fazer
uma descrição oficial das artes e manufaturas úteis da França. Foi o autor da escala de Réaumur. Foi
autor de diversos livros, inclusive alguns da Enciclopédia de Diderot. ENCYCLOPAEDIA Britan-
nica, op. cit. Vol. 19. p. 9B. Verbete René Antoine Ferchault de Réaumur.
117
RÉAMUR, René Antoine Ferchault de. L’art de convertir le fer forgé en acier et l'art d’adoucir le fer
fondu. Paris: Michel Brunet, 1722. p. 559.
118
Era do regulamento dos exércitos português e francês que cada regimento de infantaria tivesse um
espingardeiro e um coronheiro. Para Portugal, ver: RANGEL, José Correa. Defesa da Ilha de Santa
Catarina e do Rio Grande de São Pedro dividida em duas partes: a primeira contém as fortificações
e uniformes da tropa da ilha de Santa Catarina: a segunda o que pertence ao Rio Grande. 1786. In:
TONERA, Roberto & OLIVEIRA, Mário Mendonça. As defesas da ilha de Santa Catarina e do Rio
Grande de São Pedro em 1786 de José Correia Rangel. Florianópolis: UFSC, 2015. p. 91 e segs.
119
PEAUCELLE, Jean-Louis. Du concept d’interchangeabilité à sa réalisation: le fusil des XVIIIe et XIXe
siècles. Gérer et Comprendre. Les Annales des Mines. N° 80 – Juin, 2005. pp. 58-59.
233
Capitulo 5 - A pré-indústria e a produção de artigos militares
um sistema de peças intercambiáveis, por causa das vantagens da concentração dos tra-
balhadores. Nesse sentido, se entende o papel da artilharia em apoiar Honoré Blanc na
tentativa de criação de um sistema de fabricação mais racional para as armas.
Blanc, nascido em 1736, era um mestre armeiro em Avignon, depois sendo no-
meado como um dos controladores no Arsenal de Charleville. Tal função implicava no
trabalho de testes das armas enviadas pelos artesãos ou pelo próprio arsenal, para serem
examinadas, tendo em vista verificar se elas atendiam aos requisitos mínimos de funci-
onamento e segurança. Em 1763, quando os engenheiros de Gribeauval adotaram um
novo fuzil, Blanc foi nomeado como um dos controladores de Saint-Étienne, um em-
prego lucrativo, pois os contratadores e armeiros pagavam pelos testes que ele era res-
ponsável. Nessa função o armeiro atraiu a atenção do próprio general, pois um projeto
seu foi escolhido para ser o novo fuzil padrão francês, em 1777, já que o modelo anteri-
or tinha sido criticado pelas tropas, por ser muito pesado.
De qualquer forma, a reputação de Blanc junto a Gribeauval fez com que ele
fosse nomeado como controlador geral dos três arsenais do Exército (Saint-Étienne,
Maubeuge e Charleville) em 1778, recebendo a missão de equipar essas manufaturas
com as “ferramentas e instrumentos necessários para assegurar uniformidade, acelerar o
trabalho e economizar no preço”,120 da produção. Um passo necessário, já que a adoção
de procedimentos de controle mais rígidos na feitura das armas tinha resultado em um
grande aumento no preço das mesmas: as espingardas armas do modelo de 1777 custa-
vam 40% a mais do que as de 1763 e o dobro das do modelo de 1754. A economia se
tornava uma questão premente nas circunstâncias da paz de 1783, após o fim da Guerra
de Independência dos Estados Unidos (1776-1783), que tinha sido apoiada pela França:
120
ALDER, op. cit. p. 224.
234
Capitulo 5 - A pré-indústria e a produção de artigos militares
Para atingir essa meta, Blanc montou em 1785 uma oficina visando desenvolver
as técnicas de manufatura necessárias: algumas das peças seriam estampadas, um pro-
cesso pelo qual uma peça é completada por pressão, como na cunhagem de moedas.
Além disso, ele desenhou e desenvolveu máquinas de fresagem para dar forma precisa
aos objetos, introduzindo também gabaritos para limagem, que guiariam a ação do arte-
são no processo de acabamento. Finalmente, Blanc pesquisou e introduziu técnicas vi-
sando manter as dimensões do aço depois do mesmo ser temperado – processo que alte-
ra as dimensões dos objetos –, de forma que as continuassem a ser intercambiáveis,
mesmo após todo o processo de manufatura estar concluído.
Mais importante, o armeiro tomou o cuidado de criar uma série de gabaritos para
a medição das peças sendo feitas. Isso já era uma prática das oficinas de armas e fundi-
ções de canhões, com o uso do escantilhão (ver Figura 26), que nada mais é que um
gabarito. Mas o uso deste, bem como de escalas, esquadros e outros aparelhos de medi-
ção, era reduzido a alguma peças críticas: no livro a Espingarda Perfeita, onde são cita-
dos diversos escantilhões, compassos e esquadros – o autor chega a dedicar uma das
ilustrações de seu livro a um escantilhão e a ferramenta aparece também em outras ilus-
trações (ver Figura 26). 122 Contudo estes aparelhos de medição apenas são citados pelo
autor no contexto da feitura dos canos e são visivelmente bem elementares. Blanc au-
mentou em muito o número de gabaritos, introduzindo também o conceito de tolerância,
a variação nas dimensões máxima e mínima de um objeto que ainda permitiam que o
121
id. p. 224.
122
FIOSCONI & GUSERIO, op. cit. p. 11 e segs. O escantilhão é mostrado entre as páginas 81 e 82.
235
Capitulo 5 - A pré-indústria e a produção de artigos militares
mesmo pudesse ser aproveitado no fecho. Para manter essas tolerâncias constantes ao
longo do tempo, ele construiu um conjunto de padrões e gabaritos mestres de metal que
serviriam como referência na reprodução de outros instrumentos de aferição.
Blanc, contudo, não conseguiu alcançar um dos objetivos propostos, que seria
eliminar a ajustagem final na montagem do produto acabado – ainda era necessário que
um artesão fizesse o acabamento do objeto durante a montagem. Quando o procedimen-
to de fabricação foi aperfeiçoado, os fechos ainda demoravam mais a ser feitos do que
pelos métodos tradicionais: 30% a mais do que um feito em Saint-Étienne e o dobro do
tempo de um dos arsenais centralizados. Também eram mais caros, apesar de se notar
236
Capitulo 5 - A pré-indústria e a produção de artigos militares
Por sua vez, o armeiro atingiu um dos objetivos caros aos oficiais de artilharia:
os fechos produzidos por ele eram completamente intercambiáveis, isso sendo demons-
trando em diversas ocasiões. Em 1785 foi feita uma experiência quando havia duzentos
fechos prontos. Na frente de uma comissão de generais, incluindo o próprio Gribeauval,
se desmontaram 25 fechos de armas do Regimento do Rei e as peças foram misturadas,
os mecanismos sendo remontados com peças escolhidas ao acaso, sem dificuldade.124
Uma das razões do insucesso parcial do projeto deve-se ao fato que os trabalhos
de Blanc eram mais de natureza experimental do que industrial. Ele era bem subsidiado:
recebera autorização para usar o castelo de Vincennes para instalar sua oficina e era
financiado pelo governo com uma quantia elevada, correspondente a 15% de todos os
gastos com a aquisição de armas portáteis entre 1785 e 1790. Só que estes valores eram
para despesas com o desenvolvimento de técnicas e não para fabricação em grande es-
cala – até 1791 ele só tinha produzido mil fechos. 125
123
ALDER, op. cit. pp. 245-246.
124
id. p. 224.
125
PEAUCELLE, op. cit. p. 64
237
Capitulo 5 - A pré-indústria e a produção de artigos militares
Autun e Versailles, todos em 1793. 126 Também são citados os de Nantes e Thiers.127
Mais tarde acrescidos por ainda outros, como o de Vincennes (1796), Mutzig (1803) e os
feitos em cidades conquistadas em Liège (Bélgica), Turim (Itália) e Culembourg (Países
Baixos) – realmente um grande número de manufaturas. A maior de todas essas manu-
faturas improvisadas foi a de Paris, que chegou a ter cinco mil artesãos trabalhando nela,
em trinta estabelecimentos dispersos por toda a cidade.128
Blanc tinha conseguido manter sua oficina mesmo nessa conjuntura emergenci-
al: em 1790 ele tinha apresentado à Assembleia Nacional francesa uma proposta para a
montagem de uma manufatura de armas,129 agora incorporada ao Atelier de Perfection-
ment, (Oficina de Aperfeiçoamento), uma instituição criada pela Revolução Francesa,
com o objetivo de pesquisar técnicas para produção de armas com peças intercambiá-
veis, diminuindo seu custo. Era, portanto, como a oficina de Blanc em Vincennes, mas
funcionando em princípios mais científicos, sob a direção de Alexandre-Theophile
Vandermonde, um cientista, membro da academia – fora responsável pela montagem da
coleção de máquinas da instituição – e que tinha apoiado a Revolução desde o início.130
O estabelecimento começou a aumentar a produção, usando operários do Arsenal de
Paris – chegou a empregar 95 armeiros, bem como máquinas requisitadas: foi aqui que
se usou a prensa da Casa da Moeda de Rouen, anteriormente mencionada. Contudo, o
término da crise na fabricação de armas e a vitória dos exércitos revolucionários em
1794 levaram ao fechamento da manufatura de Paris e a transformação do Atelier de
Perfectionment em uma repartição voltada para a fabricação de máquinas ferramentas e
de padrões de pesos e medidas para o sistema métrico. Depois o Atelier foi reunido ao
Conservatoire National des Arts et Metiers (Conservatório Nacional das Artes e Ofí-
cios), uma espécie de instituição mista, de ensino e museu, voltada ao desenvolvimento
técnico e científico – mas isso não é do nosso interesse específico, a não ser no sentido
126
TABLE GÉNÉRALE par ordre alphabétique de matèries des lois, sénatus-consultes, décrets, arrêtés,
avis du conseil d’État, etc. Publiés dans le bulletin des lois et collections officielles. Tome 1er. Paris:
Rondonneau et Decle, 1816. p. 193. A manufatura de Versalhes foi instalada em uma das alas do pa-
lácio real. Curiosamente, apesar da maior parte dos arsenais de emergência ter sido fechadas depois
do fim da crise de 1794, a Manufatura Nacional de Versalhes continuou funcionando até 1818, fa-
zendo armas de luxo para serem presenteadas pelo governo. TAYLOR, Dean G. Nicolas-Noel Bou-
tet and the manufacture of arms at Versailles. Arms Collecting, vol. 20 nº. 4. pp. 107 e segs.
