Você está na página 1de 287

CASTELOS A BOMBORDO

ETNOGRAFIAS DE PATRIMÓNIOS AFRICANOS E MEMÓRIAS PORTUGUESAS


CASTELOS
A BOMBORDO
COORDENAÇÃO
ETNOGRAFIAS
MARIA CARDEIRA
DA SILVA
DE PATRIMÓNIOS AFRICANOS
E MEMÓRIAS PORTUGUESAS
CASTELOS
A BOMBORDO

ETNOGRAFIAS DE PATRIMÓNIOS AFRICANOS


E MEMÓRIAS PORTUGUESAS

COORDENAÇÃO
Maria Cardeira da Silva

Castelos a Bombordo - FINALx.indd 3 27-03-2013 16:56:58


Publicação financiada pela Fundação para a Ciência e Tecnologia no âmbito do projecto Castelos
a Bombordo II. Práticas e Retóricas da Monumentalização do Passado Português, Cooperação Cultural
e Turismo em Contextos Africanos. PTDC/ANT/67235/2006.

TÍTULO
Castelos a Bombordo
Etnografias de patrimónios africanos e memórias portuguesas

COORDENAÇÃO
Maria Cardeira da Silva

EDIÇÃO
© Centro em Rede de Investigação em Antropologia – CRIA, 2013
Todos os direitos reservados

PAGINAÇÃO E CAPA
Gráfica 99

IMAGEM DA CAPA
Tabuleiro do jogo “Cruzeiro ao Mundo Português”, © MAJORA
(O editor agradece à MAJORA a autorização para a utilização da imagem)

ISBN
978-989-97179-1-6

IMPRESSÃO
Cafilesa

Fevereiro de 2013

Dep. Legal n.º ??? ???/13

Castelos a Bombordo - FINALx.indd 4 27-03-2013 16:57:01


ÍNDICE

LARGADA . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 9

A NORTE DE ORIENTE, A SUL DE OCIDENTE . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 17

O sentido dos árabes no nosso sentido. Dos estudos sobre árabes e sobre
muçulmanos em Portugal. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 19
Maria Cardeira da Silva

“Desorientalização”, mestiçagem e autoctonia: o discurso historiográfico


moderno sobre a nação periférica . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 43
Ana Rita Moreira

Mouros, Ventres e Encantadores de Serpentes. Representações do mundo


árabe nas recriações históricas em Portugal e Espanha . . . . . . . . . . . . . . 64
Paulo Raposo

MARROCOS A BOMBORDO E A ESTIBORDO . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 85

A herança patrimonial portuguesa em Marrocos. Uma perspetiva


contemporânea . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 87
Romeo Carabelli

O Castelo Abandonado. Percepções do passado português no discurso


patrimonial dos judeus de Marrocos (século XX) . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 107
José Alberto Tavim

Marrocos no Brasil: Mazagão (Velho) do Amapá em festa – a festa


de São Tiago. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 124
Maria Cardeira da Silva e José Alberto Tavim

Castelos a Bombordo - FINALx.indd 5 27-03-2013 16:57:01


6 • CASTELOS A BOMBORDO

MAURITANIA A BOMBORDO . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 153

Património, memória, Estado: notas sobre o património mauritano


e os seus usos . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 155
Abdel Wedoud Ould Cheikh

Portugal (ainda) nos confins saarianos: definições contemporâneas


do encontro pré-colonial no sudoeste da Mauritânia. . . . . . . . . . . . . . . . 172
Francisco Freire

Contradições e desafios entre os Imraguen da costa atlântica mauritana.


Entre as reconfigurações identitárias e a gestão participativa. . . . . . . . . . 192
Joana Lucas e Raquel Carvalheira

Rotas, mercados e eliK. Das caravanas à apropriação local da goma-arábica


na modernidade de um oásis mauritano . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 211
Amélia Frazão-Moreira

NAVEGAR À VISTA: NAVES, CASTELOS E OUTROS CRONOTOPOS


DOS REGIMES DO TURISMO E DO PATRIMÓNIO EM ÁFRICA. . . . . . . . 231

Existências e utilizações contemporâneas da Casamansa “portuguesa” . . . 233


Francisco Leitão

A Ilha de Moçambique: o património ou os usos da “comunidade”. . . . . 248


Carla Almeida

Paquetes do Império. O “Primeiro Cruzeiro de Férias às Colónias” . . . . . 261


Maria Cardeira da Silva e Sandra Oliveira

AUTORES. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 285

Castelos a Bombordo - FINALx.indd 6 27-03-2013 16:57:01


Os portugueses têm a paixão das fortalezas.
(...) Não é verdade que só as fortalezas, com seus microcosmos bem
fechados com passadiços e vigias, rondas e quartos, estão para a
terra como os navios estão para o mar?

OLIVIER ROLIN, O meu Chapéu Cinzento.


Porto: Asa, 1995

Castelos a Bombordo - FINALx.indd 7 27-03-2013 16:57:01


Castelos a Bombordo - FINALx.indd 8 27-03-2013 16:57:02
LARGADA

Castelos a Bombordo – rota e deriva

A silhueta da nave como transporte de traços culturais tem de alguma forma cor-
poralizado, desde a publicação do Black Atlantic (Gilroy 1993), a fluidez das diásporas.
Os projetos de investigação Castelos a Bombordo (I e II), financiados pela Fundação
para a Ciência e Tecnologia, recorreram ainda no título à mesma metáfora – associando-
-lhe a dos Castelos – para explorar outros trânsitos, de outros colonialismos, noutras
direções e sentidos que não os que Gilroy perseguiu. As investigações centraram-se
primeiro nas rotas que ligam historicamente Portugal a alguns países árabes e islâmi-
cos, balizadas por práticas de cooperação patrimoniais contemporâneas (Marrocos,
Mauritânia, Irão)1; alargaram-se, depois, a outros países africanos (Senegal, Cabo
Verde, Guiné-Bissau, Moçambique) investindo na análise de memórias, nostalgias e
outros recursos patrimoniais, e às implicações dos regimes do turismo que a estes,
muitas vezes, estão associados2.
O objetivo básico das pesquisas era o de permitir uma análise das reconfigurações
étnicas e nacionais encenadas com base em novas figurações identitárias (do que é
português, árabe, muçulmano, africano, diaspórico, nacional) construídas em parceria
através de processos da arqueologia e da patrimonialização espoletados por práticas
atuais de cooperação e diplomacia e/ou lubrificadas pelo turismo internacional. Mas
não investimos em ruminações sobre ruínas (Stoler 2008), nem nos balizámos por ins-
pirações teóricas globais do pós-colonialismo cuja força centrífuga, como já foi dito
(Vale de Almeida 2000, Ferreira 2007, Medeiros 2006), pode irradiar das etnografias
as especificidades do que foi o nosso império e seus encontros. À escala local, aquela
que acabámos por privilegiar, o objetivo de partida era o de entender a gestão quoti-

1
Castelos a Bombordo I. Práticas de monumentalização do passado e discursos de cooperação cultural entre Portugal e os países
árabes e islâmicos (POCTI/ANT/48629/2002). Instituto de Investigação Científica e Tropical, Faculdade de Ciências Sociais e
Humanas da Universidade Nova de Lisboa. Investigadora responsável, Maria Cardeira da Silva.
2
Castelos a Bombordo II. Práticas e Retóricas da Monumentalização do Passado Português, Cooperação Cultural e Turismo em
contextos africanos (PTDC/ANT/67235/2006). Centro em Rede de Investigação em Antropologia, Faculdade de Ciências
Sociais e Humanas da Universidade Nova de Lisboa, Escola Superior de Gestão, Hotelaria e Turismo da Universidade do
Algarve. Investigadora responsável, Maria Cardeira da Silva.

Castelos a Bombordo - FINALx.indd 9 27-03-2013 16:57:02


10 • CAST ELOS A BOMBORDO

diana dos novos regimes do património e do turismo, especialmente em contextos de


pobreza, e o modo como ela é determinada por – e afeta – conformações culturais e
normas e categorizações sociais locais prévias. Daí partimos, nalguns casos mais do
que noutros, para exercícios empíricos (mas não empiricistas) de imaginação antropo-
lógica (Comaroff e Comarof 2003). E são apenas esses exercícios que podem ser vistos
como pequenos contributos para uma eventual teorização do pós-colonialismo portu-
guês. O resto é etnografia, mas não nos pareceu isso irrelevante ou, de modo algum,
redundante (Comaroff e Comaroff 2003).
Eminentemente antropológicos, estes projetos tiveram, contudo, uma abordagem mul-
tidisciplinar, aliando à Antropologia a História e a Geografia. Entre outras coisas repre-
sentam um importante passo no sentido da análise crítica das relações políticas de
cooperação cultural com países com quem Portugal manteve relações históricas e permitirá
monitorizar os seus efeitos sociais e culturais. Nesse sentido, recuperam uma valência cos-
mopolita crítica da Antropologia relativamente às relações internacionais, do turismo e da
cooperação, abrindo espaço à participação de jovens investigadores num registo e em con-
textos em que, em Portugal, a importância da disciplina tem sido relativamente ignorada.
As intenções de investigação sofreram alguns constrangimentos. Uns justificados por
restrições orçamentais impostas pela FCT, outros relacionados com imponderáveis que afe-
taram de forma dramática a equipa: o falecimento de Jill Rosemary Dias. Outros foram,
ainda, determinados por situações de instabilidade política nos contextos em análise ou
pelas próprias contingências etnográficas dos terrenos progressivamente analisados. Mas os
condicionamentos apontados ajudaram-nos a lembrar que, mesmo em Antropologia, “nave-
gar é preciso” e que a boa etnografia só se escreve com uma enorme disponibilidade para
a deriva: só ela, e os desvios e encontros fortuitos a que obriga, desenham rotas seguras.

Castelos a Bombordo – o livro

Isto não é um diário de bordo. Nem, em todo o caso, esgota todos os registos e
publicações que resultaram das investigações (e que podem ser consultados em for-
mato panorâmico mais adequado em http://castelos-a-bombordo.tiddlyspot.com e em
http://castelos-a-bombordo- ii.referata.com/). Registamos aqui em livro apenas alguns
dos momentos que nos pareceram significativos da reflexão que resultou da nossa
cabotagem etnográfica.
Preparando a partida, o Paulo Raposo, a Ana Rita Moreira e eu incluímos numa
primeira parte – A Norte do Oriente, a Sul do Ocidente – algumas reflexões cardeais
sobre os sentidos que os outros, que colocamos noutros lugares, têm para nós, aqui.
Assim se faz uma cartografia de expressões etnogenealógicas, académicas, diplomáti-

Castelos a Bombordo - FINALx.indd 10 27-03-2013 16:57:02


LARGADA • 11

cas, performativas e outras que nos preparam para a fantasia de alguns dos mapas em
que, de seguida, navegaremos.
Logo a Sul, a segunda parte do livro: Marrocos a Bombordo e a Estibordo.
Foi Mazagão – um dos casos mais monumentais da “Herança patrimonial portu-
guesa em Marrocos” aqui analisada por Romeo Carabelli – que nos levou, a mim e ao
José Alberto Tavim, em deriva etnográfica pelo Atlântico, atrás de “Marrocos no Bra-
sil”, nas festas de Santiago no Amapá. Perseguimos no arquivo e no campo a memória
dos portugueses mazaganistas exilados de Marrocos na sua metadiáspora amazónica,
mas encontrámo-la hoje diluída na memoração simbolicamente mais forte e empode-
rada da diáspora africana, e mesclada com outras vindicações índias e locais. Em Mar-
rocos, José Alberto Tavim encontra também, n’ “O Castelo Abandonado” a mesma
dissipação da memória de portuguesa nas retóricas institucionais e contemporâneas
dos judeus marroquinos, frequentemente diluída na castelhana. Nessas etnogenealo-
gias, mais ou menos legitimadas academicamente, Portugal não é exaltado (muitas
vezes nem referido) por ancorar as origens sefarditas remotas do judaísmo marroquino,
mas sim por acolhê-lo, em segunda diáspora, no seu renascimento moderno: o centro
da comunidade é assim localizado em Marrocos.
O enquadramento monumental do património luso edificado em Marrocos – que,
como Carabelli demonstra só é possível ativar por se tratar de um património do “pas-
sado do passado” – não é proporcionalmente acompanhado pela vivificação da memó-
ria dos portugueses entre os marroquinos (tanto entre os poucos judeus quanto entre
os muitos muçulmanos), a não ser, precisamente, pela imagem mitificada, que frequen-
temente lhes é atribuída, de grandes construtores (imagem que a sul, na Mauritânia,
ainda se confunde com a de judeus e outros gigantes bafur: ver Freire 2011). E é a
mesma diluição num passado remoto, diferido, que permite a instalação e admite, neste
lugares, um diálogo indulgente de instituições e populações locais com o luso-tropicalismo
que ainda preside às retóricas monumentalistas portuguesas de cooperação. Como
resumi noutros lugares (Cardeira da Silva 2011 e 2012), pode argumentar-se que o
regime patrimonial do governo português – junto com projetos de outros agentes, como
os da Fundação Calouste Gulbenkian – são configurados, a nível internacional, por seis
fatores fundamentais os quais, em conjunto, desenham a especificidade de Portugal no
que respeita às relações bilaterais com uma boa parte dos territórios onde permaneceu
histórica e militarmente: 1) o discurso – e a crença – no luso-tropicalismo e a corres-
pondente performance política, 2) a harmonia entre a retórica do luso-tropicalismo e
a oratória da “diversidade criativa” do regime da UNESCO, 3) a vetustez, comparati-
vamente maior face a outros colonialismos, do colonialismo português em muitos dos
contextos em que investe patrimonialmente, 4) o facto de o poder económico e político
de Portugal, em termos globais, ser hoje inócuo e irrelevante, apesar de manter 5) uma

Castelos a Bombordo - FINALx.indd 11 27-03-2013 16:57:02


12 • CAST ELOS A BOMBORDO

posição estratégica interessante na União Europeia e alimentar uma vocação atlântica,


e 6) o boom da nostalgia colonial (Werbner 1998, Bissel 2005) que alimenta, desde os
finais do século passado, a industria da memória (Klein 2000) e o turismo. Estas ocor-
rências têm permitido a Portugal projetar, através de conexões globais ativadas por
programas de monumentalização sob a alçada da UNESCO e outras, um modelo de
nação fortemente baseado na romanticização do seu passado colonial3.
Quem vem de Marrocos, onde o maghzen e a monarquia encobrem há muito a tribo,
a raça, e etnia, é surpreendido, nos terrenos da Mauritânia, pela expressividade da pri-
meira (sobretudo a norte), das segundas (mais a sul, na margens do Senegal), e de todas
nos interstícios do Estado. Com a terceira parte deste livro, e com a Mauritânia a Bom-
bordo, ficamos a saber por Abdel Wedoud Ould Cheikh que a exótica participação dos
portugueses nos processos de patrimonialização só pode entender-se ali através de uma
complexa genealogia de construtores da nação, profundamente exógena do ponto de
vista da construção das suas retóricas e performances mas, também, das suas infraestru-
turas, e claramente induzida por progressivas reconfigurações étnicas e tribais. Do mesmo
dá conta, a outro nível, e sobretudo partindo de registo oral, Francisco Freire: as nar-
rativas contemporâneas relativas aos encontros pré-coloniais com europeus (nalguns
casos prefigurando portugueses) na região oeste-saariana, fazem-se sobretudo com
recurso à sua incorporação em modelos tribais. Mas, ao contrário do que Ould Cheikh
refere para o património, estas narrativas genealógicas não parecem instituir qualquer
tipo de rotura passível de desenvolver uma nova historicidade, nem submeter-se a qual-
quer “grande narrativa”; nesse sentido, qualquer leitura teleológica destas histórias pre-
sentistas servirá, apenas, para ampliar uma visão fútil da contemporaneidade.
Não será, no entanto, assim em toda a Mauritânia, nem com todos os encontros.
Em “Contradições e desafios entre os Imraguen da costa atlântica mauritana”, Joana
Lucas e Raquel Carvalheira mostram como uma população cuja definição identitária
tem sido moldada endógena e exogenamente por vocabulários múltiplos que articu-
laram marcadores tribais, profissionais e étnicos, não hesitam, no panorama contem-
porâneo da gestão participativa, em incorporar o léxico da narrativa da conservação
nas suas reconfigurações identitárias.
Apesar das constantes actualizações inerentes a todos os processos identiários, exis-
tem, contudo, continuidades profundas nalguns dos trilhos mauritanos. Os turistas per-
seguem hoje rotas que eram outrora as dos peregrinos (no seu caminho para Meca) as
quais, por seu turno, decalcavam os passos de caravanas comerciais: do ouro, do sal, dos
escravos, da goma-arábica. Mas ainda mais do que nos trânsitos e viandantes, é nos pro-

3
E isso mesmo quando não existem alicerces edificados que a sustentem (como acontece, por exemplo, na Mauritânia: Cardei-
ra da Silva 2006).

Castelos a Bombordo - FINALx.indd 12 27-03-2013 16:57:02


LARGADA • 13

dutos e mercancias que as resiliências se evidenciam. Depois de colocar a goma-arábica


no quadro emergente da economia-mundo a partir do século XIV, Amélia Frazão -Moreira
abandona os caminhos mais batidos dos novos meharistas e detém-se, em Ouadane, nos
usos daquilo que moveu outrora cáfilas, depois (sem no entanto as substituírem: cf. Ould
Cheikh 1999) caravelas e, por fim, disputas prolongadas entre empórios: a goma-arábica.
Traçada a curva ascendente e descendente da grande traite, Frazão-Moreira recua no
espaço, e avança no tempo, para os usos e saberes locais contemporâneos relativos à goma,
transportando-nos off the beaten track para zonas recônditas da vida e ritmos quotidianos
de Ouadane, refratárias, de facto, aos fluxos globais das pessoas e do conhecimento.
Na quarta e última parte da viagem e do livro, navegamos à deriva, mas à vista,
perseguindo Outros castelos e cronotopos do regime do turismo e do património em
África. Francisco Leitão detém-se na Casamansa no Senegal, onde o passado “portu-
guês” (ainda mais do que Carabelli nos disse, por exemplo, para Marrocos) é mais do
que isso: é um país, talvez, demasiado estrangeiro ou demasiado distante. Fazendo uso
etnográfico de cinco tipos de “Existências e utilizações contemporâneas da Casamansa
‘portuguesa’”, Leitão retoma o debate com Nora e Hertog, em torno dos tropos
memória-História, para concluir – de modo semelhante ao que Francisco Freire fizera
para o Sudoeste da Mauritânia – que “a “história” não comeu ainda a “memória”, nem
lhe destruiu de todo os seus “mecanismos múltiplos e desmultiplicados, colectivos,
plurais e individualizados”” (Nora 1984: XIX – tradução sua).
Na nossa única abordagem à costa oriental, na Ilha de Moçambique, Carla Sousa
mostra, mais uma vez, como o passado é matéria-prima, bruta e dúctil, para os jogos
identitários do presente. Mas, tal como Bissel (2005) constata para Zanzibar (onde a
reconstrução do espaço urbano se estrutura igualmente em torno da “cidade de pedra”
colonial), sob uma aparente nostalgia colonial que poderíamos entender como mera
reposta a forças globais ou ao assalto da modernidade, coexistem diferentes discursos
e formas de lembrança que ora se antagonizam, ora se articulam, iluminando as cisões
e fusões próprias da comunidade fictícia que as produz.
A viagem termina com uma viagem – a do “Primeiro Cruzeiro de Férias às Colónias”,
realizado em 1933 – prometendo encetar o domínio ainda pouco explorado do turismo
colonial. Sandra Oliveira e eu embarcamos no paquete que leva a nação a ver e a mostrar-
-se ao império, num importante momento e exercício de estabilização e configuração do
passado para melhor preparar o futuro. Bem diferente, essa, da viagem deste livro que,
seguindo as mesmas rotas, procurou os novos desígnios desses velhos destinos.

***
A adoção ou não do acordo ortográfico ficou ao critério dos autores. A transcrição
de vocábulos árabes segue, em traços gerais, a tabela, nalguns casos simplificada, que

Castelos a Bombordo - FINALx.indd 13 27-03-2013 16:57:03


14 • CAST ELOS A BOMBORDO

José Pedro Machado utiliza no Dicionário Etimológico de Língua Portuguesa. A tra-


dução, a partir do francês, do texto de Romeo Carabelli é da minha responsabilidade
e a de A. Ould Cheikh ficou a cargo de Francisco Freire. Agradeço-lhe, como à Ana
Rita Moreira, o auxílio na tarefa ingrata da revisão editorial, e a todos os autores o
entusiasmo na viagem e a competência nas etnografias – de campo e, noutros casos,
de arquivo – que dão forma e espessura a este livro.

Maria Cardeira da Silva

Referências

BISSELL, William C., 2005, “Engaging Colonial Nostalgia”, Cultural Anthropology 20 (2), 215-248.
CARDEIRA DA SILVA, Maria, 2011, “Old Maps, New Traffics: Political itineraries around scattered her-
itage of Portuguese origin”. In Laurent Bourdeau et Sonia Chassé (dir.), Sites du patrimoine et tourisme.
Québec, Presses de l’Université Laval, pp. 309-317.
— 2012, “Castles Abroad. Nations, culture and cosmopolitanisms in African heritage sites of Portuguese
origin”. In BENDIX, R. (Ed.) Heritage Regime and the State. Nomination, Implementation, Regulation.
Institute of Cultural Anthropology/ European Ethnology, Gottingen
— “Hospedaria Vasque. Cultura, raça, género e expediente num oásis da Mauritânia”. Etnográfica, in
Etnográfica. Vol.X, n.2, pp. 355-381.
COMAROFF, J. and J. COMAROFF, 2003. “Ethnography on an Awkward Scale: postcolonial anthropol-
ogy and the violence of abstraction”. Ethnography 4(2): 147-179
GILROY, Paul, 1993, The Black Atlantic: Modernity and Double Consciousness. Cambridge, Harvard Uni-
versity Press.
FERREIRA, Ana Paula, 2007, “Specificity without Exceptionalism: Towards a Critical Lusophone Postco-
loniality”, em Paulo de Medeiros (org.), Postcolonial Theory and Lusophone Literatures. Utrecht, Uni-
versiteit Utrecht, pp. 21-40.
FREIRE, FRANCISCO, 2011, “Histoire du Sahara atlantique et mémoire tribale: réinterprétations contem-
poraines des contacts euro-sahariens précoloniaux”. In Sébastien Boulay (org.), Le littoral mauritanien
à l’aube du XXI ème siècle: nouvelles mobilités, gouvernance de la nature et dynamiques socio culturel-
les. Paris: Karthala
KLEIN, Kerwin Lee, 2000, “On the Emergence of Memory in Historical Discourse”. Representations
69:127–150.
MEDEIROS, Paulo de, 2006, “‘Apontamentos’ para conceptualizar uma Europa pós-colonial”, em Manuela
Ribeiro Sanches (org.), Deslocalizar a Europa: Antropologia, Literatura e História na Pós-Colonialidade.
Lisboa, Cotovia, pp. 339-358.
Ould CHEIKH, Abdel Wedoud, 1999, “La caravane et la caravelle. Les deux âges du commerce de l’Ouest
saharien”, L’Ouest Saharien. Histoire et Sociétés Maures, 2: 29-69.
STOLER, Ann Laura, 2008, “Imperial debris: Reflections on Ruins and Ruination”. Cultural Anthropol-
ogy. Volume 23-2, pp. 191-219.
VALE DE ALMEIDA Miguel, 2000, Um Mar da Cor da Terra: Raça, Cultura e Política da Identidade. Oei-
ras: Celta Editora.
WERBNER, R. 1998. Memory and the postcolony: African anthropology and the critique of power. Lon-
don: Zed Books

Castelos a Bombordo - FINALx.indd 14 27-03-2013 16:57:03


LARGADA • 15

Agradecimentos

A Jill Rosemary Dias

Ea
Abdelmajid Kaddouri, Université Hassan II Mohamedia-Casablanca
Abdel Wedoud ould Cheikh, CNRS
Alanna Cant, London School of Economics
Alberto Bargados, Universidade de Barcelona
Alexandre Inglez, CRIA
Angeles Ramirez, U. Autonoma de Madrid
António Araújo, Parque Nacional do Banco de Arguim
António Montenegro, Embaixador de Portugal em Dakar
António Sopa, Arquivo Histórico de Moçambique
Augustin Senghor, Maire de Gorée
Azzedine Karrah, Ministére de la Culture – Fez
Baldéu Chande, Parque Nacional do Limpopo
Dionigi Albera, IDEMEC-MMSH, Aix-en-Provence
Domingos Muala, PNG
Elemine ould Mohamed Baba, Universidade de Nouakchott
Elsa Amaral e Fernando Macedo
Francisco Máximo e Francesca Bruschi
Hermínia Ribeiro, Instituto Marquês de Valle Flôr
Isabel Fiadeiro, Nouakchott
Institut de Gorée
José Horta, Centro de Língua Portuguesa em Dakar
José da Silva Horta, FLUL
Manuela Raminhos, CRIA
Mohamed Lemine, Ouadane
Maria Esperança, Instituto Marquês de Valle Flôr
M.ª José Aurindo, Centro de Estudos Geográficos UL
Museu Etnográfico da Praia (Cabo-Verde)
Noah Cissé, Dakar
Nelson Graburn, Berkeley University
Parque Nacional da Gorongosa
Pierre Bonte, CNRS
PNBA, Direcção e funcionários
Regina Bendix, University of Göttingen, Germany

Castelos a Bombordo - FINALx.indd 15 27-03-2013 16:57:03


16 • CAST ELOS A BOMBORDO

Romeo Carabelli, CITERES, Tours


Sébastien Boulay, Univeridade Paris Descartes
Silvestre Lacerda, Direcção-Geral de Arquivos
Rui Quadros
Vasco Galante, PGN
Yahya ould al-Bara, Universidade de Nouakchott
Zeida, Auberge Vasques, Ouadane

… entre muitos outros que permitiram, apoiaram e inspiraram as nossas investi-


gações nos Castelos, a Bombordo.

Castelos a Bombordo - FINALx.indd 16 27-03-2013 16:57:03


A NORTE DE ORIENTE,
A SUL DE OCIDENTE

Castelos a Bombordo - FINALx.indd 17 27-03-2013 16:57:03


Castelos a Bombordo - FINALx.indd 18 27-03-2013 16:57:03
O SENTIDO DOS ÁRABES NO NOSSO SENTIDO
Dos estudos sobre árabes e sobre muçulmanos em Portugal1

MARIA CARDEIRA DA SILVA

Existe um número considerável de razões que tornam difícil a reflexão acerca dos
estudos árabes e islâmicos em Portugal. Começar por enunciá-las será, talvez, a melhor
maneira de encetá-la.
Em primeiro lugar deparamos com a fluidez das fronteiras disciplinares do campo.
É, obviamente, impossível encontrar seus limites sem analisar a formação histórica e
a evolução da sua institucionalização. Assumir essa fluidez é supor uma configuração
multidisciplinar essencialista de tipo orientalista. Mas, a julgar pelo que se passa no
panorama nacional contemporâneo, o campo parece, de facto, congregar uma rede
relativamente densa (embora pouco ampla) de investigadores de diferentes disciplinas
e formações, criada, também, ao sabor de circunstâncias e de redes de conhecimento
pessoais, cooptando estudiosos ou interessados fora mesmo do meio académico, de
acordo com o tema específico elegido para os fora ou para as publicações. Contingên-
cias do mesmo tipo, que começam agora a ser sujeitas a análise2, condicionaram tam-
bém a definição histórica de um domínio que, ainda por cima, se mostrou especialmente
vulnerável a apropriações políticas, por via das construções identitárias.
Em segundo lugar, uma primeira abordagem do tema demonstra-nos que este foi
um campo que desde cedo empreendeu as suas próprias resenhas, num processo de
revisitação regular dos seus fundadores e descendentes (Garcia 1959; Machado 1964
e 1967; Farinha 1977 e 1978 e Sidarius 1986). Essa constante auto-aferição genealó-
gica – extremamente útil, para as reflexões aqui alinhavadas – mostra-nos, desde logo,
duas coisas. A primeira é a de que a sua fluidez de fronteiras (disciplinares mas tam-
bém territoriais: que árabes, que Islão?), parece ser compensada pela constante refe-
rência a uma cadeia própria de fundadores e personagens centrais. A segunda é a de
que o encadeamento dessa genealogia se reproduz, afinal, dentro de um leque restrito

1
Este texto foi publicado em 2005 na revista Análise Social n.º 173 pp.781-806. Agradeço aos editores a permissão da sua repu-
blicação, e mantenho a grafia prévia ao acordo ortográfico. Agradeço também o generoso e profícuo diálogo com Abdoolkarim
Vakil em torno deste artigo, bem como os comentários de um referee anónimo, assumindo eu, no entanto, a exclusiva respon-
sabilidade dos argumentos aqui desenvolvidos.
2
Ver, entre outros, Vakil (2000, 2003a e 2003b) e os trabalhos [então] em curso das investigadoras do [agora inexistente] Cen-
tro de Estudos Africanos e Asiáticos do IICT Eva-Maria von Kemnitz sobre o “Arabismo e Orientalismo e Relações entre Portu-
gal e o Norte de África (sécs.XVIII– XX)” e de Ana Rita Moreira sobre “Árabes e Arabismo nas Interpretações de Portugal”.

Castelos a Bombordo - FINALx.indd 19 27-03-2013 16:57:03


20 • CAST ELOS A BOMBORDO

de disciplinas que não se afastam do espectro académico do orientalismo noutros paí-


ses: a história, a linguística, a literatura, a arqueologia e a etnografia3.
Essa indefinição do campo coloca a Antropologia, domínio onde rapidamente me
situo quando me afecta o processo de identidades múltiplas que também toca os aca-
démicos4, num espaço ambíguo: se, por um lado, ela também participou, historicamente,
do campo de estudos árabes e islâmicos, por outro, tem negligenciado, contemporane-
amente, a produção sobre esses contextos. E isso leva-nos à terceira razão que inibe
aqui uma análise acabada: que legitimidade nos autoriza a objectificar um campo que
(interessará reflectir porquê) a Antropologia tem vindo a desprezar?
Em quarto lugar, apesar de podermos continuar a espantar-nos com a relativa exi-
guidade do campo em causa – comparativamente com a produção europeia e tendo
em conta as relações históricas de Portugal com os árabes e com o islão –, a proverbial
escassez de trabalhos nessa área começa, a pouco e pouco, a poder relativar-se: através
de revisões em curso, que trazem à luz publicações negligenciadas5, e pelo interesse
crescente pelos “árabes” e pelos “muçulmanos” que provocou a entrada em (no) campo
de jovens académicos. Isso torna impossível fazer um levantamento justo e actualizado
do que se passa no domínio.
É possível, contudo, mesmo para quem, como eu, se move transversalmente ao
campo, encetar certas reflexões sobre o tema, algumas das quais relevam, precisamente,
das meras considerações que acabei de enunciar. Fá-lo-ei tentando articular outras que,
de diferentes pontos de vista, já o abordaram.
Partamos do meu próprio campo. É hoje incontestável que a Antropologia tem
uma agenda política. E, a reflexão em torno das dimensões políticas da disciplina foi,
em larga medida, espoletada pelos contextos árabes e islâmicos. Isso teve que ver, já
o sabemos, com o próprio papel que os árabes tiveram nas construções identitárias
ocidentais e particularmente europeias. Ainda mesmo antes do super-livro de Said
([1978]2004), autores como Talal Asad 1973, Pierre Bourdieu, Fanny Collonna ou
Rodinson (ver AAVV 1976), ou mesmo, à sua maneira, Clifford Geertz (1969), se
tinham debruçado sobre as implicações políticas do Orientalismo. Este foi um processo
que, por seu turno, teve incidência no concomitante desenvolvimento reflexivo da
Antropologia que tem, ainda hoje, as suas sequelas. Logo nos anos 80, entre o leque

3
Testemunho disso são, entre outras coisas, os diversos congressos organizados em território nacional, como o IV Congresso de
Estudos Árabes e Islâmicos (1968, ver aavv. 1971) ou, mais tarde, o XI Congresso da União Europeia de Arabistas e Islamologos
(1982, ver AAVV 1986).
4
Reflecti já sobre estas angústias em 1999, e retiro-me aqui, discretamente, do campo dos estudos árabes, muito embora, também
a minha pesquisa, dentro do campo disciplinar da Antropologia, se tenha desenvolvido fundamentalmente em contexto árabe,
mais especificamente em Marrocos. Não recuso, por isso, a possibilidade de objectificação do meu próprio trabalho para uma
análise dos estudos árabes em Portugal que, no entanto, teria que ser muito exaustiva para merecer essa inclusão.
5
Sobretudo Vakil, no que respeita ao discurso e práticas colonialistas relativas às populações muçulmanas: ver Vakil 2003a, 2003b.

Castelos a Bombordo - FINALx.indd 20 27-03-2013 16:57:03


A NORTE DE ORIENTE, A SUL DE OCIDENTE • 21

de textos introspectivos que caracterizou a Antropologia de então, figura um onde


Leila Abu-Lughod (1989) descreve – inspirando-se nas profícuas ideias de gatekeeping
concepts e de freezing metonimics de Appadurai (1986, 1988) – três paradigmas estru-
turantes e constrangedores dos estudos antropológicos, sobretudo anglófonos, produ-
zidos sobre contextos árabes até então. Apesar do número de obras citadas (186), Leila
Abu-Lughod parece não ter grande dificuldade em arrumá-las numa grelha conceptual
constituída por apenas três categorias – harém, islão, segmentaridade6. Na resenha
analítica intensiva levada a cabo por Leila Abu-Lughod não figuram, naturalmente,
textos de autores portugueses. Não é de estranhar, para uma antropologia periférica.
Mas uma explicação mais consistente apresenta-a João Leal (2000), ao demonstrar,
inspirando-se na dicotomia de Stocking (1982), que a tradição antropológica portu-
guesa não é a da construção de um império, mas a da construção de uma nação. É o
mesmo argumento que permite, então, aceitar sem espanto que a maioria dos estudos
que podemos incluir na categoria de antropológicos relativos aos árabes se tenham
desenvolvido, não no espectro da antropologia colonial aplicada, mas no campo dis-
ciplinar da história e do território português, e frequentemente associados à constru-
ção identitária nacional ou regional.
Do ponto de vista académico, é no quadro amplo de etnografias portuguesas que
se desenvolveram entre 1870 e 1970 e que contribuíram para a construção de Portu-
gal como uma nação imaginada (Leal 2000) que encontramos aquilo que podemos
considerar as abordagens antropológicas sobre os árabes e o Islão. Na realidade, mais
sobre os árabes do que sobre o Islão7. Ainda assim, trata-se de aproximações que não
se subsumiram ao campo estrito da disciplina que, constituindo-se enquanto tal no
fôlego da regeneração da vida intelectual portuguesa expirado das Conferências do
Casino (1871), viria a manter flexíveis as suas fronteiras até muito tarde. Assim sendo,
e na medida em que o debate relativo aos árabes entre Oliveira Martins (1845-1894)
e Alexandre Herculano (1810-1877) é percursor de futuras discussões, conviria, como
classicamente se tem feito, encetar a reflexão por aí. É que é importante reter que a
primeira aproximação aos árabes na historiografia moderna se fez pela via da etnoge-
nealogia. Na verdade, e isso é um dos argumentos a explorar aqui, a etnogenealogia
será o cenário mais comum para a entrada em cena dos figurantes árabes (ou mais fre-
quentemente moçárabes) na história e na antropologia portuguesas. Para além disso,
o debate entre Oliveira Martins e Alexandre Herculano é premonitório, também, na
construção de outro argumento que, avançando na história vai ganhando espessura:

6
Outros autores trabalhando sobre os contextos incluídos, como Gilsenan 1990, Street 1990, Mitchell 1988 e, mais modesta-
mente, eu própria (1999), seguem e actualizam o mesmo exercício e argumento nas décadas subsequentes.
7
Segundo Vakil (2003c) “não existe qualquer tradição académica de estudos islâmicos, e mais especificamente, islamológicos,
em Portugal. Arabistas, sim”.

Castelos a Bombordo - FINALx.indd 21 27-03-2013 16:57:04


22 • CAST ELOS A BOMBORDO

o de que o interesse pelo passado (ou outra área de investigação) relativo aos árabes
não implica, necessariamente, um distanciamento em relação aos discursos hegemó-
nicos sobre nacionalidade e outras estratigrafias identitárias e, muito menos, arabofi-
lia (ver Moreira neste volume). A linha forte a seguir aqui seria a da genealogia de
Herculano, cujo guião historiográfico introduz os árabes, como figurantes, na historia
nacional, sem que, no entanto, isso perturbe a arabofobia patente nos seus romances
(cf. Farinha 1977); seu discípulo David Lopes (1867-1942), que burilando a metodo-
logia e instrumentos científicos do campo e importando as modas do orientalismo
francês, não deixa, por isso, de seguir as teses arianistas anunciadas por Oliveira Mar-
tins (cf. Moreira 2000 [e neste volume]); e, por fim, José Garcia Domingues (1910-
-1989) que, depois de uma vida dedicada ao estudos dos aspectos da história luso-árabe,
reconhece a ausência de impacto arabizante na cultura portuguesa, assumindo-se
mesmo, gracejante, como um arabista anti-árabe (Vakil 2003a). Finalmente, recuar a
Herculano permite-nos alcançar a profundidade histórica de outro ingrediente que
encontraremos frequentemente disseminado em posteriores abordagens relativas aos
árabes em Portugal: aquele que, pode dizer-se, contem as sementes de uma espécie de
“multiculturalismo estratigráfico”, projectando no passado a convivência política de
diferentes culturas e fazendo disso uma mais-valia identitária. Herculano é o primeiro,
de outros que o seguirão, a encarar a possibilidade de uma “invasão” árabe da Penín-
sula como um movimento de ocupação relativamente pacífica, e a sublinhar a origem
comum dos homens do Alcorão e do Evangelho, o que viabilizaria a perspectiva (retro
e prospectiva) de uma possível convivência entre os povos. Em qualquer caso, falar
dos árabes não chega, como pretendeu Adolfo Coelho para o povo, para elevá-los.
Esta é a linha directa, espinha dorsal do retrato que o arabismo em Portugal faz
de si próprio. A revisão do campo disciplinar estrito costuma colocar as suas raízes
institucionais na criação do cargo de “Mestre e Interprete da Língua Arábica” do Reino
de Portugal, oficializado por decreto real em 1795, pela primeira vez ocupado por Fr.
João de Sousa. É de sublinhar, como faz Adel Sidarius (1986:22), que só na época “das
luzes pombalinas”, portanto, depois de abandonadas as últimas praças portuguesas em
Marrocos (de facto, as últimas em território árabe), e com o ímpeto académico e peda-
gógico que levara à criação de cadeiras de estudos orientais por toda a Europa, é que
se institucionalizou o campo e se abandonou o espírito pragmático que, até então,
determinara o conhecimento da aravia (Idem 21). Mas o verdadeiro momento da ins-
titucionalização chegará com David Lopes, cujo domínio da língua lhe permite o refi-
namento do argumento herculaniano que veicula e legitima. David Lopes que, como
dirá ainda Sidarius, integrará “na sua orientação científica, assim como na sua visão
cultural, as três dimensões ‘para-nacionais’ que definem o Portugal Histórico: os ára-
bes na Península, os portugueses em Marrocos e os portugueses no vasto Oriente.”

Castelos a Bombordo - FINALx.indd 22 27-03-2013 16:57:04


A NORTE DE ORIENTE, A SUL DE OCIDENTE • 23

(1986:31). É a partir dele que se estabelece a verdadeira genealogia dos especialistas,


onde entroncam nomes como os de Joaquim Figanier (1898-1962) e, depois, José
Garcia Domingues e José Pedro Machado (1914-)8.
Embora assim bem definido a partir da sua auto-genealogia, o arabismo contamina,
e deixa-se contaminar, pela Antropologia nascente dos mestres, onde avultarão nomes
como os de Teófilo Braga (1843-1924), Consiglieri Pedroso (1851-1910) e Leite de
Vasconcelos (1858-1941).
Sem pretender fazer aqui esgotar a análise do elemento árabe (difícil, sublinho, de
isolar nas perspectivas oitocentistas sem cair numa aproximação ela própria essencia-
lista) na construção para o argumento etnogenético, parece óbvio que, no âmbito daquilo
que é considerada a genealogia da Antropologia (Dias 1952), é em Teófilo Braga que
o encontramos mais explicitado, sob a vertente do moçarabismo, que incluía como
extracto importante na sua inovadora etnogenealogia pluralista (Leal 2000; Branco
1985). Independentemente da própria evolução do seu discurso etnogenético, o árabe
surge em Teófilo Braga, como entre os arabistas, como elemento potenciador de qua-
lidades intrínsecas à identidade portuguesa, mais do que como seu gerador. Já para
Leite Vasconcelos, entusiasta das teses lusitanistas, a sua função parece quase cosmética:
o contacto com os árabes não faz ruir “os fundamentos das civilizações hispânicas, sem-
pre presentes nas sociedades cristãs e até nas dos oportunistas e renegados que abraçam
por cálculo ou convicção o credo dos vencedores”; se “deslumbrados pelos esplendores
da civilização oriental, deixam colorir-se, em superfície”, a marca do arabismo não será
notada na profundidade [Vasconcelos 1980 (1933): 297]” (Moreira 2000).
Será importante, entretanto, sublinhar para o meu argumento, que estas etnogra-
fias se encontram indissociáveis da arqueologia, funcionando esta, nalguns casos expres-
samente (e o paradigma disso será Leite de Vasconcelos), como um desvio pelo passado
para explicar o presente (Leal 2000, Silva 1997). A arqueologia, pode dizer-se, encontra-
-se, assim, ao serviço da etnogenealogia e a etnogenealogia funciona, por seu turno,
como uma espécie de gatekeeping concept das aproximações aos árabes.
Outra característica que se encontra menos explorada no que respeita aos estudos
árabes, mas que merecia análise semelhante à que tem sido desenvolvida para outros
contextos (Silva 1997, Brito e Leal 1997) tem que ver com o desenvolvimento conco-
mitante de um saber local, saber esse que, de resto, estrutura uma rede de interesses
regionais muitas vezes posta ao serviço ou em conexão com o saber central mais ins-
titucionalizado. Nesse quadro, que é mais amplo do que aqui exponho, encontrar-se-
-ão figuras como Estácio da Veiga (1828-1891) e, mais tarde, Ataíde de Oliveira

8
E, no dizer de Sidarius, foi ainda “à sombra da (…) inesquecível figura [de Figanier] que desabrochou, na Faculdade de Letras
de Lisboa, a vocação arabística [de] António Losa, Pedro Cunha e Serra e António Dias Farinha”. (1986: 36)

Castelos a Bombordo - FINALx.indd 23 27-03-2013 16:57:04


24 • CAST ELOS A BOMBORDO

(1842-1951), cujos perfis mereciam ser estudados para uma compreensão mais etno-
gráfica do fenómeno9.
Mas se essa metaetnografia se mostra necessária para a desconstrução do arabismo
e da sua suposta arabofilia, ela tem que ser colocada num quadro plurisituado que não
desdenhe a formatação dos discursos hegemónicos europeus que também o definiram.
É útil reter, aqui, as hipóteses lançadas para o orientalismo académico português por
Moreira (2000), que tentarei resumir: a) como no resto da Europa, o orientalismo
português não teve que ver com a construção de um Oriente mas sim com a constru-
ção identitária de Portugal; o arabismo português reconhece-se e assume-se como tri-
butário do orientalismo europeu, mas resulta de uma apropriação local, para consumo
interno, de práticas discursivas alheias e, nessa medida, autonomiza-se dos discursos
orientalistas hegemónicos; o arabismo português visa, antes de mais, a europeização
de Portugal, com o sacrifício, isto é a “orientalização”, de algumas das suas regiões
menos desenvolvidas; o arabismo português visa também, como em outros países das
margens da Europa, embora muitas vezes sem sucesso, a “desorientalização”, conse-
quente “europeização” e “capitalização social” dos intelectuais face às camadas popu-
lares em cujo folclore diagnosticam as sobrevivências do árabe.
Assim, longe do quadro colonialista que formatou o orientalismo em França, pro-
tegido dos encarniçamentos provocados pela juventude dos nacionalismos exacerbados
europeus e relativamente distanciado das polémicas do arabismo espanhol10, a retórica
etnogenética portuguesa parece ir buscar aos debates europeus apenas o que lhe inte-
ressa para conformar um argumento que poderia, nalguns casos, sobreviver… sem os
árabes. Mas a verdade é que é a própria prática discursiva europeia orientalista que,
muitas vezes, não o permite: de facto, assiste-se, concomitantemente a uma certa orien-
talização romântica da península. Isso explica a “dupla ambiguidade do Orientalismo
português: simultaneamente consumidor das imagens ocidentais do Oriente e vítima
delas, angustiadamente consciente de ser objecto de outras formas de orientalização”
(Vakil 2000: 91). Mas, se é verdade que podemos encontrar nessa subalternização a
explicação para a inibição do orientalismo ibérico (Moreira 2000), por outra parte, é
também possível detectar um esforço de reciclagem dessa orientalização para a criação
de uma especificidade nacional, um apimentar da “psicologia étnica” que encontramos

9
“Etnografia espontânea” é a designação sugestiva de João Leal (1997) que gostaria de adoptar aqui, para reconhecer um pro-
jecto comum por trás desses diferentes tipos discursivos – literário, político, etnográfico – que argumentaram para a identidade
de um “povo”. Relativamente à criação espontânea de redes de eruditos locais – por exemplo a que se desenvolveu sob o impul-
so de Leite de Vasconcelos – cujo saber era produzido e consumido endogenamente (ver Silva 1997), seria ainda interessante,
também, fazer repousar a análise vertical entre “centro e periferia” sobre outra, mais horizontal, que residisse sobre as redes
locais intra-classistas.
10
Essa relativa distância merece, contudo, maior atenção que aquela que posso aqui dedicar-lhe. Em todo o caso a polémica em
torno da convivenza que parece manter-se hoje acesa em Espanha (ver Fanjul 2000) não parece ter alcançado em Portugal a mes-
ma exuberância que no país vizinho. Ver, também, nota 16.

Castelos a Bombordo - FINALx.indd 24 27-03-2013 16:57:04


A NORTE DE ORIENTE, A SUL DE OCIDENTE • 25

em Teófilo Braga, ou no fatalismo de Teixeira de Pascoais (Cf. Leal 2000). Esse recurso
ao elemento árabe para procurar uma especificidade nacional numa identidade que é,
antes de tudo, europeia, deve ser também retido. Concomitantemente, e para abrir
mais pistas para a análise do campo e fortalecer o meu argumento a jusante, importa
referir a capitalização dessa mesma orientalização do nosso Ocidente, detectável, a
outros níveis, como no da progressiva, embora ainda incipiente, mercadorização turís-
tica. Sintra, que desde cedo promove a exaltação dos seus elementos mais arabizantes,
para melhor a conformar ao gosto dos viajantes do Grand Tour romântico (cf. Costa
2002), parece ser um bom exemplo disso.
Entretanto, a verdadeira institucionalização da Antropologia segue, com Jorge Dias
(1907-1973), na linha de preocupações etnogenéticas, socorrendo-se, como já ante-
riormente acontecera, da cultura material para traduzir o discurso importado das áreas
culturais. Para isso recorre, também, à Geografia. É ela que explica, em última análise,
a diversidade cultural portuguesa – Portugal Atlântico / Portugal Mediterrânico / Por-
tugal Trasmontano – (Dias 1990a, 1990b, 1990c). Mais uma vez a genealogia académica
é útil: é fácil reconhecer aqui a influência do modelo de Orlando Ribeiro (1911-1997).
Em ambos os casos o elemento árabe se dilui, agora, num “discurso pastoral sobre o
mediterrâneo” (Leal 1999). A cultura aparece ancorada, mais do que nos seus vestígios
arqueológicos, na natureza natural das suas fundações definindo contrastes que se
reflectem na cultura material, nas tecnologias agrícolas e, de forma particular, na arqui-
tectura. A esta vertente determinista alia Jorge Dias a inspiração difusionista da sua
formação germânica, bem como a predilecção evidente pelas culturas do Norte (suevos
e outras tribos germânicas no Portugal atlântico, e lusitanos, de origem pré-histórica,
no Portugal transmontano) que o levam a desconsiderar, na sua etnografia, o Sul, medi-
terrânico (formatado por romanos e árabes). Ao contrário, Orlando Ribeiro (1945)
entende o Mediterrâneo como o berço da civilização, e como lugar privilegiado para a
observação de um raro e profundo equilíbrio ecológico, testemunho de séculos de um
encontro harmonioso entre o homem e a natureza, preservado num mundo em que a
angústia face ao espúrio impulsionava à busca da autenticidade (MacCannell 1989
[1973]). Como refere ainda Leal (1999), se a ideia da materialização de uma utopia
nostálgica não se manifesta expressamente em Orlando Ribeiro, já em Jorge Dias ela
ganha claros contornos no seu sonho manifesto de constituição de uma comunidade
na Serra do Montemuro. Por detrás de um discurso alegadamente científico torna-se
visível o motor de um projecto político e pessoal, que voltaremos a encontrar, mais
tarde, sob novas configurações.
Ao mesmo tempo, também com Jorge Dias se institucionaliza outra vertente da Antro-
pologia: a que se vira para as colónias. E, para o que nos interessa, isso leva-nos à esteira
dos estudos, agora não sobre árabes mas sobre o Islão, fora do contexto da metrópole.

Castelos a Bombordo - FINALx.indd 25 27-03-2013 16:57:04


26 • CAST ELOS A BOMBORDO

Essa vertente tem sido negligenciada, o que tem reforçado o argumento inicial de
que os estudos árabes-islâmicos se subsumiam, basicamente, nas questões relacionadas
com as origens do povo português e da Nação. E, no entanto, Said lamenta ter deixado
de lado, na sua obra, “as importantes contribuições para o Orientalismo da Alemanha,
da Itália, da Rússia, da Espanha, de Portugal” (2004:19)11. Conheceria, verdadeira-
mente, Said, a produção orientalista portuguesa? Ou pressuporia apenas, necessária e
circularmente para o seu argumento, que um gigante imperialista tinha obrigatoria-
mente que produzir orientalismo? Novamente, a resposta mais fácil é a de conceder
que, ainda que Portugal tivesse uma tradição imperial, as suas relações com os países
árabes/islâmicos foram de um colonialismo – se assim lhe podemos chamar – precoce,
e que não chegou a estimular o tipo de produção antropológica francesa ou inglesa.
Mas, como vimos, o tema da presença e influência lusitanas em terras islamizadas, para
além do seu reduto luso constitui o terceiro painel do tríptico da grandiosa obra de
David Lopes, e a sua influência terá dado frutos, também nesse sentido: Joaquim Figa-
nier, seu discípulo, ingressará na Escola Superior Colonial, depois Instituto de Línguas
Africanas e Orientais, onde leccionará nas décadas de 40 e 50.
Esse é, talvez, o elo menos conhecido na análise dos estudos árabes e islâmicos em
Portugal, e que é necessário recuperar – para além do que foi produzido na estrita
auto-genealogia disciplinar12 – para sustentar o argumento central de que o orienta-
lismo português, onde os árabes e os muçulmanos sempre apareceram como meros
figurantes externos e secundários para a construção da identidade nacional, se circuns-
creveu às paisagens constitutivas do berço da nação.
É verdade que os estudos mais divulgados que foram publicados com referência a
grupos muçulmanos nas colónias – no quadro, por exemplo da Junta de Investigações
do Ultramar (vide, entre outros “O Mundo Árabo-Islâmico e o Ultramar Português”
de José Júlio Gonçalves) – foram de tal modo generalistas e assumidos no seu utilita-
rismo político que é com relutância que os consideramos, à luz das aquisições contem-
porâneas da disciplina, de antropológicos. No entanto, eles constituem um importante
acervo de análise que só agora começa a ser explorado (Vakil 2003a e 2003b), reve-
lando uma face bem mais complexa e ambígua das relações do regime salazarista com
as comunidades muçulmanas, e seus efeitos contemporâneos. Isso coloca-nos na esteira
dos estudos pós-coloniais.
É, também, verdade que a antropologia colonial portuguesa é tardia (Pereira 1986,
1998), condicionada, entre outras coisas, pela Conferência de Bandung que, em 1955,
estigmatizava definitivamente o colonialismo português, ao mesmo tempo que se evi-

11
Itálico meu.
12
Aqui, tal como foi sugerido para a leitura das primeira aproximações etnogenéticas (ver nota 9) impunha-se o alargamento do
campo de análise a toda uma produção extra-académica que melhor esclareceria o elo orientalista do saber-poder.

Castelos a Bombordo - FINALx.indd 26 27-03-2013 16:57:04


A NORTE DE ORIENTE, A SUL DE OCIDENTE • 27

denciava o processo independentista em curso. A urgência de uma inflexão na política


ultramarina portuguesa foi particularmente pressentida por Adriano Moreira que lide-
rou, nos anos cinquenta, um “plano de ocupação científica” dos territórios coloniza-
dos. A partir de então passa a ser estimulada a prática “assimilacionista” sob a égide
do já mítico discurso do luso-tropicalismo, apostando-se na incorporação do território
e dos povos colonizados num “todo nacional”.
Se é verdade que podemos concordar com João Leal quando diz que a antropolo-
gia portuguesa é eminentemente determinada pela ideia de nação, não devemos per-
mitir-nos ser acusados de branqueamento de alguns exercícios colonialistas que a
Antropologia não quer incluir na sua estirpe. As recentes descobertas de Vakil – que
vão, nesse domínio, muito para além das obras tipificadas como a de José Júlio Gon-
çalves – levam-nos, justamente, a ultrapassar esse constrangimento, do gatekeeping
concept da etnogenealogia relativamente aos enfoques portugueses incidentes sobre
árabes ou muçulmanos ou, melhor dizendo, a acompanhar o seu alcance para além do
território metropolitano13.
Enquanto a Antropologia começa a explorar a capitalização exaustiva e intensiva
do luso-tropicalismo para além do mero diálogo luso-brasileiro, mostrando como ele
invade todos os domínios constitutivos da identidade portuguesa (entre outros Almeida
2000, Leal 2000), Vakil surge lembrando como o próprio fundamento do argumento
de Freire se baseia também no pressuposto e na profundidade de uma convivência
pacífica entre árabes e cristãos (ver Castelo 1998: 30-31). Isolando este argumento
Vakil introduz no luso-tropicalismo uma força especial no que respeita a análise do
discurso e práticas coloniais relativas aos muçulmanos (Cf. 2003a, 2003b). Com a sua
ajuda podemos acompanhar os tópicos que continuaram, afinal, a condicionar a refle-
xão, agora colonialista, sobre os estudos árabes e islâmicos: utilitarismo identitário e
político, multiculturalismo, então reforçados pelo luso-tropicalismo. A transferência
dos condimentos utilizados e manipulados na construção do argumento etnogenético
da Nação para a conveniência colonialista é atestada exemplarmente pela alocução de
Francisco José Veloso no primeiro Congresso das Comunidades Portuguesas a meados
de sessenta: “A cruzada contra o Islão (…) terminara em Marrocos (…)” na expansão
pela costa Oriental de África e Oceano Índico o “reencontro com os arabizados e os
árabes foi, para os Portugueses, cuja pátria de origem conheceu cinco séculos de for-
tíssima aculturação árabe, como que o reencontro de uma parte de si mesmo” (Cit. in
Vakil 2003a)14. Essa declaração – é um dos testemunhos da inflexão na política sala-

13
Enquanto isso, outros trabalhos começam, simultaneamente a divulgar os discursos portugueses relativos aos árabes fora do
contexto nacional (ver, por exemplo, Bounou 1998) e a objectificar as retóricas diplomáticas (ver nota 2).
14
Sobre este ponto será interessante comparar a política espanhola colonialista e a sua retórica “hispanotropicalista” proposta
por Gustau Nerín, activada no projecto colonialista em relação a Marrocos. Ver: Tofiño-Quesada 2003 e Jensen 2001.

Castelos a Bombordo - FINALx.indd 27 27-03-2013 16:57:04


28 • CAST ELOS A BOMBORDO

zarista até aí dominada pelo discurso de certo modo huntingtoniano de Silva Rego no
seu Oriente e Ocidente, que reflectiam a urgência assimilacionista – adivinhada por
Adriano Moreira – que viria a expressar-se na criação de uma nova identidade: a dos
“portugueses muçulmanos”. O testemunho prático dessa inflexão discursiva é o finan-
ciamento por parte das autoridades portuguesas, da peregrinação a Meca a muçulma-
nos da Guiné, a partir de 1959, e de Moçambique, a partir de 1970 (Vakil 2003b).
Não é minha ideia, repito, fazer a história do Orientalismo em Portugal. Mas,
assumindo aqui alguns riscos essencialistas, como os que ensombraram a obra de Said,
importa, pelo menos, referir que, paralelamente à imagem dominante e propagande-
ada pelo regime salazarista, como a tendência negligente ou negativista da “presença
árabe” (atestada, por exemplo, pela análise dos manuais escolares levada a cabo por
Rita Faria, 2001), para além da sua gestão ou reformulação política contextualizada
(evidente na inflexão de discurso relativo aos muçulmanos das colónias a partir, pelo
menos, da década de sessenta) a produção arabista anterior à revolução de Abril de
1974 incluiu ainda obras que, pelo menos na sua retórica discursiva, tentavam, osten-
sivamente, contrariá-la. O caso mais frequentemente (e apropriadamente) sublinhado
é o de Borges Coelho e do seu Portugal na Espanha Árabe15.
Mas, embora esta progressiva crítica pós-saidiana nos obrigue a um reaferimento
da postura dualista que estabelece, de forma essencialista, uma equivalência entre as
aproximações ante / pós- 25 de Abril, e as aproximações arabófobas/ arabófilas, creio
podermos continuar a dizer que os estudos árabes em Portugal estiveram, pelo menos
até ao fim do Estado Novo, condicionados politica e directamente com uma produção
identitária que se esforçava, antes de mais, por ligar atavicamente Portugal à Europa
e que, por isso, negligenciava ostensivamente a “herança árabe” ou, quando não, a
incluía na retórica patriótica da Reconquista.
Após o “ciclo do Império” Portugal esteve dez anos confinado ao seu espaço geo-
político. Depois iniciou-se o “ciclo Europeu”, no momento em que a Europa se con-
vertia numa das três grandes regiões de globalização neoliberal (Santos 2001). O país
foi assim surpreendido, num curto espaço de vinte cinco anos, com a necessidade de
reconstrução de uma nação moderna, concomitantemente com o declínio das lógicas
de desenvolvimento nacional minadas pelos processos transversais da globalização.
Depois do vinte cinco de Abril em Portugal, como em Espanha depois da queda
do Franco, multiplicam-se as investidas nos estudos e no interesse pela herança árabe16.
A rotura, a mudança e a incerteza levavam, então, à procura de modelos de regenera-

15
Do mesmo modo, encontraremos também posições arabofobas no panorama tendencialmente arabofilo do pós-25 de Abril.
16
Em Portugal o fenómeno não teve porém a dimensão que se verificou em Espanha. Em termos académicos, por exemplo, o
debate espoletado pelas teses de Pierre Guichard (1976) relativamente “às origens orientais da sociedade andaluza” nunca ferveu
aqui como ali, separando as posições tradicionalistas de posições orientalizantes.

Castelos a Bombordo - FINALx.indd 28 27-03-2013 16:57:04


A NORTE DE ORIENTE, A SUL DE OCIDENTE • 29

ção – nacionais e regionais – nos quais podemos detectar semelhanças com a cultura
liberal fundada pelo romantismo oitocentista. No domínio que nos ocupa, as altera-
ções mais evidentes – ou, aquelas que foram politicamente mais exibidas17 – parece-me
a mim terem ocorrido no âmbito da Arqueologia18.
Sabemos que a Arqueologia é, talvez, o campo disciplinar mais eficaz para a sus-
tentabilidade de identidades. Aprendemo-lo com Lowenthal (1985), que lembrou que
o passado era um país estrangeiro construído para nos ajudar a definir o nosso, e com
muitos outros (Kohl 1998, Meskell 2002, Abu el-Haj 1998, Scham 1998, Wilkie e
Bartou 2000) que reflectiram sobre as implicações políticas da arqueologia e as rela-
ções directas entre a disciplina e os nacionalismos na Europa (Díaz-Andreu e Cham-
pion 1996) e em Espanha (Díaz-Andreu 1996)19. Herzfeld (2000) mostra-nos, por
outro lado, como este é o campo disciplinar que mais directamente rivaliza com a
antropologia em termos da produção e difusão de impacto identitário. A Arqueologia
parece garantir a sensação de permanência, tipicidade e materialidade que a Antropo-
logia hoje se empenha em relativizar, precisamente porque é claramente mais efectiva
em legitimar uma certa “visibilidade” ou “invisibilidade” cultural (Rosaldo 1988) num
mundo cada vez mais ávido de autencidade e segurança.
O paradigma deste novo movimento – que alcançou grande êxito mediático – foi,
sem dúvida, Mértola20. Capital de Taifa nos séculos XI e XII, os estratos arqueológicos
dos diferentes períodos romanos, paleocristãos e muçulmanos parecem ali sobrepor-se
harmoniosamente, ilustrando facilmente a possibilidade de uma multiculturalidade
sucessiva e menos conflituosa que a apresentada pela visão heroica salazarista dos
manuais escolares que haviam marcado o imaginário da geração revolucionária.
Se até aqui corri riscos de essencialismo, à procura dos ingredientes fundamentais
desse orientalismo prático que foi o nosso, ficarei, agora, mais vulnerável ainda.
Centrar-me-ei exclusivamente, daqui para a frente, sobre aquilo que designarei como

17
Lamento ter que deixar aqui de fora toda a reflexão sobre outras áreas do conhecimento nomeadamente no âmbito da Histó-
ria da Expansão Portuguesa, que não poderia aqui dominar, mas que mereciam estudo complementar para uma análise mais
completa.
18
Kohl (1998) refere a especificidade do caso espanhol em que o desenvolvimento da arqueologia não ocorreu como em França
e Inglaterra durante a expansão imperial ou, como na Alemanha, associada a aspirações imperiais, mas antes ligada à reformatação
da identidade nacional na sequência da perda do seu império Latino-Americano e todas as suas possessões no século XIX. Em ter-
mo genéricos, e tal como aconteceu em Portugal, os vestígios islâmicos foram negligenciados pela arqueologia nacionalista. No
período pós-Franco assistiu-se à descentralização da prática disciplinar com o desenvolvimento de arqueologias regionais imple-
mentadas nas províncias autónomas. Também aqui, a análise comparativa entre o caso português e espanhol pode ser frutífera.
19
É interessante notar que a esse nível encontramos, quiçá, resquícios do prosseguimento de uma certa orientalização da arque-
ologia portuguesa. Veja-se o caso de Boone e Benco (1999) que, referindo-se num artigo internacional sobre a arqueologia islâ-
mica, a Alcaria Longa, a escassos quilómetros de Mértola, não mencionam o trabalho e conclusões, incontornáveis para a
matéria em discussão, do Campo Arqueológico de Mértola…
20
Não posso desenvolver aqui o itinerário das diferentes escavações arqueológicas em zonas de povoamento árabe ou do período
islâmico em Portugal, a primeira das quais foi (premonitoriamente, se nos lembrarmos da mais valia contemporânea da herança ára-
be, também, para o turismo) a do campo de Vila Moura, no Algarve: escavações dirigidas por José Luis de Matos, nos anos setenta.

Castelos a Bombordo - FINALx.indd 29 27-03-2013 16:57:05


30 • CAST ELOS A BOMBORDO

o “efeito Mértola”21. Primeiro porque Mértola se tornou, em vinte anos, o grande


baluarte das origens árabes de Portugal e, em termos mediáticos, ofusca o panorama
dos estudos árabes contemporâneos no país. Segundo, porque a sua mediatização a
promoveu – na década de noventa – como modelo de desenvolvimento local (Nuno
1993), o que levou à sua imitação (ou tentativa disso) noutros pontos do país. E, no
pacote desenvolvimentista seguiram, também, os árabes, e a sua promoção.
Como surgiu, então, o símbolo Mértola? Numa conferência dada na década de noventa
no âmbito de umas jornadas espanholas sujeitas ao tema “Dignidad Regional y Desarollo”,
Cláudio Torres o grande impulsionador do “projecto Mértola”, e revolucionador dos estu-
dos árabes no domínio da arqueologia em Portugal22 apresenta-o do seguinte modo:

Em Portugal a Revolucão de Abril abriu caminho a experiências e transformações dife-


rentes em bastantes aspectos das que ocorreram em Espanha com a Transição. Nos dez anos
que se seguiram ao processo revolucionário tentámos levar a cabo a reconstrução nacional,
não só resolver problemas, como recriar o país. Mas a partir de 1984, as grandes soluções
nacionais foram perdendo a força de forma natural e só restaram núcleos, polos de utopias.
Tratou-se de um fenómeno de certa maneira paralelo à experiência de Maio de 68, que
teve como uma das principais consequências, a pulverização de grupos que foram para
zonas do interior para levar as suas novas ideias. O mesmo aconteceu em Portugal, onde
depois de uma fase inicial mais inflamada, se assiste a uma fuga de gente que vai criar as
suas próprias utopias nos distintos cantos do país. A minha experiência é desse tipo.

Embora com contornos políticos diversos, a utopia comunitária que Jorge Dias
ambicionara na Serra de Montemuro e que se adivinhara no fascínio de Orlando Ribeiro
pela Arrábida, é aqui cumprida. Mais do que isso vai ganhando aparato institucional
e apoio político:

(…) não poderíamos imaginar isto sem o 25 de Abril. (…). Aqui, o acaso de ter vindo
uma equipa mais completa, o acaso também do próprio presidente da Câmara, na altura o
Serrão Martins, ser meu aluno em Letras (…) conseguiu dinamizar também por aí, um des-
pertar de curiosidades. (…) Desde o início foi obviamente um projecto político, por causa
da reforma agrária em todo o Alentejo. 23

21
Negligenciarei, por isso, outros campos de estudo que não os da História e da Arqueologia bem como outros casos de patri-
monialização tão importantes como o de Silves, cuja análise seria imprescindível para uma perspectiva abrangente e mais consis-
tente do fenómeno.
22
Para com quem tenho – como muitos da minha geração que trabalham sobre contextos directa ou indirectamente relacionados
com os árabes – uma dívida pessoal imensa.
23
Cláudio Torres em entrevista realizada no âmbito do projecto que coordenei, entre 1999-2001:“Novos Fluxos e Percursos. Turismo,
consumo de património e identidades locais na zona de interacção histórica e partilha cultural entre Portugal, Espanha e Marrocos”.
Acção Piloto de Cooperação Portugal/ Espanha / Marrocos. Ordenamento do território e património cultural. Art.10 FEDER.

Castelos a Bombordo - FINALx.indd 30 27-03-2013 16:57:05


A NORTE DE ORIENTE, A SUL DE OCIDENTE • 31

Até ao fim do Estado Novo as elites intelectuais operavam a partir dos grandes
centros urbanos, tentando por vezes desesperadamente mostrar a sua utilidade ao
regime, orientalizando o povo e o campo, para europeizar a nação. Nesse processo
captavam, como vimos, as elites locais, que assim se densificavam e disseminavam o
saber institucionalizado, ao mesmo tempo que, localmente, se capitalizavam social-
mente. Agora, depois da Revolução do 25 de Abril, as elites intelectuais, oriundas
ainda dos grandes centros urbanos mas de cunho político revolucionário, prosseguem
ainda a táctica da orientalização do Sul, mas com outros meios – abandonam os
grandes centros e estabelecem-se localmente, com equipas de discípulos e agentes
locais de desenvolvimento – e, também, com outros fins: os da produção de identi-
dades locais e não nacionais, com vista a à “dignidade regional e ao desenvolvimento
local”.
Embora sinuoso, será interessante, aqui, novo desvio pela antropologia – cujo inte-
resse pelos árabes se manteve, nas vésperas da revolução e no pós-25 de Abril, residual,
e diluída no debate relativo à Antropologia do Mediterrâneo. Retomando a análise de
João Leal sobre o mapeamento mediterrânico de Portugal, encontraremos, no início
da década de setenta, pela mão de José Cutileiro (de formação oxfordiana), um dis-
curso contra-pastoral, a perspectiva ácida de um Alentejo mediterrânico profundamente
estratificado e marcado pela injustiça social. Longe das preocupações etnogenealogicas
dos seus antecessores, Cutileiro toma Vila Velha (heterónimo) como “um microcosmos
social e político do Portugal de Salazar” (Leal 1999:28). Estamos, ao mesmo tempo,
perante um Alentejo que se pode, em última análise confundir, com um Norte de Africa
oprimido, com o qual partilha a área cultural24. Este desvio é importante para lembrar
a importância do Alentejo nalgum imaginário político revolucionário e para melhor
compreender a capacidade atractiva do símbolo Mértola no pós-25 de Abril. Em Mér-
tola desenterrava-se a “civilização do silêncio” a que Borges Coelho havia, timidamente,
dado voz (1972)

(…) havia de alguma forma esse paralelismo entre uma época esquecida e as comu-
nidades esquecidas da serra deste interior alentejano. Foi portanto por aí que se começou,
tentando encontrar entre umas e outras, entre aquilo que subsistiu dessas velhas comu-
nidades, dessas culturas...do interior e daquilo que era o legado mediterrânico, tentar
encontrar os tais prolongamentos de longa duração, que vêm desde o período islâmico...
Mas, obviamente, não só desde o período islâmico, são-lhe anteriores, mas aquilo que

24
Levando ainda mais longe o desvio no seio da Antropologia, encontraríamos, mais tarde, a crítica de João Pina-Cabral (1989)
à ideia de área cultural mediterrânica como categoria de comparação regional. Por seu turno, o seu desejo de demarcação dos
estudos comparativos da Europa do Sul em relação ao Mediterrâneo islâmico pode ser, segundo Horden e Purcell, interpretado
como uma espécie de “Orientalismo” (2002:487). Mas, quanto a mim, essa interpretação da crítica de Pina-Cabral releva de um
fundamentalismo saidiano nihilista.

Castelos a Bombordo - FINALx.indd 31 27-03-2013 16:57:05


32 • CAST ELOS A BOMBORDO

nos interessava num primeiro momento foi de facto a época islâmica.” diz Santiago
Macias25.

Num período pós-revolucionário em que a força dos municípios se afirmava, Mértola


mostrava, também, o caminho para um desenvolvimento descentralizado, construindo
uma identidade específica, assumindo-se orgulhosamente as raízes islâmicas que a colo-
cavam no Sul e exibindo um passado de convivência profícua também…com os árabes.
É que o império islâmico, “o último esplendor da civilização mediterrânica” (Tor-
res 2002), foi um império de cidades, de cidades multiculturais. “Este equilíbrio entre
as várias comunidades e os grupos minoritários foi um pouco a chave do êxito do Islão
mediterrânico” (Idem). Num período em que diferentes reacções se faziam sentir face
à adesão à Comunidade Europeia, Mértola mostrava como os portugueses podiam ser
europeus sem perder a sua especificidade cultural, e essa especificidade, que era a da
multiculturalidade, recriou-se, paradoxalmente, pela reorientalização do Sul e pela
ligação ao Mediterrâneo.

Nós não estamos a fazer uma grande separação do Islão porque é o Mediterrâneo. Nós
cada vez mais tendemos a chamar-nos mediterrânicas, civilizações mediterrânicas. Não há
separação entre o paleocristão e, isso estamos aqui a constatar agora, entre o paleocristão
e o Islão. Continuam, são os mesmos, que lentamente se convertem, lentamente vão ficando
muçulmanos. Primeiro ficam hereges, primeiro são heréticos, são monofisitas, ou vários
desses clubes cristãos já heréticos, e depois passam ao Islão, o que é normal nessa época.
(…) Não tem nada a ver com guerras nem com conquistas. Tem a ver com um acto imenso,
um mar enorme de civilizações que é o Mediterrâneo, que nessa altura fala árabe26.

Cláudio Torres personifica a nova tendência que redignifica a imagem dos árabes
no percurso nacional. Ele devolve, de facto, aos árabes o seu protagonismo na Histó-
ria. Mas é importante não esquecer que, aquilo a que assistimos é ainda um processo
de figuração onde se faz apelo aos árabes e muçulmanos para a produção identitária
nacional face à Europa, ou regional face às elites urbanas europeizadas. Os árabes apa-
recem, afinal, novamente, como elemento reactivador das raízes civilizacionais do Sul
de Portugal, agora, como em Orlando Ribeiro27, mediterrânicas:

25
Santiago Macias, historiador e ex-aluno de Torres, comissário de várias exposições, autor e co-autor de diversas
publicações e catálogos e membro do Campo Arqueológico de Mértola em entrevista realizada no âmbito do projecto
mencionado na nota 23.
26
Cláudio Torres em entrevista realizada no âmbito do projecto mencionado na nota 23
27
No entanto, adverte Cláudio Torres, os laços que unem os dois lados do estreito de Gibraltar são “laços (…) bem mais antigos
que possíveis interferências provocadas pelas invasões de 711, não sendo de admitir, como [Orlando Ribeiro] defendeu, que estes
e outros elementos comuns sejam apenas o resultado da colonização de Berberes montanheiros” (1987:87)

Castelos a Bombordo - FINALx.indd 32 27-03-2013 16:57:05


A NORTE DE ORIENTE, A SUL DE OCIDENTE • 33

Depois de um aparente hiato histórico em que a Hispania goda se vira para si própria,
o surgimento do al Andaluz [de que o Garb faz parte] é como o regressar ao velho seio
mediterrânico, sob a chancela dos seus antigos e prestigiados esteios intelectuais. (Torres
1992:363)

De um modo geral teremos que reconhecer então, de acordo com o modelo de


Mértola, que os estudos e o interesse português pelas culturas árabes continuam, de
algum modo, dependentes dos exercícios identitários se não nacionalistas, pelo menos
nacionais ou regionais e que, de alguma forma, retomam a auréola romântica que coe-
vamente os acarinhou.
É importante sublinhar que acompanham esta mudança substanciais alterações
relativamente aos meios e procedimentos científicos para a pesquisa e uma revisão
profunda dos próprios estereótipos enraizados em relação aos árabes. É também incon-
testável que a complexidade científica e a objectivação do processo (atestada, entre
muitos outros testemunhos, pelos extractos aqui transcritos de entrevistas) as diferen-
ciam dos procedimentos oitocentistas. Mas, ainda que se trate hoje de um tipo de
conhecimento desenvolvido em regime democrático, isso não significa que devamos
ignorar a dimensão política da sua produção mas, sobretudo, a dimensão política das
suas apropriações. Na verdade, por certo inadvertidamente, Mértola tem vindo a con-
tribuir para a difusão mediática – e para a folclorização – de um novo modelo mais
adequado ao nosso narcisismo contemporâneo: o do multiculturalismo que celebra
agora todos os anos no Festival Islâmico a que o Campo Arqueológico se associa.
Nesta ambiguidade, Mértola aproxima-se da concepção armadilhada de cultura28
veiculada pela UNESCO da qual, de resto, Cláudio Torres foi Comissário29: aquela
que desproblematiza, romanticamente, a conciliação pacífica do humanismo univer-
salista com o relativismo cultural (ver Wright 1998 e Eriksen 2003). E nesta linha de
pensamento, é de temer que o protagonismo de Mértola, da sua musealização e da
concepção de cultura que dele emana, sobretudo quando filtrada pelo romantismo
mediático30, contribuam para a difusão e persistência do mito da tolerância multicul-
turalista/lusotropicalista inscrita na etnogenealogia dos portugueses.

28
O êxito de Mértola nas décadas seguintes dever-se-á, também, à sua capacidade de adequação e conformidade com os mode-
los e directivas europeias relativas ao “desenvolvimento sustentável” e ao “turismo cultural como forma de desenvolvimento
regional” (ver Coelho 2002:41). Ver também nota 29.
29
Em 1997, C. Torres foi nomeado Comissário do Comité do Património Mundial da UNESCO, cargo do qual se demitirá, sem
explicações, mas provavelmente na sequência da demissão do Ministro da Cultura que o havia proposto.
30
É, também, importante referir a importância da mediatização de Mértola e da sua eventual conformidade ao processo medi-
ático de gatekeeping, para a captação de financiamentos institucionais que continuam a assegurar, em larga medida, a viabilidade
do Campo Arqueológico.

Castelos a Bombordo - FINALx.indd 33 27-03-2013 16:57:05


34 • CAST ELOS A BOMBORDO

O mundo civilizacional do Mediterrâneo não tem roturas. (…). O próprio mundo reli-
gioso era muito confuso, a gente encontra com dificuldade fronteiras nítidas entre o cristia-
nismo, o judaísmo e o mundo islâmico. São muito parecidos. Os rituais são todos nos mesmos
locais...enterram-se ao lado uns dos outros, e é difícil, encontrar, muitas vezes, em épocas mais
antigas grandes linhas de...de rotura. E isso é que é realmente o interessante, que historica-
mente vamos encontrando não só justificações, como provas históricas para ir a pouco e pouco
objectivamente encontrar dinâmicas de interacção, de interajuda, e de solidariedade. 31

Mértola é o lugar onde pode repousar o multiculturalismo, contendo os árabes e


os muçulmanos, do discurso da tolerância e da integração que se instalou em largos
sectores da vida pública portuguesa. Ela é, por isso, também responsável pela especi-
ficidade da incorporação da nova presença islâmica em Portugal a qual, segundo argu-
mentou já Tiesler (2000), se explica, entre outras coisas, pela particularidade das
formas de incorporação dos árabes e do elemento islâmico na história nacional.
Referirei um episódio que, ao acentuar as disparidades entre portugueses e espanhóis
relativamente à incorporação árabe nas respectivas identidades nacionais, actualiza essa
particularidade. Em virtude da minha coordenação de um projecto de Cooperação entre
Portugal, Espanha e Marrocos32, pude acompanhar algumas negociações entre o que era
assumido como “património partilhado entre os três países” (que no regulamento do
programa em causa aparecia como um dado adquirido e consensual). O conceito de
património partilhado foi então sujeito a discussões várias nas quais rapidamente se
compreendeu aquilo que já se esperava: em primeiro lugar que, apesar de isso ser um
bom tópico para aproximar as pessoas, não havia consenso em relação à sua acepção.
Em segundo lugar, que a ideia de património e de partilha cultural continuava irreme-
diavelmente ligada a concepções identitárias e históricas localizadas. Então, sem querer
fazer generalizações essencialistas, para o grupo de portugueses envolvido neste projecto
tinha-se assumido tácita e consensualmente que o património partilhado entre Portugal
e Marrocos era todo o património de origem árabe em Portugal (incluindo aí, eventu-
almente, coisas que não diziam directamente respeito a Marrocos e que, etnicidade oblige,
não eram tampouco de origem árabe mas, mais presumivelmente, berbere). Esta posição
particular teve provavelmente que ver com uma adesão acrítica, um envolvimento na
atmosfera quase eufórica de revificação das origens árabes a que se assiste um pouco por
todo o Portugal (sobretudo onde isso tem mais cabimento histórico, ou seja a Sul do
país) e, portanto, fortemente condicionada pelo “efeito Mértola”. Por seu turno, no caso
de alguns marroquinos envolvidos no mesmo projecto, o património de origem portu-

31
Cláudio Torres em entrevista realizada no âmbito do projecto mencionado na nota 23.
32
Ver nota 23.

Castelos a Bombordo - FINALx.indd 34 27-03-2013 16:57:05


A NORTE DE ORIENTE, A SUL DE OCIDENTE • 35

guesa em Marrocos deveria ser reabilitado preferencialmente pelos portugueses, na


medida em que esse património “faz parte da sua história”33, enquanto que para outros,
o património de origem portuguesa, como as fortalezas da costa Atlântica, eram enca-
rados, pacificamente, como “testemunho de uma História partilhada”. Para o grupo de
espanhóis, no caso andaluzes, a dificuldade residia em detectar o património árabe no
seu território nacional (quando o problema, relativamente à enunciação do património
de origem árabe na Andaluzia, haviam suposto os portugueses e os marroquinos presen-
tes na discussão, seria o da sua “excessiva” proliferação). Na verdade, o que do ponto
de vista dos portugueses e dos marroquinos era de origem árabe em Espanha, para estes
espanhóis era – pelo menos ao nível do discurso – de origem andaluza: “ali”, diziam, no
lugar cultural da Andaluzia, o passado árabe foi discutido e incorporado na História
nacional, na sua variante regionalista.
Independentemente dos exercícios de objectificação que acompanharam a discus-
são, gostaria de deixar aqui sublinhadas as interpretações particulares individualizadas,
mas fortemente imbuídas – com diferentes conotações – de elementos nacionalistas e
regionalistas. Relato-as apenas para reforçar a ideia que tenho de que, tal como para
se desenvolver, a Antropologia em Portugal teve que se alienar de interesses naciona-
listas, também a melhor cooperação entre países se fará quando despida de retóricas
regionalistas ou nacionalistas.
Confirma-se, assim, a persistência das diferentes incorporações dos árabes (pelo
menos) nos processos constitutivos das identidades nacionais e regionais portuguesas
e espanholas. Mas, ao mesmo tempo, a investigação junto de diferentes órgãos regio-
nais e locais portugueses e também dos turistas consumidores do tipo de património
em causa, confirmaram-me o crescente investimento e procura da “tipicidade árabe”
no país, num processo aparentemente semelhante ao que se desenvolveu nas últimas
décadas em algumas zonas de Espanha34. A herança árabe tem sido fortemente exibida,
patrimonializada, marketeada, capitalizada e também estudada35 – ou seja mercadori-
zada (com ou sem potencial turístico) na produção de identidades regionais e locais36.
Convém, no entanto, não confundir as coisas – como por vezes acontece no discurso

33
Não faltaram, inclusivamente gracejos, por parte de alguns, de que, caso não obtivessem apoio português destruíram o patri-
mónio, como os taliban haviam feito aos budas (ameaçando, ironicamente, com a devolução de uma imagem étnica negativa dos
muçulmanos).
34
Isto complexifica, ao nível local e regional, o silenciamento que Tiesler refere em termos políticos, mediáticos e turísticos em
relação à suposta incorporação dos árabes na história e na identidade portuguesa (ver Tiesler 2000).
35
Importa voltar a referir, embora aqui não o possa analisar, a importância e proliferação de outros centros de estudos regionais
e locais ou projectos de investigação incentivados por organismos locais dedicados aos árabes, que acompanharam o processo.
36
E, ao mesmo tempo, também transnacionais. Referirei, a título de exemplo, o roteiro mediatizado das “Terras da Moura Encan-
tada”, inserido no projecto “Museu sem Fronteiras” que “concebe o espaço euromediterrênico como um imenso ‘museu sem
fronteiras’ que o público poderá visitar” (DGT 1997). Pretende promover-se “o diálogo entre a Europa, o Norte de África e o
Médio Oriente, no espírito das conclusões da Conferência Euromediterrânica (Barcelona 1995)” (Idem).