127
ROUSSEAU, op. cit. p. 724.
128
ALDER, op. cit. p. 257.
129
BLANC, Honoré. Mémoire important sur la fabrication des armes de guerre : à l'Assemblée natio-
nale. Paris: L. M. Cellot, 1790
130
GILLSPIE, Charles Coulston. Science and Polity in France: the Revolutionary and Napoleonic Years.
Princeton: Princeton University, 2004. pp. 388 e 426.
238
Capitulo 5 - A pré-indústria e a produção de artigos militares
que foi uma instituição que manteve os ideias de racionalização dos ofícios, através do
ensino técnico, tal como era a mentalidade dos oficiais de artilharia no período de Gri-
beauval.131
Blanc continuaria com seus esforços de produção de fechos, montando uma ma-
nufatura, em Roanne – depois do fim do Diretório, as Manufaturas de Armas voltaram a
ser entregues a administração de empreendedores particulares. Neste caso, o armeiro já
começou a trabalhar em nível “industrial”, produzindo 1.500 fechos em 1795, usando
técnicas aperfeiçoadas, como uma melhor divisão do trabalho entre os artesãos, assim
como adotando mais máquinas, dedicadas a tarefas específicas, não precisando ser ajus-
tadas quando era necessário mudar o tipo de peça a ser feita. Usando essas técnicas,
Blanc conseguiu entregar quatro mil de fechos, dois anos depois prometendo completar
de 25.000 a 30.000 por ano, mais do que Saint-Étienne produzia antes das guerras da
Revolução.132 No entanto, Blanc faleceu em 1801, sem cumprir esse objetivo. A manu-
fatura foi comprada por outro empreendedor, que assumiu o compromisso de ir além do
que Blanc tinha feito, prometendo entregar 12.000 espingardas totalmente intercambiá-
veis por ano. Só que isso nunca foi feito – até o encerramento das atividades em Roan-
ne, em 1807, tinham sido entregues 12.000 fechos e 2.000 espingardas.
131
Id. p. 426.
132
ALDER, op. cit. p. 321.
239
Capitulo 5 - A pré-indústria e a produção de artigos militares
133
BRUN, Jean Francois. La Mécanisation de l’Armurerie Militaire (1855-1869). Acta Universitatis
Danubius. No. 1/2010. p. 110. Na prática, a produção mecanizada na França só foi adotada em
1866, com a introdução do fuzil Chassepot.
134
COOPER, Carolyn C. The Portsmouth System of Manufacture. Technology and Culture. Vol. 25 Nr.
2, April 1984. p. 186.
240
Capitulo 5 - A pré-indústria e a produção de artigos militares
135
id. p. 193.
241
Capitulo 5 - A pré-indústria e a produção de artigos militares
ser útil para os E.U.A., fui até o artesão e ele me mostrou as peças pa-
ra 50 fechos desmontados. Eu próprio montei vários, pegando peças
ao acaso, à medida que as pegava, e elas se encaixavam na mais per-
feita forma. As vantagens isso, quando armas precisam de consertos,
são evidentes. Ele consegue isso por ferramentas de sua própria in-
venção, que ao mesmo tempo resumem o trabalho, de forma que ele
pensa que será capaz de acabar uma espingarda por duas libras [ester-
linas] a menos do que o preço usual. Mas ainda serão precisos dois ou
três anos antes que ele seja capaz de acabar quantidade maior delas.
Eu o menciono agora, pois isso pode ter influência no plano para
equipar nossos armazéns com esta arma.136
Como escrito acima, Jefferson demonstrou um grande interesse pelo estudo das
peças intercambiáveis com armas: ele ainda escreveria três outras cartas sobre o tema,
uma para o governador do estado da Virgínia (24 de janeiro de 1786) e duas para o ge-
neral Henry Knox, o secretário (ministro) da guerra dos EUA, em 12 de setembro de
1789 e 24 de novembro 1790. Com a carta de 1789 ele enviou sete fechos completos
(seis do modelo de espingarda de oficial e um para a de soldados) feitos por Blanc, bem
como as ferramentas necessárias para a montagem dos mesmos. Nela, reiterou as vanta-
gens do sistema de peças intercambiáveis para os consertos na arma e sugeriu que Blanc
poderia ser contratado para trabalhar em uma manufatura norte-americana.137 Na última
carta, de 1790,138 ele remeteu uma cópia da memória apresentada por Blanc à Assem-
bleia Nacional sobre sua proposta de fabricação de armas (ver nota 129, acima).
Dessa forma, parece que os Estados Unidos estavam informados sobre os desen-
volvimentos no campo da manufatura de armas. Só que o passo seguinte na conforma-
ção da moderna produção fabril surgiu justamente lá e os americanos colocam em dúvi-
da o papel de seus predecessores na introdução da fabricação de armas na América do
Norte – eles preferem assumir todo o crédito pela introdução das novas técnicas. O que
é certo é que no país já havia a fabricação de armamentos, mas em pequena escala, por
armeiros privados, mas esta não era um ramo importante entre as manufaturas existentes
nos Estados Unidos. Por parte do governo, as primeiras ações foram modestas: um mo-
mento inicial na montagem de arsenais federais no país começou com a Guerra de Inde-
136
CARTA de Thomas Jefferson embaixador dos Estados Unidos na França, a John Jay, secretário de
relações exteriores, Paris, 30 de agosto de 1785. National Archives: Founders on line.
https://goo.gl/61lrzA (acesso em outubro de 2016).
137
CARTA de Thomas Jefferson embaixador dos Estados Unidos na França, a Henry Knox, secretário da
guerra, Paris, 12 de setembro de 1789. National Archives: Founders on line. https://goo.gl/lTuheF
(acesso em outubro de 2016).
138
CARTA de Thomas Jefferson embaixador dos Estados Unidos na França, a Henry Knox, secretário da
guerra, Paris, 24 de novembro de 1789. National Archives: Founders on line. https://goo.gl/48mizh
(acesso em outubro de 2016).
242
Capitulo 5 - A pré-indústria e a produção de artigos militares
No final do século XVIII, os EUA julgaram necessário reformar seu sistema mi-
litar – inicialmente em bases bem diferentes dos de outros países, é verdade, já que a
ênfase, por muitos anos, continuaria na ideia da defesa por parte de milícias. Assim, em
1792 foi aprovada uma lei para “estabelecer uma milícia uniforme pelos Estados Uni-
dos”,141 e dois anos depois, foi aprovada outra norma legal, determinando o estabeleci-
mento de Arsenais, com um superintendente e um mestre armeiro, bem assim como
operários, desde que esses não excedessem cem, em todos os arsenais.142 Apesar da
proposta ser modesta, dois Arsenais foram estabelecidos, os de Springfield, Massachu-
setts e o de Harpers Ferry, Pensilvânia e as primeiras armas começaram a ser fabricadas
já em 1795.
139
Ver o caso do Arsenal de Frankford: FARLEY, op. cit.
140
Por exemplo: SCHEEL, Heinrich Otto. De Scheel´s treatise on artillery. Blomefield : Museum Resto-
ration Service, 1984.
141
PALMER, Dave R. 1794: America, its Army, and the Birth of the Nation. Novato: Presidio Press,
1994. p. 217.
142
ESTADOS UNIDOS DA AMÉRICA – An act to provide for the erecting and repairing of arsenals
and magazines and for other purposes. 2 de dezembro de 1793.
143
WOODBURY, op. cit. p. 242.
243
Capitulo 5 - A pré-indústria e a produção de artigos militares
armas por ano por homem, um claro indicativo que os métodos de produção usados ini-
cialmente lá eram primitivos. 144
De fato, quando o Congresso dos EUA resolveu se preparar contra uma possível
guerra contra a França, em 1798, por causa da ação de corsários na costa americana, foi
autorizada a assinatura de contratos com companhias privadas para o fornecimento de
armas. Uma dessas empresas foi a de Eli Whitney, um dos heróis do imaginário norte-
americano, por suas atividades pela industrialização do País, sendo considerado por
alguns como o responsável pela “gênese do poder industrial dos Estados Unidos”.145
Whitney tinha tido um papel importante no desenvolvimento de uma máquina para des-
caroçar algodão, vital para a agricultura do sul dos EUA, mas não obtivera lucros com
ela, por causa da lei de patentes de lá. Acossado por dívidas, o inventor se propôs a for-
necer dez mil espingardas para o exército americano, conseguindo um contrato diferente
dos outros fornecedores, com condições vantajosas, podendo receber adiantamentos
antes da entrega das armas, algo que lhe seria vital para sobreviver ao assédio de seus
credores.146
144
Certamente o número de armas por homem/ano dever ter sido maior, já que o Arsenal tinha outras
funções, como a fabricação de reparos, mas ainda assim, o número seria pequeno, bastando compa-
rar com as 150 armas feitas por ano na fábrica inglesa de Levisham, em 1811 (ver página 39).
145
MIRSKY, Jeannette. The world of Eli Whitney. New York: Macmillan, 1952. p. IX. A bibliografia
sobre o inventor é vasta, indo de artigos técnicos até livros de divulgação.
146
WOODBURY, op. cit. p. 238.
244
Capitulo 5 - A pré-indústria e a produção de artigos militares
Apesar da fama e do mito sobre o inventor, é fato que ele levou dez anos e meio
para completar seu contrato e nunca alcançou uma arma com peças intercambiáveis, que
seria um dos seus objetivos: em uma demonstração do princípio, feita em 1801, com a
presença do então presidente eleito, Thomas Jefferson, ele conseguiu colocar dez fechos
em uma mesma espingarda,150 mas isso não implica que a ajustagem mais fina, das pe-
ças do fecho, tivesse sido alcançada. Woodbury, que tem um excelente artigo desmitifi-
cando a figura de Whitney, afirma que, de fato, os fechos feitos pelo inventor não ti-
nham peças intercambiáveis, um dos elementos fundamentais para isso, o uso de gabari-
tos, não estando presente em seus processos.151
De qualquer forma, a documentação deixa claro que Whitney montou uma fábri-
ca – e usamos o termo no seu sentido estrito – centralizada, com divisão de trabalho e
máquinas ferramentas movidas a água. 152 Mais importante, ele produziu as armas com
essas técnicas, obtendo lucro, um passo importante na evolução dos processos fabris.
Sua influência foi ainda maior no meio militar, pois a ideia de armas intercambiáveis
147
MIRSKY, op. cit. p. 196.
148
WOODBURY, op. cit. 242.
149
id. p. 244.
150
SMITHURST, op. cit. p. 7.
151
WOODBURY, op. cit. p. 247 e 249.