Castelos a Bombordo - FINALx.indd 35 27-03-2013 16:57:05


36 • CAST ELOS A BOMBORDO

político de teor “multiculturalista” que vai frequentemente buscar o “exemplo” de


Mértola –: a promoção árabe para a produção identitária, que reveste por vezes carac-
terísticas de islamofilia, não implica, necessariamente, uma adesão ou educação anti-
-xenófoba, até porque os discursos de mercadorização são muitas vezes desconexos e
desarticulados. Em Faro, por exemplo, promove-se claramente a cultura árabe, mas por
vezes investe-se na recuperação e monumentalização da herança árabe até à exaustão
estética, de cariz pós-moderno, como a que levou a incluir nalguns folhetos de itinerá-
rios islâmicos o mega Centro Comercial Forum Algarve37. Então, para nos referirmos
às diferentes atitudes em Portugal relativamente aos árabes, será melhor juntar à discri-
ção geral dominante uma glossolalia local, por vezes pouco eloquente e que se presta
a grandes equívocos. Retomamos aqui, afinal, um dos traços do arabismo português:
o de que o mero interesse pelos árabes não implica, necessariamente, arabofilia.
Por outro lado, se é verdade que, apesar de tudo, os discursos relativos aos árabes
e aos muçulmanos (que no imaginário mediático continuam frequentemente associa-
dos) se mantêm relativamente discretos em Portugal (ver Tiesler 2000), não é menos
verdade que, em situação de emergência identitária da nação – e basta para isso haver
a mera evocação de “invasão” – os media dão o alerta. É útil reflectir sobre outro epi-
sódio ocorrido anteriormente em Portugal para relativizar esse adormecimento dos
média. Trata-se da discussão espoletada em torno dos efeitos de um documentário
passado em 1995, na televisão iraniana, que reproduzia o argumento do livro do Moi-
sés Espírito Santo (1995) relativamente às origens fatimidas da religião portuguesa e
que trouxe a Portugal um fluxo invulgar de peregrinos xiitas iranianos (cf. Almeida
2004). Da discussão pública que se sucedeu interessa-me destacar, para o meu argu-
mento, a resposta do imam da mesquita de Lisboa, obrigado a intervir publicamente.
Disse ele, então, que tendo estranhado a inclusão de Fátima no itinerário de visita tão
inusitada, sugeriu o desvio alternativo por Mértola: “Aí, sim, há uma clara herança
islâmica”. (Almeida 2004:72). É impossível não evocar aqui, a propósito do discurso
incorporado do imam as visitas obrigatórias aos locais “islâmicos” em Portugal, a que
eram obrigados os muçulmanos cuja peregrinação a Meca era subsidiada pelo governo
português do antigo regime (ver supra e Vakil 2003b).
O interesse deste episódio serve para reforçar a ideia de que os media têm sido,
de facto, neste domínio, pouco eloquentes e que têm um reservatório parcimonioso
de interlocutores e de símbolos que resolvem com a recorrência constante a Mértola
o que, por seu turno, a recapitaliza, amiúde, simbolicamente. O imam recorre a Mér-
tola não apenas porque a comunidade (ou, pelo menos a sua direcção, cuja constitui-

37
In “Os Caminhos do Gharb” Rede de Centros Históricos de Influência Islâmica no Sul da Península Ibérica e Norte de Mar-
rocos. CCRA. Faro

Castelos a Bombordo - FINALx.indd 36 27-03-2013 16:57:06


A NORTE DE ORIENTE, A SUL DE OCIDENTE • 37

ção emergiu das suas elites) parece incorporar o discurso hegemónico, e porque conhece
a força de Mértola enquanto símbolo mediatizado da incorporação dos árabes na iden-
tidade portuguesa. O “efeito Mértola” afecta também os media que, ao mesmo tempo,
o multiplicam: um verdadeiro gatekeeping concept no seu sentido original (White
1950). Mértola é evocada quando se fala de árabes, de muçulmanos, de imigrantes,
de património, de passado, de arte, de poesia ou arqueologia, utilizada como eixo de
articulação em dossiers sobre temáticas, espoletados pela guerra, pelo véu ou pelo ter-
rorismo. O seu protagonismo e o seu efeito catalizador permitem exercícios económi-
cos de grande essencialismo culturalista muito próximo do orientalismo clássico.
Mas a verdade é que o protagonismo e a expansão do fenómeno Mértola para
outros domínios que não o da história e da arqueologia, deve-se, também, à relativa
incipiência dos estudos árabes a outros níveis. Assim sendo, para objectivar a promo-
ção do “projecto Mértola”, temos forçosamente que questionarmo-nos sobre a razão
da demissão de outros campos (como a Antropologia) na concorrência para o conhe-
cimento dos contextos árabes e muçulmanos, concorrência que poderia contribuir para
uma imagem menos essencializada do que foi, e do que é hoje, ser árabe ou ser muçul-
mano em diferentes partes do mundo. O que pode ser preocupante, sublinhe-se, não
é a aproximação, a musealização e a patrimonialização empreendida por Mértola de
um passado oprimido, que também faz parte de nós, mas sim os efeitos colaterais do
“efeito Mértola” – o seu protagonismo e impacto mediáticos – na reificação de uma
certa imagem essencialista dos “árabes” e dos “muçulmanos” (essencialismo que chega
a resumir uns nos outros), e a sua apropriação pelas retóricas e paisagens da política
nacional, onde a “Vila Museu” é amiúde visitada.
Na sessão de encerramento dos trabalhos das II Jornadas sobre as “Memórias
Árabe-islâmicas em Portugal” organizadas pela Camara de Comércio e Indústria Árabe/
Portuguesa em Outubro de 2002, o então ministro da Cultura referiu

a importância da cooperação com os países árabes, num mundo em que a cultura, o


pluralismo cultural devem introduzir um elemento dialógico no processo de globalização
para que dele não resultem a uniformização ou o esmagamento de culturas que resultariam
na perda do sentimento de pertença às comunidades de que a pessoa faz parte, o que é
fundamental para evitar que as pessoas se tornem desenraizadas.

E termina: “os portugueses foram, ao longo dos séculos os primeiros globalizado-


res, os promotores de encontros de culturas e civilizações”.
Na verdade, parece-me importante objectivar esse discurso multiculturalista, que se
traduz, em grande parte das situações, numa mera arabofilia acrítica. O testemunho disso
foi a clara bipolarização nos artigos de opinião divulgados pelos media relativos ao 11

Castelos a Bombordo - FINALx.indd 37 27-03-2013 16:57:06


38 • CAST ELOS A BOMBORDO

de Setembro e às intervenções no Iraque. Com raras excepções a discussão colocou-se


entre dois polos que não podem dialogar entre si porque partem, obviamente, do mesmo
pressuposto: tanto o multiculturalismo quanto o “choque de civilizações” se sustenta no
princípio do relativismo cultural. O problema, como já tem sido dito, não está na ideia
de relativismo, mas na ideia de cultura. E tanto a arqueologia como o estudo das “mino-
rias” – campos disciplinares e tópicos mediáticos de que se alimenta hoje, preferencial-
mente, o discurso político relativamente a árabes e muçulmanos – podem, facilmente,
sustentar uma ideia de cultura reificada que é aquilo que alimenta, por seu turno, a ideia
de “choque de civilizações”. Como já foi sobejamente demonstrado, o conceito de mul-
ticulturalismo, independentemente das decomposições entre multiculturalismo de dife-
rença e o multiculturalismo crítico (Turner 1993), acaba, frequentemente, por ter efeitos
marginalizadores e exclusivistas. Isso ocorre porque os discursos políticos utilizam con-
ceitos apriorísticos de cultura que não são diferentes dos que justificam os novos funda-
mentalismos culturais (Stolke 1995, Vertovec 1996).
Por tudo isto, parece-me de sublinhar a importância de um esforço desconstrucio-
nista relativamente aos estudos árabes e islâmicos em Portugal. A Arqueologia, ciente
do poder do seu conhecimento tem, ultimamente, sujeitado os seus resultados a forte
escrutínio (ver, entre outros, Abu el-Haj 1998, Scham 1998, Wilkie e Bartou 2000 e
para uma postura reflexiva conjunta da Antropologia e da Arqueologia: Gosden 1999).
Talvez este seja um momento importante para uma maior convergência de esforços
multidisciplinares e comunicação interdisciplinar no sentido de uma multiplicação e
diversificação das aproximações aos estudos árabes em Portugal, que possam contra-
riar as tendências essencialistas dominantes.
Até ao fim do Estado Novo, os antropólogos burgueses, sempre oscilaram entre
uma atitude que procurava no povo as raízes da decadência nacional e outra que pro-
curava no povo as raízes da identidade nacional e pureza (Leal 2000); tal como os
arabistas sempre oscilaram entre uma atitude que procurava nos árabes as raízes do
fatalismo português e outra que procurava na convivência pacífica com os árabes a
propensão portuguesa à descoberta do mundo e dos povos (Moreira 2000). Durante
muito tempo, a Antropologia em Portugal dependeu da relação com paradigmas
importados e foi condicionada pela sua utilidade, ou não, para um exercício da ima-
ginação etnográfica da Nação (Leal 2000). O mesmo parece ter sido válido para os
estudos árabes.
Não é minha intenção supor a possibilidade de uma aproximação objectiva à his-
tória e às culturas. Mas a assunção dessa impossibilidade não deve tolher a ambição
do maior alheamento possível à hegemonia dos discursos políticos, sobretudo quando
respeitam temas nacionalistas ou regionalistas. Para isso é preciso que os estudos sobre
árabes e muçulmanos deixem de ser exclusivamente estudos de figuração sobre os

Castelos a Bombordo - FINALx.indd 38 27-03-2013 16:57:06


A NORTE DE ORIENTE, A SUL DE OCIDENTE • 39

“nossos árabes” ou os “nossos muçulmanos” quer falemos de antepassados, compa-


triotas, concidadãos, portugueses subordinados num processo de expansão colonialista
ou, simplesmente de pessoas. Isso só acontecerá quando, finalmente, partirmos à des-
coberta do mundo, sem irmos, necessariamente, à procura de nós mesmos.

Bibliografia

AAVV, 1971, IV Congresso de Estudos Árabes e Islâmicos. Leiden: E. J. Brill.


AAVV, 1986, Islão e Arabismo na Península Ibérica. Actas do Congresso da União de Arabistas e Islamol-
ogos. Évora – Faro – Silves, 1982. Universidade d’Évora.
AAVV, 1976, Le Mal de Voir. Paris, Cahiers Jussieu.
AAVV. 1999, Marrocos-Portugal. Portas do Mediterrâneo. Lisboa, Comissão Nacional para as Comemo-
rações dos Descobrimentos Portugueses.
ABU EL-HAJ, 1998. “Translating Truths: Nationalism, the Practice of Archaeology, and the Remaking of
Past and Present in Contemporary Jerusalem”, American Ethnologist, 25 (2): 166-188.
ABU-LUGHOD, Lila 1989 “Zones of Theory in the Anthropology of the Arab World”, Annual Review of
Anthropology, 18:267-306.
APPADURAI, Arjun, 1986, “Theory in Anthropology: center and periphery”. Comparative Studies in Soci-
ety and History 29:356-61.
APPADURAI, Arjun, (Ed.) 1988, Voice and Place in Anthropological Theory. Special Issue of Cultural
Anthropology, Vol. 3 (1).
APPADURAI, Arjun, 1988, “Putting Hierarchy in its Place”, Cultural Anthrop. 3:36-49.
ALMEIDA, Miguel Vale de, 2000, Um Mar da Cor da Terra. Oeiras, Celta.
ALMEIDA, Miguel Vale de, 2004, Outros Destinos: Ensaios de Antropologia e Cidadania, Lisboa: Campo
das Letras.
ANDERSON, Benedict, 1991[1986], Imagined Communities. Reflections on the Origin and Spread of
Nationalism. Londres/N.Iorque, Verso.
ASAD, Talal, 1973, Anthropology and the Colonial Encounter. Londres, Ithaca Press.
BOONE, James, L. e BENCO, Nancy, L. 1999, “Islamic Settlement in North Africa and The Iberian Penin-
sula”. Annual Review of Anthropology, 28:51-71.
BOUNOU, Abdelmouneim, 1998, Relatos Portugueses de Viagens 1870-1996). A Imagem de Marrocos.
Fez: Universidade Sidi Mohammed Ben Abdellah / Lisboa, Instituto Camões.
BOURDIEU, Pierre, 1976 “Des Conditions Sociales de la Production Sociologique: Sociologie Coloniale
et décolonisation de la Sociologie” in AAVV, Le Mal de Voir. Paris, Cahiers Jussieu, pp. 416-27.
BRAGA, Teófilo, 1985 [1885], O Povo Português nos seus Costumes, Crenças e Tradições.
BRAGA, Teófilo, 1894, A Pátria Portuguesa. O Território e a Raça. Porto, Livraria Internacional de Ernesto
Chandron.
BRANCO, Jorge F., 1985, “A Propósito da Presente Reedição”, Braga, Teófilo, O Povo Português nos seus
Costumes, Crenças e Tradições, I Vol. Lisboa, Publicações D. Quixote, pp. 15-25.
BRANCO, Jorge F., 1999. “A Fluidez dos limites. Discurso Etnográfico e Movimento Folclórico em Por-
tugal”. Etnográfica III (1), 23-48.
BRITO, Joaquim e LEAL, João, (Org.) 1997, “Etnografias e Etnógrafos locais” Etnográfica I (2), 181-2.
CABRAL, João de PINA, 1989 “The Mediterranean as a Category of Regional Comparison: A Critical
View”. Current Anthropology, Vol 30, n.º 3 pp. 399-406.

Castelos a Bombordo - FINALx.indd 39 27-03-2013 16:57:06


40 • CAST ELOS A BOMBORDO

CASTELO, Cláudia, 1998, ‘O Modo Português de Estar no Mundo’. O Luso-Tropicalismo e a Ideologia


Colonial Portuguesa (1933-1961). Porto, Afrontamento.
COELHO, Ana S. 2000, Olhares Sobre Mértola. Património, Desenvolvimento e Turismo. Monografia de
Licenciatura em Antropologia, FCSH-UNL. Policopiado.
COELHO, António Borges, 1972-75, Portugal na Espanha Árabe. IV Volumes. Lisboa, Seara Nova.
COLLONNA, Fanny, 1976, “Production Scientifique et Position dans le Champ Intellectuel et Politique. Deux
Cas: Augustin Berque et Joseph Desparmet” in AAVV, Le Mal de Voir. Paris, Cahiers Jussieu, pp. 398-414.
COSTA, Marta, 2002, Sintra. Uma Imagem Turística. Monografia de Licenciatura em Antropologia, FCSH-
-UNL. Policopiado.
DIAS, Jorge, 1952, “Bosquejo Histórico da Etnografia Portuguesa” in Revista Portuguesa de Filologia II,
pp. 1-64.
DIAS, Jorge, 1990a [1953], “Os Elementos Fundamentais da Cultura Portuguesa”, in Estudos de Antro-
pologia, Vol. I, Lisboa, Imprensa Nacional Casa da Moeda, pp. 135-157.
DIAS, Jorge, 1990b [1955] “Algumas Considerações Acerca da Estrutura Social do Povo Português”, in
Estudos de Antropologia, Vol. I, Lisboa, Imprensa Nacional Casa da Moeda, pp. 159-181.
DIAS, Jorge, 1990c, [1960], “Tentâmen de Fixação das Grandes Áreas Culturais Portuguesas” in Estudos
de Antropologia, Vol. I, Lisboa, Imprensa Nacional Casa da Moeda, pp. 183-206.
DÍAZ-ANDREU, Margarita, 1996, “Islamic Archaeology and the Origin of the Spanish Nation” in Días-
-Andreu e Champion (ed.) Nationalism and Archaeology in Europe. Londres, UCL Press, pp. 68-89.
DÍAZ-ANDREU, Margarita e CHAMPION, Timothy (ed.), 1996, Nationalism and Archaeology in Europe.
Londres, UCL Press.
DIRECÇÃO GERAL DE TURISMO, 1999, Terras da Moura Encantada. Arte Islâmica em Portugal. Itin-
erário/Exposição. Programa de Incremento ao Turismo Cultural.
DOMIGUES, José G., 1959 “Os estudos arábicos em Portugal depois de David Lopes”. Sep. de Revista
Portugal, série A, vol. XXIV, Lisboa, pp. 23-35.
FANJUL, Serafin, 2000, Al-Andaluz Contra España. La forja del mito. Madrid, Siglo Veintiuno.
FARIA, Rita, 2001. Os árabes na nossa história. Representações dos árabes nos livros únicos de história do
período do Estado Novo. Tese de licenciatura em Antropologia, FCSH-UNL. Policopiado.
FARINHA, António D., 1978, “Os estudos árabes na historiografia posterior a Herculano”. Sep. de A
Historiografia Portuguesa de Herculano a 1950. Lisboa, Academia Portuguesa de História, 293-304.
FARINHA, António D., 1977, “A civilização árabe na obra de Herculano”. Sep. de Alexandre Herculano
à Luz do Nosso Tempo. Lisboa, Academia Portuguesa de História, pp. 323-340.
FIGANIER, Joaquim, 1949, “Fr. João de Sousa. Mestre e Intérprete da Língua Arábica”. Sep. do Tomo V
da Revista Portuguesa de História, Coimbra.
GEERTZ, Clifford, 1971 [1969] Islam Observed, Religious Development in Morocco and Indonesia. Chi-
cago e Londres, University of Chicago Press.
GILSENAN, 1990 “Very like a Camel: The Appearance of an Anthropologist’s Middle East” in FARDON,
Richard (Ed.) Localizing Strategies. Regional Traditions of Ethnographic Writing. Edimburgo: Scottish
Academic Press, e Washington, The Smithsonian Institution.
ERIKSEN, T. H., 2003, “Between Universalism and Relativism: a Critique of the UNESCO Concept of
Culture” in COWANM, Jane, K., DEMBOUR, M-B. e WILSON, R (Org.) Culture and Rights. Anthro-
pological Perspectives, pp. 127-148.
GUICHARD, P. 1976, Al-Andaluz: Estructura Antropológica de una Sociedade Islâmica en Occidente. Bar-
celona, Barral.
GONÇALVES, José J., 1962, O Mundo Arabo-Islâmico e o Ultramar Português. Lisboa, Junta de Investi-
gações do Ultramar, Centro de Estudos Políticos e Sociais.

Castelos a Bombordo - FINALx.indd 40 27-03-2013 16:57:06


A NORTE DE ORIENTE, A SUL DE OCIDENTE • 41

HERZFELD, Michael, 2000, “Anthropology and the Politics of Significance”, Etnográfica. Vol. IV, n.º1,
pp. 5-36.
HOBSBAWM, Eric, 1991, Nations and Nationalism since 1780. Cambridge, Cambridge University Press.
HOBSBAWM, Eric e RANGER, Terence (orgs.), 1983, The Invention of Tradition. Cambridge, Cambridge
University Press.
HORDEN, P. e PURCELL, N., 2000, Corrupting Sea: a study in Mediterranean History. Oxford, Blackwell.
GOSDEN, Christopher, 1999, Anthropology and Archaeology. Londres e N. Iorque, Routledge.
JENSEN, Geoffrey, 2001, “Toward the ‘Moral Conquest’ of Morocco: Hispano-Arabic Education in Early
Twentieth-Century North Africa” in European History Quarterly, Vol. 31(2), 205- 229.
Von KEMNITZ, Eva, 2002, “Muslims as Seen by the Portuguese Press 1974-1999” in Intercultural Rela-
tions and Religious Authorities: Muslims in the European Union. Leuven, Peeters.
KOHL, Philip, 1998, “Nationalism and Archaelogy: on the Construction of Nations and the Reconstruc-
tions of Remote Past”. Annual Review of Anthropology 27:223-46.
LEAL, João. 1997 “Açoranidade: Literatura, Política, Etnografia”. Etnográfica I (2), 181-2.
LEAL, João, 1999. “Mapping Mediterranean Portugal: Pastoral and Counter-Pastoral”. Nar.umjet, 36/1,
pp. 9-31.
LEAL, João, 2000. Etnografias Portuguesas (1870-1970). Cultura Popular e Identidade Nacional. Lisboa,
Publicações D. Quixote.
LOWENTHAL, David, 1985, The Past is a Foreign Country. Cambridge, Cambridge University Press.
MacCANNEL, Dean, 1989 [1973] The Tourist: a new Theory of the Leisure Class. N.Iorque, Shocken Books.
MACHADO, José Pedro, 1964 “Os estudos arábicos em Portugal”, Sep. do Bol. Mensal da Sociedade de
Língua Portuguesa.
MACHADO, José Pedro, 1967 “David Lopes: o Homem e a Obra”, in Revista de Portugal, 32 pp. 61.
MESKELL, Lynn, 2002, “The Intersections of Identity and Politics in Archaeology”. Annual Review of
Anthropology, 32:279-301.
MOREIRA, Ana Rita, 2000, Ideias, Práticas e Instituições do Arabismo Português. Monografia de Licen-
ciatura em Antropologia, FCSH-UNL. Policopiado.
NUNO, Carlos, 1993, Património Cultural e Desenvolvimento Local: o “Projecto Mértola”. Tese de
Mestrado em Planeamento Regional e Urbano. Lisboa:Universidade Técnica de Lisboa, Policopiado.
PEREIRA, Rui M., 1986, “Antropologia aplicada na política colonial portuguesa do Estado Novo”, Revista
Internacional de Estudos Africanos, 4/5 pp.191-235.
PEREIRA, Rui M., 1998, “Introdução à reedição de 1998”, Os Macondes de Moçambique. Vol. I – Aspec-
tos Históricos e Económicos, Jorge Dias, Lisboa, Comissão Nacional para as Comemorações dos Desco-
brimentos Portugueses/Instituto de Investigação Científica e Tropical.
REGO, António da Silva, 1939, O Oriente e o Ocidente. Lisboa, Ensaios.
RIBEIRO, Orlando, 1945, Portugal, o Mediterrâneo e o Atlântico: esboço de relações geográficas. Lisboa,
Sá da Costa.
RODINSON, Maxime, 1976, “Situation, Acquis et Problèmes de l’Orientalisme Islamisant” in AAVV, Le
Mal de Voir. Paris, Cahiers Jussieu, pp.242-257.
RODINSON, Maxime, 1989, La fascination de l’islam suivi de Le seigneur bourguignon et l’esclave sar-
rasin. Paris, Editions de La Découverte.
ROSALDO, Renato, 1988, “Ideology, Place and the People without culture” in Cultural Anthropology 3
(1), pp.77-87.
SAID, Edward S., 2004 (1978), Orientalismo. Lisboa, Cotovia
SANTO, Moisés Espírito, 1995, Os Mouros Fatimidas e as Aparições de Fátima. Lisboa, Instituto de Soci-
ologia e Etnologia das Religiões, U.N.L.

Castelos a Bombordo - FINALx.indd 41 27-03-2013 16:57:06


42 • CAST ELOS A BOMBORDO

SANTOS, Boaventura de Sousa (org.), 2001, Globalização. Fatalidade ou Utopia. Vol. I de A Sociedade
Portuguesa perante os desafios da Globalização. Porto, Afrontamento.
SCHAM, Sandra A., 1998. “Mediating Nationalism and Archaelogy: A matter of Trust?”. American Anthro-
pologist, Vol. 100, n.º2. pp. 301-307.
SERRA, Pedro Cunha, 1967, “David Lopes, Ensaio bio-bibliográfico” in Revista da Faculdade de Letras,
II série, 11 (167), pp. 83-117.
SIDARUS, Adel, 1986 “Os estudos árabes em Portugal” in Islão e Arabismo em Terra Lusitana, Évora:
Publicações da Universidade de Évora, pp. 21-38.
SIDARUS, Adel (Org.), 2002, Islão Minoritário na Península Ibérica. Lisboa, Hugin.
SILVA, Augusto Santos, 1997, Palavras para um País. Oeiras, Celta.
SILVA, Maria Cardeira da, 1999. “Etnografias de Alfândega: Exercícios simples com vista à desterritorializa-
ção do trabalho de campo”. In Silva, Maria Cardeira da. (Org.) Ethnologia, n.º 6-8. Trabalho de Campo.
SILVA, Maria Cardeira da, 2002, “Una Ethnografía en los margenes. La fuerza de los lazos débiles. In
Antropologia y antropólogos en Marruecos”. In Antropología Y Antropólogos en Marruecos: Homenaje
a David Montgomery Hart. Tanger / Barcelona, Bellaterra.
STOCKING (1982), “On the Limits of ‘Presentism’ And ‘Historicism’ In the Historiography of the Behav-
ioural Sciences” in Race, Culture and Evolution. Essays in the History of Anthropology. Chicago, The
University of Chicago Press, pp. 1-12.
STOLCKE, Verena, 1995, “Talking Culture. New Boundaries, New Rhetorics of Exclusion in Europe”.
Current Anthropology, Vol. 36:1, pps 1-24
STREET, Brian, 1990, “Orientalist Discourses in the Anthropology of Iran, Afghanistan and Pakistan” in
FARDON, Richard (Ed.) Localizing Strategies. Regional Traditions of Ethnographic Writing. Edimburgo,
Scottish Academic Press, and Washington: The Smithsonian Institution.
TIESLER, Nina, 2000, “Muçulmanos na Margem. A nova presença islâmica em Portugal” in Sociologia,
Problemas e Práticas, n.º34, pp. 117-144.
TOFIÑO-QUESADA, Ignacio, 2003, “Spanish Orientalism: Uses of the Past in Spain’s Colonization in
Africa”. Comparative Studies of South Asia, Africa and Middle-East, 23:1 e 2.
TORRES, Cláudio, 2002, “A civilização islâmica é a última grande civilização mediterrânica”, in História,
n.º Especial.
1992, “O Garb Al-Andaluz” in História de Portugal. Dir. José Mattoso. Vol. I. Lisboa: Círculo de Leitores.
TURNER, Terence, 1993, “Moral Models in Anthropology”, Current Anthropology, 36(3):399-408.
VAKIL, Abdool Karim A., 2000, “Eça de Queiroz e o Islão. Questões do Oriente, Questões do Ocidente”
in Camões, Revista de Letras e Culturas Lusófonas, 9-10, pp. 75-94.
VAKIL, Abdool Karim A., 2003a, “From the Reconquista to Portugal Islâmico: Islamic heritage in the Shifting
Discourses of Portuguese Historiography and National Identity”, in Arqueologia Medieval 8, pp 5-15.
VAKIL, Abdool Karim A., 2003b, “Questões Inacabadas: Colonialismo, Islão e Portugalidade” in RIBEIRO,
Margarida C. e FERREIRA, Ana Paula (Org.), Fantasmas e Fantasias Imperiais no Imaginário Português
Contemporâneo. Porto, Campo das Letras, pp. 255-294.
VAKIL, Abdool Karim A., 2003c, “O ‘Portugal Islâmico’, o ‘Portugal Multicultural’ e os Muçulmanos Por-
tugueses: História, memória e cidadania na construção de novas identidades”, in Guilhermina Mota (ed.),
Minorias Étnicas e Religiosas em Portugal: História e Actualidade. Coimbra, IHES-FLUC, pp.409-451.
VASCONCELOS, J. Leite de, 1980 (1933), Etnografia Portuguesa, IV. Lisboa, Imprensa Nacional/Casa da Moeda.
VERTOVEC, Steven, 1996, “Multiculturalism, Culturalism and Public incorporation”. Ethnic and Racial
Studies, Vol. 19, n.º 1, pp. 49–69.
WILKIE, Laurie A. e BARTOU, Kevin M., 2000, “A Critical Archaeology Revisited”. Current Anthropol-
ogy, Vol. 41, n. 5, pp. 747- 777.

Castelos a Bombordo - FINALx.indd 42 27-03-2013 16:57:07


“DESORIENTALIZAÇÃO”,
MESTIÇAGEM E AUTOCTONIA
O discurso historiográfico moderno sobre a nação periférica1

ANA RITA MOREIRA

Durante toda a segunda metade do século XIX e início do século XX, uma parte da
intelectualidade portuguesa ligada aos sectores liberal e republicano entrega-se a um
trabalho consistente de investigação e divulgação histórica sobre o passado nacional.
Este esforço científico e literário enraíza-se num projecto de criação de uma “cultura
de patriotismo cívico” inaugurado pelos autores românticos do início de oitocentos,
e carburado pelos intelectuais republicanos do final desse século (Ramos 2001). Esta
preocupação em nacionalizar a historiografia e as consciências virá emparelhada com
o desenvolvimento de um novo paradigma que privilegia a história social, “o labor
anónimo do povo” (Maurício 1987: 5). Nas primeiras páginas da História de Portugal,
Alexandre Herculano (1810-1877), referindo-se aos historiadores renascentistas,
escreve:

Os acontecimentos gloriosos, os homens ilustres do seu país interessavam-nos incom-


paravelmente menos do que os dessa pátria fantástica adoptada por eles [a Antiguidade
grega e romana]. (…) A consequência imediata foi que, [a história] tornada árida no meio
das suas pompas, deixou de ser popular; porque nem falava uma linguagem que o povo
entendesse, nem pintava a vida como as multidões a conheciam. Daqui a perder a nacio-
nalidade ia pouco; e ela perdeu-a.” (Herculano 1875a: 32)

Mais tarde, com autores como Teófilo Braga (1834-1924) ou Oliveira Martins
(1845-1894), as teses sobre as origens e migrações étnicas europeias, auxiliadas pelo
progresso entusiástico das jovens ciências antropológicas, tomarão a dianteira na fun-
damentação histórica do espírito nacional.
Trataremos nas próximas páginas os diferentes argumentos apresentados naquele
período por uma dezena de intelectuais mais relevantes para identificar as populações
que, ao tempo da primeira batalha medieval entre mouros e cristãos, recebem o “inva-
sor”. Avaliaremos, nos diversos autores, a porosidade dessa fronteira, a congruência

1
Reproduzimos aqui, revisto e aumentado, o terceiro capítulo da nossa tese de mestrado – Árabes e Nação na Periferia da Euro-
pa: de Alexandre Herculano a David Lopes – apresentada em 2006 ao Instituto de Ciências Sociais da Universidade de Lisboa,
sob a orientação dos Professor Doutor José Manuel Sobral e Professora Doutora Maria Cardeira da Silva.

Castelos a Bombordo - FINALx.indd 43 27-03-2013 16:57:07


44 • CAST ELOS A BOMBORDO

dos grupos, a enunciação das afinidades e dos antagonismos, e procuraremos identi-


ficar os elementos identitários basilares mais frequentemente recrutados. Começaremos
pelo lado de cá da “muralha de ferro”. Num segundo momento do texto, agruparemos
as principais teses sobre as populações identificadas, com maior ou menor rigor, como
mouras, árabes e berberes.

Alexandre Herculano: a “muralha de ferro” e a hierarquia civilizacional

O trabalho de Alexandre Herculano é pioneiro no tratamento crítico das fontes


medievais, confrontando e completando as informações dos documentos cristãos com
o recurso a fontes árabes traduzidas já disponíveis ao tempo em diversas Histórias de
Espanha (Lopes 1911: 22). O autor é a principal referência historiográfica no que
respeita aquele período e, em concreto, à interpretação do contacto entre cristãos e
muçulmanos, tanto para a historiografia de divulgação como para a erudita. É na sua
História de Portugal (1846) que pela primeira vez toma relevo o Al-Andaluz e são
levantadas questões como a importância demográfica e social da população moçárabe
e a convivência entre mouros e cristãos, antes e depois da Reconquista.
Segundo Herculano, a população peninsular era, ao tempo chegada dos “inva-
sores”, composta por uma “mistura inextricável de homens de muitas e diversas
origens”, que constituía, não obstante, “ao menos nas exterioridades, uma só nação”.
A “forte nacionalidade romana” já se sobrepusera à mescla de costumes aborígenes,
tornando insignificantes os vestígios da sua influência (Herculano 1875a: 74). Com
o que podemos interpretar como cepticismo ou cautela, Herculano relata que a
Espanha “parece ter sido povoada” por “tribos mistas” de celtiberos. Estes povos
autóctones com que depararam os romanos terão resultado da associação de duas
migrações sucessivas oriundas da Ásia: os iberos, primeiro, e os celtas, mais tarde
(ibidem: 43)
As invasões bárbaras provocariam uma nova cisão, mas a linha que dividira por
largo tempo a população hispano-romana submetida e os visigodos conquistadores
fora, com o tempo, diluída. Romanos e Godos partilhavam agora um direito único,
instituições e crença comuns (ibidem: 71-72). Comparada com a comunicação entre
as sociedades cristã e muçulmana, a “incorporação” romano-goda teria sido mais
“completa”, pela ausência de reacção dos vencidos, pela identidade de crença, e por-
que os godos estavam já parcialmente romanizados (Herculano 1875b: 18).
Numa passagem de Eurico em que descreve as hostes em confronto na Batalha de
Guadalete, Herculano identifica ainda origens distintas na composição do comando
militar e da infantaria. No topo da hierarquia defrontam-se cavaleiros sarracenos – “a

Castelos a Bombordo - FINALx.indd 44 27-03-2013 16:57:07


A NORTE DE ORIENTE, A SUL DE OCIDENTE • 45

flor do exército de Tárique” – e guerreiros godos, “espadaúdos soldados da Lusitânia


Setentrional e da Galécia”; na base, avolumam-se, do lado dos invasores, os Berberes
– “a catadura selvagem dos africanos seus aliados”, e do lado contrário, Lusitanos –
“aborígenes, talvez, daquele país” – e Vascos, os quais diz serem “não menos bárbaros
e ferozes que os filhos da Mauritânia” (Herculano 1919: 14, 24-26). Para além da
distribuição de povos distintos pelas fileiras da batalha, Herculano faz aqui realçar
uma hierarquia civilizacional que se sobrepõe à luta principal e une os dois lados do
combate. Em contraste com a superioridade material e moral dos chefes militares, a
soldadesca é, em ambos os exércitos, “bárbara” e “selvagem”:

Requeimados pelo sol ardente do Estio ou pelo vento gelado dos invernos rigorosos
das serranias, incapazes de conhecerem a vantagem da ordem e da disciplina, estes homens
rudes combatiam meio nus e desprezavam todas as precauções da guerra. O seu grito de
acometer era um rugido de tigre. Vencidos, nunca se lhes ouvia pedir compaixão; porque,
vencedores, não havia a esperar deles misericórdia. Tais eram os soldados que a Espanha
opunha à mourisma que circundava os árabes. (ibidem: 26)

Mas na primeira batalha entre peninsulares e invasores é a “muralha de ferro (…)


entre o Islamismo e a Europa” que identifica a fronteira identitária, ainda que se con-
funda – ou sobretudo porque se confundem –, na intensidade e na natureza, os res-
pectivos gritos de guerra:

Ao mesmo tempo as trombetas godas e anafis árabes deram o sinal de combate, e o


grito de “Cristo e avante!” confundiu-se com o brado de “Allah hu Acbar!” – o brado de
guerra dos pelejadores sarracenos. (ibidem: 44)

Teófilo Braga: antagonismos de classe

Em Teófilo Braga, a identificação do corte primordial entre “terceiro estado” e


aristocracia parece sobrepor-se à procura da preponderância de um elemento étnico
que dê coerência à Península ou a partes dela. Este enfoque na ideia de um antago-
nismo de classe, sobretudo porque Teófilo tentará fundamentá-la em termos étnicos,
torna a consistência das restantes oposições menos relevante. Ao longo da sua obra,
Teófilo Braga usa mais do que uma tese etnogénica para identificar as origens do carác-
ter individualista e separatista que diz caracterizar a população que, através das eras,
se constitui como portadora de um sistema moral novo de vocação democrática. O
autor é constante, porém, em afirmar que a invasão árabe encontra não um mas dois

Castelos a Bombordo - FINALx.indd 45 27-03-2013 16:57:07


46 • CAST ELOS A BOMBORDO

colectivos que se vinham demarcando desde a instalação dos romanos e cuja separação
se tinha agravado pelo domínio da monarquia visigótica:

A continuidade das invasões [romana e germânica] fez com que a banda guerreira e a
banda agrícola iguais como homens livres (werh-man) se distanciassem, prevalecendo os
homens de armas sobre a decadência da outra classe, que se foi misturando com as popu-
lações vencidas, do colonato romano, os lidi, leude, lazzi ou Lige. (Braga 1909: 24)

A maior diversidade de teses refere-se à identificação destas “populações vencidas” que


se associam àquela “banda agrícola” de origem germânica em fractura com a aristocracia
gótico-romana. O autor parece argumentar mais frequentemente por uma predominância
ariana na amálgama étnica peninsular, oscilando porém no relevo dado a esta ou àquela “raça”
específica. No entanto, ocorre por vezes argumentar também em favor da importância da
influência dos primeiros contactos com semitas (fenícios e cartagineses) ou pela existência de
“raças autóctones”, anteriores ao início das migrações, tanto arianas como semitas.
Em diferentes obras publicadas ainda no século XIX, Teófilo identifica várias correntes
sucessivas de migrações asiáticas para a Península. Na Pátria Portuguesa (1894), o autor
recenseia dois grandes movimentos populacionais: um proto-árico, onde insere, entre outros,
os iberos; e outro “propriamente árico”, onde arrola os celtas, as migrações “heleno-áricas”
e os germanos. Ressalva no entanto que, não obstante estas migrações, existiriam na Europa
raças autóctones que não haviam sido definitivamente obliteradas (Braga 1894: 46).
No Povo Português (1885), Teófilo singulariza na sucessão de migrações a impor-
tância de iberos e celtas, os quais, segundo o autor, constituem o fundo étnico “(…)
que preponderá através da sucessão das raças históricas que ocuparam a Península e
de que receberam apenas formas exteriores de cultura” (Braga 1885: 65). Pormenoriza
ainda que a migração dos iberos, “a mais antiga das raças históricas que ocuparam a
Península” se fez pelo Sul, atravessando o Norte de África, onde deu origem aos ber-
beres – o que explicaria, diz, a sua afinidade com os peninsulares. Pelo Norte entrou
um outro ramo desta raça a que W. Humboldt (1767-1835), citado por Teófilo, deno-
minou Euske. Estas duas migrações constituem, segundo Teófilo Braga, “a primeira
base para a unidade da civilização ocidental, que se verifica na homogeneidade das
tradições líricas, épicas, novelescas, e nas superstições populares comuns a Portugal,
Espanha, França, Itália e Grécia moderna” (ibidem: 65).
No que respeita aos celtas, Teófilo encontra uma nova partição nos movimentos migra-
tórios, identificando um primeiro fluxo de “Ligúrios”, ou “Celtas marítimos”, dirigindo-se
de Leste para Oeste, e um fluxo posterior de “Celtas louros” que descem do Norte da
Europa. Será da ligação entre estes dois ramos celtas e os iberos que se constituirão os cel-
tiberos enquanto população predominante na Península à chegada dos “povos aventurei-

Castelos a Bombordo - FINALx.indd 46 27-03-2013 16:57:07


A NORTE DE ORIENTE, A SUL DE OCIDENTE • 47

ros do Mediterrâneo”: os de estirpe ariana, romanos e gregos, e os semitas, fenícios e


cartagineses (ibidem: 66). A oscilação do fundo étnico Ibero-Euske – ora para os caracte-
res semíticos ora para os áricos – determina então, segundo o autor, duas distinções per-
sistentes na Península: a que separa Portugal, mais céltico, da Espanha, mais semita; e a
que demarca na população portuguesa duas metades etnológicas – a Norte, onde predo-
mina o elemento árico, e a Sul, onde predomina o semita (Braga 1909: 72-73).
Já em 1909, na edição definitiva da História da Literatura Portuguesa, Teófilo pro-
cura reabilitar o papel do Lusitano, deixando simultaneamente cair a tese celtibérica.
Ramo dos Lígures – “uma raça navegadora que fazia o comércio do âmbar, do mar do
Norte”, mas sem ligação explícita com os celtas –, os lusitanos, comprimidos pelos
iberos – raça asiática que ocupa o Oriente peninsular – num canto ocidental da Penín-
sula, resistiram, segundo o autor, sem se miscigenarem, às sucessivas invasões de celtas,
romanos e fenícios. Constituem mesmo, diz Teófilo, citando Joseph Deniker (1852-
-1918) e W. F. Edwards2, a “raça mais pura da Europa”:

Nem a invasão já enfraquecida dos Celtas, na Espanha; nem os Romanos pela sua falta
de número entre os mercenários das suas legiões, nem os Fenícios, pela sua incomunicabi-
lidade semita, se mestiçaram com os Lusitanos, conservando-se, como observaram Frederico
Edwards e Deniker, a raça mais pura da Europa. (Braga 1909: 23)

Nesta tese derradeira, será a “cultura luso-bérica” a associar-se com a “banda agrí-
cola” goda:

O orgulho aristocrático cada vez separava mais a classe guerreira ou senhorial; e a deca-
dência das garantias do antigo homem-livre cada vez sincretizava mais os lites com as popu-
lações lusibéricas, que nunca tinham sido destruídas, nem escravizadas. Era nesta população
numerosa, que procurava a estabilidade territorial e a revivescência das suas garantias (a
fara) que havia de organizar-se a sociedade moderna da Espanha. (ibidem: 25)

Oliveira Martins: afinidades ibéricas

Apoiando-se em teses contemporâneas da antropologia e da arqueologia pré-


-histórica3, Oliveira Martins defende, em particular na História da Civilização Ibérica

2
Entre as obras mais populares destes autores encontram-se Les races et les peuples de la terre (1900), de Deniker, e Des carac-
tères physiologiques des races humaines considérés dans leur rapports avec l’histoire (1829), de Edwards.
3
Apenas cita, contudo, referências mais antigas, como Wilhelm Humboldt (1767-1835), Leibniz (1646–1716), Barthold Georg
Niebuhr (1776-1831) e Martins (1879: 34, 36).

Castelos a Bombordo - FINALx.indd 47 27-03-2013 16:57:07


48 • CAST ELOS A BOMBORDO

(1879) e n’As Raças Humanas… (1881), a afinidade antropológica entre os povos


autóctones da Península Ibérica e os povos norte-africanos, o que indicaria, segundo
o autor, uma filiação etnogénica comum. Esta afinidade seria comprovada pela seme-
lhança dos índices encefálicos, pela comparação dos monumentos megalíticos desco-
bertos nas duas margens do Estreito de Gibraltar, e ainda pelos paralelismos patentes
em instituições locais como os pueblos espanhóis – que sobreviveriam na forma dos
municípios e dos ayuntamentos – e as djemâas cabilas (Martins 1879: 37-40). A ori-
gem primeira destes povos, a que se dá o nome de “iberos”, é um dos muitos temas
etnogénicos que se mantêm em discussão, divergindo as opiniões entre a ligação a uma
fonte indo-europeia, autóctone, ou africana. Teófilo, como vimos acima, e Correia
Barata, que desenvolveremos a seguir, defendem a procedência asiática. Oliveira Mar-
tins parece inclinar-se para uma das duas últimas – autóctone ou africana –, excluindo,
como poderemos compreender mais à frente, a hipótese indo-europeia (ibidem: 35).
Em sintonia com Alexandre Herculano, Oliveira Martins concede uma importân-
cia decisiva ao aporte romano. Na perspectiva do autor, será a romanização a fazer
divergir a Espanha do seu desenvolvimento espontâneo, afastando-a decisivamente da
sua irmã norte-africana. É assim que se permite ver nas tribos berberes a imagem des-
contaminada dos povos primitivos da Península Ibérica:

Como a raça berbere, que pôde escapar à contaminação estranha, constituída em peque-
nas tribos independentes e variamente federadas, assim é de crer que teria sido a península,
se tivesse podido libertar-se dos seus conquistadores antes de fazer suas as ideias que eles
lhe ensinaram. (ibidem: 43)

Mas também em Espanha, nomeadamente na ponta nordeste (na região do Ebro


e no País Basco), subsistem ainda, resistentes, as “primitivas tribos peninsulares”:

(…) é também aí que a vida da djemâa é mais intensa, e mais pronunciada a resistência
à iniciação europeia. O amor quase religioso da sua língua, o culto pelos seus fueros, são
sentimentos enraizados que ainda em nossos dias a civilização espanhola não pode extin-
guir. (ibidem: 43)

A divergência com os caracteres primitivos proporcionada pela romanização, diz


Oliveira Martins, não deverá ser tida como um infortúnio, antes pelo contrário, uma
vez que teria permitido aos peninsulares sair do estado de tribo em que permaneceu
o Norte de África (ibidem: 42-43). Se o carácter resistente e insubmisso que o autor
identifica como específico aos iberos constitui um obstáculo ao estabelecimento de
formas civilizacionais superiores – “autoritárias” – no Norte de África, conduzindo a

Castelos a Bombordo - FINALx.indd 48 27-03-2013 16:57:07


A NORTE DE ORIENTE, A SUL DE OCIDENTE • 49

um estado de anarquia permanente, já em Espanha, “batida mas não vencida”, dará


uma feição particular às suas instituições (ibidem: 48). A originalidade da civilização
peninsular residirá justamente, segundo o autor, na centenária e conflituosa combina-
ção entre os caracteres autóctones ibéricos e as ideias indo-europeias trazidas pelas
migrações arianas que, vindas do Norte, atravessaram os Pirenéus4. Os encontros com
os Celtas – cujo cruzamento com as populações autóctones produz os “celtiberos” –,
e mais tarde com os Romanos, serão alguns dos mais importantes episódios históricos
deste confronto. Nestes encontros, se o “homem antropológico” não se altera, o
“homem social” da Península é, segundo o historiador, decididamente obliterado. É
com Roma que a Espanha adquire, na ideia de Oliveira Martins, a sua “primeira fisio-
nomia histórica” (Martins 1881: 264-65): “Qualquer que seja o sangue indígena de
Espanha, é facto que a sua história começa com os latinos, à romana (ibidem: 264)”.
Tal é, então, a transformação sofrida que, ao tempo da invasão árabe, a afinidade
etnogénica entre peninsulares e norte-africanos acha-se já esquecida:

(…) agora vemos que a romanização transformou os espanhóis ao ponto de já não


reconhecerem nos novos invasores os seus antigos irmãos de sangue; tal poder as ideias de
uma civilização exercem sobre a massa como que informe das populações semi-bárbaras,
que chegam a obliterar nela as simpatias vinculadas a uma descendência comum. (Martins
1879: 118)

A ideia de reencontros onde os actores não se apercebem de uma afinidade antiga


é, como teremos oportunidade de salientar noutros autores5, um tema frequente.

Preponderância ariana

Encontrámos mais algumas variações no quadro de identificação das populações


peninsulares. Segundo Francisco Correia Barata (1847-1900), os árabes que atra-
vessam o estreito deparam com uma raça gótico-romana, infundida por três trans-
fusões sucessivas de sangue ariano: celto-ibera, romana e visigoda. Os distantes
caracteres semíticos que se terão introduzido na Península Ibérica aquando do con-
tacto com populações gregas e fenícias estariam, por meio desta contínua infusão,
definitivamente diluídos. A “antinomia” entre semitas e arianos nestes primeiros

4
Esta característica insubmissa dos povos ibéricos determina, segundo o autor, a renitência não apenas às ideias vindas do Nor-
te, mas também às que chegarão por mar, vindas do Sul (semitas e não semitas) (Martins 1879: 45).
5
Ver, por exemplo, a seguir, Correia Barata sobre o reencontro entre celtiberos e godos, e, mais à frente, Alberto Sampaio sobre
a romanização.

Castelos a Bombordo - FINALx.indd 49 27-03-2013 16:57:07


50 • CAST ELOS A BOMBORDO

tempos teria sido vencida pelo longo período de contacto com as populações cel-
tiberas e pela transformação imposta pela adaptação a um novo território, o que
teria conduzido à “perda de pureza” dos primeiros, assim mais dispostos a misturar-
-se na amálgama ariana (Barata 1872: 9-10): “Nestas circunstâncias a fusão com
um novo elemento ariano, como era a raça latina, não podia apresentar grandes
obstáculos” (ibidem: 10).
Os iberos, esclarece o autor, não são, como alguns crêem, provenientes de África,
mas arianos que chegaram à Península por essa via. Correia Barata aproxima-se aqui
de uma das teses de Teófilo Braga, afastando-se de Oliveira Martins. As tribos asiáticas
teriam seguido por duas grandes rotas nos seus movimentos migratórios: as costas
Norte e Sul do Mediterrâneo. Ter-se-iam assim mantido durante largos séculos sepa-
radas pelo império romano, ao ponto de não se reconhecerem quando, no século V,
se confrontam na Península sob a forma de celtiberos e godos:

O embate, pois, entre o Sul e o Norte no séc. V, deu-se entre povos inteiramente ini-
migos e que se consideravam absolutamente estranhos; o que não admira, considerando o
longo período durante o qual as migrações se fizeram, e a primeira separação das famílias,
as quais sucessivamente foram substituídas pelos seus descendentes. (Barata 1873: 65)

Tendendo infalivelmente para a mistura, a “fusão de caracteres” no contacto


entre raças diferentes seria tanto mais expedito quanto maior fosse a afinidade étnica.
Assim, se na primeira mistura, entre raças greco-fenícias e celtiberas, são necessários
doze séculos de contacto, já na formação da raça hispano-latina, produto da assimi-
lação entre a resultante da anterior e os elementos romanos, cinco séculos bastam;
mais tarde, bastarão dois para a consolidação da raça gótico-romana (Barata 1872:
16-17).
A invasão muçulmana ocorre então num território onde as populações se acham
dotadas de uma coerência étnica constituída em vários séculos de migrações de uma
mesma estirpe, e cuja tendência é marcadamente ariana. Ao contrário das invasões
bárbaras, “desta vez todos os elementos entram em luta aberta, tudo é antagónico:
raça, instituições, religião, língua, tradições” (ibidem: 22).
Júlio de Vilhena (1845-1928), que em 1873 publica As raças históricas da Penín-
sula Ibérica e a sua influência no direito português, acerta pela mesma argumentação
quando refere a insignificância dos momentos de sobreposição do “elemento semítico”
na Península Ibérica. Cartagineses e fenícios – os dois “elos da cadeia semítica” na
Península anteriores à entrada dos árabes – pouco alteram a natureza ariana das popu-
lações indígenas, deixando apenas “um leve sedimento” nas instituições, que o autor
não chega porém a identificar (Vilhena 1873: 125-26).

Castelos a Bombordo - FINALx.indd 50 27-03-2013 16:57:08


A NORTE DE ORIENTE, A SUL DE OCIDENTE • 51

A tese ligúrica

Francisco Martins Sarmento (1833-1899) e Alberto Sampaio (1841-1908) adop-


tam a tese ligúrica, da autoria do primeiro, defendendo a ligação dos Lusitanos à famí-
lia dos Lígures; tendo-se espalhado pelo Sul e Ocidente europeu, desde o Báltico até
ao Mediterrâneo, cobrindo a Grécia, a Itália, a Sicília e a Espanha, os Lígures não só
teriam sido os “primeiros colonos arianos” a penetrar na Europa como seriam também
responsáveis pela introdução na Europa ocidental da “primeira civilização digna deste
nome” (Sarmento 1887: 224). As invasões célticas vêm, porém, quebrar a continui-
dade espacial destas populações, ficando o ramo ocidental acantonado no noroeste da
Península e livre de contacto com outros povos até à chegada dos romanos. As leis da
prevalência da raça moralmente superior sobre a inferior e da raça indígena sobre a
exótica, argumenta Martins Sarmento, não permitem que os celtas modifiquem moral
ou antropologicamente estes Lígures ocidentais (ibidem: 236). Os Lusitanos são, por
este motivo, detentores de “uma das mais puras árvores genealógicas dos povos anti-
gos” (Sarmento 1880: 27). A tese de Francisco Sarmento, coligida pela primeira vez
em Os Lusitanos – Questões de Etnologia (1880), é alicerçada na exploração arqueo-
lógica da Citânia de Briteiros e Sabroso, perto de Guimarães, e na interpretação de
textos antigos, especialmente na Ora Marítima de Avieno, onde se relata um périplo
fenício do século VI a.C. que descreve os primitivos habitantes da Península.
Alberto Sampaio utiliza a tese do mestre arqueólogo sobretudo em O Minho Rural e
Industrial (188-) e n’ As Vilas do Norte de Portugal (1899). Sampaio segue, em grande
medida, as argumentações de Sarmento, mas acrescenta que o isolamento a que são vota-
dos os Lusitanos, por ficarem, em consequência das invasões celtas, sem comunicação com
o mundo italo-grego, determina o facto de permanecerem “imobilizados na [civilização]
do bronze”: “(…) os que avançaram para estas paragens, separados, e destacados desse
grande mundo da Grécia e Itália pela chegada dos Celtas, ficaram estacionárias, conser-
vando a primitiva civilização que possuíam quando emigraram” (Sampaio 188-: 204).
A romanização destes povos que partilham com os romanos o mesmo fundo étnico
é, deste modo, como que a recuperação de tempo perdido:

O domínio romano durou aproximadamente 437 anos; durante este longo tempo a
província, em paz e em relações íntimas com os dominadores, seus parentes próximos, saiu
rapidamente do imobilismo anterior; e fundiu-se na sua civilização, romanizou-se, como
se costuma dizer, por completo. (ibidem: 206)

Já o processo de germanização da Península não terá sido, na perspectiva de Alberto


Sampaio, ecoando a expressão de Herculano, tão perfeita. As populações locais teriam,

Castelos a Bombordo - FINALx.indd 51 27-03-2013 16:57:08


52 • CAST ELOS A BOMBORDO

no entanto, assimilado algum do “carácter e desenvolvimento intelectual” do invasor


germano e, até certo ponto, alguns traços físicos setentrionais (ibidem: 213). Ambos
os autores concentram o estudo no Norte do país, pelo que será necessário ler estes
enunciados à luz da construção de um quadro histórico regional.

Nação composta

A posição de Adolfo Coelho (1847-1919) sobre a composição da população penin-


sular por altura da chegada dos árabes encontra-se delineada com mais clareza em
Questões Etnogénicas (1890) e n’O supposto escandinavismo de Anthero de Quental
(1897), dois artigos em que se dedica a desmontar a utilização pouco rigorosa pelos
seus contemporâneos dos enunciados antropológicos. Nestes dois textos, Coelho
defende a multiplicidade de camadas étnicas sobrepostas na Península e a impossibili-
dade de destacar, entre estas, uma que prepondere significativamente:

(…) chamemo-nos portugueses e tratemos de entender a nossa composição imediata, o


que já não é pouco, como produto, principalmente de factores históricos, sociais, geográfi-
cos, que actuaram numa longa série de séculos sobre grupos étnicos que ao estabelecerem-se
na península estavam ainda muito diferenciados. (Coelho 1897: 98-99)

Em Questões Etnogénicas, a crítica de Martins Sarmento e da sua tese ligúrica é


pretexto para reiterar a defesa da composição mista da população portuguesa:

São como se sabe muito escassos os dados antropológicos seguros que temos com relação
aos antigos habitantes da Lusitânia (romana) e Callaecia; a conclusão a que se chegou é que
desde antiquíssimos tempos se cruzaram ou justapuseram aqui diversas raças; ninguém achou
entre essas, assim como nos tipos modernos da população, o tipo ligur. (Coelho 1890: 155)

No segundo artigo, Adolfo Coelho ataca as teses simplistas sobre a distinção entre
tipos loiros e morenos, a que se faz comummente corresponder uma hierarquia psicoló-
gica, onde o primeiro, o tipo setentrional, é tomado como intelectualmente superior ao
tipo meridional. O caso do poeta Antero de Quental, sobre o qual existem teorias que
relacionam o seu “carácter e inteligência” a um atavismo dos tipos antropológicos do
Norte – de que constituiriam prova suplementar os caracteres físicos exteriores: “alto, de
tez alva, cabelo loiro, olhos azuis” –, fornece o mote para a crítica (Coelho 1897: 59-60).
O argumento de Adolfo Coelho é elaborado no sentido da defesa da mestiçagem, tanto
“somática” como “psíquica”, dos tipos portugueses primitivos (onde se sucedem desde

Castelos a Bombordo - FINALx.indd 52 27-03-2013 16:57:08


A NORTE DE ORIENTE, A SUL DE OCIDENTE • 53

antanho louros e morenos), e da qual não resulta a justaposição de tipos estanques mas
uma única nação composta. Esta é, no entanto, susceptível de variações regionais:

Admitindo que os árias e os turanios eram no começo o que pretende De Lapouge, que
iberos, berberes e outros quaisquer elementos da população peninsular entram nas duas
categorias étnicas ou em parte ainda numa terceira e juntando-lhe como última categoria
os semitas (judeus e árabes), a panmixia teria feito deles, ao cabo de séculos, mestiços já
pelo lado somático, já pelo psíquico, e no território português formariam uma nação, não
duas nações justapostas, com um só carácter nacional, embora com variantes provinciais,
locais, individuais. (...) tivemos [depois do século XVI] príncipes loiros e de olhos azuis,
mas não se renovaram por isso os tempos de gloriosa iniciativa. (ibidem: 109)

A perspectiva de Leite Vasconcelos (1858-1941) incidirá também na “impureza”


étnica da população peninsular, composta por um sortido histórico de povos nativos
e migrantes. E a miscigenação estende-se também ao invasor romano:

Naquela época [romana] ocupavam a Lusitânia: Turdetanos no Sul, Célticos no Sul e no


Norte, Igeditanos na Beira, Presuros ao Sul do Douro, Gróvios ao Norte, Brácaros no Minho,
Zelas em Trás-os-Montes, – tribos, em parte nativas, em parte resultantes de cruzamento dos
Celtas, e de outros, com os Lusitanos. Além disso os Romanos não eram uma raça pura, eram
um povo composto de muitas raças. Depois dos Romanos vieram povos do Norte e Árabes.
E já por cá havia Mouros e Judeus desde tempos antigos. (Vasconcelos 1926: 288)

Em conclusão, e não obstante a profusão de motivos na identificação dos povos


peninsulares, é possível realçar alguns temas reiterados, nomeadamente 1) a importân-
cia da romanização, sobretudo em Herculano, Oliveira Martins e Alberto Sampaio, 2)
a preponderância do elemento ariano, mais notada em Correia Barata, Júlio de Vilhena
e Martins Sarmento, e 3) a apologia do composto mestiço, sustentada por Adolfo Coe-
lho e Leite Vasconcelos. É possível ainda discernir uma analogia entre a hierarquia civi-
lizacional proposta sumidamente por Herculano e o antagonismo de classe de que fala
Teófilo, enquanto estratos opcionais de interpretação daquelas realidades.
Se a identidade dos povos peninsulares está, como temos vindo a observar, sujeita
a alguma polémica, já a identificação do invasor muçulmano é, por contraste, relati-
vamente inequívoca. Este consenso parece dever-se ao facto de este ser habitualmente
um interesse subsidiário ao argumento central das obras – a identificação do tipo nacio-
nal –, aparecendo muito esparsamente pelos textos, e, para mais, um assunto com o
qual os autores parecem menos familiarizados, notando-se a recorrência frequente a
fontes secundárias, maioritariamente estrangeiras.

Castelos a Bombordo - FINALx.indd 53 27-03-2013 16:57:08


54 • CAST ELOS A BOMBORDO

Mouros, Árabes e Berberes

Os invasores são globalmente identificados como povos de raça e religião dife-


rente. A estas “mútuas repugnâncias” acresce, após a conquista, a que é, segundo
Herculano, usualmente provocada pela “sujeição de povos conquistados” (Herculano
1875a: 137). Entre estas múltiplas aversões, a mais referida – e aquela à qual é con-
cedida maior relevância – é a diferença religiosa. Alberto Sampaio identifica os povos
invasores como “inimigos, de raça, de costumes e sobretudo de religião, diferentes.”
(Sampaio 188-: 215). Similarmente, Manuel Pinheiro Chagas (1842-1895) elege,
entre outros motivos, a “inimizade religiosa” como o conflito essencial que subsiste
“à convivência e à assimilação social”, argumentando que esta divergência se consti-
tui mesmo – na medida em que permite a constituição da classe moçárabe – como
determinante para a introdução da cultura intelectual árabe na tradição peninsular
(Chagas 1899: 26).
É, porém, consensual nos autores mais documentados, que entre os povos que
invadem a Península no século VIII não se encontram apenas os habitantes da distante
Arábia. O maior número caberá às populações norte-africanas. Assim o constatam,
entre outros, Teófilo Braga, para quem “a ocupação dos árabes fez-se principalmente
com tribos de Mouros e Berberes” (Braga, 1985, p. 26), ou David Lopes, que pergun-
taria, mais tarde: “Que gentes vieram na invasão? Não é talvez difícil dizê-lo. Berberes,
Mouros, pois, sobretudo; depois Árabes e de mistura elementos vários que sobrena-
davam na enxurrada vinda de longe” (Lopes 1928: 392-93).
Esta percepção, que Herculano transporta da historiografia estrangeira sobre a
Península6, permitirá desenvolver novos enunciados na compreensão das relações que
se estabelecem durante os cinco séculos de domínio árabe. Mas trará também, em cer-
tos autores, algumas confusões terminológicas, especialmente a que respeita a defini-
ção do termo “mouros”, que ora identifica os norte-africanos, sobrepondo-se por vezes
com pouca clareza à identificação das populações berberes, ora conserva o âmbito lato
que detém no uso comum. Os “mouros” são, segundo Teófilo Braga, berberes arabi-
zados, pelo cruzamento, e islamizados, pela conversão (Braga 1885: 281); já para Oli-
veira Martins, os “mouros” são semitas que chegam ao Norte de África numa migração
mais antiga, anterior à corrente invasão (Martins 1881: 172). A confusão adensa-se
quando, apesar do reconhecimento desta distinção norte-africana, o termo “mouros”
é ainda frequentemente utilizado como denominador colectivo das populações que se
opõem aos reinos cristãos. No prefácio da tradução da História de Portugal de Henry

6
“Para o período anterior à formação do condado portucalense (...) não fez mais do que resumir as histórias de Espanha que
ao tempo existiam e longamente haviam tratado do assunto: Lembke, Rosseeuw Saint Hilaire e Romey” (Lopes 1911: 22).

Castelos a Bombordo - FINALx.indd 54 27-03-2013 16:57:08


A NORTE DE ORIENTE, A SUL DE OCIDENTE • 55

Stephens, Oliveira Martins alerta o autor inglês para um equívoco em que, não obs-
tante, o próprio incorre com frequência:

Igual confusão ao chamar moorish, mouro, ao califado de Córdoba (pág. 13). O califado
dos omíadas destronados de Damasco era genuinamente árabe; e só depois da sua queda, na
fragmentação do domínio político da Espanha muçulmana, houve emiratos mouros, ou mar-
roquinos, até à segunda unificação do império sob os almorávidas; quando pela primeira vez
a Espanha ficou formando uma província do sultanato de Marrocos. (Martins 1893: 327)

David Lopes reconhece esta duplicidade entre os usos “erudito” e “popular” do


termo. Na obra que intitula Portugal contra os Mouros (193-), o autor dedica, porém,
as primeiras páginas a esclarecer as razões que o levaram a utilizar uma expressão que
considera inexacta:

“Mouros” lhe chamámos nós, por terem vindo da região que tinha o nome de Mauri-
tânia e hoje tem, em parte, o de Marrocos. Não é bem exacta esta designação: ela compre-
endia não só mouros mas outros povos que combatiam debaixo da mesma bandeira: árabes,
sírios, persas, etc., mas foi consagrada pelos séculos e por isso a usamos. (Lopes 193-: 4)

“Mouros” são afinal, com alguma consistência, as populações muçulmanas: os


dominadores árabes, os berberes islamizados, os muçulmanos que se conservam na
península depois da conquista cristã ou os que os navegadores vão reencontrar, a par-
tir do século XV, nas expedições em África e na Ásia.
No composto de povos que atravessam o mediterrâneo, e apesar da indistinção criada
pelo uso lato daquela designação, nota-se uma adesão persistente à tese da ruptura entre
“tribos” asiáticas e africanas indicada por Herculano. A tese é mesmo reforçada, nos
autores que o seguem, por um desdobramento daquela cisão em novas oposições: entre
semitas e arianos, entre populações muçulmanas e islamizadas, entre dominadores e
dominados. No sexto volume da História de Portugal, Herculano caracteriza a ruptura
entre africanos e asiáticos como mais importante e “sanguinolenta” do que a que opõe
os diferentes guetos – “mouros ou sarracenos, judeus e colónias estrangeiras vindas dos
Pirinéus” – que se estabelecem na Península sob o domínio árabe:

(…) a oposição mútua destas diferentes colónias nunca foi tão profundamente carac-
terizada nem tão importante como a das colónias do Magrebe, ou de raça berbere, contra
esses mesmos povos rivais. A malevolência, ora latente, ora manifestada em longas e san-
guinolentas guerras entre as tribos asiáticas e africanas, durou até que estas obtiveram um
decisivo triunfo (…)” (Herculano 1875b: 63)

Castelos a Bombordo - FINALx.indd 55 27-03-2013 16:57:08


56 • CAST ELOS A BOMBORDO

A ideia de uma rivalidade ancestral entre árabes e berberes ganhará eco na histo-
riografia posterior. Pinheiro Chagas, na História de Portugal Popular e Ilustrada (1899),
caracteriza os berberes como populações “naturalmente hostis aos árabes”, o que jus-
tificaria a instabilidade política sob os califados árabes (21). Em David Lopes, por seu
turno, a oposição entre africanos e asiáticos deriva não de um antagonismo natural,
ou de raça, mas de uma afinidade étnica que faz tender ambos os povos para a “hos-
tilidade permanente”. Árabes e berberes partilham “o mesmo espírito individualista,
o mesmo sentimento de independência indómita do seu torrão”, características que o
autor relaciona com a organização social em tribos (Lopes 1928: 392-93).

Semitas e Arianos

Nos autores mais familiarizados com as teorias antropológicas contemporâneas,


esta oposição central entre árabes e berberes permitirá demarcar, entre as populações
invasoras, o elemento semita – um elemento que, segundo a corrente dominante de
interpretação das origens da humanidade, se acha carregado de enunciados negativa-
mente valorizados. Um dos depoimentos mais significativos a este respeito é da auto-
ria de Júlio de Vilhena no capítulo d’As raças históricas da Península Ibérica e a sua
influência no direito português dedicado à “Invasão dos Árabes na Península”: “A raça
semita não tem literatura, porque não tem imaginação; não tem filosofia, porque não
tem metafísica; não tem religião, porque é intolerante” (Vilhena 1873: 127).
Este argumento impressionista de Vilhena reproduz com alguma simplicidade uma
proposição comum no século XIX sobre a incapacidade civilizacional da raça semita. David
Lopes irá elaborá-la com mais detalhe, num parágrafo onde, destituindo os árabes de qual-
quer agência na construção de cultura, os apresenta essencialmente como plagiadores:

No Oriente, os grandes pensadores da filosofia árabe são Persas, principalmente, como


Algazel e Avicena. A própria filosofia e a ciência árabes têm nos Gregos as suas origens.
Foram cristãos helenizados que traduziram para árabe Aristóteles e Platão, os orientadores
do pensamento filosófico árabe. Os contos e apólogos morais são de origem pérsica ou
índica. A arte árabe têm muito dos Bizantinos. A religião islâmica também não é funda-
mente original. Assim os Árias foram os mestres dos Árabes; em toda a parte do mundo
muçulmano são eles, sobretudo, que elaboram o pensamento islâmico, depois que foram
eles que lhe imprimiram movimento. (Lopes 1928: 413)

Se a identificação da origem dos berberes se mantém sob alguma discussão – osci-


lando, ao sabor do argumento principal, entre uma filiação africana, ariana ou semita

Castelos a Bombordo - FINALx.indd 56 27-03-2013 16:57:08


A NORTE DE ORIENTE, A SUL DE OCIDENTE • 57

– a classificação dos árabes na família semita é um tema consolidado entre os autores


que examinámos. Esta família semita, em cuja definição se conjugam tradições bíblicas,
critérios linguísticos e antropológicos, inclui uma variedade de povos que habitam ou
habitaram o Médio Oriente e que se confrontam com o grande fluxo migratório ariano.
Oliveira Martins oferece uma descrição vívida desta nova cosmologia:

Quando as migrações trouxeram através do maciço continental da Ásia até às praias


do Mediterrâneo, os italos, os gregos, os celtas, primeiras famílias de arianos que prova-
velmente assentaram na Europa, esses povos acharam-se em frente dos hamitas e dos semi-
tas que do outro lado da rua no Egipto, na Fenícia, para o interior, sobre o Tigre e o
Eufrates, tinham estados e riqueza, instituições e cultos, artes, leis e força – todas juntas de
uma civilização lenta e longamente elaborada. (Martins 1884: 12)

A categoria do semita identifica, segundo Consiglieri Pedroso (1851-1910), “não


só os hebreus, mas os habitantes da Assíria e parte dos da Babilónia, os árabes ou isma-
elitas, os lydios, parte das populações da Syria, etc” (Pedroso 1896: 23). Adolfo Coe-
lho fornece uma série aproximada: semitas são “os assírios, os caldeus, fenícios, (povos
antigos), sírios, israelitas, árabes e diversos grupos da Arábia meridional e da Abessí-
nia” (Coelho 1893: 32). Teófilo Braga, inventariando os povos que entram em con-
tacto com as populações peninsulares, distingue na ala semita judeus, árabes, fenícios
e cartagineses (Braga 1885: 72).
A oposição entre arianos e semitas é um enunciado que se vulgariza a partir da
segunda metade do século XIX, sendo objecto de um consenso singular no interior de
uma cosmologia que, na sua globalidade, é caracterizada por uma multiplicidade ver-
tiginosa de taxonomias e dados muitas vezes incongruentes. As fontes estrangeiras que
inspiram as classificações avançadas pelos autores portugueses nem sempre são citadas,
existindo contudo algumas excepções7. A espécie humana separa-se, segundo Correia
Barata, em três ramos principais: o branco, ou caucasiano, o amarelo, ou mongólico,
e o negro ou etiópico; o ramo branco subdivide-se por sua vez nos ramos ariano, semí-
tico e alófilo (Barata 1873: 34-35). Adolfo Coelho divide as “raças brancas ou medi-
terrânicas” em três grupos de povos: os arianos, ou caucásicos, os semitas e os hamitas
(Coelho 1893: 32), uma classificação adoptada também por Oliveira Martins, ainda
que este, como Consiglieri Pedroso, nem sempre distinga os Hamitas, onde podem
por vezes ser inseridos os berberes, como um ramo à parte do semita (Martins 1881:
102; Pedroso 1896: 6-7).

7
Para as taxonomias humanas citam-se, entre outros, A. Quatrefages (1810-1892), W. Humboldt (1767-1835), P. Broca (1824-
-1880), G. Cuvier (1769-1832) e J-F. Blumenbach (1752-1840).

Castelos a Bombordo - FINALx.indd 57 27-03-2013 16:57:08


58 • CAST ELOS A BOMBORDO

Esta tripartição recorrente, bem como muitos dos étimos usados na classificação
de povos antigos e contemporâneos, é inspirada na tradição bíblica da dispersão dos
povos após o Dilúvio, personificada nos três filhos de Noé – Shem, Ham e Japheth
– e nos seus descendentes. A intercepção entre os textos religiosos e os dados das
jovens ciências filológicas e antropológicas é um processo turvo. Numa época em que
se esforça a independência da ciência sobre a religião na explicação do mundo, esta
proximidade é motivo de um certo embaraço, obrigando alguns autores a exercícios
de justificação. Falando para uma plateia de leigos da Sociedade de Jornalistas e Escri-
tores Portugueses, no início da década de 80 do século XIX, Consiglieri Pedroso faz
um preâmbulo onde demarca as novas das velhas teses sobre a história das primeiras
civilizações:

Longe vai o tempo em que se sustentava que nas velhas civilizações da alta Ásia deviam
ver-se as nações primitivas do Globo, e que para além dessa penumbra, estendido como
um véu sobre a história dos imediatos descendentes de Noé, nada mais havia do que as
tradições conservadas na Bíblia, por detrás das quais a seu turno só existia o mundo animal,
ao qual ainda a palavra de Deus não impusera no primeiro homem o seu natural domina-
dor. (Pedroso 1883: 61)

Correia Barata, reconhecendo a inspiração bíblica das teorias sobre a origem da


humanidade, argumenta, por seu turno, que a proximidade se deve ao facto de muitos
dos novos testemunhos arrolados por métodos científicos virem, afinal, confirmar os
antigos enunciados:

O dilúvio é um facto comprovado por muitos documentos geológicos. Se a geo-


logia, durante algum tempo, cometeu a grande inconveniência de lançar mão do texto
bíblico para explicar os factos que descobria, hoje, que segue uma direcção segura e
inteiramente científica, verifica ao contrário a tradição pelas suas descobertas. (Barata
1873: 38)

Apesar da multiplicidade de taxonomias que os autores têm à sua disposição, a sua


adopção nem sempre é feita sem algumas reticências, como o demonstra a contestação
das designações de branco e de caucasiano. Adolfo Coelho, por exemplo, alega que a
identificação de “uma raça branca” é claramente insuficiente na medida em que inclui
uma variedade de “tipos notavelmente diferentes, com relação à estatura, coloração
da pele, dos cabelos e outras características” (Coelho 1893: 32). Para Correia Barata,
é a designação “caucasiano” que se afigura mal cunhada, oferecendo na justificação
argumentos de natureza mesológica:

Castelos a Bombordo - FINALx.indd 58 27-03-2013 16:57:09


A NORTE DE ORIENTE, A SUL DE OCIDENTE • 59

A denominação de caucasiano dada à raça branca não nos parece contudo bem esco-
lhida. Funda-se ela nesta ideia tradicional de terem as primeiras populações habitado o
cume das altas montanhas, tais como o Cáucaso, donde se presumem provenientes os povos
da Europa e de uma parte da Ásia. (...) Ora, depois da separação, não foi nas montanhas
que os povos se estabelecerem: não é nos montes ou no sertão que as nações se civilizam.
Todo o povo que se estabeleceu por conquista em qualquer território, procura naturalmente
as regiões mais férteis, como são as planícies, as margens dos lagos e dos rios, as grandes
bacias hidrográficas. (...) Os montes são sempre um refúgio de foragidos, e nunca estação
de conquistadores. (Barata 1873: 37)

A incongruência e a maleabilidade dos enunciados contrasta com a pressuposta rigi-


dez das categorias empregues e com a forte convicção no seu valor explicativo. Como
sugerimos acima, entre estas categorias toma particular relevância a distinção entre aria-
nos e semitas. Nas relações entre os vários ramos da espécie humana, destaca-se pela
persistência o dogma da “incomunicabilidade fisiológica” entre estes dois grupos, enun-
ciado nestes termos por Júlio de Vilhena (Vilhena 1873: 137) e Teófilo Braga (Braga
1885: 68; 1909: 23), mas sugerida pela maioria dos autores desta geração. Encontramos
ideias aparentadas no conceito de “exclusão” de Correia Barata (Barata 1872: 26) e no
carácter “inconvertível” do semita – “sentado nos pórticos do seu templo destruído” –
exposto por Oliveira Martins (Martins 1884: 15). N’ As raças históricas da Península
Ibérica, Correia Barata, tratando as relações entre os povos peninsulares, desenvolve esta
perspectiva em maior detalhe:

Ora o semita excluía o indo-europeu. São duas organizações antipáticas. São dois grandes
troncos do género humano; não são raças do mesmo tronco ou da mesma família. Quando
as diferenças que se cruzam são originais, o cruzamento é excessivamente difícil; mas quanto
mais próximo é o parentesco das raças tanto mais fácil se torna. Porquê? Porque todas as
influências da selecção natural cooperam para estabelecer aquelas diferenças. É uma diver-
gência devida ao trabalho efectuado por muitos e muitos séculos. Como destruí-lo no curto
espaço de tempo durante o qual, muitas vezes, vive uma nacionalidade? (Barata 1872: 26)

Islamismo e decadência

Porém, na identificação das populações árabes toma particular importância, para


além da distinção etnológica, mas em estreita relação com esta, a filiação religiosa. O
islamismo é frequentemente apresentado como testemunho de inferioridade e deca-
dência civilizacional; uma inferioridade cuja responsabilidade lhe é acatada pela sua

Castelos a Bombordo - FINALx.indd 59 27-03-2013 16:57:09


60 • CAST ELOS A BOMBORDO

própria natureza ou como corolário das teses sobre a inferioridade dos semitas. A liga-
ção semita exige, por vezes, esclarecimentos adicionais, uma vez que também o cris-
tianismo é, segundo a cosmologia vigente, de origem semita.
É neste sentido que Oliveira Martins propõe, multiplicando a hierarquia geográfica,
uma distinção entre semitas do Norte – fenícios, assírios, sírios, populações da Meso-
potâmia, Caldeia e Palestina – e semitas do Sul – as populações da Arábia e da Susânia
–, assim valorizando o papel histórico dos primeiros no progresso da civilização indo-
-europeia. O alfabeto, a metalurgia e o cristianismo são contribuições destes povos, que
os indo-europeus puderam reconverter e utilizar no seu desenvolvimento; entre estes,
destaca-se o caso do cristianismo que, inventado pelo judeus, é helenizado para con-
sumo europeu, tornando-se parte integrante da civilização ocidental. Já os semitas do
Sul produziram apenas o islamismo, que nunca reconvertido, mantendo o seu carácter
semítico, se condena a ser apenas “um excelente código para raças inferiores”, acabando
mesmo responsável pela decadência da Pérsia (Martins 1881: 173):

Dessa religião que reúne a grandes requintes de inteligência uma obscuridade moral
singular e um materialismo sem caridade, o berbere ou o tuaregue, o negróide, o negro, só
compreendem e por isso só aceitam a segunda metade, compatível com as suas respectivas
capacidades. (Martins 1879: 120)

As contribuições dos semitas, mesmo as adoptadas pela civilização europeia como


o cristianismo e o alfabeto, não os salvam, contudo, de uma fatídica queda nas mar-
gens do curso da civilização: “Os árabes voltaram também com os judeus a viver obs-
curos; Meca e Jerusalém ficaram como afastados monumentos, lugares-santos no meio
de países e gentes abatidas” (Martins 1881: 173).
Já Alexandre Herculano encontrava no islamismo a principal causa da regressão
das civilizações orientais, descobrindo aí o valor distinto dos dois monoteísmos para
o progresso geral da humanidade (Herculano 1875a: 148-49). Ao contrário de Oli-
veira Martins, é no próprio sistema moral, e não capacidade intrínseca dos povos que
o elaboram, que Herculano vai encontrar a imperfeição. Enquanto que o cristianismo
se impõe como força pacificadora, constituindo-se desse modo como um instrumento
de progresso sobre os povos bárbaros, o islamismo, instigando o fanatismo e a violên-
cia, sempre se mostrará “inábil para constituir sociedades regulares e duradouras”
(ibidem: 149); se o primeiro consegue transformar tribos bárbaras em civilizações, o
segundo sabe apenas reconduzir estados civilizados à barbárie. A análise permite-lhe
concluir um julgamento moral sobre a distinta credibilidade das duas religiões: “(…)
prova sublime, posto que dolorosa, da origem pura e divina da crença cristã e da vai-
dade e mentira destoutra (…)” (ibidem: 149).

Castelos a Bombordo - FINALx.indd 60 27-03-2013 16:57:09


A NORTE DE ORIENTE, A SUL DE OCIDENTE • 61

Em consonância com estas noções, Consiglieri Pedroso considera que a religião,


nas suas várias formas, se constitui como elemento determinante no movimento da
história, operando mesmo como “modificador dos fenómenos sociológicos”, acele-
rando ou invertendo a direcção imposta pela influência dos factores naturais do meio.
O islamismo, o catolicismo e o protestantismo insuflam em sentidos diversos o rumo
das nações:

(…) quem se negará a ver no islamismo a causa dos rápidos progressos, mas também
da rápida decadência dos árabes? no protestantismo a causa, ou pelo menos uma das cau-
sas da crescente civilização das raças germânicas? no catolicismo ortodoxo e cheio de
fanatismo um dos motivos concorrentes, senão o principal, da decadência dos reinos da
península? (Pedroso 1883: 58).

Temos, pois, duas distinções fundamentais na identificação dos povos inva-


sores face às populações invadidas: a distinção religiosa, mais antiga e persistente,
e a distinção “etnogénica”, infundida pelas novas cosmologias raciais. A cisão
suplementar entre árabes e norte-africanos permite, em alguns autores, reconhe-
cer na turba da invasão uma fracção maioritária cujo signo de alteridade não é
genuíno, mas terá sido introduzido com eficácia num confronto anterior. Os
norte-africanos serão arabizados e islamizados, não serão árabes ou muçulmanos
autênticos.
Esta ilustração permite reconhecer na historiografia que projecta, naquele século,
as fundamentações históricas da nação moderna, um conjunto de motivos particulares
e metáforas recorrentes. Identifica-se, antes de mais, a adesão a uma hierarquia geo-
gráfica politicamente conotada, onde o Norte e o Ocidente são valorizados (Said 1978).
A preparação do encontro de uma comunidade nacional imaginada com o Sul e o
Oriente nos primeiros séculos da Idade Média, apresenta-se como um lugar de refle-
xão particularmente aguda sobre a posição relativa de Portugal no contexto interna-
cional; e, simultaneamente, como um campo de ensaio na reelaboração e resposta
àquele modelo hierárquico. Enquanto o discurso dominante produzido nos centros
políticos da Europa – França, Inglaterra e, mais tarde, Alemanha – empurra para Sul
os países da periferia europeia (Moreira 2006: 5-8), os autores que recenseámos avan-
çam argumentos que destacam a importância da romanização e do cristianismo, a
preponderância do elemento ariano, a desvalorização de uma etnogenia pura, ou a
fundamentação de afinidades ibéricas, pré-existentes, entre os dois lados do Mediter-
râneo. São argumentos que, sem desertar por completo a cosmologia vigente, fazem
a defesa da “desorientalização” da Península ou de partes dela, valorizam a autoctonia
e a mestiçagem.

Castelos a Bombordo - FINALx.indd 61 27-03-2013 16:57:09


62 • CAST ELOS A BOMBORDO

Bibliografia

BARATA, Francisco A. Correia, 1872, As raças históricas da Península Ibérica. Coimbra, Imprensa da Uni-
versidade.
BARATA, Francisco A. Correia, 1873, Origens Antropológicas da Europa. Coimbra, Imprensa da Uni-
versidade.
BRAGA, Teófilo, 1885, O Povo Português nos seus Costumes, Crenças e Tradições. vol. 1, Lisboa, Dom
Quixote.
BRAGA, Teófilo, 1894, A Pátria Portuguesa: o Território e a Raça. Lisboa, Dom Quixote.
BRAGA, Teófilo, 1909, História da Literatura Portuguesa, vol. 1. Mem Martins, Europa-América.
CHAGAS, Manuel Pinheiro, 1899 [1867], História de Portugal Popular e Ilustrada, vol. 1. Lisboa, Emp-
reza da História de Portugal.
COELHO, F. Adolfo, 1890, “Questões Etnogénicas”, Revista Archeologica, IV (7).
COELHO, F. Adolfo, 1893, Os Povos Extra-Europeus e em Especial os Negros de África ante a Civilização
Europeia. Conferências Feitas na Sociedade de Geografia de Lisboa. Lisboa, Typ. da Companhia Nacional
Editora.
COELHO, F. Adolfo, 1897, O supposto escandinavismo de Anthero de Quental (Para o estudo da heredi-
tariedade ethnica). Porto, Typographia Occidental.
HERCULANO, Alexandre, 1875a, História de Portugal desde o começo da monarchia até ao fim do rei-
nado de Affonso III, vol. 1. Paris/Lisboa, Aillaud & Bertrand.
HERCULANO, Alexandre, 1875b, História de Portugal desde o começo da monarchia até ao fim do rei-
nado de Affonso III, vol. 6. Paris/Lisboa, Aillaud & Bertrand.
HERCULANO, Alexandre, 1919, Quadros literários da História medieval, peninsular e portuguesa. Lisboa,
Bertrand.
LOPES, David, 193–, Portugal contra os mouros, col. “Os livros do povo. Noções de Tudo”. Lisboa, Pedro
Bordallo Pinheiro.
LOPES, David, 1911, Os arabes na obra de Alexandre Herculano: notas marginaes de língua e história
portuguesa. Lisboa, Imprensa Nacional.
LOPES, David, 1928, “O Domínio Árabe”, em DAMIÃO, P., História de Portugal, vol. 1. Barcelos, Portu-
calense, pp. 391-431.
MARTINS, J. P. Oliveira, 1879, História da Civilização Ibérica. Lisboa, Guimarães Editores.
MARTINS, J. P. Oliveira, 1881, As raças humanas e a civilização primitiva, vol. 1. Lisboa, Guimarães Edi-
tores.
MARTINS, J. P. Oliveira, 1884, “Teoria da História Universal”, em Política e História II. 1884-1893. Lis-
boa, Guimarães Editores, pp. 1-44.
MARTINS, J. P. Oliveira, 1893, “Introdução à “História de Portugal” de Stephens”, em Política e História
II. 1884-1893. Lisboa, Guimarães Editores, pp. 321-36.
MAURÍCIO, Carlos Coelho, 1987, Herculano na balança da historiografia portuguesa, Aula teórico prática
apresentada no âmbito das provas previstas no ECDU, ISCTE, Lisboa.
MOREIRA, Ana Rita, 2006, Árabes e Nação na periferia da Europa: de Alexandre Herculano a David Lopes.
Tese de Mestrado em Ciências Sociais (Portugal Contemporâneo – Sociedades e Culturas), Instituto de
Ciências Sociais da Universidade Nova de Lisboa, Lisboa.
PEDROSO, Z. Consiglieri, 1883, As Grandes Épocas da História Universal. Porto, Livraria Civilização.
PEDROSO, Z. Consiglieri, 1896, Compêndio de História dos Povos Orientais. Lisboa, M. Gomes Editor.
RAMOS, Rui, 2001, “A invenção de Portugal”, em RAMOS, R., A Segunda Fundação (1890-1926), vol.
6. col. História de Portugal, Lisboa, Editorial Estampa, pp. 495-518.

Castelos a Bombordo - FINALx.indd 62 27-03-2013 16:57:09


A NORTE DE ORIENTE, A SUL DE OCIDENTE • 63

SAID, Edward S., 1978, Orientalism. Western Conceptions of the Orient. Londres, Penguin Books.
SAMPAIO, Alberto, 188–, “O Minho Rural e Industrial”, em Estudos Históricos e Económicos, vol. 2 “As
Póvoas Marítimas”. Lisboa, Editorial Vega, 161-260.
SARMENTO, Francisco Martins, 1880, Os Lusitanos – Questões de Etnologia. Porto, Ed. de Autor/Typ.
Silva Teixeira.
SARMENTO, Francisco Martins, 1887, Os Argonautas. Subsídios para a antiga história do Ocidente. Porto,
Typographia de António José Silva Teixeira.
VASCONCELOS, José Leite de, 1926, Lições de Filologia Portuguesa. Lisboa, Oficinas Gráficas da Biblio-
teca Nacional.
VILHENA, Júlio de, 1873, As raças históricas da Península Ibérica e a sua influência no direito português.
Coimbra, Imprensa da Universidade.

Castelos a Bombordo - FINALx.indd 63 27-03-2013 16:57:09


MOUROS, VENTRES
E ENCANTADORES DE SERPENTES
Representações do mundo árabe
nas recriações históricas em Portugal e Espanha

PAULO RAPOSO

Introdução

O propósito central deste texto é analisar como as representações e as auto-repre-


sentações da cultura árabe1 se projetam em eventos performativos particulares, como
são as recriações históricas de matriz cristã no mundo ocidental, nomeadamente em
Portugal e Espanha, mas também na criação de espaços e de projectos performativos
dedicados sobretudo à dança e à música de traços árabes ou orientais.
Procura-se entender modos de configuração deste outro mundo através de formas
de expressão performativa que re-emergem na actualidade europeia como exercícios
nostálgicos e de ressemantização do passado europeu de matriz cristã. Em certo sen-
tido, essas configurações articulam-se também na contemporaneidade com movimen-
tos migratórios pensados na Europa como “preocupantes” e “ameaçadores”, e ao
mesmo tempo com os “ventos da mudança democrática” que têm varrido várias nações
árabes nos últimos tempos, equacionados numa terminologia política centrada e pro-
duzida a ocidente.
Porém, a tensão contemporânea entre mundo ocidental e oriente tem já – para além
da sua longue durée – uma história significativa nos últimos 50 anos. Desde o conflito
israelo-árabe, até às sucessivas guerras do Golfo ou às operações em diversos países ára-
bes, do fenómeno “11/9” à perseguição e assassinato de Bin Laden, tudo somado é
obviamente um capital de tensão que estimula a presença de representações maniqueís-
tas que dividem o mundo entre bons e maus e que acabou por ter o seu ápice simbólico
no termo “eixo do mal”, cunhado pelo ex-presidente dos EUA, George W. Bush.
Deste modo, o clima recente de antagonismo, alteridade, estranhamento e fractura
entre ocidente e oriente, acumula mais elementos a esta relação. Da mesma maneira

1
Cultura árabe é desde logo um termo muito poroso e complexo no seu uso banalizado quer na visão mediatizada, quer entre
os interlocutores desta pesquisa, contendo múltiplas outras designações que ora incluem ou excluem referenciações étnicas (ára-
bes, mouros), religiosas (muçulmana, islâmica), ou regionais (Magrebe, Próximo Oriente, Médio Oriente, Oriente), ou nacionais
(árabes do Egipto, por exemplo). Optou-se aqui pelo seu largo espetro atendendo à diversidade e polissemia de usos, apesar da
sua antropológica significação étnica de base. Sobre o interesse em Portugal pelos estudos de arabofilia e arabismo veja-se Car-
deira da Silva (2005).

Castelos a Bombordo - FINALx.indd 64 27-03-2013 16:57:09


A NORTE DE ORIENTE, A SUL DE OCIDENTE • 65

que simultaneamente absorve os elementos de exotismo, fascínio, desejo e fruição do


belo civilizacional oriental e do consumo de “orientalismos” que, explicitados por
Edward Said, permitiram de algum modo definir o ocidente – nomeadamente, o euro-
peu – como contra-posição à sua imagem.
Por outro lado, negligenciando as contribuições da arte contemporânea destes
países e dos movimentos sociais em curso, tal como em outros contextos de merca-
dorização de bens culturais exóticos, frequentemente têm sido também os próprios
performers árabes (sobretudo músicos migrantes ou bailarinas árabes em trânsito ou
residentes na Europa) e ocidentais (cujas práticas se inspiram em formas e estilos
orientais) a contribuir para reforçar e reorganizar essas representações, agilizando
agora a construção de uma imagem do outro exoticizada, eroticizada, higienizada e,
last but not least, performativa, no sentido de esteticizada. Deste modo, entre um
eixo de representações negativas decorrente dos referidos conflitos e de interesses
associados a políticas internacionais hegemónicas e pós-coloniais, e um eixo de repre-
sentações positivizadas de incorporação de estilos e géneros performativos, oriente
e ocidente emergem ciclicamente como lugares de alteridade por excelência.
Obviamente não se pretende aqui essencializar e rigidificar esta alteridade, mas pensá-
-la antes como uma produção social de narrativas que se podem encontrar no terreno.
Na verdade, tal como nos adverte Jack Goody (2005) para a questão islâmica,

…(a)o fim de muitos séculos, depois de terem sido repelidos, os muçulmanos regres-
saram em massa ao continente europeu, já não como invasores, mas como imigrantes. E,
em ambas as capacidades, o seu contributo tem sido substancial. (…) Tanto no passado
como no presente, o Islão não pode ser simplesmente entendido como o Outro. (Goody
2005: 780)

Este texto suporta-se na pesquisa etnográfica em diversos eventos de recriação


histórica em Portugal, nas interlocuções com performers (árabes e europeus) em Por-
tugal e Espanha, e na etnografia de novos espaços e projectos dedicados a estilos per-
formativos árabes ou orientais em sentido mais lato2.
Seguindo as pistas de Said (1994) em torno da criação de teorias itinerantes, as
viagens da teoria parecem aqui complexificar-se com as viagens dos agentes ou actores

2
Estamos a falar das recriações históricas observadas em Castro Marim, Alvalade, Vidigueira, Salir, da Noite da Moura Encan-
tada de Cacela Velha, do Festival Islâmico de Mértola, de entrevistas com membros da companhia Viv’arte (a mais importante
companhia portuguesa nesta área), com os protoganistas dos projectos de dança Samira Stela (Al-Ghazalat, Granada), Joana
Saahirah (Cairo), Denise de Carvalho (Faro), Catarina Ribeiro, Sara Naadirah e Yolanda Ribeiro (Lisboa), Petra Pinto e Compa-
nhia Mozarabe (Coimbra), Crys Aisel (East Festival, Lisboa), Regina Nurenahar (Porto), dos projectos musicais de Baltazar Moli-
na (Sintra), Eduardo Ramos (Silves), Abdel Karim Essemble, Al-Caravan, Kamal Al-Nwawi, Mohamed ben Allal e Mostafá
Bakkali (Granada), e ainda com o mediador e produtor cultural em Mértola, Abdallah Khwali (Vidigueira).

Castelos a Bombordo - FINALx.indd 65 27-03-2013 16:57:09


66 • CAST ELOS A BOMBORDO

sociais envolvidos nesta pesquisa. A linha divisória entre o próximo e o distante, entre
o “mesmo” e o “outro”, adquire uma nova virulência levando em conta os interstícios
das culturas, nações e disciplinas que eclodem nesses itinerários, como bem sugere
Ribeiro Sanches (2005). Deste modo, o lugar de construção das teorias – e já não ape-
nas o seu contexto histórico disciplinar – determinam a sua produção, recepção e
mútua influência, mas também, no caso que aqui se abordará, a geografia das mobili-
dades dos actores sociais envolvidos e a geometria variável do tráfego de ideias e de
modos performativos.
Atentaremos finalmente aos processos de turistificação, de evocação patrimonial
e de fruição performativa objectificadora da cultura que subjazem nos eventos e pro-
jectos aqui apresentados.

Entre a historiografia incompleta da presença árabe em Portugal


e os usos do tempo do Outro

Maria Cardeira da Silva (2005 e neste volume) traça uma historiografia possível
da arabofilia e dos estudos árabes e islâmicos em Portugal, sobretudo nos campos dis-
ciplinares específicos mas interpenetráveis da Arqueologia, da História e da Antropo-
logia – ainda que esta última os tenha de algum modo negligenciado. Diz-nos a autora
que a linha forte das primeiras abordagens cruzadas da História e da Antropologia
sublinhavam a tese de inclusão do mundo árabe (e não tanto islâmico) na historiogra-
fia da identidade nacional portuguesa. Mas uma alteração se deu no interesse pelo
arabismo após a implantação da democracia e num provável contraponto à emergên-
cia do país num cenário moderno europeu, parece ter feito reemergir o interesse pela
Arqueologia ligada à presença árabe cujo ápice terá sido o que Cardeira da Silva (idem)
designa por “efeito Mértola” – magma da arabofilia portuguesa, altamente potenciado
por impulsos turistificadores e mediáticos a partir dos anos 90 e pela contaminação
que produziu em outras localidades.
Claúdio Torres, arqueólogo e activista político, foi o grande mentor deste projecto
que, como o próprio confirma, releva sobretudo de uma dinâmica utopista e de interven-
ção fora dos grandes centros urbanos com vista à produção de identidades e de desen-
volvimentos locais. Mértola, no extremo sul alentejano, configurar-se-á como arquétipo
deste modelo de abordagem no qual o arabismo e a arabofilia (mas também o islão) sur-
gem como recursos narrativos para esta visão política da modernidade. E nesse modelo
a emergência de um discurso sobre o potencial multicultural e de tolerância da histórica
presença islâmica no sul da península torna-se ele próprio uma excelente metáfora uto-
pista e romântica para pensar um novo modelo de sociedade no presente:

Castelos a Bombordo - FINALx.indd 66 27-03-2013 16:57:10


A NORTE DE ORIENTE, A SUL DE OCIDENTE • 67

Mértola é o lugar onde pode repousar o multiculturalismo, contendo os árabes e os


muçulmanos, do discurso da tolerância e da integração que se instalou em largos sectores
da vida pública portuguesa. Ela é, por isso, também responsável pela especificidade da
incorporação da nova presença islâmica em Portugal. (Cardeira da Silva neste volume)

Este necessário e incontornável enquadramento na produção de narrativas sobre


a presença árabe (e islâmica) no contexto português permite-nos entender o modo
como as performances observadas dedicados a estilos árabes ou orientais se consubs-
tanciam na contemporaneidade:

Mértola abriu caminho para que as regiões norte e sul do país se apercebessem das
vantagens da reabilitação de material arqueológico sempre sustentado por uma promoção
turística do mesmo através da escenificaçao da vida quotidiana em feiras e mercados da
época do Al-Andalus.(Faria 2007: 212)

Decorrente deste “efeito Mértola” emergem, sobretudo no Sul de Portugal, no


final do século XX, uma série de eventos de natureza eminentemente turística e
recreativa. Porém, esta “redignificação da imagem dos árabes” de que fala Faria
(2007) é confecionada em modalidades performativas diversificadas, ainda que
procurando esse “encontro” entre mundos. Refiram-se apenas as mais relevantes (e
observadas): em 1998 surge a 1.º edição de Castro Marim – Dias Medievais, cele-
brando a expulsão dos mouros daquela vila algarvia (1242) e com recriações de
combates entre cristãos e mouros, músicos e dançarinos de tradição árabe, cortejos
com figurantes em camelos e domadores de serpentes, para além de um comércio
com produtos orientais; em 2001 inicia-se o Festival Islâmico de Mértola cujo foco
se centra na visitação da presença árabe, e sobretudo islâmica, trazendo inclusiva-
mente àquela vila alentejana membros da Comunidade Islâmica de Granada e de
Marrocos; ainda em 2001 nasce Alvalade Medieval, comemorando a atribuição do
foral local (1510) naquela vila alentejana e onde também prolifera a presença de
figurantes, músicos e bailarinas orientais num ambiente histórico quinhentista; em
2004 nasce a Feira Medieval de Silves, celebrando a relevância histórica da primeira
capital do reino dos Algarves, recriando um pequeno suk, uma vez mais com baila-
rinos e músicos de tradições árabes entre muitas outros entretenimentos; no mesmo
ano surge em Lagos a Feira Quinhentista, celebrando sobretudo a vertente marítima
e as descobertas portuguesas, mas onde podemos também encontrar uma forte pre-
sença de dançarinas e músicos árabes; em 2009, nas Noites da Moura Encantada
em Cacela Velha, encontramos sobretudo comerciantes, comidas e espectáculos de
tradições árabes, berberes e orientais; em 2009, em Salir, nasce a 1.ª edição da feira

Castelos a Bombordo - FINALx.indd 67 27-03-2013 16:57:10


68 • CAST ELOS A BOMBORDO

Salir do Tempo dedicada a comemorar a derrota dos mouros e recriando uma ambi-
ência com inúmeros figurantes e cenários de evocação árabe; finalmente, também
no Algarve, em 2007, e após dois anos de disputa judicial entre o município e um
centro de estudos árabes local, inaugura-se a Casa da Cultura Islâmica e Mediter-
rânica de Silves que “é um equipamento, cuja finalidade é a promoção da cultura,
particularmente a islâmica e a mediterrânica, influências estas que formam a iden-
tidade cultural da cidade de Silves e do seu concelho” como se pode ler no site da
edilidade.
Esta listagem não pretende esgotar todos os exemplos que poderiam ser elen-
cados mas, para o argumento que aqui quero explicitar, a diversidade de modali-
dades acima referida permite relevar o arco de imagens produzidas sobre o mundo
árabe: por um lado, a presença, a derrota e a expulsão dos árabes (mouros) como
focos centrais destas performances; e, por outro, a periférica figuração de carácter
exoticizante do oriente em épocas e tempos históricos onde a presença árabe ou
muçulmana se encontrava já submetida aos efeitos da reconquista cristã. De alguma
maneira, em todas estas manifestações se suspende o tempo ou se constrói um ana-
cronismo histórico para a imagem do árabe cuja representação serve fundamental-
mente, ainda que não da mesma forma em cada evento, como lugar de alteridade
e de exotismo.
Como referia Fabian (1983), a forma como os povos estudados pelos antropó-
logos foram tomados como “objectos” passivos em “diferença” absoluta teve uma
consequência problemática no entendimento do tempo do outro. Esse tempo do
outro foi alvo de um distanciamento que lhe recusou sempre uma contemporanei-
dade efectiva.
Similarmente, o tempo do outro nas performances e representações do mundo
árabe, no universo das recriações históricas e dos projectos de dança e de música
de inspiração e estilo árabe ou oriental em contexto ibérico por mim observadas,
é também de algum modo um tempo suspenso da sua contemporaneidade, e não
apenas de suspensão anacrónica como acima sublinhamos. A construção funda-
mental de narrativas performativas e retóricas “orientalizantes” (cf. Said 2003
[1977]) nestes contextos artísticos investe sobretudo sobre um certo passado árabe
ou oriental, ainda que desta feita não marcados pelo arcaismo ou primitivismo,
mas pelo belo civilizacional tingido pelo exótico cultural, por sugestões de erotismo
ambíguo e por um certo higienismo estético formal na sua exibição. De modo para-
lelo, em Portugal e em Espanha (mas não apenas3) floresceram nas duas últimas

3
Para o contexto americano, veja-se por exemplo Sheila Marie Bock (2005), Sunaina Maira (2008) ou Jennifer Lynn Haynes-
Clark (2010) ou, para o Brasil, Alice Casanova dos Reis (2008).

Castelos a Bombordo - FINALx.indd 68 27-03-2013 16:57:10


A NORTE DE ORIENTE, A SUL DE OCIDENTE • 69

décadas projectos e espaços dedicados à dança dita oriental, egípcia, do ventre,


árabe e a outros géneros de fusão performativa, coordenados por performers euro-
peus (e brasileiros) que sedimentaram uma vez mais essas imagens do mundo
árabe.
Esta ambiguidade latente ou patente da figura do mouro tem sido analisada em
profundidade para as chamadas festas ou lutas de Mouros e Cristãos – que aqui não
serão abordadas – cujo lastro histórico é bastante grande no contexto do Sul da Europa,
mas também no México ou no Brasil4.

La maurofilia y la maurofobia están presentes en movimientos pendulares, baseados


en el dispositivo atracción/repulsión conformador de la alteridad en las festas de moros y
cristianos. (Albert-Llorca et al 2003: 12-13)

Todavia, convém ressalvar que para o cenário das recriações históricas em con-
texto português existe uma produção ambígua de representações negativizadas e
positivizadas do outro árabe, mouro, muçulmano, oriental. De facto, por um lado, a
figura do mouro emerge num tom grotesco claramente como candidato à derrota,
como aquele que será colocado no lugar do vencido em qualquer batalha, torneio ou
duelo recriado; esta posição decorre, creio, do confronto de representações de natu-
reza política, ética, moral e religiosa. Dir-se-ia que a posição histórica do mouro, árabe
ou muçulmano serve justamente para evidenciar a fragilidade, fraqueza e a derrota
dos modelos de governação, religiosos e éticos árabes e islâmicos literalmente varri-
dos pela reconquista cristã.
Por outro lado, quando se procura retratar uma ambiência civilizacional e intro-
duzir elementos performáticos como a música, a dança ou certo tipo de acções espec-
taculares – andar de camelo, encantar serpentes, consumir produtos alimentares, ou
recriar ambientes e décors nativos em tendas –, aí intervêm outras categorias, positi-
vizadas, na construção da imagem do oriente. São antes valores emocionais e exotismos
performativos que eclodem e permitem outra condição de possibilidade para estas
figuras e géneros artísticos. E é por isso que, no contexto dos projectos de dança e de
música de inspiração árabe e oriental observados, é claramente visível este enfoque no
belo civilizacional, positivizando a imagem do outro, ainda que manipulando estere-

4
Este processo, todavia, tem mais contornos que merecem ser estudados e que, como vários autores apontam (Martín 2001;
Alcantud 2002; Albert-Llorca & Alcantud 2003; Borreguero 2006; Ybarra 2009; Krom 2009), colocam a figura do mouro
num lugar de destaque que todos desejam algum dia performar e encarnar – muito associado à riqueza de cenários e figurinos
e ao exotismo manifesto. Estes combates entre mouros e cristãos tornam-se, afinal, apropriações locais e regionais que pro-
palam mais retóricas localistas e regionalistas do que a representação imagética do outro. Noutro lugar encetei uma análise
do conhecido Auto da Floripes, realizado no Minho, onde justamente a dinâmica de toda a festa é colocada na performativi-
dade do evento enquanto singularidade local ou complexo regional de autos carolíngios, e não na questão da figura dos mou-
ros (Raposo 1998). Ver também Cardeira da Silva e Tavim, neste volume.

Castelos a Bombordo - FINALx.indd 69 27-03-2013 16:57:10


70 • CAST ELOS A BOMBORDO

ótipos de natureza semelhante aos que sustentaram os olhares e representações do


árabe e do oriente desde o Iluminismo na Europa.
Marta Savigliano (1995) refere-se a uma interacção particularmente importante
nas relações coloniais e que define como “capital emocional” codificado como “exó-
tico” e passível de “erotização”:

The exotic is the passionate haunting past at the margins of the imperial civilized world.
For the Other to become an Exotic, this threat needs to be tamed, tilted toward the side of
the pleasurable, the disturbingly enjoyable: the erotic. The dangerousness however should
be retained, evoked again and again, as proof of the necessity of colonial civilized domi-
nation. (Savigliano 1995: 81).

Curiosamente este mecanismo revela-se no ensino da dança oriental no caso das


interlocutoras entrevistadas, uma vez que todas elas salientaram os aspectos positivos
que este tipo de prática performativa produz na busca e na explicitação de uma certa
feminilidade, no seu carácter eminentemente artístico que envolve uma aprendizagem
técnica e a persistência de treino, e no contributo que dá para a consciencialização
interior, a fuga ao quotidiano e a valorização pessoal das mulheres. Esta polaridade
não ameaçadora de valores, costumes e moralidades mainstream opor-se-ia a um certo
preconceito banalizado que associa (erradamente, no entender de todas as interlocu-
toras) este tipo de dança a formas de divertimento próximas da pornografia ou a uma
exposição excessiva da mulher:

Gente en biquini moviendo la tripa. (Samira Stella, entrevista em Granada)

O erotismo, o sexo, a fantasia VENDEM e, por isso, tem-se substituído a falta de


talento, conhecimentos e qualidade pelo sex-appeal que VENDE e confirma a fantasia da
odalisca seduzindo o sultão. Eu vejo a Dança Oriental de forma orgânica e, portanto, natu-
ralmente SENSUAL, como é tudo o que o SER HUMANO produz com autenticidade.
SENSUALIDADE não equivale a pornografia, nem a streap-tease barato. (Joana Saahirah,
Cairo, entrevista online, maiúsculas da autora)

(…) mexe com energia sexual e liberta líbido de forma saudável. (Cristina Ribeiro,
entrevista em Lisboa)

Um outro exemplo deste tipo de exotismo pode ser visível no contexto da repre-
sentação dos ciganos pelos não-ciganos, nomeadamente na difusão e apreciação das
suas formas artísticas, a música e a dança, que contradiz a generalizada percepção

Castelos a Bombordo - FINALx.indd 70 27-03-2013 16:57:10


A NORTE DE ORIENTE, A SUL DE OCIDENTE • 71

ameaçadora da perigosidade com que as famílias ciganas são votadas na larga maioria
dos contextos europeus.5
Este “capital emocional” que permite a existência do outro enquanto expressão
exótica pode ser observado no contexto da presença de “orientalismos” diversos que
se desenvolveram na Europa (e nos EUA) durante o século XIX e XX.6 E pode ainda
ser vislumbrado na sua reemergência durante as últimas décadas do século XX, sobre-
tudo em vários países da Europa, nos EUA e no Brasil.
O movimento romântico – com os estudos orientais e a absorção de estilos
exóticos nas artes – não é porém a ignição única deste fenómeno. Nos Estados
Unidos, por exemplo, mas também no Brasil, os movimentos feministas facilitaram
um consumo de estilos de dança orientais resultado da emancipação da condição
de género (Reis 2008; Haynes-Clark 2010), criando condições necessárias para
uma procura de formas de lazer, de cuidado com o corpo e de auto-valorização
disponibilizados para as mulheres. Este mesmo movimento deu-se em Portugal,
sobretudo associado à exibição da novela brasileira “O Clone” – uma telenovela
produzida em 2001 pela Rede Globo do Brasil e emitida em mais de 53 países,
cuja temática central era a clonagem de seres humanos, mas que retratava o con-
tato entre populações arábico-muçulmanas e o mundo ocidental – dando lugar a
uma explosão de ofertas de cursos de dança do ventre em academias e ginásios.
Nesta novela, diversos momentos de exibição de performances artísticas e domés-
ticas de danças orientais foram decisivas na difusão deste estilo de dança em Por-
tugal, como confirmam as diversas interlocutoras com quem pude falar no quadro
desta investigação.
Tal como defendem os historiadores Edmund Burke III e David Prochaska (2008)
em comentário crítico à abordagem fundadora de Said (1977), a retórica e as nar-
rativas proferidas pelo ocidente – e não apenas pelo mundo imperial britânico –
devem ser pensadas em quadros históricos específicos. E um dos quadros históricos
que estes autores afirmam ter escapado à visão de Said foi justamente a produção
de discursos anti-imperialistas e da teoria feminista nos EUA e na Europa durante
o século XX.

5
Curiosamente, uma das principais teses sobre a difusão da dança do ventre no mundo árabe e na Europa associa-a às gawazze,
ou gawazzi – dançarinas do Egipto (referidas frequentemente também como concubinas) –, representadas como ciganas, expul-
sas do Cairo por volta de 1830 e cujo estilo de dança estaria na base da emergência do raqs sharqi na primeira metade do século
XX, que teria depois, fruto da sua comercialização para turistas e colonos no mundo árabe (sobretudo no Egipto), sido exporta-
da para o mundo ocidental e ali cunhada como belly dance/ dança do ventre. Alguns especialistas apontam este estilo gawazzi
como a base do estilo tribal de dança do ventre que nasceu nos EUA no final dos anos 60, na Califórnia, impulsionado por Jami-
la Salimpour e que ganhou uma presença assinalável nos anos 80 e 90.
6
Aliás, a este nível registe-se a presença de “orientalismos” diversos nas obras de Flaubert, Artaud, Brook, na produção cine-
matográfica de Hollywood, na dança de Martha Graham ou Steve Paxton, para dar apenas alguns exemplos.

Castelos a Bombordo - FINALx.indd 71 27-03-2013 16:57:10


72 • CAST ELOS A BOMBORDO

A figura do harém como imagem fantasmagórica,


o grotesco colonial e o desejo exoticizado da mercadoria étnica

A figura do mouro e a sua representação a ocidente não pode ser dissociada de


processos culturais, políticos, religiosos e morais que se foram estabelecendo histori-
camente na relação entre ocidente e oriente – inclusivamente na sua extensão por
exemplo na Europa Medieval e Renascentista na língua inglesa a “Indians” do oriente
distante, ou na espanhola a “moros” para designar populações muçulmanas da actual
Malásia ou ainda ao Império Otomano. Nem mesmo classificações raciais distinguiam
claramente e de forma sistemática mouros negros ou brancos, da Etiópia ou asiáticos,
e até turcos ou persas. Essa pulverização terminológica e consequente homogeneização
definicional foi bem ilustrada no imaginário elizabetiano, nomeadamente nas suas
peças teatrais – Othelo de Shakespeare é talvez a mais icónica.

All Moors, white, brown, black or Negroes, were usually associated with loads of negative
characteristics; being cruel, greedy, inferior, impulsive, aggressive, pagan, devilish or voluptuous,
and a few positive ones; being daring, strong, hard-working or, sometimes, passionate. […] It
were these negative attributes associated with the Moor figure, argues Mohamed Laamiri, that
made his image “an attractive Other and a popular exotic subject which fired the public ima-
gination by the fantastic stories about the Moors and the Barbary States. (Elaskary 2008: 8)

Esta caracterização, com a directa influência dos processos de dominação europeus


em África e no Médio Oriente, no final do século XIX e durante pelo menos a primeira
metade do século XX, opera-se definitivamente sob o vocabulário do poder colonial e
posteriormente do rescaldo pós-colonial. O oriente passa a ser um assunto do Império,
de cada Império, e a sua gestão será sempre pensada como um processo civilizacional,
ainda que as partes envolvidas tenham evidentemente representações assimétricas
quanto ao destino desses processos. Mas esse efeito de governação colonial, baseado
na retórica civilizacional, embate também no itinerário das formas artísticas locais.

Belly dance, for example, relays a sad history since, along with danse du ventre, it evokes
the immersion of an art form into a Western culture and its absorption into a male heterose-
xist discourse. Danse du ventre denotes the French colonial conquest of Algeria and Tunisia
as well as other regions of the Middle East, so it is redolent with imperial soldiers’ heterose-
xual pursuit of hedonist fulfillment on colonized subjects’ bodies. (Karayanni 2004: 25)

A dança oriental, sobretudo a magrebina, cujas longas e permeáveis influências se


misturavam há vários séculos naquelas paragens, torna-se aos olhos dos soldados fran-

Castelos a Bombordo - FINALx.indd 72 27-03-2013 16:57:10


A NORTE DE ORIENTE, A SUL DE OCIDENTE • 73

ceses estacionados no Cairo num bizarro movimento de ventres, estimulada por uma
fantasia sexual e um desejo fantasmagórico do oriente que se multiplica depois numa
produção imagética particular de ampla circulação na colónia e na metrópole – nome-
adamente através de postais de figuras femininas árabes desnudadas e provocantes por
imposição fotográfica, em poses cristalizadas nos seus movimentos tornando-os absur-
damente estáticos, cujo ápice virá a ser a figura do harém, como nos descreve Malek
Alloula (1981).
Porém, para o contexto cipriota, a dança oriental não deverá apenas ser entendida
do ponto de vista da sua exoticização perversa, mas também como um tipo de movi-
mento que potencia claramente outras formas de corporalidade que, de algum modo,
são também modos de resistir ao olhar colonial:

I examine the often elaborate procedures through which Middle Eastern dance (popu-
larly known as belly dance) has been the object of cultural appropriation, manipulated into
complicity by an Orientalist agenda. At the same time, however, this same art form incor-
porates a rare and unyielding potential (or promise) for various kinds of resistances: social,
cultural, sexual. (Karayanni 2004: xii)

Num mesmo sentido, e como sublinhava o músico e ex-bailarino Baltazar Molina,


foi criado uma espécie de tratado de salvaguarda das artes musicais do grande
Magrebe, assinado no Cairo em 1932, como resposta do mundo árabe ao “(…)
medo de perda de identidades culturais e artísticas e onde se fixaram regras e sis-
temas musicais que hoje reconhecemos”7. Esta resiliência activa, em plena era
colonial, juntou músicos e musicólogos árabes e ocidentais neste debate e de algum
modo ilustra o que aquele performer português designa como “zonas de contacto
entre ocidente e oriente” responsáveis pelo que hoje podemos reconhecer como
artes performativas árabes em lato sensu. Molina refere algumas pistas para refle-
xão sobre modelos de standartização e modernização, para além das normas de
moralização e de civilidade impostas pelos impérios coloniais que, por exemplo, o
turismo acabou por trazer ao tornar comerciável a dança e a música em espectácu-
los, sobretudo nas capitais mais cosmopolitas como Cairo ou Bagdad. Por outro
lado, acrescenta que a introdução pelos ocidentais de sistemas de notação – as pau-
tas – permitiu fixar muitas das músicas que se encontravam apenas em memória
oral e na transmissão mimética, sobretudo no Magrebe e, finalmente, que a difusão
e circulação destes estilos e géneros artísticos acabaram por se espalhar entre os
próprios países árabes, através por exemplo, das comitivas e dos eventos diplomá-

7
Entrevista a Baltazar Molina, músico e ex-bailarino português, 2011

Castelos a Bombordo - FINALx.indd 73 27-03-2013 16:57:11


74 • CAST ELOS A BOMBORDO

ticos. Molina conclui que tudo isso permitiu “unir os árabes para que a sua arte não
se perdesse definitivamente” 8.
Acresce ainda que a importância do cinema, que a partir dos anos 1940 através
da grande indústria de Hollywood exportou e tornou itinerante uma filmografia
musical árabe (sobretudo egípcia), rapidamente fixou ela própria novos códigos,
cânones e modos de apresentação ao nível da dança oriental, impondo-se como “ima-
gem de marca”9. Num filme de 1964, Roustabout, uma bailarina designada por Lit-
tle Egipt, dança com Elvis Presley que, por sua vez, canta uma canção associada à
presença de uma bailarina síria na Exposição Universal de Chicago de 1893. Momen-
tos antes da performance, no filme, ouvimos um apresentador anunciar a entrada da
bailarina que aguarda em biquini à frente da multidão: “She walks, she talks, she cra-
wls on her belly just like a reptile! You’ve just bought a ticket to paradise!” (Bock
2005: 14-15). A analogia entre visão do espectáculo e visão do harém reforça-se e
constrói-se sobre a imagem de um ventre serpenteante evocando o pecado original,
que coloca a figura feminina no limite ambíguo do paraíso luxuriante e do inferno
pecaminoso.
Ora são justamente estas fantasmagorias do desejo e da volúpia mas também do
mistério e do exótico oriental que se propagam no contexto das recriações históricas
em Portugal e Espanha. Digamos que, de uma maneira geral, a figura do mouro é aqui
também suspensa da história, anacrónica apesar de ser convocada para lembrar vitó-
rias ou derrotas que ocorreram na história local, chegando mesmo a perder a tonali-
dade religiosa de muçulmano para se reportar sobretudo a um pastiche cultural sobre
o qual se pode fantasiar conceptualmente sem risco ameaçador.
Assim, notas de grande fixação e cristalização da figura do mouro poder-se-iam
sintetizar da seguinte forma: sempre ligado a uma espécie de semi-nudez ou excesso
de vestuário; enfatizando posturas corporais no limiar da humanidade (deitado ou
sentado no chão, mexendo o ventre e a pélvis de forma marcante) ou na companhia
de animais ameaçadores domesticados (serpentes e camelos); encoberto por véus e
turbantes; quase sempre num contexto musical e de dança; em tendas e espaços semi-
-privados ou em bancas de comerciantes, onde se apela à fruição cinestésica (perfumes,
incensos, sabores, contacto táctil); ricamente ornamentados com elementos coloridos,
brilhantes e metálicos. Estas figurações diluem-se entre um grotesco colonial e uma
exoticização mercadorizada da ordem do desejo e da sensorialidade.

8
Idem.
9
Falamos sobretudo da mudança de figurinos das bailarinas, desnudando-as ou descobrindo os seus corpos na zona abdominal,
na centralidade nos movimentos pélvicos e abdominais que tiveram uma ressonância enorme na crítica e na opinião pública, e
acabaram por cristalizar uma imagem de bailarina oriental que mais tarde Hollywood usou até à exaustão, com figuras como
Mata Hari e Salomé a surgirem como verdadeiros heroínas do celuloide.

Castelos a Bombordo - FINALx.indd 74 27-03-2013 16:57:11


A NORTE DE ORIENTE, A SUL DE OCIDENTE • 75

Samira Stella, bailarina granadina que actuou em diversas recriações históricas em


Portugal e Espanha, apesar de reconhecer neste tipo de eventos uma menorização óbvia
da riqueza da cultura árabe, “vendida” em fragmentos de elaboração empobrecida, ou
cenografada para entretenimento, ressalvava todavia a dinâmica do seu improviso, do
seu talento espontâneo e do desafio artístico semelhante ao do teatro de rua. E acres-
centa que esta “popularização” das recriações históricas permite, apesar de tudo,
conectar com a riqueza da cultura árabe: “(…) el miedo à la invasion tiene de ser com-
batido con la fusion” (Samira, entrevista em Granada). Já o músico sevilhano Abdel
Karim, mentor de vários projectos musicais e do grupo Al-Caravan, presente em diver-
sas recriações, e o português Baltazar Molina, são bastante mais severos no juízo que
fazem destes eventos:

(…) es tudo muy superficial, en la calle tienes de tocar mas alto, mejor y en menos
tiempo. Tienes de hacer un show rapido y intenso, pero nadie te escucha con grande aten-
ción. (Abdel Karim, entrevista em Granada)

É um mero negócio e um espectáculo de entretenimento, sem qualquer cuidado histó-


rico ou grande rigor musical. (Baltazar Molina, entrevista em Lisboa)

No caso do Festival Islâmico de Mértola a presença da comunidade muçulmana


de Granada e de estudiosos islâmicos produz um outro efeito na cerzidura deste intrin-
cado puzzle que aqui tentamos desvelar. Assim, se nas restantes recriações históricas
existe um claro anacronismo histórico e uma suspensão no tempo da figura do árabe
ou do mouro, pautado por uma leitura grotesca colonial e por um desejo de merca-
doria exótica, o modelo de islamofilia e de culto do arabismo coloca o Festival de
Mértola num lugar particular. Mais, em todas as restantes recriações encontramos uma
delimitação espacial em recintos públicos (ruas e praças), sujeita a pagamento de
ingresso, muitas vezes com invenção de moeda “histórica” para ser usada no recinto
e com gratuitidade para quem vier “vestido” de figurante histórico. Em Mértola, excep-
tuando os espectáculos ou algumas exposições em sala fechada, toda a participação
no evento é gratuita. E apesar de assistirmos a uma crescente facilitação comercial
marcada por uma cenografia higienizada e performativizada da vila alentejana, onde
o pastiche exótico não deixa de ser apresentado, existe todo um programa paralelo
de conferências e sessões de debate, de mostras e exibições, de espectáculos “de culto”
com assistência aberta que amplificam o sentido político que Cardeira da Silva (2005
e neste volume) sublinha para falar do “efeito Mértola”.
Pude assistir na edição de 2011 a performances rituais abertas, bem como a diver-
sas conferências e debates sobre o mundo árabe contemporâneo. Temas como as revol-

Castelos a Bombordo - FINALx.indd 75 27-03-2013 16:57:11


76 • CAST ELOS A BOMBORDO

tas árabes, a imigração, a manipulação mediática das notícias sobre o mundo árabe, o
imperialismo americano, a relação com o ocidente, a globalização ou respostas à crise
financeira com regresso ao sistema padrão do ouro, entre muitos outros, foram sinais
evidentes de uma tentativa de colocar as discussões numa agenda contemporânea. E
essa temporalidade presente apenas a encontrei neste cenário do Festival Islâmico de
Mértola. Porém, desta feita, as sessões e debates eram de muito baixa frequência de
público, contando apenas com a presença de estudiosos ou muçulmanos convertidos.
Foi naquilo que se designou como Noite de Dikra que pudemos encontrar uma plateia
razoável de público não muçulmano e turistas acidentais que assistiam, assim, a esta
“performance ritual”, com curiosidade pelo exotismo muçulmano. Foram também
marcados por uma significativa presença de público os espectáculos de música árabe-
-andaluza de Eduardo Paniagua que, todavia, se iniciou com um grupo de rua de dan-
ças e cantares folclóricos árabes, percorrendo a vila até ao teatro local e com uma
sessão de dança do ventre de alunas de uma escola da região, muito marcada por uma
total “hollywoodização” dos movimentos e mero exercício coreográfico. Diga-se ainda
que o espectáculo musical final, mais “culto” e rigoroso, não deixou de apresentar
uma esbelta bailarina espanhola de dança oriental que acabou por ser a figura central
do espectáculo e a quem o público não deixou de prestar fortes aplausos.
Em suma, é sobretudo na vertente performativa e de uma certa espectacularização
comercial, balizada por uma visão naturalizada da diferença, que o outro se populariza
e se torna acessível. Baltazar Molina dizia em entrevista que a imagem da dança orien-
tal, muito marcada pela sua difusão a ocidente pela visão “hollywoodesca”, acabou
por se difundir e criar adeptas no ocidente que rapidamente se tornaram elas próprias
agentes de divulgação, mas também de releitura, quando mesmo de deformação, do
universo da dança oriental.
Na verdade, a maioria dos interlocutora/es reconheciam a dinâmica performativa
mercantilizada da dança e da música oriental e das recriações históricas. Enquanto
agentes não “autóctones”, com processos de aprendizagem ocidentais anteriores muito
diversificados (dança ou música jazz, contemporânea, africana, clássica, teatro e artes
circenses), estavam também conscientes dos processos de fusão técnica inevitáveis deste
tipo de performances. As escolas que se multiplicaram pelo país, os festivais e eventos
como o East Festival em Lisboa, organizado por Crys Ayal e Filipa Nawhaar, ou em
Coimbra pela tutela de Petra Pinto, bem como a criação da Associação Portuguesa de
Dança Oriental, são dados que evidenciam a popularização desta modalidade perfor-
mativa, mas que se produzem essencialmente em torno de uma leitura essencialmente
espectacularizada – marcada pelo trabalho de coreografia que insere técnicas como
as “meias pontas”, o peso na energia, alongamentos e força, figurinos e adereços vis-
tosos e de cabaret – e, por consequência, afastando-se do improviso emocional, do

Castelos a Bombordo - FINALx.indd 76 27-03-2013 16:57:11


A NORTE DE ORIENTE, A SUL DE OCIDENTE • 77

movimento pélvico acentuado ligado a práticas rituais e a corporalidades específicas


imputadas à sua execução tradicional em contextos domésticos e festivos próprios do
mundo árabe.

Tem sido impossível trazer isso (a dança oriental) de forma genuína e autêntica. Para
se fazer essa ponte teve de se “espremer” e ficar só no movimento. Seria preciso encontrar
o sentimento, a atitude, o uso prático e os significados (parir, relaxar, descontrair, arrefe-
cer) para se chegar perto deste tipo de danças. Mas hoje talvez comece a ser mais fácil viver
esse movimento porque há abertura em termos sociais, há mais liberdade para sentir, menos
castração por preconceitos morais. (Baltazar Molina, entrevista em Lisboa)

Mas, creio, não se trata apenas e de facto de um confronto entre leituras puristas
e híbridas ou de fusão, mas talvez de um interface entre duas realidades que se espe-
lham há demasiados séculos, num itinerário de mútua alteridade. Karayanni (2004)
falava de corporalidades orientais (acrescentemos sonoridades) que, após a dominação
colonial e o seu refluxo pós-colonial, se mantiveram como formas de resistência, per-
mitindo assim que se conservem para além da construção que delas faz o olhar oci-
dental. Por outro lado, a entrega artística, pessoal, emocional e subjectiva que leva
mulheres e homens a se reencontrarem ou a se completarem neste outro lado do espe-
lho, onde dança e música inspiram e transpiram organicamente fluxos de descoberta
de corpos, gestos e sons, constituem-se talvez como uma resiliência quase invisível de
buscas interiores e de construção do self. Ou, como resumia Joana Saahirah, a única
bailarina entrevistada a residir em contexto árabe, quando lhe perguntava sobre o que
a cativava e entusiasmava na dança oriental:

Como bailarina, uma ARTE com um potencial criativo infinito baseada no que é orgâ-
nico e LIVRE. Instrumento de expressão profundo, emocional, sensorial, espiritual. Mais
do que qualquer outro estilo de dança, eis AQUELA que penso ter dado origem a TODOS
os estilos de Dança. Básica e complexa como o respirar, caminhar, parir, nascer e morrer.
(entrevista online, maiúsculas da interlocutora)

Tráfegos culturais e trânsitos artísticos. Migrações, cosmopolitismos


e movimentos sociais

Obviamente todos estas relações surgem marcadas pelos processos históricos das
suas emanações e claramente pelos trajectos geográficos das suas agentes. Evoquemos
a obra mestra de Said (2003 [1977]) quando este afirma que os principais dogmas do

Castelos a Bombordo - FINALx.indd 77 27-03-2013 16:57:11


78 • CAST ELOS A BOMBORDO

orientalismo existiriam hoje na sua forma mais pura nos estudos sobre os árabes e
sobre o Islão:

(…) um dos dogmas é a absoluta e sistemática diferença entre Ocidente – racional,


desenvolvido, humanitário e superior – e o Oriente – aberrante, subdesenvolvido e inferior.
Outro dogma é a de que as abstracções sobre o oriente, especialmente as que se baseiam
em textos que representam uma civilização oriental “clássica”, são sempre preferíveis aos
casos directos extraídos das realidades modernas orientais. Um terceiro dogma é o de que
o Oriente é eterno, uniforme e incapaz de se definir a si próprio (…) um vocabulário alta-
mente generalizado e sistemático para descrever o Oriente de um ponto vista ocidental é
inevitável e, inclusive, cientificamente “objectivo”. Um quarto dogma é o de que, no fundo,
o Oriente é algo a ser entendido(…) ou algo a ser controlado (…). (Said 1977 [2003]: 356)

Curiosamente, boa parte destes dogmas podem ser reencontrados na leitura que o
ocidente tem feito da contemporaneidade árabe e oriental. Desde que em 17 de Dezem-
bro de 2010 Mohammed Bouazizi, um jovem desesperado – técnico informático que
vendia legumes numa praça tunisina – se imolou pelo fogo frente a uma esquadra da
polícia de Sidi Bouzid em Tunes, vários acontecimentos em cadeia se desenrolaram
dando origem àquilo que os média ocidentais classificaram como o despertar do mundo
árabe ou as revoluções árabes. Um quadro particularmente agitado e sob efeito dominó
se alastrou da Tunísia ao Egipto, à Síria, ao Bahrein, a Marrocos, e finalmente ao Iémen
e à Líbia. Não procurarei aqui demorar-me sobre estes distintos conflitos sociais que
geraram um movimento de sucessivas revoluções, quedas de governo, remodelações
forçadas ou repressões musculadas, durante o frenético ano de 2011. Mas importa
sublinhar que estas convulsões sociais tiverem origens diferentes e estão a ter efeitos
muito variados de país para país, tanto mais que existem modelos de governação muito
distintos – monarquias, ditaduras ou democracias liberais de cunho laico ou de cunho
religioso, com elites sunitas ou xiitas, etc. Todavia, uma vez mais este despertar árabe
parece ser de novo cunhado, nomeadamente pelos média ocidentais, à luz de lentes e
modelos cujos referentes relevam do exercício e do pensamento político ocidental,
assumindo-se assim como novas formas de “orientalismo” – projectado agora no pre-
sente e na contemporaneidade, por um lado temível e por outro carente de controlo,
cuja explicitação deverá ser feita a partir do léxico e da exegese ocidental.
Já Eickelman e Anderson (1999) haviam lançado o debate sobre o modo como a
emergência de uma classe média (muçulmana ou não) no mundo árabe, escolarizada
e com acesso à internet, estava a agilizar o crescimento de movimentos sociais, sobre-
tudo através do espaço aberto com novos média alternativos, seguindo o modelo de
Benedict Anderson a propósito do papel da imprensa na reemergência nacionalista no

Castelos a Bombordo - FINALx.indd 78 27-03-2013 16:57:11


A NORTE DE ORIENTE, A SUL DE OCIDENTE • 79

final do século XIX na Europa. Um outro aspecto que releva desta turbulência social
árabe conecta-se directamente com uma redefinição da relação entre sagrado e pro-
fano, na política e no quadro do Islão, e em particular com a emergência na cena polí-
tica de partidos islâmicos e do debate entre feminismo secular e islâmico (Cardeira da
Silva 2006). Uma etnografia destes movimentos exigirá portanto que não se restrinja
conceptualmente a construção da esfera pública ao domínio de uma racionalidade
secularizada – seguindo o modelo ocidental.
O exercício de ilustração sumária deste fenómeno contemporâneo dos movimen-
tos sociais tem todavia ressonância com a dinâmica representativa do oriente e do
mundo árabe no ocidente. A leitura das mobilizações sociais pelos média ocidentais (e
pela opinião pública) tem sublinhado os contornos universalizantes das dinâmicas
democratizadoras ocidentalizadas que inundam assim as praças árabes ou os traços de
uma emergente modernidade secularizada das mulheres e do seu papel na esfera pública.
Evoco aqui estes aspectos apenas para os confrontar com o “efeito 11/9” e suas seque-
las até ao assassinato de Bin Laden, e que se focaram na produção de uma visão ame-
açadora do árabe mais uma vez decorrente de uma leitura homogeneizadora do Islão.
Em síntese, de um lado uma retórica maniqueísta em torno da delimitação do “eixo
do mal” enquanto instaurador de pânico moral, do outro, uma retórica igualmente
hegemónica em torno da interpretação dos conflitos enquanto universalização da
democracia e da modernidade.
É neste contexto contemporâneo que ainda uma outra modalidade se desenha na
relação ocidente/oriente: os processos migratórios e os de mobilidade cosmopolita,
nomeadamente centrados num fluxo de artistas ou de migrantes árabes que se tornam
artistas em direcção à península ibérica.

La complexification actuelle des modalités de la migration tient à la mise en place d’un


transnationalisme migratoire caractérisé par les initiatives de migrants dont les existences et
les identités sont multi-situées, les mentalités et les imaginaires pluricontextualisés. En cela, les
mondes de l’art et leurs acteurs ne font pas exception. Certes, d’anciennes formes de circula-
tion demeurent, dont celle de la migration forcée et de l’exil. Mais de nouvelles logiques de
mobilités apparaissent à l’instar de parcours plus volontaires engagés en fonction de motiva-
tions empreintes d’un nouvel esprit migratoire, meme si celui-ci ne se départi jamais complè-
tement de contingences politiques ou de nécessités matérielles. (Martinello et al. 2009:7)

A este nível o fluxo migratório é francamente mais significativo no contexto espa-


nhol, e andaluz em particular, do que no português. Estima-se que cerca de 15 milhões
de muçulmana/os – não todos originários de países árabes, nem de países islâmicos,
devido aos fenómenos de naturalização de emigrantes e de conversão – vivam hoje na

Castelos a Bombordo - FINALx.indd 79 27-03-2013 16:57:11


80 • CAST ELOS A BOMBORDO

Europa. A população muçulmana em Portugal tem origens e fluxos diversificados


(Tiesler 2005) decorrente do processo colonial e de descolonização ou resultando de
acordos bilaterais entre nações – por exemplo, entre o Reino de Marrocos e Portugal,
estudados por Faria (2007). Mas trata-se, em qualquer dos casos, de um contingente
pouco significativo. No contexto europeu, a França, o Reino Unido e a Holanda,
sobretudo por razões coloniais, e a Alemanha por motivos ligados à reconstrução euro-
peia após a II Guerra Mundial, lideram as maiores percentagens de população migrante
muçulmana. Já o caso espanhol (tal como o italiano e até o grego) é algo distinto, quer
por razões de proximidade geográfica, ligado à migração actual sem papéis das “balsas
mediterrânicas”, quer por conter um historial mais alargado de recepção do fluxo
migratório magrebino.10 Convirá apenas explicitar dois aspectos singulares desta migra-
ção na sua relação com a temática aqui versada: por um lado, o modo como a imagem
do migrante magrebino contemporâneo tem sido postulada – no caso espanhol – como
algo ameaçador, que exige controlo e que deriva da ordem do subdesenvolvimento e
da inferioridade; por outro, os músicos árabes envolvidos em projectos musicais “ára-
bes” em Espanha – pelo menos os contactados nesta pesquisa – construíram os seus
projectos migratórios num quadro de migração de classe média, jovem e sobretudo
masculina, em busca de qualificações superiores ou de alargamento da carreira artística
e que encontraram na música um canal de reconfiguração dos seus projectos identitá-
rios fora das comunidades de origem.
Os músicos marroquinos entrevistados em Granada, Kamal al-Nwawi,11 Mohamed
Benallal,12 Mostafá Bakkali13 e os contactados virtualmente ou mencionados pelos
anteriores Otmane Benyahya, Abdesselam Naiti ou Otman M’rini (músicos em Gra-
nada) todos confirmaram esta trajectória migratória, que poderíamos eventualmente
classificar mais perto de uma mobilidade cosmopolita, sem perder de vista as questões
materiais e até políticas (Mostafá por exemplo, tocava já canções de intervenção quando
jovem em Marrocos).

10
A migração marroquina, a mais significativa, “remonta ao início do século XX sendo no entanto bastante incipiente e fluido
até aos anos 1970 (…) A partir daí e até aos anos 2000 o fenómeno conhece uma evolução rápida e constante, aumentando o
número de indivíduos que vivem no país e sofrendo alterações na sua constituição: de um universo constituído por homens jovens
solteiros concentrados em algumas zonas do país (Catalunha, Madrid, Andaluzia) passa para uma diversificação de género (um
elemento específico do caso espanhol é a imigração de mulheres – solteiras, casadas e viúvas – com projectos migratórios inde-
pendentes), de idade (Espanha depara-se com uma realidade grave de imigração de menores de idade não acompanhados), de
destinos (os imigrantes marroquinos encontram-se já em todas as Comunidades Autónomas espanholas) e de origens (chegam a
Espanha marroquinos de todas as regiões de Marrocos)”(Faria 2005: 207).
11
Veja-se como constrói o seu perfil no seu blog pessoal (http://kamalnawawi.blogspot.com/)
12
Nascido em Tanger, teve formação musical em buzakhi, baixo e percussão; foi estudante universitário de Informática e Turis-
mo em Granada; pertenceu a vários grupos arabo-andaluzes influenciados pelo sucesso de grupos marroquinos dos anos 1970,
Nass el Ghiwan e Jil. Esteve emigrado em Inglaterra (1998-2002) onde dirigiu um restaurante e depois de regressar a Granada
foi dono de uma sala de espectáculos; nos anos 90 organizou, festivais de música clássica árabe, arabo-andaluza e o Encontro
Hispano-Maghreb durante 5 anos. Faz parte da actual formação dos Al-Caravan e participou em diversas recriações históricas.
13
Leia-se no site de um dos seus grupos o seu perfil (http://www.juanlsanchez.com/jardin/Welcome.html)

Castelos a Bombordo - FINALx.indd 80 27-03-2013 16:57:11


A NORTE DE ORIENTE, A SUL DE OCIDENTE • 81

Estes itinerários migrantes artísticos devem ser cruzados com um outro itinerário
músical migrante: o legado al-andaluz ou arabo-andaluz criado pelo célebre músico e
musicólogo Ziriab,14 discípulo dos mestres udhistes ou lutistas da escola de Bagdad, de
onde será compelido a partir para Córdova (no ano de 822), passando pelo Egipto e
pela Tunísia onde estudou as músicas locais. O fluxo de exílio e de retorno deste estilo
musical é extremamente curioso e demonstra que o tráfego artístico das tradições musi-
cais orientais foi claramente marcado pelo dinamismo, pela fusão e por interfaces locais,
regionais, nacionais e até intercontinentais. Assim o estilo clássico arabo-andalus está
ligado à partida de Ziriab de Bagdad para o emirato de Córdova, e retornará ao Magrebe
após a expulsão dos árabes da península ibérica constituindo-se, depois, em versões
regionais de fusão consoante o país do Norte de África onde se vier a reactivar. O con-
tributo de Ziriab acabou por permitir a fusão de estilos musicais orientais, sefarditas e
cristãos no contexto regional do Al-Anduluz que posteriormente circularam de regresso
ao Magrebe. Com a reconquista cristã, este contributo foi liminarmente suspenso na
península ibérica durante vários séculos, sendo recuperado apenas nos séculos XIX-XX
quando a imigração árabe regressa à Europa ainda de forma precária, e sobretudo a
partir dos anos 1980, na Andaluzia, com a emergência de grupos árabe-andaluzes. Ou
seja, é um género musical itinerante, e tal como as teorias itinerantes de Said, foi tendo
emanações e reapropriações locais na sua deriva que assim devem relativizar a cristali-
zação da sua identidade e as narrativas de uma pureza e autenticidade inabaláveis ao
longo da história.
Complementarmente, a maior parte dos projectos musicais de tradição clássica
árabe-andalusa observados (quer em Espanha com os músicos acima referidos, com
o andaluz Abdel Karim15 e seu grupo Al-Caravan, ou com o madrileno Eduardo Pania-
gua16 e o seu grupo Ibn Báya Ensemble, quer em Portugal com Eduardo Ramos ou
Baltazar Molina) e que participam em diversos eventos de recriação histórica ou em

14
Seu verdadeiro nome é Abu al-Hasan ‘Ali ibn Nafi’ (789-857). Foi um músico e cantor da corte do emirado de Córdova, onde
fundou um conservatório de música e ficou conhecido pelo nome de Ziriab. Era um erudito em astronomia e geografia e um
poeta de origem pouco conhecida, talvez persa, curdo ou negro africano.
15
Sobre Abdel Karim, de Sevilha, mas residente em Granada, podemos ler no programa do seu grupo Abdel Karim Ensemble:
“En cuanto a su formación académica, realiza sus estudios musicales oficiales en el Conservatorio Superior de Música de Sevilla
en los instrumentos de Flauta de pico y Flauta travesera (1988-1994) asistiendo a posteriores cursos de perfeccionamiento de
técnica e interpretación con profesores como Aldo Abreu, Marcos Volonteiro, Vicente Balseiro, Jorje Karyevsky etc. Se ha for-
mado en el Maqam (modo), Wazn (patrones rítmicos) árabes y técnica e interpretación del Nay con el prestigioso nayati Noureddin
Acha, en Tánger. Ha recibido consejos de Ziyad Qadi Amin, (Ensemble Al-Kindi) considerado el mejor nayati de Siria, del cual
ha recibido un valioso instrumento que emplea en sus conciertos. Cabe destacar que ha sido director y profesor del Aula Muni-
cipal de Música de Aracena. Cuenta con la grabación de diversos programas musicales para television y grabaciones discográficas.
Ha sido el fundador y director de la Muestra de Música Antigua de Aracena (Huelva, 1994 a 1998) así como coordinador de la
I Muestra de Música Antigua de Ubeda y Baeza (Junta de Andalucía). En 1999 funda el grupo “Al-Baraka” (Música Tradicional
de Oriente Medio y El Maghreb), con el que ha ofrecido mas de cincuenta actuaciones en prestigiosos Ciclos y Festivales tanto
en nuestro país como en el extranjero en el año 2000.” Funda depois o grupo Al-Caravan com quem tem realizado inúmeros
concertos e participado em recriações históricas em Portugal e Espanha.
16
Veja-se o seu perfil no site: (http://www.ctv.es/USERS/pneuma/grupo.htm)

Castelos a Bombordo - FINALx.indd 81 27-03-2013 16:57:12


82 • CAST ELOS A BOMBORDO

festivais e concertos dedicados àquele género musical, reclamam-se herdeiros do estilo


iniciado com Ziriab. No caso dos músicos marroquinos, o seu percurso deve ainda
ser associado à emergência nos anos 1970 de grupos pop-rock em Marrocos, como
os Jil ou os Nass el Ghiwan ou o contributo de Cheb Khaled e a subsequente inter-
nacionalização da múscia árabe na Europa, mas também com elementos de fusão entre
música tradicional Gnaua (alegadamente oriunda de descendentes das tribos escravi-
zadas da África dita negra que se instalaram no Magrebe, sobretudo em Marrocos) e
música tarab-al andalusi (inspirado no legado al-andalus de Ziriab retornado a
Marrocos)17.
Um último traço que deve ser sublinhado na tentativa de resgate da tradição arabo-
-andaluza é o de que ela se faz de algum modo por referência à construção de uma
identidade (musical e cultural) alargada à região da Andaluzia e, por isso mesmo, mui-
tos destes projectos se têm vindo a cruzar com géneros locais de flamenco-árabe ou
flamenco-jazz. Todavia, estes traços de modernidade ancoram-se ainda claramente
num resgate de uma tradição musical clássica, mesmo que pensada como itinerante e
hibridizada, suspendendo de algum modo o tempo do outro numa fusão de processos
de mercadorização musical e de identificação regional.
O caso dos músicos portugueses é algo distinto, como o demonstram músicos como
Eduardo Ramos18 ou Baltazar Molina,19 uma vez que não existe propriamente uma
reivindicação identitária regional, mas sobretudo um interesse mais subjectivo e artís-
tico pelas tradições musicais orientais. Curiosamente, em ambos os casos, tal como no
do madrileno Eduardo Paniaguas, este interesse alastra-se a géneros musicais clássicos
medievais – música antiga – apontando para uma espécie de interesse conceptual pela
gramática, arquitectura e técnica de tradições musicais antigas ou tradicionais. O oriente
surge então num plano de equivalência formal e musical ao ocidente, traçando-se cru-
zamentos e interfaces entre estes universos.
Deste modo, podemos observar como estes projectos musicais procuram de algum
modo conectar-se com um resgate do estilo arabo-andaluz suspenso no tempo histó-
rico, salientando pela diversidade dos seus repertórios, o traço eminentemente multi-
cultural e de fusão étnica e regional relevado do seu itinerário histórico. De algum
modo, estes projectos seguem uma linha semelhante ao referido para o “efeito Mér-
tola” de Cláudio Torres – e talvez por isso alguns deles actuaram já no Festival Islâmico
de Mértola – que espoletou formas de islamofilia e arabismo num processo político

17
Estes grupos marroquinos, tal como os de rai moderno argelino, foram responsáveis pela introdução de instrumentos e har-
monizações “ocidentais” (saxofones, guitarras elétricas e baterias), fundindo-se com instrumentos e harmonizações locais, e tive-
ram um importante papel político e de intervenção quer em Marrocos quer na Argélia, desde a década de 1970.
18
Eduardo Ramos define o seu perfil no seu site: http://www.myspace.com/eduardoramosmocarabe.
19
Veja-se o seu site: http://www.baltazarmolina.com.

Castelos a Bombordo - FINALx.indd 82 27-03-2013 16:57:12


A NORTE DE ORIENTE, A SUL DE OCIDENTE • 83

de reconfiguração identitária de traços culturais minoritários e invisibilizados pela


história ibérica. Denote-se finalmente que ambos emergem em períodos pós-ditadura
– de Franco em Espanha e de Salazar em Portugal – e reforçam também uma estratégia
de “rumo às periferias” que intelectuais e artistas decidem encetar por volta do último
quartel do seculo XX (Cf. Cardeira da Silva 2005 e neste volume).
Dir-se-ia assim que uma teoria itinerante que possa ler e pensar a diversidade de
fenómenos aqui apresentados, exige também o esforço complementar de situar no
espaço a mobilidade dos seus agentes. Neste texto procurámos acompanhar os trilhos
da dança e música árabe, num arco histórico longo, e numa geografia de trocas e inter-
faces permanentes. Mas também de bailarinos, músicos e demais performers entre
Portugal e Espanha, sem esquecer a migração contemporânea magrebina para a Europa.
O risco de essencialização é obviamente presente, mas procurou-se justamente desven-
dar as múltiplas facetas da relação ocidente/oriente sem nunca a fixar numa definitiva
posição.

Bibliografia

AGNEW, Vanessa, 2007, “History’s Affective Turn: Historical Re-Enactment and its Work in the Present”.
Rethinking History, 11 (3): 299-312.
ALBERT-LLORCA, Marlène e José Antonio González Alcantud, 2003, Moros y Cristianos. Toulouse, Pres-
ses Universitaires du Mirail.
ALCANTUD, José Antonio González, 2002, Lo moro: las lógicas de la derrota y la formación del estereo-
tipo islámico. Barcelona, Anthropos.
ALLOULA, Malek, 1981, Le harem colonial: images d’un sous-erotisme. Genève & Paris, Slatkine.
BAUMANN, Roland, 1996, “Matanzas en las fiestas: La rebelion de la Alpujarra y las fiestas de moros y
cristianos”. Demofilo, 18: 81-92.
BOCK, Sheila Marie, 2005, From Harem fantasy to women Empowerment: Rhetorical strategies and
dynamics of style in American belly dance. Tese MA em Comparative Studies, Ohio State University.
(online em: http://etd.ohiolink.edu/view.cgi?acc_num=osu1144685165)
BORREGUERO, Eva, 2006, “The Moors are coming, the Moors are coming! Encounters with Muslims
in Contemporary Spain”, em AAVV Islam and Christian-Muslim Relations, 17 (4): 417-432.
BURKE III, Edmund e David Prochaska, 2008, Genealogies of Orientalism. History, Theory, Politics.
Urbana, University of Illinois.
CARDEIRA DA SILVA, Maria, 2005, “O sentido dos árabes no nosso sentido. Dos estudos sobre árabes e
sobre muçulmanos em Portugal”, Análise Social, vol. XXXIX (173): 781-806.
_____, 2006, “Social movements in Islamic contexts: anthropological approaches” Etnográfica, (10)1:
73-83.
CARDEIRA DA SILVA, Maria e José Alberto Tavim, 2009, “Marrocos no Brasil: Mazagão (Velho) do
Amapá em festa – a festa de São Tiago” in Actas do Congresso Internacional Atlântico de Antigo Regime:
poderes e sociedades, pp. 1-23.
EICKELMAN, Dale e Jon W. Anderson, 1999, New Media in the Muslim World: The Emergent Public
Sphere. Bloomington, Indiana University Press.

Castelos a Bombordo - FINALx.indd 83 27-03-2013 16:57:12


84 • CAST ELOS A BOMBORDO

ELASKARY, Mohamed I. H., 2008, The Image of Moors in the Writing of Four Elizabethian Drama-
tists: Peele, Dekker, Heywood and Shakespeare. PhD tese em University of Exter (online em:
https://eric.exeter.ac.uk/repository/bitstream/handle/10036/48033/ElaskaryM_fm.pdf?sequence=2)
FABIAN, Johannes, 1983, Time and the Other. How Anthropology Makes its Object. New York, Columbia
University Press.
FARIA, Rita Gomes, 2007, “Marroquinos em Portugal: imigração, religião e comunidade”, Lusotopie,
XIV (1): 205-221.
GOODY, Jack (2005) “Os Taliban, Bamiayn e Nós: o Outro Islâmico”, Análise Social, XXXIX (173):
769-780.
GUSS, David M., 2000, “Moros y cristianos y mujeres e indios: Tamunangue y las fronteras de la etnici-
dad”, Revista de Investigaciones Folclóricas,Vol.15: 9-14.
HAYNES-CLARK, Jennifer Lynn, 2010, American Belly Dance and the Invention of the New Exotic: Ori-
entalism, Feminism, and Popular Culture. Tese MA em Antropologia, Portland State University (online
em: http://gradworks.umi.com/1477134.pdf)
KARAYANNI, Stavros Stavrou, 2004, Dancing, Fear and Desire: Race, Sexuality, and Imperial Politics in
Middle Eastern Dance. Ontario, Wilfrid Laurier University Press.
KROM, Maria J., 2009, “Contested Spaces. Meaningful places. Contemporary performances of Place and
belonging in Spain and Brazil”, Journal of Ethnology and Folkloristics, 3 (2): 33-46.
MAIRA, Sunaima, 2008, “Belly Dancing: Arab-Face, Orientalist Feminist, and US Empire”, The American
Quarterly, 60 (2): 317-345.
MARTÍN, Demetrio E. Brisset, 2001, “Fiestas hispanas de moros y cristianos. Historia y significados”,
Gazeta de Antropología, 17.
MARTINIELLO, Marco et al., 2009, “Créations en migrations” Parcours, déplacements, racinements”,
Revue européenne des migrations internationales, 25: 7-11.
RAPOSO, Paulo, 1998, “O Auto da Floripes: cultura popular, etnógrafos, intelectuais e artistas”, Etnográ-
fica, 2 (2): 189-219.
REIS, Alice Casanova dos, 2008, “O feminino na dança do ventre: uma análise histórica sob uma perspec-
tiva de gênero”, Divers@: Revista Eletrônica Interdisciplinar, 1 (1): 52-67.
RIBEIRO SANCHES, Manuela, 2005, Deslocalizar a Europa. Antropologia, Arte, Literatura e História na
Pós-Colonialidade. Lisboa, Cotovia.
SAID, Edward W., 2004 (1977), Orientalismo. Lisboa, Cotovia.
_______, 1994, “Travelling Theory Reconsidered”, in Reflections on Exile and other Essays. MA, Harvard
University Press.
SAVIGLIANO, Marta E., 1995, Tango and the Political Economy of Passion. Boston, Westview Press.
YBARRA, Patricia A., 2009, Performing Conquest: Five Centuries of Theater, History, and Identity in Tlax-
cala, Mexico. Michigan, University of Michigan Press.

Castelos a Bombordo - FINALx.indd 84 27-03-2013 16:57:12


MARROCOS A BOMBORDO
E A ESTIBORDO

Castelos a Bombordo - FINALx.indd 85 27-03-2013 16:57:12


Castelos a Bombordo - FINALx.indd 86 27-03-2013 16:57:12
A HERANÇA PATRIMONIAL
PORTUGUESA EM MARROCOS
Uma perspetiva contemporânea

ROMEO CARABELLI

Propomos aqui uma leitura das dinâmicas do “fenómeno patrimonial”1 que envol-
vem as heranças arquitetónicas dos portugueses na costa atlântica de Marrocos. Na
apresentação desses processos de patrimonialização procuraremos ter em conta tanto
os laços diretos com o meio físico e social envolvente, quanto as relações que se esta-
belecem a uma escala geográfica e conceptual mais vasta.
A nossa atenção focalizar-se-á, sobretudo, no impacto das construções nos espaços
públicos, tendo em conta a sua dupla presença, por um lado representativa da sua
“visibilidade”, da sua força ostensiva no quadro urbano, mas por outro de ocultação
das alterações a que foram sendo sujeitas: a sua constituição material original e a sua
utilização específica – principalmente militar – emprestam-lhes a inércia inerente à
ilusória falta de maleabilidade das construções imponentes.
Os vestígios portugueses desempenham hoje um papel importante na construção
da autorrepresentação de Marrocos, mas sobretudo na projeção emitida para os estran-
geiros, nomeadamente, os turistas. Esses vestígios têm um valor histórico e simbólico
particular no conjunto do património arquitetónico marroquino sobretudo em virtude
do seu carácter alógeno. Na verdade trata-se de construções produzidas por uma “geo-
grafia colonial espacialmente diferida” (Turco 1988: 184), objetos que, no momento
da sua conceção, não contemplaram qualquer mediação com os locais, sendo, de certa
forma, impostos ao lugar, com vista à sua modificação.
Tendo em conta o período de permanência dos portugueses no atual território de
Marrocos (1415-1769), a sua herança mergulha as origens num passado longínquo
que poderíamos definir como “o passado do passado”. Isso permite situar os confron-
tos históricos – militares, religiosos e sociais – fora da memória imediata e num espaço
percetivo externo aos factos contemporâneos. A distância temporal relativa da colo-
nização portuguesa faz com que a memória recente não retenha lembrança dos por-
tugueses. As arquiteturas luso-marroquinas2, bem como o processo de conquista que
as justificou, são, por isso, um caso interessante para o estudo da integração do patri-

1
Isto é: o conjunto das ações e dos efeitos ligados a um “objeto patrimonial”, tal como ele se apresenta no seu meio.
2
Utilizo o termo composto para indicar a dupla pertença estatutária: certamente portuguesa, irrecusavelmente marroquina.

Castelos a Bombordo - FINALx.indd 87 27-03-2013 16:57:12


88 • CAST ELOS A BOMBORDO

mónio no espaço construído contemporâneo. A sua condição permite, e obriga, a (re)


classificar com um novo estatuto os edifícios para os guardar num espaço imaginário
concomitante com o atual. A atribuição de um estatuto patrimonial é, frequentemente,
o artifício utilizado pela contemporaneidade para se relacionar com o passado e para
integrar o património edificado. Esta transformação semântica coloca, por vezes, pro-
blemas de integração real, porque nem sempre responde às necessidades ou desejos
daqueles que habitam o espaço em que ocorre.
Hoje questiona-se o entendimento dessa herança; inicialmente patrimonializada
devido ao valor da sua antiguidade, tenta agora rentabilizar-se o seu estatuto, o que
leva à procura, por vezes alienada, da sua função cultural. Está, assim, lançada a ques-
tão relativa às possibilidades de uso – cultural ou outro – dos objetos patrimoniais.
Quantas das suas utilizações são exequíveis? Quais aquelas que são compatíveis com
a experiência semântica e técnica do objeto em questão? Mas, sobretudo: quais são as
funções compatíveis com as vontades e necessidades do Marrocos contemporâneo?

O primeiro momento da futura herança

A construção das fortificações costeiras deveu-se à vontade política da Coroa Por-


tuguesa, cujo projeto expansionista começou na África do Norte no século XV. Este
projeto, de origem externa ao atual território marroquino, regulamentou a sua implan-
tação, tanto ao nível geopolítico como arquitetónico e urbanístico. Os portugueses
montaram uma armadura costeira de bases militares e comerciais que, depois da tomada
de Ceuta em 1415, se estendeu progressivamente para sul e oriente, acompanhando
o desenvolvimento da nova potência económica e marítima.
Esta expansão apoiou-se fortemente nas capacidades de navegação dos portu-
gueses, mas também na introdução da defesa em fogo cruzado que se concretizou
com a cortina abaluartada. A análise da componente militar da herança portuguesa
em Marrocos permite acompanhar a passagem das fortificações medievais para as
do Renascimento. Desde a muralha de Ksar al-Seghir às fortificações de Safi, Arzila
e Azamor, passando pelo extraordinário caso de Aguz e, finalmente, pelo de Maza-
gão/ AlJadida, encontramos exemplos que testemunham as modificações radicais que
a morfologia das fortificações sofreu entre a Idade Média e o Renascimento, entre
a época do combate com arma branca e a da utilização massiva das armas de fogo e
do canhão.
As fortificações marroquinas foram fundamentais na experimentação dos meios
que viriam a permitir a expansão lusa, que encontrou em Marrocos “um verdadeiro
laboratório de ensaios e soluções para a aclimatação da arte da guerra do Mediterrâ-

Castelos a Bombordo - FINALx.indd 88 27-03-2013 16:57:12


MARROCOS A BOMBORDO E A ESTIBORDO • 89

neo a outras latitudes, onde serão testadas, retidas ou aperfeiçoadas as futuras formas
de dominar o mundo” (Moreira 1989: 119).
O dispositivo litoral português em Marrocos era constituído por portos que não
mantinham relações fortes com o interior e que, por isso, sofria uma evolução quase
independente dos enclaves litorais. De resto, historicamente, e para além do caso dos
enclaves estrangeiros, a antiga influência das cidades litorais sobre o interior do país
foi até aos nossos dias, sempre bastante limitada, situação que viria a inverter-se ape-
nas com os desígnios coloniais do século XX. Nos períodos anteriores À colonização
foram, ao contrário, sobretudo as cidades interiores que, com iniciativas variadas e
sucessivas, projetaram o seu poder sobre a costa.

O processo de patrimonialização

O processo de valorização dos vestígios da presença portuguesa inaugura a imple-


mentação de regulamentação relativa ao reconhecimento e à proteção do património
construído instituída pelo protetorado francês. Instigado pelo Marechal Lyautey,
Comissário Residente da República Francesa em Marrocos, o Sultão Moulay Youssef
promulga, a 1 de Novembro de 1912, um dahir que abrange as dependências milita-
res, as muralhas, a cisterna e os lugares “históricos” de Mazagão/Al Jadida. A 26 de
Novembro do mesmo ano, Lyautey coloca sob dependência do Makhzen a totalidade
dos monumentos do país, instituindo, a 28 do mesmo mês, o Serviço das Antiguida-
des, Belas Artes e Monumentos Históricos.
Esta atitude estava certamente ligada à vertente romântica do ideal de expansão
das potências ocidentais, como se poderá deduzir, um pouco mais tarde, a partir das
palavras memoráveis do trabalho de Mme Périale, que refere a importância dos dahirs
relativos à proteção do património e a soberana maneira de pensar do Marechal Lyau-
tey que resgataram o “sumptuoso Marrocos” das ruínas em que se encontravam “as
coisas e os seres” (Périale 1935).
As noções de património histórico e da sua proteção são simbióticas com o pro-
cesso colonial da modernidade. Elas arrastam uma panóplia de temáticas de reflexão
ligadas à proteção da identidade cultural, às reivindicações territoriais e culturais, às
mestiçagens culturais, à independência dos povos e à sua autonomia.
A política marroquina de salvaguarda e recuperação do património tem, desde
então, seguido inequivocamente as escolhas tomadas pelo “protetor” francês e respei-
tado as disposições legislativas e regulamentares relativas aos aspetos urbanísticos pro-
mulgadas entre 1912 e 1956 (disposições essas que se inscrevem diretamente na
produção do direito administrativo francês e, europeu, de forma mais geral).

Castelos a Bombordo - FINALx.indd 89 27-03-2013 16:57:12


90 • CAST ELOS A BOMBORDO

Hoje, a política de intervenção sobre o património de origem portuguesa em Mar-


rocos é um dos ingredientes das relações diplomáticas entre Lisboa e Rabat. Portugal
e Marrocos assinaram uma série de acordos político-institucionais relativos às heran-
ças culturais ditas comuns. O que formulamos aqui é a hipótese de uma unidade, de
um princípio inspirador comum a todas as decisões e ações realizadas no território
marroquino a esse nível.
O património de origem portuguesa é, em geral, mal conhecido. Só as pessoas que
vivem perto de um sítio historicamente português têm alguma consciência dele, ainda
que geralmente superficial e estereotipada. É sobretudo a duração da presença portu-
guesa que é ignorada: cita-se, vulgarmente, o século XV e XVI como sendo o período
de ocupação lusa. A noção histórica de que a permanência portuguesa em Mazagão
ou em Tanger foi de longa duração, e de que se prolongou no território até ao século
XVIII (excluindo aqui Ceuta), não encontra muito eco nas apreciações comuns dirigidas
a esta presença. A maior fonte de informação para o tema é a televisão que prefere
difundir a ideia de uma ocupação breve e pontual, logo menos “aviltante”. Os dois
casos mais significativos de recuperação e valorização do património de origem por-
tuguesa em Marrocos seguiram, contudo, dois caminhos distintos: um, não-governa-
mental e turístico, e outro, científico e institucional.

Arzila e a Torre de Menagem

Ocupada pelos espanhóis entre 1912 e 1956, Arzila nunca foi suficientemente
poderosa para poder assumir um papel nacional de primeiro plano, transformando-se,
quando terminou o estatuto internacional de Tanger, numa espécie de satélite da cidade
do Estreito.
A longa permanência portuguesa evidencia-se na estrutura morfológica da cidade,
dado que existem praças intramuros e que a principal de entre elas – a praça Abdellah
Guennoun – é vulgarmente chamada de T’rriro (do português, “terreiro”).3 Para lá
converge um pequeno bairro de estrutura e trama quase regulares. A fortificação da
vila, obra do arquiteto Diogo Boytac, datada do período manuelino, é ainda hoje visí-
vel. Os arquitetos e engenheiros militares tinham a última palavra no que respeitava
a defesa, favorecendo a mobilidade das tropas no interior das praças-fortes: a guarni-
ção devia poder acorrer rapidamente onde fosse necessário e, por causa disso, a largura

3
Segundo Melehi (1983) as denominações topográficas internas da cidadela derivam tradicionalmente do nome de um santo
ou de uma mesquita, de antigas personalidades da medina ou, ainda, das atividades desenvolvidas no lugar. Ao pretender con-
servar as denominações tradicionais, a administração marroquina acaba por introduzir novas, modificando as antigas: denomi-
nações impostas, que os habitantes quase nunca usam.

Castelos a Bombordo - FINALx.indd 90 27-03-2013 16:57:13


MARROCOS A BOMBORDO E A ESTIBORDO • 91

das ruas de ligação deveria ser ampla e homogénea ao longo de todos os trajetos,
devendo estes ser o mais retos e diretos possível.
Bab Homar, a porta que dá para as terras do interior, está inserida num baluarte
que é tipologicamente posterior à torre de menagem. Este constitui um exemplo dos
primórdios da introdução dos canhões na defesa: as canhoneiras de que os bastiões
eram dotados permitiam aos defensores “bater” todo o território envolvente, numa
época em que esta conceção de defesa era ainda desconhecida. Os muros de defesa
são muito visíveis e têm um peso considerável na imagem da cidade. A cerca está intacta
e a sepultura de um marabuto, o palácio de Raissouli e ainda, depois da construção
do último andar, a silhueta da torre de menagem, abrilhantam o aspeto espetacular da
cidadela junto ao mar.
Hoje, as pedras da muralha encontram-se à vista, sem qualquer reboco. A escolha
deste tipo de restauro, bastante alheio a uma atitude conservadora,4 empresta-lhes
uma fascinante expressividade, resultado do jogo de luzes e sombras que ganham forma
quer com a luz natural, quer com iluminação artificial. Os muros revestem assim uma
função cenográfica e turística, não apenas pela imagem que proporcionam, mas tam-
bém porque funcionam como suporte e pano de fundo à atividade dos restaurantes e
dos cafés que acolhem nas suas imediações, do lado exterior, emoldurando o espaço
público das atividades quotidianas, de lazer ou repouso, comércio ou passeio da comu-
nidade. Um imenso passeio arborizado serve igualmente os cafés e os vendedores
ambulantes que o ocupam, aproveitando a sua sombra.
O mercado subterrâneo que se encontra junto aos muros, a sul de Bab Homar,
retoma o tema arquitetónico do antigo fosso. Foi construído em 1985 e é praticamente
invisível: do nível do chão emerge apenas a cobertura. Este mercado tem a vantagem
de não prejudicar a vista e, logo, a imagem das muralhas, preservando, ao mesmo
tempo, o lugar tradicional do mercado de frutos e legumes extramuros que foi, outrora,
semanal.
A qualidade do espaço intramuros de Arzila explica que ela seja frequentada em
virtude da sua “vida quotidiana” e do seu Festival5 como o referiu já Berriane há mais
de dez anos:

Seja pela profundidade histórica, seja pela vida quotidiana que a Medina – uma das
mais bem conservadas – esconde, ou ainda, pela animação cultural desenvolvida pelos seus
habitantes e eleitos, a verdade é que tudo isso constitui uma importante base para um pro-
duto turístico diversificado, cada vez mais procurado pelo turismo de massas que mostra

4
Hoje é possível ver, nos bastiões e nas muralhas, as pedras nuas, sem a proteção do reboco, o que não acontecia na época por-
tuguesa: por questões de proteção do impacto dos projéteis, as paredes externas eram sempre rebocadas e lisas.
5
Lançado em 1972, e interrompido entre 1995 e 2001, continua até agora com grande sucesso.

Castelos a Bombordo - FINALx.indd 91 27-03-2013 16:57:13


92 • CAST ELOS A BOMBORDO

sinais de cansaço em relação ao produto exclusivamente balnear (Berriane 1994: 6 – tra-


dução da editora).

O centro histórico intramuros é suficientemente pequeno para poder ser gerido


tanto pela administração pública quanto pelo turista mas, ao mesmo tempo, suficien-
temente grande para poder oferecer um considerável acervo de imaginário a explorar
sob o ponto de vista cultural e turístico. Até aos anos setenta do século XX, a economia
local era a de uma vila de pescadores e agricultores que no período estival disponibi-
lizavam alojamento privado, incentivando, desse modo, um turismo balnear popular.
Mas nesta pequena cidade, a torre de menagem tornou-se progressivamente um sím-
bolo da valorização do património cultural, por forma a adequar-se a outro tipo de
turismo e desenvolvimento.
A atividade cultural e turística de Arzila pode ser considerada como o resultado
da ação de duas figuras que concentram em si poder, capacidade de promoção cultu-
ral e carisma: Mohammed Ben Aïssa6 e Mohammed Melehi.7 Por terem pressentido
o sentido das evoluções futuras ou, simplesmente, por terem eles próprios contribuído
para elas, ambos se tornaram referências fundamentais para toda e qualquer atividade
económica da cidade.
No princípio dos anos setenta constitui-se a associação cultural Al Muhit8 que virá
a conceber e a gerir o Festival Internacional de Arzila (iniciado em 1978) e da qual
Mohammed Ben Aïssa será o primeiro presidente. É assim que, por ocasião da 25.ª
edição desse festival, ele relembra esse nascimento glorioso:

Foi o início, o verdadeiro início. O começo de todas as coisas da cidade: todos os ser-
viços, infraestruturas e instalações. (…) Tínhamos criado a Associação Cultural Al Muhit,
a primeira organização não-governamental do país (Ben Aïssa in Fondation du Forum
d’Assilah 2003: 4 6 – tradução da editora).

A ação de atores privados tem, sem dúvida, o mérito de cumprir a primeira e a


mais espetacular das intervenções sobre a herança luso-marroquina: a “recuperação”
e a construção parcial da torre de menagem de Arzila. A pedido de Mohamed Ben

6
Antigo ministro dos Negócios Estrangeiros e ministro dos Assuntos Culturais (várias vezes entre 1985 e 1992), ex-embaixador
nos EUA, e Presidente do Concelho do Município de Arzila.
7
Mohammed Melehi é um dos representantes das antigas famílias proprietárias de terras agrícolas na região de Arzila. Foi asses-
sor do ministro dos Assuntos Culturais.
8
Denoeux e Gateau descrevem esta associação como “regional”, com uma forte relação com o poder central: oficialmente, os
porta-vozes não têm um papel político instituído, mas os seus laços muito fortes com o poder autorizam-nos a duvidar que, na
realidade, assim seja. Com efeito, algumas destas associações podem ser meros instrumentos de controlo, mais eficazes do que
as antigas formas de regulação social: “A estratégia que consistira, nos anos 1960 e 1970, em apoiar-se nos notáveis rurais, dei-
xou de ser suficiente para assegurar o nível de controlo social e político desejado pelo Palácio” (Denoeux e Gateau 1995: 23).

Castelos a Bombordo - FINALx.indd 92 27-03-2013 16:57:13


MARROCOS A BOMBORDO E A ESTIBORDO • 93

Aïssa9 – então presidente da comuna – a Fundação Gulbenkian, que já marcara pre-


sença em Marrocos com a criação do monumento comemorativo da passagem portu-
guesa no Cabo Bojador em 1434, concebeu o projeto e financiou a maior parte dos
trabalhos de valorização.
A torre funciona como o catalisador dos discursos relativos aos factos patrimoniais.
O mito do universalismo e das relações culturais amigáveis é manifesto nalguns dos
discursos de inauguração.10 O Presidente Mário Soares afirmará, por exemplo:

O novo mundo multipolar exige, dos países e dos povos, o reforço das formas de coo-
peração e afirmação de zonas geográficas de grande interesse estratégico (…). A inaugura-
ção da torre de Arzila foi um ato de confirmação dessa vontade universal (cf. Fundação
Gulbenkian 1995: 7 e 8).

Poder-se-á perguntar se a “produção” da imagem da torre de Arzila, ou os efeitos


resultantes das diversas intervenções da Fundação Gulbenkian espelham uma tentativa
de manutenção e reforço da difusão da cultura portuguesa, do espaço e “mercado”
lusófono/luso-tropical e do poder político de Portugal. Mas, de facto, os decisores de
Arzila, conscientes das forças económicas e da realidade marroquina, planificaram
estrategicamente a introdução no mercado do acervo patrimonial da cidade, como se
se tratasse de um verdadeiro investimento. Este processo de patrimonialização, pouco
frequente em Marrocos, é significativo na medida em que manifesta um propósito de
desenvolvimento e uma visão estratégica de longo alcance.
Sem esta estratégia de patrimonialização forçada, a cidade teria provavelmente
sofrido uma degradação extrema, como a que afetou durante muito tempo Azamor:
uma cidade comparável à de Arzila, do ponto de vista das suas dimensões, do seu valor
estético, da consistência e do estado do seu património construído. A cidade de Aza-
mor é um bom exemplo para mostrar o que (não) se passa quando não se encontram
meios para contrariar a inércia acumulada: o declínio total que encontramos nas peque-
nas cidades marginais aos eixos nacionais do desenvolvimento.11 Perante o exemplo
de Azamor, podemos compreender como o caso de Arzila foi durante muito tempo

9
E segundo as palavras de José Blanco, então administrador da Fundação Calouste Gulbenkian, “A proposta inicial partiu do
lado marroquino: há já quase 10 anos, Sua Excelência Mohammed Benaissa, na época Ministro da Cultura e hoje, como antes,
amigo de Portugal e amigo pessoal, tomou a iniciativa de se dirigir à Fundação Calouste Gulbenkian. Esta aproximação, que
resulta da vontade iluminada de Sua Majestade o Rei Hassan II, de reafirmar cada vez mais os laços entre os nossos dois países,
recebeu imediatamente o acolhimento positivo da Fundação” (ver Fundação Calouste Gulbenkian 1995)
10
Sob o alto patrocínio da família real e a participação do príncipe que é, agora, o rei Mohamed VI, como convém a um ato
“importante” e “elevado”.
11
Nos últimos anos, contudo, o fenómeno de recuperação da medina de Azamor através da recuperação de muitas casas tradi-
cionais, transformadas em casa de fim-de-semana, vem confirmar a análise aqui desenvolvida: sem um “artifício” (uma pessoa,
agente, instituição ou ator económico que aja em primeiro lugar) a valorização patrimonial é quase impossível. No caso recente
de Azamor, é de destacar, a esse nível, o papel do Ministro das Comunicações, que aqui não podemos seguir.

Castelos a Bombordo - FINALx.indd 93 27-03-2013 16:57:13


94 • CAST ELOS A BOMBORDO

excecional em Marrocos. A cidade pôde, de facto, beneficiar de contingências raras,


senão únicas: um Ministro com poderes, capaz e interessado, a vontade de estimular
a cooperação bilateral (tanto da parte de Marrocos, quanto de Portugal), e a disponi-
bilização de verba por parte da Fundação Calouste Gulbenkian.
De facto, a torre de menagem em Arzila reunia todas as condições para captar
esforços e interesses diferenciados: esteticamente impressionante, soberbamente loca-
lizada entre o porto e a cidade, antiga e visível a partir de qualquer ponto, encerrava
ainda a carga simbólica que lhe advém do facto de, alegadamente, ter sido aquele o
último sítio onde pernoitou D. Sebastião antes da batalha de Alcácer Quibir. Esta torre
é ainda interessante nas suas múltiplas formas de ser monumental: ela nasce como
monumento ao poder de D. Manuel mas, com o tempo, e perdendo a sua primeira
função monumental, torna-se mero monumento histórico; depois, com a sua recons-
trução parcial, adquire uma dupla função monumental: a nominalmente histórica e a
que celebra, os atores chave da sua reabilitação (Mohammed Ben Aïssa e a Fundação
Calouste Gulbenkian).
Os trabalhos realizados não satisfizeram, no entanto, o Centro do Património
Marroquino-Lusitano12, que teria preferido uma intervenção diferente, geradora de
uma estratégia global de intervenção no conjunto do património de origem portuguesa
em Marrocos e que proporcionasse aos visitantes e turistas uma leitura mais “cientí-
fica” da paisagem.13
Infelizmente, um investimento económico de tal dimensão não parece ter tido
consequências consistentes, e a imagem da cooperação luso-marroquina não saiu ver-
dadeiramente reforçada.14 A nossa pesquisa revelou que os habitantes de Arzila des-
conhecem que as obras de restauro foram financiadas por Portugal. E esse facto tem
enfraquecido a vontade de investimento de grandes montantes sem garantia prévia de
um retorno de imagem suficientemente forte que justifique uma operação deste tipo
por parte de Portugal.
Hoje, a Torre integra-se na vida citadina apenas pela sua vertente icónica. Ela está
aberta unicamente ao serviço das exposições e visitas turísticas, e as atividades a que
se destina são pagas. O património, socialmente inapropriável, torna-se objeto de mera
observação; o monumento é um objeto em torno do qual se pode girar, mas não há
nada no seu interior: o monumento está “vazio”.