152
Id. p. 249.
245
Capitulo 5 - A pré-indústria e a produção de artigos militares
É verdade que a regularidade das armas feitas inicialmente para o exército norte-
americano não era das melhores, parecendo até ser pior do que em outros países. Em
1834 o mestre armeiro do Arsenal de Frankford, que atuava como uma casa do trem,
recebendo armas de fabricantes privados e de arsenais do governo para distribuição a
unidades, inspecionou uma série de 145 caixas de armas. Estas já tinham sido aceitas
para serviço e tinham sido feitas, supostamente, de acordo com os modelos aprovados.
No entanto, o armeiro encontrou canos variando de 96,5 cm até 114 cm, sendo que o
modelo oficial deveria ter 107 cm. Mais relevante, em termos de uso das armas, era que
o calibre variava até meio milímetro, o que poderia impedir o uso da espingarda com a
munição regular, se o calibre estivesse abaixo do padrão.153
153
FARLEY, op. cit. p. 19
154
RODENBOUGH, Theo. F. & HASKIN, William L. The Army of the United States: Historical Sketch-
es of Staff and Line with Portraits of Generals-in-Chief. New York: Maynard, Merrill, 1896. p. 126.
155
ESTADOS UNIDOS DA AMÉRICA – Department of defense. Selected manpower statistics: fiscal
year 1997. Washington: Washington headquarter services, s.d. [1997]. pp. 46 e 55.
156
HOUNSHELL, op. cit. p. 28.
246
Capitulo 5 - A pré-indústria e a produção de artigos militares
Apesar da falha inicial, o contrato de North é um sinal evidente que havia um in-
teresse governamental na feitura de armas usando os princípios industriais: por exem-
plo, North visitou o Arsenal de Springfield, com o objetivo expresso fazer que “seu pla-
no de trabalho uniforme” fosse adotado na instalação.158 Essa proposta de aperfeiçoar as
instalações do governo se confirma na forma como a arma de John Hall foi introduzida
no exército americano. Este inventor, em 1811, tinha conseguiu a patente para a fabrica-
ção de um fuzil de pederneira, com mecanismo de carregamento de retrocarga.159 Neste
caso, a necessidade de vedação da culatra, para que gases não escapassem durante o
disparo era um imperativo e isso poderia ser obtido de forma mais fácil com o uso de
técnicas fabris de precisão, tais como as usadas na feitura de peças intercambiáveis –
uma coisa era decorrente da outra. As armas de Hall eram mais caras que o usual, mes-
mo assim ele foi contratado pelo governo federal para trabalhar no Arsenal de Harpers
Ferry, recebendo um salário e um royalty de um dólar por cada fuzil feito, tendo sido
encomendados mil deles, entregues em 1824. 160
157
id. p. 29.
158
SMITH. Merritt Roe John H. Hall, Simeon North, and the Milling Machine: The Nature of Innovation
among Antebellum Arms Makers. Technology and Culture. Vol. 14, No. 4, Oct., 1973. p. 578.
159
ESTADOS UNIDOS DA AMÉRICA– Patent Office. John H. Hall, of Portland, Maine, and William
Thornton, of Washington, D.O. Improvement in fire-arms. Specification forming part of Letters Pa-
tent dated May 21, 1811.
160
PEAUCELLE, op. cit. p. 65.
247
Capitulo 5 - A pré-indústria e a produção de artigos militares
conclusão do comité sendo muito elogiosa para a arma e processos adotados na sua ma-
nufatura.161
No entanto, deve-se frisar que os gastos investigados não podem ser associados
apenas à arma, se devendo mais aos custos de desenvolvimento e, principalmente, aqui-
sição de capital: Em 1819 foi introduzido o torno copiador de Blanchard para fazer co-
ronhas – baseado nas máquinas da fábrica de moitões de Portsmouth (ver Figura 29).162
No ano seguinte foi adquirida uma nova fresa para preparo das peças e em 1829 uma
máquina para produzir canos por laminação, substituindo o martinete movido à força
hidráulica, que já tinha sido uma inovação dos arsenais americanos.163 Hall também
desenhou maquinário para estampar peças por gravidade, o seu maior invento sendo,
contudo, novos tipos de fresa, capazes de funcionar sem supervisão de trabalhadores
especializados: nas palavras do Comitê Carrington:
161
SMITH (1973), op. cit. p. 584.
162
HOUNSHELL, op. cit. p. 35
163
KENNEDY, R.N., Jr. Notes on the model 1816 U.S. Flintlock musket. Bulletin of the American Socie-
ty of arms collectors, Nr 31, Spring, 1975. p. 41.
164
SMITH (1973), op. cit. p. 582. apud CARRINGTON Committee Report, January, 6, 1827. Grifo de
Smith.
248
Capitulo 5 - A pré-indústria e a produção de artigos militares
165
Fotografado pelo autor da presente tese na exposição permanente do Museu Nacional de História
Americana, Smithsonian. 2001.
166
HOUNSHELL, op. cit. p. 3.
249
Capitulo 5 - A pré-indústria e a produção de artigos militares
pelo Arsenal de Springfield. Um passo notável, considerando que se queria fazer armas,
basicamente idênticas, em duas fábricas separadas, para dois clientes distintos. No en-
tanto, o exame das peças existentes em museus, prova que esse objetivo foi atingido, o
que prova que o uso de complexos sistemas de gabaritos tinha sido desenvolvido com
sucesso, permitindo a cópia de todas as peças da arma.167
167
GORDON, Robert B. Simeon North, John Hall and Mechanized Manufacturing. Technology and Cul-
ture. Vol. 30. Nr. 1, Jan. 1989. p. 183.
168
Fotografado pelo autor da presente tese na exposição permanente do Museu Nacional de História
Americana, Smithsonian. 2001.
169
HOUNSHELL, op. cit. p. 41.
250
Capitulo 5 - A pré-indústria e a produção de artigos militares
modelo 1841 – estavam dentro das tolerâncias aceitáveis, usando essas ferramentas.170
Vale uma comparação deste conjunto de gabaritos com o simples escantilhão usado
pelos armeiros portugueses (ver Figura 26).
170
LUBAR, Steven. Engines of change: an exhibition on the American Industrial Revolution at eh Na-
tional Museum of American History, Smithsonian Institution. Washington: National Museum of
American History, 1986. p. 59.
171
SMITH (1973), op. cit. p. 584.
172
KENNEDY, op. cit. p. 42.
251
Capitulo 5 - A pré-indústria e a produção de artigos militares
173
HARPER'S WEEKLY Sept. 21, 1861. p. 605.
174
id. p. 607.
175
id. p. 607.
252
Capitulo 5 - A pré-indústria e a produção de artigos militares
Máquinas de costura
45000
40000
35000
30000
25000
20000
15000
10000
5000
0
176
HOUNSHELL, op. cit. p. 69 e 182.
177
id. p. 89.
178
id. pp. 70, 80 e 92.
253
Capitulo 5 - A pré-indústria e a produção de artigos militares
Uma nota que deve ser frisada é que na introdução dos métodos de produção
modernos as forças armadas tiveram um papel fundamental. Os engenheiros militares de
Gribeauval, os oficiais de marinha de Portsmouth e os engenheiros militares do Depar-
tamento de Material Bélico nos Estados Unidos foram elementos que defenderam e in-
centivaram a modernização. Em todos esses casos, os militares aceitaram fazer grandes
investimentos em tempo e dinheiro, em empreendimentos experimentais arriscados,
visando à obtenção de resultados ideais e não necessariamente os mais econômicos. Isso
apesar da resistência que havia, não só por parte de políticos e intelectuais, que viam os
desembolsos militares como “estéreis”, assim como os dos empreendedores privados e
trabalhadores, que viam a mudança como uma ameaça a seu modo de vida.180
179
HOUNSHELL, op. cit. p. 331.
180
Ver, por exemplo, ALDER, op. cit. p. 270, sobre a resistência dos trabalhadores em trabalhar por em-
preitada, ao invés de por jornal, como queriam os engenheiros militares.
254
Capitulo 6 - A estrutura de produção de artigos para os militares no Brasil
Sumário
255
Capitulo 6 - A estrutura de produção de artigos para os militares no Brasil
1
RELAÇÃO que mostra os fardamentos que se têm remetido dos Armazéns Reais desta provedoria para
a Capitania de São Paulo, e dos que tem recebido nestes mesmos Armazéns, vindos do Arsenal Real
dos Exércitos para a mesma Capitania. O desembargador procurador da Fazenda Real, Francisco Jo-
sé Brandão. Rio de Janeiro, 8 de agosto de 1776. DOCUMENTOS Interessantes. Vol. XVII. São
Paulo: Paulista, 1895. p. 136.
2
PORTUGAL – Rei. Provisão Régia ordenando ao Governador da capitania do Rio de Janeiro que pagas-
se os soldos atrasados e fardasse os soldados da Praça de Santos. Lisboa, 22 de fevereiro de 1716. p.
188. DOCUMENTOS Interessantes, vol. XLIX. São Paulo: Irmãos Ferraz, 1926. A provisão infor-
mava que em fevereiro do ano anterior, os soldos estavam atrasados quatro meses e os uniformes
quatro anos.
256
Capitulo 6 - A estrutura de produção de artigos para os militares no Brasil
Por sua vez, nem tudo dependia de Portugal, havia uma estrutura local de produ-
ção e esta não pode ser desprezada, como colocada nos capítulos anteriores. Um dos
elementos centrais na estratégia portuguesa eram os estaleiros governamentais.
Esse tipo de atividade não ficou restrito à capital. “Ribeiras”, estaleiros gover-
namentais, de maior ou menos porte, foram instalados em praticamente todas as capita-
nias costeiras e até em áreas sem acesso direto ao mar, como Mato Grosso, onde o go-
verno mantinha uma pequena flotilha de canoas artilhadas. No Rio de Janeiro, em 1734
já havia um “engenho”, uma máquina para querenar, para poder limpar o fundo de na-
vios7 e o esquema de pequenas carreiras regionais se expandiu a partir do governo do
marquês de Pombal (1756-1777), quando foram criados vários arsenais ou transforma-
das as antigas ribeiras. Foram elevados à situação de Arsenal de Marinha as instalações
3
REGISTRO de uma representação que fez o Corpo de Dragões ao Governador Diogo Osório Cardoso.
Porto do Rio Grande de São Pedro, 11 de janeiro de 1742. Anais do Arquivo Histórico do Rio Gran-
de do Sul. Vol. I. Porto Alegre, 1977. Porto Alegre: Instituto Estadual do Livro, 1977. p. 152.