12
A propósito do Centre d’études et de recherches du patrimoine maroco-lusitanien, ver adiante.
13
Ver adiante. A então Diretora do Centro, que sempre se recusou a utilizar o termo “restauro” para se referir aos trabalhos
empreendidos em Arzila, teria preferido uma série de pequenas operações repartidas sobre o conjunto do património português
em Marrocos, acreditando que isso teria prevenido muitos dos problemas técnicos de que hoje padecem.
14
Segundo informação prestada na Embaixada de Portugal em Rabat em 1997, os responsáveis portugueses pelo projeto de Arzila
não estão totalmente satisfeitos, na medida em que os custos foram demasiado elevados para o retorno obtido. O investimento foi
de 920 milhões de escudos portugueses (cerca de 5 milhões de euros), sendo 10% da responsabilidade da Associação Al Mohuit.

Castelos a Bombordo - FINALx.indd 94 27-03-2013 16:57:13


MARROCOS A BOMBORDO E A ESTIBORDO • 95

AlJadida, a corrida ao reconhecimento

O abandono da cidade de Mazagão depois da partida dos portugueses em 1769


prolongar-se-á até 1821, data em que a colónia judia de Azamor solicita ao sultão Mou-
lay Abderrahmane o direito de estabelecimento na cidadela fortificada (Ricard 1935:
2). Uma vez concedido o pedido, esta toma o nome de Al Jadida (“a Nova”), nome que
viria a ser substituído, durante o Protetorado, por Mazagan, do português Mazagão15.
A colónia judia empreendeu uma reconstrução ativa do bairro intra-muros que
havia, entretanto, sofrido significativa degradação. No século XIX, a cidade conheceu
um forte desenvolvimento comercial que, apoiando-se no porto já construído pelos
portugueses, deu vida a uma cidade florescente (Jmahri 1987: 47). O período é mar-
cado por grande prosperidade económica da cidade, tendo a população quadruplicado
entre 1832 e 1886. AlJadida ocupa, então, o primeiro lugar no leque de portos mar-
roquinos pelo seu tráfego, logo antes de Casablanca, cujo rápido crescimento virá,
durante a primeira metade do século XX, a destroná-la.
A cidade é, desde há muito, destino de um importante fluxo turístico. A esse nível,
a sua importância à escala nacional não é recente: o plano de urbanismo de 1916 prevê
uma expansão da cidade ao longo da praia e da baía de modo a acolher os residentes
franceses e alguns extratos da burguesia marroquina, recebendo então a cidade o epí-
teto da “Deauville marroquina”.
As muralhas continuam a ser uma marca característica do bairro histórico, tendo
a ocupação judia mantido a estrutura viária prévia e a tipologia do habitat. Só mais
recentemente as zonas mais periféricas sofreram – embora moderadamente – modifi-
cações morfológicas semelhantes às de outras pequenas cidades da margem sul do
Mediterrâneo.
A cidade intramuros continua assim a apresentar hoje uma imagem de notável uni-
formidade, sem com isso deixar de evidenciar uma mistura de estruturas fascinante, o
que, de certa forma, contrasta com a pobreza dos seus atuais ocupantes. Este desequilí-
brio resulta de um processo já antigo de abandono da cidadela por parte das populações
mais favorecidas, que se instalaram na cidade extra muros ou, no caso dos judeus, em
Casablanca ou em Israel. O bairro antigo tornou-se destino de imigrantes de origem rural
e espaço de residência de populações empobrecidas, de rendimentos irregulares, tocadas
por manifestações de marginalidade social: delinquência, prostituição, droga. Tudo isto
fez com que o “bairro português” ganhasse progressivamente conotações negativas.
Na verdade, o bairro tem uma dupla denominação: ora “cité portugaise”, quando
se utiliza a denominação oficial – a que serve, por exemplo, os mapas da cidade, ou

15
Que, por seu turno é a apropriação do nome berbere da localidade pré-existente.

Castelos a Bombordo - FINALx.indd 95 27-03-2013 16:57:13


96 • CAST ELOS A BOMBORDO

que encontramos na sinalética urbana, ora a de mellah, utilizada na linguagem popu-


lar corrente. Claro que a memória do termo mellah, que revela a lembrança do seu
povoamento judeu, é carregada de conotações pejorativas mas, antes de mais, ela res-
ponde – pelo menos nos dias de hoje – à ausência de outro termo satisfatório. Esta
hesitação na denominação faz eco das incertezas relativas ao estatuto do bairro e às
muralhas que o contêm. Como diz Philippe Gervais-Lambony (1995: 479), “um lugar
com um nome claro é facilmente identificável e percetível pelo cidadão”. No início
dos anos 90, esta dificuldade de identificação era evidente em AlJadida e, em todo o
caso, a perceção da cidadela era ainda negativa.
O principal edifício do bairro é a Cisterna portuguesa. Construída em 1514, foi
transformada em reservatório de água por altura do levantamento das muralhas. Desde
1821 até hoje ela funcionou, do ponto de vista morfológico do bairro, como uma “mes-
quita pagã”, em torno da qual se reúnem os comerciantes do lugar. A cisterna não sofreu
nenhuma alteração maior na sua estrutura16 para além da transformação de uma das suas
torres em minarete, no fim do século XIX, como nos escreve Jean Goulven (1917).
A igreja principal do bairro – Nossa Senhora da Assunção – serviu de casa de habi-
tação ao longo do século XIX para se vir a transformar em lugar de culto católico
durante o protetorado francês, depois de realizados trabalhos de restauro em 191917;
hoje é um espaço público destinado a atividades culturais. Em estaleiro desde 1994, a
nave foi aberta ao público durante o verão de 2003, inaugurando-se uma exposição
itinerante – Mazagão: patrimoine édifié d’origine portugaise – que exibia um detalhado
levantamento do bairro, realizado pela Faculdade de Arquitectura do Porto18.
O início da patrimonialização dos vestígios portugueses em AlJadida participa de
uma conceção mais generalizada em Marrocos, de espetacularização do facto patri-
monial; a intenção mais ou menos declarada, consiste na encenação patrimonial com
vista a um desenvolvimento do tipo turístico “de base”. Foi com este fim que, por volta
de 1985, foram levados a cabo uma série de trabalhos especialmente focalizados na
cidadela, que modificaram profundamente o seu impacto visual, esforçando-se por dar
uma ilusão de maior antiguidade de certas partes da sua estrutura interna. Do ponto
de vista técnico, este projeto que apelidamos “do governador”, devido ao interesse
manifesto do Governador da época, previa a revalorização do eixo principal da cidade
em forma de “cone ótico” entre a porta principal – aberta em 1916 – e a Porta do Mar,
através da ampliação de algumas ruas.

16
Isso é confirmado em Embaixada de Portugal 1985: 24
17
Os trabalhos de recuperação da igreja com vista á sua reutilização religiosa começaram a 4 de Agosto de 1919 (Ricard 1935.
Ver, também, Correia 1923).
18
Faculdade de Arquitetura da Universidade do Porto em colaboração com o IPPAR e o Centro do Património Marroquino-Lusitano,
no quadro de uma Ação Piloto de Cooperação Portugal / Espanha / Marrocos financiada pelo programa FEDER, 2001.

Castelos a Bombordo - FINALx.indd 96 27-03-2013 16:57:13


MARROCOS A BOMBORDO E A ESTIBORDO • 97

As ações mais significativas no que respeita ao património lusitano foram a


demolição dos restos do baluarte do Governador (de origem portuguesa), a cons-
trução de uma torre, no ângulo da cisterna – destinada a albergar um posto de
polícia – o nivelamento de alguns pequenos edifícios situados ao lado da cisterna
e da frágil passagem aérea, construída durante o protetorado, que ligava a antiga
igreja ao presbitério. Essas intervenções mereceram muitas críticas – sobretudo
vindas dos arqueólogos do Ministério dos Assuntos Culturais – dado que impedi-
ram, a partir daí, as escavações arqueológicas. Trata-se de um caso evidente em
que a espetacularização banal do fenómeno patrimonial tornou impossível toda a
prossecução da pesquisa histórica. Mesmo a reconstrução – muito duvidosa tanto
do ponto de vista da validação quanto da integração histórica – de uma torre,
semelhante às outras três, no edifício da cisterna, faz prova de desprovimento
“científico” numa intervenção que poderia ter alcançado os seus objetivos sem que
isso implicasse a “falsificação” dos objetos ou que, pelo menos, acautelasse a sua
prévia inventariação.
O Ministério dos Assuntos Culturais exprimiu-se nesse sentido, através de uma
série de protestos, mas não conseguiu evitar a iniciativa do Governador da Província.
Esta impotência do Ministério da Cultura prolongou-se até 1980 e, mesmo hoje, o
Centro do Património Marroquino-Lusitano não dispõe senão de um poder consultivo
sobre o bairro e as suas funções são limitadas à intervenção nos edifícios em si.
No interior do bairro português, procedeu-se ao reboco dos muros da rua princi-
pal, cometendo-se um erro que viria mais tarde a transformar-se em problema: a inter-
venção foi feita com reboco de cimento moderno que agarra mal sobre os materiais
antigos. Isso levou à rápida deterioração do reboco, dando ao conjunto um aspeto
muito degradado. Para além disso, o reboco utilizado foi de cor ocre, como já o fora
para as partes mais evidentes das muralhas exteriores, tanto em AlJadida como em
Azamor, sabendo nós que os Portugueses utilizavam, tanto para os muros como para
as construções civis, o reboco de cor branca.
Ao fundo da rua, mesmo junto da Porta do Mar, foi edificado um muro que se
franqueia por um arco de alvenaria recuperado algures e reerguido ali. Esta interven-
ção, por mais insignificante que seja, permite rematar o “cone ótico”, que não poderia
desembocar dignamente no modesto forno de pão que ali existe. A cisterna sofreu,
também ela, uma “recuperação” que levou à eliminação dos restos das construções
que se apoiavam nos seus muros exteriores. As fachadas da rua principal e da praça
foram depois rebocadas novamente, enquanto, noutros pontos, as pedras da constru-
ção foram deixadas em bruto ou rusticamente cimentadas.
Com vista a um “renascimento” – sobretudo económico – do bairro, foi lançado
um programa de ampliação e alinhamento das ruas que atravessam o centro histó-

Castelos a Bombordo - FINALx.indd 97 27-03-2013 16:57:14


98 • CAST ELOS A BOMBORDO

rico. Isso foi realizado muito lenta e discretamente, provavelmente para evitar even-
tuais protestos ou a reclamação de indemnizações por expropriações por parte dos
habitantes.
Estes empreendimentos foram desenvolvidos na expectativa de um aumento sig-
nificativo do fluxo turístico esperado, entre outras coisas, pela construção de uma
marina de recreio cujo pré-projecto foi estabelecido em 1989 (Municipalité d’El Jadida
1990). Este último projeto de valorização encontra-se, no entanto, numa fase de quase
suspensão, não se adivinhando a data e a forma do seu desfecho.

Um novo ator principal

Na segunda metade dos anos noventa assiste-se à chegada de um novo ator patri-
monial que depressa toma protagonismo: o, aqui já mencionado, Centre d’études et
de recherches du patrimoine maroco-lusitanien. Este organismo, que depende do minis-
tério marroquino da Cultura e da Comunicação, foi criado em colaboração com as
autoridades portuguesas, com o objetivo de centralizar as investigações e as ações de
reabilitação e restauro do património português. A sua sede situa-se em AlJadida, para-
doxalmente fora do “bairro português”.
A cooperação institucional baseou-se em laços interministeriais, o que torna a sua
atuação eventualmente mais lenta e menos espetacular do que os projetos desenvolvi-
dos por privados em Arzila, mas lhe confere, no entanto, maior abrangência. O Cen-
tro – criado por decreto de 30 de Janeiro de 1995, embora inaugurado previamente
em 13 de Julho de 1994 – é o resultado mais evidente deste tipo de cooperação. A
inauguração fez-se com pompa e circunstância na presença do ministro da Cultura e
da Comunicação, do governador da província de AlJadida, do embaixador português
em Rabat e, consolidando a sua vertente científica, dos responsáveis do Campo Arque-
ológico de Mértola e da então diretora do Palácio Nacional de Sintra (vila geminada
com AlJadida).
Este Centro foi instituído pelo protocolo de cooperação entre Portugal e Marro-
cos assinado em Lisboa a 24 de Setembro de 1993, que prevê a criação em Al Jadida
de um “departamento de estudos relativos à salvaguarda dos monumentos patrimo-
niais portugueses em Marrocos” (Visite officielle de Sa Majesté le Roi Hassan II au
Portugal, 1993: 59). A sua atividade está sobre a alçada de uma comissão mista que
deve reunir uma vez por ano, alternadamente em cada um dos países. A estrutura que
lhe preside é fortemente orientada para uma arqueologia não intrusiva e restritiva,
focalizando-se na dimensão exclusivamente morfológica e material do património
construído e distanciando-se das dinâmicas da sua valorização. A sua ação, legitimada

Castelos a Bombordo - FINALx.indd 98 27-03-2013 16:57:14


MARROCOS A BOMBORDO E A ESTIBORDO • 99

pela sua dependência direta dos mais altos níveis do Estado, visa a garantia de uma
integração máxima das ações e atores locais.19
O campo de atuação do Centro de Património Marroquino-Lusitano circunscreve-
-se à herança reconhecida juridicamente enquanto património – tudo aquilo que é
legalmente protegido –, o que o torna relativamente impotente face ao número con-
siderável de demolições efectuadas para além dos limites assim estabelecidos. Dessa
restrição é exemplo a Igreja espanhola, edifício histórico em risco que se encontra no
interior da cidadela e que é referenciado na lista da ICOMOS e do Comité do Patri-
mónio Mundial (UNESCO). Por não ser nem classificada, nem portuguesa, fica fora
da esfera de intervenção do Centro20. A compartimentação de poderes, embora com-
preensível, torna-se excessivamente rígida e constrangedora. Apesar das suas compe-
tências e boa vontade, o Centro sofre limitações operacionais muito fortes: tem funções
de intervenção ao nível local e nacional, mas o seu orçamento é francamente limitado
e não dispõe senão de um poder consultivo. Apesar disso, é preciso reconhecer que
introduziu competência científica e técnica no acompanhamento das intervenções no
património de origem portuguesa, elevando a qualidade dos trabalhos precedentes na
área do restauro.
A primeira iniciativa operacional desta instituição consistiu no inventário conjunto
do património móvel e imóvel, com vista a uma definição efetiva do acervo patrimo-
nial português. O inventário visava a constituição de dossiês individualizados sobre os
diferentes monumentos, que permitissem a sua recuperação e reabilitação, entendida
como revificação “...porque não basta restaurar; é preciso, também reabilitar esses
monumentos, fazê-los reviver” (Zurfluh, 1994: 12 – tradução da editora).
Foi nesse âmbito que, nos anos 1995 e 1996, se iniciaram os trabalhos da muralha
e da igreja de S. Sebastião – edifício que chegou anteriormente a funcionar como sina-
goga. Daí para a frente, esta construção destacar-se-á do conjunto edificado da cidadela
graças ao seu imaculado reboco branco. As antigas grades das janelas – de formas
sugestivas e corroídas pelo sal, o que contribuía para a sua aura romântica e evocava
a relação com o mar – foram substituídas por grades novas e janelas de quadrícula.
Mesmo conhecendo a insuficiência dos meios financeiros e as limitações técnicas da
mão-de-obra local, um caixilho sem interrupção visual teria sido mais eficaz na manu-
tenção do pathos do sítio.
Também a cisterna foi alvo da ação direta do Centro. Todos os objetos que alber-
gava – canhões, fuzis, outro tipo de armas, etc. – foram devidamente inventariados e
classificados. Terminado o inventário, procedeu-se a algumas alterações nas salas con-

19
Entrevista com a então diretora do Centro do Património Marroquino-Lusitano em Setembro de 2005.
20
Entretanto vendida – a investidores privados e estrangeiros – e recuperada para atividade hoteleira, o que denuncia a especu-
lação imobiliária esperada.

Castelos a Bombordo - FINALx.indd 99 27-03-2013 16:57:14


100 • CASTELOS A BOMBORDO

tíguas à cisterna propriamente dita. A eliminação dos apendículos supérfluos do século


XIX permitiu ganhar algum espaço na entrada onde agora se exibem as peças encon-
tradas durante os trabalhos também realizados na Igreja. Duas outras belas salas estão
igualmente destinadas a exposições temporárias. Os trabalhos de beneficiação termi-
naram em Outubro de 2003.
Foi por essa altura, dada a nova configuração dos atores do património luso-
-marroquino – e provavelmente inspirada pelo êxito prévio da cidade de Essaouira –
que AlJadida se lançou na constituição de um dossiê de candidatura a Património
Mundial pela UNESCO, também movida, obviamente, pelo desejo de desenvolvimento
do sector turístico ativado pelo património. A primeira tentativa de inscrição terá, em
grande parte, falhado pela ausência de coordenação territorial indispensável para a
salvaguarda e revalorização de qualquer perímetro patrimonial. As recomendações dos
avaliadores da proposta sugeriram “a redefinição do sítio por forma a incluir toda a
zona do sistema defensivo, a extensão da zona buffer, a configuração e implementação
do plano de ordenamento e de conservação e o estabelecimento de um plano de con-
trolo para a área envolvente, incluindo estudos de impacto do desenvolvimento pro-
posto para as zonas adjacentes à fortificação” (UNESCO, World Heritage Convention
2002: 23). O relatório sublinhava assim a necessidade de ter em conta um espaço
patrimonial homogéneo que não se restrinja aos monumentos, mas contemple a inte-
gridade do bairro intramuros, a sua envolvência, e manifeste o empenho num plano
de gestão relativo aos projetos previstos para as zonas adjacentes (pressentindo-se
desaprovação relativamente à construção da marina de recreio, tal como fora, então,
apresentada).
Um segundo dossiê foi posteriormente apresentado, desta feita com representação
de todas as instituições e algumas ONGs locais e tomando em consideração as altera-
ções propostas pela UNESCO (Chahid 2004 e comunicações verbais).21 Foi esta a pro-
posta aceite pelas instâncias da UNESCO que inscreveram, no Verão de 2004, “la ville
portugaise de Mazagan (Al Jadida)” na lista do Património Mundial.
Apesar deste sucesso, é triste constatar uma série de imprecisões no formulário
oficial de candidatura que ficou online no sítio web da UNESCO.22 Ali se lia que a
“colónia foi reconquistada” quando, na verdade, não existia ali nenhuma colónia, nem
sequer uma vila, antes da chegada dos portugueses23. Por outro lado era referido que
aquele foi um dos primeiros estabelecimentos dos exploradores portugueses na África
Ocidental quando, na realidade, se trata do último estabelecimento dos portugueses

21
Entrevista a Azzeddine Karra, diretor do Centro do Património Marroquino-Lusitano até 2007.
22
http://whc.unesco.org/pg.cfm?CID=31&ID_SITE=1058&l=FR consultado em Maio 2007
23
Posição contestada pelo arqueólogo e então diretor do Centro do Património Marroquino-Lusitano, proponente do dossiê de
candidatura.

Castelos a Bombordo - FINALx.indd 100 27-03-2013 16:57:14


MARROCOS A BOMBORDO E A ESTIBORDO • 101

em Marrocos. A candidatura referia ainda uma confusa ligação entre a África “branca”
e África “negra” e colocava Mazagão no “caminho para a Índia”, sabendo-se que
Mazagão não se inscrevia nessa rota.
É mais que evidente que a situação do património de origem portuguesa em Mar-
rocos está a mudar. Os monumentos restaurados e patrimonializados são cada vez mais
frequentemente retirados do espaço comum e transformados em enclaves. Já subli-
nhámos o fecho da torre de Arzila, da antiga igreja/sinagoga de S. Sebastião em AlJa-
dida e também as restrições de acesso à cobertura da Cisterna e à Igreja da Assunção.
Noutra situação chegou mesmo a tentar fechar-se ao público o acesso ao passadiço das
muralhas de AlJadida24. Limitando-se o acesso a estes bens patrimoniais, cria-se um
paradoxo: ao mesmo tempo que se lhe atribui valor histórico, assiste-se à sua “exclu-
são”, à sua “expulsão” da história. Claro que estas escolhas não implicam má-fé, mas
o efeito colateral do impulso protecionista do património, redunda na transformação
da paisagem urbana numa série de representações tipo “postal ilustrado”, acéticas e
irreais, cujos beneficiários são os turistas, por definição estrangeiros aos lugares em
causa. A produção destes espaços acéticos tem efeitos negativos sobre os habitantes
que deixam de ter a possibilidade de usar os “seus” espaços sem, contudo, beneficia-
rem das vantagens económicas produzidas pelo turismo.

Conclusões

I.

Quisemos aqui sublinhar as linhas de força que transformam a coleção dos bens
culturais de origem portuguesa num conjunto de objetos patrimoniais. O nosso pres-
suposto foi o de uma re-territorialização desses enclaves que, por múltiplas razões, se
reinscrevem hoje no espaço urbano com configurações que derivam das suas caracte-
rísticas territoriais originais. A sua territorialização original fornece memórias materiais
e espaciais organizadas que alimentam os processos de patrimonialização agora em
curso. Na verdade, os objetos patrimoniais luso-marroquinos são fragmentos de ter-
ritório ambíguos: ao mesmo tempo que sofrem as dinâmicas da nação na qual residem
territorialmente, são frequentemente considerados como expressão de interesse aló-
geno, ou mesmo neocolonial.
A questão do restauro e da reabilitação de monumentos com fins patrimoniais
é objeto de numerosos discursos e declarações formais promovidas pelos media. As

24
Ver Carabelli 1999.

Castelos a Bombordo - FINALx.indd 101 27-03-2013 16:57:14


102 • CASTELOS A BOMBORDO

ações empreendidas nesses domínios são, no entanto, pouco conclusivas porque


agem apenas sobre a componente material do património e as mudanças que even-
tualmente suscitam acabam por ser muito limitadas. Assim, penso que podemos
afirmar que os resultados decorrentes das políticas de salvaguarda do património
de origem portuguesa em Marrocos são incongruentes. Isso pode ser explicado pela
excessiva simplificação da leitura patrimonial operada por atores forçados a inter-
venções desconexas e sectoriais. A multiplicação e fragmentação de operadores –
institucionais ou não, nacionais e estrangeiros – acentuam o carácter fracionado das
intervenções sobre o património, frequentemente determinadas por contingências
avulsas.
Para além disso, é frequente que essas intervenções não tomem em conta as per-
ceções patrimoniais dos habitantes locais e sobrestimem a vontade e disponibilidade
económica dos operadores potenciais. Por isso são, por vezes, formuladas propostas
de intervenção que, obrigadas a responder a necessidades de financiamento externo,
acabam por desvirtuar o empreendimento patrimonial.
A perspetiva patrimonial global coloca problemas de aceitação no mundo inteiro.
Dada a sua origem europeia esta perspetiva deve ser filtrada e descodificada pelos
diferentes Estados e populações por forma a ser vivida e reconhecida como própria.
No caso específico da herança luso-marroquina, uma patrimonialização plena passa,
necessariamente, pela aceitação, a reapropriação e incorporação do capital simbólico
marroquino que também a integra.
A atual “turisticação” implica novas atribuições à função cultural e, estas reconfi-
gurações nem sempre acautelam o facto de o turismo frequentemente não compensar
alterações na estrutura patrimonial. A utilização turística transforma o património,
aproveitando economicamente as suas mais-valias; mas este processo “consome”, de
facto, a patrimonialidade dos bens em questão. Ao não permitir a reciclagem da dimen-
são estratigráfica do facto histórico – o qual, precisamente, não tem sentido se não de
forma estratificada –, este perde o seu valor e presta-se à banalização, num círculo
vicioso.
Por outro lado, a dissociação espacial dos fatores de encenação, de produção e
transformação multiplica as possibilidades das dinâmicas de patrimonialização aleató-
rias na contemporaneidade.25

25
Um dos exemplos mais evidentes disso é o do relato patrimonial produzido em torno da cidade de Essaouira: todos os produ-
tos que contribuem para a promoção turística da cidade remetem para o seu espaço luso-marroquino, quando ela é de constru-
ção muito mais recente e nada reste da instalação portuguesa, abandonada em 1541. A fundação da atual cidade de Essaouira
data de 1769, após a partida definitiva dos portugueses de Marrocos. A sua estrutura europeia deve-se ao facto de o seu plano
ter sido concebido por um europeu (o francês Theodore Cornut, convertido e, à época, ao serviço do rei de Marrocos) e não, a
qualquer intervenção lusa. Para aumentar a imagem histórica da cidade, foram instalados canhões na Skala – fortificação no lado
marítimo – que evidenciam bem o escudo do rei português.

Castelos a Bombordo - FINALx.indd 102 27-03-2013 16:57:14


MARROCOS A BOMBORDO E A ESTIBORDO • 103

As escolhas de localização das atividades produtivas estão ligadas, quando não


diretamente dirigidas, às dinâmicas comerciais e espaciais do mercado mundial. Con-
tudo, o património edificado, expressão material do “sector” patrimonial, ao mesmo
tempo que se inscreve na potente corrente da mundialização carece de uma das suas
variáveis fundamentais: é que o património construído, não é, por definição, des-
-localizável. Concebido segundo os princípios de uma localização hoje em desuso, ele
entra – ou melhor, não entra – facilmente nas lógicas espaciais do desenvolvimento
global. O património não tem capacidade de influência direta sobre as lógicas espaciais
do sistema económico que o determina: sofre-as sem as poder moldar.
Como todos os processos de patrimonialização, o da herança portuguesa em Mar-
rocos deriva de séries compostas de ações que produzem perceções diferenciadas dos
diversos monumentos históricos, aliás relativamente homogéneos entre si, e do seu
meio envolvente. Essas diferenças de perceção remetem para as estratégias de inter-
venção escolhidas pelos agentes institucionais, e remetem para uma lógica elíptica de
utilização do património edificado para “outros” fins.
Parece-nos, apesar de tudo, possível detetar um princípio de coerência entre as
diferentes estratégias de intervenção patrimonial, uma espécie de supraestrutura que
acaba por organizá-las, ainda que de forma não totalmente consciente. Assim que o
fragmento26 material “objeto português” se transforma em fragmento “património
cultural”, a sua escala de referência e os seus limites são modificados sem que, no
entanto, a sua escala espacial, as suas fronteiras e as suas referências materiais intrín-
secas acompanhem o processo.
A articulação do património português com a capitalização turística não é tão evi-
dente como a que observamos em outras cidades como Fez ou Marraquexe. O processo
de encenação não tem o mesmo aparato nas pequenas cidades ou em zonas geográficas
marginais; no entanto, através dos casos aqui expostos, podemos afirmar que a herança
portuguesa funciona como atração que deve valorizar franjas secundárias do mercado
turístico nacional e internacional.
Em Arzila, optou-se por concorrer aos benefícios de uma patrimonialização global,
dado que os atores dominantes decidiram voluntariamente inscrever-se no processo de
globalização. Os trabalhos ali realizados privilegiaram obras de restauro aparatosas, por
um lado, e a produção de equipamentos turísticos dirigidos à clientela visitante, por
outro. Esse será o percurso empreendido, muito mais tarde, em Mazagão/AlJadida.
O “sintagma temporal” passado – presente – futuro, aplica-se aos casos aqui ana-
lisados. Constatamos que o mesmo é igualmente válido para as fortalezas do Gana, de

26
“A ausência de interpretações teóricas capazes de responder de forma efetiva às interrogações relativas a fragmentação da cida-
de e a concomitante dificuldade em construir um percurso explicativo convincente a partir de uma análise comparada, sublinham
a necessidade de explorar novas formas de colocar a questão” (Balbo e Navez Bouchanine 1993:10).

Castelos a Bombordo - FINALx.indd 103 27-03-2013 16:57:14


104 • CASTELOS A BOMBORDO

Moçambique ou da Índia, em condições que podem sintetizar-se nos seguintes termos:


turismo ou esquecimento. A ideia latente é a de que os responsáveis pelos sítios em
causa tiveram que optar entre um ou outro. O facto de a escolha ser impreterível, no
sentido em que uma opção interdita a outra, colocou-os perante um dilema.
No que concerne o património – construção perecível, e valiosa apenas para aque-
les que a reconhecem como tal – este sintagma não pode partir senão de um presente
social. Contudo, uma vez “construído” e adotado o conceito de património, opera-se
evidentemente uma deslocação ao passado, lá, onde é possível encontrar “objetos”
suscetíveis de serem patrimonializados. Este recuo no tempo é essencial quando nos
estamos a referir a construções e a monumentos, pois estes, dispondo de uma duração
de vida perene e longa, estão especialmente “disponíveis” e abertos às negociações
patrimoniais. Num segundo tempo, regressa-se ao presente. Esta segunda passagem
ao presente diz respeito à aplicação dos conceitos patrimoniais à herança histórica,
aplicação que segue as regras “hoje” em vigor. No momento atual a noção de rendi-
bilidade económica pesa tanto que “comprime” todas as outras variáveis. Porque o
turismo é frequentemente o meio mais simples, se não o único, para converter o valor
patrimonial de um objeto em valor económico, consideramos que o futuro de um bem
patrimonial tem como referência o turismo, sobretudo quando ele é, como nos casos
aqui analisados, marginal em relação àquilo que constituiu as suas referências patri-
moniais originais. O sintagma apresenta-se, então, do seguinte modo: presente – pas-
sado – presente – turismo.
A segunda possibilidade é a de que, partindo-se do presente – no decurso do qual
se constrói a ideia patrimonial – a deslocação para o passado se mantenha mas, desta
vez, para excluir um objeto (mesmo se antigo e herdado) do conjunto patrimonializá-
vel, recusando-se-lhe a atribuição de um valor patrimonial que exceda o do seu valor
material. Nesse caso, não existe razão para um regresso ao presente: o objeto em ques-
tão é abandonado ao esquecimento. Então o sintagma apresenta-se desta forma: pre-
sente – passado – esquecimento – esquecimento (futuro?)

II.

O património é uma construção social que deve a sua existência a fatores culturais.
Mitologias e/ou mitos são, a este nível, referências fundamentais que geram diferenças
de valor entre diferentes edifícios e o passado. É esse diferencial de “valor” que dis-
tingue uma “velha construção” e um edifício patrimonial.
Tivemos a ocasião de realizar um pequeno inquérito junto de alguns estudantes das
cidades de Arzila, Azamor, AlJadida e Safi que, embora sucinto, nos permite, pelo menos,

Castelos a Bombordo - FINALx.indd 104 27-03-2013 16:57:14


MARROCOS A BOMBORDO E A ESTIBORDO • 105

detetar algumas atitudes significativas a este respeito.27 Analisando os resultados, consta-


tamos que as pessoas entrevistadas têm uma representação heterogénea, tanto em termos
de perceção, quanto em termos de descrição dos bairros históricos das cidades. Pensamos
que isso se explica pelos diversos mitos a que cada uma delas recorre para a construção
das suas representações. Poderemos falar de uma patrimonialidade estilhaçada? Não ire-
mos tão longe, porque para isso necessitaríamos de inquéritos mais aprofundados.
Em Safi, onde, em nossa opinião, o património de origem portuguesa é melhor inte-
grado na vida local, a cidade velha é percebida como um bairro “carregado” negativa-
mente; isso não impede, no entanto, que, para a maior parte dos jovens interrogados,
ela participe de maneira evidente na caracterização da cidade enquanto tal. Não é, por-
tanto, lugar de uma “negatividade absoluta”, como foi, durante muito tempo, o caso da
medina de Azamor, onde o sítio do mal era a kasbah, o antigo bairro português.
Nos contextos em que foram empreendidos processos objetivos de produção cultural,
como é o caso de Arzila, a parte histórica dos lugares apresenta vantagens evidentes, como
a calma e a beleza; ao contrário, tanto em Al Jadida como em Safi, ou seja, nas grandes
cidades, os fragmentos históricos apresentam-se como bairros bem distintos e carregados
de valores negativos, não se fazendo apelo ao seu maior ou menor grau de patrimoniali-
dade, mas sim à sua degradação e à imagem negativa que as medinas adquiriram ao longo
dos tempos. É isso que explica, como vimos, em Al Jadida, as variações nas formas de
designar o sítio histórico. Quando se trata das práticas quotidianas dos habitantes utiliza-
-se o termo mellah, que serve também para fazer referência ao seu antigo conteúdo social
e étnico. Mas quando se quer designá-la perante alguém de nível superior de educação,
utiliza-se o termo “Cité Portugaise”, um sentido “UNESCO oriented”, obviamente.
O processo que transforma um património potencial num património real obriga à
compreensão e aquiescência da legitimidade dos dispositivos legislativos e regulamentares.
Só assim a verdadeira patrimonialização não será percebida como constrangimento.

Bibliografia

BALBO, Marcello, e Françoise Navez Bouchanine, 1993, Frammentazione spaziale e frammentazione


sociale: il caso di Rabat-Salé. Veneza, Dip. Analisi Economica e Sociale del Territorio de I.U.A.V.
BERRIANE, Mohammed. S.D.A.U.-S.D.A.L, 1994, Arzila: rapport sectoriel tourisme. Rabat: non publié.
CARABELLI, R. 1999. Evolution des vestiges portugais. Quelle intégration dans le Maroc Contemporain?
Thèse de doctorat de Géographie. Tours Université François Rabelais, policopiado.
CHAHID, Ahmed, 2004, “Interview de Azzeddine Karra, directeur du Centre du Patrimoine Maroco-
-Lusitanien”, Libération, 20 février 2004.

27
O inquérito foi aplicado a cerca de trinta estudantes do último ano do liceu mais próximo dos bairros intramuros, com idade
média de 18 anos.

Castelos a Bombordo - FINALx.indd 105 27-03-2013 16:57:14


106 • CASTELOS A BOMBORDO

CORREIA, Vergílio,1923, Lugares Dalém. Lisboa, Porto Editora.


DENOEUX, Guilain, e Laurent Gateau, 1995, “L’essor des associations au Maroc: à la recherche de la
citoyenneté?”, Maghreb-Machrek, 150: 19-39.
EMBAIXADA DE PORTUGAL, 1985, Relatório. Rabat, Embaixada de Portugal.
FONDATION DU FORUM D’ASSILAH, 2003, Assilah. Ville des Arts. 25éme Moussem Culturel Interna-
tional. Assilah. Sous le Haut Patronage de Sa Majesté le Roi Mohammed VI.
FUNDAÇÃO CALOUSTE GULBENKIAN, 1995, Arzila: Torre de Menagem. Lisboa, Fundação Calouste
Gulbenkian.
GERVAIS-LAMBONY, Philippe, 1994, De Lomé à Harare: le fait citadin. Paris, Karthala; Nairobi, Ifra.
GOULVEN, Joseph, 1917, La place de Mazagan sous la domination portugaise (1502-1769). Paris,
Larose.
GOULVEN, Joseph, 1938, Safi au vieux temps des Portugais. Lisboa, 1.º Congresso da História da Expan-
são Portuguesa no Mundo.
JMAHRI, Mustapha, 1987, “Histoire d’une ville: El Jadida”, Revue Lamatis, 194: 47-50.
MELEHI, Youssef, 1983, La médina d’Arzila: exemple d’une structure urbaine. Paris, Mémoire de troisième
cycle – U.P. d’Architecture n° 7.
MINISTERE DE L’INTERIEUR, 1990, El Jadida: réalisations et perspectives. El Jadida, Municipalité d’El
Jadida.
MINISTERE DE L’INFORMATION, Royaume du Maroc, 1993, Visite officielle de Sa Majesté le Roi Has-
san II au Portugal: 21 – 24 septembre 1993. Rabat, Ministère de l’Information.
MOREIRA, Rafael,1989, Portugal no mundo: história das fortificações portuguesas no mundo. Lisboa,
Publicações Alfa.
PÉRIALE, Maryse, 1935, Maroc Lusitanien. Paris, Editions de la Revue des Indépendants.
RICARD, Robert, 1935, Les inscriptions portugaises de Mazagan. Coimbra, Coimbra Editora.
TURCO, Angelo 1988, Verso una Teoria Geografica della Complessità. Milan, Unicopli.
UNESCO (World Heritage Convention), 2002, Evaluations of Cultural Properties. Document WHC-02/
CONF.201/INF.2 et WHC-02/CONF.202/INF.4.
ZURFLUH, Jean Michel, 1994, “Le centre du patrimoine Maroco-lusitanien à El Jadida: Pour une meilleure
connaissance dês liens historiques entre le Maroc et le Portugal”. Le Matin Magazin, 7-14 Agosto 1994,
pp.12-13.

Castelos a Bombordo - FINALx.indd 106 27-03-2013 16:57:15


O CASTELO ABANDONADO
Percepções do passado português no discurso
patrimonial dos judeus de Marrocos (século XX)1

JOSÉ ALBERTO RODRIGUES DA SILVA TAVIM

Zakhor

Zakhor (“Lembra-te”) é o título do conjunto de conferências proferidas por Yosef


Hayim Yerushalmi, reunidas no pequeno livro sub-titulado Jewish History and Jewish
Memory. As duas categorias estão intrinsecamente associadas, e como demonstra
Yerushalmi, a segunda projecta para o presente a primeira, vivificando-a e perpetuando-a,
como se estivesse sempre presente, de forma condensada. A História fundamental para
os judeus – História primeva e primordial, comum a todos eles e factor indissociável
da sua identidade – é a do passado bíblico, que eles recordam e transportam para o
presente, no rigoroso e rico ciclo religioso anual (Yerushalmi 1991).
Com a dispersão e as consequentes diásporas, cada comunidade judaica criou igual-
mente mecanismos de perpetuação da sua especificidade, relacionada com a sua inclu-
são em agrupamentos sociais diferenciados. Um desses mecanismos de perpetuação é
a festa evocativa que, como bem acentua Yerushalmi, retoma o padrão de base bíblico.
Em muitas destas comunidades, ao longo dos séculos, foram criadas festas evocativas
da libertação face a um perigo ou a uma perseguição, sempre designadas “Purim”,
remetendo para a comemoração primordial que recorda a anulação do extermínio dos
judeus, ordenado pelo rei Xerxes I da Pérsia, graças à intervenção da rainha judia Ester.
Assim, “Purim” passa a ser sinónimo de festa de júbilo pela perpetuação de uma comu-
nidade, a que se acrescenta outro nome que lhe empresta significado especial e distin-
tivo. Em Marrocos, a comunidade de Tânger comemora um “Purim” especial, designado
“Purim Bombas” ou “de las Bombas”, que celebra a inexistência de vítimas judaicas
aquando do bombardeamento da cidade pela frota do príncipe de Joinville, em 6 de
Agosto de 1844. Outro, extensivo à comunidade próxima de Tetuão, é designado “Purim
Sebastiano” ou “Purim de los Cristianos”, e recordado em rolo ou “megillah”, invoca

1
Este estudo foi previamente publicado na revista Ellipsis. Journal of the American Portuguese Studies Association, vol. 3, 2005:
39-62, sendo autorizada a sua reedição. Optámos por introduzir aqui pequenas alterações lexicais e alguma actualização, que
pouco alteram o conteúdo. A bibliografia remete para um estado de conhecimento em 2005. Sirva também este artigo como
homenagem a Simon Lévy, secretário-geral da Fondation du Patrimoine Judéo-marocain, director do Musée du Judaisme Maro-
cain, de Casablanca, e professor do Departamento de Espanhol da Faculté de Lettres de Rabat, entretanto falecido.

Castelos a Bombordo - FINALx.indd 107 27-03-2013 16:57:15


108 • CASTELOS A BOMBORDO

a sua salvação aquando da derrota do rei português D. Sebastião, na batalha de Alcácer-


-Quibir, em 1578 (Laredo 1948: 193-203; Valensi 1992: 107, 117).
Momentos fundamentais do ciclo existencial estão também impregnados pela invo-
cação de um passado glorioso. Por exemplo, entre os judeus de Cochim, na costa do
Malabar (sul da Índia), o extenso evento matrimonial remete para os tempos de uma
realeza longínqua e mitificada, de que cada noivo e noiva eram considerados, no colec-
tivo, dignos descendentes (Katz e Goldberg 1993: cap. 11; Tavim 2003: 385-387). Em
Marrocos, a “Hiloula” ou festa dos homens santos – objectos de veneração devido ao
seu poder milagroso – com as suas peregrinações e ofícios específicos, é a grande invo-
cação de teor religioso e místico de personagens hebraicas consideradas especiais no
património das comunidades judaicas marroquinas. Muitas delas são rabis que viveram
em tempos próximos (Ben-Ami 1990), mas os Oulad Zmirru, de Safim, reputados como
curadores da epilepsia, da loucura e dos enfeitiçados, são personagens históricas que
viviam na cidade sob domínio português, no século XVI: rabi Abraão e seus irmãos,
“metamorfoseados” em sete filhos na memória mitificadora (Tavim 1993).
A par da evocação festiva, em cada comunidade, eruditos locais, rabis ou simples
construtores da Memória, lembram as vicissitudes das comunidades e a saga da sua
sobrevivência e sucesso. Em Marrocos foram produzidos textos que invocam o pas-
sado de várias comunidades, sempre numa perspectiva teleológica, ou seja, em que os
eventos são seleccionados e colocados num “lugar” benéfico ou maléfico, em função
dos objectivos éticos e messiânicos dos autores. Em 1951, Georges Vajda publicou uma
recolha desses textos, produzidos por membros das famílias Ibn Danan e Mansano,
entre 1572 e 1879, na sua obra Un Recueil de Textes Judéo-Marocains (Vajda 1951).
Em 1934, já Y.D. Sémach tinha publicado extractos do “Yahas Fès”, de Ribbi Abner
Hassarfaty, também redigido no século XIX, no artigo “Une chronique juive de Fès: le
Yahas Fès de Ribbi Abner Hassarfaty” (Sémach 1934). E em 1931, Louis Brunot e Elie
Malka haviam publicado textos impressos no século XIX, numa colectânea intitulada
Textes Judéo-Arabes de Fès (Brunot e Malka 1931). Foi um género que se perpetuou
em versões cada vez mais próximas dos parâmetros requeridos para a produção his-
tórica, na sua vertente científica. Essas versões abrangem a história de outras comuni-
dades. É o caso do livro de Joseph Tolédano sobre a comunidade de Meknès, de 1982,
intitulado Le Temps du Mellah. Une Histoire des Juifs au Maroc racontée à travers les
annales de la communauté de Meknès. Ou ainda da obra fundamental de Sarah Lei-
bovici, de 1984, sobre a sua comunidade durante a segunda metade do século XIX,
onde não deixa de se remeter ao antigo paradigma quando a intitula Chronique des
Juifs de Tétouan (1860-1896).
Em tempos recentes foram produzidas sínteses sobre as comunidades judaicas de
Marrocos, no contexto de uma História global da presença dos judeus no Norte de

Castelos a Bombordo - FINALx.indd 108 27-03-2013 16:57:15


MARROCOS A BOMBORDO E A ESTIBORDO • 109

África. É o caso da erudita obra de Haim Zeev Hirschberg, A History of the Jews of
North Africa, de 1974, e do volume informativo de André Chouraqui, Histoire des
Juifs en Afrique du Nord, de 1985. Se bem que o aparelho crítico do livro de Choura-
qui seja menos imponente, sem dúvida que em ambas as obras se denota o objectivo
escrupuloso de elucidar o público sobre a evolução histórica das comunidades judaicas
da região, tendo como base uma pesquisa aturada em fontes ou obras de probidade
científica. Outros autores são reputados especialistas da História das comunidades
judaicas de Marrocos, per se. Por exemplo, ninguém pode realizar trabalho científico
sobre essas comunidades sem folhear as bem informadas obras de Haim Zafrani, como
Les Juifs du Maroc – Vie sociale, économique et religieuse. Études de Taqqanot et Res-
ponsa, ou Deux mille ans de vie juif au Maroc. Histoire et culture, religion et magie
(Zafrani 1983), entre outras.
Nestes e em outros trabalhos eruditos, o passado português é devidamente men-
cionado, quer no que respeita à contextualização da presença judaica em solo penin-
sular, e na explicação do fenómeno de expulsão e de diáspora para o Norte de África,
quer nas alusões à presença portuguesa nesta região, mormente em termos de posse
de cidades e fortalezas, e sua relação com os judeus. As próprias fontes portuguesas
(publicadas) são utilizadas para elucidar acerca do passado judaico em Marrocos. Mas
é verdade que, a outros níveis, se Portugal não é um “ilustre desconhecido”, é pelo
menos um “ilustre pouco conhecido”. Ali estão os castelos e as cidades da costa aban-
donados, que todos os marroquinos associam de imediato aos “antigos” portugueses,
expulsos pela força do Islão e dos poderes santificados de Marrocos. Mas para além
do restrito plano erudito e do reconhecimento de um património arquitectónico, que
imagens ficaram dos senhores dos castelos e das suas atitudes face aos judeus? E que
percepções restam do meio cultural português entre os judeus que, saindo de Portugal,
acabaram por se estabelecer em Marrocos?
No contexto peninsular, entre esses judeus, o peso da cultura espanhola, ao nível
da língua (o Judeoespañol), dos valores, de elementos fulcrais da cultura como os roman-
ces entoados – para além do interesse pelo que se passava em Espanha – é por de mais
reconhecido, quer pelos eruditos, quer ao nível do “senso comum” dos judeus marro-
quinos (Séphiha 1986; Díaz-Mas 1993, 1994; Dobrinsky 1986; Leibovici 1982).
E no caso de Portugal: qual a importância da língua, da cultura, do interesse pelo
passado português, no contexto da construção de uma identidade judaica marroquina?
Em comunicação intitulada “Quatre siècles plus tard, quelles traces portugaises?”,
Simon Lévy chama a atenção para o facto de a “historiografia popular”, francesa e
colonial, atribuir aos portugueses tudo o que é anterior ao Protectorado (francês e
espanhol), salvo evidentemente as mesquitas. No universo dos judeus marroquinos,
no domínio da linguística – disciplina em que o autor era especialista – os elementos

Castelos a Bombordo - FINALx.indd 109 27-03-2013 16:57:15


110 • CASTELOS A BOMBORDO

portugueses, “seguros”, são pouco numerosos, até pelo facto de muitos termos exis-
tirem, em simultâneo, nas línguas portuguesa e castelhana, e da sua paternidade só
poder ser atestada no caso se existirem apenas naquela língua. É o caso da palavra
alfinete (ela própria de origem árabe), que teria originado o “fnita” e suas variantes,
nos meios judaicos marroquinos, no século XVII. E ainda do pão lêvedo, que se trans-
formaria no bolo utilizado nas cerimónias judaicas em Marrocos – pallebe –, e do garfo
(Lévy 2004: 233-238). Tudo o resto foi coberto pela espessura das relações com o
passado e com o presente espanhol (Lévy 2001).
Também em comunicação intitulada “Temas comunes en el romance Portugués y
Sefardí”, Paloma Díaz-Mas não deixa de apresentar um significativo mea culpa colec-
tivo, quando alerta que os estudiosos do romanceiro hispânico tendem a considerar o
romanceiro judaico sefardita (dos judeus oriundos da Península Ibérica) como uma
variedade arcaizante do romanceiro castelhano, preterindo involuntariamente as rela-
ções com os outros romances hispânicos, como o catalão, o galego e o português. Par-
tindo destas premissas, neste estudo verdadeiramente pioneiro, Paloma Díaz-Mas
evidencia que, de facto, existem romances entoados simultaneamente nos meios por-
tugueses e sefarditas, mas ausentes da tradição castelhana, e que alguns romances
sefarditas desenvolvem temas da História de Portugal. Curiosamente, estes últimos
estão conotados com eventos negativos (ou que podiam ser negativos) para os judeus:
“La pérdida del rey don Sebastián”, entoado entre os judeus de Tetuão, e “La expul-
sión de los judíos de Portugal”, com versões diferentes entre os judeus daquela cidade,
de Tânger e de Alcácer-Quibir. Em todos os casos, a língua em que os romances são
evocados, em Marrocos, não é o Português (Díaz-Mas 2004: 239-260).
Outros elementos relacionados com as presenças judaica e portuguesa tendem tam-
bém a “esfriar” um passado português que a documentação revela multifacetado. No
“Rollo para el segundo dia de lunes (1.º del mês de Elul), de 5338 (1578)”, ainda hoje
lido nas sinagogas de Tânger, é recordado que D. Sebastião fez voto que se conquistasse
Marrocos baptizaria os judeus à força, e aqueles que se recusassem seriam passados a
fio de espada. Também segundo esta fonte, foram conversos, ou seja, judeus converti-
dos à fé cristã, vindos nos exércitos do rei português, que disseram aos judeus de Tân-
ger: “Rogad a Dios para que se apiade de vosotros y suplicad por nosotros al Santo,
bendito sea” (Cantera 1945: 222-225). Assim, quando comemoram este Purim, os
judeus de Tânger lembram simultaneamente dois fenómenos tenebrosos relacionados
com Portugal: a decisão do rei e a longa persistência das autoridades portuguesas para
acabar com a sua identidade social e religiosa, mormente através do “extenso braço”
da Inquisição.
Notório é também o caso dos Oulad Zmirru (Ben Zamirro ou Ben Zmiro, para os
judeus), alvo de uma hiloula, como já foi referido, na cidade de Safim. Simon Lévy

Castelos a Bombordo - FINALx.indd 110 27-03-2013 16:57:15


MARROCOS A BOMBORDO E A ESTIBORDO • 111

observa que, cinco séculos após a sua existência, os judeus ignoram tudo sobre eles, “car
du Saffim des Portugais seules restent parlantes les magnifiques fortifications” (Lévy
2004: 238). Na verdade, os peregrinos e convivas que hoje encerram o local como espe-
cífico para comemorações e festividades judaicas, estão longe de saber que os Benzamerro
foram homens cuja existência pode ser traçada na documentação portuguesa – uma
família que liderou a comunidade judaica permitida naquela cidade portuguesa, e cujos
membros vieram várias vezes a Portugal, no contextos de interesses económicos e de
missões diplomáticas. Abraão Benzamerro, que foi rabi de Safim entre 1537 até à sua
morte em 1540, possuía mesmo feitores judeus em outras praças portuguesas da costa
marroquina, e frequentava os círculos de poder em Marrocos e em Portugal (Tavim
1993; idem 1997:195-213, 429-434). Aliás, o seu nome surge no anónimo anedotário
quinhentista português Ditos Portugueses Dignos de Memória, que revela o poder da
personagem:“Andando neste reino um judeu rico chamado Abraão Benzamerro, trazia
em sua casa e serviço muitos mouros e judeus...” (Saraiva s.d.:157).
Em Janeiro de 2000, na entrada do “santuário Ben Zmiro”, os irmãos Ohana, de
Safim, acompanhantes de Ralph Toledano, parece que nada sabem sobre a historici-
dade dos irmãos Benzamerro (Toledano, 2004: 120).
Como bem considerou Jocelyne Dakhlia, o esquecimento não é, frequentemente,
um simples desaparecimento, mas sim algo “produzido” – um esquecimento agido,
activo (Dakhlia 1990: 5). Julgo que algo nesta dimensão aconteceu relativamente ao
caso dos Oulad Ben Zmerro. O seu lugar no tempo real sofreu uma metamorfose: foi
integrado e transformado em função do desinteresse, desconhecimento ou pouco
conhecimento das suas actividades materiais, perdidas no passado; e determinado pelo
processo de integração em que os judeus de Marrocos o incluíram, no contexto da
produção da sua história passada nesta região. Face a esse distanciamento cronológico,
e perante a especificidade dos ritos religiosos dos judeus de Marrocos, o véu do mara-
vilhoso era a mais “apropriada” forma de dignificação da sua memória, como homens
“extraordinários”. Resta questionar se em algum momento deste processo não estará
subjacente o acto colectivo de empurrar para as trevas de um tempo menor, melhor,
despojado de significado, aquele em que os Benzamerro serviram a “potência colonial”
e intransigente religiosamente (Toledano 2004:119). Se como bem salienta Lucette
Valensi, o Marrocos independente é um lugar onde – como em muitos outros – se
“manufacturaram” e negociaram os símbolos da consciência histórica (Valensi 1990:
280), os judeus marroquinos não estiveram, em interesse próprio e no contexto do
seu universo sócio-religioso, alheios desse processo.
Na sequência do que foi referido, penso que só podemos interpretar com ironia o
parágrafo final de Simon Lévy no seu artigo sobre os possíveis traços portugueses na
memória dos judeus de Marrocos, quando afirma:

Castelos a Bombordo - FINALx.indd 111 27-03-2013 16:57:15


112 • CASTELOS A BOMBORDO

Et au fond, de ces quatre siècles de pérégrinations hispano-luso-marocaines, et par delà


expulsions, guerres et occupations militaires, ce que la mémoire populaire a conservé c’est
finalement le bon (pallebe), l`utile (garfo) et le merveilleux (Ulad Ben Zmerro). C’est ras-
surant (Lévy 2004: 238).

Penso que mesmo assim existem aqui dois equívocos: a inclusão da palavra “his-
pano”, que remete para outros círculos culturais mais amplos e incisivos no patrimó-
nio dos judeus marroquinos; e a referência que o “fenómeno maravilhoso” dos Oulad
Zmirru é um dos raros elementos que restam na memória desses judeus, das “peregri-
nações hispano-luso-marroquinas” – a partir do momento em que essa memória os
integrou “maravilhosamente” no seio do seu espectro cultural e religioso sem o refe-
rencial português, os “Oulad Zmirru” passaram a ser um elemento “exclusivo” da
“memória interna” dos judeus de Marrocos, sem ligação fundamental a Portugal.
Por antítese, os exemplos afloram. Entre os rabis famosos de Fez, alguns vieram
de Portugal aquando da Expulsão, como Moisés ibn Danon, nascido em Coimbra
(Tavim 1997: 84). Alguém se recorda da especificidade do facto, além dos eruditos?
Por exemplo, na placa exterior do “Premier Musée Juif du Maroc” (da “Fondation
Em-Habbanim”), erguido no interior do cemitério judaico de Fez, lê-se que este encerra
os mausoléus de grandes rabis do século XVII aos dias de hoje, tais como Vidal Has-
serfaty, Jacob Abensur e Raphael Hasserfaty, entre os descendentes dos “Mégouréchés
Casilla”, ou seja, os “Megorashim” ou “Expulsos” de “Castela”.

CD -ROM

As comunidades judaicas, dispersas por Israel e pelo Mundo, abriram-se à Média


e utilizaram os seus canais como forma de preservação, divulgação e reconhecimento
da especificidade dos seus patrimónios. A edição de obras de formatos e textos atrac-
tivos – sintetizando de forma chamativa os dados obtidos pelos eruditos, publicando
entrevistas, cronologias e listas de personagens ilustres, ornamentadas com imagens
de excelente qualidade – passou a ser um dos propósitos primordiais das organizações
judaicas em países em que a sua existência é reconhecida.
Em 1992, o “Conseil des Communautés Israélites du Maroc et de Identité et Dia-
logue” apoiou a publicação da obra colectiva, dirigida por André Goldenberg, intitulada
Les Juifs du Maroc. Images et Textes. Esse apoio explícito é logo enunciado nas páginas
iniciais, a cargo de Serge Berdugo, “Sécrétaire Général du Conseil des Communautés
Israélites du Maroc”, e de André Azulay, “Président Fondateur d`Identité et Dialogue”.
Serge Berdugo não deixa de acentuar que o génio de uma sociedade é apreciado pela

Castelos a Bombordo - FINALx.indd 112 27-03-2013 16:57:15


MARROCOS A BOMBORDO E A ESTIBORDO • 113

grandeza do seu passado, e que no caso da comunidade judaica marroquina, tem raízes
nos princípios fundamentais do Judaísmo, e suas virtudes capitais: a procura da paz, a
busca da justiça e a prática do diálogo. Inventa depois uma palavra, ao referir que aquele
repousa na sua marocanité, fruto da sua longa coexistência com uma população reco-
nhecida pelas suas tradições de generosidade e hospitalidade (Berdugo 1992: 1). O
Avant Propos de André Azulay reenvia o leitor mais para as questões da preservação
patrimonial. Chama a atenção que a comunidade marroquina foi durante muito tempo
marginalizada, mesmo ocultada, na memória ou no pensamento judaico, na Diáspora
e em Israel, mas que se esforça desde alguns anos por recuperar uma palavra e uma
identidade há muitos anos instalados no olhar e na escrita dos outros. Elogia depois a
energia dos judeus da diáspora de Marrocos, que conservam fielmente os seus valores
culturais específicos nos países em que se instalaram. E, finalmente, acentua que o livro,
além do testemunho histórico e iconográfico, reflecte a vitalidade do Judaísmo marro-
quino, sendo por isso mesmo uma homenagem a todos os judeus e muçulmanos que,
protegendo o seu património comum, dão aos árabes e judeus uma outra leitura da sua
história, e uma outra visão do seu futuro (Azulay 1992: 5).
À obra colectiva ficam então (teoricamente) subjacentes alguns pressupostos fun-
damentais em termos de estratégia de preservação identitária. Nas considerações de
Serge Berdugo, o que interessa, na verdade, são os “traços” do passado em que se veri-
ficaram as três virtudes capitais acima referidas, ou seja, a trama dos acontecimentos
fica subordinada a considerações próprias da Ética Judaica. A marocanité inventada
por Serge Berdugo invoca uma coexistência específica e acentua um dos trunfos pre-
tendidos no discurso patrimonial: que a comunidade judaica marroquina é um exem-
plo excepcional – e excepcionalmente positivo – da convivência com a população
árabe, quando este fenómeno social é uma fonte de problemas, mesmo para o Estado
de Israel. Esta arquitectura ideológica passa por uma hiper-valorização das capacidades
de acolhimento da população muçulmana, factor decisivo no discurso de André Azu-
lay, para explicar a virtuosidade do Judaísmo marroquino. É por isso também que
André Azulay considera que Les Juifs du Maroc é um dos exemplos da “palavra” da
comunidade judaica a que pertence, ou seja, aquela que mais direito e objectividade
apresenta para contar a sua própria história.
Resta questionar sobre o “lugar” dos outros que ficaram longe do “quadro positivo”
desta história arquitectada a nível interno, ou seja, aqueles elementos do processo histó-
rico que não se ajustam ao valor essencial, invocado por Serge Berdugo, da tolerância.
A prosa mais erudita dos autores da obra Les Juifs du Maroc matiza um pouco as
palavras dos políticos. O antropólogo André Goldenberg, coordenador do volume, e
que assina o texto “Des Saadiens aux premiers Alouites (XVe-XVIIIe siècles)”, lembra
que os judeus vindos de Portugal – e não somente de Espanha – foram designados

Castelos a Bombordo - FINALx.indd 113 27-03-2013 16:57:15


114 • CASTELOS A BOMBORDO

megorashim (expulsos), e que estes tornaram-se influentes intermediários e negocia-


dores nas relações entre os muçulmanos e os portugueses de Agadir e de Safim. Recorda
igualmente que a primeira imprensa hebraica em Marrocos foi aberta em Fez, em 1517,
com elementos oriundos de Lisboa. Não esquece também o papel de Jacob Rosales e
de Jacob Rute no auxílio à fuga de marranos de Espanha e de Portugal para a libertá-
ria terra marroquina, na primeira metade do século XVI. Contudo, erra quando espe-
cifica que se conhece em particular o papel dos Benzamerro em Azamor (Goldenberg
1992c 72-75), pois estes dominaram os negócios e as relações políticas não naquela
praça mas em Safim (Tavim 1993: 115-141; idem 1997: 195-218, 429-434). Não é
um erro propositado mas também não é fortuito, pois como veremos pela análise de
outro veículo de divulgação patrimonial – um CD -ROM – revela um maior desinte-
resse informativo pelas “questões” portuguesas. No seu texto, Goldenberg invoca
também o episódio de Alcácer-Quibir (1578), lembrando que os judeus de Tânger,
Mequinez e Fez celebram o acontecimento com o “Purim de los Cristianos”, e que o
resgate dos cativos cristãos, empreendido pelos judeus, foi interpretado pelos mego-
rashim como uma resposta divina que lhes permitiria retirar aos cristãos as suas rique-
zas abandonadas em Espanha e em Portugal, aquando da Expulsão.
Alfred Goldenberg não se esquece de elucidar, no seu texto sobre “La hiloula” que,
segundo a “lenda” dos Oulad Zmirru, o rabi Abraham Zmirru foi o fundador da comu-
nidade de Safim, onde vivia com os sete filhos. E que temendo a perseguição dos portu-
gueses, se encerrou na gruta que é hoje alvo de peregrinações (Goldenberg 1992: 126).
Sarah Leibovici assina também dois textos significativos em termos de peso da
cultura castelhana. É a autora da “janela” intitulada “1492. L’arrivée des Megorashim
exilés de Castille” (Leibovici 1992a: 70), em que lembra as exigências do conde de
Borba, governador português de Arzila, sobre os judeus saídos da Península, para
abandonarem a praça ou se converterem à força (Tavim 1987: 187-194). Contudo,
falta outra “janela” sobre a chegada dos megorashim exilados de Portugal, em 1496...
Sarah Leibovici é também autora, nesta obra, de um texto sobre Tetuão, Tânger e
outras cidades do norte de Marrocos. No caso da “branca e fiel” Tetuão, lembra o
cemitério judaico designado “cimitière de Castille”, o traje de “berberisca” das noivas
judias da cidade – designação “judeoespañola” – e a importância da língua espanhola
nos meios judaicos locais. De Tânger, “a bela”, de longa ocupação portuguesa, recorda
sobretudo a comemoração do “Pourim de Sebastien” ou “Pourim de los Christianos”
pela comunidade local, que assim recorda como escapou à conversão e à morte que
lhe estavam prometidas. Más lembranças de Portugal! Será então lógico que, face à
importância da recordação dos tempos dourados em Espanha, e da influência da cul-
tura espanhola, a autora designe o seu texto de “Tétouan, Tanger... cités judéo-
-espagnoles” (Leibovici 1992b: 145-155).

Castelos a Bombordo - FINALx.indd 114 27-03-2013 16:57:16


MARROCOS A BOMBORDO E A ESTIBORDO • 115

Fez, por exemplo, em que a existência de importantes núcleos de judeus e conversos,


oriundos de Portugal, está documentada (Tavim 1997: 99-130) é designada sintoma-
ticamente por Abraham Bouhsira como “Fès, l’andalouse” (Bouhsira 1992: 156-165)
– o que remete, de novo, para o passado “maravilhoso” de convivência entre as três
religiões, na Espanha medieval.
Portanto, nesta obra que revela a riqueza do passado e do presente das comunida-
des judaicas de Marrocos, Portugal, e as relações dos judeus com Portugal, ficam obs-
curecidos pelas trevas do desinteresse motivado por vários factores, como por exemplo
a sua menor importância geoestratégica face a países como a vizinha Espanha, que
acabou por ocupar o norte de Marrocos entre 1912 e 1956. Mas será que a recorda-
ção da política negativa das autoridades portuguesas faces aos judeus, em Portugal e,
depois, no Norte de África – tão viva na comemoração do Purim de D. Sebastião – não
se repercutiu também na “produção” de um esquecimento da influência cultural por-
tuguesa (na língua, na cultura erudita e popular)?
Parece que o desinteresse face ao Portugal real, em séculos subsequentes, continua
patente nestes “monumentos patrimoniais” que devem fazer parte do lar de cada judeu
marroquino – como o livro Les Juifs du Maroc – em Marrocos, em Israel, nos Estados
Unidos da América do Norte, ou em qualquer país desta nova diáspora. Embora a
comunidade judaica de origem marroquina sempre fosse diminuta em Portugal, se
comparada com os quantitativos de outros países, é reconhecido o seu peso determi-
nante na formação da moderna comunidade judaica portuguesa, e até mesmo na vida
económica e cultural do país, nos séculos XIX e XX (Mucznik 1996: 225-228; Pigna-
telli 2000: 72-80; Dias 1996). Contudo, não existe na obra qualquer referência ao
assunto. Pelo contrário, para apenas falarmos de países “mais próximos”, observa-se
a constituição de entradas dedicadas especificamente à integração em Espanha, na
Época Contemporânea (Tolédano 1992: 34-38) e à emigração para o Brasil, também
nos séculos XIX e XX (Goldenberg 1992b: 42-45).
Conduzidas pelas potencialidades da globalização, as comunidades judaicas estão
também abrindo as suas portas aos meios audiovisuais e à Multimédia. A antropóloga
Barbara C. Johnson revelou, já em 1995, o papel fundamental do registo por vídeo
de festividades, na pretensão de preservação de uma identidade entre os judeus cochi-
nitas dispersos por regiões tão longínquas como a sua Cochim de origem (a minoria)
e as terras de Israel (a maioria). Embalando e enviando os vídeos, por correio, a partir
de Israel, para os remanescentes de Cochim (um punhado de pessoas), os judeus cochi-
nitas, além de tentarem manter unido o grupo, homenageiam os resistentes (Johnson
1985: 53-82).
As comunidades organizadas utilizam cada vez mais as possibilidades da Multimé-
dia, não só com os objectivos acima referidos, mas também para mostrarem aos outros

Castelos a Bombordo - FINALx.indd 115 27-03-2013 16:57:16


116 • CASTELOS A BOMBORDO

judeus e a outros povos as riquezas do património social e cultural que construíram.


A conjugação do texto, das imagens e, por vezes, do som, permite que esse património
surja “com vida própria”, tal como as personagens de um filme, que desta vez se pre-
tende real e tão apelativo como um bom romance.
A formulação e a grandeza do suporte multimédia dependem de vários factores,
entre os quais a dimensão da comunidade e as pretensões dos seus dirigentes. Por
exemplo, no Brasil apostou-se na produção de um DVD dirigido por Serge Oskman,
designado Irmãos de Navio. Histórias da Imigração Judaica no Brasil. Como assinala
o pequeno excerto da capa, Irmãos de Navio é um documentário que narra diferentes
trajectórias da imigração judaica: “seus personagens têm em comum a escolha do Bra-
sil como destino e o sonho de conquistar liberdade e trabalho na nova terra”. Ou seja,
trata-se de uma produção multimédia apropriada à grandeza e múltipla origem da
comunidade judaica brasileira, e àquilo que pretende ser uma justificação para a sua
“existência” como brasileiros: imigrantes (como outros) que legitimaram a sua iden-
tidade nacional pela pretensão expressa de escolherem o Brasil como país de destino.
Mas num outro contexto social e dimensional, a comunidade judaica de Budapeste
preferiu produzir um pequeno “Educational CD -ROM” apenas sobre o seu ex-libris
– The Dohány Synagogue – contendo um retrato da sua história, origens, músicas ali
cantadas, e um filme. Ao contrário do DVD brasileiro, o CD-ROM da sinagoga Dohány
apresenta a opção das línguas húngara e inglesa, não só devido aos objectivos turísti-
cos e de divulgação patrimonial, mas também tendo em atenção que muitos judeus
húngaros emigraram, e seus descendentes já não conseguem decifrar facilmente o
magiar.
O CD -ROM “oficial” da comunidade judaica marroquina encontra-se entre os
dois extremos. A língua utilizada é o francês – língua não só internacional mas veículo
de comunicação entre os judeus das diversas proveniências de Marrocos, e dos imi-
grantes. Toma o título de Les Juifs du Maroc à travers les âges. Traditions et modernité
e trata-se de uma produção do Conseil des Communautés Israélites du Maroc, estando
a co-produção a cargo de Yolande Cohen e de Serge Berdugo, ou seja, o secretário-
-geral da referida instituição produtora. O texto de capa é aliciante, pois diz que pela
primeira vez um CD -ROM é dedicado aos 2.000 anos de história dos judeus em terras
islâmicas e de encontro civilizacional. Não deixa também de apresentar o fundamento
da concepção: que a especificidade cultural do Judaísmo marroquino consiste essen-
cialmente no facto de estar ancorada nas tradições locais, mas que os judeus se encon-
tram abertos à modernidade. Quase como se fossem eles os veículos de adaptação do
país ao mundo moderno, sem esquecerem as tradições que tanto prezam. O CD -ROM
tem a concepção científica da historiadora Yolande Cohen e do antropólogo Yosef
Yossi Lévi, e conta entre os seus colaboradores personagens de vulto como Haim

Castelos a Bombordo - FINALx.indd 116 27-03-2013 16:57:16


MARROCOS A BOMBORDO E A ESTIBORDO • 117

Zafrani, que assina alguns itens do Pórtico número 1 – “Vie Religieuse”. Além deste,
do CD -ROM constam mais cinco pórticos, dedicados às artes e tradições populares,
às figuras ilustres, à criação artística e literária, à vida comunitária e social, e à sua his-
tória e seu contexto. Comporta ainda uma bibliografia onde não consta qualquer livro
sobre a presença dos judeus em Portugal e, nomeadamente, sobre os judeus portugue-
ses em terras marroquinas.
As mesmas ausências em relação a Portugal estão patentes ao longo deste CD-ROM,
embora um pouco mais matizadas. Por exemplo, Haim Zafrani, no pórtico “Vie Reli-
gieuse”, escreve sempre sobre Espanha, acerca da elite intelectual de origem castelhana,
de vultos da mesma origem na Literatura Cabalística e Vida Mística dos judeus de Mar-
rocos, e que a produção homiléctica deve muito aos antepassados espanhóis. Ou seja,
o passado em Castela torna-se presente em Marrocos, e o passado em Portugal não tem
qualquer repercussão na vida cultural e religiosa dos judeus marroquinos. E se tal asser-
ção passou do domínio da Memória para o dos estudos eruditos, a verdade é que o peso
da cultura judaico-castelhana é uma realidade. Mas tal não se passa apenas ao nível da
“vida espiritual”. Nas artes e tradições populares, a influência espanhola também é
marcante: os colares de esmalte revelam uma técnica oriunda de Espanha, assim como
o fabrico de pérolas de ouro e da passamanaria se devem aos judeus expulsos daquele
país. A língua, veículo fundamental da comunicação e do pensamento, possui compo-
nentes hebraicos, espanhóis, árabes, berberes, franceses (Zafrani CD -ROM) – e tão
raros os portugueses que nem se pensa neles como de origem lusa. Oro Anahory Libro-
wicz, estudiosa do cancioneiro sefardita, e autora da obra Florilegio de romances sefar-
díes de la Diáspora (una colección malagueña) (Librowicz 1980) também salienta apenas
o cadinho espanhol anterior à Expulsão e a influência de canções espanholas dos sécu-
los XVI e XVII (Librowicz CD-ROM) – o que vai de encontro ao mea culpa colectivo de
Paloma Díaz-Mas. Contudo, este não teria sido arrastado pelo minorar da presença
portuguesa, nas várias vertentes de construção identitária dos judeus marroquinos? O
Português não se fala, o Português não se escreve: nos tempos modernos, os jornais
judaicos de Marrocos estão escritos em judéo-árabe, em francês e em espanhol (Berdugo
e Cohen CD -ROM: “Institutions Communautaires”).
Os portugueses surgem logicamente no pórtico História e seu contexto, carre-
gados com as tintas da percepção judaica sobre os mesmos: exerceram nos seus
domínios costeiros um proselitismo reforçado pelo seu sucesso comercial, e eram
intransigentes na metrópole. Pelo contrário, o papel dos Benzamerro como interme-
diários dos portugueses em Safim é mencionado de forma ligeira, assim como o
auxílio financeiro dos judeus de Azamor ao famoso David Reubeni, o qual perma-
necia em Portugal no ano de 1525. Este judeu, que se dizia de linhagem régia e
oriundo de “estranhas terras”, é apontado de forma errada como de origem portu-

Castelos a Bombordo - FINALx.indd 117 27-03-2013 16:57:16


118 • CASTELOS A BOMBORDO

guesa (Tavim 2004). Mais uma vez, um erro que deriva do pouco interesse pelo
assunto “Portugal”. Pelo contrário, é bom recordar a acção da Inquisição nas cidades
marroquinas sob controlo português, assim como a batalha de Alcácer-Quibir e o
Purim que lhe é dedicado. Ao nível da história das comunidades, faz-se algumas alu-
sões aos judeus que habitaram nas praças portuguesas, e a comunidade de Agadir é
mesmo mencionada como “lusitano-sepharade”. Mas a acção da Inquisição e a per-
seguição aos judeus são as lembranças maiores das atitudes dos portugueses como
ocupantes de Tânger.
A referência a um pequeno número de figuras ilustres entre os judeus marroquinos
conotados com Portugal tem um fundo realista, que procede das parcas relações entre
este país e Marrocos, após o século XVI. De entre as 51 figuras apontadas entre os
séculos IX a XVI, só 7 estão relacionadas com Portugal. E nenhuma é mencionada como
referência deste país, para as secções seguintes, até aos séculos XIX-XX. Nesta última
secção são esmiuçados de facto os nomes dos judeus marroquinos ilustres estabeleci-
dos em Portugal: 11 num total de 80 pessoas, o que mesmo assim é relevante, pois o
quadro abrange os judeus marroquinos vivendo fora do país – como se fosse uma cha-
mada de atenção que a modernidade portuguesa em todos os sectores deve muito a
estes judeus instalados em Portugal. Mas, não obstante a salvaguarda dos nomes dos
judeus portugueses de origem marroquina, Portugal não surge igualmente nas entradas
específicas para os judeus marroquinos no Mundo, que abrangem a Inglaterra, a Argen-
tina, o Brasil, o Canadá, os Estados Unidos, a França, Israel, Venezuela, e mesmo a
Espanha. A Espanha “dourada”, que também os expulsara e perseguira, ficou isenta
ao nível cultural, sendo recordada como o reino do diálogo entre as Três Civilizações
no Medievo, e protectora das comunidades judaicas aquando da ocupação do norte
de Marrocos (com algumas excepções). Não será por acaso que é mencionado com
brio o facto da comunidade judaica de Marrocos ter recebido o prémio “Concórdia”,
em Junho de 1990, em Oviedo, das mãos do príncipe das Astúrias (Berdugo e Cohen
CD -ROM: “Figures Ilustres”).
Em 2004 surgiria uma obra profusamente ilustrada com excelentes fotografias,
e possuindo interessantes textos informativos, fruto das viagens pelo Marrocos
judaico de outro membro da iminente família Toledano: Voyages dans le Maroc juif,
de Ralph Toledano. Denota-se através do seu texto sobre Safim que Ralph assimilou
leituras sobre a ambiguidade pragmática dos portugueses face aos judeus da cidade,
cuja argúcia negocial foi essencial na aproximação entre Portugal e as autoridades
muçulmanas locais. E embora transmita alguns dados interessantes, quase desconhe-
cidos, como acerca da figura de José Dahan, nascido em Lisboa e cônsul de Portugal
em Safim até à sua morte em 1985 (Toledano 2004: 119-123), deste país restam na
sua obra sobretudo a memória das muralhas e dos espaços abandonados em Marro-

Castelos a Bombordo - FINALx.indd 118 27-03-2013 16:57:16


MARROCOS A BOMBORDO E A ESTIBORDO • 119

cos. Curiosamente, o “Avant-Propos” de Ralph Toledano apresentar um teor de anti-


-globalização:

Nous avons conçu cet ouvrage pour que nos parents et nos amis puissent caresser
une nostalgie sans tristesse, pour que les jeunes générations puissent, un instant, s`extraire
de l`uniformisation de l`âge moderne en abordant le chapitre de ses origines (Toledano
2004: 9).

Contudo, é evidente que no seu livro o passado português surge bastante desvanecido.
Em Setembro de 2001, a revista brasileira Menorah publicou um artigo designado
“Marrocos: sol, cores, luz, sinagogas e mesquitas”, em que são apresentadas facetas
da vida moderna dos judeus daquele país, nomeadamente através de entrevistas a res-
ponsáveis, como o próprio Serge Berdugo. Uma cronologia inicial e as imagens legen-
dadas facilitam esta introdução no mundo do “Outro” judeu – que afinal não é tão o
“Outro”, dada a existência de núcleos importantes de judeus com passado marroquino,
sobretudo na Amazónia e no Rio de Janeiro. A única menção que se faz a Portugal é
a lacónica nota cronológica: “1497 – Judeus chegam de Portugal após as conversões
forçadas” (Marrocos: 26). E interessaria esmiuçar mais o passado de colonização e
“opressão religiosa”, mesmo entre estes brasileiros herdeiros da “civilização portu-
guesa”? Talvez seja este o motivo que explica a inexistência de páginas deste tipo,
oriundas de Portugal, sobre os judeus marroquinos. É que os portugueses não são ape-
nas os distantes herdeiros...

“La pérdida del rey don Sebastián”

Portugal enquistou-se nas suas conquistas do Norte de África, perdidas na maior


parte a partir de 1541. Projectou a sua política imperial sobretudo no Índico, primeiro,
e depois no Brasil e em África. Marrocos passou a ser um objectivo secundário nas
estratégias diplomáticas e económicas dos governantes portugueses. E os seus judeus,
uma realidade ainda de menor interesse.
Pelo contrário, não obstante o extenso império da América do Sul, a Espanha sem-
pre esteve mais ligada aos interesses e aos embates geoestratégicos no Mediterrâneo,
desde O Mediterrâneo e o Mundo Mediterrânico na Época de Filipe II, para utilizar a
expressão que se transformou no título da famosa obra de Fernand Braudel (Braudel
1983-1984). Mas foi só em meados do século XIX, no contexto da campanha de África
e da tomada de Tetuão (1859-1860) que os espanhóis, reencontrando a realidade de
comunidades judaicas conservando a língua e a memória de Espanha, se começaram

Castelos a Bombordo - FINALx.indd 119 27-03-2013 16:57:16


120 • CASTELOS A BOMBORDO

a interessar francamente pelos judeus sefarditas marroquinos. Tal como aconteceu em


relação aos sefarditas orientais, abrangidos pelo ideal pan-hispânico do senador Ángel
Pulido Fernández, no início do século XIX, o seu amor por Espanha foi enaltecido por
este e por outros entusiastas, como Manuel L. Ortega. O resultado político foi a lei
de Primo de Rivera, de 20 de Dezembro de 1924, que concedia nacionalidade espa-
nhola aos “antiguos protegidos españoles o descendientes de éstos, y en general indi-
viduos pertenecientes a familias de origen español”, ou seja, os judeus sefarditas falando
castelhano (Días-Mas 1993: 188-198; Tardieu 2009: 49-111 e 217-218). Aliás, após
o abandono do Protectorado (1956), a Espanha acolheu judeus que viviam no norte
de Marrocos, sem qualquer dificuldade (Díaz-Mas 1993: 205). E se mesmo no caso
de Espanha muitos judeus marroquinos não se escusavam de dizer que o facto de fala-
rem espanhol não revelava o seu amor por Espanha, mas somente que consideravam
essa língua como sua (Díaz-Mas 1993: 214), o que não se pode pensar acerca da memó-
ria de Portugal? Não houve sequer, relativamente aos judeus marroquinos, as mesmas
atribulações provocadas pela concessão de títulos de nacionalidade portuguesa a cerca
de quinhentas famílias israelitas de Salónica, pelo governo de Afonso Costa, em 1913,
com o objectivo de fazer daquelas a “ponte” dos seus interesses económicos nos Balcãs
e no projecto de colonização dos planaltos de Angola, e que algumas delas invocariam
para serem repatriadas, em 1944 (Franco 2004).
Pelo contrário, ficou patente no encontro sobre “Os Judeus Sefarditas entre Por-
tugal, Espanha e Marrocos”, realizado em Évora em 1998, que André Azulay, um dos
líderes da comunidade dos judeus de Marrocos acima referido, nada sabia sobre o
tema das relações entre Portugal e Marrocos, tendo como protagonista a comunidade
judaica, pois o seu “Discours” apresentado no referido evento é uma “fuga para a
frente”, ou seja, para as páginas de perseverança e modernidade da identidade judaico-
-marroquina, mesmo em diáspora. E é ainda no contexto dessa “fuga para a frente”
que surge a única alusão a Portugal e a Espanha, quando afirma que o renascimento
das raízes judaicas nestes países se faz de forma notável com referência a Marrocos e
ao judaísmo marroquino (Azulay 2004: 172).
Assim, no contexto dos interesses patrimoniais dos judeus de Marrocos, do pas-
sado recente existe a percepção que foram eles as sementes do (novo) Judaísmo no
Portugal moderno. Entre este e o Portugal antigo, o tempo corre sem ser ouvido ou
sentido. Do Portugal antigo, lembram-se as judias idosas de Tetuão, que o cantam desta
forma no romance “La pérdida del rey don Sebastián”:

Estánbanse los cristianos/ – Vamos a Berbería;/ traeremos moros y moras/ traeremos


muchas alhazbaz [donzelas]/ traeremos aceitunitas/ Sebastián, con alegría,/ con sus vajillos
de plata/ Mientras los cristianos comen,/ Sebastián, con la tristura,/ Tiran barcos y barca-

Castelos a Bombordo - FINALx.indd 120 27-03-2013 16:57:16


MARROCOS A BOMBORDO E A ESTIBORDO • 121

zas;/ Ya le quitan el pellejo,/ en Portugal asentados:/ traeremos muchos ducados;/ y judíos


cautivados; y mancebos desposados; y limoncitos curados. –; mesas pusiera en el prado,/
y con sus vasos dorados./ los moritos han ganado./ a la mar se tiró a nado./ a Sebastián han
sacado./ se le llenan de salvado (Díaz-Mas 2004: 254).

Bibliografia

Anónimo.“Marrocos: sol, cores, luz, sinagogas e mesquitas”, 2001, Menorah, 505: 24-39.
AZULAY, André, 1992, “Avant propos: un judaïsme bien vivant...”, em GOLDENBERG, André (ed.), Les
Juifs du Maroc. Images et textes. Paris, Editions du Scribe, 5.
AZULAY, André, 2004, “Transcription du discours de André Azoulay”, em BALLESTEROS, Carmen e
Mery Ruah (eds.), Os Judeus Sefarditas entre Portugal, Espanha e Marrocos. Lisboa-Évora, Edições
Colibri, pp. 171-177.
BEN AMI, Issachar, 1990, Culte des Saints et pèlerinages judéo-musulmanes au Maroc. Paris, Maisonneuve
et Larose.
BERDUGO, Serge, 1992, “Introduction”, em GOLDENBERG, André (ed.). Les Juifs du Maroc. Images et
textes. Paris, Editions du Scribe, 1.
BERDUGO, Serge e Yolande Cohen (co-produção), s.d., Les Juifs du Maroc à travers les âges. Tradition et
modernité. CD -ROM. S.l., Conseil des Communautés Israélites du Maroc.
BOUHSIRA, Abraham, 1992, “Fès, l’andalouse”, em GOLDENBERG, André (dir.), Les Juifs du Maroc.
Images et textes. Paris, Editions du Scribe, pp. 156-166.
BRAUDEL, Fernand, 1983-1984 [data original], O Mediterrâneo e o Mundo Mediterrânico na Época de
Filipe II. Lisboa, Publicações Dom Quixote, 2 vols.
BRUNOT, Louis e Elie Malka (textos, transcrição e tradução anotada), 1939, Textes Judéo-Arabes de Fès.
Rabat, Publications de l’Institut des Hautes Études Marocaines, 30.
CANTERA, Francisco, 1945, “El Purim del Rey Don Sebastián”, Sefarad, 5 (1): 219-225.
CHOURAQUI, André, 1985, Histoire des Juifs en Afrique du Nord. Paris, Hachette.
DAKHLIA, Jocelyne, 1990, L’oubli de la cité. La mémoire collective à l’épreuve du lignage dans le Jérid
tunisien. Paris, Editions La Découverte.
DIAS, Fátima Sequeira, 1996, Uma estratégia de sucesso numa economia periférica. A Casa Bensaúde e os
Açores. 1800-1873. Ponta Delgada, Jornal de Cultura.
DÍAZ-MAS, Paloma, 1993, Los Sefardíes: Historia, Lengua y Cultura. Barcelona, Riopiedras Ediciones.
DÍAZ-MAS, Paloma (ed.), 1994, Romancero. Barcelona, Editora Crítica.
DÍAZ-MAS, Paloma, 2004, “Temas comunes en el romancero Portugués y Sefardí”, em BALLESTEROS,
Carmen e Mery Ruah (eds.), Os Judeus Sefarditas entre Portugal, Espanha e Marrocos. Lisboa-Évora,
Edições Colibri, pp. 239-260.
DOBRINSKY, Herbert C., 1986, A Treasury of Sephardic Laws and Customs. The Ritual Pratices of Syrien,
Moroccan, Judeo-Spanish and Spanish and Portuguese Jews of North America. Hoboken-Nova Iorque,
Ktav Publish House-Yeshiva University Press.
The Dohány Synagogue. Educational CD -ROM, 2002, S.l.: Katik KKT.
FRANCO, Manuela, 2004, “Diversão balcânica: os israelitas portugueses de Salónica”, Análise Social, 30
(170): 119-147.
GOLDENBERG, Alfred, 1992, “La hiloula”, em GOLDENGERG, André (ed.), Les Juifs du Maroc. Ima-
ges et textes. Paris, Editions du Scribe, pp. 123-129.