4
REQUERIMENTO dos almoxarifes dos armazéns de artilharia, pólvora e Ribeira das Naus, ao rei [D.
Filipe III], sobre um compromisso que tomaram com o galeão Santa Ana, o qual vindo de torna via-
gem no ano de 1624, se perdeu na ilha de São Jorge. [ant. 1626, Maio, 27]. Mss. Arquivo Ultramari-
no. AHU_CU_005-02, Cx. 4, D. 429. Gastão Penalva informa que a Ribeira foi criada no governo de
D. Francisco de Souza (1591-1602). PENALVA, Gastão. Homens e coisas da velha armada: a idade
de ouro da construção naval. ILUSTRAÇÃO brasileira. Ano V, nº 44, abril de 1944. s.n.p. De fato,
em 1609 se pediu um orçamento para a construção de uma nau de 400 toneladas na Bahia. LAPA,
José Roberto do Amaral. A Bahia e a carreira da Índia. São Paulo: Companhia Editora Nacional,
1968. p. 53.
5
REGIMENTO DE TOMÉ DE SOUZA, 17 de dezembro de 1548. Apud TAPAJÓS, Vicente. História
Administrativa do Brasil. vol. II. Rio de Janeiro: D.A.S.P. - Serviço de Documentação, 1966. p. 103.
6
SELVAGEM, Carlos. Portugal Militar: compêndio de história militar e naval de Portugal, desde as
origens do estado Portucalense até o fim da Dinastia de Bragança. Lisboa: Imprensa Nacional-Casa
da Moeda, 1991. p. 467.
7
GREENHALGH, Juvenal. O Arsenal de Marinha do Rio de Janeiro na História: 1763-1822. Rio de
Janeiro: Editora a Noite, 1951. p. 26.
257
Capitulo 6 - A estrutura de produção de artigos para os militares no Brasil
da Pará (1761, existia desde 1729), Rio de Janeiro (1763) e Maranhão (já existia em
1733), que receberam instruções de construir navios de grande porte: no Rio, foi lança-
da a quilha da nau D. Sebastião, de 64 canhões e o do Pará construiu a Nau Belém, de
74 peças. 8
A expansão do sistema de construção naval não parou com essas instalações re-
lativamente grandes. Em Porto Alegre havia uma instalação que fez o Brigue Bellona
em 1771, em plena guerra com os espanhóis, que dominavam a margem sul do canal de
acesso à lagoa dos Patos, em tese impedindo o reabastecimento das forças militares no
Rio Grande do Sul. Pernambuco teve um Arsenal construído em 1798. Já no século
XIX, em Santa Catarina, que não chegou a ter oficialmente um Arsenal, apenas uma
intendência, foram feitas barcas canhoneiras em 1820. No mesmo ano foi criada uma
instalação de maior porte em Alagoas, onde foram lançadas as corvetas Maceió e São
Cristóvão. No Império, foi montada um Trem Naval em Mato Grosso, onde foram feitas
barcas canhoneiras (1825), o mesmo sendo feito em São Paulo.9 Durante a ocupação do
Uruguai como Província Cisplatina (1816-1828), o antigo Apostadero Naval dos espa-
nhóis em de Montevidéu teve um status de Arsenal de Marinha.
Tais Arsenais tinham dimensões variáveis. O do Pará, por exemplo, que não era
o maior de todos, em 1770 tinha 207 operários, mais 71 serventes e marinheiros,10 e até
1800 foram lançadas nele: uma nau de 74 canhões, cinco fragatas de 44 canhões, quatro
charruas, quatro brigues e doze chalupas artilhadas. O governador do Pará informando
que estavam
8
id. p. 27.
9
PENALVA, op. cit. n.p.
10
LOPES, Thoribio. Arsenal de Marinha do Pará: Sua origem e sua história. Belém, s.ed 1945. pp. 81-
82.
11
id. p. 89.
258
Capitulo 6 - A estrutura de produção de artigos para os militares no Brasil
12
BRASIL – Decreto de 27 de março de 1832. Extingue as Intendências da Marinha do Pará, Maranhão,
Pernambuco, e Santos, e providencia a respeito do fornecimento dos navios da Armada e dos traba-
lhos do Arsenal de Marinha do Pará.
259
Capitulo 6 - A estrutura de produção de artigos para os militares no Brasil
carpintaria,13 instalações bem simples, capazes apenas de fazer reparos menos comple-
xos, ainda que houvesse uma carreira no Arsenal.
Arsenal Nº de Navios
Belém 21
Rio de Janeiro 19
Bahia 16
Recife 11
Vários 8
Soma 75
Tabela 9 – Navios produzidos nos estaleiros do País.15
Na linha “vários” estão incluídos os navios feitos em Santos, Maceió e Desterro (Florianópolis). Só estão
listados navios oceânicos, a não ser no caso de Recife, onde aparecem três dragas de grande porte – as
únicas construídas pela Marinha no Brasil Império.
O número de navios feitos em Belém até 1864 é notável, sendo que o último de-
les feito dentro do nosso recorte, o D. Pedro, de 1863, já era a vapor,16 mostrando que
houve uma tentativa e modernizar a instalação, algo que também aconteceu em Salva-
dor, onde foi batida a quilha do vapor Moema, em janeiro de 1865.
13
GREENHALGH, op. cit. p. 52.
14
BRASIL – Ministério da Marinha. Relatório apresentado à Assembleia Geral Legislativa na segunda
sessão da décima terceira legislatura pelo ministro e secretário de estado dos negócios da marinha,
Afonso Celso de Assis Figueiredo. Rio de Janeiro: Diário do Rio de Janeiro, 1868. Anexo VIII.
15
id. Anexo VIII.
16
id. Anexo VIII.
17
id. anexo VIII.
260
Capitulo 6 - A estrutura de produção de artigos para os militares no Brasil
No caso das marinhas, apesar do elemento humano ainda ser vital, esse só podia
ser aplicado através das embarcações e seus armamentos. Dessa forma, manter os navi-
os atualizados era uma necessidade, não só em termos de seus desenhos básicos, mas
também em detalhes de seu funcionamento. Um exemplo disso pode ser visto no caso
dos suprimentos: uma das principais oficinas dos antigos Arsenais de Marinha era a de
tanoaria, para fabricação de toneis, necessários não só para o transporte de líquidos, mas
também de alguns sólidos. Para aperfeiçoar esse detalhe, em 1832 o Arsenal de Marinha
do Rio de Janeiro (AMRJ) passou a fabricar tanques de ferro para o fornecimento das
embarcações, o que demandava uma oficina de serralheira bem equipada e exigiria uma
de galvanização, para dar maior durabilidade aos tanques. Nesse mesmo ano, se tentou
instalar duas máquinas a vapor, uma para serrar e outra para encurvar madeiras e foram
instalados teares para produção de velas.19
18
No Brasil, durante a Guerra de Independência, se forneceram chuços para armar as ordenanças. Nos
Estados Unidos, na Guerra Civil (1860-1865), o uso de piques chegou a ser aprovado pelo coman-
dante confederado do Exército do Norte da Virgínia, General Lee, apesar das armas não terem sido
distribuídas. Para o caso do Brasil, ver: BRASIL – Ministério da Guerra. Ofício de Manoel da Costa
Pinto ao Ministro da Guerra, conde da Lage, sobre pedido feito pela Marinha. Rio de Janeiro, 13 de
janeiro de 1822. Mss. Arquivo Nacional. IG7 3. Quanto ao fornecimento de piques para as tropas
confederadas, ver: GWYNNE, S. C. Rebel Yell: The Violence, Passion, and Redemption of Stone-
wall Jackson. New York, Scribner, 2014. p. 196.
19
BRASIL – Ministério da Marinha. Relatório do ano de 1832. s.n.t. [1833]. p. 5
261
Capitulo 6 - A estrutura de produção de artigos para os militares no Brasil
ano o número de operários do AMRJ era 567, divididos em doze especialidades. 20 Para
efeito de comparação, o Exército, no pique do corte de gastos com a força de terra, em
1836, com um quadro de efetivos autorizado de 6.320 soldados, o Arsenal de Guerra da
Corte tinha apenas 231 operários, divididos em quatorze especialidades. 21
Cremos ser importante notar que os pagamentos de alguns desses operários mais
especializados era realmente elevado, pelo menos em comparação com os soldos das
forças armadas: em 1845, o jornal (diária) de cinco dos aprendizes da oficina de máqui-
nas era de 2.000 réis. Com base em um mês de trabalho de 26 dias isso implicava em
vencimentos mensais de 52.000 réis – nesse período, o soldo de um capitão, um oficial
de grau intermediário, era de 50.000 réis, menos do que ganhava um aprendiz, um traba-
lhador que sequer tinha sua formação completa. Os artesãos mais bem pagos das ofici-
nas de fundição de ferro e de máquinas recebiam 4.000 réis por dia, ou 106.000 réis
mensais, mais do que um tenente-coronel, enquanto os mestres, com 5.000 réis, 22 rece-
20
TELLES, Pedro Carlos da Silva. História da engenharia no Brasil (século XVI a XIX). Vol. I. Rio de
Janeiro: Clavero, 1994. p. 294.
21
BRASIL – Arsenal de Guerra. Relatório do estado do pessoal das oficinas do Arsenal de Guerra da
Corte e dos objetos que se devem presentemente nelas fabricar. Rio de Janeiro, 24 de novembro de
1836. Mss. ANRJ. IG7 19.
22
BRASIL – Ministério da Marinha. Relatório da Repartição dos Negócios da Marinha apresentado à
Assembleia Geral Legislativa na 2ª sessão da 6ª legislatura pelo respectivo ministro e secretário de
estado Antônio Francisco de Paula e Hollanda Cavalcanti d’Albuquerque. Rio de Janeiro: Laem-
Continua –––––––
262
Capitulo 6 - A estrutura de produção de artigos para os militares no Brasil
biam um valor mensal acima do soldo de um brigadeiro, um oficial general.23 Algo no-
tável, considerando como o trabalho manual era visto na sociedade da época, uma refle-
xão do mercado de trabalho para essas especialidades, que certamente tinham muito
pouco trabalhadores no Brasil – o Relatório do Ministro da Marinha especifica que es-
ses operários de máquinas eram belgas, contratados na Europa para a oficina.24 Por sua
vez, o trabalho na cordoaria, uma atividade não muito especializada e que tinha um
mercado de trabalho local, não era um bem pago, o mestre recebia apenas 1.800 réis
(46.800 réis) e o mancebo com menor pagamento tinha uma diária de 480 réis, apenas
um pouco acima do que ganhava um sargento do exército.