Castelos a Bombordo - FINALx.indd 121 27-03-2013 16:57:16


122 • CASTELOS A BOMBORDO

GOLDENBERG, André, 1992, «Amérique latine: l`aventure», em GOLDENBERG, André (ed.), Les Juifs
du Maroc. Images et textes. Paris, Editions du Scribe, pp. 39-45.
GOLDENBERG, André, 1992, “Des Saadiens aux premiers Alaouites (XVe-XVIIIe siècle)”, em GOLDEN-
BERG, André (ed.), Les Juifs du Maroc. Images et textes. Paris, Editions du Scribe, pp. 69-76.
GOLDENBERG, André (dir.), 1992, Les Juifs du Maroc. Images et textes. Paris, Editions du Scribe.
HIRSCHBERG, Haim Zeev, 1974, A History of the Jews in North Africa. Leiden, Brill, 2 vols.
JOHNSON, Barbara C. 1985, “´For Any Good Occasion We Call Them`: Community Parties and Cul-
tural Continuity among the Cochin Paradesi Jews of Israel”, em KATZ, Nathan (ed.), Studies of Indian
Jewish Identity. Nova Deli, Manohar, pp. 53-82.
KATZ, Nathan e Ellen S. Goldberg., 1993, The Last Jews of Cochin: Jewish Identity in Hindu India. Colum-
bia, Columbia University of South Carolina Press.
LAREDO, A. I., 1948, “Les ‘Purim’de Tanger”, Hespéris, 35 (1-2): 193-203.
LEIBOVICI, Sara, 1982, Mosaiques de Notre Mémoire. Les Judéo-Espagnols du Maroc. Paris, Centro Don
Isaac Abravanel.
LEIBOVICI, Sara, 1984, Chronique des Juifs de Tétouan (1860-1896). Paris: Maisonneuve et Larose.
LEIBOVICI, Sara, 1992, “1492. L’arrivée des Megorashim exilés de Castille”, em GOLDENBERG, André
(ed.), Les Juifs du Maroc. Images et textes. Paris, Editions du Scribe, 70.
LEIBOVICI, Sara, 1992, “Tétouan, Tanger... cités judéo-espagnols”, em GOLDENBERG, André (ed.), Les
Juifs du Maroc. Images et textes. Paris, Editions du Scribe, pp. 145-155.
LÉVY, Simon, 2001, Essays d’histoire et de civilisation judéo-marocaines. Rabat, Centre Tarik Ibn Zyad.
LÉVY, Simon, 2004, “Quatre siècles plus tard, quelles traces portugaises”, em BALLESTEROS, Carmen e
Mery Ruah (eds.), Os Judeus Sefarditas entre Portugal, Espanha e Marrocos. Lisboa-Évora: Edições
Colibri, pp. 233-238.
LIBROWICZ, Oro Anahory, 1980, Florilegio de romances sefardíes de la Diáspora (una colección mala-
gueña). Madrid, Cátedra-Seminario Menéndez Pidal.
LIBROWICZ, Oro Anahory, s.d., “musique judéo-espagnole”, em BERDUDO, Serge e Yolande Cohen
(co-produção), Les Juifs du Maroc à travers les âges. Tradition et modernité. CD -ROM. S.l., Conseil des
Communautés Israélites du Maroc.
MUCZNIK, Esther, 1996, “O regresso: constituição da actual Comunidade Judaica de Lisboa”, em
SANTOS, Maria Helena Carvalho dos (ed.). Lisboa, Associação Portuguesa de Estudos Judaicos,
pp. 225-228.
OSKMAN, Serge (roteiro e direcção), 2003, Irmãos de Navio. Histórias da Imigração Judaica no Brasil.
DVD. Manaus, Sonipressa Ritmo da Amazônia Indústria e Comércio Fonográfica Ltda.
PIGNATELLI, Marina, 2000, A Comunidade Israelita de Lisboa. O Passado e o Presente na Construção da
Etnicidade dos Judeus de Lisboa. Lisboa, Instituto Superior de Ciências Sociais e Políticas.
SARAIVA, José Hermano (ed.), s.d., Ditos Portugueses Dignos de Memória. Lisboa, Publicações Europa-
-América.
SÉMACH, Y.D., 1943, “Une chronique juive de Fès: le Yahas Fès de Ribbi Abner Hassarfaty”, Hespéris,
29 (1-2): 79-94.
SÉPHIHA, Haim Vidal, 1986, Le Judéo-Espagnol. Paris, Entente.
TARDIEU, Eva Touboul, 2009, Séphardisme et Hispanité. L’Espagne à la recherche de son passé (1920-
-1936). Paris, Presses de l’Université Paris-Sorbonne.
TAVIM, José Alberto Rodrigues da Silva, 1993, “Abraão Benzamerro, ‘judeu de sinal’, sem sinal, entre o
Norte de África e o reino de Portugal”, Mare Liberum, 6: 115-141.
TAVIM, José Alberto Rodrigues da Silva, 1987, Os judeus na Expansão Portuguesa em Marrocos durante
o século XVI. Origens e actividades duma comunidade. Braga, Edições APPACDM Distrital de Braga.

Castelos a Bombordo - FINALx.indd 122 27-03-2013 16:57:17


MARROCOS A BOMBORDO E A ESTIBORDO • 123

TAVIM, José Alberto Rodrigues da Silva, 2003, Judeus e cristãos-novos de Cochim. História e Memória
(1500-1662). Braga, Edições APPACD Distrital de Braga.
TAVIM, José Alberto Rodrigues da Silva, 2004, “David Reubeni: um ‘embaixador’ inusitado (1525-1526)”,
em CARNEIRO, Roberto e Artur Teodoro de Matos (eds.), D. João III e o Império. Actas do Congresso
Internacional comemorativo do seu nascimento. Lisboa, Centro de História de Além-Mar e Centro de
Estudos dos Povos e Culturas de Expressão Portuguesa, pp. 683-715.
TOLÉDANO, Joseph, 1982, Le temps du Mellah. Une Histoire des Juifs du Maroc racontée à travers les
annales de la communauté de Meknès. Jerusalém, Edition Ramtol.
TOLEDANO, Ralph, 2004, Voyages dans le Maroc juif (fotografias de Roland Beaufre). Paris, Somogy
édition d’art.
TOLÉDANO, Samuel, 1992, “Espagne: les retrouvailles”, em GOLDENBERG, André (ed.), Les Juifs du
Maroc. Images et textes. Paris, Editions du Scribe, pp. 34-38.
VAJDA, Georges (introdução, transcrição e tradução anotada), 1951, Un Recueil de Textes Judéo-Marocains.
Paris, Institut des Hautes Études Marocains, Editions Larose.
VALENSI, Lucette, 1990, “Le roi cronophage. La construction d’une conscience historique dans le Maroc
postcolonial”, Cahiers d`Études Africaines, 119: 279-298.
VALENSI, Lucette, 1992, Fables de la mémoire. La glorieuse bataille des Trois Rois. Paris, Editions du
Seuil.
YERUSHALMI, Yosef Hayim, 1991, Zakhor, histoire juive et mémoire juive, tradução de Eric Vigne. Paris,
Gallimard.
ZAFRANI, Haim, 1972, Les Juifs du Maroc – Vie sociale, économique et religieuse. Études des Taqqanot et
Responsa. Paris, Paul Geuthner.
ZAFRANI, Haim, 1983, Deux mille ans de vie juive au Maroc. Histoire et culture, religion et magie. Paris,
Maisonneuve et Larose.
ZAFRANI, Haim. “Création artistique et littéraire”, s.d., em BERDUGO, Serge e Yolande Cohen (co-pro-
dução), Les Juifs du Maroc à travers les âges. Tradition et modernité. CD -ROM. S.l., Conseil des Com-
munautés Israélites du Maroc.
ZAFRANI, Haim, “Pensée religieuse”, s.d., em BERDUGO, Serge e Yolande Cohen (co-produção), Les
Juifs du Maroc à travers les âges. Tradition et modernité. CD -ROM. S.l.: Conseil des Communautés
Israélites du Maroc.

Castelos a Bombordo - FINALx.indd 123 27-03-2013 16:57:17


MARROCOS NO BRASIL
Mazagão (Velho) do Amapá em festa – a festa de São Tiago1

MARIA CARDEIRA DA SILVA E JOSÉ ALBERTO R. SILVA TAVIM

ANTES DA FESTA: UM QUADRO HISTÓRICO

Velha e Nova Mazagão: projectos estatais

No início de 1769, após dispendiosas resistências e insistentes cercos, a Coroa


Portuguesa decidiu-se pelo abandono da praça de Mazagão, na costa atlântica de Mar-
rocos2. A este acto não esteve alheio o facto do Secretário de Estado da Marinha e
Ultramar, Francisco Xavier de Mendonça Furtado, irmão do marquês de Pombal, ter
sido igualmente designado, entre 1755 e 1758, governador da Capitania do Grão-Pará
e Plenipotenciário das Demarcações 3.
No contexto da “política racional” da governação iluminista não fazia sentido a
manutenção de um enclave depauperado e em constantes dificuldades de sobrevivên-
cia. Pelo contrário, Francisco Xavier de Mendonça Furtado partiu da sua experiência
como governador do Grão-Pará para transferir a população mazaganista até uma região
em que havia necessidade de marcar urgentemente a presença portuguesa: a margem
norte do rio Amazonas e o território envolvente, então designado “Terras do Cabo
Norte”4, actualmente Estado do Amapá.
De facto, não obstante o Tratado de Utrecht de 1713 ter estipulado os marcos da
fronteira entre a Guiana francesa e o Brasil português, as incursões dos emissários
franceses para vigiarem e capturarem escravos fugitivos, assim como o cruzar das fron-

1
Este trabalho não teria sido possível sem o apoio in loco de Katy Motinha, do José Munoz e de Adriana Lavoura. Gostaríamos
também de agradecer a Céline Spinelli as informações relativas à cavalhada de Caçapava do Sul, no Rio Grande do Sul. O artigo
foi previamente publicado nas Actas do Congresso Internacional Atlântico de Antigo Regime: poderes e sociedades, organizado
pelo CHAM na FCSH-UNL em Novembro de 2005.
2
Vide Augusto Ferreira do Amaral, in História de Mazagão. Lisboa, Publicações Alfa, 1989, “Cronologia dos Acontecimentos
Militares”, e as sínteses de José Manuel Azevedo e Silva, “Mazagão. De Marrocos para a Amazónia”, in Revista de História da
Sociedade e Cultura, I, 2001, pp. 81-82; idem, “Mazagão. Retrato de uma cidade luso-marroquina deportada para o Brasil”, in
Camões. Revista de Letras e Culturas Lusófonas, n.os 17-18, Novembro de 2004, pp. 166-170.
3
Vide Renata Araújo, “A Razão na Selva. Pombal e a reforma urbana da Amazónia”, in Camões. Revista de Letras e Culturas
Lusófonas, n.ºs 15-16, Janeiro-Junho de 2003, pp. 164-165.
4
Vide Rosa Elisabeth Acevedo Marin, “Prosperidade e Estagnação de Macapá Colonial: as experiências dos colonos”, in Nas
Terras do Cabo Norte. Fronteira, colonização e escravidão na Guiana Brasileira – séculos XVIII/XIX, org. de Flávio dos Santos
Gomes. Belém, Editora Universitária/UFPA, 1995, p. 36. Agradecemos deveras ao colega Rogério Ribas, da Universidade Fed-
eral Fluminense (Rio de Janeiro), a obtenção desta obra.

Castelos a Bombordo - FINALx.indd 124 27-03-2013 16:57:17


MARROCOS A BOMBORDO E A ESTIBORDO • 125

teiras para manter relações com os índios, levaram franceses, mas também holandeses
e espanhóis, a tentarem apropriar-se de territórios sob domínio português 5. Além da
motivação estratégico-defensiva – a Vila Nova de Mazagão funcionaria como um refe-
rente de apoio militar a S. José de Macapá 6 – está subjacente uma política desenvol-
vimentista apoiada por aquela, dando-lhe também o suporte humano e económico.
O grande mentor desta política colonizadora e não apenas defensiva e explorativa
seria precisamente Francisco Xavier de Mendonça Furtado: foi praticamente durante
a sua governação que se fundaram na Amazónia cerca de 60 vilas e lugares. Renata
Malcher de Araújo comprova que desde o último ano da sua governação no Grão-Pará,
Mendonça Furtado pensava na instalação de um povoado na margem do rio Mutuacá,
devido ao facto do terreno em redor ter potencialidades para pastagens, mas também
no âmbito da consolidação do “Plano de Segurança da capitania de Minas Gerais”,
pois por ali passariam provimentos e escravos para a região mineira 7.
A Vila Nova de Mazagão foi planeada “ab initio” para receber os futuros colonos,
entre 1770 e 1771 8. O objectivo era proporcionar aos recém-vindos uma existência
segura e eficaz nos planos da colonização e rentabilização estatal. Renata Araújo refere
que a Vila Nova de Mazagão, efectivamente fundada em 1770, representa o dado utó-
pico de todo o projecto pombalino para a Amazónia 9. A vila foi desenhada pelo enge-
nheiro genovês Domingos Sambucetti 10, no “terreno místico ao Lugar de Santana do
Rio Mutuacá”, ou seja, definido sobre o povoado indígena já existente, organizado
pelo “capitão do mato” Francisco Portilho. Sambucetti, que há treze anos trabalhava
nas fortalezas de Gurupá, Santarém, Almeirim e Macapá, foi auxiliado no terreno por
outro homem experiente – Ignacio da Costa de Moraes Sarmento, antes encarregue
da administração de Bragança. As três plantas de Mazagão que Renata Araújo consi-
dera da autoria de Sambucetti, revelam a projecção de uma vila típica do Iluminismo,
com ruas traçadas a esquadro e outros espaços urbanos geometricamente definidos,
com os pólos civil (Casa da Câmara, cadeia e pelourinho) e religioso (a igreja matriz)
dominando o conjunto e projectando para uma importância secundária a única insti-
tuição de pedra pré-existente: a igreja de Santa Ana, que passa a ser designada por
“igreja dos índios”. Digamos que a malha reticular da povoação tem o seu equivalente
na construção padronizada das habitações (contudo, de dimensão variada), construídas

5
Vide Flávio dos Santos Gomes, “Fronteiras e Mocambos: o protesto negro na Guiana Brasileira”, idem, pp. 239-336.
6
Vide Eliana Ramos, “Estado e administração colonial: a vila de Mazagão”, in A Escrita da História Paraense, org., de Rosa
Acevedo Marin, Belém do Pará, NAEA/UFPA, 1998, p. 95.
7
Cf. Renata Malcher de Araújo, As Cidades da Amazónia no Século XVIII. Belém, Macapá e Mazagão, Porto, Faup Publicação,
2.ª ed., 1998, pp. 267-268.
8
Vide Robert Ricard, «Le transport au Brésil de la ville portugaise de Mazagan», in Hespéris, n.º 24, 1.º-2.º trimestres, 1937, p. 141.
9
Cf. Renata Araújo, art. cit., p. 164.
10
Sobre Domingos Sambucetti vide Renata Araújo, op. cit., pp. 111 e 270.

Castelos a Bombordo - FINALx.indd 125 27-03-2013 16:57:17


126 • CASTELOS A BOMBORDO

sob modelo regular, em que se juntam espaços quadrangulares e rectangulares, funcio-


nando também a fenestração simétrica (“Planta e Elevação das Casas que actualmente
se edificam na Vila Nova de Mazagão”, atribuída por Renata Araújo também ao enge-
nheiro Sambucetti). De salientar ainda que o número de casas e a dimensão da nova
vila foram logicamente definidas em função das gentes que estavam para vir da Maza-
gão marroquina. Aliás, como bem considera Araújo, a nova Mazagão seria tanto uma
nova cidade como uma cidade reformada – não só em relação ao modelo da antiga vila
indígena, mas também em relação à urbe africana 11. Pretendia-se por outras palavras,
que os mazaganistas se sentissem não só confortáveis na vila metaforicamente trans-
portada, mas também tão necessários como o haviam sido outrora em Marrocos.
Contudo, identificar-se-iam os os mazaganistas com os interesses destas altas pro-
jecções políticas?

As famílias mazaganistas: brancas e negras

Está bem registado o número de pessoas trazidas da


Mazagão marroquina até Lisboa: 2092 pessoas (425 famí-
lias e 229 indivíduos isolados) 12. Mas de Lisboa para Belém
do Pará viajaram 1855 pessoas, agregadas em 371 famílias,
em 15 de Setembro de 1769. De Belém para Mazagão, o
transporte foi efectuado em levas: em 1773, ainda se encon-
travam 1107 mazaganistas na capital. E em 1777 restavam
842 indivíduos. Em 1776, 343 mazaganistas haviam-se esca-
pado ao embarque para a Vila Nova de Mazagão 13.
A distinção social fez-se logo no início. Os plebeus
foram recolhidos nos armazéns do Convento dos Jeróni-
mos, ficando a sua manutenção a cargo da Fazenda Real. Os fidalgos foram também
aposentados em Belém, mas nas mercearias da rainha D.ª Catarina e do infante D.
Luís, e ainda nas casas dos seus parentes. Sabemos igualmente que cerca de 300 ple-
beus, devido à debilidade do seu estado, se recolheram em hospitais de Lisboa, e que

11
Dados amplamente retirados da obra já citada de Renata Araújo. Escusamo-nos a reproduzir aqui as plantas de Vila Nova de
Mazagão e seu casario, facilmente acessíveis na sua obra.
12
Cf. José Manuel Azevedo e Silva, “Mazagão. De Marrocos para a Amazónia”, pp. 89-91; idem, “Mazagão. Retrato de uma
cidade luso-marroquina deportada para o Brasil”, pp. 17-18.
13
Cf. Renata Araújo, op. cit., pp. 282-283. Sobre o assunto do transporte dos mazaganistas até ao Pará, e do seu estabelecimen-
to aí, e particularmente em Mazagão, vide ainda Katy Eliana Ferreira Motinha, A Festa do Divino Espírito Santo: Espelho de
Cultura e Sociabilidade na Vila Nova de Mazagão, tese apresentada ao Curso de Doutorado em História como requisito parcial
para obtenção do título de Doutor em História Social. São Paulo, 2003, cap. 2.3.2 – “A Criação de Vila Nova de Mazagão para
dar “as mãos com o Macapá”.

Castelos a Bombordo - FINALx.indd 126 27-03-2013 16:57:17


MARROCOS A BOMBORDO E A ESTIBORDO • 127

aqueles que resistiram foram transportados para o palácio da Quinta Velha, também
em Belém 14.
A análise dos códices resistentes sobre o transporte e provimento dos mazaganistas
revela que a maior parte dos nobres se incluiu nos contingentes daqueles que ficaram
no reino. E atestando que todo o processo era um acto do poder iluminista, foi em
navios régios e da Companhia Geral do Grão-Pará e Maranhão que acabaram por ser
transportadas as famílias mazaganistas. Em 15 de Setembro de 1769, aquelas foram
repartidas por dez navios, sendo sete do rei e os restantes da Companhia. Os do rei
chamavam-se São Francisco Xavier, Nossa Senhora da Glória e Santa Ana, Nossa
Senhora das Mercês, Nossa Senhora da Conceição, São João, Nossa Senhora da Puri-
ficação e São José. Os da Companhia designavam-se Nossa Senhora do Cabo, Nossa
Senhora das Mercês e Santa Ana 15. Explorando os códices publicados por Maria de
Nazaré Lima Ramos, no artigo “O Estabelecimento de Mazagão do Grão-Pará”, publi-
cado nos Anais do Arquivo Público do Pará, vol. I, tomo 1, de 1995, verificamos que
em 1769, na Charrua de São José, foram transportadas 45 famílias; no navio Nossa
Senhora da Conceição, 43 famílias; no navio Nossa Senhora do Cabo, 49 famílias; no
navio Nossa Senhora das Mercês, da Companhia, 60 famílias; no navio Nossa Senhora
da Purificação, 28 famílias, e no navio Nossa Senhora das Mercês, de Sua Majestade,
21 famílias. O total perfaz 186 famílias, se bem que os contingentes mazaganistas
tivessem como destino Belém do Pará 16.
Contudo, os dados obtidos nas fontes são variados e é difícil chegar a uma conclusão
relativamente a esta questão –, como, aliás, já se vislumbrava pelos quantitativos lança-
dos por Renata Araújo. A notícia de 340 famílias transportadas aparece num códice do
Arquivo Público do Pará, transcrito em 1918 na Revista do Instituto Histórico e Geo-
gráfico Brasileiro. O documento tem o título “Relação das Famílias, que vão estabelecer-
-se por ordem de S. Majestade...”, e data de 11 de Agosto de 1769 17. Maria de Nazaré
Lima Ramos publica também este códice no seu artigo acima referido, mas logo aqui se
verifica que a autora transcreve uma sequência do mesmo documento não publicada na
Revista do Instituto Histórico e Geográfico, onde surge a referência a mais 41 homens

14
Vide Luiz Maria do Couto de Albuquerque da Cunha, Memórias para a História da Praça de Mazagão, revistas por Levy Maria
Jordão, Lisboa, Tipografia da Academia, 1849, pp. 156-157.
15
Vide Francisco d`Assis Oliveira Martins, “A fundação de Vila Nova de Mazagão no Pará. Subsídios para a História da Colo-
nização Portuguesa no Brasil”, Lisboa, Sociedade Nacional de Tipografia, 1938, pp. 3-7; e José Manuel de Azevedo e Silva,
“Mazagão. De Marrocos para a Amazónia”, p. 93.
16
Vide pp. 19-60. Segundo o “Ofício do [governador e capitão-general do Estado do Pará, Maranhão e Rio Negro], Fernando de
Castro de Ataíde de Teive de Sousa Coutinho, para [o secretário de Estado da Marinha e Ultramar] Francisco Xavier de Men-
donça Furtado, Pará, 14 de Janeiro de 1770, in AHU, Caixas do Pará, cx. 65, doc. 5601, remetendo a relação das madeiras embar-
cadas nos navios de transporte da gente de Mazagão, aqueles foram sete: Nossa Senhora da Purificação, S. Francisco Xavier,
Nossa Senhora da Glória, Nossa Senhora da Conceição, Nossa Senhora das Mercês, S. José, e galera S. Joaquim e Santa Ana.
17
T. 84, pp. 617-695. Trata-se do cod. 197, livros 1 e 2, do Arquivo Público do Pará. Este códice foi também apontado por Rob-
ert Ricard. in art. cit., pp. 141-142.

Castelos a Bombordo - FINALx.indd 127 27-03-2013 16:57:17


128 • CASTELOS A BOMBORDO

de armas 18. Por outro lado, observa-se que as referidas famílias estão estabelecidas em
Belém do Pará, e a lista elaborada tem como objectivo o pagamento “em escravos e
fazendas pelos preços correntes por conta dos soldos, tenças, moradias e alvarás que
vencerão na Praça de Mazagão”19. Outro documento revela uma disparidade: segundo
o livro do vencimento que se deve fazer às pessoas que se vão estabelecer no Grão-Pará,
de 14 de Setembro de 1769, à guarda do Arquivo Histórico Ultramarino, em Portugal,
deviam ser já 371 as famílias a enviar para aquela região20.
Como especifica Maria de Nazaré Lima Ramos, a primeira notícia da passagem de
pessoas, concretamente, para a nova Mazagão, é o códice 208 do Arquivo Público do
Pará, e intitula-se “Famílias de Mazagão que vão para a Vila deste nome, tendo prin-
cípio em 4 de Abril de 1770”: são 114 famílias, transportadas entre Abril de 1770 e
13 de Maio de 1772, num conjunto de dez diferentes transportes 21. De 1 de Julho até
princípios de Novembro de 1773 seguiram de Belém para Mazagão mais 35 famílias
e 4 pessoas isoladas, num total de 292 pessoas, se bem que o governador João Pereira
Caldas anuncie que na primeira urbe ainda restava mais de metade “daquele Povo”.
No “Mappa de todos os Habitantes, e Fogos, que existem na Freguesia de N. S.ª da
Assunção da V.ª de Mazagam”, em 1 de Julho do referido ano, apenso ao seu ofício,
o governador elucidava que viviam então na vila 428 pessoas livres e 115 cativos, num
total de 543 habitantes 22. Segundo outro “ofício” do mesmo governador para o Secre-
tário de Estado da Marinha e Ultramar, Martinho de Melo e Castro, datado do Pará,
de 3 de Fevereiro de 1775, foram 265 pessoas, distribuídas por 51 famílias, da extinta
Mazagão marroquina, que no ano anterior passaram para o estabelecimento do mesmo
nome, no Pará 23. Em 27 de Maio de 1775, seriam levadas mais 28 famílias. Em data
ignorada deviam juntar-se 24 famílias, mas mais duas quedaram-se na estrada. E ainda,
seguindo o códice 208, em 23 de Dezembro de 1775 deviam embarcar para Mazagão
25 famílias, e mais 5 avulsos 24. Segundo a “Rellação de todas as Famillias, e Pessoas
de Mazagão, que existem ainda serem transportadas à Vila da mesma denominação,
para onde he determinado o seu destino”, datada do Pará, de 1 de Dezembro de 1778,

18
Cod. pub. nas pp. 61-113.
19
Vide notas 16 e 17.
20
Arquivo Histórico Ultramarino (doravante AHU), cod. 1991.
21
Pub. por Maria de Nazaré Lima Ramos, in art.cit., pp. 145-161.
Ofício do governador e capitão-general do Estado do Pará e Rio Negro, João Pereira Caldas, para o [secretário de Estado da
22

Marinha e Ultramar] Martinho de Melo e Castro, sobre a viagem a Vila Vistosa e Vila Nova de Mazagão”. Contem em anexo
uma relação e um mapa. Pará, 8 de Novembro de 1773, in AHU, Caixas do Pará, cx. 71, doc. 6066.
23
Idem, ibidem, cx. 73, doc. 6195.
24
Pub. por Maria de Nazaré Lima Ramos, in art. cit., pp. 162.-176. Incluiriam estas famílias de 1775 as 368 pessoas de Mazagão,
mencionadas no Ofício do governador e capitão-general do Estado do Pará e Rio Negro, João Pereira Caldas, para o Secretário
de Estado da Marinha e Ultramar, Martinho de Melo e Castro, datado do Pará, de 5 de Maio de 1776, in AHU, Caixas do Pará,
cx. 75, doc. 6291.

Castelos a Bombordo - FINALx.indd 128 27-03-2013 16:57:18


MARROCOS A BOMBORDO E A ESTIBORDO • 129

e à guarda do Arquivo Histórico Ultramarino, ainda 114 famílias se deviam deslocar


para a Mazagão amazónica 25.
Perante os dados apresentados, podemos tecer alguns comentários acerca da lite-
ratura panfletária e de intenção científica que acolhe este assunto específico. Exempli-
fiquemos com o Diário do Amapá, de 11 de Maio de 2004. Numa notícia com o título
“Mazagão Velho. O sonho luso-marroquino na Floresta Amazônica”, escreve-se que
o rei se decidiu pela “transferência para o Brasil” das 340 famílias residentes na Maza-
gão marroquina26. De forma irreflectida, a informação do “senso comum” é difundida
também através da NET, em “sites” de divulgação variada. Por exemplo, em 9 de Maio
de 2004, Evanildo da Silveira, no sítio “estado.com.br.” (O Estado de São Paulo, Jor-
nal da Tarde, Edição Digital), anunciava que “vieram para cá 340 famílias, algumas
com seus escravos”27. Esta e outras notícias transcrevem de facto a afirmação do arque-
ólogo Marcos Albuquerque, na mesma fonte28, que Evanildo da Silveira, em artigo
publicado na Revista Época, de 19 de Abril do mesmo ano, não deixa de ilustrar com
uma imagem sugestiva, das 340 famílias sendo transferidas directamente, de barco,
em 1770, da praça marroquina para Macapá, em 6.160 quilómetros percorridos 29.
Mas parece que o próprio arqueólogo se induziu em informação que “pairava” ante-
riormente, pois na página municipal de Mazagão, de 2003, Edgar Rodrigues transmite
que “os primeiros habitantes de Mazagão, no Amapá, foram 114 brancos e 103 escra-
vos que se transformaram nos primeiros agricultores desta região que faz parte deste
Estado [do Amapá]”30. No plano da inscrição histórica, os textos correm também a
favor da mitificação em torno das 340 famílias. Por exemplo, o “clássico” Estácio Vidal
Picanço, nas suas Informações sobre a História do Amapá, de 1981, escreve que as 340
famílias, num total de 1022 pessoas, fugiram do “Castelo da Mazagão Africana”, em
consequência da Guerra Santa entre católicos e muçulmanos no Norte de África31.
Mais recentemente, num estudo cuidado sobre “Estado e administração colonial: a
vila de Mazagão”, Eliana Ramos Ferreira cinge-se também à notícia da transferência
das 340 famílias mazaganistas para o Pará32.
Ora, esta manipulação da informação transmitida para se chegar ao número
exacto das 340 famílias, insistindo, até de forma imagética, na ligação directa entre

25
AHU, cod. 1790.
26
P. 2. Sem menção de autor.
27
http://ibest.estadao.com.br/educando/noticias/2004/mar/09/38.htm, p. 2.
28
Cf. http://www.magmarqueologia.pro.br/MazagaoVelhonaMidia.htm, de 7/7/2004, p. 8.
29
Idem, p. 9. Vide Figura 1.
«Município de Mazagão», estudo de Edgar Rodrigues, in Governo do Estado do Amapá. Fundação de Cultura do Amapá,
30

Departamento Cultural e Histórico, Biblioteca Pública Estadual Elcy Lacerda, [2003]


31
Macapá. Imprensa Oficial do Amapá, 1981, p. 4.
32
Eliana RAMOS, «Estado e administração…» cit., p. 95.

Castelos a Bombordo - FINALx.indd 129 27-03-2013 16:57:18


130 • CASTELOS A BOMBORDO

AlJadida e o Amapá, e relegando ou omitindo o episódio fulcral (em termos de fuga


à imigração) da passagem por Lisboa, e a consideração, sem base factológica, de
que os mazaganistas trouxeram com eles escravos, leva-nos a concluir que estamos
perante uma elaboração da memória, que desta forma tenta projectar, em termos
colectivos, o passado mais recente da Mazagão brasileira, numa versão inventiva
do passado mazaganista em Marrocos. Aliás, Fernando d’Assis Oliveira Martins
informa como só entre 1757 e 1772 se verificou a importação de 9001 escravos,
vindos de Angola, Bissau e Cacheu, pela Companhia Geral do Grão-Pará e Mara-
nhão33. De facto, nenhum documento por nós compulsado aponta para a existência
de escravos negros, cultivadores, entre as gentes estabelecidas na Mazagão marro-
quina. Pelo contrário, a documentação arquivística relativa aos habitantes mazaga-
nistas no Pará atesta a informação de Oliveira Martins: eram escravos negros que
os “cabeça de casal” deviam à Companhia. Esta tinha-os entregue previamente para
proporcionarem aos donos a possibilidade de concretizarem a política colonial pro-
tagonizada pela Coroa34. Nas listas das pessoas transportadas nos navios que par-
tiram de Lisboa, em 15 de Setembro de 1769, constam apenas 6 escravos e 3
escravas, e denota-se mesmo que a maior parte das famílias não teve acesso a esta
fonte de rendimentos35. Pelo contrário, já referimos que na Relação das Famílias
que se vão estabelecer em Belém do Pará, de 11 de Agosto de 1769, se refere no
título que as famílias de Mazagão serão ali pagas em “escravos e fazendas pelos
preços correntes por conta dos soldos, tenças, moradias e alvarás que vencerão na
Praça de Mazagão” 36. E se nada consta sobre escravos na Relação das Famílias que
foram para Mazagão do Pará, concretamente, em 4 de Abril de 1770 37, eles são já
115 no “Mappa” anexo ao ofício do governador, de 1 de Julho de 1773 38. Na
“Rellação das famílias que devem transportar-se para a nova V.ª de Mazagão em 27
de Maio de 1775” há mesmo um agregado familiar que transporta 9 escravos 39.
Como é lógico, na “Rellação de todas as Familias”, de 1778, do Arquivo Histórico
Ultramarino, verifica-se que os escravos mencionados especificamente como “pre-
tos” e “pretas”, num total de 188, são uma força de trabalho fundamental para a
sobrevivência dos 415 “colonos” que deviam ser transportados “à Vila da mesma

33
Francisco d’Assis Oliveira Martins, «A fundação de Vila Nova de Mazagão…» cit., p. 9
34
Vide AHU, cod. 1790.
35
Vide nota 15.
36
Vide notas 16 e 17.
37
Videnota 20.
38
Vide nota 21.
39
Vide nota 23.

Castelos a Bombordo - FINALx.indd 130 27-03-2013 16:57:18


MARROCOS A BOMBORDO E A ESTIBORDO • 131

denominação” 40. Segundo o “Quadro das Famílias Freguezia de Nossa Senhora da


Assumpção de Vila Nova de Mazagão”, publicado por Katy Motinha, eles ascendem
a 395, entre a totalidade dos seus 1.591 habitantes41.
Em suma, a construção do discurso sobre a população negra que vem adscrita aos
“brancos” da Mazagão marroquina é mais uma construção alegórica sobre “a base
social na terra de origem”. Retrata, de facto, o passado colonial local, remetendo a
diversidade étnica para uma origem geográfica comum – o Continente Africano – atra-
vés de uma estratégia propícia aos movimentos de solidariedade e de activismo social
e étnico contemporâneos.

Os moradores da extinta Vila de Mazagão, no Pará

Nos níveis discursivos portugueses é hoje visível também uma imagem salvítica
relativamente à terra amazónica, com raízes no discurso político pós-colonial brasileiro
acerca do novo país como terra de imigração e da tolerância42. Um dos textos mais
exemplificativos é a notícia de Fernanda Durão Ferreira, saída na revista Pública,
n.º 9, de 21 de Julho de 1996, e intitulada “Santiago na Amazónia. Procissão, Missa e
Batalha”: Passamos a citar o trecho relativo à viagem de Marrocos até à Amazónia”:

Chegados à capital do reino, os portugueses de Mazagão não se adaptaram. Prontos


para outra aventura, embarcaram para o Brasil, onde depararam com uma vida igualmente
dura, devido às febres características da região amazónica e ao isolamento a que ficaram
sujeitos.(...) A tenacidade e a fibra dos velhos guerreiros ter-lhes-ão permitido, porém,
resistir às adversidades e eles aqui ficaram, criando raízes. Muitos dos habitantes de Maza-
gão Velho são descendentes desse grupo de colonos e, sendo cidadãos brasileiros, conser-
vam ainda os costumes e as tradições luso-africanas e nomes como Ayres, Moutinho, Brito
e outros 43.

Por seu turno, a mesma mitificação parece encontrar-se nas narrativas contempo-
râneas brasileiras, como adiante veremos.
No decorrer da Festa de São Tiago, no sábado 24 de Julho de 2004, um dos nar-
radores “oficiais” do evento evocava um dos episódios da mesma – a entrega dos pre-

40
AHU, cod. 1790.
41
Katy Eliana Ferreira Motinha, A Festa do Divino Espírito Santo….
42
Entre outros, vide o clássico de Darcy Ribeiro, O povo brasileiro. A formação e o sentido do Brasil. São Paulo, Companhia das
Letras, 1995.
43
Pp. 30-31.

Castelos a Bombordo - FINALx.indd 131 27-03-2013 16:57:18


132 • CASTELOS A BOMBORDO

sentes às autoridades – como um episódio que marca toda a trajectória de um povo


que “veio do continente marroquino”, devido a um conflito, tendo a “oportunidade”
de viver nas terras amazónicas, em Mazagão Velho 44.
A “africanização” das famílias mazaganistas é, ao mesmo tempo empreendida pelo
Centro de Cultura Negra do Laguinho, em Macapá, quando se especifica na sua folha
informativa da Internet, que para o actual município de Mazagão se deslocaram “163
famílias africanas”, fugindo no século XVIII da luta entre moros e cristãos, no “cha-
mado continente negro” 45.
Já vimos que uma arqueologia dos documentos arquivísticos não consegue com-
provar o fio condutor da versão transmitida por esta memória: a realidade foi bem
diferente, e isto significa que o passado surge ali, de forma idealizada. A estratégia
insere-se no âmbito das arquitecturas identitárias condizentes com o ideário global
sobre o Brasil como país amigável e de destino pretendido face à prepotência e into-
lerância existente no Velho Mundo. A documentação revela o oposto: que a maior
parte da população mazaganista evitou a todo o custo o estabelecimento na nova
Mazagão da Amazónia.
Verificámos atrás que segundo Renata Araújo, da Mazagão marroquina partiram
2000 pessoas, e que daqui para o Pará, apenas 1000. E de Belém do Pará o transporte
foi demorado, escapando-se 343 mazaganistas, em 1776, ao embarque para Vila Nova
de Mazagão 46. As “Caixas do Pará”, do Arquivo Histórico Ultramarino, patenteiam esta
estratégia de desistência. Em 14 de Janeiro de 1770, foi redigido no Pará um “mapa
das alterações encontradas nas listas das famílias de Mazagão”, apontando os que fica-
ram nos hospitais de Lisboa, os falecidos e os evadidos 47. No ano seguinte, são 21 os
mazaganistas doentes, presos e fugitivos 48. Ainda em 1776, o capitão-general do Estado
do Pará e Rio Negro, João Pereira Caldas, ordenava a suspensão de toda a assistência
de casas, rações e de hospital às famílias mazaganistas que ainda permaneciam em Belém
do Pará. O objectivo era pressioná-las a saírem para a nova Mazagão, pois no “Ofício”
especificava-se que voltariam a ter os seus privilégios se decidissem embarcar 49.
Foram muitos também aqueles que, pressionados a estabelecer-se em Vila Nova
de Mazagão, com suas famílias, tudo fizeram para abandonar o novo lar. No Cartório

44
Gravação registada na data citada: ver adiante.
45
http://www2.uol.com.br/amazonview/view19/negro.htm: “Centro de Cultura Negra”, 24-4-2004.
46
Vide nota 12.
47
AHU, Caixas do Pará, cx. 65, doc. 5602.
48
“Relação das pessoas provenientes da extinta Praça de Mazagão e que não embarcaram para o Estado do Pará na expedição
de 15 de Setembro de 1769 pelas cousas que se declara”, Lisboa, 24 de Agosto de 1771, idem, ibidem, cx. 67, doc. 5769.
49
“Ofício do governador e capitão-general do Estado do Pará e Rio Negro, João Pereira Caldas, para [o Secretário de Estado da
Marinha e Ultramar], Martinho de Melo e Castro, sobre o número de pessoas que no ano de 1775 foram transportadas para
Vila Nova de Mazagão e a Ordem de suspensão de auxílio às famílias da extinta praça de Mazagão e que ainda permanecem na
cidade de Belém do Pará”, Belém do Pará, 5 de Março de 1776, idem, ibidem, cx. 75, doc. 6291.

Castelos a Bombordo - FINALx.indd 132 27-03-2013 16:57:18


MARROCOS A BOMBORDO E A ESTIBORDO • 133

dos Condes da Cunha, depositado no Arquivo da Universidade de Coimbra, encontram-


-se algumas dessas comprovações. Por exemplo, em carta manuscrita, datada de Maza-
gão, de 19 de Junho de 1777, e dirigida a D. José Vasques Álvares da Cunha, Miguel
Soares, relatando as miseráveis condições que haviam experimentado os moradores
da extinta praça da Mazagão, desde o seu despejo e transferência para a nova vila, com
a falta de alimentos e roupa e devido às doenças, solicitava àquele senhor que diligen-
ciasse junto da Corte de Lisboa para que lhe fosse concedido o regresso ao reino 50.
Em 25 de Dezembro de 1780, Francisco Afonso da Costa pretendia que ele e os seus
familiares fossem transferidos para outra terra que lhes oferecesse melhores condições
de vida 51.
Este tipo de documentação singular abunda nas “Caixas do Pará”, à guarda do
Arquivo Histórico Ultramarino, e pode ser compulsada de 1774 a 1796... 52. Mas sabe-
mos que mesmo o necessário médico Bento Vieira Gomes se recusou, logo em 1772,
a exercer o ofício para que fora nomeado, na nova vila amazónica 53.
O retrato mais extenso – e por vezes patético – de toda esta “vil tristeza”, é a já
referida “Rellação de todas as Famillias, e Pessoas de Mazagão, que existem ainda
serem transportadas à Vila da mesma denominação, para onde he determinado o seu
destino”, da autoria do capitão Severiano Euzébio Martins, e datada de Belém do Pará,
de 1 de Dezembro de 1778. Nele se revela que, não obstante alguns dos mazaganistas
serem Cavaleiros do Hábito de Cristo, a maior parte não conseguia sustentar-se a não
ser através do trabalho dos escravos, alguns dos quais ainda deviam à Companhia.
Muitos, além de explorarem o trabalho dos escravos, tinham ocupações menores,
como andar em canoa negociando, coserem para fora (as mulheres), exercerem o ofí-
cio de taberneiro, sapateiro, alfaiate, caixeiro... Manuel Fernando vivia mesmo de
esmolas. Os funcionários públicos, os militares e as pessoas adstritas à Igreja tinham
uma posição mais confortável.
Na sua caracterização da população, o capitão utiliza expressões como “vive em
suma pobreza”, “muito pobre”, “são muito doentes”, “passa com pobreza”, “vive em
total desamparo”, “vivem em considerável pobreza”, “ficou sem amparo algum”. Algu-
mas das descrições chegam mesmo ao absurdo. Por exemplo, acerca de António José
Biscaínho, esposa e enteada, diz-se que não têm desembaraço algum para ganharem a

50
In Raúl da Silva Veiga, Documentos referentes ao governo da Praça de Mazagão, 1758-1769 (Cartório dos Condes da Cunha),
Coimbra, Publicações da Universidade de Coimbra, 1982, p. 88, doc. 115.
51
“Carta de Francisco Afonso da Costa para D. José Vasques Álvares da Costa”, Macapá, 25 de Novembro de 1780, idem, ibi-
dem, pp. 88-89, doc. 116.
52
AHU, Caixas do Pará. Vide cx. 73, doc. 6171, cx. 78, doc. 6461; cx. 78, doc. 6467; cx. 81, doc. 6670; cx. 107, doc. 8343.
53
“Ofício do Juíz de Fora e provedor da Fazenda Real da Capitania do Pará, D. Francisco Xavier Ribeiro de Sampaio, para o
Secretário de Estado da Marinha e Ultramar, Martinho de Melo e Castro”, Belém do Pará, 31 de Janeiro de 1772, idem, ibidem,
cx. 67, doc. 5798.

Castelos a Bombordo - FINALx.indd 133 27-03-2013 16:57:18


134 • CASTELOS A BOMBORDO

vida, “por serem inertes”. Acerca da família de Luís Loureiro do Rego surge a informa-
ção que vive daquilo que os escravos adquirem, pois aquele não tem “jeito nenhum para
granjear a vida”. E avança-se que os filhos de José da Costa Lopes são “parvos”...
Há excepcionalmente pessoas ricas, como o Cavaleiro da Ordem de Cristo Ignácio
Freire da Fonseca, que possuía uma fábrica de madeiras e 22 escravos, obtendo facil-
mente licença para passar a Lisboa. Os mais pobre podiam seguir caminhos semelhan-
tes, mas de forma ínvia: Inácio José da Penha de França e sua esposa fugiram pelo rio
Tocantins e alcançaram Minas Gerais; e Manuel António Quaresma escapou-se mesmo
para o reino. O desespero de alguns levou ainda ao desmembramento familiar: Lázaro
Valente Loureiro escapou-se para Salvador da Bahia, deixando a esposa e os dois filhos
em grande pobreza; mas no caso do alfaiate Francisco de Pina Valente, são a esposa e
os três filhos que fogem para o reino, sem licença régia 54.
Logicamente que há um fundo de verdade em toda esta situação de miséria, mas
não será por acaso que este primeiro grande mostruário de pobreza foi redigido em
1778. No ano anterior tinha subido ao trono D. Maria I, e os deslocados mazaganistas
aproveitaram a “Viradeira” para tentarem fazer vingar os seus intentos contra a impe-
riosa política do Marquês de Pombal e seu irmão, durante o reinado de D. José I. É
de facto perante a rainha e os seus apoiantes que os habitantes de Mazagão se expri-
mem em colectivo.
Logo em Outubro de 1778, os moradores que reforçavam o seu apego ao passado
marroquino e não ao presente amazónico que detestavam como uma imposição;
anunciando-se como “moradores da extincta praça de Mazagão”, queixavam-se à rai-
nha da situação de miséria em que se encontravam no Pará, e solicitavam providências
para a remediar 55. Passados dois anos, como vimos pelo códice acima referido, alguns
moradores obtiveram da rainha a esperada licença de passarem para o reino, mas o
governador do Estado do Pará elucidava que outros apresentavam as mesmas preten-
sões 56. Em 1781, os solicitadores tentaram aproveitar de forma oportunista a política
saneadora da rainha, requerendo um Conselho de Guerra para julgar as razões que os
obrigaram a viver no Estado do Pará, e continuando-se a apresentar como “Morado-
res da extincta praça de Mazagão” 57. Em 1783, insistiram com estratégias diversifica-
das: enviaram uma representação de todos os estratos sociais ao Reino – dos oficiais
da Câmara, da nobreza e do povo da “extincta Praça de Mazagão” – e aí tentaram que

54
AHU, cod. 1790.
55
S.l., s.d., 8 de Outubro de 1772, idem, Caixas do Pará, cx. 80, doc. 6639.
56
“Ofício do governador e capitão-general do Estado do Pará e Rio Negro, José de Nápoles Teles de Meneses, para o Secretário
de Estado da Marinha e Ultramar, Martinho de Melo e Castro”, Belém do Pará, 2 de Maio de 1780, idem, ibidem, cx. 85, doc.
6980.
57
“Requerimentos dos Moradores da extinta Vila de Mazagão para a rainha D. Maria I”, s.l., 17 de Dezembro de 1781, idem,
ibidem, cx. 88, doc. 7161.

Castelos a Bombordo - FINALx.indd 134 27-03-2013 16:57:18


MARROCOS A BOMBORDO E A ESTIBORDO • 135

o Conselho Ultramarino influenciasse D. Maria I em seu favor 58. Os esforços conti-


nuaram em 1793. Nesse ano, “os antigos moradores da extincta praça de Mazagão”
evocaram sagazmente as resistências de 1563 e de 1640, assim como a fatal surtida de
D. Francisco de Mascarenhas, para pedirem à rainha que, em atenção aos serviços
prestados, os libertasse da aflição e miséria experimentadas em Vila Nova de Mazagão
59
. Ou seja, perante a rainha, o presente de Vila Nova de Mazagão surgia tão anulado
quanto ela pretendia anular a memória e os tempos do Marquês de Pombal. No mesmo
ano, Manuel Correia e mais 42 mazaganistas pediram a intercessão do Conde da Cunha
para que D. Maria I autorizasse a sua deslocação para o Algarve, em virtude de não
poderem suportar “os trabalhos” que se seguiram ao despejo da Mazagão marroquina
60
– no fim, presume-se, o local onde sempre pretenderam residir, após o abandono
daquela praça. Não será por acaso que a petição é dirigida ao Conde da Cunha, que
foi governador de Mazagão entre 1758 e 1764 61.
Mas no fim de 1791 a rainha enlouqueceu e os mazaganistas passaram a não possuir
na corte um interlocutor tão desejado como fora a acérrima opositora do Marquês.
É verdade que as dificuldades não eram uma utopia. O próprio governo central
não conseguiu concretizar os seus planos ideais, dificultando o pretendido estabeleci-
mento colonizador. Por isso, em Janeiro de 1773, surge a informação que do total das
117 casas construídas em Vila Nova de Mazagão, só menos de metade – 56 – estavam
completas. Havia 36 casas não caiadas e 25 nem caiadas nem rebocadas. Das ocupa-
das, 27 estavam em dúvida de pertença 62. Os colonos foram também vítimas de suces-
sivas epidemias. Logo em 1762 tiveram que solicitar ao comandante de Macapá e ao
governo da Capitania um médico e uma ambulância devido ao número de atacados.
O boticário Julião Álvares da Costa encontrou ali 42 enfermos. Está noticiada outra
grave epidemia, em 1781, só debelada no ano seguinte 63. As condições climáticas
também eram adversas.
É necessário, contudo, olhar também para o cenário de relativa prosperidade que
emana de alguma documentação. A mão-de-obra não foi escassa em Mazagão do Pará:

58
“Consulta do Conselho Ultramarino para a rainha D. Maria I”, Lisboa, 19 de Setembro de 1783, idem, ibidem, cx. 90, doc.
7346.
59
“Petição dos moradores de Vila Nova de Mazagão à rainha D. Maria I”, Vila Nova de Mazagão, 1793, in Raúl da Silva Veiga,
op. cit., p. 89, doc. 117.
60
“Petição de Manuel Correia e outros moradores de Vila Nova de Mazagão a D. José Vasques Álvares da Cunha (Conde da
Cunha)”, Vila Nova de Mazagão, 17 de Janeiro de 1793, idem, p. 89, doc. 118.
61
Idem, pp. 56-59. E ainda Augusto Ferreira do Amaral, op. cit., pp. 250-255.
62
“Ofício do governador e capitão-general do Estado do Pará e Rio Negro, João Pereira Caldas, para [o Secretário de Estado da
Marinha e Ultramar] Martinho de Melo e Castro”, Belém do Pará, 5 de Janeiro de 1773, in AHU, Caixas do Pará, cx. 69, doc.
5933.
63
In João Palma Muniz, “Limites Municipaes do Estado do Pará. Município de Mazagão”, in Annaes da Biblioteca e Archivo
Público do Pará, t. IX, 1916, pp. 395-396 e 425.

Castelos a Bombordo - FINALx.indd 135 27-03-2013 16:57:19


136 • CASTELOS A BOMBORDO

em 1772, trabalhavam na obra de construção 150 operários e 122 índios, sendo a


população de 459 pessoas, 383 livres e 70 escravos 64. E já em 1916, João Palma Muniz
demonstraria o papel da Mazagão paraense, juntamente com Macapá e Vila Vistosa
da Madre de Deus, no abastecimento de arroz para Belém do Pará: em 1778, a vila
exportou 3.317 1/2 alqueires 65. Recentemente, Eliana Ramos Ferreira e Rosa Eliza-
beth Acevedo Marin insistem no importante papel produtivo da nova Mazagão no
período colonial, baseado na exploração da mão-de-obra escrava e indígena, mas tam-
bém dos trabalhadores livres pagos pela Fazenda Real, designados por “oficiais”.
Os índios eram engajados na agricultura como mão-de-obra auxiliar. Em 1782, o
governador da praça de S. José de Macapá, Manuel da Gama Lobo de Almeida, reme-
tia ao governador e capitão-general do Estado do Pará e Rio Negro, José de Nápoles
Teles de Menezes, a relação sobre o número de índios necessários para auxiliarem nos
cultivos da farinha, feijão, arroz e algodão das vilas de Macapá, Mazagão e Vila Vis-
tosa 66. Eliana Ramos Ferreira informa que os negros eram disponibilizados pelos seus
donos para construções na vila, nomeadamente quando os índios escapavam, mas que
trabalhavam sobretudo nas roças individuais 67. Rosa Elizabeth Acevedo Marin chama
a atenção, por sua vez, para o facto de os colonos terem sido orientados para uma
agricultura de exportação, e de terem visto a sua produção crescer até à década de 80
do século XVIII. Foram buscar as suas terras de cultivo nas ilhas Mutuacá e Pará, onde
diminuía a salinização, e nas margens dos rios Preto e Maracá, e do lago Juruti. A
principal produção era o arroz para exportação, como acima foi referido, mas também
o algodão. Contudo, a partir de 1780 os colonos começaram a abandonar a rizicultura
devido ao excesso de produção armazenada em Lisboa, como consequência da má
gestão da Companhia em termos de comercialização daquele produto. Em 1830, a vila
de Mazagão apresentava um espaço agrícola reduzido – sinal da sua decadência –
cingindo-se a população aos cultivos de autoconsumo na ilha do Pará 68. Mas até lá,
para além da existência de famílias que se adaptaram economicamente aos propósitos
de colonização, a vivência não parece ter sido tão negativa como a desenhada na Rela-
ção de 1778, cujo autor parece ter enegrecido o quadro com um objectivo nitidamente
político e reivindicativo, em prol de muitos dos moradores que também se manifesta-
ram individual ou colectivamente. A prova mais candente desta “pobreza disfarçada”
foi o facto dos mazaganistas terem celebrado apoteoticamente a ascensão ao trono de

64
Idem, p. 413.
65
Idem, p. 419.
66
“Ofício de Manuel da Gama Lobo de Almeida para José de Nápoles Teles de Menezes”, S. José de Macapá, 23 de Abril de
1782, in AHU, Caixas do Pará, cx. 88, doc. 7193.
67
Cf. Eliana Ramos Ferreira, art. cit., p. 106.
68
Cf. Rosa Elizabeth Acevedo Marin, art. cit., pp. 33-64.

Castelos a Bombordo - FINALx.indd 136 27-03-2013 16:57:19


MARROCOS A BOMBORDO E A ESTIBORDO • 137

D. Maria I (1777-1816) durante oito dias, estando seis deles a cargo do Senado, e dois
a cargo do Sargento-Mór, e do sucesso cujo eco se fez sentir nos circuitos governativos
e militares de Belém do Pará 69. Não se tratou de um acto inusitado, mas antes do
reflexo do júbilo de adesão à nova rainha, que os colonos sabiam estar em oposição à
política de seu pai, esperando disso obter dividendos.
A questão maior da oposição dos mazaganistas à permanência no Pará deve-se, na
verdade, sobretudo ao seu quadro sociológico de origem. Luiz Maria do Couto de
Albuquerque da Cunha mostra, no capítulo XXII das Memórias para a História da
Praça de Mazagão, uma relação das pessoas que serviram durante o cerco e saíram de
Mazagão aquando da entrega da praça. Essa lista é constituída apenas por clérigos e
pessoas a eles adstritas, oficiais de Justiça e força militar 70. Como já verificou Robert
Ricard, os artífices e funcionários estavam ausentes da relação das 340 famílias exis-
tente no Arquivo Público do Pará, na sua opinião porque estes se tinham dispersado
por vários postos no reino 71.
José Manuel Azevedo e Silva constrói um fiel retrato da população saída de
Mazagão, através da análise do códice 1784 do Arquivo Histórico Ultramarino. Dá
conta assim que os efectivos da guarnição representavam 28,3% do todo social, e
79% do universo dos homens e jovens capazes de se habilitarem a pegar em armas.
Acrescenta também que os outros 21% dos homens válidos se ocupavam de activi-
dades comerciais e artesanais, das tarefas de conservação do património urbano e da
prática de alguma agricultura dentro e fora do espaço amuralhado 72. De qualquer
forma, neste último caso estamos perante um sector de subsistência, de importância
menor no conjunto das actividades rentáveis da praça. Como já foi referido, a “Rella-
ção de Todas as Famíllias, e Pessoas de Mazagão”, de 1779, que jaz no Arquivo His-
tórico Ultramarino, devido à riqueza da sua descrição é também o documento mais
importante para auscultar as profissões dos que então residiam na Mazagão do Pará:
além dos militares, dos funcionários régios e dos clérigos com as fontes de rendi-
mentos justificadas, muitas das famílias dependiam apenas do trabalho dos escravos
avançados pela Companhia, ou faziam deste uma importante fonte de receitas. Outros
andavam em canoa a negociar alimento. Há também taberneiros, feitores e os habi-
tuais artesãos: sapateiro, ourives, alfaiate, etc. Os agricultores dedicados eram pou-
cos, mas alguns, como João Duarte e a esposa, pareciam ter disposição para serem
bons lavradores 73.

69
Cf. João Palma Muniz, art. cit., pp. 422-424. Voltaremos a falar desta festa mais à frente.
70
Luiz Maria do Couto de Albuquerque da Cunha, Memórias para a História da Praça de Mazagão, pp. 158-163.
71
Robert Ricard, art. cit., p. 142.
72
Cf. José Manuel Azevedo e Silva, “Mazagão. Retrato de uma cidade luso-marroquina”, pp. 171-172.
73
AHU, cod. 1790.

Castelos a Bombordo - FINALx.indd 137 27-03-2013 16:57:19


138 • CASTELOS A BOMBORDO

Em suma, parece estramos perante uma população desajustada face ao seu passado
e aos planos do Portugal Iluminista. Na Mazagão marroquina, estes colonos viviam
dos soldos régios nas suas actividades militares ou de funcionários, ou eram pessoas
que gravitavam em torno destes e do abastecimento a partir do reino: comerciantes e
artífices. Repentinamente, o Marquês de Pombal e seu irmão pretenderam que se
transformassem em colonos desenvolvimentistas, avançando-lhes verbas, “fazendas”
e escravos, que deviam pagar mais tarde, ou seja, empurraram-nos para um processo
rápido e contínuo de endividamento, não só por não terem feito da agricultura o seu
modo de vida em Marrocos, mas também porque deviam vender os seus artigos exclu-
sivamente à Companhia 74. É verdade que, como vimos com o caso do comércio do
arroz, alguns deles adaptaram-se e prosperaram. Mas o grupo dos desertores e daque-
les que se serviam da sua posição social para regressarem ao reino ou saírem para Belém
ou outra terra brasileira mais ambicionada, e as vozes dos protestantes que aproveita-
ram a “Viradeira” de D. Maria I, mostra que o falhanço da Mazagão colonial do Amapá
se deve sobretudo ao facto da população para aí transportada não possuir o perfil para
aguentar o esforço de enveredar por outra actividade económica em território afas-
tado, de clima inóspito e atreito a epidemias.

Decadência de Vila Nova de Mazagão

O desajustamento sociológico da população da Vila Nova de Mazagão, as epide-


mias, o clima, mesmo a já referida crise na produção rizícola que afectou os mais dinâ-
micos a partir de 1780, o isolamento da população, esquecida nos confins da Amazónia,
numa terra que parecia cada vez mais um beco sem saída, fez estiolar a vila. Não pode-
mos esquecer que a comunicação entre a povoação e a sede do governo do Grão-Pará
era feita por canoa, revelando a grande dependência e o isolamento em que se encon-
trava a Mazagão paraense 75. No fim do século XVIII, o governo do Grão-Pará passou
a ocupar-se mais com o desenvolvimento da capitania do Rio Negro, nomeadamente
devido às questões dos limites fronteiriços, desprezando a subsistência das vilas para-
enses76. Em 14 de Maio de 1833, foi retirada à Mazagão do Pará a categoria de vila,
passando inclusivamente a chamar-se “Regeneração”. Só em 30 de Abril de 1841 seria

74
Cf. Francisco d`Assis Oliveira Martins, art. cit., pp. 10-11; Renata Malcher de Araújo, op. cit., p. 284, mas sobretudo os arti-
gos recentes de Rosa Elizabeth Acevedo Marin, “Agricultura no delta do rio Amazonas. Colonos produtores de alimentos em
Macapá no período colonial”, in A Escrita da História Paraense, 1998, pp. 77-84; idem, “Prosperidade e estagnação de Macapá
colonial”, pp.37-43.
75
Cf. João Palma Muniz, «Limites Municipaes…» cit., p. 407.
76
Idem, Ibidem, p. 428: e Paulo Dias Morais, Ivoneide Santos do Rosário e Jurandir Dias Morais, O Amapá na mirados
primórdios do lugar ao Laudo Suiço. Macapá, JM Editora Gráfica, 2003, pp. 49-50.

Castelos a Bombordo - FINALx.indd 138 27-03-2013 16:57:19


MARROCOS A BOMBORDO E A ESTIBORDO • 139

restaurado “Mazagão Velho” como sede de comarca, privilégio que perdeu em 4 de


Outubro de 1915, a favor de Nova do Anauerapucú, situada na margem direita do rio
deste nome, em frente ao “furo de Beija-Flor” – depois transformada em cidade com
o nome de “Mazaganópolis” ou “Mazagão Novo”. A Vila Nova de Mazagão pombalina
passou a chamar-se, por oposição, “Mazagão Velho”, e não vila, pois que pela lei pro-
vincial n.º 1334 de 19 de Abril de 1888, havia sido elevado à categoria de cidade 77.
Estácio Vidal Picanço informa que em meados do século XIX, Mazagão possuía
uma população de 1.961 pessoas livres e 317 escravos, mas devido à malária que gras-
sou nesse período, ficou reduzida a 150 pessoas, “sendo que a maioria era de índios
e meninos”. Devido à questão demográfica não se procedeu ao desmatamento dos
acessos e a povoação ficou ligada “ao mundo” através do estreito rio Mutuacá. Com
a transferência de parte das famílias resistentes para Mazagão Novo a partir de 1915,
a quebra demográfica e o isolamento de Mazagão Velho foram ainda mais dramáticos
78
. A população branca desertou da vila e, como se escreve no sítio “Brasil Arqueoló-
gico” (de 13-1-2005), “uns poucos moradores permaneceram, conta-se que na maio-
ria negros” 79 – o que corresponde à “fácies” actual do povoado.
A própria igreja matriz, cujo edifício foi iniciado em 1772 80, acabou por ruir. Em
1978, Estácio Vidal Picanço reproduz nas suas Informações sobre a História do Amapá,
uma fotografia da matriz erguida e outra do edifício já em ruínas 81. A igreja foi alvo
da investigação arqueológica de Marcos Albuquerque, da Universidade Federal de
Pernambuco, e sua equipa, em 2004 82.

Os “Cavaleiros Africanos” e a Festa

A igreja matriz de Vila Nova de Mazagão, sita na rua Augusta, designou-se de Nossa
Senhora da Assunção, como a padroeira da Mazagão marroquina. E logo em 1770 foi
confirmado como seu padre João Valente do Couto 83, embora só em 1773 o edifício
tenha sido concluído, feito de pedra do rio Maracá, tijolo e taipa 84. Estácio Vidal

77
Idem, Ibidem, pp. 508-509; e Estácio Vidal Picanço, Informações sobre a História do Amapá cit.,pp. 50-52.
78
Cf. Estácio Vidal Picanço, op. cit., pp. 53-55.
79
http://www.magmarqueologia.pro.br./MazagaoVelho2.htm. “Brasil Arqueológico. Site do Laboratório de Arqueologia da Uni-
versidade Federal de Pernambuco. Arqueologia de Mazagão Velho”, p. 3.
80
Cf. João Palma Muniz, art. cit., pp. 424 e 426; e Eliana Ferreira Ramos, art. cit., p. 99.
81
Estácio Vidal Picanço, Informações sobre a História do Amapá cit., p. 5. Em Perfil do Amapá, 1999/2000, p. 30, o mesmo
autor data uma fotografia da antiga matriz de Mazagão Velho, ainda de pé, da década de 40.
82
Vide nota 78.
83
“Ofício do vigário capitular do bispado do Pará, Giraldo José d`Abranches, para o Secretário de Estado da Marinha e Ultramar,
Francisco Xavier de Mendonça Furtado”, Belém do Pará, 12 de Janeiro de 1770, in AHU, Caixas do Pará, cx. 63, doc. 5593.
84
Cf. João Palma Muniz, art. cit., p. 424; e Eliana Ramos Ferreira, art. cit., p. 99.

Castelos a Bombordo - FINALx.indd 139 27-03-2013 16:57:19


140 • CASTELOS A BOMBORDO

Picanço refere que na antiga igreja havia imagens enfeitadas de ouro e de pedras pre-
ciosas, bem como uma mesa de prata trazida pelos mazaganistas de Marrocos 85. De
facto, estes e outros ornamentos, assim como as imagens, foram transportados da
homónima matriz da Mazagão marroquina86. De acordo com o sítio “Brasil Arqueo-
lógico. Site da Equipe do Laboratório de Arqueologia da Universidade Federal de Per-
nambuco”, a análise das plantas mostra que a construção da matriz tinha sido planeada
primeiramente na margem do rio, próximo da antiga aldeia indígena, mas que a sua
edificação frente à praça do pelourinho – hoje um vasto campo vazio, que serve de
antecâmara à povoação habitada – se impusera como uma solução mais de acordo com
os padrões da época 87.
Também a igreja matriz da Mazagão marroquina marcara o cenário maior das principais
evocações ali verificadas, sobretudo após combates vitoriosos sobre os muçulmanos88.
Chegou até nós um conjunto de textos impressos à custa de particulares – cava-
leiros locais ou outros homens de armas – que remetem, entre 1752 e 1766 (ou seja,
apenas três anos antes do abandono da praça) 89 – para narrativas desses combates
heróicos e para eventos verificados frente à matriz. Presume-se que esses pequenos
textos volantes – de entre 7 a 12 páginas – seriam distribuídos facilmente e trans-
portados como documentos que atestariam para a posteridade o valor imortal do
aguerridos mazaganistas. Teriam eles sido transportados, também, como parte do
património material, para Mazagão do Pará?
Estão todos redigidos num modelo hierárquico, cavaleiresco e barroco, que evoca
sempre a vitória dos portugueses cristãos, em pequeno número, contra os muçulma-
nos, em grande número e identificados vulgarmente como “bárbaros”90. Remetem para
um fundo de cultura clássica, comparando os objectivos dos autores e as matérias por
eles descritas, aos objectivos dos autores da Antiguidade Clássica e aos assuntos beli-
cosos e heróicos neles descritos. Desta forma, as narrativas dos combates em Marrocos
pareciam pretender continuar a evocação heróica dos Clássicos, ou seja, transpor para
a memória futura uma realidade transformada em matéria mítica edificante.

85
Estácio Vidal Picanço, op. cit., p. 52.
86
Cf. Eliana Ramos Ferreira, art. cit., p. 99.
87
http://www.magmarqueologia. pro./br/IconografiaMazagãoVelho5.htm.
88
Sobre a igreja matriz de Nossa Senhora da Assunção na Mazagão marroquina vide Luiz Maria do Couto de Albuquerque, op.
cit. p. 8; e António Dias Farinha, História de Mazagão durante o período filipino. Lisboa, Centro de Estudos Históricos Ultra-
marinos, 1970, p. 46.
89
Encontrámos até agora 14 destes textos, alguns com dois exemplares disponíveis. Estão depositados na Biblioteca Nacional de
Lisboa (Secções de Reservados e de Leitura Geral). Referiremos alguns deles de seguida.
90
Vide Biblioteca Nacional, Reservados (doravante BNR), 1352P e 432/1 P, Relaçam do Combate, que tiverão, e vitoria, que
conseguirão as armas portuguezas Dos nobres Cavaleiros de Mazagão, comandadas pelo Illustrissimo, e Excelentissimo Senhor D.
Antonio Alves da Cunha, Governador e Capitão General da dita Praça, Contra os Mouros da Aduquela; chamados os Alarves, os
mais guerreiros da Barbaria, em o dia 7 de Dezembro do anno proximo passado de 2751 [sic], escrito por um dos seus cavaleiros,
Lisboa, na Oficina de Pedro Ferreira, 1752, p. 3.

Castelos a Bombordo - FINALx.indd 140 27-03-2013 16:57:19


MARROCOS A BOMBORDO E A ESTIBORDO • 141

É neste contexto que surge a ideia de pertença a África. Mas uma África enqua-
drada num modelo visionário, clássico e cristão: a África a ser conquistada à Barbárie
– neste caso, “muçulmana” – pela civilidade cristã. Fala-se por exemplo de Mazagão
como a única praça que resta em “terras dos Africanos” 91. É por isso mesmo que os
cavaleiros portugueses de Mazagão são designados, neste contexto, orgulhosamente,
de “africanos”. Por exemplo, no início da Relaçam do Combate que tiverão, e vitoria
que conseguirão as armas portuguezas..., escreve-se:

“Entre os repetido debates, que, por serem de menos ponderação, se não referem, e
em que quotidianamente conseguem gloriosos triunfos os nobres Cavaleiros Africanos (...),
como distintos costumão valerosamente defender a Purissima Conceição da mesma Senhora,
dandolhes nos campos de Africa huma insigne vitoria (...)” 92.

Na Noticia da Grande Batalha que houve na Praça de Mazagão no dia 6 de Fevereiro


do presente ano de 1757, África é comparada a um teatro em que se verificaram cenas tão
gloriosas como aquelas em que se bateram Alexandres, Aníbeis e Césares. O Norte de
África ficou cingido à designação África, como escola de armas para a nobreza que ia pele-
jar “com assombro” na Ásia, e onde Portugal banhou seu sangue. Por sua vez, os mouros
exerceram “deligências africanas” para dominarem Mazagão 93. O facto da designação
“Africanos” ser, nas concepções portuguesas da época, aplicada a todos aqueles que habi-
tavam no continente africano, está patente no discurso que o anónimo da Notícia do Grande
Assalto e Batalha, que os Mouros derão à Praça de Mazagam, de 1756, colocou na boca da
personagem “General Amet”, ao dirigir-se, em “termos clássicos”, aos seus soldados:

“Esta he ó Africanos valorosos a occasião mais prompta, a vingar-mos nossas afrontas,


e a sobrefazermo-nos de nossas injurias; estes são aquelles nosso inimigos, que nunca nos
deixão viver descançados, elles nos tomarão as terras em que habitão na Europa, elles nos
vierão incommodar a Africa (...)”.

O texto é rematado com uma alusão “à heroicidade Lusitana, que na Africa, e em


todas as partes do mundo se tem coroado com tantos Louros” 94.

91
BNLR, 903/4 P, Relação da batalha que o presido de Marzagam teve com os Mouros em o dia primeiro de Mayo do anno de
1753, perigo em que se viu, e a gloriosa Victoria que delle alcançou, Lisboa, s.ed., s.d. [1754], p. 3.
92
BNLR, 1352P e 432/1 P, p. 2.
93
BNLR, 903/8 P e Fundo Geral (doravante FG) HG 9787/17 P, Notícia da Grande Batalha que houve em a Praça de Mazagão
no dia 6 de Fevereiro do presente anno de 1757, Lisboa, s.ed., 1757, pp. 1-3.
94
BNLR, 903/7 P, e BNFG, HG 9787/11 P, “Noticia do Grande Assalto e Batalha, que os Mouros derão à Praça de Mazagam em
o mez de Junho do presente anno de 1756. Com outras cousas notaveis modernamente sucedidas na mesma Praça”, Lisboa, Na
Officina de Domingues Rodrigues, 1756

Castelos a Bombordo - FINALx.indd 141 27-03-2013 16:57:19


142 • CASTELOS A BOMBORDO

Depois se deduz que no caso dos cavaleiros portugueses, a consideração de per-


tença a África é valorizada no contexto de uma identidade político-social e religiosa
que se pretende impor como a verdadeira e única, a todo um continente. Pelo contrá-
rio, os muçulmanos são considerados africanos a desvalorizar, mesmo quando por
antítese são colocados a falar no modelo clássico da civilização greco-latina e cristã.
Ora é certo que este tipo de ideal cultural, que transparece em tempos pouco ante-
riores ao do abandono da Mazagão marroquina, foi transportado pelos imigrados no Pará
e enformou as manifestações culturais que aí continuaram a manter e a vivificar na sua
pretensão de se manterem identitariamente como “moradores da extinta Mazagão”.
Não será abusivo, de certo, fazer uma ligação com o que se passa actualmente na
festa de São Tiago, em Mazagão Velho, em que a relação com a África, em termos de
vocabulário e de encenação expressiva, está presente na alusão àquele continente como
pertença originária – quer de cristãos e de mouros, que se confrontam, quer ainda na
equivalência entre “continente africano” e “continente marroquino”. É verdade que
no século XX o espectro populacional, social e cultural, é bem diferente, mas foi ele
que herdou e moldou em contexto diferenciado, entre outros, o património trazido
pelos portugueses da Mazagão marroquina, constituindo, com ele, outras formaliza-
ções culturais, transmitidas para o, e pelo “senso comum”.
Mas no contexto da constituição dessas formas de discurso, não aparecem “indí-
cios” que se assemelham aos dos antigos textos volantes setecentistas?

“Desde a conquista das terras africanas, os lusitanos, fervorosos católicos, tentaram obrigar
os muçulmanos a se tornarem cristãos e aceitar a fé em Cristo e o batismo da sua religião”

Não se trata, agora, de um texto setecentista, mas sim do folheto distribuído pela
Prefeitura Municipal de Mazagão, relativo à Festa de São Tiago, realizada em Mazagão
Velho, entre 16 e 28 de Julho de 2004 95.
E outros indícios afloram do passado, permitindo entender determinados elemen-
tos estruturantes da actual festa de São Tiago em Mazagão Velho.
Neste âmbito, uma das fontes mais interessantes é a Relação do Grande Combate,
e fatal peleja, que agora proximamente tiverão os Soldados, e Cavalleiros da Praça de
Mazagão, com os Mouros de Azamor e Mequinez, de 1752. Segundo o seu autor – o
assistente Simão Correia de Mesquita – no contexto da batalha, diziam os comandan-
tes da tropa a cavalo, para incitarem os militares cristãos: “Viva a Fé de Christo. San-
tiago, cavaleiros fortes...”.

95
“Festa de São Tiago. Mazagão Velho. 16 a 28 de Julho de 2004”. Realização da Prefeitura Municipal de Mazagão com o apoio
do Governo do Estado do Amapá.

Castelos a Bombordo - FINALx.indd 142 27-03-2013 16:57:20


MARROCOS A BOMBORDO E A ESTIBORDO • 143

Portanto, a alusão a São Tiago como santo cavaleiro que auxilia os cristãos está
presente na Mazagão marroquina, como vai estar na do Pará. Mas a verdadeira pre-
ciosidade desta fonte é a descrição da festa da vitória, realizada dentro da praça.
Refere o autor que os “marciais” vencedores eram homenageados ao som de “caixas”
– instrumento musical ainda hoje utilizado como referente em Mazagão Velho – desfilando
até à Igreja Matriz da Mazagão marroquina, que tinha “Orago, e Padroeira a N.S. da
Assumpção”. Nessa igreja cantou-se o “Te Deum laudamos”, enquanto repicavam os sinos,
e lá fora se ouviam os toques das caixas e as descargas de artilharia – cena que nos nosso
dias é repetida, com bastante estrépito e assiduidade, em Mazagão Velho. Os vencedores
mazaganistas são mais uma vez designados, triunfalmente, de “Africanos Catholicos”96.
Como foi referido acima, guarda-se no Arquivo Público do Pará uma “Notícia da
Festividade” realizada em Mazagão do Pará, durante oito dias, aquando da aclamação
de D. Maria I como rainha de Portugal, em 1777. Já verificámos também, anterior-
mente, que a grandeza das festividades não só matiza as queixas dos mazaganistas sobre
a sua geral pobreza, como revela o júbilo pela ascensão de uma nova soberana que
sustentava uma política oposta à do seu antecessor, e a qual por isso mesmo preten-
diam influenciar para migrarem para outras paragens mais apetecíveis.
As festividades começaram no dia 16 de Novembro de 1777 com uma missa solene
mandada cantar pelo Senado da Câmara, sendo ordenado também um “Te Deum”
durante a noite. No sábado, dia 22, foi organizado um espectacular cortejo, a gosto
clássico. Acenderam-se as luminárias e surgiu na praça um “vistoso carro triunfante”
de 20 figuras de meninos que cantavam, acompanhados de orquestras e “dez mascaras
de dançarinos que formavão hua bem vistosa contradança”. No meio do carro, um
Máscara recitava vários epílogos e Obras Poéticas e à sua frente desfilavam duas alas
de máscaras com suas alabardas, além de um anjo a cavalo.
As marchas, danças, cantos e outras práticas eram conduzidos não só até à porta
do comandante, mas também de todos os oficias. Depois surgiram uma nau de guerra
e um corsário que se encontraram com um grande chavalo de mouros, o qual, após
vistoso combate, se rendeu.
A partir de domingo, dia 23, foram encenadas as óperas “Demonfonte em Trácia”,
“Dido desprezada”, “Destruição de Cartago”, Eneias em Getulia”, e “Ataxerxes”97.
Se bem que não exista ainda um estudo consagrado especificamente ao assunto,
sabemos que estas festas, moldadas ao gosto clássico, e adaptadas à ambiência marcial

96
BNFG, HG 9786/3 P. Editado em Lisboa, na Officina de Manuel Soares, p. 10.
97
Vide João Palma Muniz, art. cit., pp. 422-424. Baseia-se na “Noticia da festividade que se celebrou na Villa de Mazagão nas
festas Reaes, em aplauso da Aclamação da Rainha Nossa Senhora e Desposorios do Sereníssimo Príncipe Nosso Senhor”, que
acompanha a carta de 30 de Novembro de 1770, de Izidoro Cabral de Mesquita ao governador capitão-general do Pará, in
Arquivo Público do Pará.

Castelos a Bombordo - FINALx.indd 143 27-03-2013 16:57:20


144 • CASTELOS A BOMBORDO

genérica do Império e também à idiossincrasia de cada local, eram comuns nas várias
cidades e vilas coloniais quando se verificava uma aclamação régia 98. O gosto pelas
Alegorias e outras figuras de estilo cénicas fazem parte daquilo que Fernando Bouza
Álvarez designa de “memória visual dos afectos na Política Barroca” e que “descia”,
estrategicamente, a partir das cortes reinantes, com o exemplo retórico mais expres-
sivo nas festas de casamento régias 99.
Por outro lado ainda, na festividade aqui descrita, o combate entre cristãos e mou-
ros é naval, e não cavaleiresco, remetendo num contexto popular, se fosse possível,
mais para as “Cheganças de Mouros”, do que para as encenações de “Cristãos e Mou-
ros”, que estão relacionadas com o combate em terra 100.
Mas até que ponto este repositório popular do tema das lutas entre cristãos e mou-
ros (marítimas ou terrestres) não se infiltrou nas manifestações trazidas pelos colonos-
-guerreiros da Mazagão marroquina, em que imperava a estética barroca, mas em que
o determinismo narrativo era singularmente o mesmo: a derrota física, e sobretudo
espiritual, do mouro, que assim realçava a invulnerabilidade e positividade da crença
cristã?
Na igreja actual, de Mazagão Velho, fundada em 1935, pontificam os santos guer-
reiros São Tiago e São Jorge, que “ganham vida” na grande festividade da terra, em
honra do primeiro, quando dois homens especialmente escolhidos “os encarnam”. No
entanto, segundo os ecos da narração setecentista na Mazagão primordial, o nome de
São Tiago era apenas evocado como “grito de combate”. Era em honra de Nossa
Senhora da Assunção que os “cavaleiros vencedores” desfilavam diante da antiga matriz.
E assim sucederia enquanto a igreja do mesmo nome continuava de pé, em Vila Nova
de Mazagão do Pará, embora aqui os cavaleiros só tivessem amargas reminiscências
das suas antigas ocupações, agora que o poder régio pretendia fazer deles colonos
exemplares. Aliás, não se designava a freguesia de “Nossa Senhora da (de) Assunção”?101
Parece-nos, pois, que houve uma mudança de sentido nos ponteiros do relógio, no
processo evolutivo de Mazagão Velho. O abandono da velha matriz de Nossa Senhora
da Assunção até se fazer dela um “vestígio arqueológico” de sensacional descoberta,

98
Vide, por exemplo, as festas verificadas em Cochim, aquando da aclamação de D. João IV, com alguns elementos muito semel-
hantes aos das festa de Mazagão, in Biblioteca Pública de Évora, cod. CXVI/1-23, Augostinho de Almeida Gato, Triunfos festivaes
da insigne e nobre Cidade de Santa Cruz de Cochim, circa 1644. Referência in José Alberto Rodrigues da Silva Tavim, Judeus e
cristãos-novos de Cochim. História e Memória (1500-1662), Braga, Edições APPACDM Distrital de Braga, 2003, p. 155.
99
Cf. Ângela Barreto Xavier, Pedro Cardim e Fernando Bouza Álvarez, Festas que se fizeram pelo casamento do rei D. Afonso VI,
Lisboa, Quetzal Editores, 1996, p. 7.
100
Vide, entre outros, Mário de Andrade, Danças Dramáticas do Brasil, Belo Horizonte, Brasília, Editora Itatiaia Ltda., T. I,
1982, cap. II; Luís da Câmara Cascudo, Dicionário do Folclore Brasileiro, São Paulo, Editora Global, 2000, pp. 129-130 e 166;
e Beatriz G. Dantas, Chegança, Cadernos de Folclore 14, Rio de Janeiro, Ministério da Educação e Cultura – Departamento de
Assuntos Culturais, Fundação Nacional de Arte, s.d.
101
Vide notas 21 e 40.

Castelos a Bombordo - FINALx.indd 144 27-03-2013 16:57:20


MARROCOS A BOMBORDO E A ESTIBORDO • 145

e a consagração do culto aos santos guerreiros pela população remanescente, revela a


constituição de formas identitárias bem diferenciadas.

A FESTA, HOJE

2004 © Maria Cardeira da Silva

Para analisar a festa de S. Tiago seria preciso procurar as raízes históricas de dife-
rentes performances em vigôr (eventualmente reactivadas pelos mesmos processos
contemporâneos de revitalização tão bem descritos por Boissevain102 e outros para
diversos contextos) hoje no Brasil. Diversos autores o têm ensaiado, sem almejarem
um sucesso total, para outras performances que, em diversos locais do país, conjugam
elementos das cavalhadas (lutas equestres encenando batalhas), cheganças, (auto popu-
lar, de assunto guerreiro, onde uma nau cristã é assaltada pelos mouros que acabam
por ser vencidos e batizados), marujadas, mouriscadas e outras celebrações. Ater-nos-
-emos aqui à narrativa e ao elemento dramático central – o da simulação da luta entre
mouros e cristãos – para entender como ele é importante para a construção de uma
imagem comunitária conveniente.
Na verdade existe um conjunto suficientemente diversificado de performances que recor-
rem à luta entre mouros e cristãos como elemento central, mas que se fragmenta e recompõe
em configurações que aqui não pretendemos resumir, recorrendo, algumas delas ao formato

102
Jeremy Boissevain, Revitalizing European Rituals. London, Routledge, 1992.

Castelos a Bombordo - FINALx.indd 145 27-03-2013 16:57:20


146 • CASTELOS A BOMBORDO

carolíngeo103. No Brasil, onde Luis da Câmara Cascudo104 refere desconhecer registos ante-
riores ao século XVIII, encontramos notícia de variantes diversificadas que, entretanto, num
percurso igualmente difícil de rastrear, se deixaram embeber e contaminar por outras práti-
cas performativas, consoante os contextos onde se foram desenvolvendo. Está por fazer o
inventário completo dessas práticas em cuja importância já Jaime de Cortesão insistia105.
O caso da festa de Santiago em Mazagão Velho, afigurou-se-nos, contudo, prome-
ter características e manipulações particulares, na medida em que, no seu trajecto de
produção, incorpora elementos históricos que lhe permitem melhor legitimar uma nova
historicidade: nomeadamente o da triangularidade étnica da sua migração Portugal /
Marrocos / Portugal /Brasil. Por isso, neste caso o confronto entre as fontes históricas
e a análise antropológica ainda se nos apresentou mais pertinente do que em outros
contextos. Por outro lado, a confirmação arqueológica dessa historicidade – o facto de
uma equipa de arqueólogos fortemente mediatizada liderada por Marcos Albuquerque,
da Universidade Federal de Pernambuco, se encontrar em campo – reforça ainda o
“positivismo” irrecusável das origens da comunidade e da festa. Tudo isto faz com que
as fronteiras entre o saber erudito ou académico sejam fluidas e concorram, concomi-
tantemente, na mesma direcção: a de dar sentido e profundidade à comunidade local.
Não cabe aqui fazer um relato detalhado da festa. Ater-nos-emos, por isso, tam-
bém, aos momentos estruturantes do seu calendário106.
Os festejos iniciam-se no dia 16 de Julho, altura em que são nomeados os festeiros,
com novenas e procissões com círios, acompanhadas, desde logo, com actividades de
lazer como leilões e bingos e mergulhos no rio.
No dia 24 à noite há uma novena mais participada e o dia termina com o baile de
máscaras, recriação de um baile de máscaras organizado pelos mouros para celebrar
uma primeira vitória sobre os cristãos. Nesta recriação, as mulheres não podem par-
ticipar107, o que introduz na disposição dos figurantes para a festa, considerações
(inversões) também de género, relativamente à comunidade.
É no dia 25 que se desenrola a maior parte da encenação, intercalando batuques com
registos de música popular vária (corais religiosos, música “pimba”), perante a crítica da
contaminação da tradição, por parte de alguns e a narração dos acontecimentos, encena-

103
Ver, entre outros, Mário de Andrade, op.cit.; István Jacsó e Iris Kantor (org.) Festa. Cultura e Sociabilidade na América Portu-
guesa. S. Paulo, Hucitec-Edusp, 2001, 2 vol; Jerusa Pires Ferreira, “Um Rei a Resmas: Carlos Magno e a América” in Euro-América:
Uma realidade Comum?. Comissão Nacional Folclore/ BECC/UNESCO. Rio de Janeiro, Ed. Tempo Brasileiro, 1996.
104
Luís da Câmara Cascudo, Dicionário...
105
Ver Nunes Pereira, O Sahiré e o Marabaixo. Recife, Fundação Joaquim Nabuco/ Editora Massangana, 1989, p.114.
106
A classificação daquilo que é aqui considerado “estruturante” baseou-se na observação directa, na percepção dos informantes
recolhida através de entrevistas abertas e na análise do material de divulgação da festa com a qual confrontámos os informantes.
O calendário corresponde ao observado no ano de 2004.
107
Embora não o tivéssemos podido observar foi-nos relatado que, pelo menos este ano, muitas mulheres tentaram imiscuir-se
no baile, em registo de desafio, parodiando o comportamento masculino travestido.

Castelos a Bombordo - FINALx.indd 146 27-03-2013 16:57:23


MARROCOS A BOMBORDO E A ESTIBORDO • 147

dos por outros. Este ano, depois de muitos em que assim foi108, coube ainda ao senhor
Vává – Washington Elias dos Santos de nome completo, um ancião de tez e cabelos bran-
cos que se diz descendente de turcos indicando com isso a sua origem síria109 – o honorá-
vel cargo de narrador. Mas o senhor Vává, pessoa social e politicamente influente, passa
agora o testemunho a membros da comunidade mais jovens (entre as quais Eliana, sua
sobrinha professora em Macapá) e, também de outra côr. A emergência social de uma classe
negra – de cuja côr parece ser a maioria da população local – educada e com eventual
ambição social, traz à ribalta jovens como José Hosana, prometido sucessor de Vává110.