Continuação–––––––––––
mert, 1845. Nº 2. Quadro das oficinas e diversos serviços do Arsenal da Marinha da Corte, seu
pessoal, vencimentos individuais em dia util, e férias vencidas no mês de fevereiro de 1845.
23
SCHULZ, John. O exército na política: origens da intervenção militar: 1850-1894. São Paulo:
EDUSP, 1994. p. 211.
24
BRASIL – Ministério da Marinha. Relatório apresentado à Assembleia Geral Legislativa na terceira
sessão da oitava legislatura pelo ministro e secretário de estado, Manoel Vieira Costa. Rio de Janei-
ro: Tipografia Nacional, 1851. p. 14.
25
PLANTA do Arsenal de Marinha, Henry Law. Mss. Biblioteca Nacional.
263
Capitulo 6 - A estrutura de produção de artigos para os militares no Brasil
dos,26 escravos da nação, africanos livres e escravos de aluguel relacionados como tra-
balhando na instituição, a categoria de sentenciados não tendo correspondência no Ar-
senal de Guerra da Corte. A Marinha tinha até o direito de apenar, requisitar a força um
quarto da força de artesãos livres das oficinas particulares para trabalhar no Arsenal, um
direito legal que consta em repertórios de legislação militar, 27 mas isso não era uma
prática normal.
26
SOARES, Carlos Eugênio Líbano. A capoeira escrava no Rio de Janeiro: 1808-1850. Tese de Douto-
rado. Campinas: Universidade Estadual de Campinas, 1998. (mimeo). pp. 81.
27
MATOS, Raimundo José da Cunha. Repertório da legislação militar atualmente em vigor no exército e
armada do Império do Brasil. Rio de Janeiro: Seignot-Plancher, 1837. Vol. I. p. 21.
28
BRASIL – Ministério da Marinha. Relatório de 1845, op. cit. Quadro nº 6.
29
id. mapa 2. Observamos que algumas das somas da tabela original não estão corretas.
264
Capitulo 6 - A estrutura de produção de artigos para os militares no Brasil
A capacidade técnica das oficinas da Marinha pode ser demonstrada no fato das
máquinas do vapor Recife, construído no estaleiro da Ponta da Areia em 1849, terem
sido feitas no Arsenal. 33 Além disso, em 1850 se iniciou a fundição de canhões de bron-
ze,34 sendo que a instituição forneceria ao exército os primeiros canhões raiados fabri-
30
BRASIL – Decreto nº 54, de 26 de Outubro de 1840. Determinando que as duas Companhias, que
restam para o completo do Corpo de Imperiais Marinheiros, sejam compostas de Operários das
Oficinas do Arsenal da Marinha, e consideradas nele destacadas.
31
GREENHALGH, Juvenal. O Arsenal de Marinha do Rio de Janeiro na História: 1822-1899. Rio de
Janeiro: Editora a Noite, 1965. p. 124.
32
TELLES, op. cit. p. 296.
33
BRASIL – Ministério da Marinha. Relatório de 1851, op. cit. p. 14.
34
O Museu Histórico Nacional tem preservado quatro canhões fundidos pela Marinha na década de 1850,
peças Siga 016170, 015892, 016171 e 004420.
265
Capitulo 6 - A estrutura de produção de artigos para os militares no Brasil
cados no Brasil, 35 além de peças e munições de ferro fundido. Nas décadas de 1850 e
1860 – e, podemos supor, antes –, quando o Arsenal do Exército precisava de uma as-
sessoria técnica sobre um assunto mais complexo, os engenheiros e mestres da Marinha
eram consultados. 36 Por sua vez, devemos dizer que Rouhette patenteou uma máquina
de descaroçar algodão e em 1846 o ministro da Marinha solicitou que essa máquina
fosse feita no Arsenal de Guerra, 37 o que dá a entender que as oficinas do Exército eram
mais flexíveis do que as da Marinha, podendo atender com mais facilidade pedidos ex-
traordinários. Isso, por si, não é um fator positivo, pois indica uma organização mais
artesanal do trabalho.
35
BRASIL – Ministério da Guerra. Aviso do ministro da Guerra, Polidoro da Fonseca Quintanilha Jor-
dão ao coronel diretor do Arsenal de Guerra, José de Vitória de Soares d’Andrea, mandando forne-
cer bronze de canhões velhos para a fundição de 36 canhões no Arsenal da Marinha. Rio de Janei-
ro, 28 de fevereiro de 1863. Mss. ANRJ. IG7 515
36
Em 1862, se solicitou aos 1os tenentes engenheiros da Marinha, Braconnot e Antônio Gomes de Matos,
para darem um parecer sobre a máquina de raiar canhões que tinha sido feita no BRASIL – Ministé-
rio da Guerra. Ofício de Vicente Pereira da Costa Piragibe, da 1ª Diretoria Geral, 1ª Seção, ao Di-
retor do Arsenal de Guerra da Corte, Coronel Alexandre Albino Manoel de Carvalho, sobre maqui-
nistas da marinha. 20 de setembro de 1862. Mss. ANRJ. IG7 498.
37
BRASIL – Ministério da Guerra. Aviso do ministro da Guerra, Antônio Francisco de Paula e Hollanda
Cavalcanti d’Albuquerque, ao diretor do Arsenal de Guerra, mandando dar a Carlos Rouhette os
meios de fazer a máquina de descaroçar algodão. Rio de Janeiro, 31 de janeiro de 1846. Mss.
ANRJ. IG7 404.
38
Para uma discussão sobre os galés empregados no dique, ver: SOARES, op. cit.
39
TELLES, op. cit. p. 294.
266
Capitulo 6 - A estrutura de produção de artigos para os militares no Brasil
Em parte, o maior status dado a este funcionário era devido à necessidade técni-
ca do desenho de produtos complexos, como um navio, mesmo que isso tenha sido tra-
dicionalmente feito por artesãos, como dito. Em nossa opinião, mais importante era uma
mudança de concepção, que encarava a construção naval como uma atividade intelectu-
al e não manual, que necessitava de um projeto e coordenação de várias diferentes espe-
40
BRASIL – Junta de Fazenda dos Arsenais do Exército. Ofício do Inspetor, José Francisco da Silva ao
ministro da Guerra, Joaquim de Oliveira Alves, 28 de abril de 1829. Mss. ANRJ. IG7 18.
41
BRASIL – Ministro da Guerra. Aviso do Ministro, José Clemente Ferreira, para o diretor do Arsenal,
José dos Santos e Oliveira. Rio de Janeiro, 7 de junho de 1842. Mss. ANRJ, IG7 503. O aviso era
para o diretor emitir “ordem para que nunca falte trabalho aos referidos presos”, oficiais de correeiro
e alfaiates da fortaleza de Santa Cruz e Aljube.
42
O construtor das quatro fragatas de Belém no período colonial era Valentim José, “mestre da Ribeira”,
um artesão, que chegou a fazer um requerimento de uma devassa contra seu superior, o superinten-
dente do Arsenal, algo impensável dentro da hierarquia militar normal. REQUERIMENTO do mes-
tre da Ribeira, Valentim José para o rei, solicitando a realização de uma devassa contra o intendente
da Marinha do Pará, João António a favor da Fazenda Nacional. s.d. [1821] Mss. Arquivo Ultrama-
rino. AHU_CU_013, Cx. 151, D. 11654.
267
Capitulo 6 - A estrutura de produção de artigos para os militares no Brasil
Dessa forma, o operário Napoleão João Batista Level, filho de Jean Baptiste Le-
vel, mestre serralheiro e construtor naval que tinha vindo para o Brasil com a Missão
Artística Francesa, começou seu aprendizado – na forma tradicional, aos quatorze anos,
estudando de forma prática – no Arsenal de Marinha da Bahia. Só que, ao contrário dos
outros construtores e trabalhadores da instituição, a Marinha fez um investimento na sua
formação acadêmica: Level foi enviado para a França, para fazer o curso de engenharia
naval, retornando em 1852, com a patente honorária de 1º tenente – devendo-se frisar
que ele não fez o curso da Escola Naval, de formação de oficiais de Marinha.43 No
mesmo ano de seu retorno, projetou a corveta Imperial Marinheiro, desenhando mais
oito navios no Arsenal do Rio de Janeiro e três no da Bahia até 1865.
43
TELLES, op. cit. p. 296.
44
Navegação de Cabotagem. Revista Marítima Brasileira, Ano V, Vol. IX. Rio de Janeiro: Lombaerts,
1883. p. 60.
268
Capitulo 6 - A estrutura de produção de artigos para os militares no Brasil
Mauá como engenheiro, até se associar com Miers para criar a Miers & Maylor, 45 o
segundo maior estaleiro/fundição/fábrica de máquinas do Rio de Janeiro na década de
1850.
Retornando ao nosso assunto, outro nome técnico que trabalhou no Arsenal era o
Henrique Antônio Batista, assim como Braconnot um oficial de carreira, que no Arsenal
era responsável pela diretoria de Artilharia e que foi enviado para a Europa em 1862,
para estudar o tema, sendo responsável pela criação do Laboratório Pirotécnico da Ma-
rinha.46 No caso, apontamos que eram quatro oficiais com formação superior, além dos
engenheiros civis que trabalhavam nas oficinas do Arsenal de Marinha – não como ad-
ministradores, mas como técnicos, um aspecto único em todas as manufaturas do go-
verno da época.
45
A EXPOSIÇÃO Nacional - XX. Diário do Rio de Janeiro. Ano XLII, nº 70. Rio de Janeiro, 12 de março
de 1862.
46
MOITREL, Mônica Hartz Oliveira. A logística naval na Marinha Imperial durante a guerra da Trípli-
ce Aliança contra o governo do Paraguai. Dissertação de Mestrado. Rio de Janeiro: UFRJ, 2010. p.
105. No entanto, deve-se dizer que já havia uma oficina que atuava como laboratório antes, Gree-
nhalgh informando que muitas vezes esta era dirigida por um oficial do Exército. GREENHALGH
(1965), op. cit. p. 56.
269
Capitulo 6 - A estrutura de produção de artigos para os militares no Brasil
com nove operários e um aluno externo matriculado. 47 Essa escola certamente era de
ensino avançado, já que ainda havia outra funcionando na instituição, uma “Escola de
Desenho”, com oito aprendizes inscritos, de onze a quatorze anos. Cremos ser notável a
presença dessas duas classes, tendo em vista a importância do desenho técnico na for-
mação do pensamento técnico do mundo moderno, como tratado no capítulo anterior.