A imagem de S. Jorge. 2004 © Maria Cardeira da Silva

Os festeiros – eleitos pela comunidade e exibindo o prestígio social que isso tam-
bém lhes confere 111 – saiem da nova capela (no outro extremo do terreiro fronteiriço

108
Também Laurent Vidal, na descrição que faz da festa de 2003 em Mazagão. La Ville que traversa l’Atlantique. Du Maroc à
l’Amazonie (1769-1783). Paris, Flammarion, 2005, menciona o Seu Vává, “historiador local”.
109
De facto o campo semantico do termo mouro é, nas apropriações comuns brasileiras, ainda mais abrangente do que em Portugal.
110
José apresenta-se como pedagogo e exibe as qualidades e eloquência dos historiadores locais. É irmão de Verónica, “estudante
de jornalismo, artista e professora”, cantora e exuberante defensora dos valores negros e das mulheres, casada com Hermano
Benedito de Araújo que se apresenta como um índio (o fenotipo confirma) de genealogia perdida e é responsável pelo património
histórico da Fortaleza de S. José de Macapá. Segundo Verónica, Hermano tinha em preparação uma obra relativa a Mazagão a
que chamaria Memória.
111
A festa serve também de montra social, exibindo-se e celebrando-se genealogias e personagens que a capitalizam. Diferentes
autores demonstraram já que, independentemente da especificidade das suas origens e das variantes performativas que hoje assumem,
as cavalhadas foram, historicamente, manifestações de elite: vide José Ramos Tinhorão, As Festas no Brasil Colonial. S. Paulo, Edi-
tora 34; Niomar de Sousa Pereira Cavalhadas no Brasil: de cortejo a cavalo a lutas de mouros e cristãos. São Paulo, Escola de Fol-
clore, 1983; Alceu Maynard Araújo. Folclore Nacional: festas, bailados, mitos e lendas. São Paulo, Martins Fontes, 2004; Théo
Brandão, Cavalhadas de Alagoas. Cadernos de Folclore n.º 24. Rio de Janeiro, MEC/ FUNARTE, 1978; Carlos Rodrigues Brandão.
Cavalhadas de Pirenópolis: um estudo sobre representações de mouros e cristãos em Goiás. São Paulo, Oriente, 1974. Este último
autor acrescenta a esse carácter elitista da festa a sua função bourdieusiana de reprodução simbólica do capital social.

Castelos a Bombordo - FINALx.indd 147 27-03-2013 16:57:23


148 • CASTELOS A BOMBORDO

ao local da antiga igreja matriz) para a actual Igreja, frente ao rio, caiada para o efeito,
personificando e carregando as imagens de Santiago e de S. Jorge, de particular devo-
ção dos negros.
Os elementos seguintes do argumento incluem a batalha equestre – cavalhada –
entre mouros e cristãos, as simulações de aproximação e tentativas de envenamento
por parte dos mouros, a devolução dos presentes enevenenados, pelos cristãos, a morte
do rei Caldeira, depois substituído pelo menino Caldeirinha, e a vitória final – com a
morte heróica do Atalaia – dos cristãos sobre os mouros. Outros episódios integram,
segundo relatos, a tomada de mescal no barraco do Santo e um momento presenseado
da dança vominé – traços que alguns entrevistados atribuem à incorporação de ele-
mentos indígenas – celebrando a vitória final dos cristãos.

O chefe dos ‘cristão’. 2004 © Maria Cardeira da Silva

No dia 28, repete-se a encenação tendo agora como figurantes as crianças, vestidas,
também elas, de vermelho ou branco, conforme representam mouros ou cristãos. Ques-
tionadas as crianças sobre se preferiam ir de mouros ou de cristãos a resposta maiori-
tária foi a de que preferiam ir de cristão para não serem perseguidas pelo rei dos
mouros, de actuação mais aguerrida. Por vezes, contaram os que vão de mouros, ves-
tiam as capas ao contrário para assim não ser reconhecida sua hoste pela côr da veste.
Na verdade, o que parece mais interessante aqui é que, apesar do elemento estru-
turante da festa ser a luta entre cristãos e mouros (e de ser esse o elemento ao qual
se vai buscar a profundidade histórica da comunidade), não é tanto cada um dos
polos dessa oposição que conta (não é tão importante assim ir de mouro ou de cris-

Castelos a Bombordo - FINALx.indd 148 27-03-2013 16:57:25


MARROCOS A BOMBORDO E A ESTIBORDO • 149

tão na festa 112): o que importa é a encenação da oposição em si, e a possibilidade de


incorporação, nessa encenação, de elementos locais que, ao serem integrados na
recriação desse momento central historicizado, ganham também legitimidade por
contágio.

A imagem de S. Jorge. 2004 © Maria Cardeira da Silva

Os elementos materiais da festa e outros, – as poucas casas coloniais, as urnas das


antigas familias coloniais que se dizem estar na igreja, algumas imagens, as relíquias
– como a coroa do divino, hoje propriedade de familias negras (sem que tenha sido
possível apurar o trajecto que as colocou ali113) – são, também elas, conferidoras de
legitimidade e ancoramento histórico que constituem um suporte sólido que irradia
legitimação e autenticidade e que, por isso, permite a fácil articulação com elementos
e leituras mais recentes da festa.
É isso, que possibilita, sem que o escandalo se instale, que o Centro de Cultura
Negra refira na sua página de internet que foram os negros que se estabeleceram em
Mazagão Velho que implantaram a Festa de São Tiago. Isso, e o facto de, como tantas
outras comunidades de população maioritariamente negra no Brasil, alguns mazaga-
nezes tenham empreendido no sentido de requerer a classificação de quilombo para a

112
Céline Spinelli, da UFSM refere, em artigo não publicado “A encenação da cavalhada e suas implicações socioculturais” sobre
as cavalhadas de Caçapava do Sul, no Rio Grande do Sul, a mesma indiferença relativamente à hoste que se integra. Em comu-
nicação verbal atestou, no entanto, a frequente transmissão genealógica dessa incorporação.
113
Conseguimos apenas concluir que a antiga proprietária se havia convertido à Igreja Evangelista e por isso a corôa havido
sido transferida para a família onde agora se encontra. Isso parece confirmar o adiantado por Vidal in op. cit. p. 247 e nota 53,
p. 293.

Castelos a Bombordo - FINALx.indd 149 27-03-2013 16:57:27


150 • CASTELOS A BOMBORDO

sua comunidade, procurando o empoderamento e as vantagens sociais e económicas


que esse estatuto confere114.
O percurso historificado de produção da festa permite situar – e celebrar – a sua
origem, e a da comunidade, em Marrocos. Ao fazê-lo confere uma identidade diaspó-
rica comum a todos os seus membros, independentemente das apropriações diversifi-
cadas que cada um deles faz das suas origens, vendo os negros reforçada a sua condição
de africanidade que não hesitam em capitalizar.
Passa-se, em Mazagão, algo de muito semelhante ao que David M. Guss115 descreve
para o Tamunangue na Venezuela – uma encenação também das lutas com mouros e
cristãos, onde o personagem central é Santo António. Na verdade, a festa de Santiago
(que, como vimos, é também, de S. Jorge) tal como o Tamunangue, reúne o três ele-
mentos primordiais da síntese da americanidade: o indígena, o africano e o europeu.
As danças e as pessoas estão hoje misturadas numa expressão perfeita da democracia
racial, mas a sua associação com a tradição ibérica de mouros e cristãos deixa claro
que ela foi forjada na guerra e na conquista116.
É, ainda, essa síntese que a torna perfeita para emblematizar a comunidade e, ao
mesmo tempo, veicular uma retórica política conveniente. Assim a festa é, ao mesmo
tempo, um belíssimo palco montado para a propaganda política.
As retóricas da narração da festa são reproduzidas pelas intervenções oficiais e
ganham, como a visão portuguesa da revista Pública, contornos luso-tropicalistas117.
De facto, e embora isso careça de investigação aprofundada, a imagem pacificada de
um passado aglutinador de diferenças raciais, parece ser hoje o que melhor serve a
maioria da comunidade local e das entidades oficiais.
A mesma imagem de um passado domesticado começa a ser rentabilizada turisti-
camente numa zona que, ao contrário de muitas outras no Brasil, carece de infraes-
trutras turísticas. É nessa perspectiva que desde 1993, o Departamento de Turismo de
Macapá organiza, por ocasião da festa, uma Caminhada eco turística religiosa. Isto

114
O facto, referido por Vidal (op. cit. p. 247) de a festa que celebrava a abolição da escravatura ter sido suprimida em 1985
levanta questões importantes a explorar: poder-se-á pensar numa eventual reactivação da festa de Santiago (ver adiante) como
uma nova forma de reinvidicação e empoderamento comunitário através do princípio da negritude?
“Moros y Cristianos y Mujeres e Indios: Tamunangue y las fronteras de la etnicidad” in Revista de Investigaciones Folclóricas,
115

2000, Vol. 15, pp. 9-14


116
Perdido nesta imagem mitificada terá ficado o facto de a missionização – certamente responsável pela introdução da temáti-
ca das lutas entre mouros e cristãos no Brasil (ver, entre outros, Niomar Pereira op. cit. pp.21-22 e José Rivair Macedo “Mouros
e cristãos: a ritualização da conquista no velho e no novo mundo”. In Neves Alves (org.). Brasil 2000 – Quinhentos anos do
processo colonizatório: continuidades e rupturas. Rio Grande: FURG, 2000, pp. 9-28) – ter reproduzido aqui muitas das tácticas
da Reconquista. Ver, entre outros, Mercedes Garcia-Arenal “Moriscos e Indios, Para un Estudio Comparado de Métodos de
Conquista y Evangelizacíon” in Chronica Nova, 20 (1992) pp. 153-175.
117
José Hosana, procurando, mais uma vez legitimidade académica nas escavações do Prof. Marcos Albuquerque adiantava, no
intervalo da narração dos episódios da festa, que qualquer que seja a origem das ossadas agora descobertas no antigo cemitério
– portuguesas, marroquinas ou outra – elas comprovarão sempre a coexistência de diferentes grupos em Mazagão, facto que
explica o vigôr cultural da comunidade. Verónica comentava em entrevista: “os portugueses chegaram e somaram connosco”.

Castelos a Bombordo - FINALx.indd 150 27-03-2013 16:57:29


MARROCOS A BOMBORDO E A ESTIBORDO • 151

independentemente de o facto da Igreja se encontrar relativamente ausente dos feste-


jos, recusando o caracter alegadamente pagão de muitas das suas manifestações118.
Ao mesmo tempo, a projecção desse passado no presente permite imaginar que o
que se vive ali é simetricamente vivido e encenado igualmente ainda em Portugal e em
Marrocos. Os produtores de mais do que um filme documentário sobre a festa em
início de rodagem – para além dos que faziam a cobertura da festa para a televisão –
pouco se questionavam a respeito da permanencia de sobrevivências simétricas nos
outros locais do périplo da festa que esperavam encontrar em AlJadida e em Lisboa.
A triangularidade da circulação da festa não só tem acrescido o seu carácter atractivo
para forasteiros (num contexto global em que a miscigenação ganha valor estético não
é difícil encontrar, curiosos, académicos, artistas ou realizadores de cinema) como
parece começar a mobilizar residentes mazaganezes para uma espécie de turismo de
diáspora ou de raízes119 que tem como principal destino AlJadida, antiga Mazagão
marroquina. Tão viva parece a memória celebrada pela festa que impele a diáspora à
peregrinação às origens.
E, no entanto, face a essa aparente pujança, nada garante que sempre tenha sido
assim. Como vimos, poucos registos, para além da festa de aclamação de D. Maria I
como rainha de Portugal, em 1777120, testemunham a existência de semelhantes cele-
brações. Nenhum as refere ao longo do século XIX e, segundo Vidal, tudo leva a crer
que elas não reaparecerão se não com a criação de Mazaganópolis em 1915121. Mais
tarde, num dos poucos registos etnográficos que encontramos da festa, Nunes Pereira
diz-nos em 1949: “... obtivemos dos antigos moradores de Mazagão Velho informa-
ções bastante fragmentária (...) com a decadência económica de Mazagão Velho enten-
deram os devotos recorrer a uma adaptação ou modificação da tradição, valendo-se
de crianças que representavam os santos, os cavaleiros e os mouros dos episódios tea-
trais da cavalhada”122. Embora o seu testemunho seja hoje contestado por académicos
que o rejeitam pelo seu colaboracionismo com um regime que utilizou o folclorismo
como forma de manipulação identitária, devemos colocar também a hipótese de estar-
mos perante uma reactivação relativamente recente da festa, que terá encontrado na

118
Laurent Vidal, op. cit. p. 236, refere o comentário do então pároco Enrico Bertazzoli ao evitar permanecer em Mazagão no
período das festas, comentando: “Tudo isso é um pouco pagão” (tradução nossa). Maria do Socorro dos Santos Oliveira, em
“Religiosidade Popular em comunidades estuarinas amazônicas: um estudo prelimiminar do Marabaixo no Macapá”, Scripta
Nova. Revista eletronica de Geographia e Ciencias Sociales, Univ. De Barcelona, n.º 45 (49), 1 de Agosto de 1999 (http://www.
ub.e/geocrit/sn-45-49.htm) também reflete sobre a demissão da Igreja nas manifestações de religiosiade popular da região.
119
Ver Edward Bruner, “Tourism in Ghana. The Representation of Slavery and the Return of the Black Diaspora”. American
Anthropologist 98 (2) pp. 290-304, 1996. Embora este proto-turismo seja ainda eminentemente académico, será interessante
seguir a sua evolução.
Palma Muniz, art. cit. p. 421, refere também a realização de uma festa/encenação de combate naval por altura do nascimento
120

do príncipe D. Pedro.
121
Vidal, op. cit. p. 249.
122
Nunes Pereira, op. cit, pp. 113-114.

Castelos a Bombordo - FINALx.indd 151 27-03-2013 16:57:29


152 • CASTELOS A BOMBORDO

criação do Estado de Amapá, em 1988, um clima político favorável ao seu desenvol-


vimento. Disso não nos deram, no entanto, conta a atmosfera nem os nossos infor-
mantes que, no curto trabalho de campo, insistiram na sua profundidade e continuidade
histórica.
Seja como fôr, mais do que uma invenção do passado, estamos perante uma arti-
culação do presente da comunidade em torno de eixos entendidos, hoje, como seguros
para o seu ancoramento; eixos que, neste caso e neste momento, permitem projectar,
de forma satisfatória, a diversidade étnica e a oposição política no passado e encenar
a dificuldade conquistada da sua resolução.
Se é verdade que em muitos processos de reactivação ou revificação ritual contem-
porânea a cultura é catapultada para a ribalta, camuflando as tensões sociais dos bas-
tidores, as lutas entre cristãos e mouros, dada a sua difusão e persistência parecem
especialmente eficazes para este tipo de ancoramento e argumentação identitária. Só
um estudo comparativo pode responder porquê. O caso da festa de Santiago é apenas
uma variante, que merece estudo mais aprofundado.

Castelos a Bombordo - FINALx.indd 152 27-03-2013 16:57:29


MAURITÂNIA A BOMBORDO

Castelos a Bombordo - FINALx.indd 153 27-03-2013 16:57:29


Castelos a Bombordo - FINALx.indd 154 27-03-2013 16:57:29
PATRIMÓNIO, MEMÓRIA, ESTADO
Nota sobre o património mauritano e os seus usos

ABDEL WEDOUD OULD CHEIKH

Queimar os livros e construir fortificações são a tarefa comum


dos príncipes.
J. L. BORGES, A muralha e os livros

Algumas personalidades, nem sempre muito generosas, têm sugerido que o “kit
soberania” dos países recém independentes, particularmente em África, no início dos
anos 1960, incluiria, obrigatoriamente, para além da bandeira e do hino nacional, o
estádio de futebol. O museu nacional, se não fosse herdado directamente de qualquer
poder colonial, viria apenas mais tarde. A noção de património, também ela mobili-
zada na ocasião com vista a (re)tecer, (re)encontrar,(re)inventar uma memória colectiva
ou, simplesmente, para promover um capital turístico na era do “turismo cultural”
mais ou menos massificado, apenas se tornará visível em desenvolvimentos posterio-
res. A forma como o património é construído e utilizado não escapará, evidentemente,
aos conflitos de memórias, a combates classificatórios entre grupos tribais ou comu-
nidades etno-linguísticas rivais ou às pretensões dinásticas encobertas de alguns “pais
da nação” e outros putschistas desejosos de se eternizarem no poder nessas jovens
nações em vias de (des)construção. O país de que aqui se trata – a Mauritânia – sofreu,
pelo menos em parte, desse sindroma.
Na proposta que agora apresento gostaria de evocar alguns aspectos relativos ao
tratamento da questão do património neste jovem Estado, após uma breve evocação
das modalidades e circunstâncias através das quais a sua história oficial – uma vez que
património e história são indissociáveis – começou a ser constituída.

Derivas e incertezas comemorativas

A Mauritânia, nos seus contornos actuais, é um país com uma história de Estado
relativamente curta. É verdade que o país pertenceu, parcial ou totalmente, e durante
períodos mais ou menos alargados, a formações políticas regionais de dimensões sig-
nificativas, ainda que o funcionamento institucional dessas formações, no espaço mau-
ritano actual, continue a permanecer envolto em mistério. Os vestígios arqueológicos

Castelos a Bombordo - FINALx.indd 155 27-03-2013 16:57:30


156 • CASTELOS A BOMBORDO

(sítios de Tegdaoust/Awdaghust, Azugi e Kumbi Saleh, em particular) e documentais,


assim como os ecos perpetuados através das tradições orais, testemunham, efectiva-
mente, os laços existentes entre a actual Mauritânia e os seus habitantes e o ramo
meridional do movimento Almorávida durante a sua fase de expansão (segunda metade
do século XI), assim como com os impérios do Gana (IX-XII) e do Mali (XIII-XV). Sabe-
mos também que esse espaço – entre o século XVII e a instalação da colonização fran-
cesa (a partir de 1902) – foi palco de rivalidades e conflitos depredatórios entre as
formações proto-estatais (emiratos mouros e principados negro-africanos do vale do
rio Senegal) que administravam perifericamente populações arregimentadas segundo
princípios de sujeição tribal e territorial. O Islão sunita maliquita, veiculado prepon-
derantemente por grandes movimentos de confrarias (nomeadamente qâdiriyya, tijâ-
niyya), e o tipo de legalidade/legitimidade que sempre tendeu a instaurar, exercerá,
entretanto, uma forte influência, pelo menos a partir do século XVII, ao ponto de che-
gar a reivindicar, por vezes, a aplicação pública da sharî’a de Mohamed.
As questões identitárias exteriores à tribo, as interrogações relacionadas com uma
pertença comunitária mauritana que pudesse suportar algo semelhante a uma história
da Mauritânia, só começam a esboçar-se verdadeiramente com a ocupação francesa
da região (1902-1960). Isto porque foi a colonização que delimitou fronteiras e criou
a identidade administrativa da Mauritânia, erigida como colónia em 1920 e dotada
pela França do seu próprio governador, a par das outras possessões da África Ociden-
tal Francesa (AOF). E também porque será pela colonização, embora simultaneamente
contra ela, que se virá a desenvolver a preocupação em individualizar o território e a
sua história, constituindo-se o próprio período colonial como um momento desenca-
deador de numerosas mudanças.
É certo que existia já, pelo menos entre os letrados (mouros), a consciência de
uma unidade cultural do território politicamente fragmentado e, por assim dizer,
não administrado, onde viviam. Essa população atribuía a esse espaço, que ultrapas-
sava em muito as fronteiras setentrionais e orientais do actual território mauritano,
o nome de Bilâd al-Takrûr (“País do Takrûr”)1 ou, mais tarde, o de Bilâd Shinqît
(“País de Shinqît”, i.e de Chingueti)2, popularizado particularmente através da
antologia poética de Ahmad b. al-Amîn al-Shinqîti, al-Wasît fî tarâjim udabâ’ Shinqît
(Cairo, 1911). As comunidades negras da Mauritânia (Peul, Soninké e Wolof) ligavam-
-se, por seu turno, aos grupos políticos e culturais adjacentes às fronteiras sul do
actual Estado.

1
Sobre “Takrûr” que, nas fontes árabes, designa umas vezes um Estado vagamente situado na região do alto Senegal, e outras
o conjunto da África muçulmana sub-sahariana, ver Umar al-Naqqâr, “Takrûr, the history of a name”, Journal of African History,
10, 1967, 365-374.
2
Sobre “Shinqît”, ver mais abaixo, nota 22.

Castelos a Bombordo - FINALx.indd 156 27-03-2013 16:57:30


MAURITÂNIA A BOMBORDO • 157

Existia também o Islão e a umma muçulmana, principal referência em toda a área


de influência cultural de que aqui nos ocupamos. Mas, com as excepções da tentativa
abortada de Nâsir al-Dîn (m. 1673) e do movimento Torobbé (finais do século XVIII),
circunscrito ao Fouta Toro e sobretudo à margem esquerda do rio Senegal (que é hoje
em dia senegalesa) mais do que na margem direita (hoje em dia mauritana), a “nação
muçulmana” não ultrapassou significativamente, nessa “terra de insolência” (al-bilâd
al-sâ’iba), o estádio de um ideal religioso destinado sobretudo a alimentar controvér-
sias entre eruditos.3 Por seu turno, os emiratos mouros (Trarza, Brakna, Adrar, Tagant)
e os principados negros (Déniankobé, Waalo) dos confins meridionais da actual Mau-
ritânia, não produziram nada, à excepção de alguns magros anais e relatos de tradições
orais com uma visão relativamente desarticulada da sua própria história4.
São os administradores coloniais, obviamente determinados pelo seus objectivos
de controlo e submissão das “populações indígenas”, quem parece ter estado na ori-
gem do primeiro fluxo significativo de procura de uma história mauritana. A preocu-
pação com a conquista e gestão das populações conquistadas produziu os tableaux de
commandement5 que se desenvolveram em monografias regionais.6 Os eruditos locais
e os depositários das tradições orais foram então chamados a contribuir7, tendo essas
primeiras sínteses sido escritas a pedido dos administradores franceses.
A independência da Mauritânia (1960) foi acompanhada da implantação progres-
siva de um mercado oficial de história, ligado aos programas de ensino do novo Estado
independente e às leituras do passado que este visava promover. Uma história que,
diga-se de passagem, não havia sido ensinada como tal até essa data, nem nos curricula
dos estabelecimentos tradicionais (mahazra, pl. mahâzir), nem no início do ensino
público criado pelas autoridades coloniais.
Uma periodização sumária permite distinguir dois momentos no tratamento dessa his-
tória em construção da Mauritânia independente, que situo antes e depois do fim do regime
civil de Mokhtar Ould Daddah (deposto por um golpe de Estado militar em 1978).

3
Consagrei alguns desenvolvimentos a estes debates, Ould Cheikh, Nomadisme, islam et pouvoir politique dans la société
maure précoloniale, Paris, Thèse pour le Doctorat, Paris V, 1985, III, pp. 755-830.
4
Para as referências relativas a essa documentação pode consultar-se, Ould Cheikh, “Vous avez dit histoire?”, in Histoire de la
Mauritanie. Essais et synthèses, Nouakchott, LEHRI, 1998.
5
Era assim que se chamavam os registos de recenseamento dos grupos tribais, estabelecidos sobretudo com fins fiscais, e exis-
tentes em todas as circunscrições administrativas da colónia.
6
Penso em particular nos trabalhos de Basset, Hamet, Gaden, Marty, A. M. Bâ, Amilhat, Leriche, etc. Ver bibliografia da tese
citada na nota 3.
7
Vejam-se, especialmente, o texto de Bâba Wuld al-Shaikh Sidiyya sobre os Idaw’îsh e os Mashzûf, escrito a pedido do Capitão
Gerhardt (manuscrito, traduzido por H. T Norris, Saharan Myth and Saga, Oxford, Oxford Univ. Press, 1972, e editado por Izîd
Bîh b. Muhammad Mahmûd, Imâratâ Idaw’îsh wa Mashzûf, Nouakchott, Impr. Nle, 1992), a “Suite” de Muhammad Fâl Wuld
Bâba sobre os Maghâfira (manuscrito, editado por Ahmad Jamâl Wuld al-Hasan, al-Takmila fî târîkh al-Brâkna wa al-Trârza,
Tunis, Bait al-Hikma, 1986), ou ainda, Chroniques du Fouta, de Siré Abbas Soh (Paris, Leroux, 1913), reunidos a pedido do
Governador Gaden.

Castelos a Bombordo - FINALx.indd 157 27-03-2013 16:57:30


158 • CASTELOS A BOMBORDO

Numa Mauritânia imediatamente pós-colonial, que herdara um dispositivo político-


-administrativo que ainda a ligava à AOF e onde os sedentários negros do sul (mais
escolarizados do que os arabófonos) desempenhavam um papel importante, uma Mau-
ritânia que, ainda por cima, era reivindicada por Marrocos como parte integrante do
seu território8, as autoridades dificilmente teriam tido outra escolha que não a de
assumir a dupla pertença árabe e africana da jovem república. Essa era a época onde
se sublinhava com orgulho o papel da Mauritânia como “trait d’union” entre o Magrébe
e a África sub-sahariana.
A sua antiga pertença, pelo menos parcial, aos grandes sistemas políticos sudano-
-sahélianos medievais (Gana, Mali…) podia então ser linearmente evocada. Veja-se
como os estudos arqueológicos efectuados em Tegdaoust e, mais superficialmente, em
Koumbi Saleh, mostraram a extensão e importância dos sítios e identificaram o pri-
meiro, com certeza quase absoluta, com a célebre Awdaghust dos geógrafos árabes e
o segundo com a capital, ou uma das capitais, do Império do Gana.9 Os vestígios
arqueológicos dos primeiros passos saarianos dos Almorávidas tiveram também aqui
o início da sua investigação.10Evidentemente que o papel dos Almorávidas na história
da região até, e incluindo, a Península Ibérica, já era anteriormente exaltado, relem-
brando-se a sua origem “mauritana”.11 Nenhuma inibição de monta pesava então na
lembrança da sua origem berbere, ou sobre a participação, evocada por al-Bakri12, de
um contingente negro nesse movimento.
O tema federador da resistência à colonização, que inspirou desde logo os movi-
mentos anti-coloniais dos anos cinquenta (Association de la Jeunesse de Mauritanie, ou
o partido al-Nahda al-wataniyya,…) e que conhecerá uma popularidade crescente com
a vaga “gauchiste” e “terceiro-mundista” do início dos anos setenta (conhecido como
o movimento dos kâdihin), não estava então na ordem do dia aquando da primeira
síntese oficiosa – a obra é prefaciada por um membro do governo da jovem República
– sobre a história da Mauritânia, escrita por Geneviève Désiré-Vuillemin13. Nessa Con-
tribution à l’histoire de la Mauritanie, publicada em 1962 em Dakar, e dedicada, em
homenagem, ao avô da autora, brigadeiro na coluna Gouraud que conquistara o Adrar

8
Este foi um dos temas essenciais da diplomacia marroquina, entre os anos 1956-1969. O “Grande Marrocos”, que se estende-
ria até às margens do Níger e do Senegal, constituiu ao longo desse período uma ambição por parte do – muito influente – par-
tido de Allâl al-Fâsî, o Istiqlâl.
9
Sobre os resultados dessas escavações ver Ould Cheikh (1998).
Resumo parcial em Ould Cheikh & Saison, “Vie(s) et mort(s) d’al-Imâm al-Hadramî. Autour de la postérité saharienne du
10

mouvement almoravide. (XIe-XVIIe s.)”, Arabica, XXXIV, pp. 48-79, (1986).


11
Este movimento teve efectivamente o seu nascimento no que é hoje o espaço mauritano, no seio de agrupamentos tribais que
ainda existem (Lamtûna, Gdâla, Masûfa/Mashzûf, etc.), algures entre a foz do Senegal e a região de Adrar, onde se encontra a
estação arqueológica – mais importante para esse período – de Azûgi.
12
Al-Mughrib fî dhikr bilâd Ifrîqiyya wa al-Maghrib, texto árabe e tradução de Slane, Paris, Maisonneuve, 1964.
13
G. Désiré-Vuillemin, Contribution à l’histoire de la Mauritanie, Dakar, Librairie Clairafrique, 1962.

Castelos a Bombordo - FINALx.indd 158 27-03-2013 16:57:30


MAURITÂNIA A BOMBORDO • 159

em 1909, os “bons” são naturalmente os apoiantes das tropas francesas e os conspira-


dores e “dissidentes”, aqueles que se opõem com hostilidade à “pacificação”.
Com a guerra de Junho de 1967 entre Israel e os países árabes e com o reconheci-
mento da Mauritânia por esses mesmos países árabes no início dos anos setenta, assim
como com o fim do veto diplomático marroquino (1969), assistimos, no contexto de uma
crise ecológica sem precedentes, a um crescimento das correntes de pensamento do nacio-
nalismo pan-árabe. A guerra do Saara (1975-1979)14, que projecta a Mauritânia no
Magrábe, obriga-a a um recentramento setentrional, que não deixou de ter repercussões
na leitura das relações de força internas – particularmente “étnicas” – e sobre as suas anti-
gas fontes de legitimação. O ponto alto dessa evolução, marcada pela influência crescente
dos nacionalitarismos de cariz étnico, é visível nos tumultos raciais de 1989, seguidos,
menos de dois anos mais tarde, pela primeira guerra do Golfo (1991) que suscita um febril
sentimento pró-iraquiano na Mauritânia, pelo menos entre a população arabofona.15
Nas percepções oficiais e oficiosas da história mauritana, fruto desta evolução, as
componentes berberes e negro-africanos começam a esbater-se. A distante islamização
da sociedade mauritana, mesmo se ela foi, ao que parece, tão antiga entre populações
negras das margens do Senegal quanto entre a população que hoje fala hassaniia,
tende a não ser mais do que outro elemento imemorável da sua declarada arabidade.
Os Almorávidas, cuja história saariana não ultrapassará os cinquenta anos (1040-1087,
digamos), são invocados como os antepassados distantes do actual Estado mauritano.
Luta-se por sublinhar o seu papel na propagação militante da cultura árabe e islâmica,
escamoteando-se a origem berbere do movimento e o apoio recebido por parte dos
negros do Takrur.
Paralelamente a estes desenvolvimentos, que afectam e orientam o mercado oficial
da produção histórica, o crescimento do sistema educativo e a sua arabização,16 asso-
ciados a um fortíssimo êxodo rural e à urbanização, contribuíram para o desenvolvi-
mento da procura privada de história moldada pela busca e competição das origens.
A mobilidade geográfica motivada pela seca do início dos anos 1970 (a percentagem
de nómadas passa de 65% em 1965 para menos de 6% actualmente, enquanto Nou-
akchott, capital do país, vê a sua população passar durante o mesmo período, de cerca
de 8 000 habitantes para mais de 700 000…) é acompanhada por um desejo quase

14
Os acordos de Madrid (1975), assinados entre a Espanha, Marrocos e a Mauritânia, atribuem a este último país o terço meri-
dional da ex-colónia espanhola de Rio de Oro, sendo que o restante território é atribuído a Marrocos. Face à vitoriosa resistên-
cia da Frente Polisário, a Mauritânia é forçada a renunciar ao território que lhe estava afectado, e que é imediatamente ocupado
por Marrocos.
15
O Iraque foi o único país a apoiar abertamente a Mauritânia durante o período de alta tensão que a opôs ao Senegal, no segui-
mento do conflito étnico de 1989.
16
À data da independência (1969) pouco mais de 5% das crianças em idade escolar, eram efectivamente escolarizadas, numa estru-
tura escolar quase exclusivamente francófona e limitada ao ciclo primário. Actualmente a taxa oficial de escolaridade aproxima-se
dos 90%, e todos os níveis escolares, quase inteiramente arabizados, permitem uma progressão até ao ensino superior.

Castelos a Bombordo - FINALx.indd 159 27-03-2013 16:57:30


160 • CASTELOS A BOMBORDO

universal de mobilidade genealógica e estatutária. A busca privada de um património


memorial “de proximidade” é então concomitante com a procura de fontes colectivas
de enraizamento, no seio de um universo profundamente destabilizado – o patrimó-
nio, sabemo-lo, só se impõe como necessidade quando é ameaçado –, marcado por
um sentimento de urgência de revificação de solidariedades periclitantes, fortaleci-
mento de identidades ameaçadas, ressurreição de proximidades quebradas.
O sistema da mukâtaba17 tinha sido, durante o período colonial, um dos maiores
factores de manipulação do peso “político” dos grupos tribais e de doseamento da
influência dos seus chefes. Com o fim desse sistema, a progressiva perca de influência
administrativa desses mesmo chefes na Mauritânia independente (re)abria o jogo das
pretensões segmentárias, durante algum tempo interrompidas pelas nomeações da
administração colonial. Por outro lado, a sedentarização e urbanização de grupos que
se viram excluídos dos benefícios antes atribuídos a outros por via da sua maior e mais
antiga proximidade relativamente ao poder e suas instâncias, acabaram por alimentar
o desejo de mobilidade genealógica e estatutária que acabamos de referi e reactivaram
a tendência inevitavelmente explosiva inscrita na lógica da organização tribal.
Acrescente-se ainda que todo este quadro se inscreve sobre um pano de fundo
marcado pela deliquescência e pela legitimidade incerta das instituições estatais her-
dadas da colonização (inúmeros golpes de estado, corrupção crescente, desabamento
qualitativo do sistema escolar público e do valor dos seus diplomas, etc.). Compreende-
-se assim que a procura das origens e a busca de uma história não se orienta no sentido
de uma Gemeinschaft mauritana – com a qual, parece-nos, muito poucos se identifi-
cam (a não ser com a sua dimensão islâmica) –, mas sim no sentido das comunidades
de proximidade e das solidariedades supostamente mais eficazes que são a família, a
tribo e a etnia. Fazer a sua história, ou encomendar o fabrico da sua história – alguns
“artesãos”/genealogistas propõem este tipo de serviços – será, antes de mais, associar-
-se a uma “boa” genealogia, a um nasab arabo-muçulmano “sem mácula”, preferen-
cialmente ligado à descendência do Profeta ou de um dos seus companheiros.
Estas histórias “privadas” partilham com a história oficial, em vias de institucio-
nalização, um traço comum: a vontade de edificação. Procura-se, antes de mais, (re)
compor os pedaços de uma imagem exclusivamente positiva dos antepassados reivin-
dicados, censurando, se necessário, energicamente18, todas as apreciações susceptíveis

17
Era assim que era designado o registo administrativo de uma família ou de um grupo, no “livro” (ktâb) de recenseamento de
uma fracção ou de uma tribo. A administração podia também decidir conferir autonomia a um grupo recenseando-o à parte,
criando desta forma uma nova chefferie. Para além do seu significado em termos de autonomia ou de dependência, existe um
outro aspecto deste sistema de “recenseamento”, os dividendos fiscais: os chefes de unidade de recenseamento estavam implica-
dos na cobrança dos impostos do seu grupo, sobre o qual recebiam uma percentagem.
18
Alguns investigadores foram agredidos ou ameaçados pelos representantes tribais que se julgavam insuficientemente celebrados
nos seus trabalhos.

Castelos a Bombordo - FINALx.indd 160 27-03-2013 16:57:30


MAURITÂNIA A BOMBORDO • 161

de manchar a exemplaridade e impecabilidade do seu nobre cursus. O carácter forte-


mente autoritário dos regimes que se sucederam na Mauritânia após a independência,
e particularmente durante as últimas duas décadas de poder militar (1984-2005),
acompanhou a progressiva patrimonialização de todo o país, de uma forma que eu
qualificaria de “sultaniana”, em proveito do líder e da sua entourage. Isso contribuiu
para a sujeição da memória colectiva mauritana (oficial), e das escolhas patrimoniais
em redor das quais ela se articula, aos imperativos da celebração e comemoração do
poder instituído e das fontes que escolheu para a sua legitimação.
A vontade narcísica de concentrar à sua volta todos os valores simbólicos susceptíveis
de justificar o exercício do poder pelos seus detentores não é, obviamente, inédita. A par-
ticularidade que ela comporta na Mauritânia, devido à evolução que venho esboçando,
parece-me exprimir, contudo, uma idiossincrasia de cariz tipicamente local. Eu caracterizá-
-la-ia como um misto de tentação autocrática declarada, com uma quasi-ausência de
Estado. Uma associação híbrida entre a velha anarquia tribal trabalhada pelo modelo de
poder autoritário oriundo da cultura arabo-muçulmana (o modelo sultaniano) e o “Estado
importado”, enredado nas malhas de estruturas “tradicionais” (mal) decompostas. O tra-
tamento (fortemente marcado pela improvisação e por vezes, pela pura e simples incúria)
das questões ligadas à conservação e promoção do património nacional mauritano deve
ser visto à luz dessa natureza híbrida do poder, obviamente autoritário e, ao mesmo tempo,
quasi-inexistente. A enorme dependência mauritana da assistência técnica e financeira do
exterior – e o património, sabemo-lo, é muitas vezes tido como um “luxo” que custa caro
– justifica também, parcialmente, o carácter por vezes caótico das disposições e das medi-
das adoptadas no domínio das políticas patrimoniais.
Ilustrando esta proposta um tanto generalista gostaria agora de referir algumas das
intervenções mais significativas das autoridades mauritanas em matéria de património:
em primeiro lugar centrando-me no Museu Nacional e na sua evolução e, depois,
concentrando-me num ou dois projectos mais importantes nesse domínio, que teste-
munham o modo como as escolhas públicas locais e as contingências externas fizeram
sentir os seus efeitos no terreno aqui considerado.

Dos lugares da memória e de como os “inventar”

Até à véspera de obtenção da soberania internacional, a Mauritânia foi adminis-


trada a partir de uma capital exterior ao seu território: São Luís do Senegal. Apenas
em 1957, três anos antes da independência, foi tomada a decisão de transferir a capi-
tal política e administrativa do país para Nouakchott, então uma pequena aldeia de
poucas centenas de habitantes. Numa capital onde o primeiro conselho de ministros

Castelos a Bombordo - FINALx.indd 161 27-03-2013 16:57:30


162 • CASTELOS A BOMBORDO

se realizou debaixo de uma tenda, faltava construir tudo: equipamentos colectivos,


edifícios públicos, habitação, etc.
A construção de um museu não foi, nesse contexto, considerada particularmente
prioritária. Os modestos meios materiais e humanos de que dispunha a Mauritânia
aquando da independência faziam com que nesse domínio, como em muitos outros,
o recurso à ajuda estrangeira surgisse como a única via possível. Começaram por
estabelecer-se, então, contactos com a Suiça, os quais não viriam a ter nenhum resul-
tado. A tarefa de construir um museu nacional mauritano recai finalmente na Repú-
blica Popular da China. Esta foi uma das muitas dádivas feitas pela distante potência
asiática à pequena república saariana que havia “ousado” reconhecê-la, e mesmo mili-
tar decididamente em favor dos seus interesses nas Nações Unidas, isto depois do
“padrinho” francês ter levantado o tabu sobre esse reconhecimento, procedendo, ele
próprio, a um troca de embaixadores (1964) com a República Popular, à época ainda
fortemente ostracizada.
Concluído em 1972, o imponente edifício deveria também acolher o Ministério
da Cultura e a Biblioteca Nacional. O Museu Nacional foi inaugurado a 28 de Novem-
bro do mesmo ano, data do 12.º aniversário da independência da Mauritânia. Excep-
tuando a incorporação de pedras de alvenaria trazidas das pedreiras da região de Atar
para a fachada principal, o edifício não deve muito nem aos materiais, nem às concep-
ções arquitectónicas locais – que, em verdade se diga, são particularmente pobres em
monumentos de alguma dimensão. Edifício solenemente quadrangular, construído
sobre dois pisos de pé-direito elevado, a “Casa da Cultura”, como passará a ser pom-
posamente chamada, constitui, com os seus pórticos e altas colunas quadrangulares
que percorrem três das suas fachadas, uma terna síntese de arte monumental estalinista
com vagas revisitações da tradição chinesa. À excepção do acrescento lítico mauritano,
atrás mencionado, “tudo o resto”, escreveu a malograda Denise Robert19, “é deci-
didamente chinês: dos candelabros onde os globos são flores de lótus, aos motivos
esculpidos nos mármores brancos, verdes ou púrpura, dos delicados embutidos orien-
tais nos halls, aos biombos de sedas brilhantes que permitem modular o volume das
salas.” Os equipamentos eléctricos, as serralharias (de uma precisão assustadora,
exclusivamente chinesa, e com consequências fáceis de adivinhar em caso de perda de
uma chave…), a particular cor verde que observamos noutros equipamentos arquitec-
tónicos construídos em outros países africanos, são, igualmente, chineses. Claro que
o material expositivo, cedido com o museu é, também ele, chinês: grandes e altas vitri-

19
“Création, vie et mort d’un musée africain: le Musée national de Nouakchott”. Comunicação apresentada no congresso:
L’objet archéologique africain et son devenir, UNESCO & CNRS, Paris, 5-6 Novembro 1992. Ronéoté, pp.1-2. Arqueóloga,
membro da equipa de investigadores franceses que, sob a direcção de Jean Devisse, realizaram, durante vários anos, campanhas
de escavação nas principais estações arqueológicos mauritanos. Denise Robert foi também a primeira responsável pelo Museu
Nacional da Mauritânia, sob os auspícios da cooperação francesa no país.

Castelos a Bombordo - FINALx.indd 162 27-03-2013 16:57:30


MAURITÂNIA A BOMBORDO • 163

nas a três vidraças, cheias de reflexos; escaparates, estantes, vitrinas planas com pouca
ou nenhuma iluminação interna, tudo isto concorrendo para a impressão de imobili-
dade e solenidade que se desprende do conjunto da instalação museográfica assim
entregue ao recém-criado Estado Mauritano.
Montra oficial do país, oferecida à vista de chefes de Estado e a delegações estran-
geiras de maior importância, o Museu Nacional reduz-se, de facto, nos dois pisos que
o constituem, a fornecer uma leitura da pré-história e da arqueologia da Mauritânia,
e a apresentar uma paisagem sucinta da etnografia do país, essencialmente consagrada
à sociedade moura. A maioria dos objectos etnográficos em exposição provem da
colecção do Institut Français d’Afrique Noire (IFAN) de São Luís, que as autoridades
senegalesas, diligentemente, devolveram à Mauritânia, como parte do legado colonial
comum, acumulado pelos investigadores e administradores franceses ao tempo da
ocupação francesa. Quanto à parte pré-histórica e arqueológica do museu, ela foi ali-
mentada pelos resultados do trabalho dos investigadores franceses associados ao seu
estabelecimento, particularmente os membros da equipa de Jean Devisse.20 A transfe-
rência dessa equipa para Nouakchott em 1973 fornecerá ao Museu Nacional da Mau-
ritânia as competências e meios materiais (financiados pela França) que lhe permitirão
iniciar uma existência institucional. Apesar do interesse que o primeiro presidente da
Mauritânia, Mokhtar Ould Daddah, sempre manifestou pelo trabalho arqueológico
e museológico da equipa de Jean Devisse21, as autoridades mauritanas não tinham
recursos necessários para colocar ao serviço dessa montra memorial do país que se
começava a esboçar. O orçamento atribuído ao funcionamento desta instituição era
muito modesto, o que explica, em boa medida, por um lado o aspecto artificial do
aparato expositivo (prisioneiro da herança hierática chinesa já mencionada) e, por
outro, a progressiva degradação geral do conjunto museológico (edifícios, colecções,
materiais expositivos, etc.), sobretudo a partir do início da era do poder militar. Mas,
na verdade, com a chegada dos militares ao poder (1978) e num contexto em que o
apoio francês tende a interromper-se, não é apenas a escassez dos meios financeiros
atribuídos ao museu que comprometem o seu funcionamento. Será mesmo a indife-
rença para com a sua missão enquanto local de conservação que conduzirá, em pelo
menos duas ocasiões, a situações verdadeiramente catastróficas para a instituição. Em
1987, por ocasião de uma cimeira de chefes de Estado da CEDEAO (Comunidade
Económica dos Estados da África Ocidental) a ocorrer em Nouakchott, e sob a ordem
do chefe militar da altura, a totalidade das colecções expostas nas vitrinas do museu

20
Que desde o início dos anos sessenta dinamizava, a partir da Universidade de Dakar, campanhas anuais de escavação nos locais
antes mencionados: Tegdaoust e Koumbi Saleh.
21
Tal como testemunha o seu prefácio ao primeiro volume da série Tegdaoust, onde se apresentam os resultados dessas pesqui-
sas. Cf J. Devisse, D. & S. Robert (orgs.), Tegdaoust I, Paris, Arts et Métiers Graphiques, 1971.

Castelos a Bombordo - FINALx.indd 163 27-03-2013 16:57:31


164 • CASTELOS A BOMBORDO

foi retirada para transformar os espaços expositivos em salas de reunião. Decidida de


forma precipitada (sem serem consultados os responsáveis competentes) e realizada
apressadamente pelos empregados de manutenção desprovidos de qualquer compe-
tência em matéria de conservação e manuseamento dos materiais museográficos, o
armazenamento das colecções provocou grave danos tanto às peças quanto aos expo-
sitores. A operação consistiu na remoção “em bloco” dos armários com os seus con-
teúdos, sem que fosse tida em conta a fragilidade nem de uns nem de outros. Terminada
a reunião, a totalidade da colecção é apressadamente reposta, depois de um arranjo
sumário dos locais (o ar condicionado, casas de banho, etc., que haviam sido instala-
dos, voltam a ser retirados…), com o único objectivo de devolver ao espaço a sua
anterior configuração. Esta operação de retirada do material, e posterior reposição
sem qualquer atenção particular, repetiu-se um ano mais tarde, depois da administra-
ção mauritana reclamar à cooperação chinesa obras de manutenção na “Casa da Cul-
tura”. Os trabalhos são levados a cabo por uma equipa técnica (pedreiros, electricistas,
canalizadores, pintores, etc.) bastante indiferente ao conteúdo museográfico do edifí-
cio, sendo a manutenção, uma vez mais, confiada a uma mão-de-obra mauritana sem
qualquer competência específica neste domínio.
Mais tarde, o director da instituição (nomeado pouco depois de toda essa agitação)
porá em marcha alguns procedimentos, no sentido de tentar dar uma nova vida ao
museu. Ele solicitará os serviços da arqueóloga Denise Robert – que já supervisionara
a instalação inicial –, e da cooperação francesa que, desde o início, apadrinhara esta
iniciativa. Infelizmente, os serviços franceses, que haviam entretanto terminado o
financiamento às campanhas de escavação mantidas durante duas décadas, não mos-
traram qualquer empenho no auxílio à instituição agora moribunda. Este foi também
um período (1989), é um facto, em que as relações entre a ex-metrópole colonial e a
sua antiga colónia atravessaram um “arrefecimento” associado à crise étnica e frontei-
riça com o Senegal (país claramente mais importante para a França do que a Mauri-
tânia). Para além do mais, isto coincidiu com as mudanças de orientação no modus
operandi da cooperação francesa, cada vez mais decidida a evitar a presença prolon-
gada dos seus técnicos nos países apoiados.
A evolução “sultaniana” do poder político mauritano explica, em parte, a ligeireza
com a qual as colecções do Museu Nacional foram tratadas. A estabilização e perso-
nalização crescente do poder nas mãos do coronel Taya, a partir do golpe de Estado
de 12 de Dezembro de 1984; o apoio que este procura, e acabará por obter, junto do
Iraque de Saddam Hussain (num contexto de tensão étnica interna exacerbada, criada,
em boa medida, por ele próprio); e por fim, a vontade de virar a página associada a
Mokhtar Ould Daddah (imagem incómoda de “pai da nação” mauritana); constituem
factores que determinaram escolhas patrimoniais diferentes daquelas que precederam

Castelos a Bombordo - FINALx.indd 164 27-03-2013 16:57:31


MAURITÂNIA A BOMBORDO • 165

a chegada desse novo “homem forte”. A natureza exclusivamente “árabe” da Mauri-


tânia deveria ser afirmada, contrariando a vocação de trait d’union anteriormente
proclamada. As prioridades regionais deveriam ordenar-se em torno da biografia e das
origens geográficas do novo dirigente. Os temas patrimoniais essenciais deveriam
emergir e exibir definitivamente a marca do novo detentor do poder e da sua vocação
para a reescrita da história a partir do momento da sua própria chegada. Estes diversos
“imperativos”, que acompanharam a decadência orquestrada do Museu Nacional,
encontram-se, em certa medida, nas orientações dadas aos principais projectos em
matéria de património que a Mauritânia conheceu no decurso da era Taya.
Dois projectos fundamentais serão lançados durante este período, testemunhando
a já referida inflexão “sultaniana” ao mesmo tempo que evidenciam uma outra carac-
terística permanente das intervenções públicas neste domínio: a sua dependência face
à cooperação internacional. Trata-se, em primeiro lugar, do projecto de salvaguarda
das cidades antigas, iniciado em 1979, com o apoio da UNESCO; e em segundo, do
Projecto de Salvaguarda e de Valorização do Património Cultural Mauritano (PSVPCM),
concebido por especialistas do Banco Mundial (sobre uma pré-aprovação por parte
da mesma instituição) e iniciado entre 1999 e 2003.
Em 1979 a Mauritânia conhece um súbito contra-golpe de Estado, passando a
exercer-se a influência predominante de oficiais originários das regiões setentrionais
e orientais do país, ao invés do que acontecera no anterior regime civil que, durante
duas décadas, havia consagrado a hegemonia a grupos do Sudoeste mauritano e a
comunidades negro-africanas (igualmente bastante presentes no quadrante meridional
da Mauritânia). A este enquadramento regional, com os seus prolongamentos regio-
nalistas, juntar-se-á a vontade de demarcação face ao regime deposto. Era preciso
definir, se possível, uma nova base de suporte histórico e patrimonial para uma Mau-
ritânia que o conflito no Saara havia projectado num universo magrebino e árabe, do
qual toda a história colonial e imediatamente pós-colonial a havia tendencialmente
separado. O projecto de salvaguarda das cidades antigas inscreve-se nesse contexto.
O objectivo essencial do projecto, elaborado com o apoio de especialistas nomeados
pela UNESCO, consistia em recensear, com vista à sua salvaguarda e promoção, os
recursos arquitectónicos, documentais, económicos e turísticos de quatro entrepostos
caravaneiros saarianos: dois deles situados na região norte do Adrar (Ouadane e
Chingueti), e dois outros nas wilayas central e oriental do Tagant e do Hodh (Tichit
e Oualata).
As cidades de Ouadane, Chingueti, Tichitt et Oualata são os últimos testemunhos
da relativa prosperidade de uma região que, situada na intersecção dos grandes eixos
caravaneiros, ligou durante um longo período o Magrebe e o Sahel. Etapas de um
importante eixo de comércio caravaneiro trans-saariano, que garantia a troca de pro-

Castelos a Bombordo - FINALx.indd 165 27-03-2013 16:57:31


166 • CASTELOS A BOMBORDO

dutos da África saeliana (escravos, marfim, âmbar pardo…) por mercadorias prove-
nientes do Magrebe (sal, metais, contas em vidro, lã, papel…), estas cidades foram
também, durante alguns períodos, oásis de próspera actividade agrícola. Desde muito
cedo estas acolheram, num quadro arquitectónico original e particularmente adaptado
ao meio ambiente, pesquisas intelectuais nos domínios mais diversos do pensamento
árabo-muçulmano, o que é testemunhado, ainda hoje, pelas centenas de manuscritos
das suas bibliotecas públicas e privadas, ao mesmo tempo que ofereciam a estudantes,
vindos por vezes de muito longe, um ensino de alto nível e reputação regional.
Essas velhas cidades sofreram, ao longo dos séculos, os efeitos de múltiplos factores
de declínio: desvio das vias comerciais trans-saarianas, guerras intestinas e ataques asso-
ciadas ao ciclo infernal seca-fome-razia-epidemia. A colonização e a herança económico-
-institucional pós-colonial virão gerar novas formas de deliquescência: deslocação dos
centros de decisão políticos e económicos para novas cidades, transformação nos hábitos
e modelos de consumo, enfraquecimento do conjunto das instituições nas quais repou-
savam a produção e reprodução da sociedade moura tradicional (estruturas hierárquicas,
políticas, fundiárias, etc.). O ciclo de seca sem precedentes do início dos anos 1970 (empo-
brecimento dos lençóis freáticos, ameaça de progressão das areias, etc.), assim como a
guerra do Saara (a sua situação periférica fazia desses oásis alvos privilegiados) vieram
acrescentar novos motivos de inquietação para a sobrevivência dessas antigas cidades.
É inegável que esses velhos “portos” caravaneiros do deserto mauritano tiveram
um papel significativo na formação da herança cultural do espaço hoje em dia chamado
Mauritânia. Não é menos verdade que a sua “invenção”, enquanto elemento central
da herança em questão, é fruto de uma conjectura na qual o património nacional do
jovem Estado deve ser (re)apropriado e (re)lido à luz das evoluções que acabamos de
descrever. Mais do que passar em revista as cidades incluídas no projecto, gostaria de
me concentrar em duas delas: Chingueti e Ouadane. A primeira, por via do seu lugar
simbólico de quasi-icone nacional depois da chegada do poder militar; a segunda, pelo
interesse que presentemente desperta para as relações luso-mauritanas, e mais ampla-
mente, luso-árabes, inscritas no âmbito desta obra.
A emergência de Chingueti como aglomerado com alguma importância não é fácil
de situar historicamente, dada a raridade e fragilidade das fontes disponíveis. De acordo
com a tradição local – sempre ansiosa por dados de origem absolutos – a cidade terá
sido fundada em 660 da hégira/1262. Uma parte dessas mesmas tradições, resumidas
no opúsculo bem conhecido de Sîdi ‘Abdullâh Wuld al-Hâj Brâhîm (m. 1817), escrito
em 179022 – Sahîhat al-naql fî ‘alawiyyat Idawa’li wa bakriyyat Muhammad Ghulli –,

22
Nossa cópia do manuscrito. Este texto foi publicado, com uma tradução inglesa e comentários, por H. T. Norris, “The history
of Shinqît according to the Idaw’li traditions”, Bulletin de l’IFAN, 24, 3-4, 1962, pp. 393-409.

Castelos a Bombordo - FINALx.indd 166 27-03-2013 16:57:31


MAURITÂNIA A BOMBORDO • 167

situa a construção da actual mesquita e, assim podemos presumir, o início do aglome-


rado urbano, por volta de 1400. Os seus fundadores seriam antepassados dos princi-
pais grupos tribais (Idawa’li, Aghlâl) que ainda controlam a cidade. Segundo uma outra
versão, menos conhecida, o antepassado da tribo Smâsid23, fundadora da vizinha cidade
de Atar, terá tido alguma influência na fase inicial do desenvolvimento de Chingueti.
Quaisquer que tenham sido os fundadores e a data da sua fundação, este burgo24 do
Adrar surge no século XVII como um activo entreposto comercial, assim como uma
referência regional enquanto lugar de ensino. É portanto provável que nessa época
Chingueti, enquanto maior nó caravaneiro do sudoeste saariano, tenha funcionado
como ponto de concentração de uma boa parte dos candidatos à peregrinação aos
lugares santos do Islão, entre as populações mouras da região. Essa circunstância, con-
juntamente com os recursos intelectuais25 de que vieram a dar provas alguns desses
peregrinos/comerciantes aquando da sua passagem por Marrocos e pelo Médio Oriente,
estará na origem da identificação, no mundo árabe, do espaço mouro, no seu conjunto,
como ‘Bilad Shinqît. Este nome conferido por esses “primos” afastados, aos quais as
populações mouras na sua maioria se consideram profundamente ligados, será reto-
mado pelos nacionalistas árabes mauritanos que o adoptarão como emblema da ara-
bidade da Mauritânia, ao invés do nome atribuído ao país pela colonização francesa.
O topónimo ‘Shinqît’ – arabização da versão local: ‘Shingîti’, com ‘t’ enfático – terá,
a julgar pelo testemunho acima citado de Sîdi ‘Abdullâh, o sentido de “fonte de cava-
los”, num idioma que, embora ele não o precise, é sem qualquer dúvida a fala “azer”,
uma koiné comercial dos entrepostos caravaneiros do oeste sahariano ligados ao impé-
rio do Gana, onde predominaria a influência do soninké.
Este estranho artifício da razão toponímica, a que o nacionalismo mouro recorre
para legitimar uma denominação árabe alegadamente autêntica, quando esta, na ver-
dade, se revela de origem negro-africana, assinala a continuidade da dupla pertença
da Mauritânia aos universos árabo-berbére e negro-africano, contra a vontade de
todos os “purificadores”. Transformado numa espécie de ícone oficial da Mauritânia
– o minarete da sua modesta mesquita tende a ser instituído como ex-libris de todo
o país – Chingueti, com o projecto de salvaguarda das cidades antigas promovidas a

23
Trata-se, diga-se de passagem, da tribo de Moawiyya Ould Sîd Ahmad Ould Taya, presidente da Mauritânia entre 1984 e
2005.
24
As dimensões épicas com as quais as tradições orais descrevem Chingueti – as suas doze mesquitas, as caravanas de 30 000
camelos, etc –, retomadas no opúsculo de Sîdi ‘Abdullâh, revelam uma crédula retrospectiva sobreestimada. Com efeito, tudo
indica que Chingueti, mesmo aquando da sua maior prosperidade, não terá, na realidade, ultrapassado as centenas, porventura
milhares, de habitantes.
25
Incluindo-se a reivindicação de aptidões sobrenaturais de dupla visão, de curas milagrosas, etc., que constituem, há muito, uma
“especialidade local” de exportação saariana, particularmente a partir da região da as-Sâgya al-Hamra.

Castelos a Bombordo - FINALx.indd 167 27-03-2013 16:57:31


168 • CASTELOS A BOMBORDO

património mundial da UNESCO, afirma-se, entre outros26, como a quintessência do


património mauritano em vias de reinvenção.

A muralha de Ouadane. 2006 © CRIA

Ouadane partilha a vocação de ícone patrimonial da Mauritânia conferida às qua-


tro cidades incluídas no projecto das “cidades antigas”, ainda que o seu reconhecimento
oficial seja claramente menor. O burgo, referem as tradições locais, terá sido fundado
pelos quatro antepassados das principais fracções da tribo Idawalhâj que durante um
longo período terá sido o grupo hegemónico na cidade. As indicações fragmentárias
que referem esse acontecimento levam a pensar que ele terá tido lugar na segunda
metade do século XII.27 As mesmas tradições locais associam o desenvolvimento e
queda dos Almorávidas àquela região, muito embora não exista qualquer menção rela-
tiva a Ouadane anterior ao século XV na documentação escrita conhecida. Os cronistas
lusófonos (Zurara, Duarte Pacheco Pereira, Cadamosto) foram os primeiros a referir-
-se à cidade. A sua importância no comércio de sal, e sobretudo do ouro, levará mesmo
os intrépidos comerciantes, estabelecidos em Arguim desde meados do século XV, a
estabelecerem ali uma feitoria, por volta de 1487. A reputação comercial do local, mas
também a eventual existência de uma muralha fortificada, terão estado na origem da
escolha do lugar pelos Idawalhâj. A presença portuguesa foi contudo, ao que parece,

26
Assinale-se também a criação (1990), por parte do governo Taya, de um “Prémio Shinqît da Cultura”, destinado a recompen-
sar as obras de maior mérito em todos os domínios da produção intelectual, sendo a cerimónia de atribuição também ela um
momento muito “sultaniano” de celebração do próprio presidente.
27
Desenvolvimentos mais extensos sobre Ouadane e Chingueti poderão ser consultados em: A. W. Ould Cheikh et B. Lamarche,
Etude sur Ouadane et Chinguetti, Luxembourg, Office des Publications Officielles des Communautés Européennes, 1996.

Castelos a Bombordo - FINALx.indd 168 27-03-2013 16:57:31


MAURITÂNIA A BOMBORDO • 169

de curta duração, devido à hostilidade da população local. Embora essa presença tenha
sido breve (porventura menos de um ano), ainda subsistem dela alguns traços na
memória colectiva dos habitantes de Ouadane. É assim que as antigas – e míticas –
populações de Adrar (os Bâvûr) são, por vezes, assimiladas aos “Portugueses” (burtugês,
em hassâniyya, com “t” e “s” enfáticos). É também atribuída aos “Portugueses” a cons-
trução da fortificação de Agwaydîr (i.e: “a pequena fortaleza”), sendo as suas ruínas
ainda visíveis a cerca de trinta quilómetros a nordeste de Ouadane28. A cidade terá,
porventura, conhecido o auge da sua prosperidade no século XVI, atraindo então ensejos
e tentativas (marroquinas) de conquista. As lutas intestinas, conjugadas com a deslo-
cação dos eixos comerciais trans-saarianos, concomitantemente para a costa atlântica
e para traçados saarianos mais a Leste, provocarão o progressivo declínio da cidade.
Um declínio que, desde então, não parou de se acentuar, devido às múltiplas razões já
enunciadas.

La Maison du Patrimoine de Ouadane. 2006 © CRIA

Não aprofundarei mais a história destas cidades, instituídas como testemunhos


privilegiados da memória oficial mauritana, se não para sublinhar a dupla dimensão,
ao mesmo tempo patrimonial e económica, do projecto de que são alvo. No espírito
dos promotores deste projecto a ideia de preservação patrimonial, representada pelos
quatro prestigiados oásis, está estreitamente associada ao desenvolvimento económico

28
Segundo Théodore Monod, o primeiro investigador a observar de perto as ruínas deste forte (em 1928), quando estas se
encontravam nitidamente em melhor estado de conservação do que presentemente, tratar-se-ia de uma construção marroquina,
ou songhay. Para referências veja-se o estudo citado na nota precedente.

Castelos a Bombordo - FINALx.indd 169 27-03-2013 16:57:35


170 • CASTELOS A BOMBORDO

e particularmente turístico destas localidades. Não se trata apenas de resgatar mesqui-


tas meio soterradas pelo avanço das areias, ou de restaurar arquitectonicamente alguns
edifícios mais significativos. A ambição proclamada é sobretudo a de devolver vida a
cidades em vias de extinção, trabalhando para as reabilitar, melhorando todas as infra-
-estruturas colectivas e equipamentos sociais, e apoiando actividades geradoras de
receitas, particularmente através do turismo. Voltamos a encontrar este tipo de preo-
cupação, e a mesma associação entre turismo e património, noutro projecto marcante
que as autoridades mauritanas iniciaram nesta mesma área, o PSVPCM.
O lançamento oficial desse projecto em Novembro de 1999, que foi, naturalmente,
um momento de intensa celebração do “sultão” do momento, coincidiu com um perí-
odo no qual o deserto mauritano, difundido pelas imagens do rali Paris-Dakar, parecia
ser o único destino turístico saariano mais ou menos seguro, encontrando-se o Saara
praticamente interdito a visitantes na Argélia e no Níger devido à actividade das guer-
rilhas. Depois de alguns anos antes, no rescaldo da tensão racial já mencionada, ter
sido acusada de racismo e esclavagismo (em particular pela imprensa americana), a
Mauritânia, começava agora a cair em graça junto da “comunidade internacional”, ao
reconhecer Israel. É nesta conjuntura que o Banco Mundial, por intermédio do seu
representante em Nouakchott, manifesta um empenho militante em “vendê-la” ao
estrangeiro. Então, a celebração do seu património – que se reduzia, em grande parte,
à celebração da direcção política do momento – foi apresentada como um meio capaz
de transformá-la num destino turístico culturalmente atractivo. Nesse contexto, a
noção de património foi apresentada sob três rubricas diferentes.29 A primeira divisão
designava o “património tangível” compreendendo as cidades antigas – objecto do
projecto há pouco mencionado –, as bibliotecas de manuscritos, os estabelecimentos
de ensino tradicional (mahâzir). A segunda juntava o “património intangível”, consti-
tuído pelas manifestações vivas da herança cultural mauritana: poesia, música, folclore,
tradições orais, jogos e rituais, etc. Finalmente, uma última componente foi classificada
de “património-desenvolvimento”, comportando “dois sectores independentes, o arte-
sanato e o turismo cultural, que devem desempenhar”, diz-nos o sítio do projecto,
“um papel essencial no desenvolvimento económico e sócio-cultural da Mauritâ-
nia.”
O PSVPCM, dotado de um orçamento de cerca de vinte milhões de dólares, para
um período de três anos, deveria realizar a dupla tarefa de promover o património
cultural da Mauritânia e de assegurar, por via do turismo, o seu contributo para o
desenvolvimento económico do país. O espaço de que disponho não me permite alar-
gar sobre os resultados deste projecto (que foram, contudo magros). Limitar-me-ei a

29
Ver o sítio do projecto: www.tourath.mr

Castelos a Bombordo - FINALx.indd 170 27-03-2013 16:57:38


MAURITÂNIA A BOMBORDO • 171

sublinhar a síntese que realizou, no contexto mauritano, entre património, celebração


de um poder autocrático e turismo.
E é com esta tripla conjunção que concluirei esta reflexão. A noção de património,
sabemo-lo, é geralmente associada, tanto nas suas raízes latinas, como em árabe (turâth),
à transmissão ou aquisição de um bem ou estatuto herdado em linha paterna. Em
ambos os casos se inscreve no campo da memória. Inscreve-se, também, acabamos de
o ver, no campo do poder, que parece sentir uma vocação especial para gerir a memó-
ria legítima, de onde faz depender a sua própria legitimidade. A novidade, e, porven-
tura, a relativa especificidade dos processos de elaboração dos patrimónios locais,
numa fase de mobilidade turística “globalizada” e acelerada, sobretudo nos países ditos
em desenvolvimento, consistirá na conjunção entre uma procura turística presumivel-
mente “cultural” e a autoridade patrimonial de poderes que, embora frágeis e depen-
dentes, não deixam de se ser tentados – pelo menos na Mauritânia – por uma gestão
autoritária da memória colectiva. A sociologia das “invenções” patrimoniais locais não
será, em breve, talvez mais do que uma área da antropologia do turismo cultural
“glocalizado”30 e das formas indígenas da sua administração.

Como entendido por autores como, Arjun Appadurai (Modernity at Large. Cultural Dimensions of Globalization, Minneapolis,
30

University of Minnesota Press, 1996).

Castelos a Bombordo - FINALx.indd 171 27-03-2013 16:57:38


PORTUGAL (AINDA) NOS CONFINS SAARIANOS
Definições contemporâneas do encontro pré-colonial
no sudoeste da Mauritânia1

FRANCISCO FREIRE

Au fond d’un Sahara qui serait vide, se joue une pièce secrète, qui résume les passions
des hommes. La vraie vie du désert n’est pas faite d’exodes de tribus à la recherche d’une
herbe à paître, mais du jeu qui s’y joue encore. Quelle différence de matière entre le sable
soumis et l’autre! Et n’en est-il pas ainsi pour tous les hommes? (Antoine de Saint-Exupéry,
Terre des hommes)

Entre a população bidan2 da Mauritânia são actualmente destacados, em termos


da sua afirmação identitária e definição genealógica, vínculos com as figuras centrais
do período fundacional do islão e com a arabidade. No entanto, e muito embora estes
elementos se evidenciem, encontramos também inscritos outros quadros que provam
que uma análise objectiva deste contexto não pode centrar-se apenas nestas expressões.
Os territórios narrativos globalmente denominados “berberes” e “africanos” surgem
quase sempre como complementares às linhagens árabes prevalecentes, e a estes três
núcleos pode ainda ser conjugado um outro, reconhecível sob a denominação naçrānī
(naçāra, plural).3
Neste capítulo trato as reconfigurações identitárias estabelecidas precisamente
quanto ao inicial encontro entre europeus e qabā‘il (qabīla, singular.) bidan.4 Os

1
Este trabalho foi apoiado pela Fundação para a Ciência e Tcnologia atrvés da bolsa de doutoramento SFRH/BD/18668/2004.
Entre 2002 e 2006 participei como investigador no projecto “Castelos a Bombordo. Práticas de Monumentalização do Passado
e Discursos da Cooperação Cultural entre Portugal e os Países Árabes e Islâmicos” (POCTI/ANT/48269/2002), que igualmente
financiou esta investigação, assim como, posteriormente, o projecto “Castelos a Bombordo II” (PTDC/ANT/67235/2008). Para
além destes fundamentais apoios, gostaria ainda de agradecer aos Professores José da Silva Horta (FLUL) e Abdel Wedoud ould
Cheikh (Paris, CNRS), que em muito contribuíram parea a estrutura definitiva deste texto, assim como à Professora Maria Car-
deira da Silva que teve a ousadia de retomar, e renovar, a área de estudos em contextos islâmicos na academia portuguesa. A
minha investigação na Mauritânia, sobre um tema que se mostrou sensível para muitos dos meus interlocutores, foi em muito
facilitada por Yahya ould al-Bara, Mahmuden ould Hally e Muhammad ould Sidi, meus amigos.
2
População de língua árabe, dialecto hassāniīa, compreendida maioritariamente na região onde vemos implantada a República
Islâmica da Mauritânia. Al-BiDān é o seu nome auto-reconhecido (etimologicamente um plural de branco, “os brancos”), que
ao longo deste capítulo, para facilidade de leitura, surgirá como “bidan”. Nas transcrições do hassāniīa são acrescentadas ao
alfabeto árabe a fricativa “v”, o fonema “g” e as vogais “e” e “o”.
3
Esta designação, literalmente traduzida como “nazareno”, refere-se a personagens identificadas como europeias/cristãs. É através
deste termo que se consideram, indiscriminadamente, as figuras tidas como responsáveis pelos primeiros contactos euro-saarianos:
portugueses, espanhóis, holandeses, ingleses ou franceses. Para um enquadramento global deste termo ver Fiey (1993: 970-3).
4
Expressão geralmente traduzida como “tribo”, que será trabalhada ao longo de todo o texto, procurando descrever alguns
dos mecanismos que localmente qualificam a sua utilização contemporânea (Ahmed e Hart [eds.] 1984; Bonte et al. 1991; Bon-
te e Ben Hounet [eds.] 2009; Eickelman 1998: 123-46; Kouri e Kostiner [eds.] 1990).

Castelos a Bombordo - FINALx.indd 172 27-03-2013 16:57:38


MAURITÂNIA A BOMBORDO • 173

exemplos destacados baseiam-se num levantamento desenvolvido junto de três qabā‘il,


que, de forma diferenciada, recriam e utilizam o passado pré-colonial euro-saariano:
os Ahl Bouhubbaīni, os Idau al-Hājj e os Ūlād Bāba Ahmad.5 Estes grupos, muito
embora constituindo unidades sociais autónomas (“tribos”), comportam também diver-
sos elementos inter-relacionáveis: uso e partilha de um mesmo território (o sudoeste
da Mauritânia), reconhecimento de alguns intérpretes genealógicos comuns, e um
mesmo enquadramento estatutário, zuāīâ.6
Em primeiro lugar serão expostas duas tradições Ahl Bouhubbaīni, qabīla associada
à criação de dromedários (mas também de gado bovino) ao longo da faixa atlântica da
Mauritânia, entre as regiões de Trarza,7 a sul, e de Nouadhibou, a norte. Os Ahl
Bouhubbaīni enquadram-se na confederação tribal Tandgha, uma das mais significativas
na demografia da actual Mauritânia. Trata-se, como referi, de um grupo de estatuto
“marabútico” (uma denominação de origem colonial, mas ainda utilizada, “confortavel-
mente”, por muitos zuāīâ), isto é, associado ao conhecimento islâmico e ao seu ensino,
sendo que neste contexto se ultrapassa a mera aprendizagem do texto sagrado e suas
leituras, aproximando-se de uma prática na qual se oficiam os mais diversos serviços
religiosos, tais como a bênção de talismãs, ou a realização de “trabalhos” ditos “ocultos”.
No âmbito deste estudo interessa ainda sublinhar que os Ahl Bouhubbaīni declaram uma
primazia na relação entre tribos bidan e o litoral Atlântico, e, provando esse argumento,
incorporam a inicial presença europeia na região nas suas narrativas fundacionais.
Em segundo lugar será analisada uma conhecida tradição Idau al-Hājj, na qual se
declara que um dos seus patriarcas fundacionais terá viajado até à Península Ibérica, a
partir de onde terá dado início a uma próspera operação comercial euro-saariana,
assente na exportação de goma-arábica (actividade que os Idau al-Hājj monopolizaram
ao longo de séculos). Este capítulo centra-se exclusivamente em materiais recolhidos
junto dos Idau al-Hājj “de Trarza”, ainda que a qabīla se divida em três ramificações
autónomas, geograficamente independentes mas estruturalmente unidas a uma mesma
genealogia e história.
Finalmente, será examinada a tradição através da qual os Ūlād Bāba Ahmad (histo-
ricamente associados à confederação Taxumxa, e parte da qabīla Ūlād Daimān) enqua-
dram o seu antepassado epónimo no comércio euro-saariano. Esta proposta articula

5
Apresentações prévias de alguns dos materiais aqui discutidos podem ser consultadas em Freire 2009, 2011a, 2011b; Horta e
Freire 2012.
6
Para um enquadramento do modelo estatutário bidan ver Bonte 1990; Boubrik 1998; Hall 2011; Hamès 1968; Norris 1969,
1986; Stewart 1973; Tamari 1991.
7
A região de Trarza corresponde geograficamente ao sudoeste da actual Mauritânia, sendo um topónimo associado a Tarruz ben
Magvar, antepassado dos árabes Ūlād Ahmad ben Damān que a partir do início do século XVII consolidaram o controlo deste
território. Utiliza-se igualmente a expressão, mais antiga, Guibla, ampliando o tecido social da região, e desvinculando-a de uma
visão estritamente arabocêntrica. Em termos oficiais, prevalece actualmente a utilização da expressão Trarza.

Castelos a Bombordo - FINALx.indd 173 27-03-2013 16:57:39


174 • CASTELOS A BOMBORDO

também a incorporação do grupo no emirato de Trarza (estabelecido no final da pri-


meira metade do século XVII), estrutura política junto da qual os Ūlād Bāba Ahmad
redefinem o seu posicionamento estatutário, recorrendo precisamente ao papel desem-
penhado pelo seu epónimo enquanto “tradutor” junto de agentes comerciais europeus.
Os materiais apresentados revelam, como veremos, diversos mecanismos de conso-
lidação identitária, nos quais se provam diferentes posicionamentos político-estatutários
e se redefinem quadros genealógicos, sobre o pano de fundo de um ordenamento social
tribalizado. A profundidade dos debates produzidos consolidará assim a apresentação de
alguns contributos relativos aos mecanismos operatórios dos modelos tribais saarianos.

Ahl Bouhubbaīni. O conhecimento de Arguim


(quinhentos anos depois)

Each age and society re-creates its ‘Others’. (Eduard Said, posfácio a Orientalism)

No decurso da minha recolha de tradições orais associadas à inicial presença euro-


peia no sudoeste saariano, entre a população bidan da Mauritânia, os Ahl Bouhubbaīni
sempre me foram apontados como um dos grupos que deveria necessariamente traba-
lhar. Muito embora as bibliografias não sejam particularmente estimulantes na sua
análise, localmente os Ahl Bouhubbaīni são frequentemente associados a um conheci-
mento efectivo da costa. A sua actual valorização identitária, em termos de enquadra-
mento geográfico, reflecte também esta percepção, ao assentar sob um desenho amplo
que, engrandecendo a qabīla, a coloca além das fronteiras políticas do estado, defen-
dendo ligações até à região de Agadir (Marrocos).
Numa área geográfica e cronologicamente tão vasta é difícil associar o controlo
territorial a uma única qabīla, ou confederação (Tandgha, no caso preciso), mas a tota-
lidade da faixa litoral mauritana é reclamada como território privilegiado dos Ahl
Bouhubbaīni, ou, mais precisamente, como “zona de percurso” à qual estarão há sécu-
los intimamente ligados.8 É através desta posição que a chefia tribal destaca a qabīla,
no quadro das relações entre os bidan e o Atlântico (Artaud 2012). Muito embora os
Ahl Bouhubbaīni continuem associados à confederação Tandgha, hoje em dia recla-
mam a sua autonomia enquanto qabīla – que neste caso deve compreender para além
do reconhecimento e valoração de uma ascendência fundacional própria, um territó-

8
Norris assinala o litoral norte da actual Mauritânia como um território ancestralmente associado aos Tandgha (confederação
onde se incluem os Ahl Bouhubbaīni): “The Tandgha of south-west Mauritania (…) were settled to the north until the fifteenth
and sixteenth centuries” (1969: 516). No mesmo sentido, Muhammad al-Xannāfi identifica os Ahl Bouhubbaīni como “gente
do camelo”, historicamente ligados à região de Nouadhibou e às pastagens de Rio de Oro (comunicação pessoal, Nouakchott,
Maio 2006).

Castelos a Bombordo - FINALx.indd 174 27-03-2013 16:57:39


MAURITÂNIA A BOMBORDO • 175

rio e um enquadramento estatutário claramente definidos.9 Este brevíssimo enquadra-


mento das questões hoje valorizadas pelas chefias do grupo provar-se-á importante na
compreensão das narrativas que abaixo exponho, ao ligar os Ahl Bouhubbaīni a Arguim,
e assim justificando a reconversão do encontro de há cinco séculos atrás com naçrānī-s,
num combate pelo controlo da região. Como veremos, os Ahl Bouhubbaīni não esta-
rão apenas entre as populações mais antigas do litoral, mas serão também os respon-
sáveis pela sua “libertação”.
Muhammadīn ould ‘Abdarrahmān (circa 1920) apresenta-se como “um simples
criador de gado” da região de Tiguent (sudoeste da Mauritânia). Muhammadīn acom-
panhou durante a sua longa vida os movimentos de transumância da tribo entre a foz
do rio Senegal e a região de Nouadhibou, e é hoje respeitado não apenas pela sua idade
avançada, mas também pelas muitas histórias que conhece, e que gosta de repetir, sobre
os Ahl Bouhubbaīni. No seu acampamento de Tīn Ieija, no Aftout (zona costeira atlân-
tica da região de Trarza), encontrei uma surpreendente narrativa que, para além de
reclamar a influência do grupo sobre uma vastíssima área do litoral, se ocupa em des-
crever a primeira instalação naçrānī em Arguim (ver Figura 1).
Quando confrontado com os objectivos do meu trabalho, Muhammadīn ould
‘Abdarrahmān reconhece imediatamente as questões colocadas, relacionando “os bidan”
(atribuindo já uma solidez “étnica” a uma comunidade que às datas destacadas dificil-
mente se constituiria como tal), Portugal e os portugueses, com uma presença em
“Agadir Duma” (nome pelo qual era, até há poucas décadas atrás, identificada a ilha
e fortaleza de Arguim, cf. Freire 2011a: 46; Monod 1983: 200-1). Os Ahl Bouhubbaīni,
refere, transumavam entre Nouadhibou e a foz do rio Senegal,10 região onde a sua frac-
ção (fakhdh), os Ūlād Bouhubbaīni, se estabeleceria no início do século XX. O conhe-
cimento que tem de Arguim (mais de 400 quilómetros a norte de Tīn Ieija) e da sua
história foi-lhe transmitido pelos seus pais e avós, que ancestralmente frequentavam
essa região, assim como a generalidade dos Ahl Bouhubbaīni:

Havia um povoamento permanente em Agadir [Arguim], e as pessoas aprovisionavam-


-se aí de água doce. Com o tempo o poço começou a secar, e teve de se voltar a escavar,
em ziguezague, para tentar encontrar mais água.
Os habitantes da ilha, que sempre aí viveram, eram zuāīâ. Eles receberam aí um barco,
que depois voltou lá várias vezes. Essa gente permanecia algum tempo e depoispartia. As
mulheres e as crianças fugiam desses barcos, mas depois essa gente começou a dar prendas.

9
A liderança Ahl Bouhubbaīni defende a existência de cerca de 1500 khīam (khaīma, singular; “tenda”, mas também “família nucle-
ar”) do grupo, um número muito provavelmente demasiado alto, ao apontar um universo de cerca de oito a nove mil indivíduos.
10
Se antes se assinalou uma presença Tandgha historicamente associada ao norte do país (nota 8), no início do século XX Paul
Marty confirma a influência Tandgha na foz do rio Senegal (1919: 257-8).

Castelos a Bombordo - FINALx.indd 175 27-03-2013 16:57:39


176 • CASTELOS A BOMBORDO

De início apenas os homens iam até lá, mas pouco a pouco conquistaram a confiança de
todos os habitantes da ilha, através dessas prendas.
Depois de terem conquistado a confiança das pessoas da ilha, chegou um dia em que
os do barco levaram quase toda a gente, ficando apenas duas ou três pessoas. Os que fica-
ram procuraram os outros por toda a parte… mas não os encontraram.
Um ano depois o mesmo barco voltou, trazendo muita, muita gente. Entre essa gente
vinham naçāra, sudan [negros], argelinos, e também os antigos habitantes da ilha, que vol-
taram completamente “europeizados.” Os que voltaram eram, verdadeiramente, todos
naçāra. Os europeus que vinham nesse barco eram como a gente das Canárias.
Houve uma nova aldeia que nasceu, e que assim permaneceu por muito tempo. Toda
essa gente ficou depois por lá. Antigamente, para chegar à ilha de Agadir era necessária
uma autorização dos naçāra que lá estavam. (Muhammadīn ould ‘Abdarrahmān, Tīn Ieija,
Dezembro 2005)

Surpreendentemente, no sudoeste da Mauritânia, entre criadores de gado que


integram um agrupamento tribal reconhecido há séculos na orla costeira, a represen-
tação do primeiro encontro com europeus aproxima-se muito das tentativas de recons-
trução historiográficas destes contactos. O reconhecimento da existência de água doce
na ilha (tal como o progressivo empobrecimento deste aquífero), a identificação de
uma ocupação humana prévia à instalação europeia, assim como as difíceis relações
que se sucederam, são dados relevantes numa narrativa quase absolutamente concor-
dante com a documentação historicamente conhecida.11 Mas, para além de se aproxi-
mar dos relatos da historiografia, esta narrativa concretiza a operacionalidade
contemporânea de quadros narrativos que, cinco séculos depois, claramente ainda se
associam ao primeiro encontro entre europeus e tribos saarianas.12

11
A descrição do famoso poço de Arguim, por exemplo, aparece-nos aqui com particular exactidão: “(…) il s’agit de puisards, creusés
dans deux dépressions plus ou moins ensablées sous un auvent rocheux constituant le plafond d’une sort de grotte ouverte sur la sur-
face du sol; il faudra donc, pour atteindre l’eau, descendre d’abord verticalement pour se trouver au niveau de l’orifice du puits, puis
avancer horizontalement jusqu’à celle-ci” (Monod 1983: 176). Os trabalhos dedicados a Arguim são tão diminutos que julgo valer a
pena incluir aqui a descrição que Teixeira da Mota faz do local: “A feitoria estava recolhida na fortaleza, e o seu funcionamento, diri-
gido por um feitor (que em Arguim era também normalmente o capitão da fortaleza), operava-se por meio de vários oficiais régios,
protegidos por um pequeno número de soldados (…). A feitoria fortificada de Arguim – estabelecida na única ilha com água doce na
região e a pouca distância de Uaden, importante escala do comércio trans-saariano – serviu para obter sobretudo ouro e escravos (e,
em menor escala, goma e pescado), por permuta principalmente com trigo, tecidos europeus, têxteis marroquinos e prata. Não se
conhecem os regimentos que regulavam o seu funcionamento, mas a legislação geral manuelina e outros documentos de começos do
século XVI permitem ter uma ideia daquele e concluir, como era lógico, que a experiência aí adquirida foi útil para estabelecer o
regime iniciado por Diogo de Azambuja em S. Jorge da Mina em 1482. A importância desta última rapidamente superou em muito
a da feitoria de Arguim, cujo comércio declinou ao 1ongo do século XVI” (Teixeira da Mota 1976: 16; cf. Azinhaga 1965).
12
Insisti, em sucessivos encontros, para que este interlocutor desenvolvesse esta ou outras narrativas relacionadas, mas Muhammadīn
ould ‘Abdarrahmān sempre afirmou que aquela era a única tradição familiar que seriamente se relacionava com a presença por-
tuguesa. No entanto, e ainda entre os Ahl Bouhubbaīni, são referidas, de forma bastante mais vaga, tradições que associam o
desaparecimento de figuras locais com viagens forçadas à Europa. Estas narrativas são activadas, e as suas personagens identifi-
cadas, através dos processos de partilha de herança destes familiares desaparecidos, uma vez que alguns destes acordos seriam já
registados por escrito.

Castelos a Bombordo - FINALx.indd 176 27-03-2013 16:57:39


MAURITÂNIA A BOMBORDO • 177

Figura 1. Acampamento Ahl Bouhubbaīni em Tīn Ieija (uma localização assinalada por Paul Marty
como um dos poços Tandgha [Marty 1991: 258]). © F. Freire.

Note-se que este tipo de associação não é de todo vulgar, e geralmente distancia-
-se do surpreendente realismo da tradição registada nesta família. Tratam-se, na maior
parte das vezes, de reconfigurações muito pouco objectivas, cruzando cronologias
quase sempre contraditórias e que apontam um esforço de definição identitária e,
sobretudo, de valorização estatutária. A narrativa supracitada não foi, no entanto, a
única encontrada entre os Ahl Bouhubbaīni, e ainda nesta região, Bādi ould Ahmad
repetiu-nos uma outra tradição ligada a Arguim e aos seus visitantes naçāra. Neste
caso, muita embora continuem a articular-se os mesmos dois elementos, são também
enunciados aspectos bastante menos claros, e cronologias historicamente muito mais
ambíguas, mas que considero ainda assim relevantes ao ilustrarem a amplitude dos
desenhos identitários desenvolvidos:

Posso contar uma história que se transmite na minha família – e que é conhecida por
todos os Ahl Bouhubbaīni –, que envolve o “posto” [marKez] de Agadir, Portugal e
Muhammadīn ould Bouhubbaīni.
No tempo de Muhammadīn ould Bouhubbaīni os Portugueses estavam no porto de
Agadir. Viviam aí permanentemente, mas faziam incursões no continente. Os Portugueses
tinham leões guardados no porto de Agadir e lançavam-nos sobre o continente quando
faziam as suas razias. Esses leões destruíam tudo à sua passagem e os Portugueses utilizavam-
-nos sempre.
Os Tandgha da região estavam em Bīr al-Gareb [no continente], abastecendo-se de água
na ilha de Agadir. Os Ūlād Rizg vieram ter com os Tandgha pedindo-lhes ajuda contra os
Portugueses e contra os seus leões. Os Portugueses tentavam controlar todo o território e
já tinha havido combates. Os Ūlād Rizg ajudaram os Bouhubbaīni a construir um novo poço

Castelos a Bombordo - FINALx.indd 177 27-03-2013 16:57:39


178 • CASTELOS A BOMBORDO

em Bīr al-Gareb, quinze ou vinte quilómetros em frente de Agadir [uma vez perdido para
os Portugueses o poço de Agadir].
Quando as pessoas compreenderam que não conseguiam vencer [militarmente] os Por-
tugueses, decidiram pedir a ajuda a Muhammadīn ould Bouhubbaīni. Este disse conhecer
uma “magia” [sihr] que podia utilizar sobre um grande vitelo: – Vou mandá-lo contra os
leões, e, se o vitelo ganhar, isso quer dizer que vocês vão poder combatê-los; se o vitelo for
derrotado, não há nada a fazer, vocês são impotentes contra os Portugueses.
Esperaram então que os Portugueses soltassem os leões, lançando nesse momento o
vitelo. O vitelo matou os leões e a partir daí os Portugueses progressivamente deixaram a
zona. Mais tarde chegaram os Holandeses…
(Bādi ould Ahmad, Baguend, Dezembro 2005)

Apenas encontrei tradições deste tipo entre dos Ahl Bouhubbaīni. Na maioria
dos casos, como veremos, o tipo de associação entre populações locais e europeias
faz-se sobre elementos de cariz económico e comercial, ou sobre impressões que
empurram uma qualquer fractura genealógica – onde se incluiu um(a) personagem
europeia – sobre uma tribo que não a sua própria. Junto dos Ahl Bouhubbaīni, no
entanto, encontrámos a reprodução de quadros mais abrangentes, que directamente
conjugam a inicial presença europeia em Arguim com a definição estatutária do
grupo.
Para além da associação entre Muhammadīn ould Bouhubbaīni e a fortaleza de
Arguim – historicamente improvável –, desenha-se também uma aproximação aos
Ūlād Rizg.13 O facto de ser apresentada uma colaboração entre um grupo eminen-
temente pré-árabe (os Ahl Bouhubbaīni), e os primeiros árabes que se instalam
definitivamente no sudoeste saariano (os Ūlād Rizg), promove, naturalmente,
repercussões importantes. Concretamente, a antiguidade dos Ahl Bouhubbaīni no
território, e a possibilidade de um relacionamento profícuo entre dois quadros
estatutários distintos. Mas, de facto, concretiza-se aqui também uma afirmação da
superioridade dos poderes zuāīâ face às armas dos Ūlād Rizg (de estatuto hassān),
uma vez que terá sido o talismã utilizada pelo filho do fundador dos Ahl Bouhubbaīni
sobre um vitelo, que provocou a derrota dos invasores cristãos. É desta forma que
a qabīla reclama ter estado na origem da decadência portuguesa/europeia na costa
saariana, “provando” a sua supremacia numa região até então ocupada por naçāra,
e devolvida aos seus habitantes pela intervenção “divina” de Muhammadīn ould
Bouhubbaīni.

13
Os quadros genealógicos estabelecidos relativamente aos Ūlād Rizg comportam inúmeras versões, mas todas elas os associam
a um corpo árabe que terá chegado ao sudoeste na Mauritânia entre o final do século XV e o início do século XVI (Bonte 1998:
231; Norris 1982: 201; Ould Hamidoun 1952: 39).

Castelos a Bombordo - FINALx.indd 178 27-03-2013 16:57:40


MAURITÂNIA A BOMBORDO • 179

Destaco nestas tradições orais um elemento fundamental: para além da descrição


do encontro com europeus na região de Arguim, busca-se precisamente a definição da
própria qabīla. Os relatos citados declaram políticas de aliança, ou conflito, assim
como a defesa de um enquadramento estatutário – zuāīâ, no caso. A inicial presença
europeia na costa atlântica serve perfeitamente o argumentário desta qabīla saariana.
O passado europeu de Arguim surge-nos aqui, não como um elemento isolado, ou
externo (colonial?!), mas como uma estrutura plenamente incluída nas fórmulas que
visam a inscrição histórica da qabīla e que consolidam a sua expressão identitária.

Idau Al-Hājj. O comércio atlântico como referente identitário

Os Idau al-Hājj ter-se-ão estruturado enquanto qabīla na região de Adrar (norte


da Mauritânia), reclamando a cidade de Ouadane como seu berço. O grupo comporta
hoje em dia três núcleos, todos eles autónomos e associados a três áreas geográficas
distintas – Adrar (no norte), Assaba (a este), Trarza (no sudoeste) –, ainda que recor-
rendo sempre à região de Adrar como referente identitário fundacional prioritário
(Norris 1972: 189-90; Webb 1995a). Posteriormente, na primeira metade do século
XVI, um antepassado dos actuais Idau al-Hājj de Trarza, Najib ould Xams al-Dīn, terá
viajado para a região de Trarza, tendo aí refundado a qabīla.14 Este trânsito norte-sul
enquadra-se numa tipologia mais ampla que caracteriza muitas das qabīla-s hoje ins-
taladas no sudoeste da Mauritânia. A maioria dos autores associa esta deslocação à
pressão de tribos recém chegadas a norte (Ould Cheikh 2000), e a profundas altera-
ções climáticas (Webb 2006). Outra possibilidade, complementar a estas, prender-se-á
com a abertura de rotas de maior valor económico no litoral e nas margens do rio
Senegal, apontando a valoração de eixos comerciais atlânticos, contra as rotas conti-
nentais até aí prevalecentes.
Os Idau al-Hājj reconhecem-se, e são reconhecidos, como uma qabīla prioritaria-
mente vocacionada para o comércio, e é precisamente neste ponto que encontramos
uma ligação com Portugal. Uma conhecida tradição refere que al-Amīn, o filho de
Najib ould Xams al-Dīn, dando continuidade à vocação comercial dos seus ascenden-
tes, viajou para o norte do continente – ou “para lá de Gibraltar”, ou até Portugal –,
a partir de onde terá estabelecido as bases para o comércio regular de goma-arábica

14
A aldeia de Tigumatin surge como vértice do processo que reinventa o estatuto zuāīâ dos Idau al-Hājj, e onde se consolida a
sua vocação comercial. Pensando, desde já, em ligar a narrativa Idau al-Hājj abaixo exposta, com os projectos comerciais desen-
volvidos por europeus na região, interessará notar que Tigumatin se aproxima geograficamente da escala de “Anterote” (a sul da
actual Tiguent), onde se reconhecem transacções comerciais euro-saarianas desde o início do século XVI: “(…) onde está outro
resgate que se chama Anterote (…) E tem o resgate alli como em Arguym em seus navios, porque nom ha hy lugar nem castello,
nem nada” (Valentim Fernandes em Cénival e Monod [eds.] 1938: 124 e nota 245).

Castelos a Bombordo - FINALx.indd 179 27-03-2013 16:57:41


180 • CASTELOS A BOMBORDO

(ver Moreira, neste volume) na foz do rio Senegal (uma operação que seria, de facto,
implementada, pelo seu irmão Atjfagha Aubak).15
Transcrevo abaixo uma das narrativas que define a inicial associação euro-saariana
dos Idau al-Hājj, tal como é actualmente apresentada pelo seu mais respeitado “histo-
riador”, Ahmad ould Sīdī Muhammad (ele próprio, sem surpresa, também um comer-
ciante; ver Figura 2):

Najib ould Xams al-Dīn, “filho” de um dos fundadores de Ouadane, saiu de Oua-
dane e viajou até Tigumatin. Em Tigumatin encontra-se com Omar Fall, e questiona-o
sobre alguém que o pudesse ajudar a coser os tecidos que negociava. Omar Fall apresenta-
-lhe Hafsa mint Muhammad Sadik, uma mulher Tandgha, da fracção Idagvūdia, de
origem xerifal. Najib deixa os seus tecidos com Hafsa, e, no seu regresso, fica muito
satisfeito com as costuras que ela fez. Najib pergunta então a Omar Fall se Hafsa é
casada. Este responde que não. Pergunta então quem é o seu tutor, ao que Omar Fall
responde ser ele próprio. O casamento é organizado em Tigumatin pelo próprio Omar
Fall.
Deste casamento nascem três filhos: Atjfagha Aubak, al-Amīn e al-Uahij (ou al-Uavij).
Quando cresce, o segundo filho parte para Marrocos. Al-Amīn, criado num meio zuāīâ,
viaja com o objectivo de comprar livros. Em Marrocos trabalha para a casa real, sendo daí
enviado à Europa para comprar papel.
Nessa viagem al-Amīn desloca-se a Portugal, onde, durante uma refeição, o ten-
tam envenenar. Apercebendo-se do que se estava a passar, imediatamente toma um
“antídoto” que a sua mãe lhe havia preparado para situações como esta: pó de goma-
-arábica. Os seus anfitriões, apercebendo-se que ele estava salvo, perguntam como é
que ele tinha conseguido resistir ao veneno. Al-Amīn revela que tomou um produto
que a sua mãe lhe havia dado. Os Portugueses perguntam onde encontrar esse pro-
duto. Al-Amīn diz-se indisponível para os guiar, uma vez que estava em missão para
os marroquinos, mas decide ajudar os Portugueses escrevendo uma carta que estes

15
As diferentes versões desta narrativa estabelecem localizações divergentes quanto ao local onde se terá efectivado a negociação
deste trato, mas todas elas referem um encontro com cristãos. São mencionadas fortalezas no litoral marroquino, o acolhimento
no seio de uma coroa cristã da Península Ibérica, ou uma recepção em Gibraltar (Ould Hamidoun 1952: 14; Webb 1995b: 109-
-1). A associação que no meu caso foi estabelecida com Portugal, deve ser compreendida de forma mais geral, cruzando diferen-
tes nacionalidades europeias, mas sempre resultando no estabelecimento de operações comerciais euro-saarianas. Neste sentido,
leia-se ainda o excerto do texto, não publicado, de um outro notável Idau al-Hājj: “Tout a commencé, selon la tradition orale,
quand Elemine ould Enejib, qui était au Maroc pour suivre ses études, a effectué une visite à Gibraltar; là, il a réussi à intéresser
des commerçants Anglais à la gomme arabique qui est récoltée en abondance dans son pays (…). Quand les Anglais se sont mon-
trés intéressés, Elemine leur a remis une lettre de recommandation adressée à son frère Alfagha Awbek au Trarza. Les Anglais
sont vénus l’y trouver; et là ils ont signé avec lui un accord commercial qui fait obligation aux capitaines de tous les navires qui
accostent au large du Trarza pour l’achat de la gomme arabique de payer exclusivement aux descendants de Najib une taxe appe-
lée amkouboul. Les premières opérations de traite de la gomme effectuées au niveau du Trarza avec les Européens, l’ont été par
Alfagha Awbek ould Najib. A sa mort, son neveux El Moctar ould Elemine ould Najib a assuré la relève et depuis lors les Idawal-
haj ont eu la haute main sur cette activité qu’ils ont gardé pendant long temps la prérogative de réguler et de taxer à leur profit
exclusif ” (Mohamed Lemine ould al-Kettab, Les Idawalhaj et leurs différents migrations de Ouadane).

Castelos a Bombordo - FINALx.indd 180 27-03-2013 16:57:41


MAURITÂNIA A BOMBORDO • 181

deveriam apresentar ao seu, irmão mais velho, Atjfgha Aubak, em Beijik, junto à foz
do rio Senegal (ainda que as operações comerciais viessem depois a decorrer em
Injahen, na margem senegalesa).
Os Portugueses começaram então a enviar os seus barcos, estabelecendo relações pri-
vilegiadas com os Idau al-Hājj, seus principais interlocutores, que reuniam a goma-arábica
que era comerciada nas margens do rio Senegal, em troca de tecidos, armas, espelhos…
(Ahmad ould Sīdī Muhammad, Idau al-Hājj da fracção Ahl Atjfagha; Zamzam/Rosso,
Outubro 2004, in Freire 2009: 164-6)

Actualmente os Idau al-Hājj defendem uma narrativa identitária que os deve


sobretudo enquadrar como grandes comerciantes, e esse aspecto fundamental baseia-
-se, como vimos, numa associação comercial euro-saariana. Ao contrário do que foi
acima referido quanto aos Ahl Bouhubbaīni, neste caso a relação comercial com
europeus é defendida e valorizada. Muito embora se afirme que al-Amīn foi vítima
de uma tentativa de envenenamento, julgo que este episódio releva sobretudo a valo-
rização do produto em causa – goma-arábica –, ao qual devem a sua prosperidade.
Deve ser também destacada, tal como o fiz relativamente aos Ahl Bouhubbaīni, a
associação clara a uma tipologia zuāīâ. Neste caso, para além da dedicação à cultura,
ao mundo escrito e ao domínio do “oculto”, deve acrescentar-se a vocação comercial
da tribo (assinale-se ainda que a responsável pela eficácia do desempenho “mágico”
de al-Amīn, foi, de facto, a sua mãe, “Hafsa mint Muhammad Sadik, uma mulher
Tandgha”).
A presença europeia no litoral saariano define verdadeiramente o sucesso eco-
nómico da qabīla e, neste sentido, os seus líderes actuais ousam mesmo articular
um primeiro encontro luso-Idau al-Hājj no Adrar, ligado à subsequente viagem de
al-Amīn, e finalmente consolidado numa operação comercial estruturada nas mar-
gens do rio Senegal.16 Não foi encontrada qualquer documentação que sustente esta
teia de relacionamentos, mas o facto desta ser ainda defendida é em si mesma um
facto significativo.
Surpreendido pela profundidade do trabalho memorial desenvolvido em torno
desta relação, decidi explorar os quadros genealógicos associados à descendência de
al-Amīn. Através do exame de diferentes genealogias encontrei elementos que apon-
tam o desenvolvimento de uma relação bastante mais complexa entre os Idau al-Hājj
e “os portugueses” – que, note-se, os líderes da qabīla sempre reconheceram como
seus parceiros comerciais, mas nunca mais do que isso.

16
Nunca foram encontrados vestígios materiais da presença portuguesa no Adrar, muito embora as tradições orais que local-
mente a mencionam, e os dados historiográficos que a confirmam (Godinho 1983/1984, 1: 67).

Castelos a Bombordo - FINALx.indd 181 27-03-2013 16:57:41


182 • CASTELOS A BOMBORDO

Figura 2. Ahmad ould Sīdī Muhammad, Zamzam/Rosso, Outubro de 2004. © F. Freire.

A maioria das tradições orais e genealogias que recolhi, referem que Maham, um
dos filhos de al-Amīn ould Najib, terá casado com uma mulher estrangeira. Essa mulher,
‘Aguiga mint Barmi, “é espanhola ou portuguesa”, lê-se no al-Ansab al-Ūlād Daimān
(Ould Emmain s/d [meados do século XX]: 14), uma respeitada carta genealógica do
sudoeste saariano. A origem de ‘Aguiga é também por vezes associada aos famosos
bafur,17 sendo que actualmente é geralmente descrita sobretudo como naçrānīa.18 O
enquadramento etimológico do nome ‘Aguiga mint Barmi levanta problemas imediatos,
que acompanham o labirinto que a enquadra genealogicamente. Ainda assim, insisto,
nota-se uma ênfase na defesa de uma origem europeia de ‘Aguiga, quando esta não é,
verdadeiramente, a única direcção que o nome pode tomar (Freire 2009: 248-2).
Outro dado relevante prende-se com o facto do destaque atribuído a Maham na
tradição oral, e nos manuscritos mais antigos, não ser valorizado pela actual liderança
Idau al-Hājj (ligada à fracção Ūlād Mukhtār), surgindo possibilidades genealógicas con-
traditórias em relação à própria descendência de al-Amīn, o precursor da aventura
comercial da qabīla. Se é verdade que uma carta do líder dos Idau al-Hājj ao “rei de
França”, em 1819, responsabiliza “Eliman Ould Nagib/Al-Amin Wuld Najib” pelas acti-

17
A discussão em torno desta população comporta os mais diversos argumentos, mas aqui, muito resumidamente, pensaria ape-
nas em qualificar a utilização dos bafur como categoria ampla sobre a qual podem recair dificuldades de enquadramento gene-
alógico, sobretudo ligadas com a antiguidade da implantação no território e perda de relevo estatutário (Bonte 1998).
18
Entre os Ūlād Bāba Ahmad, ‘Aguiga é referida como “kitābiīa”, e não apenas como naçrāniīa, aproximando-a do conceito de
Ahl al-Kitāb (“Gentes do Livro”); acrescentando a possibilidade judaica ao já complexo labirinto genealógico associado a esta
personagem. Ainda neste grupo, refere-se que Maham ould al-Amīn “trabalharia como tradutor para os Portugueses” (Freire
2009: 245).

Castelos a Bombordo - FINALx.indd 182 27-03-2013 16:57:41


MAURITÂNIA A BOMBORDO • 183

vidades comerciais desde sempre desenvolvidas pela tribo (Webb 1995b: 180), as pro-
postas actuais quanto à sua descendência não são claras. Para alguns, al-Amīn terá deixado
apenas um descendente, Mukhtār (Webb 1995b: 110); noutras tradições, al-Amīn teve,
isso sim, três filhos: “Mukhtār, Maham e Ahmad Meilud. Mukhtār teve quatro filhos,
mas os seus irmãos actualmente já não têm descendência. Os filhos de Mukhtār são os
actuais chefes dos Idau al-Hājj. É sobretudo este ramo familiar que permanece mais
activo” (Ahmad ould Sīdī Muhammad, citado em Freire 2009: 239; ver Figura 3).
Para a actual liderança Idau al-Hājj, o primogénito de al-Amīn será Mukhtār, e
Maham, quando referido, será um dos seus irmãos mais novos. Os quadros genealó-
gicos – ou “histórias privadas”, seguindo a proposta de Ould Cheikh (ver antes, neste
volume) – actualmente exibidos, fazem de Maham ould al-Amīn uma figura apagada,
ou, verdadeiramente, “um homem sem qualidades”, na genealogia, hoje prezada, escrita
por Ould Hamdi (década de setenta do século XX). Muito embora reconhecendo que
esta é uma versão heterodoxa da história da tribo (ainda que ligada a algumas das suas
figuras centrais), é precisamente esta versão que procuram patentear – pensando obvia-
mente na valorização da sua própria fracção, os Ūlād Mukhtār. O “blackout genealó-
gico” (Ould al-Bara 2004: 196) relativo a Maham, “o tradutor” (segundo uma versão
bem conhecida na região, e igualmente identificada, mas não valorizada, pelos actuais
líderes Idau al-Hājj), e o progressivo destaque de Mukhtār – e da fracção epónima –,
promovem o último ao lugar de primogénito de al-Amīn, e herdeiro legítimo da saga
comercial dos Idau al-Hājj de Trarza.

Figura 3. Genealogia dos Idau al-Hājj segundo Ahmad ould Sīdī Muhammad.

Castelos a Bombordo - FINALx.indd 183 27-03-2013 16:57:44


184 • CASTELOS A BOMBORDO

A defesa desta tese – que hoje se quer oficial – surge fragilizada pelo facto da
descendência de Maham ser bem conhecida em contextos sociais contíguos aos
Idau al-Hājj. Nesses casos, Maham é geralmente reconhecido como “o pai de
Hemeila”, uma mulher de origem Idau al-Hājj que casou com al-Kuri, o primo-
génito do epónimo dos Ūlād Sīdī al-Vali. Nesse contexto, Maham é sempre reco-
nhecido como “Maham ould al-Amīn”. A sua filha, Hemeila, é dita “Hemeila
al-Hajiīa” (isto é, de origem Idau al-Hājj), ou “Hemeila mint Maham mint al-Amīn
ibn Najib”, coincidindo com o texto de Muhammad al-Yadāli (primeira metade
do século XVIII, in Ould Babah [ed.]1990: 148), e com a sua lápide em Tindalah
(ver Figura 4).19
Este apagamento pode associar-se quer ao papel dos descendentes de Mukhtār
ould al-Amīn (actuais líderes da qabīla), quer ao facto da biografia conhecida de Maham
se ligar a elementos “não ortodoxos” (leia-se, a sua proximidade com personagens
cristãs). O facto de Maham poder ser associado ao comércio euro-saariano enquanto
tradutor, mas, sobretudo, a possibilidade de este ter assumido uma aliança matrimonial
com uma estrangeira (quase sempre descrita como europeia), constituirão aspectos
suficientes para ancorar o seu actual “esquecimento”.20

Figura 4. Lápide de Hemeila no cemitério Idau al-Hājj de Tindalah (Trarza):


“Hemeila i Maham ibn al-Amīn ibn al-Najib”. © F. Freire.

19
Ahmad ould Sīdī Muhammad defende ainda que Maham terá sido o primeiro Idau al-Hājj a ser sepultado em Tindalah.
20
A actual chefia Idau al-Hājj não destaca o papel de Maham como tradutor no comércio euro-saariano, e procura, a todo cus-
to, ocultar este elemento banalizado sobretudo na tradição oral.

Castelos a Bombordo - FINALx.indd 184 27-03-2013 16:57:45


MAURITÂNIA A BOMBORDO • 185

As descrições dos iniciais encontros entre saarianos e europeus, muito embora


consignadas a uma visão “correcta” da história tribal – que visa a sua qualificação
enquanto exemplares intérpretes dos ensinamentos (genealógicos) islâmicos –, provam
a existência de uma pluralidade de vozes que, de facto, comprometem a tribo com
diferentes possibilidades narrativas, que não as exclusivamente veiculadas pelas che-
fias. Os exemplos aqui referidos mostram “esquecimentos” dificilmente justificáveis e
operações genealógicas apenas iluminadas à luz de movimentações de ordem política.
Ainda assim, o labirinto genealógico Idau al-Hājj baseia-se efectivamente na viagem
de al-Amīn e nos contactos que este terá estabelecido com europeus. Estas relações
prestigiam a tribo enquanto grupo cosmopolita, com relações ancestrais – valorizáveis
– com cristãos. E assim, se é verdade que os Idau al-Hājj se correspondem com qua-
dros identitários “legítimos” – ligação ao nasab profético, associação ao norte do país,
vocação comercial e, mais recentemente, boas relações com o tecido emiral –, é tam-
bém verdade que são incorporados na qabīla os contactos euro-saarianos… conquanto
estes não toquem a sua expressão eminentemente genealógica.

Ūlād Bāba Ahmad. A integração estatutária


e o encontro Euro -Saariano

Na segunda metade do século XVII forma-se, no sudoeste da Mauritânia, o emirato


de Trarza. O conjunto de elementos que venho discutindo pode também articular-se
com esta estrutura proto-estatal, declarando a profundidade das construções identitá-
rias desenvolvidas quanto aos iniciais encontros euro-saarianos. Nesta medida gostaria
agora de apresentar um núcleo narrativo ligado ao desenho político emiral, no qual
se prova o alcance alargado destes contactos trans-continentais. A aproximação ao
enquadramento político emiral será aqui trabalhada, uma vez mais, através de exem-
plos provenientes de uma qabīla de estatuto zuāīâ: os Ūlād Bāba Ahmad.21
Os Ūlād Bāba Ahmad defendem uma profunda ligação com o emirato (árabe) de
Trarza, justificando essa associação, em grande medida, através do papel desempenhado
pelo seu patriarca epónimo como mediador entre o emirato e comerciantes naçrānī-s.
Na continuidade da análise ensaiada sobre os Idau al-Hājj, também entre os Ūlād Bāba
Ahmad se defende um quadro de prosperidade económica subsequente ao encontro
com comerciantes europeus, no entanto, neste caso, Bāba Ahmad é abertamente reco-
nhecido enquanto “tradutor”. Este papel, contudo, não é considerado como uma sim-

21
O emirato de Trarza estrutura-se em redor dos Ūlād Ahmad ben Damān, mas comporta ligações importantes a muitas outras
tribos, que se posicionam junto, ou contra, o emir do momento (Curtin 1971; Ould Cheikh 1991; Ould Sa‘ad 1989; Taylor
2002).

Castelos a Bombordo - FINALx.indd 185 27-03-2013 16:57:48


186 • CASTELOS A BOMBORDO

ples vocação profissional, mas definido como uma perfeita sublimação do ordenamento
estatutário da qabīla: os dotes linguísticos de Bāba Ahmad fazem dele um interlocutor
respeitado junto do emirato, capacitado para todas as matérias escritas (“leitor de tudo
o que é escrito”, é a expressão sempre repetida). Este enquadramento incorpora os
encontros comerciais desenvolvidos junto de agentes europeus na faixa atlântica saa-
riana no tecido identitário da qabīla, e serve a sua inscrição (estatutária) na sociedade
bidan; transformando o que seria um mero tradutor, num quase paradigma da ética
zuāīâ.
A tradição que relata o início das actividades de Bāba Ahmad junto do emirato de
Trarza é apresentada por H. T. Norris:

Bāba Ahmad was honoured by the Maghfar ‘Arab’ clan of Ahmad b. Dāmān. It is said
that Portendick (Injil) near to Nouakchott was founded after the conclusion of a treaty
between Ahmad b. Dāmān and a European, possibly a Portuguese called Rodrigo or Rodri-
gues. The latter had written to the Arab prince asking for a trading agreement, and it was
Bāba Ahmad who read and translated the proposal to this prince. As a reward the latter
gave Bāba Ahmad a portion of the dues (amkūbal or kharāj) exacted on trading vessels, and
this privilege was enjoyed by his descendants (Norris 1969: 499).22

Ainda que nunca me tenha sido precisado o nome Rodrigo/Rodrigues, ou especi-


ficada a nacionalidade dos agentes europeus que terão estado ligados a Bāba Ahmad,
esta narrativa continua a ser reconhecida. O conteúdo do “contrato” que Bāba Ahmad
terá traduzido também não é actualmente lembrado, mas duas consequências directas
da sua acção são ainda marcantes: 1) a partir desse momento ter-se-á iniciado o comér-
cio de goma-arábica entre o emir e comerciantes europeus; 2) os descendentes de
Bāba Ahmad continuaram (até à sexta geração) a receber um “tributo” emiral (kubl)
relativo aos bons serviços prestados aquando do início das actividades comerciais
euro-saarianas.23
Veja-se como Ahmadu ould Hmaiada (Ūlād Bāba Ahmad, fracção al-Vali) integra
esta tradição, ligando-a aos fundamentos da própria qabīla:

22
Ould Cheikh refere que os primeiros acordos comerciais entre o emirato de Trarza e comerciantes europeus foram estabele-
cidos ao tempo do sucessor de Ahmad ben Damān, o seu filho “Häddi” (1991: 76-7). Em termos de documentação escrita,
devemos considerar apenas o século XVIII como o momento em que se identificam acordos comerciais euro-saarianos (cf. Kol-
termann e Rebstock 2006).
23
Os esforços que desenvolvi junto dos Ūlād Ahmad ben Damān (qabīla emiral) não foram frutíferos. A relação comercial com
europeus nunca me foi referida como significativa, ainda que se reconheça o encontro entre os primeiros emires Trarza e comer-
ciantes europeus (indiscriminadamente associados quer a Portugueses, Holandeses ou Ingleses). A forma como neste contexto se
expõem esses encontros não parece apontar uma significativa intensidade no tecido identitário definido. As actuais chefias Ūlād
Ahmad ben Damān surgem valorizadas sobretudo através de narrativas de conquista e organização de um espaço político próprio
(o emirato), e estas fórmulas menorizam qualquer ligação com europeus.

Castelos a Bombordo - FINALx.indd 186 27-03-2013 16:57:48


MAURITÂNIA A BOMBORDO • 187

Quando Bāba Ahmad era jovem foi enviado até Sīdī Ahmad al-‘Arusi.24 Nessa “dele-
gação” [surba] iam Bāba Ahmad, Ahmad Bazaid [primo materno de Bāba Ahmad] e um
Tandgha chamado Buiader. Conta-se uma “história” [ruāia] sobre cada um deles: Bāba
Ahmad decide ocupar-se de tudo o que seja escrito; Ahmad Bazaid, de todo o “oculto”
[baTna]; Buiader, do “mundo visível”.25
Quando chegaram, Sīdī Ahmad al-‘Arusi decide testá-los. Na mão direita encerra uma
tâmara, na mão esquerda um pedaço de carvão. No momento em que al-‘Arusi tenta trocar
a tâmara pelo carvão, Buiader agarra-o, impedindo-o de os enganar. Sīdī Ahmad al-‘Arusi
mostra depois o seu “quadro mágico” [jaduāl], no qual Ahmad Bazaid descobre rapida-
mente um erro, e trata de o corrigir. Al-‘Arusi mostra depois uma carta espanhola, que Bāba
Ahmad começa a ler. Al-‘Arusi impede Bāba Ahmad de continuar a leitura em público e
retira-se na sua companhia. (...)
Mas voltando ao kubl… isso passou-se entre Bāba Ahmad e Ahmad ben Damān (al-‘Arusi
depois partiu e não voltou). Bāba Ahmad ajudou Ahmad ben Damān a fazer acordos e con-
tractos com um país europeu, que eu não sei qual é. Foi assim que Bāba Ahmad se tornou
tradutor. Ele era muito forte em tudo o que era escrito. Ahmad ben Damān concedeu-lhe
o kubl da salina [sebkha], que continuou a ser recebido até um passado próximo, já muito
depois de Bāba Ahmad. (Ahmadu ould Hmaiada, Igerm [Trarza], Novembro de 2006)

Neste caso, tal como nos exemplos Idau al-Hājj, o enquadramento do inicial encon-
tro euro-saariano assenta em vectores comerciais, ainda que aqui se prove uma recon-
figuração positiva do papel de Bāba Ahmad, que evolui da figura de simples tradutor,
para a consolidação de um modelo eminentemente zuāīâ, ligado ao saber escrito, e
neste caso, ao domínio da palavra.26
Voltando a Norris e à tradução que Bāba Ahmad terá efectuado da carta de um
certo Rodrigo (ou Rodrigues), uma “Memória” depositada na Biblioteca da Ajuda
(Lisboa), datável das primeiras décadas do século XVII, identifica efectivamente uma
personagem de nome “Rodrigo Freire” operando no rio Senegal em datas que podem

24
Companheiro do emir Ahmad ben Damān e figura eminente da “conquista” árabe do sudoeste saariano, na primeira metade
do século XVII (Norris 1986).
25
Este debate deve também incluir-se no quadro de uma competição inter-tribal, uma vez que Ahmad Bazaid (Barikallah), tal
como Bāba Ahmad, proveria também “acompanhamento espiritual” aos emires de Trarza (Norris 1969: 499-0), e, em algumas
tradições, seria ele próprio o responsável pelo aprofundamento das transações comerciais euro-saarianas: “On raconte encore
sur la côte l’histoire d’un Barikallah du nom d’Ahmed Bazeid qui aux XVe-XVIe siècles (?) se serait rendu à Agadir (Arguin) et
conclu un traité avec les Portugais” (Monod 1983: 219).
26
Ainda que neste capítulo se procurem sobretudo apontar as tradições que relacionam Bāba Ahmad com o emirato de Trarza
e com o comércio atlântico, reconhecem-se inúmeras outras dimensões zuāīâ a esta personagem: “Saints such as Abā Zayd of the
Īdaygub and his cousin Bāba Ahmad al-Daymānī provided food or rain when either was scarce, punished offenders by long-
-distance guidance of meteors and magic spells, and undertook swift journeys on holy donkeys and on flying sticks” (Norris
1969: 499). Este enquadramento “místico” de Bāba Ahmad não é hoje em dia valorizado, e é dificilmente desencerrado nos dis-
cursos que oficialmente visam a definição identitária dos Ūlād Bāba Ahmad.

Castelos a Bombordo - FINALx.indd 187 27-03-2013 16:57:48


188 • CASTELOS A BOMBORDO

ser aproximadas às da implantação do emirato de Trarza. Este documento, desconhe-


cido de Mukhtār ould Hamidoun, reflecte directamente a tradição reconhecida por
este autor na década de setenta do século XX; e, se bem que não se trate obviamente
de um dado contundente, é um elemento que para além da coincidência etimológica,
pode ilustrar o tipo de relações desenvolvidas ao longo do rio Senegal e clarificar alguns
dos seus intervenientes (neste caso preciso, Ingleses, Portugueses e Judeus):

Primeiramente no rio Senegal se carregão cada hum anno seis, e sette naos de courama,
marfim, goma arábico, que lhes serve para tinturas no qual rio os Ingreses tem feito hua
ilhotta, que o mesmo rio fas da banda de dentro da barra huã casa na qual lhe fiqua sempre
gente depois de terem carrega para outras que ham de vir das mesmas partes ao dito rio
em as quaes veio por muitas vezes hum Rodrigo Freire natural de Villa Nova de Portimão
a fazer resgate no dito rio em huã nao ingresa (…).27

Conclusão

A articulação do passado naçrānī da região oeste-saariana, segundo as propostas


identitárias bidan, faz-se sobretudo através da sua incorporação em modelos tribais.
Contrariando um certo apagamento que a academia tem votado às precoces relações
entre europeus e populações saarianas, este terreno guarda ainda inúmeros materiais
que qualificam esse encontro. Como vimos, os contactos pré-coloniais com agentes
europeus são plenamente incorporados nas fórmulas identitárias, por vezes nos tecidos
genealógicos, e na maior parte das vezes, no quadro ontológico (enquadramento esta-
tutário) defendido para o grupo de pertença. Todas as tradições aqui apresentadas
remetem nesse sentido. O tratamento destes elementos efectua-se, como vimos, a níveis
diferenciados, mas todos eles acentuadamente inclusivos: notando-se a evidente ins-
crição de um território próprio, quer a um nível minimal (familiar), quer através da
apresentação de quadros mais alargados onde, por exemplo, se posiciona uma decla-
rada “ocupação” cristã da dār al-islam. Esta leitura – distinta da que qualifica períodos
posteriores, e particularmente o momento colonial – sublinha um diálogo através do
qual se articulam diferentes possibilidades de ordenamento estatutário, ligando-se, nos
casos analisados, com momentos decisivos na definição das qabīla-s: veja-se a colabo-
ração entre os Ahl Bouhubbaīni e os “árabes” Ūlād Rizg; a partilha de elementos gene-

27
Este documento foi-me generosamente cedido pelo Professor José da Silva Horta (FLUL), que será a autoridade a consultar
sobre a autoria e datação desta “Memória” (catalogada como Memoria, e relação do resgate que fazem francezes, ingrezes, e fra-
mengos na costa de Guiné a saber do rio de Sanaga atee Serra Leoa, Biblioteca da Ajuda, cód. 51-VI-54, n.º 38, fls. 145-147,
[s.d.], fl. 145).

Castelos a Bombordo - FINALx.indd 188 27-03-2013 16:57:49


MAURITÂNIA A BOMBORDO • 189

alógicos entre Idau al-Hājj e Ūlād Daimān; ou a associação dos Ūlād Bāba Ahmad ao
emir “árabe” de Trarza.
Os elementos aqui apresentados provam também que o encontro entre qabā‘il
bidan e personagens naçāra não se institui como uma ruptura, traduzida no desenvol-
vimento de uma nova historicidade. Trata-se de um quadro relacional plenamente
incorporado e identitariamente significativo até aos dias de hoje. Os vínculos criados
através da representação do encontro euro-saariano definem-se em conjunto com
outros quadros (locais), que são reconsiderados à luz destes elementos. Nota-se tam-
bém a contínua aplicação do conceito de qabīla nos quadros narrativos expressos,
relacionando-se com uma reiterada afirmação dos posicionamentos estatutários. Esta
reflexão prova uma plena integração das narrativas orais que debatem a inicial pre-
sença europeia no Saara atlântico nos contextos bidan, uma vez incorporadas num
debate endógeno que evidencia a flexibilidade e vitalidade dos idiomas tribais.
As fórmulas apresentadas no tratamento dos iniciais encontros euro-saarianos afir-
mam também que os contextos bidan não são passíveis de um tratamento linear, tradu-
zível através de uma qualquer “grande narrativa” (neste caso associada à gesta Almorávida,
à arabidade, ao islão, ao estatuto social, ou à etnicidade). O estudo destas comunidades
não deverá ser circunscrito a uma qualquer leitura teleológica, que apenas servirá para
ampliar uma visão fútil do presente; e que, nesse caso, arrisca o esquecimento de uma
história milenar, que mesmo que marcada por contradições profundas, continua a mere-
cer ser amplamente discutida, procurando incorporar todas as complexidades que defi-
nem as relações sociais e históricas entre diferentes períodos e diferentes populações.

Bibliografia

ARTAUD, Hélène, 2012, “Mer partagée, part maudite. La fabrique rituelle d’un horizon maritime: mer
et sacré chez les pêcheurs Imrâgen (Mauritanie)”, Revue des mondes musulmans et de la Méditerranée,
130: 53-70.
AHMED, Akbar S. e David M. Hart (eds.), 1984, Islam in Tribal Societies. Londres, Routledge & Kegan
Paul.
AZINHAGA, Florinda, 1965, A Feitoria de Arguim e a Expansão Portuguesa, Tese de Licenciatura em
História. Lisboa, Faculdade de Letras.
BONTE, Pierre, 1998, L’Emirat de l’Adrar. Histoire et Anthropologie d’une Société Tribale du Sahara
Occidentale, Tese de Doutoramento. Paris, EHESS.
–––, 1991, “Egalité et hiérarchie dans une tribu maure: les Awlâd Qaylân de l’Adrar mauritanien”, em
BONTE, Pierre, Édouard Conte, Constant Hamès, e Abdel Wedoud Ould Cheikh (eds.), Al-Ansâb. La
Quête des Origines: Anthropologie Historique de la Société Tribale Arabe. Paris, Editions de la Maison
des Sciences de l’Homme, pp. 145-199.
–––, 1990, “L’‘ordre’ de la tradition. Evolution des hiérarchies statutaires dans la société maure contem-
poraine”, Revue du monde musulman et de la Méditerranée, 54: 118-129.

Castelos a Bombordo - FINALx.indd 189 27-03-2013 16:57:49


190 • CASTELOS A BOMBORDO

BONTE, Pierre, Édouard Conte, Constant Hamès, e Abdel Wedoud Ould Cheikh, 1991, Al-Ansâb: La
Quête des Origines. Anthropologie Historique de la Société Tribale Arabe. Paris, Editions de la Maison
des Sciences de l’Homme.
BONTE, Pierre e Yazid Ben Hounet (eds.), 2009, Études rurales, 184 (“La tribu à l’heure de la globalisation”).
BOUBRIK, Rahal, 1998, “Hommes de dieu, hommes d’épée: Stratification sociale dans la société bidân”,
Journal des Africanistes, 68 (1): 261 – 272.
CENIVAL, Pierre de, e Théodore Monod (eds.), 1938, Description de la Côte d’Afrique de Ceuta au Séné-
gal par Valentim Fernandes (1506-1507). Paris, Larose.
CURTIN, Philip D., 1971, “Jihad in West Africa: Early Phases and Inter-Relations in Mauritania and Sen-
egal”, The Journal of African History, 12: 11-24.
FIEY, J. M., 1993, “NaŞārā”, em BOSWORTH, C. E., E. Van Donzel, W. P. Heinrichs, e Ch. Pellat (eds.),
Encyclopedia of Islam, New Edition (Volume VII). Leiden e Nova Iorque, Brill, 970-973.
FREIRE, Francisco, 2011a, “The ‘Narziguas,’ Forgotten Protagonists of Saharan History”, Islamic Africa,
2 (1): 35-65.
–––, 2011b, “Histoire du Sahara atlantique et mémoire tribale. Réinterprétations contemporaines des
contacts euro-sahariens précoloniaux”, em Sébastian Boulay e Bruno Lecoquierre (eds.), Le Littoral
Mauritanien à l’Aube du XXIème Siècle: Peuplement, Gouvernance de la Nature, Dynamiques Sociales
et Culturelles. Paris, Karthala, pp. 107-122.
–––, 2009, Narrativas naçrānī-s entre os bidān do Sudoeste da Mauritânia: A Viagem Europeia e suas
Reconfigurações Tribais, Tese de Doutoramento. Lisboa, FCSH-UNL.
GODINHO, Vitorino Magalhães, 1983-1984 [1963-1971], Os Descobrimentos e a Economia Mundial,
4Volumes. Lisboa, Presença.
–––, 1956, O “Mediterraneo” Saariano e as Caravanas do Ouro: Geografia Económica e Social do Sáara
Ocidental e Central do XI ao XVI Século. São Paulo, Coleção da Revista de História.
–––, 1945, Documentos Sobre a Expansão Portuguesa, 3 Volumes. Lisboa, Editorial Gleba.
HALL, Bruce S., 2011, A History of Race in Muslim West Africa, 1600-1960. Nova Iorque, Cambridge
University Press.
HAMÈS, Constant, 1969, “La société maure ou le système des castes hors de l’Inde”, Cahiers Internatio-
naux de Sociologie, XLVI: 163-177.
HORTA, José da Silva, e Francisco Freire, (no prelo), “Os primeiros contactos luso-saarianos: narrativas
europeias quatrocentistas e tradições orais bidan (Mauritânia)”, em Maria Cardeira da Silva e Clara
Saraiva (eds.), As Lições de Jill Dias. Lisboa, CRIA.
KHOURY, Philip S. e Joseph Kostiner (eds.), 1990, Tribes and State Formation in the Middle East. Oxford,
University of California Press.
KOLTERMANN, Till Philip, 1995/1996, Politique Maure et Rivalité Européenne sur la Côte de la Gome
(Mauritanie) entre 1678 et 1728, Tese de Licenciatura. Estrasburgo, Université des Sciences Humaines
de Strasbourg.
KOLTERMANN, Till Philip e Ulrich Rebstock, 2006, “Les plus anciennes lettres des émirs du Trarza:
témoins de la politique maure d’alliances avec la Hollande et l’Angleterre (1721-1782)”, L’Ouest Saha-
rien, hors série 6: 9–62.
MARTY, Paul, 1919, L’Émirat des Trarzas. Paris, Éditions Ernest Leroux.
MONOD, Théodore, 1983, L’Ile d’Arguin (Mauritanie): Essai Historique. Lisboa, Centro de Estudos de
Cartografia Antiga do Instituto de Investigação Científica e Tropical.
NORRIS, Harry T., 1986, The Arab Conquest of Western Sahara: Studies of theHistorical Events, Religious
Beliefs and Social Customs Which Made the Remotest Sahara a Part of the Arab World. Harlow, Longman;
Beirut, Librarie du Liban.

Castelos a Bombordo - FINALx.indd 190 27-03-2013 16:57:49


MAURITÂNIA A BOMBORDO • 191

–––, 1982, The Berbers in Arabic Literature. Harlow, Longman; Beirute, Librairie du Liban.
–––, 1972, Saharan Myth and Saga. Oxford, Clarendon Press.
–––, 1969, “Znāga Islam During the Seventeenth and Eighteenth Centuries”, Bulletin of the School of
Oriental and African Studies, 32: 496-526.
OULD AL-BARA, Yahya, 2004, “Sécheresses, violences et sociétés”, em Z. Ould Ahmed Salem (ed.), Les
Trajectoires d’un État-Frontière: Espaces, Évolution Politique et Transformations Sociales en Mauritanie.
Dakar, CODESRIA, pp. 189-206.
Ould Babah, Muhammadin (ed.), 1990, aš-Šayh Muhammad al-Yadāli: sur l’histoire de la Mauritanie (trois
textes inédits). Tunis, Beït Al-Hikma.
OULD CHEIKH, Abdel Wedoud, 2000, “La Caravane et la Caravelle. Les Deux Âges du Commerce et
l’Ouest Saharien”, em L’Ouest Saharien. Histoire et Sociétés Maures. Paris, l’Harmattan, pp. 29-70.
–––, 1991, Eléments d’Histoire de la Mauritanie. Nouakchott, Centre Culturel Français Antoine de St.
Exupéry.
–––, 1985, Nomadisme, Islam et Pouvoir Politique dans la Société Maure Précolonial (XIe-XIXe siècle),
Tese de Doutoramento em Sociologia. Paris, Universidade de Paris V.
OULD EMMAIN, Abdallahi, s/d (circa 1950), al-Ansab al-Ūlād Daimān, Manuscrito (em árabe).
OULD HAMDI, Mokhtar, s/d (circa 1970), al-Ansab al-Idau al-Hājj. Manuscrito (em árabe).
OULD HAMIDOUN, Mokhtar, 1952, Précis sur la Mauritanie. Saint-Louis du Sénégal, IFAN.
OULD SA‘AD, Muhammad al-Mukhtar, 1989, “Emirats et espace émiral maure: Le cas du Trarza aux
XVIIIe–XIX siècles”, Revue du Monde Musulman et de la
Méditerranée, 54: 53–82.
PETERS, Emrys, 1960, “The Proliferation of Segments in the Lineage of the Bedouin of Cyrenaica”, The
Journal of the Anthropological Institute of Great Britain and Ireland, 90: 29-53.
STEWART, Charles C., 1973, Islam and Social Order in Mauritania: A Case Study from the Nineteenth
Century. Oxford: Clarendon.
TAMARI, Tal, 1991, “The Development of Caste Systems in West Africa”, Journal of African History, 32:
221-250.
TAYLOR, Raymond M., 2002, “L’Émirat Pré-Colonial et l’Histoire Contemporaine en Mauritanie”,
Annuaire de l’Afrique du Nord (1999), 37: 53-69.
TEIXEIRA DA MOTA, Avelino, 1976, Alguns Aspectos da Colonização e do Comércio Marítimo dos Por-
tugueses na África Ocidental nos Séculos XV e XVI. Lisboa, Junta de Investigações Científicas do Ultra-
mar.
WEBB, James L. A., 2006, “Ecology and Culture in West Africa”, em AKYEAMPONG, E. K. (ed.), Themes
in West Africa’s History. Athens, Ohio University Press; Oxford, James Currey; Accra, Woeli, pp. 33–51.
–––, 1995a, “The Evolution of the Idaw al-Hajj Commercial Diaspora”, Cahiers d’Études Africaines, XXXV:
455-475.
–––, 1995b, Desert Frontier: Ecological and Economic Change Along the Western Sahel (1600-1850).
Madison, The University of Wisconsin Press.
WEHR, Hans, 1980 [1961], A Dictionary of Modern Written Arabic. Beirute, Librairie du Liban; Londres,
Macdonald.

Castelos a Bombordo - FINALx.indd 191 27-03-2013 16:57:49


CONTRADIÇÕES E DESAFIOS ENTRE OS IMRAGUEN
DA COSTA ATLÂNTICA MAURITANA
Entre as reconfigurações identitárias e a gestão participativa

JOANA LUCAS E RAQUEL CARVALHEIRA

Introdução

O trabalho de campo exploratório realizado no Parque Nacional do Banco de Arguim


(PNBA) na Mauritânia será neste artigo o ponto de partida para cruzar algumas questões
que se nos colocaram ao longo de três estadias no terreno1. Assim, e após uma breve
contextualização sobre o Parque, os seus habitantes e a recente introdução de projectos
de ecoturismo, avançaremos para a descrição de situações que ilustram algumas das ten-
sões vividas no terreno. Assumindo como cenário três pequenas aldeias costeiras na
Mauritânia, inseridas neste Parque Nacional oficialmente aberto ao turismo em 1998,
introduziremos várias reflexões espoletadas pela observação e pela recolha etnográfica.
Ao longo deste texto procuraremos demonstrar que a população residente no Par-
que, conhecida como Imraguen, deve ser analisada e pensada tendo em conta diferen-
tes categorizações que se sobrepõem e multiplicam, e que a linguagem tribal, embora
importante, não é o único idioma para definir pertenças em solo mauritano. Os Imra-
guen foram estudados por curiosos, administradores coloniais e cientistas sociais e
recorrentemente caracterizados pela sua ligação ao mar e à pesca. Muitas vezes roman-
tizada, esta caracterização acabou por marcar não só o discurso que estas populações
produzem sobre si próprias, mas também a forma como são categorizadas no contexto
nacional mauritano (Caratini 1978, Fortier 2004).
Este artigo pretende explorar a forma como a identidade Imraguen é hoje política
e economicamente interessada, onde a importância de uma pesca de carácter comer-
cial emergente concorre com um “aparelho institucional” de preservação e conserva-
ção dos recursos, em que as lógicas da gestão participativa competem com as lógicas
e apropriações territoriais tribais e estatutárias.

1
Esta reflexão resulta de três missões de terreno à Mauritânia todas no âmbito dos projectos: Castelos a Bombordo I (POCTI/
ANT/48629/ 2002) e II (PTDC/ANT/67235/2006), coordenado cientificamente por Maria Cardeira da Silva. A primeira missão
decorreu em Janeiro de 2005, a segunda entre Janeiro e Fevereiro de 2006 e a terceira em Maio de 2008. Sempre num exercício
de etnografia partilhada, foram levadas a cabo estadias em três aldeias do PNBA: Arkeiss, Agadir e Iwik, mas os nossos modos
de permanência e de envolvimento com a vida das aldeias diferiram substancialmente entre elas. O apoio logístico do PNBA foi
essencial para o desenrolar deste trabalho, facilitando as estadias e integração e possibilitando as deslocações entre as várias
aldeias, e entre o Parque e Nouakchott.

Castelos a Bombordo - FINALx.indd 192 27-03-2013 16:57:49


MAURITÂNIA A BOMBORDO • 193

Contexto em análise

O Parque Nacional do Banco de Arguim foi criado em 1976 cobrindo uma área
geográfica de 12 000 Km2 (terrestre e marítima), e está localizado ao longo da costa
atlântica mauritana entre a capital do país, Nouakchott, e a segunda maior cidade e
capital económica – Nouadhibou. Actualmente a sede do PNBA encontra-se em Nou-
akchott existindo uma delegação em Nouadhibou e uma estação / observatório cien-
tífico sur place numa das aldeias do Parque.
O objectivo da criação do Parque foi justificado pela necessidade de protecção e
conservação de um território considerado frágil, cuja riqueza ecológica explica a pre-
sença de densas populações de aves, peixes, invertebrados e mamíferos marinhos, bio-
diversidade esta que legitimou a elevação do PNBA a Património Natural Mundial
pela UNESCO em 1989. O seu financiamento é garantido por várias instituições inter-
nacionais, como a União Internacional para a Conservação da Natureza (IUCN), o
World Wildlife Fund (WWF), o Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento
(PNUD), a Deutsche Gesellschaft für Technische Zusammenarbeit (GTZ), pela Coo-
peração Francesa e Holandesa e, ainda, pela União Europeia. A Fundação Internacio-
nal do Banco de Arguim (FIBA), instituição criada em 1986 para divulgar o lugar além
das fronteiras da Mauritânia, tem sido desde então uma das principais instituições de
apoio ao PNBA, mobilizando e canalizando apoios financeiros e científicos.
Num país onde a pesca representa uma considerável fonte de rendimentos dentro das
políticas de exportação nacionais, a diversidade e abundância dos recursos piscatórios do
PNBA foi alvo de exploração intensiva pelas indústrias piscícolas mauritanas e estrangei-
ras. Com vista à protecção deste frágil ecossistema, o PNBA pôs em marcha um sistema
de vigilância das suas águas, garantido pelos agentes que se encontram no terreno, por
dois radares e por várias embarcações que interditam a entrada de barcos não autorizados
ou detêm os que se encontram em infracção. As únicas embarcações permitidas dentro
dos limites do Parque são as que possuem vela latina e pertencem às populações residentes2.
O PNBA inscreve-se na geografia desértica que caracteriza a Mauritânia e a água
potável não é abundante. Neste sentido, o vasto território do Parque não é propício a
qualquer tipo de produção agrícola, acentuando-se assim a dependência do mar para
sobrevivência, e de alguma pastorícia. Actualmente existem oito aldeias3 dentro dos
limites do Parque, todas com existência prévia à do PNBA, com excepção de Arkeiss
(1993) e Tissot (1998). Aquelas sobre as quais a nossa pesquisa incidiu – Arkeiss, Aga-
dir e Iwik – apresentavam em 2001, de acordo com Ould Cheikh (2003:15), números

2
Na área do PNBA estão autorizadas um total de 114 embarcações movidas com recurso a vela latina (Ould Cheikh 2010).
3
Do sul para o norte: Mamghar (centro administrativo e político da região), Awgej, R’Gueiba, Teichott, Tissot, Iwik, Ten Alloul,
Arkeiss e Agadir.

Castelos a Bombordo - FINALx.indd 193 27-03-2013 16:57:49


194 • CASTELOS A BOMBORDO

muito diferenciados de habitantes, sendo que Arkeiss é a aldeia menos povoada do


Parque (40 habitantes), Iwik a segunda mais habitada (189 habitantes), logo a seguir
a Mamghar, a “capital” do PNBA (613 habitantes), contando Agadir com 84 habitan-
tes. Apesar da população masculina do PNBA ser extremamente oscilante graças a
migrações sazonais e integração em grandes frotas pesqueiras, podemos considerar os
dados relativos ao ano de 2001 quando o Parque teria uma população total de 1436
habitantes espalhados pelas suas oito aldeias. Como se pode ver a densidade popula-
cional do Parque é reduzida, reflexo das difíceis condições que o deserto reserva.
Neste lugar desértico, onde não abundam os pontos de referência, só o conhecimento
profundo das pistas ou a utilização de GPS permitem o acesso às aldeias e evitam a deso-
rientação no vasto território do PNBA. A conclusão dos 470 quilómetros de estrada
alcatroada que liga as principais cidades do país (Noaukchott e Nouadhibou), e que
limita a extensão ocidental do Parque, veio provocar alterações na movimentação de
turistas e das próprias populações dentro do PNBA (Seneh e Steck 2011) que, anterior-
mente, se fazia pelo areal litoral, quando as marés o permitiam. Se as populações Imra-
guen do PNBA tinham beneficiado até então dos trânsitos de turistas que circulavam
pela costa atlântica, a construção do eixo Nouakchott – Nouadhibou veio desviar estes
fluxos e acentuar o carácter transitório da Mauritânia nas rotas turísticas que têm, mui-
tas vezes, como destino final o Senegal, o Mali ou outros países da África Ocidental.

Os Imraguen: populações com o mar em pano de fundo

Têm sido genericamente denominadas de Imraguen a maioria das populações que


habitam as oito aldeias do PNBA. Estas populações, descritas como ocupando uma
área geográfica específica, a da costa atlântica da Mauritânia a norte de Nouakchott,
têm sido fundamentalmente definidas em função da sua actividade piscatória e da sua
ligação ao mar (Anthonioz 1967, Belledent 1998, Lotte 1937, Maigret 1984, Révol
1937, Trotignon 1981). Por essa mesma razão, Belledent refere que “Para compreen-
der os Imraguen, é preciso insistir no facto de que a unidade desta comunidade não
está fundada nem nas origens, nem na religião, nem numa aliança política ou militar,
mas sobre uma actividade comum.” (Belledent 1998:165, tradução nossa). Esta defi-
nição tem assumido uma centralidade face a outros indicadores de diferenciação social
preponderantes na Mauritânia4, como o da genealogia e da raça, e tem sido a base

4
Uma vasta literatura antropológica tem-se dedicado à análise das formas de diferenciação social mauritana, onde a linguagem
tribal desempenha um papel importante, em diálogo com outros indicadores de distinção, como o género, a raça e a idade. Ficam
aqui alguns exemplos dessa literatura: Bonte & Conte (1992), Hamés (1969), López Bargados (2003), Marchesin (1992), Ould
Cheikh (1985) Taine-Cheikh, (1989), Villasante-De Beauvais (1997 a e b). Ver também Freire, neste volume.

Castelos a Bombordo - FINALx.indd 194 27-03-2013 16:57:50


MAURITÂNIA A BOMBORDO • 195

para delimitar, tanto cultural como academicamente, estas populações face a outras,
maioritariamente ligadas à pastorícia e ao nomadismo.
Théodore Monod (1902-2000), explorador e científico francês e responsável por
um dos maiores acervos de costumes e formas de vida do deserto do Sara, era um apai-
xonado pelas populações da Mauritânia e publica na década de trinta do século XX,
com Pierre Cénival, um dos primeiros textos descritivos da costa atlântica africana pelos
navegadores portugueses. Trata-se do manuscrito de Valentim Fernandes (Cénival e
Monod [1506] 1938) que representa uma recolha extraordinária do que os navegado-
res portugueses viram ao longo das suas expedições referindo-se já a uma população
específica costeira – os Azenégas shirmeyros:

Eles são chamados pelos Mouros de Azenégas shirmeyros, por causa do peixe que eles
apanham e do qual eles vivem, e schirmeyros por oposição com os outros Azenégas que
habitam no interior onde são caçadores ou comerciantes, e negociam com a Guiné. Estes
Azenégas schirmeyros constituem uma raça distinta, de muito baixa condição e desprezada
por todos os Mouros, sendo considerados por estes como os judeus no nosso país. Schirme
significa peixe. (Cénival e Monod 1938: 55 – tradução nossa)

Antes de Valentim Fernandes um outro cronista ao serviço da coroa portuguesa


enceta também a tarefa de recolha dos testemunhos dos navegadores que exploram a
costa atlântica africana – Gomes Eanes de Zurara – com a “Crónica dos Feitos da
Guiné” de 1453, primeiro relato europeu em que é descrita a região oeste-sariana e
as suas populações: “E os que vivem à beira do mar não comem al senão pescado,
todos geralmente sem pão nem outra cousa, salvo agua que bebem, e as mais das vezes
comem este pescado cru e seco” (Zurara 1973:323).
No entanto, só muito posteriormente aparece a designação pela qual são actual-
mente conhecidos e que parece significar literalmente “aqueles que apanham as con-
chas”. Segundo Cénival e Monod (1938:169) a palavra Imraguen foi pela primeira vez
utilizada em dois relatos de exploração e mapeamento colonial de meados do século
XIX. O primeiro relato data de 1858 e dá-nos conta da viagem do explorador alemão
Heinrich Barth, onde este tece algumas considerações sobre as populações que encon-
tra na costa mauritana: “Imraguen, um povo muito pobre e de mau feitio que vive à
beira do mar” (Barth 1858:564).5 Num outro relato, publicado em 1860 e intitulado
“Voyage d’exploration dans l’Adrar”, o capitão do estado-maior francês H. Vincent
encontra-se na zona do Banco de Arguin e faz a seguinte alusão às populações costei-
ras:

5
Citação traduzida directamente do original, em alemão, por Gabriele De Angelis.

Castelos a Bombordo - FINALx.indd 195 27-03-2013 16:57:50


196 • CASTELOS A BOMBORDO

Seguindo a orla do mar, encontrei várias aldeias compostas de tendas e de cabanas em


más condições que pertenciam aos pescadores Imraguen (…) Por toda a parte neste lugar
fui recebido de forma calorosa e amável, vê-se que estes pescadores tiveram contacto com
os Europeus (Vincent 1860:454 – tradução nossa)

Se é a actividade piscatória que tem contribuído ao longo do tempo para a cate-


gorização identitária das populações Imraguen importa dizer que a descrição dos seus
métodos de pesca foi feita centrando-se quase exclusivamente numa única categoria
de peixe – a tainha (Mugil cephalus) e reportando-se a um estilo de pesca muito espe-
cífico: auto-suficiente, em grupo, pescando a pé e levando as redes às costas, onde
uma relação de simbiose com os golfinhos era por vezes observada: os golfinhos assi-
nalavam a presença de cardumes de tainha, que eles próprios perseguiam, até ao
momento em que os pescadores começavam a golpear a água com um pau. Este som
atraía os cetáceos que por sua vez aproximavam os cardumes de tainha para a costa,
onde os pescadores, munidos de redes equipadas com flutuadores os cercavam (Pel-
letier 1975).
A simplicidade destes métodos de pesca reforça a ideia de que estas populações
fariam uma utilização sazonal do território costeiro – entre Agosto e Janeiro –
movimentando-se entre a costa e o interior, onde realizavam durante o resto do ano
actividades ligadas ao pastoreio e à caça, o que nos é confirmado, entre outros indí-
cios, pela quase ausência de técnicas de navegação e como refere Ould Cheikh (2010)
por uma transposição de um vocabulário pastorício aplicado à pesca:

Por ocasião duma conversa com um grupo de habitantes da aldeia de Agadir, estes assi-
nalaram que a ideia de maré baixa era consignada com a expressão libhar razin: o mar brota
tranquilo, o mar tem pastos, que remete ostensivamente para o universo dos pastores (Ould
Cheikh 2010:173 – tradução nossa)

Apesar da centralidade da actividade piscatória, não é apenas através dela que os


Imraguen se identificam. Os Imraguen fazem parte do universo social e cultural mau-
ritano, partilhando com ele as referências tribais, que assentam em princípios de filia-
ção, patrocinato, clientelismo, solidariedade e sujeição (cf. Ould Cheikh 2003). Apesar
de não fazermos aqui uma análise profunda da complexidade da linguagem tribal6,
diríamos em resumo que ela expressa formas de hierarquia e diferenciação social, onde
os Imraguen eram, e ainda são, considerados como populações socialmente diminuídas
no mosaico tribal mauritano.

6
Noutro sítio tivemos oportunidade de desenvolver estas questões (Lucas 2008; Carvalheira 2008).

Castelos a Bombordo - FINALx.indd 196 27-03-2013 16:57:50


MAURITÂNIA A BOMBORDO • 197

Abreviadamente falando os Imraguen seriam populações predominantemente


constituídas por um grande número de antigos escravos libertados (hrāTīn), em situ-
ação tributária face às tribos dominantes (Lotte 1937, Ould Cheikh 2002, Révol
1937), historicamente constituídas como guerreiras (hassān), ou religiosas (zāūīâ,
denominadas na literatura antropológica francesa como “marabúticas”). Assim, a área
geográfica que se encontra hoje em dia sob a alçada do PNBA, foi também ela sujeita
a uma partilha territorial tribal operante no deserto do Sara. Durante a nossa perma-
nência nas aldeias do Parque, foi possível compreender que o seu território foi ocu-
pado pelas populações residentes de acordo com essas referências estatutárias e
tribais.
Embora tenham modificado os seus modos de produção, de organização do tra-
balho e consequentemente o seu estatuto, tanto através da introdução da nova econo-
mia do turismo como das alterações decorrentes da actividade piscatória, os Imraguen
continuam a expressar-se através das suas pertenças tribais, ainda que de uma posição
nem sempre privilegiada.

A nova economia do ecoturismo

A progressiva sedentarização das populações Imraguen, para a qual contribuiu


inequivocamente a escassez de recursos alimentares nacionais com excepção da fauna
marinha, deu lugar a um aperfeiçoamento das técnicas de pesca e a uma intensificação
da mesma: a introdução nos anos 1920-1930 de lanchas movidas com recurso a vela
latina através do contacto com pescadores provenientes das Ilhas Canárias, foi o início
de uma nova era para a pesca no Banco de Arguim, ampliando consideravelmente o
rendimento desta actividade (Boulay 2010).
A partir dos anos 1970 um conjunto de factores – aumento demográfico aliado a
mutações económicas e sociais, bem como a introdução de barcos a motor – reconfi-
guraram os hábitos destas populações donde ocorreu uma transição da pesca de sub-
sistência para a pesca de mercado. Como consequência da intensificação da actividade
piscatória, e após a sua criação em 1976, o PNBA introduziu restrições à captura da
fauna marinha, com o objectivo de controlar a quantidade de espécies capturadas.
Mais tarde, e de forma a criar actividades e rendimentos complementares às popula-
ções locais eventualmente prejudicadas por estas restrições, o PNBA decidiu investir
no ecoturismo, produzindo atracções como a pesca desportiva e o passeio em embar-
cações à vela para observação de aves.
Esse investimento dirigia-se sobretudo à criação de recursos complementares para
a população feminina que, com a introdução da pesca comercial e com as restrições

Castelos a Bombordo - FINALx.indd 197 27-03-2013 16:57:50


198 • CASTELOS A BOMBORDO

piscatórias havia alegadamente perdido um papel social e economicamente importante


na transformação do peixe, em particular na produção de putarga (ovas secas de tai-
nha). A posterior criação de cooperativas de gestão do ecoturismo veio incorporar a
actividade dentro de uma estrutura colectiva esperando-se, assim, que todas as mulhe-
res pudessem beneficiar dos rendimentos obtidos através da actividade turística de
forma igualitária.
Em 1998 o PNBA define uma estratégia de desenvolvimento do ecoturismo, defen-
dendo um turismo consciente e responsável e apoiando as populações locais na compra
de materiais para a construção das khaīmâ-s7 para albergar os turistas e abrigar peque-
nas cozinhas. Em 2003 a ONG espanhola IPADE, em cooperação com o Parque, iniciou
um projecto de desenvolvimento do ecoturismo com o objectivo de impulsionar e
melhorar a actividade turística entre as populações Imraguen. Das oito aldeias do Par-
que quase todas tinham, durante a realização do nosso trabalho de campo exploratório,
acampamentos turísticos, mas o fluxo de turistas sempre foi muito desigual8, depen-
dendo bastante da acessibilidade das aldeias e do escrutínio dos guias turísticos.

Para lá do ecoturismo: disputas e tensões com Iwik como espelho

Durante a estadia no terreno assistimos a situações que foram eloquentes relati-


vamente à forma como a introdução de uma actividade turística veio reactivar velhas
questões entre as populações do PNBA. Das oito aldeias do Parque apenas seis leva-
ram para a frente a constituição de cooperativas, condição imposta pelo PNBA para
o desenvolvimento da actividade turística, e tiveram apoios para a construção das
khaīmâ-s e restante equipamento de apoio ao turismo (cozinhas e casas de banho).
O motivo da maior parte dos conflitos existentes deriva do facto de algumas aldeias
se sentirem menos apoiadas pelo PNBA do que outras, e também da recente limita-
ção quanto à abertura de novos acampamentos nas restantes aldeias, já que apenas
três eram economicamente sustentáveis.
Esta conflitualidade está presente na aldeia de Iwik que foi das primeiras a abrir
um acampamento. Após um período de funcionamento pautado por disputas entre
elementos da mesma tribo (Ūlād Busba’) mas de diferentes famílias, o PNBA intervém

7
Tendas hoje feitas de tecido de algodão branco no exterior e de tiras de aproveitamento de tecido colorido no interior, supor-
tadas por uma viga de madeira, são tradicionalmente fabricadas pelas mulheres. No PNBA servem sobretudo para abrigar os
turistas, já que a população local vive geralmente em construções feitas a partir da combinação de vários materiais (madeira,
contraplacado, latão). Algumas casas são feitas de cimento, mas a sua construção é proibida no PNBA.
8
De acordo com os registos de entrada de visitantes no PNBA disponíveis na estação /observatório científico de Iwik, os núme-
ros de visitantes foram em 2003 de 628, em 2004 de 528 e em 2005 de 357. As nacionalidades mais representativas eram a
francesa, a italiana e a espanhola. Estes registos apenas podem dar uma ideia aproximada dos turistas na medida em que não são
recolhidos de forma sistemática pelos guardas do PNBA.

Castelos a Bombordo - FINALx.indd 198 27-03-2013 16:57:50


MAURITÂNIA A BOMBORDO • 199

no conflito decidindo o encerramento do referido acampamento. À data da nossa pri-


meira estadia no PNBA em 2005, este acampamento encontrava-se encerrado.
Posteriormente, e devido a pressões por parte de elementos das duas famílias, o
PNBA permite a abertura de dois acampamentos na aldeia de Iwik, contrariando assim
a lógica do projecto de ecoturismo desenvolvido no Parque, em que cada acampamento
corresponderia a uma aldeia. Durante a nossa estadia em 2006 e 2008 em Iwik, existia
um acampamento gerido por uma cooperativa e um acampamento de gestão privada.
Esta duplicação de estruturas ecoturísticas que envolve também os guias, os turis-
tas e os funcionários do PNBA, veio acentuar a crispação entre as duas famílias: para
os que geriam o “acampamento da cooperativa” este era o único que reunia as condi-
ções legais e morais para se apresentar ao exterior, no entanto o “acampamento de
gestão privada” acabava por ser mais atractivo para os turistas (por ser gerido por uma
mulher e esteticamente mais elegante).
Se o “acampamento da cooperativa” legitimava a sua existência através das normas
de funcionamento do PNBA, o “acampamento de gestão privada” reclamava o direito
ancestral da sua fracção tribal ao usufruto do território do PNBA. Desta forma, a famí-
lia do acampamento da cooperativa estava disposta a percepcionar o PNBA como um
substituto do Estado, com poder para legislar sobre o território. A família do acampa-
mento privado não lhe reconhecia tal autoridade e tentou encontrar mecanismos de
afronta a um exercício de poder que considera ilegítimo. Como se pode ver, ambas as
partes apoiaram-se em diferentes justificações legais e históricas para satisfazer os seus
interesses.

Acima das tribos, o PNBA: O Atelier de Concertação e os mecanismos


de gestão participativa

Em Fevereiro de 2006 o Parque Nacional do Banco de Arguim celebrou o seu 30.º


aniversário. Isso permitiu que assistíssemos ao início das celebrações da efeméride, e
ao “atelier de concertação” que o PNBA realiza anualmente com representantes de
todas as oito aldeias do Parque. Nesta reunião pretende-se fazer o balanço das medidas
proteccionistas promovidas no território durante o ano transacto, funcionando ao
mesmo tempo como lugar de reivindicações várias por parte das populações e, final-
mente, como arena de discussão acesa sobre as novas medidas de protecção ecológica
para o ano que se segue. A ocasião revelou-se de facto excepcional para a recolha
etnográfica. Para o efeito do aniversário do PNBA deslocaram-se ao Parque todos os
membros da FIBA. Por isso, a inauguração dos festejos do aniversário, e como tal a
realização da reunião anual, adquiriu contornos solenes.

Castelos a Bombordo - FINALx.indd 199 27-03-2013 16:57:50


200 • CASTELOS A BOMBORDO

Iwik, a aldeia onde se realizou a reunião anual e o arranque das festividades, sofreu
uma verdadeira convulsão por esta data. Dias antes as mulheres começaram a montar
dezenas de khaīmâ-s junto à aldeia e uma khaīmâ gigante onde decorreria a reunião
A própria estação científica de Iwik sofreu também uma pequena “revolução”, tendo
sido parcialmente remodelada para a reunião da FIBA e para servir de estrutura de
apoio logístico para todos os acontecimentos.
Durante esses dias todos os habitantes do Parque contribuíram para a cerimónia
performativa: os homens vestiram os seus melhores boubous, as mulheres estrearam
as melahfâ-s da moda, e também grande parte dos “toubabs” (nome pelo qual são
conhecidos os europeus) com um papel relevante na reunião em questão acabaram
por usar o indispensável boubou numa ou noutra circunstância. Reinava a maior agi-
tação durante esses dias e nós juntámo-nos à azáfama colectiva.
No decorrer da reunião as mulheres e os homens aglomeravam-se separadamente
nas esteiras da grande khaīmâ, intervindo inicialmente apenas um representante de
cada uma das aldeias. Estavam também presentes representantes de ONG’s interna-
cionais, assim como de organismos estatais mauritanos.
Na reunião cada um dos representantes de cada uma das aldeias faz um balanço
sobre a actividade piscatória e a recente actividade turística dos acampamentos. Ques-
tões como a do tamanho da malha de redes autorizadas, ou as restrições de captura às
espécies protegidas são assuntos quentes e polémicos. Também o ponto da situação no
que diz respeito à actividade turística é motivo de controvérsia, pois nem todas as
aldeias usufruem das mesmas condições e dos mesmos apoios por parte do PNBA na
gestão dos seus acampamentos.
No segundo dia de trabalhos foram discutidas novas medidas de protecção do
ecossistema do PNBA. Este é sem dúvida o momento mais conflituoso da reunião, já
que essas medidas são alvo de negociações demoradas em busca de um consenso que
satisfaça tanto as medidas proteccionistas do Parque como a sobrevivência económica
das populações Imraguen.
Esta reunião é tida pela direcção do PNBA como um importante momento na ges-
tão do Parque, pois é um instrumento formal de participação das populações nas polí-
ticas e decisões que dizem respeito às actividades económicas que têm lugar no seio
do mesmo. Também para as populações ela representa, como iremos ver, um canal
efectivo de reivindicação no acesso aos recursos (piscatórios e turísticos), e é um acon-
tecimento onde estas têm possibilidade de negociar com o PNBA as medidas e regu-
lamentações que irão ser postas em prática.
Sendo o único evento onde é dada às populações a possibilidade de dialogarem e
negociarem directamente com as autoridades do PNBA, a mobilização para o mesmo
é de um grande investimento de parte a parte.

Castelos a Bombordo - FINALx.indd 200 27-03-2013 16:57:50


MAURITÂNIA A BOMBORDO • 201

Entre a polifonia e a unidade: as valências de se ser Imraguen

Este acontecimento, onde se reúnem oficialmente as populações do Parque e os


seus decisores, é bom para analisar como as negociações relativamente aos recursos
do Parque são feitas e como esta população, francamente isolada e empobrecida, faz
uso da sua identidade “tradicional” para reivindicar apoios.
Neste Atelier de Concertação as populações falavam em uníssono a partir da “sua”
identidade Imraguen, “pacífica e pacificadora”, que só havíamos presenciado anteriormente
na sua relação com os turistas. De facto, durante as duas estadias no terreno pudemos
observar que na relação com os turistas e no contexto dos acampamentos turísticos, as
populações se apresentavam constantemente enquanto Imraguen. Em Arkeiss, por exemplo,
a população apresentava-se assim aos turistas, reproduzindo de alguma forma os discursos
publicitários do Parque. Com o tempo, viemos a compreender que esta identificação era
limitada a esse contacto. Como fazíamos constantemente perguntas sobre as práticas de
pesca dos Imraguen, rapidamente nos foi esclarecido que “eles não eram Imraguen”. A
aldeia de Arkeiss, que era na verdade constituída por pessoas com relações de parentesco
muito próximas entre si, foi a última a fixar-se no Parque. Estas pessoas não tinham práticas
de pesca muito sofisticadas e foi-nos por elas dito que vinham de “la brousse” (expressão
tomada do francês para fazer referência às regiões interiores da Mauritânia).
No entanto, no decorrer da reunião, foi a partir de uma tribuna igualitária, onde
a identidade Imraguen constituía o elemento unitário, pondo de lado por momentos
as polifonias familiares e tribais, que as populações fizeram reivindicações e exigências
várias ao PNBA sobre as condições de vida, o seu acesso aos recursos marítimos e a
sua participação no desenvolvimento do ecoturismo.
Neste processo, também os elementos constitutivos dessa mesma identidade foram
utilizados como armas reivindicativas. Numa das intervenções, uma aldeã repetia
incansavelmente: “Os Imraguen são como os golfinhos, os Imraguen são golfinhos!
Também nós temos de ser espécie protegida!”. A referência aos golfinhos é aqui para-
digmática, pois como já foi referido os Imraguen são recorrentemente descritos como
uma comunidade que pesca em simbiose com os golfinhos. Apesar de esse modo de
pesca ter sido substituído, ainda é esta referência “romântica” que prevalece no dis-
curso projectado sobre os Imraguen na actualidade.
É de notar que aqui o mimetismo funciona em relação à associação com os golfi-
nhos de diferentes formas. Faz todo o sentido que a imagem tradicional dos métodos
de pesca dos Imraguen, mesmo sendo anacrónica, seja apropriada porque ela mesma
faz alusão a uma das questões centrais no PNBA: a relação dos Imraguen com o meio
ambiente a que eles, ao serem assim naturalizados, pertencem, fazendo uso de uma
retórica, por assim dizer, meta-ecológica.

Castelos a Bombordo - FINALx.indd 201 27-03-2013 16:57:51


202 • CASTELOS A BOMBORDO

Ao valorizarem a sua proximidade com os golfinhos, os Imraguen pretendem tam-


bém afirmar a sua identificação estreita com o meio ambiente em perigo: para além de
serem tradicionais eles são também naturais e ecológicos. Sabendo que é o discurso da
preservação da natureza e das espécies que mais peso tem no quotidiano do PNBA,
esta identificação com os elementos da natureza em perigo mostra a habilidade com
que manipulam discursos alóctones. Não é só o discurso sobre as tradições que pode
ser apropriado em proveito dos Imraguen, mas também o discurso, omnipresente no
PNBA, sobre a natureza.
Estamos pois perante um exercício de mimetismo, interesse e apropriação comuns
nos encontros em espaços turistificados, mas alargado a outras esferas. Se é este o dis-
curso veiculado pelas agências turísticas e legitimado por académicos, porque não fazer
uso dele e do seu impacto naïf numa instituição de defesa da natureza? E já que serve
para promover turisticamente o Parque, não poderá também servir como arma discur-
siva na luta por direitos e regalias face às políticas do mesmo?

Atelier de Concertação
2006 © Lucas

Os terrenos ambíguos da gestão participativa

O Atelier de Concertação do PNBA é, portanto, um espaço deixado para as popu-


lações se expressarem. Sabe-se, à partida, que este momento é assim concebido para
acelerar um processo de entendimento mútuo: o PNBA quer regular aquele território

Castelos a Bombordo - FINALx.indd 202 27-03-2013 16:57:51


MAURITÂNIA A BOMBORDO • 203

através de directivas de conservação e preservação e pretende ter como pano de fundo


um relacionamento pacífico com as populações. Trata-se do que se convencionou cha-
mar de gestão participativa.
O PNBA pretende gerir um vasto território ecologicamente diverso e rico num país
onde a mobilidade espacial tem as suas especificidades. A distância espacial entre o cen-
tro administrativo do Parque e o território propriamente dito, obriga a ter em conside-
ração que existem dois pólos dentro de uma mesma instituição, de uma mesma gestão.
O Atelier de Concertação é o evento que liga formalmente estes dois pólos. Ao
apelarem, como se disse anteriormente, à sua condição de “protegidos” do Parque, os
intervenientes Imraguen tentaram ao máximo rentabilizar o facto de estarem inseridos
numa área protegida, talvez calculando que pudesse existir algum investimento neles
e na melhoria das suas condições de vida. Eles sabiam que estavam perante uma audi-
ência excepcional: não só o presidente e outros membros executivos do PNBA mas
também membros da FIBA, sobretudo estrangeiros, que as populações locais percep-
cionam como os grandes financiadores das actividades do Parque.
Alguma literatura antropológica analisa a forma como as políticas de conservação
e os parques nacionais modificam a utilização dos recursos de uma população pré-
-residente à sua constituição (Goldman 2003, Orlove & Brush 1996, West et al. 2006),
mas uma vez instalados, podem ser vistos como agentes relativamente próximos a que
se pode recorrer, um rosto visível com quem se pode dialogar e sobretudo uma fonte
de possível apoio e financiamento.
Muitos dos parques nacionais em África foram estabelecidos durante o período
colonial (Honey 1999), integrados numa estratégia de organização do território e dos
seus recursos aplicada pelos estados colonizadores. A sua gestão foi quase sempre cen-
tralizada e excluiu as populações locais da tomada de decisões que influenciavam dras-
ticamente as suas vidas. A gestão participativa surgiu assim num período de crescente
preocupação ecológica como forma de minorar este impacto, partindo do princípio que
a preservação pode ser melhor conseguida tendo em conta as vontades e as vivências
das populações que habitam estes territórios. Para que o PNBA conseguisse a aceitação
e a aplicação das suas directivas de conservação, principalmente no que se refere às
espécies e quantidades de peixe pescado, meio remuneratório central para as popula-
ções, era necessário gerar compensações. A criação de um estaleiro naval em R’gueiba,
o apoio na compra de material de pesca, o investimento no ecoturismo, a tentativa de
encontrar soluções hídricas viáveis para uma região desértica e de difícil mobilidade, a
incorporação de pessoas das aldeias como funcionários locais, foram formas encontra-
das de compensar as populações e de as acomodar a um aparelho de gestão e controlo.
Mas nem sempre a gestão é completamente participativa, como veremos adiante,
nem o controlo é totalmente efectivo. O PNBA não consegue dar conta de tudo o que

Castelos a Bombordo - FINALx.indd 203 27-03-2013 16:57:51


204 • CASTELOS A BOMBORDO

acontece nas oito aldeias do Parque e num território com 12 000 Km2. Esta é também
uma oportunidade para as populações gerirem os recursos disponíveis, nem sempre
concordantes com as políticas do Parque. Um dos funcionários do PNBA referiu-nos,
em conversa informal, que pelo menos 50% da tripulação dos barcos de pesca deve-
riam ser residentes e autóctones das aldeias do Parque. No entanto, uma percentagem
razoável de pescadores do Senegal e de outras regiões do país (uma percentagem que
segundo o conservador é cada vez maior) integram a tripulação das embarcações Imra-
guen. O crescimento de migrantes sazonais para a pesca à corvina é associado ao
aumento da pesca para objectivos comerciais. Para o funcionário a mão-de-obra estran-
geira, mais barata, substitui os pescadores Imraguen, que terão assim de se debater
para ganhar espaço no novo mercado de trabalho. Como membro do PNBA, o seu
discurso mostra um desejo de protecção da população local, que sendo autóctone
deveria ser privilegiada como tripulante dos barcos.
Os proprietários dos barcos, por seu lado, acabam por gerir a sua actividade tendo
em conta os benefícios económicos da mesma, indiferentes, na sua maioria, às ques-
tões de protecção dos pescadores locais. Foi-nos dito também, que muitos deles não
seriam Imraguen, mas sim indivíduos que tinham vindo das regiões interiores da Mau-
ritânia (o que se comprova através do exemplo de Arkeiss), e cujos laços tribais àquela
região permitiam a sua fixação no local, usufruindo assim de uma actividade comercial
em franca expansão.
No caso da população de Arkeiss, estes laços tribais mantidos com o território do
PNBA são um exemplo de como uma população reivindica direitos de usufruto e ocu-
pação do território. Na Mauritânia pré-colonial a propriedade do solo era regulada
de forma consuetudinária, tendo a administração colonial tentado implementar o
regime da propriedade privada, que significava ao mesmo tempo um apelo à sedenta-
rização (Leservoisier, 1994). É com base nesta utilização ancestral do território que os
habitantes de Arkeiss legitimaram a sua ocupação em 1993: “Anteriormente implan-
tados no norte (bairro da Tcharka em Nouadhibou) (…) eles reivindicam, desde que
se instalaram na aldeia de Arkeiss, uma presença antiga na zona do Parque enquanto
nómadas e pescadores ocasionais” (Ould Cheikh 2003:6 – tradução nossa).
Se o PNBA se afigura como um novo gestor daquela área geográfica, não significa
que a sua presença tenha eliminado anteriores formas de apropriação do território,
genealogicamente justificadas. Os Imraguen e outras populações ocupantes da costa,
continuam a relacionar-se com essas antigas apropriações, respeitando-as ou tentando
alterá-las para benefício pessoal ou familiar. Mas a grande parte dos Imraguen conti-
nua a constituir a base de uma pirâmide social. Sem recursos monetários para a cons-
trução dos seus próprios barcos, acabam por integrar as tripulações e, como já se viu,
em franca concorrência com mão-de-obra estrangeira.

Castelos a Bombordo - FINALx.indd 204 27-03-2013 16:57:51


MAURITÂNIA A BOMBORDO • 205

Da mesma forma, as cooperativas de turismo, supostamente orientadas para as


mulheres, acabam por não ser exclusivamente geridas por elas. Por exemplo na aldeia
de Arkeiss, verificamos que as mulheres realizam todas as tarefas que se referem à pre-
servação das tendas turísticas (actividade normalmente realizada pelas mulheres mais
velhas) e alimentação dos turistas (confecção e serviço). No entanto, são os homens
que fazem o controlo da chegada dos turistas e que recebem o pagamento da estadia.
A separação das tarefas da actividade turística parecia seguir mais uma lógica de
organização familiar e social, onde as mulheres desempenham as tarefas domésticas
(cozinhar, coser, servir) e os homens encarregam-se das tarefas masculinas (pesca, con-
tacto com os turistas, gestão financeira, transporte de mercadorias e água). O facto de
dominarem o francês e de terem possibilidades de mobilidade no Parque e no país (o
que é raro para as mulheres, sobretudo quando sozinhas) parece tê-los privilegiado
numa série de conhecimentos práticos, como a leitura, a escrita e a contabilidade. Em
Iwik, a face visível do acampamento da cooperativa era também um homem, que apro-
veitou o desconhecimento de francês por parte das mulheres e a sua fraca capacidade
de mobilidade para poder dirigir as actividades.
A autenticidade das populações locais, o favorecimento das mulheres nas actividades
turísticas e a gestão participativa dos recursos, são imagens de marca de uma instituição
como o PNBA, que são sedutoras para os financiadores e apoios estrangeiros, interessa-
dos em políticas de desenvolvimento que tenham como alvo populações em situação de
fragilidade. A etnografia mostrou-nos no entanto, que existem outras formas de gestão
e controlo dos recursos, nem sempre concordantes com essas mesmas imagens distintivas.