Como uma última atividade em termos de formação de pessoal, existia uma “Es-
cola de Primeiras Letras”, com cadeiras de leitura, caligrafia e aritmética prática, basi-
camente destinada a crianças que trabalhavam na instituição, com 121 alunos. A relação
de alunos dessa Escola é curiosa, pois foi a única fonte que encontramos com a idade
dos trabalhadores das empresas do governo. Não podemos deixar de notar que essa es-
cola obviamente se dedicava ao pessoal mais jovem e menos qualificado, mas para uma
forma moderna de ver, é notável a presença de crianças de sete e oito anos trabalhando
como artesões, mesmo em funções de certo risco e que exigiam força física, como os
carpinteiros de machado.48 Tal prática, aparentemente, não era adotada no Arsenal de
Guerra, como vemos no caso dos aprendizes da oficina de fundição, mencionados antes,
onde se fez questão de enviar para a Marinha estudantes que já tivessem certo desenvol-
vimento físico.
Deve-se frisar que a existência do Arsenal de Marinha, apesar de não ser o obje-
to de nosso estudo, é importante para entender o funcionamento da manufatura do Exér-
47
BRASIL – Ministério da Marinha. Relatório de 1845, op. cit. Mapa nº 3.
48
BRASIL – Ministério da Marinha. Relatório de 1845, op. cit. Mapa nº 5.
49
BRASIL – Ministério da Marinha. Relatório de 1851, op. cit. p. 14.
270
Capitulo 6 - A estrutura de produção de artigos para os militares no Brasil
cito. Por exemplo, um dos problemas sempre apontado como uma dificuldade para a
existência de manufaturas no País foi a falta de mão de obra especializada,50 tal como
será tratado em outro capítulo e como as relações de pessoal da Fundição da Ponta da
Areia poderiam dar a entender (ver Tabela 8), no entanto, os arsenais de marinha eram
grandes empregadores de pessoal – tudo indica que seriam os maiores do país, havendo
constantes trocas de pessoal, serviços e materiais entre essas instalações,51 como já tra-
tamos brevemente.
6.1.2 Os Trens
Desde o início da colonização a coroa instalou vários armazéns reais, que guar-
davam as armas e munições que seriam necessários para as tropas – já são citados no
início da colonização, como em 1552, quando o Governo Geral forneceu armas e muni-
ções para a capitania de São Vicente.52 No entanto, como colocado antes, um sistema de
simples armazéns não era suficiente, a existência de manufaturas para as forças armadas
se justifica quando vemos que não era viável economicamente ou administrativamente a
produção de bens de natureza única ou de necessidade imediata somente na Europa,
aguardando-se então seu envio pra o Brasil.
Dessa forma, são conhecidas algumas instalações para a feitura e/ou reparo de
artigos militares existentes, desde o século XVII, como os Trens – mesmo os armazéns
reais podiam, às vezes, executar essas funções, como pode ser visto no caso da nomea-
ção de um armeiro para os de Salvador, em 1655.53 No entanto, não foi feito um estudo
sobre esses trens e as informações disponíveis são extremamente vagas. Consultando os
catálogos do Arquivo Ultramarino, antes do período Pombalino, encontramos algumas
referências passageiras aos do Pará e Bahia, já no século XVII, além de Pernambuco e
Rio de Janeiro no século seguinte. Parece ser evidente que, pelo menos, as grandes capi-
tanias, que tinham outras subordinadas a elas, tinham essas organizações. Isso sem falar
de capitanias subordinadas que as vezes também as tinham: Santos (SP) tinha uma des-
50
Entre outros, ver: FERREIRA, Armando Amorim. A indústria Naval Militar no Brasil através do Tem-
po. Revista Marítima Brasileira. 4º Trimestre, 1980. Rio de Janeiro: SDGM, 1980. p. 22.
51
BRASIL – Arsenal de Guerra. Ofício do diretor do Arsenal de Guerra, Major José de Vasconcellos
Menezes Albuquerque, ao Ministro da Guerra, Conde de Lages, sobre contratação de pessoal do
Arsenal de Guerra pelo de Marinha. Rio de Janeiro, 5 de novembro de 1839. Mss. ANRJ.
52
CERTIDÃO que passou o provedor mor ao provedor Antônio Cubas provedor da fazenda de Sua Alte-
za nas capitanias de São Vicente e Santo Amaro, Salvador, 13 de fevereiro de 1552. DOCUMEN-
TOS históricos. Vol. XIV. Rio de Janeiro: Monroe, 1929. p. 399.
53
REGISTRO de uma patente do Conde de Atouguia em que nomeia Antônio Parente por armeiro de Sua
Majestade. D. Jerônimo de Ataíde. Salvador, 16 de novembro de 1655. DOCUMENTOS Históricos.
Vol. XIX. Rio de Janeiro: Monroe, 1930. p. 436.
271
Capitulo 6 - A estrutura de produção de artigos para os militares no Brasil
sas instalações desde pelo menos 1743, que é a data de construção do prédio ainda hoje
existente, tombado pelo IPHAN.
54
REINO UNIDO – Real Junta de Fazenda dos Arsenais do Exército, Fábricas e Fundições. Ofício da
Real junta ao Rei encaminhando lista de gêneros que se acham prontos para a capitania das Alago-
as. Rio de Janeiro, 10 de outubro de 1818. Mss. ANRJ, IG7 1.
272
Capitulo 6 - A estrutura de produção de artigos para os militares no Brasil
entre elas, apesar do Arsenal do Rio às vezes fornecer materiais para outras instituições
do tipo. Um desses casos foi o já citado de Alagoas, outro quando foi preparado o mate-
rial para um pequeno parque de campanha, incluindo objetos para um laboratório e fer-
ramentas de ferreiros, serralheiros, funileiros, tanoeiros, carpinteiros de machado e de
obra branca, tudo seguindo com os reforços para o exército que foi combater no Rio
Grande do Sul em 1776, 55 ano da fundação do Trem de Porto Alegre. Mas essa situação
era atípica e devia-se ao fato do Rio de Janeiro ser responsável pelo fornecimento de
Santa Catarina e Rio Grande do Sul.
Esse sistema de armazéns do Exército era complementado por uma rede de de-
pósitos de pólvora, todas as províncias tendo pelo menos um deles – no Rio de Janeiro
havia, funcionando ao mesmo tempo, vários deles (Boqueirão, Santa Bárbara, Fortaleza
de Santa Cruz e Andaraí).
55
SILVA, Crispim Teixeira, Sargento Mor Intendente. Relação das Obras, Munições e mais Petrechos
que se tem feito no Trem de S. Majestade Fidelíssima do Rio de Janeiro, no tempo Governo do Il.mo e
Ex.mo Sr. Marquês do Lavradio Vice Rei e Capitam General de Mar e Terra do Estado do Brasil,
continuado de 31 de outubro de 1769, até 31 de Agosto de 1776. Mss. Coleção Particular.
56
BRASIL – Decreto de 21 de fevereiro de 1832. Dá Regulamentos para o Arsenal de Guerra da Corte,
Fábrica da Pólvora da Estrela, Arsenais de Guerra e Armazéns de depósitos de artigos bélicos.
57
O depósito de Pelotas aparece apenas em um documento que localizamos, com a informação que lá se
faziam lanças, o que não deveria ser o caso de um depósito de artigos bélicos. BRASIL – Arsenal de
Guerra de Porto Alegre. Ofício do diretor do Arsenal ao Comandante das Armas. Porto Alegre, 12
de julho de 1853. Mss. ANRJ. IG7 460.
273
Capitulo 6 - A estrutura de produção de artigos para os militares no Brasil
Outra tentativa foi feita no mesmo ano em Minas Gerais, sobre a qual temos
mais informações: em novembro uma espingarda feita na capitania foi enviada para ser
examinada pelo general Napion, 59 o inspetor geral da artilharia, e no mês seguinte um
“aviso régio determinava ao Governador da Capitania informar se em cada semestre
poderiam ser aprontados mil fechos de espingarda”.60
58
GAZETA do Rio de Janeiro, nº 39, 15 de maio de 1811. p. 3.
59
Carlo Gerolamo Antonio Maria Galleani Napione di Coconato, filho caçula do conde de Coconato.
Com treze anos assentou praça como cadete de artilharia em 1770, frequentando a Escola Real Teó-
rica e Prática de Artilharia, onde foi discípulo de Alessandro Vittorio Papacino D’Antoni. Se formou
com especialização em mineração, química e metalurgia. Mais tarde foi instrutor da escola de arti-
lharia e catedrático de química, tendo participado de comissões científicas e publicado trabalhos na
área de mineralogia. Em 1790, já promovido a capitão, foi indicado para trabalhar no Arsenal do Pi-
emonte, onde aperfeiçoou os processos metalúrgicos e de fabricação de Pólvora. Cinco anos depois,
foi promovido a major e nomeado Inspetor do Conselho das Minas. Com a conquista do Piomonte
pelos franceses em 1798, ele passou ao serviço de Portugal em 1800, recebendo a patente de tenente-
coronel no ano seguinte. Foi nomeado Inspetor (diretor) do Arsenal de Lisboa em 1801, com a fun-
ção de modernizar os processos manufatureiros lá. Em 1807 foi promovido a brigadeiro, vindo para
o Brasil com a família real no ano seguinte. No País, foi Inspetor-Geral da Real Junta Fazenda dos
Arsenais, Fábricas e Fundições; Inspetor-Geral de Artilharia; membro do Conselho Supremo Militar;
Inspetor e Fiscal da Real Fábrica de Ferro de São João de Ipanema; e Presidente da Junta Militar da
Academia Real Militar. Faleceu como tenente-general (general de divisão) em 1814. NAPIONE,
Carlo Antonio. Dizionario Biografico degli Italiani - Volume 77 (2012). https://goo.gl/bVv9Yk
(acesso em abril de 2017).
60
DORNAS Filho, João. O ouro das Gerais e a civilização da capitania. São Paulo: Companhia Editora
Nacional, 1957. p. 159.
274
Capitulo 6 - A estrutura de produção de artigos para os militares no Brasil
atualmente fabricar espingardas novas; creio, porém, que será muito útil aproveitar o
grande número de canos, baionetas, varetas e ferragens que existe nos arsenais em bom
estado”.61 No mesmo ano, havia 17.335 espingardas em depósito na Conceição, das
quais apenas 1.772 (10%) prontas para uso. Havia também 5.365 canos em depósito,
mas apenas 853 fechos, todos precisando de conserto.62
Desta forma, se solicitou que a empresa de Minas Gerais, situada em Vila Rica,
se concentrasse na fabricação dos mecanismos de disparo, a manufatura devendo ficar
sob a administração do barão de Eschwege, o diretor da Fábrica de Ferro Patriótica,
como tratamos no capítulo 5. Em 21 de janeiro de 1812 foi emitida uma carta régia diri-
gida ao Conde da Palma, capitão general de Minas Gerais, para criar uma escola de ser-
ralheiros e espingardeiros para preparar os fechos, aproveitando
Em abril, o capitão general informou que tinham ido para a corte os dois mestres
espingardeiros da capitania, quatro oficiais de serralheiro e quatro ferreiros, para se
apresentarem na Fortaleza da Conceição, afim de “aprenderem e se aperfeiçoarem na
arte de fabricar espingardas”.65
61
ANAIS do Senado, tomo I. Brasília: Secretaria de Anais, 1978. Sessão de 3 de abril de 1843. p. 66.
62
BRASIL – Ministério da Guerra. Relatório da repartição dos negócios da Guerra apresentado à As-
sembleia Geral Legislativa na 3ª sessão da 5ª legislatura pelo Respectivo ministro e secretário de
estado dos negócios, Jerônimo Francisco Coelho. Rio de Janeiro: Tipografia Nacional, 1844. Mapa
5.
63
PORTUGAL – Carta Régia de 21 de janeiro de 1812. Manda formar na Capitania de Minas Gerais
uma escola de serralheiros, oficiais de lima e espingardeiros para se ocuparem de preparar fechos
de armas.
64
id.
65
FONSECA, Celso Suckow. História do ensino industrial no Brasil. Vol. I. Rio de Janeiro: Rio de Ja-
neiro: s.ed., 1961. p. 97.
275
Capitulo 6 - A estrutura de produção de artigos para os militares no Brasil
Não sabemos bem por que, em agosto de 1812 se mandou suspender a instalação
da fábrica de fechos. Mesmo assim, o conde de Palma tinha ordenado que um mestre
local fabricasse espingardas completas, que custariam 8.000 réis cada, feitas com o ferro
obtido nas forjas locais. Com a entrega dessas armas, acabou a iniciativa de fabricação
de armas em Minas Gerais. 66 Outra tentativa seria feita em São Paulo.
Pelo contrato, os armeiros deveriam seguir para São Paulo, levando as máquinas
que tinham trazido da Europa e que estavam sem uso na Fortaleza da Conceição.70 Na
capitania, montariam uma fábrica de armas – parece que a intenção era que esta fosse
instalada junto da Fábrica de Ferro de Ipanema, onde haveria matéria prima e força mo-
triz, mas não temos como ter certeza disso. O fato é que os armeiros foram para a capi-
tania em 1818, se estabelecendo na capital, no Trem de São Paulo, que tinha sido criado
em 1798, junto com um laboratório de fogos artificiais e que funcionava junto do quar-
tel da cidade. O local, novamente, não tinha acesso a um rio que pudesse mover as má-
66
FONSECA, op. cit. p. 99.
67
REINO UNIDO – Ministério da Guerra. Aviso do ministro dos negócios de estrangeiros e a Guerra.
Aviso do marquês do Aguiar à Junta de Arsenais, mandando remeter para a capitania de Minas Ge-
rais uma broca de cano de espingarda e um artífice alemão que trabalha na Real Casa das Armas
da Fortaleza da Conceição. Rio de Janeiro, 17 de abril de 1816. Mss. ANRJ. IG7 33.
68
SAINT-HILAIRE, Augusto de. Viagem à Província de São Paulo e resumo das viagens ao Brasil,
Província Cisplatina e missões do Paraguai. São Paulo: Livraria Martins, 1972. p. 163.
69
BOLETIM do arquivo histórico militar, 16º volume. Vila Nova do Famalicão: Minerva, 1946. p.13
70
REINO UNIDO – Ministério da Guerra. Aviso do ministro dos negócios estrangeiros e da guerra para
a Real Junta do Arsenal do Exército, Fábricas e Fundições, sobre novo contrato dos armeiros prus-
sianos e envio de máquina de brocar cano para São Paulo. Conde da Barca. Rio de Janeiro, 17 de
abril de 1817. Mss. ANRJ. IG7 34.
276
Capitulo 6 - A estrutura de produção de artigos para os militares no Brasil
quinas, o problema básico dos motores continuando. A solução foi remeter a broca hi-
dráulica que deveria fazer os canos para Ipanema,71 enquanto os armeiros das outras
especialidades ficavam na capital – no mínimo, isso indica uma divisão de trabalho nes-
sa manufatura.
71
ATA da 43ª sessão do governo provisório de São Paulo, São Paulo, 6 de outubro de 1821. DOCU-
MENTOS interessantes, vol. 11. São Paulo: Cândido Filho, 1913. p. 68.
72
SAINT-HILAIRE, op. cit. p. 163.
73
SPIX, J. B. von & MARTIUS, C. F. P. von. Viagem pelo Brasil: 1187-1820. Vol. I. São Paulo: Melho-
ramentos, 1976. p. 125.
74
AZEVEDO, Aroldo. A cidade de São Paulo: aspectos de geografia urbana. São Paulo: Companhia
Editora Nacional, 1958. p. 27.
75
SAINT-HILAIRE, op. cit. p. 163.
76
BOLETIM, op. cit. pp. 14-15.
277
Capitulo 6 - A estrutura de produção de artigos para os militares no Brasil
mas de ajuste à sua situação, Saint-Hilaire escrevendo que a embriaguez era comum
entre eles.77
A fábrica de São Paulo, quando foi visitada por Saint-Hilaire em 1820, dois anos
depois de sua fundação, tinha produzido apenas seiscentas armas, feitas pelo padrão
prussiano, um número muito reduzido para os esforços feitos, o que resultava em um
custo muito elevado por cada espingarda, levando em conta as imensas vantagens dadas
aos armeiros europeus. A eficiência, contudo, aumentou, aparentemente depois da de-
missão dos estrangeiros: em um relatório escrito muitos anos depois da fábrica ter fe-
chado, se informa que a produção do estabelecimento foi suficiente para armar três bata-
lhões e um esquadrão de cavalaria em 1822-24,78 o que pode ser avaliado entre 1.300 e
2.600 armas. Consideramos que isso ainda era pouco para pelo menos dois anos de tra-
balho – as armas feitas foram tão poucas que não se conhecem exemplares delas em
coleções públicas ou particulares hoje em dia.
77
id. p. 163.
78
Relatório sobre a Fábrica de ferro de Ipanema. Guilherme Schüch de Capanema. 31 de março de 1864.
In: BRASIL – Ministério da Guerra. Relatório apresentado à Assembleia Geral Legislativa na se-
gunda sessão da décima-segunda legislatura pelo ministro e secretário de estado dos negócios da
Guerra, José Marianno de Matos. Rio de Janeiro: Laemmert, 1864. p. 30.
79
MATOS, Raimundo José da Cunha. Memória estatística, econômica e administrativa sobre o arsenal
do exército, fábricas e fundições da cidade do Rio de Janeiro. Vila Nova de Famalicão: s.ed. 1939.
p. 32.
278
Capitulo 6 - A estrutura de produção de artigos para os militares no Brasil
Outra razão que fazia com que houvesse vários laboratórios espalhados pelo País
era sua grande simplicidade: a feitura de munições de armas portáteis nessa época im-
plicava em três atividades principais. A primeira era, literalmente, a de embrulhar em
papel a pólvora e a bala para fazer o cartucho. Em segundo lugar, os laboratórios enchi-
am com pólvora alguns tipos de projéteis específicos e de uso muito ocasional, como as
bombas e granadas. Finalmente, se faziam algumas munições e artefatos de uso especi-
80
O autor refere-se à armas de baixa qualidade, produzidas na Europa para o comércio de escravos. As
vezes, comerciantes pediam armas inutilizadas da Conceição para esse mesmo fim. Ver: PETIÇÃO
de Manoel Rodrigues Teixeira para comprar cem Espingardas Inúteis das que se acham no Depósito
da Fortaleza da Conceição cujas espingardas pretende o suplicante transportar para a Costa da África
para o seu produto vir em marfim ou cera. Rio de Janeiro, 17 de agosto de 1835. Mss. ANRJ. IG7
320.
81
id. p. 30.
82
BRASIL – Ministério da Guerra. Relatório do ano de 1830. s.n.t. p. 10.
83
Entre outros, ver: BRASIL – Ministério da Guerra. Aviso do Ministro da Guerra Manoel da Fonseca
Lima e Silva ao Sr. José de Vasconcelos Meneses de Drummond [diretor do Arsenal de Guerra], au-
torizando a venda de 1100 cartuchos desembalados de adarme 12 para a Procissão do Santíssimo
Sacramento. Rio de Janeiro, 4 de junho de 1836. Mss. ANRJ, IG7 321.
279
Capitulo 6 - A estrutura de produção de artigos para os militares no Brasil
Este tipo de unidade de produção começou a ser substituído com a evolução das
técnicas: a partir de 1851 o exército adotou de forma limitada armas de fulminante, que
disparavam usando uma cápsula de cobre com uma pequena quantidade de fulminato de
mercúrio (Hg(CNO)2), uma substância altamente explosiva e que, mais importante, ne-
cessitava de um laboratório químico para ser preparada. As próprias cápsulas onde o
84
BRASIL – Arsenal de Guerra. Ofício do diretor do Arsenal, Marechal de Exército José Maria da Silva
Bittencourt ao ministro da Guerra. Rio de Janeiro, 26 de agosto de 1852. Mss. ANRJ, IG7 13.
85
BRASIL – Arsenal de Guerra. Relatório do Arsenal de Guerra, 30 de janeiro de 1860. Mss. ANRJ,
IG7 17.
86
BRASIL – Tesouraria da Fazenda do Exército no Pará. Relatório da inspeção a que, por ordem do
Governo Imperial, se procedeu no Arsenal de Guerra da Província do Pará. Coronel Francisco Er-
nestino Ferreira de Araújo, Francisco Pedro Gurjão, chefe de seção da Tesouraria da Fazenda. Be-
lém, 5 de dezembro de 1862. Mss. ANRJ, coleção Polidoro, maço 10.
280
Capitulo 6 - A estrutura de produção de artigos para os militares no Brasil
produto era colocado eram feitas em máquinas que cortavam e dobravam o cobre na
forma necessária. Isso fez com que a produção de munições começasse a se concentrar
em instalações com caráter mais fabril, a primeira delas sendo o Laboratório Pirotécnico
do Campinho, RJ, criado em 1851 e que será tratado quando falarmos das repartições do
Arsenal de Guerra. Os laboratórios pirotécnicos comuns, das províncias, continuaram a
existir até a década de 1870, quando a produção de munição passou a se concentrar em
três unidades, maiores, as do Campinho, Cuiabá e Menino de Deus (RS), já totalmente
mecanizadas.
A companhia começou a produzir ferro em 1813, mas não usando os altos fornos
projetados por Varnhagen (ver Figura 34), que poderiam resultar na fundição integral do
metal e sim um sistema mais primitivo, de forjas catalãs. Eschwege e o Senador Ver-
gueiro acusaram o administrador inicialmente encarregado do empreendimento, o sueco
87
O pai do historiador, Visconde de Porto Seguro, que nasceu em Ipanema.
88
PORTUGAL – Carta Régia de 4 de dezembro de 1810. Manda fundar um estabelecimento montanhis-
tico em Sorocaba para extração do ferro das minas que existem na Capitania de S. Paulo.
281
Capitulo 6 - A estrutura de produção de artigos para os militares no Brasil
Hedberg, de malversação de recursos,89 os trabalhos sob sua direção não tendo tido bons
resultados. Os problemas foram tais que o general Napion, inspetor geral da Artilharia,
foi para Ipanema em 1812, tentar os resolver, sem conseguir. Varnhagen finalmente
assumiu a administração geral dos trabalhos três anos depois e implementou seu projeto,
com a construção de dois altos fornos, capazes de uma produção mais elevada.
Ferro em
Ano Soma ton. % modelado Empreiteiros
Barra ton. Modelado ton.
1823 46 99 145 68% 190
1824 32 122 154 79% 320
1825 36 101 137 74% 350
1826 47 45 92 49% 427
1827 44 86 130 66% 500
93
Tabela 11 – Produção de ferro da Fábrica de Ipanema – 1823-1827.
A menção a objetos modelados é interessante, pois mostra que a maior parte da produção era de produtos
acabados, como munições, feitos pela modelagem em caixa de areia. Para isso, a fábrica tinha entre seus
operários um mestre modelador, o alemão Estevan Schmit, que foi contratado com a condição de fazer
seu ofício e “prestar-se à organização de fundições tanto para munição e artilharia, como para outros
fabricados ordinários e usuais”.94
89
ESCHWEGE, W. L. von. Pluto Brasiliensis. Vol. II. São Paulo: Companhia Editora Nacional, 1944.
pp. 368 e 369 e VERGUEIRO, Nicolau Pereira de Campos. História da Fábrica de Ipanema e defe-
sa perante o Senado. Brasília: Senado Federal, 1979. pp. 21-22
90
O documento é exótico, pois trata de uma reclamação feita pelos oficiais de milícias quanto ao excessi-
vo número de empreiteiros contratados pela fábrica, pois esses, com base na legislação de incentivo
às manufaturas, estavam isentos do recrutamento, atrapalhando o serviço militar na região. BRASIL
– Junta da Fábrica de São João de Ipanema. Atas do Conselho da Presidência da Província de São
Paulo. 85ª Sessão. 18 de outubro de 1828. DOCUMENTOS interessantes. Vol. 86. São Paulo: s.ed.,
1961. p. 162.
91
ESCHWEGE, op. cit. p. 427.
92
Em 1821, o diretor do Arsenal de Guerra do Rio apontava um erro na feitura de “avultadíssimo número
de projéteis fundidos na fábrica de Sorocaba”, o autor especificando que isso não fora falta de Var-
nhagen, mas um erro oriundo de não haver uma “ordenança” (regulamento) com as dimensões da ar-
tilharia em uso no País. MATOS, 1939, op. cit. p. 36.
93
BRASIL – Junta da Fábrica de São João de Ipanema. 18 de outubro de 1828, op. cit. Uma relação da
produção da manufatura, de 1828, informa que tinham sido fundidas 152 toneladas de ferro naquele
último ano. CONTA dos produtos fundidos na próxima passada campanha de forno alto desde 5 de
outubro de 1827 até 18 de maio de 1828. Fábrica de Ferro de São João de Ipanema, 17 de setembro
de 1828. O FAROL Paulistano, nº 155, São Paulo 11 de outubro de 1828. p. 648.
94
BRASIL – Legação do Reino Unido de Portugal, Brasil e Algarve em Berlim. Contrato com o mestre
moldador Estevan Schmid. VERGUEIRO, op. cit. p. 43.
282
Capitulo 6 - A estrutura de produção de artigos para os militares no Brasil
Apesar dessa tabela, se considera que depois da volta de Varnhagen para a Eu-
ropa, em 1821, a fábrica entrou em decadência, por problemas em erro no projeto do
açude que forneceria água para as máquinas; pelo esgotamento das florestas que forne-
ciam carvão e, principalmente, “pela incompetência dos administradores”.95 A direção
do estabelecimento realmente apresentou problemas: havia a proposta de fabricar peças
de espingardas em Ipanema e foram enviadas máquinas para isso, mas elas nunca che-
garam a ser instaladas. Também houve o problema da transferência da Fábrica de Ar-
mas de São Paulo, já citado. O torno de brocar canhões que estava no Arsenal de Guer-
ra da Corte e que foi enviado para Ipanema, igualmente não foi montado.96
95
ESCHWEGE, op. cit. p. 415.
96
A EXPOSIÇÃO Nacional - XXI. Diário do Rio de Janeiro. Ano XLII, nº 71. Rio de Janeiro, 13 de mar-
ço de 1862.
97
FÁBRICA de ferro de Ipanema, projeto do capitão Frederico L. G. Varnhagen em 1810. Cópia de João
Sá Filho. Rio de Janeiro, 1916. Mss. Arquivo Histórico do Exército.
98
BRASIL – Fábrica de Ferro de S. João de Ipanema. Relação e importância dos objetos ora remetidos
deste Armazém, por ordem superior ao Arsenal de Guerra do Rio de Janeiro. Francisco Cândido
Sagaterra, Almoxarife. Ipanema, 23 de agosto de 1838. Mss. ANRJ. IG7 323. Essa remessa, uma de
várias do mesmo ano, trata de munição, com o peso de 3.500 kg.
99
BRASIL – Fábrica de Ferro de S. João de Ipanema. Ofício de João Bloem, major diretor da Fábrica de
Ipanema ao Ministro da Guerra, Conde de Lages, pedindo conhecimento de material enviado ao Ar-
senal de Guerra da Corte. Ipanema, 7 de setembro de 1839. Mss. ANRJ. IG7 325.
283
Capitulo 6 - A estrutura de produção de artigos para os militares no Brasil
100
Peça número RG 3739.
101
Peça número RG 3741.
102
BRASIL – Arsenal de Guerra. Ofício do diretor do Arsenal, José de Vasconcelos Menezes de Drum-
mond ao Ministro da Guerra. Rio de Janeiro, 6 de março de 1837. Mss. ANRJ, IG7 20.
284
Capitulo 6 - A estrutura de produção de artigos para os militares no Brasil
Sorocaba para a Corte, que para munição era de 320 réis por arroba, ou seja, 10 réis por
libra, valor que tornaria o produto menos competitivo com o importado, a não ser que
fosse implantada uma taxa de importação.103 De qualquer forma, os custos de produção
de Ipanema não eram absurdamente elevados, sendo até competitivos com os importa-
dos, em certas circunstâncias.
Tudo indica que na administração de Bloem teria havido uma recuperação na si-
tuação de Ipanema – chegou-se até a se ordenar um ensaio de fabricação de fechos de
clavinas e pistolas em 1841, produtos altamente técnicos.104 Contudo, o major Bloem
apoiou a Revolução Liberal de 1842 e foi demitido com a derrota dos revolucionários.
Depois disso a Fábrica não teve o mesmo desenvolvimento, não sendo dirigida por pes-
soal administrativo habilitado. Isso é um problema recorrente nas forças armadas até
hoje, onde é comum a troca regular de diretores de organizações militares. Nem sempre
uma pessoa com os conhecimentos adequados assumia a responsabilidade por um servi-
ço e, mais importante, isso criava dificuldades em muito a manutenção de uma política
regular e constante para uma instalação. Esse fator era ainda mais complicado com a
questão política, pois os ministros da Guerra se alternavam com uma rapidez muito
grande, sendo que drásticas alterações na política das forças armadas eram usuais, mui-
tas vezes se abandonando grandes investimentos feitos, por não se enquadrarem na vi-
são de um administrador que substituía outro. Isso já era reconhecido no século XIX,
como foi colocado em uma sessão do Senado, em 1843:
103
O preço do frete consta de BRASIL – Fábrica de Ferro de S. João de Ipanema. Ofício de João Bloem,
7 de setembro de 1839, op. cit. Este, contudo, refere-se ao transporte de munição, objetos bem me-
nos complicados de transportar que canos.
104
BRASIL – Ministério da Guerra. Aviso do Ministro, José Clemente Pereira, ao Diretor do Arsenal de
Guerra, José dos Santos Oliveira, mandando entregar ao Sr. Major João Bloem modelos das clavi-
nas e pistolas. 16 de setembro de 1841. Mss. ANRJ, IG7 328.
105
Discurso de Holanda Cavalcanti. ANAIS do Senado, op. cit. sessão de 3 de abril, p. 48.
285
Capitulo 6 - A estrutura de produção de artigos para os militares no Brasil
dos nas fundições do Arsenal de Marinha para lá,106 a lei de orçamento de 1850107 auto-
rizou que o governo arrendasse a Fábrica de Ipanema para particulares. Não se conse-
guiu fazer essa privatização, mas deve-se dizer que isso não implicava na descrença do
governo na proposta de haver a autossuficiência na produção de ferro, tanto é que a fá-
brica não foi desativada totalmente. Em 1859 o ministro da guerra, depois de mencionar
que a dificuldade dos transportes servia de proteção às forjas em Minas Gerais, escrevia:
106
BRASIL – Arsenal de Guerra. Ofício do diretor do Arsenal, José Maria da Silva Bittencourt ao Minis-
tro da Guerra, Manoel Felizardo de Souza e Mello, sobre menores instruídos no Arsenal de Mari-
nha. Rio de Janeiro, 30 de setembro de 1850. Mss. ANRJ. IG7 11.
107
BRASIL – Lei nº 555 de 15 de Junho de 1850. Fixa a despesa e orça a receita para o exercício de
1850 a 1851.
108
BRASIL – Ministério da Guerra. Relatório do ministério da Guerra apresentado à Assembleia Geral
Legislativa na terceira sessão da décima legislatura pelo ministro Manoel Felizardo de Souza e
Mello. Rio de Janeiro: Laemmert, 1859. p. 15.
286
Capitulo 6 - A estrutura de produção de artigos para os militares no Brasil