Parque Nacional do Banco de Arguim 2006. © Lucas

Castelos a Bombordo - FINALx.indd 205 27-03-2013 16:57:51


206 • CASTELOS A BOMBORDO

Tidra: a ilha cobiçada

Numa luminosa manhã no PNBA, a estação científica que se encontra junto à


aldeia de Iwik desperta em alvoroço: um ancião da aldeia decide levar as suas cabras
a pastar, e como as pastagens não abundam na parte continental do Parque, acaba
por colocar as cabras numa embarcação para as levar para a ilha de Tidra, onde o
pasto seria, a seu ver, mais abundante. Situação normal, não fora o PNBA ter deter-
minado a interdição no acesso às ilhas circundantes da aldeia de Iwik, lugares consi-
derados fundamentais do ponto de vista biológico para a alimentação e nidificação
das aves migratórias que sazonalmente habitam o lugar.
Desta forma o ancião de Iwik estaria a incorrer numa infracção: o acesso às ilhas
é, por decisão do PNBA, proibido a pessoas e a animais, sendo que esta medida faz
parte do decreto de funcionamento do Parque. Acontece que o ancião não estava des-
provido de argumentos, fazendo referência à ilha de Tidra como sendo propriedade
da sua tribo – os Ūlād Busba’ – antes da criação do PNBA. Aqui a tradição, o passado
e a pertença tribal são argumentos legítimos para levar as suas cabras a pastar no local
apesar da interdição do Parque.
O ancião acabou por transportar efectivamente as suas cabras para a ilha de Tidra,
situação difícil de gerir pela estrutura do PNBA, donde o director chegou a pedir inter-
venção policial. Este episódio termina com a retirada da ilha de Tidra, coagida pela
polícia, do ancião e das suas cabras, e com um pedido de desculpas deste ao director
do PNBA.
Este episódio mostra-nos como a mesma tradição que é invocada pelo PNBA para
promover as populações Imraguen que habitam no território por si gerido, nem sem-
pre é reconhecida quando é reclamada pelas próprias populações. O discurso da tra-
dição, tal como o discurso da ecologia, utilizado pelas populações locais, dificilmente
adquire o mesmo peso e a mesma eficácia quando invocado pelo próprio PNBA. O
discurso per si não é valorizável, ele é-o dependendo de quem o verbaliza e o credibi-
liza, e em que circunstâncias o faz.
Como já foi sobejamente observado, os processos de objectivação e objectificação
da cultura (Handler 1997) são especialmente activados em situação de encontro turís-
tico (Boissevan 1996), onde os “anfitriões” só se descobrem enquanto turisticamente
“valiosos” aos olhos dos “hóspedes”. Os processos de reconhecimento mimético igual-
mente presentes noutros contextos coloniais e pós-coloniais (Taussig 1993, Bhabha
1994) encontram no PNBA uma forma de expressão, desta feita operando sobretudo
a partir do discurso da promoção turística destas populações para consumo ocidental,
que as descreve invariavelmente como tradicionais, ocultando de alguma forma os seus
dinamismos e modernidades.

Castelos a Bombordo - FINALx.indd 206 27-03-2013 16:57:52


MAURITÂNIA A BOMBORDO • 207

A tradição transforma-se assim em valor, uma mais-valia para a identidade des-


tas populações pitorescas, tal como é descrito e vendido nas brochuras promocio-
nais do Parque. Percebemos desta forma que a tradição que o PNBA está apto a
divulgar como marca identitária das populações Imraguen e atracção turística, não
é a mesma que está disposto a aceitar quando se trata de negociações concretas no
terreno.
As leis que definem os usos da propriedade são, em muitos contextos pós-coloniais,
instrumentos estranhos para as populações que a elas se vêm sujeitas. Por essa mesma
razão, elas muitas vezes não reconhecem validade e legitimidade dessas novas apropria-
ções do território. Muitos destes processos de apropriação e reforma foram iniciados
pelos Estados (durante o período colonial mas também depois da independência de
muitos países africanos) que foram sempre encontrando formas de resiliência locais.
Em vários locais do mundo, as populações reconstroem historicamente a sua identidade
colectiva em relação com uma terra precisa. Assim, tentam forçar os estados e outros
ocupantes mais recentes das terras a aceitarem o seu usufruto nos moldes que lhes pré-
-existiam. Como refere Merry:

Os grupos normalmente reivindicam direitos legais na base de tratados antigos ou na


base da posse comunal da terra. (…) Os processos legais relativos a direitos à terra e à sobe-
rania, juntamente com uma nova pesquisa antropológica, têm ajudado a desenvolver novas
concepções sobre as relações das populações indígenas com a terra, que são necessariamente
dinâmicas, interactivas e historicamente informadas, por oposição a modelos ahistóricos
derivados de uma teoria ecológica estrutural-funcionalista (Merry 1992: 369, tradução nossa).

As leis nacionais e internacionais, modificaram muitas vezes formas de apropriação


do território (comunais ou outras, tribais e familiares neste caso) e esqueceram a exis-
tência prévia de formas de propriedade. Neste caso o PNBA baseia-se numa legislação
de protecção de recursos ecológicos; desprovido destes argumentos legais, o ancião
reivindica uma pertença tribal da ilha, que verdadeira ou não, ele considera ser sufi-
ciente para a sua utilização. Este braço de ferro, com a tradição pelo meio, vem con-
firmar que,

Quando numa aldeia se reivindicam terras ou direitos comuns “com base em costumes
de tempos imemoriais”, o que expressa não é um facto histórico, mas o equilíbrio de forças
na luta constante da aldeia contra os senhores da terra ou contra outras aldeias (Hobsbawm
1997:10).

Castelos a Bombordo - FINALx.indd 207 27-03-2013 16:57:52


208 • CASTELOS A BOMBORDO

Conclusão

A constituição do PNBA em 1976 veio sem dúvida transformar a realidade e o


quotidiano das populações que aí habitavam anteriormente. Entre outras questões, a
forma como viviam, o que pescavam e a forma como se relacionavam com o meio
ambiente que as rodeava, tudo passou a ser regulamentado e escrutinado tendo em
conta lógicas proteccionistas que até então lhes eram desconhecidas.
Desde então as populações foram aprendendo a incorporar e a subverter as lógicas
da gestão participativa, da natureza, da conservação e da tradição, apropriando-se de
novos significados e reconfigurando situacionalmente a sua identidade, tendo em conta
contextos económicos e políticos concretos.
A gestão participativa do PNBA é uma forma de atribuir responsabilidade à popu-
lação nas políticas conservacionistas; no entanto esta deixa de ser operante quando é
preciso definir o gestor último do território. Numa lógica de valorização ambiental,
novas formas de constrangimento do uso do território estão operacionais, seja no Par-
que Nacional do Banco de Arguim ou noutros locais do mundo. Esta lógica é o resul-
tado de uma devoração sôfrega dos recursos, característica da economia capitalista
dos séculos XX e XXI, que as populações podem integrar, debater ou combater, sem
jamais poderem manter-se indiferentes.
São as diferentes situações e relações de poder que fazem com que a população
do Parque, Imraguen ou não, alterne na utilização de vários registos reivindicativos.
Por vezes é o seu carácter tradicional que é validado, noutras é a sua situação de “pro-
tegidos”; noutras ainda é a pertença familiar e tribal que preside. Aqui, procurámos
mostrar algumas das contradições e desafios com que se deparam quotidianamente
estas populações da costa atlântica da Mauritânia, e como a introdução de conceitos
e práticas que lhes eram desconhecidos criam condições para a possibilidade de novos
e diferentes equilíbrios.

Castelos a Bombordo - FINALx.indd 208 27-03-2013 16:57:52


MAURITÂNIA A BOMBORDO • 209

Bibliografia

ANTHONIOZ, Raphaële, 1967, “Les Imragen, pêcheurs nomades de Mauritanie (El Memghar)”, Bulletin
de l’Institute Français d’Afrique Noire, XXIX (3-4), pp. 319-360.
BARTH, Heinrich, 1858, “Reisen und Entdeckungen in Nord- und Central-Afrika, in den Jahren 1849
bis 1855”. Band 5; Tagebuch seinerim Auftrag der brittischen Regierung unternommenen Reise -J. Per-
thes (Gotha) 1857-1858.
BELLEDENT, Françoise, 1998, “Pêche et villes en Mauritanie”, Fascicule de Recherches. URBAMA n.º
33, pp. 163-174.
BHABHA, Homi, 1994, The Location of Culture. Londres, Routledge.
BOISSEVAIN, Jeremy, 1996, Copping with Tourists: European Reactions to Mass Tourism. Oxford, Ber-
ghahn Books.
BONTE Pierre & Edouard Conte, 1992, “Introduction. La tribu Arabe approches anthropologiques et
orientalistes”, em BONTE Pierre e Édouard Conte (eds.), Al-Ansab: la quête des origines: anthropolo-
gie historique de la société tribale arabe. Paris, Editions de la Maison des Sciences de l’Homme.
BOULAY, Sébastien, 2010, “La adopción de técnicas canarias por los pescadores Imraguen del litoral mau-
ritano (segunda mitad del siglo XX) préstamos, patrimonio y dinámicas sociales”, em López Bargados,
A. e J. Martinez Milán (eds.) Cultural del litoral. Dinámicas fronterizas entre Canarias y la costa
sahariano-mauritana. Barcelona, Edicions Bellaterra.
CARATINI, S., 1978, “Les Imraguen Pêcheurs Semi-nomades de la cote mauritanienne”. Documento
Inédito, Centro de Documentação do PNBA.
CARVALHEIRA, Raquel, 2008, “Aproximar os homens e as culturas”: etnicidade e discursos sobre a cul-
tura no universo associativo de Nouakchott Mauritânia, Dissertação de Mestrado em Antropologia,
Instituto de Ciências Sociais da Universidade de Lisboa, Lisboa.
CÉNIVAL, Pierre de; e Théodore Monod, 1938, Description de la côte d’Afrique de Ceuta au Sénégal par
Valentim Fernandes (1506-1507). Paris, Librairie Larose.
FORTIER, Corinne, 2004, “Au miroir de l’autre: Chasseurs (Némadi) et pêcheurs (Imraguen) dans un monde
de pasteurs nomades (Mauritanie)” [online]. Disponível em <www.alor.univ-montp3.fr/cerce/r7/c.f.htm>
Ethnologies comparées, n.º 7 Printemps 2004 Figures Sahariennes. (acesso em 20-01-2012)
GOLDMAN, Mara, 2003, “Partitioned Nature, Privileged Knowledge: Community-based Conservation
in Tanzania”, Development and Change, 34 (5): 833-862.
HAMÉS, Constant, 1969, “La Société Maure ou le système de castes hors de L’Inde”, Cahiers Internatio-
naux de Sociologie, XLVI (Janvier – Juin), pp. 163–177.
HOBSBAWM, Eric & Terence Ranger, 2002 [1983], A Invenção das Tradições. Rio de Janeiro, Paz e
Terra.
HONEY, Martha, 1999, Ecotourism and sustainable development: who owns paradise? Washington D.C.,
Island Press.
LESERVOISIER, Olivier, 1994, La question foncière en Mauritanie; Terres et pouvoirs dans la région du
Gorgol. Paris, Éditions L’Harmatan.
LÓPEZ BARGADOS, Alberto, 2003, Arenas coloniales. Los Awlad Dalim ante la colonización franco-
-española del Sáhara. Barcelona, Edicions Bellaterra.
LOTTE, Lieutenant, 1937, “Coutumes des Imraguen (côtes de Mauritanie, AOF)”. Journal de la société
des Africanistes, 7 (1): 41-51.
LUCAS, Joana, 2008, Um serviço de chá e um kit GPS: Reconfigurações identitárias e outros desafios entre
os Imraguen da Mauritânia, Dissertação de Mestrado em Antropologia: Multiculturalismo e Identidades,
Instituto Superior do Trabalho e da Empresa, Lisboa.

Castelos a Bombordo - FINALx.indd 209 27-03-2013 16:57:52


210 • CASTELOS A BOMBORDO

MAIGRET, Jacques, 1984, “Les Imraguen, pêcheurs des côtes de la Mauritanie: une technique Ancestrale”.
Vémes Rencontres Internationale d’Archéologie et d’Histoire, Antibes, Octobre 1984, pp. 205-214
MARCHESIN, Phillipe, 1992, Tribus, ethnies et pouvoir en Mauritanie. Paris, Karthala.
MERRY, Sally Engle, 1992. “Anthropology, Law, and Transnational Processes”. Annual Review of Anthro-
pology, 21: 357-379.
ORLOVE, Benjamin & Stephen Brush, 1996, “Anthropology and the Conservation of Biodiversity”, Annual
Review of Anthropology, 25: 329-52.
OULD CHEIKH, Abdel Wedoud, 1985, Nomadisme, Islam et pouvoir politique dans la société Maure
précoloniale (XIes. – XIXes.): Essai sur quelques aspects du tribalisme, Tese de Doutoramento, Université
de Paris V – René Descartes.
OULD CHEIKH, Abdel Wedoud, 2002, “L’identité Imraguen et la gestion locale de l’aire du PNBA. Appro-
che historique et sociologique, Nouakchott e Dakar, PNBA e IRD.
OULD CHEIKH, Abdel Wedoud, 2003, “Analyse des modes de régulation de l’accès aux ressources natu-
relles renouvelables. Aspects sociologiques”. Projet CONSDEV, Estrasburgo, Parc National du Banc
d’Arguin.
OULD CHEIKH, Abdel Wedoud, 2010, “Los pescadores Imraguen del Banco de Arguin (Mauritania): la
invención de una identidad “ecológica”, em López Bargados, A. e J. Martinez Milán (eds.) Cultural del
litoral. Dinámicas fronterizas entre Canarias y la costa sahariano-mauritana. Barcelona, Edicions Bel-
laterra.
PELLETIER, François Xavier, 1975, “Symbiose entre l’Amrig et le dauphin sur la cote mauritanienne”,
L’homme et l’animal, 1er Coll. d’Ethnozoologie. Paris, Inst. Int. Ethnosciences.
REVOL, Lieutenant, 1937, “Etude sur les fractions d’Imraguen de la Côte mauritanienne”, Bulletin du Comité
d’Etudes Historiques et Scientifiques de l’Afrique Occidentale Française, XX, n.º 1-2: 179-224, Paris.
SENEH, Khadijetou & Steck, Benjamin, 2011, “La route Nouakchott-Nouadhibou: Un enjeux décisif pour
le Parc national du Banc d’Arguin”, em BOULAY Sébastian e Bruno Lecoquierre (eds.), Le littoral mau-
ritanien à l’aube du XXIème siècle: Peuplement, gouvernance de la nature, dynamiques sociales et cultu-
relles, Paris, Karthala, pp. 173-196.
TROTIGNON, Elisabeth, 1981, “Données socio-économiques sur le village de pêcheurs Imraguen d’Iwik
(Mauritanie)”, Bulletin de l’Institute Français d’Afrique Noire, Sér. B, 43 (3-4): 319-360.
VILLASANTE-DE BEAUVAIS, Mariella, 1997a, “Genèse de la hiérarchie sociale et du pouvoir bidan”,
Cahiers d’Études Africaines, 147, XXXVII: 587-633.
VILLASANTE-DE BEAUVAIS, Mariella, 1997b, “Parenté et politique en Mauritanie. Quelques aspects de
la relation entre la qabila et l’Etat à partir de l’exemple de Ahl Sidi Mahmud”, The Maghreb Review,
22 (1-2): 5-40.
VINCENT, H, 1860, Voyage d’exploration dans l’Adrar (Sahara Occidental), Revue Algérienne et Coloniale,
III. Paris, Librairie de L. Hachette et Cie.
WEST, P. & J. Igoe & D. Brockington, 2006, “Parks and Peoples:The Social Impact of Protected Areas”,
Annual Review of Anthropology, 35: 251-77
ZURARA, Gomes Eanes de [1453] (1973). Crónica de Guiné. Lisboa, Livraria Civilização.

Castelos a Bombordo - FINALx.indd 210 27-03-2013 16:57:53


ROTAS, MERCADOS E ELIK
Das caravanas à apropriação local da goma-arábica
na modernidade de um oásis mauritano1

AMÉLIA FRAZÃO-MOREIRA

A goma-arábica (eliK em hassāniīa) é um produto de origem vegetal que foi desde


cedo integrado nas redes de trocas económicas “entre-mundos” e assim sujeito, ao
longo dos séculos, de diferentes rotas, mercados e utilizações industriais, não perdendo,
no entanto, importância nas práticas socais locais.
Antes de mais, apresente-se este produto. A goma-arábica é a exsudação natural
de algumas acácias. Existem cerca de uma centena de espécies de acácias que produ-
zem goma, nas quais se incluem as que são comercialmente importantes como a goma-
-arábica. As populações destas acácias produtoras de goma-arábica, principalmente
Acacia senegal e Acacia seyal, localizam-se no Sul do deserto do Saara, da Mauritânia
à Somália. Estas acácias aparecem também de modo disperso ao longo da orla norte
do Saara e nas regiões de planaltos desertos (Burkill 1995; Howes 1949; Webb 1985).
Na Mauritânia, situam-se no Sul, nas regiões de Trarza, Brakna, Assaba, Guidimakha,
Gorgol, Hodh El Gharbi e Hodh El Charqui. Com a progressiva desertificação as
árvores têm vindo a desaparecer, sendo praticamente inexistentes nas regiões de Brakna
e Gorgol.
A designação de “arábica” terá surgido por, originalmente e pelo menos desde a
Idade Média, a goma ser enviada da África Ocidental para os postos de tráfico da Ará-
bia e daí para a Europa, sempre por via terrestre, e o com fim de ser utilizada, sobre-
tudo, no fabrico de tecidos.
Actualmente, são várias as aplicações industriais da goma-arábica (Balafon 1987;
Burkill 1995; Coppen 1995; Howes 1949). Na indústria alimentar, muito embora
sofrendo a concorrência de substitutos sintéticos, a goma, dado tratar-se de uma subs-
tância comestível mas não calórica, é facilmente utilizada como aditivo alimentar na
produção de sodas, gelados, produtos dietéticos, etc. Por outro lado, não sendo tóxica,
a goma é igualmente usada na cosmética e na produção de medicamentos industriais,
essencialmente como colóide e demulcente. As suas aplicações estendem-se a outras
indústrias, entre elas a do papel e a dos têxteis, quer na preparação de colas e tintas,

1
Este texto retoma alguns elementos apresentados no “IVth International Congress of Ethnobotany” (ICEB 2005) e publicados
em Frazão-Moreira 2006 e outros apresentados no “Xth International Congress of Ethnobiology” (ICE 2006).

Castelos a Bombordo - FINALx.indd 211 27-03-2013 16:57:53


212 • CASTELOS A BOMBORDO

quer na estampagem e no polimento dos tecidos. Por tudo isto, o comércio interna-
cional deste produto vegetal, permanece.
A observação e recolha directa realizada no contexto de uma vila mauritana do
Adrar, Ouadane, permite afirmar que, em termos locais, a goma-arábica mantém, na
contemporaneidade, usos e sentidos quotidianos do passado, entre eles os etnofarma-
cêuticos e artesanais.2 Pelo que, percorrer as rotas transcontinentais deste produto
vegetal e observar as suas apropriações locais, permite, afinal, clarificar como proces-
sos de reprodução cultural local com contornos de estabilidade, se estabelecem a par
dos mecanismos históricos complexos de globalização de mercados e consumos.

Rotas. Protagonismo histórico dum produto vegetal


no início do comércio atlântico

(…) os Portugueses exportam principalmente as seguintes categorias de mercadorias:


1) todas as espécies de artigos de vestuário (albornozes, alquicés, alambéis, bordates, panos
da Irlanda, panos do Condado, panos franceses3); 2) trigo; 3) selins, bacias, prata, coral
vermelho, pedras de cornalina (de alto valor); 4) especiarias (açafrão, cravo, pimenta, gen-
gibre). Por escambo, os Mouros fornecem-lhes escravos negros, ouro, peles de antílope,
almíscar, camelos, vacas, cabras, ovos de avestruz, goma. (…) as transacções desenrolam-se
por permuta, sem intervenção de moeda (ou antes, de pesos de metal amarelo), a não ser
como padrão de valores. Quase todas as operações comerciais são monopólio régio, mas
o capitão, o feitor e o escrivão participam nos lucros.(descrição de João Rodrigues, que
esteve em Arguim de 1493 a 1495; Godinho 1991 [1963]: 147)

É possível reconstruir as rotas de tráfico na África Ocidental a partir do séc. VII (Devisse
1990; Godinho, 1956a)4. Os produtos essenciais destas rotas eram, vindo do Norte, o
sal, e, do Sul, o ouro, os escravos e a goma. Mas outros bens eram igualmente trocados:
o cereal, o couro, o cobre, as pedras preciosas, o âmbar cinzento, os cauris e as tâmaras.

2
No trabalho de terreno que realizei muito fiquei a dever: aos especialistas mauritanos, a partilha dos seus saberes; a António
Araújo (conservador do Parque Nacional do Banco de Arguim) e a Zeida (Hospedaria Vasque em Ouadane), a generosa hospi-
talidade com que me receberam e apoiaram; e a Mohamed Lemine Ould Kettab, a disponibilidade enquanto tradutor. Agradeço
igualmente a Luís Carvalho (ESAB/IPB) e a Margarida Fernandes (FCSH/UNL) as sugestões bibliográficas e a Cristina Duarte
(Centro de Botânica/IICT) o trabalho de identificação botânica das plantas colhidas.
3
Albornozes seriam gabões com mangas e capuz; alquicés, capas de lã; alambéis, tecidos coloridos e bordates, tecidos.
4
Tanto J. Devisse (1990) como V. M. Godinho (1956a) reconstroem pormenorizadamente os itinerários transaarianos ante-
riores ao séc. XV, com base nas fontes árabes, e Godinho (1956a; 1962; 1991) fundamenta as descrições posteriores sobretudo
nas fontes históricas portuguesas, entre as quais: Zurara 1994 [1453]; Pereira 1905 [1505-1520], Cadamosto1948 [1507] e
Fernandes 1940 [1507]. Das descrições dos dois historiadores foram retirados para este texto apenas alguns aspectos, de forma
a enquadrar a importância, quer da goma-arábica enquanto produto do tráfico transsaariano, quer de Ouadane e Arguim como
entrepostos do seu comércio.

Castelos a Bombordo - FINALx.indd 212 27-03-2013 16:57:53


MAURITÂNIA A BOMBORDO • 213

Uma destas rotas percorria o Saara atlântico, unindo os oásis do Sul de Marrocos,
a R’kiz, Tagante e ao Senegal, e tinha as escalas principais na serra Bafor (Adrar mauri-
tano) e, a Sul, em Audaghoste. Os itinerários não permaneciam fixos, quer por motivos
geofísicos, quer por razões políticas, pelo que as escalas e mercados mais importantes
foram-se alterando ao longo dos séculos5. Assim, a partir do séc. XI a rota referida
deslocou-se para Oeste e a escala principal no Adrar mauritano passou a ser Azougui6,
para mais tarde, no séc. XIII, o itinerário sofrer nova inflexão para Leste e Ouadane
ganhar importância como ponto de paragem.
O estabelecimento da primeira feitoria europeia na costa ocidental de África,
Arguim, fundada entre 1448 e 14507, vai permitir alargar o percurso dos produtos
até à Europa, agora pela rota marítima.
No que diz respeito à goma-arábica, esta chegava a Arguim em caravanas vindas
do Sul, sobretudo da região do Trarza e aí era trocada, quer por produtos manufactu-
rados, como os têxteis, entre eles as mantas fabricadas no Sul de Portugal, ou objectos
diversos (selas, estribos e bacias), quer por prata, coral e pedras vermelhas, ou ainda
por trigo. Como nos relata Magalhães Godinho (1956a; 1962; 1991), este tráfico ter-
-se-á mantido florescente até cerca de 1505.
Iniciava-se então o processo que Emmanuel Wallerstein (1974) mostra conduzir a
uma “economia-mundo”, em que as decisões económicas passam a estar orientadas
primeiramente para o palco do mundo, enquanto que a ordem política continua orien-
tada, principalmente, para estruturas menores sob controlo legal e político.
No séc. XVI, a indústria têxtil, a primeira indústria importante no processo de
industrialização requeria materiais não existentes na Europa: tintas para os tecidos de
algodão e lã e goma para endurecer a seda no processo de acabamento (Godinho 1950,
citado por Wallerstein 1974: 45). E é neste quadro de um processo de “mundialização”
da economia que a importância da goma-arábica foi crescendo.
Contudo, há que ter em atenção que o alargamento das redes económicas a partir
do comércio atlântico não pode ser confundido com o nascer duma lógica económica
totalmente nova, pois trata-se sobretudo de uma “mudança de escala” (Henriques
2004), já que nas sociedades africanas o “valor de troca” era essencial e as relações
intensas entre as diferentes regiões de África, marcadas por fluxos comerciais, popu-
lacionais e de difusão de técnicas, são muito anteriores à presença europeia8.

5
Para entender a relação entre as alterações das rotas comerciais e os ciclos climáticos, ver Blanchard 2005.
6
Esta mudança coincide com o início do império almorávida (séculos XI e XIV), durante o qual Azougui conheceu um período
de prosperidade.
7
Ver referência à feitoria de Arguim em Freire nesta obra.
8
Por exemplo, Bathly (1990) descreve os fluxos entre as regiões africanas, para o período do séc. VII a XI, nomeadamente das
matérias-primas (onde se insere a goma-arábica), dos produtos de subsistência e dos produtos de luxo de uso doméstico (como
os escravos e os cavalos) e dos produtos de consumo de luxo (como os têxteis ou as pedras preciosas).

Castelos a Bombordo - FINALx.indd 213 27-03-2013 16:57:53


214 • CASTELOS A BOMBORDO

Como mostra Ould Cheikh (1999), o “comércio atlântico” não foi sinónimo do
declínio imediato do comércio caravaneiro, a “caravela não ganhou à caravana”. As
rotas terrestres mantiveram-se, e continuaram até os seus percursos a norte de Arguim;
por exemplo a goma-arábica manteve o seu lugar nos mercados marroquinos, nome-
adamente em Safim e Messa, como atestam os documentos da época, sintetizados em
Godinho (1945) e Tavim (1997).
Tal constatação não põe em causa o facto indiscutível de as potências europeias,
devido às necessidades da industrialização emergente, terem tentado dominar o comér-
cio transaariano. Mas sim que:

O tipo de comércio que os portugueses lançaram na África Ocidental, na região do


Congo e na África Oriental nos sécs. XV e XVI (e na sua sequência as outras potências euro-
peias) no início era essencialmente da mesma natureza, e envolvia essencialmente os mesmos
produtos, do comércio transariano, datado pelo menos desde do séc. X, e do comércio do
Oceano Índico que remonta a datas anteriores (Wallerstein 1986:103 – tradução minha)9.

No que se refere ao Sahara, a abertura da via marítima, fez surgir uma verdadeira
“idade da goma” (Ould Cheikh 1991; 1999). Após um período marcado pela impor-
tância do sal, extraído sobretudo das minas de Idjil, e transportado para o Sul (“idade
do sal”), a goma passa a ser o produto comercial mais importante da Mauritânia, como
que um “ouro vegetal” (Cabot 1997).
No que se refere à História do comércio da goma-arábica, são inúmeros os docu-
mentos que dão conta, após o declínio da hegemonia portuguesa, ou seja, entre os
séculos XVI e XVIII, das rivalidades comerciais entre holandeses, franceses e ingleses.
De forma sucinta, pode-se afirmar que o domínio sobre os portos, Arguim e, mais
tarde Portendick (mais a Sul), foi alternando de acordo com as conjunturas políticas
europeias e a manipulação de alianças, por parte dos grupos comerciais, com as dife-
rentes tribos mouras no decorrer dos conflitos locais.
Um estudo exaustivo desse momento histórico é apresentado por Koltermann
(1996). Em concreto, o entreposto até então português, Arguim, foi palco destes atri-
bulados acontecimentos. Após a reunificação de Portugal e Espanha, em 1580, e na
sequência da guerra da independência dos Países Baixos face a Espanha deu-se, em 1633,
a ocupação holandesa de Arguim. Em 1665, os ingleses conquistaram o entreposto mas,
no ano seguinte, a Companhia Holandesa das Índias Ocidentais ocupou de novo a Ilha.
O comércio da goma prosperou, o que levou ao interesse da França, estabelecida já no
Senegal com a Companhia do Senegal, que assim investiu contra os holandeses. Após

9
As traduções das citações ao longo do texto são da responsabilidade da autora.

Castelos a Bombordo - FINALx.indd 214 27-03-2013 16:57:53


MAURITÂNIA A BOMBORDO • 215

uma semana de confronto, nesse mesmo ano, 1666, Arguim ficou sob o domínio fran-
cês. Em 1678, a França e a Holanda estabeleceram um tratado de paz e, então, os fran-
ceses destruíram o forte outrora construído pelos portugueses, na tentativa de chamar
o comércio da goma à Ilha de S. Luís na embocadura do Rio Senegal.
Arguim só vai voltar a estar sob soberania europeia a partir de 1685, devido ao
esforço expansionista brandeburguês. A partir dessa data as Companhias de comércio
brandeburguesas (cujos mercadores e marinheiros eram em grande parte holandeses),
os representantes do rei da Prússia, a Companhia Francesa das Índias Ocidentais e a
Companhia Holandesa das Índias Ocidentais, vão-se alternando na ocupação da Ilha,
nas rivalidades, confrontos e estabelecimento de acordos de comércio, entre si e com
os emiratos mouros de Trarza e Brakna10. Em 1728, os franceses, últimos ocupantes
europeus, retiram-se de Arguim.
Pode-se assim considerar esta época como um período de “guerras da goma”, em
que os grupos comerciais europeus se opunham com o objectivo de alcançar o mono-
pólio do tráfico deste produto (Gillier 1926; Ould Cheikh 1999; Webb 1985). A con-
corrência nos anos seguintes realizou-se, sobretudo, entre franceses e ingleses (numa
relação com as tensões políticas na Europa, nomeadamente com a guerra dos sete anos)
e levou à ocupação por parte da Inglaterra dos entrepostos franceses do Senegal, entre
1759 e 1783 e, mais tarde, entre 1809 e 1817. Com o avançar do séc. XIX, a França
empenhou-se em transformar o território mauritano numa colónia sob administração
conjunta com o Senegal, e o comércio da goma passou a estabelecer-se sob a hegemo-
nia francesa.
Até então, forçosamente que o comércio de modo geral (e com especial relevância
o de escravos) e o da goma-arábica em particular tinham tido consequências nas orga-
nizações políticas locais11. Como nos explica Ould Cheikh (1991:202), o comércio foi
um factor na centralização política a Norte (os xerifados) e a Sul (os impérios sahelia-
nos e os principados berberes), bem como afectou permanentemente os povos nóma-
das em cujos territórios as caravanas passavam, porque os grupos mais fortes nas armas
ou dominantes politicamente beneficiavam das caravanas e as tribos e as suas fracções
envolviam-se no transporte e venda dos bens.
No território que é objecto deste estudo, a tribo biDān Idau al-Hājj, originária de
Ouadane,12 ter-se-á constituído como parceiro comercial privilegiado dos europeus no
comércio da goma, no séc. XVII (Ould Hamedou 1992; Webb 1995). Existe aliás uma estó-

10
Désiré-Vuillemin (1970) faz a história das tensões políticas entre emirados, e no interior dos emirados entre grupos tribais, na
sua ligação com as relações estabelecidas com os europeus no decorrer do comércio da goma-arábica, nos séc. XVII e XVIII.
11
Os estudos de Barry sobre a Senegâmbia (1979; 1989) apontam neste sentido e demonstram as mudanças socio-políticas do
Reino de Waalo, situado nas duas margens do rio Senegal, no Sul da actual Mauritânia e no Norte do actual Senegal.
12
Sobre a questão da origem e estruturação dos Idau al-Hājj ver Freire neste volume. [e, sobretudo, Webb 1995]

Castelos a Bombordo - FINALx.indd 215 27-03-2013 16:57:53


216 • CASTELOS A BOMBORDO

ria, protagonizada por um membro dos Idau al-Hājj, que relata a suposta origem do comér-
cio da goma e que permanece ainda hoje em diferentes versões, como a publicada por
Freire Francisco neste volume. Na narrativa publicada por Ould Hamidou em 1952:

El Emim Ould En-nejib, dos Idaw El Hadj realizou uma viagem de Médersa a Marro-
cos. A sua mãe recomendara-lhe que comesse três bolinhas de goma depois de cada refei-
ção. Chegado a Marrocos foi, com outros viajantes, aos entrepostos europeus da costa. Aí
tomaram uma refeição que deixou todos os outros doentes, mas que não lhe fez mal. Os
europeus perguntaram-lhe porque razão não tinha adoecido e ele atribui o facto à ingestão
de goma. Os europeus perguntaram então em que região se encontrava a goma e ele deu-
-lhes uma carta para o seu irmão Etchfagha Eoubouk, para que os recebesse bem e fizesse
o tratado da goma com eles. E daí adveio uma grande riqueza para os Idaw El Hadj (Ould
Hamidou 1952:14 – tradução minha).13

Nos relatos orais, quer nos recolhidos e estudados por Freire (2009; capítulo nesta
obra), quer no que nos foi relatado em Ouadane por um membro desse grupo tribal,
numa versão de menor riqueza de pormenor, os narradores apresentaram os europeus
como sendo portugueses, podendo-se eventualmente levantar a hipótese de esta iden-
tificação ser influenciada pelo facto dos narradores estarem em face de interlocutores
dessa nacionalidade. De qualquer modo, como nos mostra Freire, esta estória é con-
tada como fundamento e legitimação de posicionamentos sociais auto-reconhecidos.
Remete-nos assim para o carácter reconstruído da tradição oral (Fentress e Wickam
1994), nomeadamente das narrativas africanas (Tonkin 1986). A goma-arábica entra
desta forma também na configuração simbólica das relações políticas históricas que
permanecem até à actualidade.

Mercados. Incorporação de África na “economia-mundo”

Embora fosse uma mercadoria importante do tráfico a bordo dos navios europeus nas
escalas do rio, trocada por contas de vidro e tecidos de algodão (o famoso guinée), a goma
é agora abandonada pela dextrina. O Sul mauritano produz ainda três mil toneladas por
ano, mas o preço caiu de seis francos o kilo em 1927, para um franco e vinte cinco, e depois
um franco em 1934. (relato de viagem de Odette du Puigaudeau, 1933-1934; Puigaudeau,
1992:148 – tradução minha)

13
Podem-se encontrar registos escritos doutras versões desta narração em, por exemplo, Daro 1999. A função dum recurso vege-
tal, normalmente duma planta medicinal, como mediador simbólico face a um grupo social exterior encontra-se noutros contex-
tos africanos. Verifiquei isso nas narrativas nalu da Guiné-Bissau (Frazão-Moreira 2009).

Castelos a Bombordo - FINALx.indd 216 27-03-2013 16:57:53


MAURITÂNIA A BOMBORDO • 217

A resenha das “rotas da goma” no período mercantilista realizada no capítulo ante-


rior coloca este produto vegetal no quadro dos factores materiais, como o ouro, as
madeiras e as tintas (índigo por exemplo), que estão na raiz do desenvolvimento do
capitalismo europeu. Não sendo este o lugar para discutir as teorias do desenvolvi-
mento e subdesenvolvimento económico, é interessante contudo notar como a partir
da história duma matéria-prima industrial se pode rever o processo que introduziu a
dimensão global na rede de relações económicas e políticas.14
Do mesmo modo, continuar a desenhar o percurso da goma-arábica nos mercados
internacionais permite-nos olhar a Mauritânia colonial, até porque, não obstante as flu-
tuações da produção, as oscilações do mercado e as transformações económicas e insti-
tucionais que afectaram o seu comércio, a goma manteve-se um produto importante.
De acordo com as estimativas de Curtin (1975), em 1830, o comércio da goma-arábica
passou a ser o produto africano mais representativo no comércio entre continentes,
substituindo o tráfico de escravos; e virá a ser até a “mercadoria colonial por excelência
dos territórios mouros” (Ould Cheikh 1999: 61).
O comércio da goma foi, como vimos, claramente dominado pelos franceses a
partir do séc. XIX, passando os entrepostos a situar-se a Sul, junto ao rio Senegal. Entre
os meses de Janeiro e Julho realizava-se a grande traite nos pontos do rio onde os
navios dos comerciantes aportavam, e a goma era depois enviada para a Europa a par-
tir de S. Luís no Senegal (Gillier 1926; Jacques-Félix 1963; Pasquier 1971; Webb
1985). Os entrepostos de tráfico mais importantes, as escales, eram: Désert, Terrier
Rouge, Darmacours, e Coq. O comércio envolvia a obrigação de pagamento duma
taxa por parte dos comerciantes ao grupo local dominante e a distribuição de presen-
tes a caravaneiros, intermediários e autoridades políticas locais. Os comerciantes euro-
peus permaneciam nas suas embarcações, aguardando que os seus intermediários
negociassem com o objectivo de que as caravanas se dirigissem à escala onde estavam
ancorados. A goma era então negociada e trocada sobretudo por guinées, peças de
tecido de algodão tingido de azul fabricadas na Índia.15 Os produtos europeus pelos
quais no passado a goma era trocada deixaram de interessar à população local, que
preferia agora um novo produto produzido num terceiro continente. Tal facto lembra-
-nos novamente a mundialização dos mercados e a dimensão transcontinental e trian-
gular das relações económicas.

14
Walter Rodney, na sua explicação do subdesenvolvimento africano enquanto resultado da exploração europeia que levou ao
esvaziamento de África em termos do trabalho (mão de-obra escrava enviada para os continentes americano e europeu) e das
matérias-primas, expõe assim o papel da goma-arábica: “A goma de África também desempenhou a sua parte na indústria têxtil,
que, como se sabe, foi um dos instrumentos mais poderosos do crescimento da economia europeia” (1972: 94 – tradução minha).
Para uma síntese da temática do desenvolvimento europeu e subdesenvolvimento económico do “terceiro mundo” nas fases do
mercantilismo, colonialismo e neo-colonialismo, ver Hoogveld 1979.
15
Trata-se do tecido de azul índigo (nomeado pelo vocábulo francês guinée) que, a partir do séc. xviii, se tornou o traje tradicio-
nal da sociedade moura (Ould Cheikh 1999: 62) e, depois, emblema etnográfico dos “homens azuis”.

Castelos a Bombordo - FINALx.indd 217 27-03-2013 16:57:54


218 • CASTELOS A BOMBORDO

A partir de cerca de 1840, o comércio da goma entrou em crise, sobretudo


devido a factores financeiros16. Brevemente, pode-se entender que a situação de
muitos comerciantes foi dificultada, em grande medida, pelas grandes flutuações
dos preços das remessas dos panos guinée, a medida de troca, que levavam a osci-
lações nos rendimentos auferidos e a enormes perdas nos anos de menor produção
de goma-arábica.
Em 1870 a grande traite da goma entra mesmo em colapso face à expansão da
produção de amendoim nas costas da Senegâmbia e à crescente importância do seu
comércio, claramente mais favorável.
O comércio da goma-arábica serve-nos assim como ilustração do que Wallerstein
(1986) entendeu ser a primeira fase do envolvimento africano na “economia-mundo”
capitalista, entre 1750 e 1900, quando África, ou pelo menos as regiões costeiras,
foram “incorporadas” na economia à escala mundial, estabelecendo-se como zonas
periféricas. Trata-se do período que se pode chamar de “império informal”, em que,
na maioria das regiões envolvidas, a soberania política local se manteve, muito embora
a economia estivesse dependente da colocação de um número muito reduzido de bens
primários nos mercados dominados pelas potências europeias.
No séc. XX, a importância da goma-arábica na economia mauritana, embora tenha
diminuído, não foi menosprezável, tanto na fase colonial, com a Mauritânia instituída
colónia francesa, como nos anos imediatamente após a independência, em 1960.
A segunda fase da “economia-mundo” capitalista caracterizou-se, de forma geral
pela criação e comercialização de culturas de renda (“cash crops”) africanas, de modo
a suprir as necessidades industriais e a sustentar os custos administrativos do estado
colonial. Contudo, contrariamente a outras zonas de África, e tal como nos outros
países da África Ocidental francesa (Suret-Canale 1971), na Mauritânia, os produtos
de colheita (“crop gathering”), entre eles a goma, terão atingido volumes de exporta-
ção superiores às culturas de renda.
Foi só a partir dos anos 70, e devido a consecutivas secas, que a produção de goma
decresceu fortemente. As secas tiveram um efeito devastador em toda a África Oci-
dental, supondo-se que provocaram um decréscimo de 80% dos povoamentos de acá-
cias (ONU 1994). Na Mauritânia, avaliava-se, em 1929, a superfície ocupada pelas
acácias produtoras de goma, em 4820000 ha (Tazi 1999), para, em 2005, se estimar
que as povoações ocupavam cerca de 40000 ha apenas (Amadou 2005).
Pelos valores das exportações, entre 1960 e 1993, fica visível o carácter oscilante
da produção mauritana, mas também o decréscimo que tem sofrido nos últimos anos:
cerca de 4.000 toneladas exportadas em 1960, para 181 em 1980, e 8 em 1993

16
O declínio do comércio da goma está descrito e interpretado essencialmente em Webb 1985.

Castelos a Bombordo - FINALx.indd 218 27-03-2013 16:57:54


MAURITÂNIA A BOMBORDO • 219

(Idem).17 Aparentemente, a goma-arábica da Mauritânia continua a ter como destino


os mercados europeus, quer através da exportação directa, sobretudo para a França,
quer, indirectamente, através dos mercados do Senegal e do Mali.
Assim, a Mauritânia passou a ter uma situação marginal nos mercados internacio-
nais, representando, em conjunto com outros 9 países africanos, somente 0,1% das
exportações (Muller e Okoro 2004), sendo agora o Sudão o exportador de maior rele-
vância (50% do produto colocado nos mercados tem essa proveniência).
Embora a goma-arábica, tal como outras matérias-primas industriais, tenda a ser
substituída por substâncias sintéticas, continua a ter o seu lugar no comércio transna-
cional. São vários os produtos comercializados, de acordo com a espécie de acácia de
que é retirada, a calibragem e o grau de pureza, sendo que a principal distinção dos
tipos de goma comercializada é a estabelecida entre a “goma dura” e a “goma friável”.
No conjunto dos produtos existentes foram vendidas, por exemplo em 2002, cerca de
54 toneladas de goma-arábica no mercado mundial. Os principais países importadores
foram, em primeiro lugar, a França (cerca de 40% da goma em bruto importada, grande
parte da qual foi reexportada), seguida pelos EUA, pela Grã-Bretanha e pela Índia
(Idem).
Mas a presença de goma nos mercados nacionais dos países produtores é igualmente
significativa. Na Mauritânia (Amadou 2005), 20 a 40% do produto é comercializado
internamente.18O comércio nacional e a exportação da goma foram monopólio da
Sonimex (Société National d’Importation et d’Exportation), sociedade instituída esta-
talmente e reguladora do comércio dos principais produtos (entre eles o chá, o arroz e
o açúcar), entre 1972 e 1990. Nesta data, por decisão governamental, o mercado da
goma foi liberalizado e, na sequência desta medida, surgiram empresas exportadoras
privadas, a mais importante das quais será a Negoce-Mauritania, que têm vindo a for-
necer o mercado externo. No mercado interno são agentes os colectores/produtores,
os pequenos comerciantes locais e os grandes comerciantes grossistas.
No que diz respeito à colecta e produção da goma, nas diferentes regiões existem
sistemas de exploração distintos, quer pela forma de apropriação fundiária e pela
natureza das populações de acácias (espontâneas ou cultivadas), quer pelas técnicas
de recolha da goma (Amadou 2005; Cabot 1996; Daro 1999; Pierlot 1997). Breve-
mente, pode-se distinguir a exploração extensiva em que a colecta é realizada através

17
Désiré-Vuillemin (1997) considera que, em 1960, a exportação de goma perfazia 5% do total das exportações mauritanas. Os
dados encontrados nos vários textos e relatórios não são coincidentes no que se refere aos valores anuais das exportações, mui-
to embora mostrem generalizadamente um decréscimo nas últimas décadas. Por outro lado, nenhum dos relatórios mais recentes,
entre eles o referido (Amadou 2005), apresenta de modo consistente os montantes posteriores a 1993.
18
R. Pierlot (1997) considerou que, na Mauritânia, a quantidade de goma-arábica presente no mercado interno era tão signifi-
cativa como a exportada (cerca de 1000 toneladas), e que o consumo per capita anual seria de cerca de 500 gramas. F. Cabot
(1996) apontou para a presença de 300 toneladas/ano de goma no mercado nacional.

Castelos a Bombordo - FINALx.indd 219 27-03-2013 16:57:54


220 • CASTELOS A BOMBORDO

de apanha (Trarza e Hodhs), da exploração intensiva em que a goma é extraída após


a realização de incisões nas árvores feitas com instrumentos tradicionais (Assaba e
Guidimakha) ou com instrumentos modernos (Guidimakha). Os sistemas de explo-
ração das acácias estão também associados a diferentes formas de organização eco-
nómica, social e política.19
Quanto ao comércio nacional da goma-arábica, os estudos realizados (Cabot 1996;
Daro 1999; Pierlot 1997)20 referem dois factos que trazem uma complexidade acres-
cida ao mercado deste produto e dificuldades de sobrevivência dos vários agentes nos
anos de menor produção: a existência de um sistema de crédito, disponibilizado pelos
comerciantes aos colectores/produtores no sentido de assegurar os gastos inerentes à
“campanha da goma”; e a natureza da fileira no mercado nacional, em que se destaca,
por vezes, a presença de vários intermediários.21
Seguindo um percurso de venda e revenda entre colectores, intermediários, gros-
sistas e comerciantes locais, a goma-arábica chega às bancas dos mercados citadinos e
locais. O que nos transporta da importância decrescente da goma no mercado global
para o seu papel de relevo nas práticas sociais locais.

EliK. Apropriação local da goma-arábica no oásis de Ouadane

Gostei de rever a cidade antiga em ruínas. Ouadane já foi um entreposto português!


Uma espécie de central de compras avançada, onde se negociavam os produtos que deve-
riam ser entregues nos nossos portos na costa da África Ocidental.
(relato de viagem de turista, “motard” português, 2006; Nomad’s Fórum 2006)
Em todos os lares, sobretudo na zona rural, encontram-se as tábuas corânicas (alluha),
de formas características, que servem de ardósias para a aprendizagem do Corão que eles
devem aprender de cor. Os alunos (…) mergulham um calame (estilete) talhado dum ramo
de árvore, num pequeno pote de tinta (feita à base de água, goma-arábica e carvão de

19
Não obstante os sistemas de exploração das acácias se relacionarem com dinâmicas socais e económicas, o seu estudo ultra-
passava o âmbito desta pesquisa, uma vez que não foi contemplada a realização de trabalho de terreno nas regiões produtoras
de goma-arábica.
20
É de ressalvar que dois dos estudos apresentados integram-se no quadro de actividades da AFVP (Association Française des
Volontaires du Progresse) com objectivos de desenvolver a produção e comercialização da goma-arábica. Mais uma vez, o estudo
da goma-arábica, seria um bom objecto para entender dinâmicas que ultrapassavam o âmbito desta pesquisa, nomeadamente o
papel das ONG na economia mauritana.
21
Pelas entrevistas que realizei a pequenos comerciantes nos mercados de Atar e Nouakchott, compreendi que parte deles fazem
acordos, eventualmente selados na base de relações familiares ou sociais, quer directamente com colectores/produtores, quer
com comerciantes do Sul, superando assim o peso dos grandes comerciantes. Contudo, estas entrevistas, realizadas aliás, com
alguma dificuldade, tiveram um carácter somente prospectivo e, como tal, as informações obtidas não se podem considerar con-
clusivas. O entendimento da complexidade do comércio da goma-arábica terá eventualmente de partir da análise das relações
estreitas entre a organização económica e a forte estruturação da sociedade mauritana.

Castelos a Bombordo - FINALx.indd 220 27-03-2013 16:57:54


MAURITÂNIA A BOMBORDO • 221

madeira), e escrevem na sua ardósia o versículo do Corão que é ditado pelo talib (mestre).
(relato de viagem em 4x4, casal francês pertencente a um projecto humanitário, 2004-05;
Les Bourlingueurs 2004-05 – tradução minha)

Os elementos sobre a importância da goma-arábica nas práticas sociais locais resul-


tam do trabalho de campo realizado em Ouadane em 2005 e 2006. A escolha de Oua-
dane como contexto de estudo prendeu-se com razões históricas, já referidas neste
volume. Foi na procura dos modos como na memória social local se configuram as
relações históricas dos mauritanos com os portugueses, que Ouadane surgiu como uni-
verso da recolha directa. Cadamosto, descrevia Ouadane do séc. XV, deste modo:

Deve-se mais saber, que na direitura de Cabo Branco, pela terra dentro, ha uma
povoação por nome Hodem, que dista da costa obra de seis jornadas de camelo, a qual
não é murada, mas nela se recolhem os Árabes, e serve de escala para pousarem as
caravanas, que vêm de Tombuto, e outros lugares dos Negros a esta nossa Barbaria de
cá.22 O sustento dos habitantes deste lugar, são tâmaras e cevada, de que têm quanti-
dade, que lhes nasce em alguns lugares, mas não quanta lhe baste (…) Não têm habi-
tação fixa, mas andam sempre vagando por aqueles desertos; vão às terras do Negros,
e vem tambem a esta nossa Barbaria de cá: são em grande número, têm muita cópia
de camelos, e neles acarretam cobre, prata, e outras cousas da Barbaria para Tombuto,
e terras de Negros, donde trazem ouro e malagueta, que conduzem para cá (…) (Godi-
nho 1956b: 124-5).

Como referi, Ouadane foi, a partir do séc. XIII, uma escala das rotas das caravanas
largamente ligada ao comércio de sal, e ter-se-á mantido um importante centro de
comércio até ao séc. XVIII.
Actualmente, a população residente nesta cidade ocupa-se da agricultura, nomea-
damente da produção hortícola e dos palmares no oued circundante, enquanto que a
população nómada da região se dedica ao pastoreio. Todavia, o número de famílias
que complementa o seu rendimento com serviços ligados ao comércio e ao turismo é
significativo (ver Cardeira da Silva 2006).
No que se refere à goma-arábica, distinguem-se localmente dois tipos de goma das
acácias existentes na região: talhaia (de Acacia tortilis raddiana) e tamat (de Acacia
ehrenbergiana). Devido à progressiva seca, as árvores da região de Ouadane deixaram
de exsudar, pelo que a goma usada é proveniente do Sul e comprada nas inúmeras
mercearias da cidade. Aqui se vende igualmente um terceiro tipo de goma, auruware,

22
Barbaria era o nome atribuído ao Norte de África, terra de berberes.

Castelos a Bombordo - FINALx.indd 221 27-03-2013 16:57:54


222 • CASTELOS A BOMBORDO

a goma de Acacia senegal. De acordo com as informações prestadas pelos comercian-


tes locais a goma é procurada por todo o tipo de clientes – homens e mulheres, idosos
e jovens.
Antes de mais, a goma é considerada como um medicamento valoroso. Aqui, de modo
semelhante a outros contextos africanos, coexistem diferentes sistemas médicos e os doen-
tes percorrem simultaneamente “itinerários terapêuticos” diversos e complementares.23
No primeiro destes sistemas médicos e que se pode apelidar de “local”, estão pre-
sentes percepções nosológicas transmitidas oralmente, definições de doenças por vezes
sem correspondente claro nas categorias biomédicas. Nos itinerários terapêuticos que
lhes correspondem, a goma-arábica encontra-se como recurso permanente, em con-
junto com outros elementos vegetais (ver Quadro 1), cujo conhecimento constatei
através de entrevistas a especialistas socialmente reconhecidos. Os informantes foram
deste modo quatro homens e três mulheres de idade avançada, que tomam a si o papel
de curar os problemas de saúde mais frequentes – de digestão, intestinais, bronquites
e infecções nos olhos –, de acordo com conhecimentos e práticas etnofarmacológicas
afirmadas como ancestrais.24

Plantas medicinais (Ouadane)


Nome
Identificação Botânica Utilização Medicinal
(hassaniiya)
Al-jerjir Schouwia purpurea (Forssk.) Schweinf. folhas – dores de dentes
var. schimperi Jaub. & Spach
Al-hbaq Ocimum basilicum var. tyrsiflorum folhas – dores de dentes
(L.) Benth. (Lamiaceae)
Aignin Capparis decídua (Forssk.) Edgew folhas – infecções olhos
Henna Lawsonia inermis L. folhas – dores cabeça; banho recém-
-nascidos
L-mekhaize Cleome africana Botsch. folhas – problema com feto na gra-
videz
Sdrai Ziziphus lotus (L.) Lam. subsp. saha- sementes – prisão de ventre
rae Maire folhas – doença incerta
Talhaia Acacia tortilis (Forssk.) Hayne subsp. goma e folhas – igindi
raddiana (Savi) Brenan goma – feridas
folhas – diarreia e gastrite
vagem – prisão de ventre

23
Ver, por exemplo, Augé 1986; Fassin 1992; Frazão-Moreira 2009.
24
A recolha dos usos medicinais das plantas resultou apenas da tentativa de contextualizar a importância da goma-arábica enquan-
to elemento etnofarmacológico, pelo que não tem um carácter aprofundado, nem foi realizado um estudo comparativo com os
trabalhos anteriores acerca da flora mauritana, nomeadamente: Lamarche 2002; Monod 1952; Monteil e Sauvage 1949; Mon-
teil 1953; Naegelé 1958. É, contudo, interessante salientar que as acácias produtoras de goma são igualmente fonte de um con-
junto vasto de utilizações, medicinais, artesanais e outras.

Castelos a Bombordo - FINALx.indd 222 27-03-2013 16:57:54


MAURITÂNIA A BOMBORDO • 223

Nome
Identificação Botânica Utilização Medicinal
(hassaniiya)
Taixat Balanites aegyptiaca (L.) Del. sementes – feridas;
flores – defumações contra doenças pro-
vocadas por magia
Tamat Acacia ehrenbergiana Hayne goma – infecções olhos
Tourja Calatropis procera (Ait.) Ait. seiva – feridas
Velejite Senna alexandrina Mill. folhas – cólera

Neste percurso local, a goma arábica permite fazer face, antes de tudo, à doença
denominada igindi: “É a doença de quem come muito sal ou muita gordura, ou bebe
demasiado chá, o que provoca indisposições, e até tosse e dores de garganta” (síntese
das “variantes” escutadas aos especialistas locais).25 No seu tratamento utiliza-se a goma-
-arábica (de talhaia ou de auruuare) dissolvida em água ou leite, podendo-se também
fazer um medicamento composto por goma e folhas de talhaia maceradas em água.
As outras doenças apontadas como categorias nosológicas semelhantes a igindi
foram: l’brut l-bred (frio), que provoca constipação, dor nas costas e febre; aurak (tra-
duzido por um informante como icterícia) e cujos sintomas são a acidez no estômago
e o tom amarelado da pele e dos olhos; e as doenças de djnun (génios), males, sobre-
tudo de foro psíquico, provocados por seres sobrenaturais da cosmologia islâmica.
Contudo, a goma-arábica não foi apontada como fazendo parte do tratamento de
qualquer uma destas doenças.
Pelas informações recolhidas, no âmbito da “medicina local” recorre-se à goma sempre
nas situações de indigestão, no tratamento de feridas e nos problemas nos olhos. No pri-
meiro caso, a goma é dissolvida em leite ou esmigalhada e misturada com açúcar e consu-
mida na forma de pó; ou ainda, como explicou uma das especialistas, antiga parteira,
quando uma parturiente se sente mal devido ao que comeu antes do parto, dissolve-se
goma num caldo de carne de camelo ou de cabra para ela ingerir. Nas feridas, coloca-se
um pouco de goma esmigalhada de modo a preservar a zona afectada e a sará-la; enquanto
que nos olhos se aplica preferencialmente goma de tamat com um pouco de água.26
A par dos especialistas médicos locais, os doentes podem consultar, nas grandes
cidades, como na mais próxima Atar, os cabinets de médicine traditionnel. São con-

25
Possivelmente as consequências de qualquer ingestão em excesso serão consideradas igindi. Nesse sentido, aponta também
Aline Tauzin, na sua monografia sobre a “arte feminina” do henna na Mauritânia (1998), quando, ao explicar as propriedades
terapêuticas dessa planta (Lawsonia inermis), alerta para o facto de que o consumo do medicamento resultante da decocção das
folhas pode provocar igindi, por ser excessivamente amargo.
26
Pelas descrições recolhidas trata-se de curar situações em que se forma um “grão branco” no olho. Segundo alguns informan-
tes, na preparação do medicamento pode-se misturar na água, não só goma, como com um pouco de kohl (produto cosmético
com que se desenha uma linha escura nas pálpebras, composto por antimónio, mas que pode conter outros elementos, como o
chumbo).

Castelos a Bombordo - FINALx.indd 223 27-03-2013 16:57:55


224 • CASTELOS A BOMBORDO

sultórios de especialistas, formados no seio de determinadas famílias pertencentes às


tribos zuāīâ, que possuem no seu património o conhecimento dos processos de cura
assentes na tradição oral e também nos tratados de medicina árabe, escritos no séc.
XIX mas que se fundam muitas vezes em textos anteriores, não só árabes, como gregos
(Dubié 1937; Norris 1984). A “medicina tradicional” assim instituída, remete-nos para
a divisão social do saber fortemente estruturada que marca a sociedade mauritana,
bem como para uma presença do saber letrado nas práticas médicas não modernas.
O igindi está presente neste corpo elaborado de representações da doença e da
saúde, inspiradas na teoria médica islâmica, de raiz galénica (Dubié 1937; Greenwood
1992; Norris 1984). Nestas concepções, as doenças resultam dum desequilíbrio entre
os quatro humores ou temperamentos que constituem o corpo humano: safra (bílis),
belgham (fleuma), dum (sangue) e seouda (cólera). Em particular, os sintomas e causas
de igindi estão descritos num documento de referência da medicina moura, escrito por
Mohamed Ould Aoufâ (viveu entre 1802 e 1883): será uma doença do humor bílis
provocada por um excesso de bílis na vesícula biliar e por isso a digestão faz-se com
demasiada rapidez; a doença terá o centro no coração e no cérebro e pode-se espalhar
aos olhos e provocar cegueira (Dubié 1937:318).
O itinerário terapêutico neste sistema médico “tradicional” assenta na fitoterapia,
e também aqui a goma-arábica tem o seu lugar. Pelas entrevistas exploratórias realiza-
das a dois especialistas dos consultórios de Atar (gabinets Ehl Adje e Ould Meghary),
fiquei com a percepção de que a goma é usada, não por conter propriedades medici-
nais em si, mas como elemento de ligação de outras substâncias vegetais (numa forma
de apropriação farmacêutica em tudo semelhante à industrial). A goma figura, aliás,
como elemento medicinal nos registos escritos da medicina moura (Dubié 1937; Nor-
ris 1984; Leriche 1953).27 Segundo Koltermann e Plehn (2006:69) na medicina moura
utilizava-se, nos séculos XVII e XVIII, goma-arábica contra a disenteria, as afecções
biliares, as náuseas, a febre amarela, a papeira e as enxaquecas. 28
Conclui-se, assim, que a apropriação etnofarmacológica da goma-arábica perma-
nece quer nas práticas dos especialistas locais, quer nas dos especialistas que evocam
o saber letrado da medicina islâmica, quer ainda, de alguma forma, nas suas utilizações
industriais.
Contudo, a par destes itinerários terapêuticos, existe em Ouadane o recurso ao
centro de saúde estatal, onde um enfermeiro permanente ministra os tratamentos pos-
síveis de acordo com os escassos recursos de que dispõe.29 Para este enfermeiro igindi

27
Existe mesmo um hadit que a considera uma panaceia: “o remédio para todas as coisas está na goma” (Leriche 1953:280).
28
Estes autores baseiam-se nos textos de Désirée-Vuiellemin 1960 e de Labat 1728.
29
O sistema de saúde estatal prevê que os casos mais graves sejam remetidos para o hospital da grande cidade mais próxima, Atar,
ou para o da capital, Nouakchott, embora, na prática, essas deslocações se tornem difíceis para as famílias de menores recursos.

Castelos a Bombordo - FINALx.indd 224 27-03-2013 16:57:55


MAURITÂNIA A BOMBORDO • 225

é apenas e somente: “…uma intoxicação! Mesmo que as pessoas tenham frio e tosse,
vão dizer que é igindi, mas não é”. Embora admitindo que o tratamento com goma-
-arábica se possa revestir de alguma eficácia (ao contrário de outras situações para as
quais não reconhece de todo a utilização das plantas medicinais), este representante
da medicina moderna, “traduz”, deste modo, com base em parâmetros biomédicos, a
concepção da doença, num processo redutor, ao omitir categorias e conexões com
sentido na cultura local.30
Por tudo isto, a utilização da goma-arábica no tratamento da doença igindi permite
constatar a alteridade de percepções e a confluência de conhecimentos e práticas de
diversas géneses.
Contudo, o uso da goma-arábica é também importante noutras práticas do quoti-
diano, para além das terapêuticas.
A goma é essencial para manter a aparência do vestuário de acordo com os padrões
culturais locais. Os boubous, longa túnica que constitui o traje masculino e um dos
tipos de melafa (véu) feminino, denominado alghiata (literalmente “com costuras”),
são engomados do seguinte modo: após a lavagem são demolhados em água onde foi
dissolvida goma (auruuare) e depois são secos ao ar e passados com o ferro aquecido
em brasas.31
Finalmente, a goma é igualmente indispensável para a fabricação de tinta para
escrever. Junta-se goma com carvão (ambos preferencialmente de talhaia) e água e
obtêm-se a tinta utilizada hoje, quase exclusivamente, nas tábuas da escola corânica32.
A goma funciona neste processo como fixador do carvão o que conduz, tal como as
práticas farmacológicas, ao entendimento experiencial das propriedades químicas
deste produto vegetal. Afinal, o conhecimento e uso da goma-arábica insere-se num
conjunto de “etnoconhecimentos”33 que, neste contexto cultural se expressam gran-
demente em campos como o da alimentação humana e animal, da higiene e da esté-
tica e do fabrico de artefactos. Apresentando apenas algumas ilustrações, lembro: o
conhecimento acumulado pelos pastores sobre as herbáceas com que os animais se
poderão alimentar no deserto, por exemplo, al-jerjir (Schouwia purpurea var. schim-

30
Por exemplo, Sindzingre (1984) refere este mesmo processo de “tradução” das categorias nosológicas locais a partir do para-
digma da ciência biomédica, noutro contexto africano (senufo da Costa do Marfim).
31
De notar que o termo “engomar” em português que se tornou sinónimo de “passar a ferro” remete para o uso histórico da
goma-arábica que era colocada nas peças de roupa antes de serem alisadas com um ferro quente.
32
A tinta usada para escrever suras do Alcorão ganha um valor “milagroso”, passa a conter baraka, pelo que é ingerida ou usada
em lavagens em medicamento e talismãs em diferentes contextos islâmicos (Bledsoe e Robey 1997; Hamès 2007), remetendo-
-nos para a componente simbólica e mágica e de incorporação personalizada da escrita corânica (Goody 1981 [1968]; Lory
1993).
33
Evito consistentemente a expressão em muito consagrada de “conhecimentos ecológicos tradicionais” (“TEK – Traditional
Ecological Knowledge”) porque uma discussão da operacionalidade deste conceito ultrapassa os objectivos deste texto (ver por
exemplo, Ellen e Harris 2000.

Castelos a Bombordo - FINALx.indd 225 27-03-2013 16:57:55


226 • CASTELOS A BOMBORDO

peri), vulé (Crota1aria saharae) e tajarkin (Fagonia arabica. var. viscidissima); o uso
quotidiano dos pequenos ramos de atil (Maerua crassifolia) na higiene dentária; o
fabrico de esteiras com a erva sabtaia (Stipagrostis pungens); e o aproveitamento das
potencialidades químicas das sementes de al-amur (Acacia nilotica) e das folhas de
amujlud (Pergularia tomentosa) e de sdrai (Ziziphus lotus saharae) e na curtição das
peles.
Está-se assim perante uma continuidade histórica de práticas e saberes associa-
dos a um processo de apropriação social da natureza que se pode considerar local.
Esta continuidade da “localidade” explicar-se-á pelo facto de a vida diária dos
indivíduos ser marcada por um carácter prático e rotineiro, de as interrelações
“face-a-face” se revestirem de enorme importância, de a formação dos mais jovens
se desenrolar precocemente e no meio familiar, e de as experiências individuais
serem fortemente contextualizadas, serem, antes de mais, experiências do corpo e
dos sentidos:

Isto é verdade enquanto a realidade for experienciada, mesmo quando muito do que
está no lugar é adaptado do exterior. Desistimos da ideia de que o local é autónomo, que
tem uma integridade em si mesmo. Ele terá o seu significado mais como uma arena em que
uma variedade de influências vêm em conjunto, actuam talvez como uma combinação única,
debaixo de condições especiais (Hannerz 1996: 27 – tradução minha).

Numa “combinação de influências” assiste-se, entretanto, ao processo de patrimo-


nialização da cultura mauritana (ver Cardeira da Silva 2006). Assim, ultimamente, e
numa lógica de turistificação, a importância histórica da goma-arábica e dos saberes
etnofarmacológicos foi entendida e rentabilizada nos museus locais.
No museu de Atar, organizado por um grupo de professores do ensino básico, na
sala dedicada aos objectos representativos da vida social mauritânia, estão expostas
em pequenos frascos as principais plantas medicinais da região e encontram-se ao dis-
por dos visitantes fichas, em pedaços de papel cortados de folhas A4, com a informa-
ção das suas aplicações farmacológicas. O guia da exposição, após o relato de aspectos
da história e sociedade mauritana, realça a importância das práticas terapêuticas tra-
dicionais.
De modo semelhante, no museu mais antigo de Ouadane, o seu conservador, Sidi
Ould Abidine, oferece aos turistas, no final da visita, goma com diferentes preparações
– natural, com açúcar e torrada – em pequenas tigelas dispostas num tabuleiro. Esta
prova por ser feita, aliás, na sequência duma exposição sobre a história da Mauritânia
em que é realçado o papel do comércio da goma; tem o sabor duma comunhão entre
o passado e o “exótico” presente deste país.

Castelos a Bombordo - FINALx.indd 226 27-03-2013 16:57:55


MAURITÂNIA A BOMBORDO • 227

Goma-arábica com diferentes preparações – natural, com açúcar e torrada – apresen-


tada aos turistas no museu de Sidi ould Abidine em Ouadane. 2006 © CRIA

Em síntese, um mesmo recurso vegetal, a goma-arábica, é protagonista numa dimensão


transcontinental, através da mercantilização resultante dos seus usos industriais e enquanto
“bem turístico” e, em paralelo, tem lugar relevante no processo marcado pela continuidade
cultural, pela sua presença nas práticas etnofarmacológicas e artesanais. Cruzam-se assim duas
dimensões – a histórica e a contemporânea; nas suas duas abrangências – global e local.

Bibliografia

AMADOU, Bâ, 2005, Étude des peuplements de gommiers et de la filière gomme arabique en Mauritanie.
Rapport Final. Nouakchott: Projet FAO, TCP/RAF/2914 “Amélioration de la production et de la qualité
des gommes et résines en Afrique”.
AUGÉ, Marc, 1986, “L’Anthropologie de la Maladie”, L’Homme, XXVI (1-2): 81-90.
BARRY, Boubacar, 1979, “The Subordination of Power and the Mercantile Economy: The Kindgdom of
Waalo, 1600-1831”, em O’ BRIEN, R. (ed.), The Political Economy of Underdevelopment Dependence
in Senegal. Beverly Hills, Sage.
BARRY, Boubacar, 1989, “La Sénégambie sous le monopole du commerce portugais ai XVe – XVe siècles”,
Stvdia, 47: 229-244.
BATHLY, Abdoulaya, 1990, “Relations entre les différentes régions de l’Afrique», em FASI, M. (ed.), His-
toire Générale de L’Afrique. Vol. III. Paris, UNESCO, pp. 779-796.
BLANCHARD, Ian, 2005, The trans-saharan slave trade, c. 1320-1520: a study of environmental change and
commercial adaptation, Conference at the University of Nottingham, [online] disponível em: http://www.
ianblanchard.com/Newlees_Press/Conferences_IB/The%20Slave%20Trade-2.pdf (acesso em 7-12-2006).
BLEDSOE, Carolin e Kenneth Robey, 1997, “Arabic literacy and secrecy among the mende of sierra Leone”, em
STREET, B. (ed.), Cross-Cultural Approaches to Literacy. Cambridge, Cambridge University Press, pp. 110-134.

Castelos a Bombordo - FINALx.indd 227 27-03-2013 16:57:55


228 • CASTELOS A BOMBORDO

BURKILL, H. M, 1995, The Useful Plants of West Tropical Africa. vol. 3. Kew, Royal Botanic Gardens.
CABOT, Fabrice, 1997, Influence dos facteurs socio-économiques dans le fonctionnement d’une filère: cas de
la gomme arabique en Mauritanie, ISTOM, Mémoire de fin d’études, citado por DARO, N’Diaye, 1999,.
Contribution a l’étude comparative des systèmes d’exploitation du gommier (Accaia senegal) dans les régions
du Trarza et du Guidimakha. Mémoire de fin d’études. Niger, Université Abdou Moumouni.
CADAMOSTO, Luis de e Pedro de Sintra, 1948 [1507], Viagens. Lisboa, Academia Portuguesa da História.
CARDEIRA DA SILVA, Maria, 2006. “Hospedaria Vasque. Cultura, raça, género e expediente num oásis
da Mauritânia”. Etnográfica, in Etnográfica. Vol.X, n.º 2: 355-381.
CCI, s/d, Gomme arabique. Vue d’ensemble de la production et du commerce mondiale. Nouakchott: Cen-
tre du Commerce International CNUCED/OMC.
CIMDET, 1994, La Gomme Arabique. Passé – Présent -Avenir, Dossiers CIMDET, 3. Nouakchott, CIMDET.
COPPEN, J. J. W, 1995, “Gum arabic, gum talha and other acacia gums”, em Gums, Resins and Latexes
of Plant Origin. Rome, FAO.
DARO, N’Diaye, 1999, Contribution a l’étude comparative des systèmes d’exploitation du gommier (Accaia senegal)
dans les régions du Trarza et du Guidimakha. Mémoire de fin d’études. Niger, Université Abdou Moumouni.
DAVEAU, Suzanne, 1999, A Descoberta da África Ocidental: ambiente natural e sociedades. Lisboa,
Comissão Nacional para as Comemorações dos Descobrimentos Portugueses.
DÉSIRÉ-VUILLEMIN, Geneviève., 1960, Essai sur le gommier et le commerce de la gomme, Dakar: Clai-
rafrique, citado por KOLTERMAN, Till e Marcus Plehn, 2006, “Aux confins de l’Afrique. Médecine
et pharmacie sur l’île prussienne d’Arguin (1684-1722)”, em Pages d’histoire de la côte mauritanienne.
XVIIe – XVIIIe siècles. Paris, Harmattan, 63-102.
DÉSIRÉ-VUILLEMIN, Geneviève, 1970, “Les grands traits de l’histoire de la Mauritanie”, em Deschamps,
H. (ed.), Histoire Générale de L’Afrique Noire, de Madagascar et des Archipels. Paris, PUF, pp. 253-269.
DÉSIRÉ-VUILLEMIN, Geneviève, 1997, Histoire de la Mauritanie. Paris, Karthala.
DEVISSE, Jean, 1990, “Commerce et routes du trafic en Afrique occidentale”, in FASI, M. (ed.), Histoire
Générale de L’Afrique. Vol. III. Paris, UNESCO, pp. 397-463.
DUBIÉ, Paul, 1937, “Médecine maure”, Bull. du Com. d’Et. Hist. et Science de L’AOF: 312-335.
ELLEN, Roy e Holly Harris, 2000, “Introduction” in ELLEN, R. P. Parkes e A. Bicker (eds.), Indigenous
environmental knowledge and its transformations. Critical Anthropological Perspectives. Amesterdão,
Hardwood Academic Publishers, pp. 1-33.
FAGE, J. D, 1969, A History of West Africa. An Introductory Survey. Cambridge, CUP.
FASSIN, Didier, 1992, Pouvoir et Maladies en Afrique. Paris, Presses Universitaires de France.
FENTRESS, James e Chris Wickham, 1994 [1992], Memória Social. Lisboa, Teorema.
FERNANDES, Valentim, 1940 [1507], O Manuscrito “Valentim Fernandes”. Lisboa, Academia Portuguesa
da História.
FRAZÃO-MOREIRA, Amélia, 2006 “Arabic gum: from its historical importance in the global markets to
its contemporary significance in the local context of Mauritania”, Proceedings of the IVth International
Congress of Ethnobotany (ICEB 2005). Istambul, Zero Production, 545/550.
FRAZÃO-MOREIRA, Amélia, 2009, Plantas e “Pecadores”. Percepções da Natureza em África. Lisboa,
Livros Horizonte.
FREIRE, Francisco, 2009, Narrativas naçrānī-s entre os bidān do Sudoeste da Mauritânia: A Viagem Euro-
peia e suas Reconfigurações Tribais, Tese de Doutoramento. Lisboa, FCSH-UNL.
GILLER, Commandant, 1926, La Pénétration en Mauritanie. Paris, Librairie Orientaliste Paul Geuthner.
GODINHO, V. Magalhães (ed. e notas), 1945, Documentos sôbre a Expansão Portuguesa, vol. II. Lisboa,
Editorial Gleba.
GODINHO, V. Magalhães, 1950, “Création et dynamisme économique du monde atlantique (1420-1670)”, Annales
ESC, v.1, 2-36, citado por WALLERSTEIN, Emmanuel, 1974, The Modern World System I: Capitalism Agri-
culture and the Origins of the European World-Economy in the Sixteen Century. Londres, Academic Press.

Castelos a Bombordo - FINALx.indd 228 27-03-2013 16:57:59


MAURITÂNIA A BOMBORDO • 229

GODINHO, V. Magalhães, 1956a, O ‘Mediterraneo’ saariano e as caravanas do ouro: geografia económica e


social do Sáara Ocidental e Central do XI ao XVI século. Vol. VIII. São Paulo, Coleção da Revista de História.
GODINHO, V. Magalhães (ed. e notas), 1956b, Documentos sobre a Expansão Portuguesa, vol. III. Lisboa,
Edições Cosmos.
GODINHO, V. Magalhães, 1962, A Economia dos Descobrimentos Henriquinos. Lisboa, Sá da Costa.
GODINHO, V. Magalhães, 1991 [1963-1971], Os Descobrimentos e a Economia Mundial. Lisboa, Edito-
rial Presença.
GOODY, Jack e I. Watt, 1981 [1968], “The consequences of literacy”, em GOODY, J. (ed.), Literacy in
Traditional Societies. Cambridge, Cambridge University Press, pp. 27-68.
GREENWOOD, Bernard, 1992, “Cold or spirits? Ambiguity and syncretism in Moroccan therapeutics”,
em FEIERMAN, S. e J. M. Janzen (eds.), The social basis of health & healing in Africa. Berkeley, Uni-
versity of California Press, pp. 285-314.
HAMÈS, Constant (ed.), 2007, Coran et talismans. Textes et pratiques magiques en milieu musulman.
Paris, Karthala.
HANNERZ, Ulf, 1996, Transnational Connections. Culture, people, places. Londres, Routledge.
HENRIQUES, Isabel C., 2004, Os Pilares da Diferença. Relações Portugal-África. Séculos XV-XX. Casal da
Câmara, Caleidoscópio – Centro de História.
HOOGVELT, A. M., 1979, “The Development of Underdevelopment: Mercantilism, Colonialism and
Neo-colonialism”, em The Sociology of Developing Societies. Bristol: Western Printing Services.
HOWES, F. N., 1949, “Gum arabic and other acacia gums”, em Vegetable Gums and Resins. Waltham:
Chronica Botanica Company.
JACQUES-FÉLIX, H., 1963, “Contribution de René Caillié à l’ethnobotanique africaine au cours de ses
voyages en Mauritanie et à Tombouctou 1819-1828”, JATBA, T.X, 8-9: 287-334.
KOLTERMAN, Till e Marcus Plehn, 2006, “Aux confins de l’Afrique. Médecine et pharmacie sur l’île
prussienne d’Arguin (1684-1722”, em Pages d’histoire de la côte mauritanienne. XVIIe – XVIIIe siècles.
Paris, Harmattan, pp. 63-102.
KOLTERMAN, Till., 1996, Politique Maure et Rivalité Européenne sur la Cote de la Gomme (Mauritanie)
entre 1678-1728, Mémoire de troisième année d’études. Estrasburgo, Université des Sciences Humaines
de Strasbourg.
LABAT, Jean-Baptiste, 1728, Nouvelle Relation de l’Afrique Occidental, Paris, citado por KOLTERMAN,
Till e Marcus Plehn, 2006, “Aux confins de l’Afrique”. Médecine et pharmacie sur l’île prussienne d’Ar-
guin (1684-1722)”, em Pages d’histoire de la côte mauritanienne. XVIIe – XVIIIe siècles. Paris, Harmattan,
pp. 63-102.
LAMARCHE, Bruno, 2002, “Le milieu”, em OULD CHEIKH, Abdel Wedoud, S. Estibal, Bruno Lamar-
che, Robert Vernet e J.-M. Durou (eds.), Sahara. L’Adrar de Mauritanie. Sur les Traces de Théodore
Monod. Paris, Vents de Sable, pp. 158-182.
LERICHE, A., 1953, “Phytothérapie maure. De quelques plantes et produits végétaux utilisés en théra-
peutique”, Mélanges ethnologiques, 23: 265-306.
LES BOURLINGUEURS DE EN AFRIQUE DE L’OUEST. HIVER 2004-05, 2005, [online] disponível em:
http://www.bourlngueurs.com/mauritanie/page_09.htm (acesso em 29-04-2007).
LORY, Pierre, 1993, “Verbe coranique et magie en terre d’Islam”, Systèmes de Pensée en Afrique, 12: 173-186.
MONOD, Théodore, 1952, “Contribution à l’étude du peuplement de la Mauritanie. Notes botaniques
sur l’Adrar (Shara occidental)”, Bull. IFAN, XIV, 2: 405-449.
MONTEIL, Vincent e Charles Sauvege, 1949, Contribution à l’étude de la flore du Sahara occidental. De
l’arganier au karité. Catalogue des plantes connues des tekna, des rguibat et des maures, vol. I. Paris,
Larose.
MONTEIL, Vincent, 1953, Contribution à l’étude de la flore du Sahara occidental. De l’arganier au karité.
Catalogue des plantes connues des tekna, des rguibat et des maures, vol. II. Paris, Larose.

Castelos a Bombordo - FINALx.indd 229 27-03-2013 16:57:59


230 • CASTELOS A BOMBORDO

MULLER, Didier e Chidume Okoro, 2004, Production and Marketing of Gum Arabic. Nairobi, NGARA
– Network for Natural Gums and Resins in Africa.
NAEGELÉ, Antoine, 1958, “Contribution à l’étude de la flore et des groupements végétaux de la Mauritanie.
II. – Plantes recueillies par Mlle Odette du Puigaudeau en 1950”, Bull. IFAN, XX, sér. A, 3: 876-903.
NAEGELÉ, Antoine, 1958, “Contribution à l’étude de la flore et des groupements végétaux de la Mauritanie.
I. – Note sur quelques plantes récoltées à Chinguetti (Adrar Tmar)”, Bull. IFAN, XX, sér. A, 2: 293-302.
NOMAD’S FORUM, 2006, [online] disponível em: http://www.lusolabs.com/nomads/viewtopic.
php?p=9034 (acesso em 29-04-2007).
NORRIS, H. T., 1984, “Mauritanian Medicine”, The Maghreb Review, 9 (5-6): 119-127.
ONU, 1994, Projet de Développement de la Gomme Arabique, reproduzido em CIMDET, 1994, La Gomme
Arabique. Passé – Présent -Avenir, Dossiers CIMDET, 3. Nouakchott, CIMDET.
Ould AHMEDOU, M, 1992, “L’ère de la gomme arabique”, SNIM Informations, 5-6, reprodzido em CIMDET,
1994, La Gomme Arabique. Passé – Présent -Avenir, Dossiers CIMDET, 3. Nouakchott, CIMDET.
Ould CHEIKH, Abdel Wedoud, 1991, “Herders, Traders and Clerics: The Impact of Trade, religion and
Warfare on the Evolution of Moorish Society”, em Galaty, John, e Pierre. Bonte (eds.), Herders, War-
riors, and Traders. Pastoralism in Africa. Boulder, Westview Press.
Ould CHEIKH, Abdel Wedoud, 1999, “La caravane et la caravelle. Les deux âges du commerce de l’Ouest
saharien”, L’Ouest Saharien. Histoire et Sociétés Maures, 2: 29-69.
Ould HAMIDOU, Mukhtar, 1952, Précis sur la Mauritanie. São Luis do Senegal, Centre IFAN.
PASQUIER, Roger, 1971, “Mauritanie et Sénégambie”, em DESCHAMPS, H. (ed.), Histoire Générale de
l’Afrique Noir (de 1800 à nous jours). Paris, PUF, 51-83.
PEREIRA, Duarte Pacheco, 1954 [1506-1508] Esmeraldo de Situ Orbis. Lisboa, Academia Portuguesa de
História.
PIERLOT, Rémi, 1997, Étude de la filière «gomme arabique» en République Islamique de Mauritanie. Rap-
port provisoire. Nouakchott, Association Française des Volontaires du Progrès (AFVP).
PUIGAUDEAU, Odette de, 1992, Pieds nus à travers la Mauritanie. 1933-1934. Paris, Phébus.
RODNEY, Walter, 1976, How Europe Underdeveloped Africa. Londres, Bogle.
SINDZINGRE, N., 1984, “La nécessité du sens: l’explication de l’infortune chez les senufo”, em Augé,
M. e C. Herzlich (eds.), Le Sens du Mal. Paris, Editions des Archives Contemporaines, pp. 93-122.
SURET-CANALE, J., 1971, French Colonialism in Tropical Africa 1900-1945. Londres, C. Hurst & Company.
TAUZIN, Aline, 1998, Le henné, art des femmes de Mauritanie. Paris, Ibis Press.
TAVIM, José, 1997, Os judeus na expansão portuguesa em Marrocos durante o século XVI. Origens e
actividades duma comunidade. Braga, APPACDM Distrital de Braga.
TAZI, Mohamed, 1996, Mauritanie: rapport de pays pour la conférence technique internationale de la FAO
sur les ressources phytogenetiques. Leipzig, FAO.
TONKIN, Elizabeth, 1986, “Investigating oral tradition” Journal of African History, 27:203-213.
WALLERSTEIN, Emmanuel, 1974, The Modern World System I: Capitalism Agriculture and the Origins
of the European World-Economy in the Sixteen Century. Londres, Academic Press.
WALLERSTEIN, Emmanuel, 1986, “The Three Stages of African Involvement in the World-Economy”,
in Africa and the Modern World. Treton, Africa World Press, pp. 101-137.
WEBB, James L. A., 1995, “The Evolution of the Idaw al-Hajj Commercial Diaspora”, Cahiers d’Études
Africaines, 138-139, XXXV-2-3: 455-475.
WEBB, James L. A., 1985, “The Trade in Gum Arabic: Prelude to French Conquest in Senegal”, Journal
of African History, 26: 149-168.
ZURARA, Gomes Eanes de, 1994 [1453]), Crónica de Guiné. Lisboa, Livraria Civilização Editora.

Castelos a Bombordo - FINALx.indd 230 27-03-2013 16:58:00


NAVEGAR À VISTA:
NAVES, CASTELOS E OUTROS
CRONOTOPOS DOS REGIMES
DO TURISMO E DO PATRIMÓNIO
EM ÁFRICA

Castelos a Bombordo - FINALx.indd 231 27-03-2013 16:58:00


Castelos a Bombordo - FINALx.indd 232 27-03-2013 16:58:00
EXISTÊNCIAS E UTILIZAÇÕES CONTEMPORÂNEAS
DA CASAMANSA “PORTUGUESA”

FRANCISCO LEITÃO

Nos últimos 565 anos, a presença efectiva ou de elementos culturais “portugueses”1


na Casamansa foi, de certa forma, ininterrupta. Em cerca de nove meses de trabalho
de campo na região, passei parte do meu tempo no seu encalço. Alerto para a neces-
sidade de uma investigação historiográfica, centrada nesta geografia, que abarque esta
ampla janela de tempo. Em simetria com esse trabalho, aquilo que proponho neste
texto é um percurso através desse legado, baseado numa metodologia etnográfica.
Contudo, analogamente às vias de contágio “portuguesas” da Casamansa, as utiliza-
ções e existências “portuguesas” actuais são plurais, demasiado plurais para que possa
apresentar mais do que um périplo através das mesmas. Na verdade, este texto é uma
espécie de primeiro mapeamento do terreno o qual espero ter o seguimento que a sua
riqueza justifica. Nas considerações finais mobilizo estas “utilizações e existências por-
tuguesas” para introduzir breves considerações no debate em curso sobre as condições
sociais de produção do passado. Antes, porém, uma outra viagem, abreviada: aos 500
anos de história que precedem este contexto por redescobrir2.

A presença “portuguesa” na Casamansa entre os séculos XV e XIX

Não se sabe o ano exacto em que os portugueses subiram o rio Casamansa, que
fende horizontalmente a região homónima. Teixeira da Mota é da opinião que foi
provavelmente descoberto por Álvaro Fernandes em 1446 e não por Cadamosto, nave-
gador veneziano que subiu o rio em 1456, ao serviço do Infante D. Henrique, como
é defendido por outros historiadores (Mota 1972).
Desde meados do século XV e início do século XVI, Portugal estabeleceu uma
presença comercial na costa ocidental africana assente no comércio de escravos,
baseada na fundação de feitorias, mas também efectivada não-oficialmente pelos

1
Ao longo do texto “os portugueses” aparecerão frequentemente entre aspas. Opção inspirada no trabalho de Peter Mark (2002),
pretende responder ao problema semântico de pensar a presença portuguesa na Casamansa, quando, muitas vezes, não encon-
tramos aí qualquer português originário da Península Ibérica.
2
Os meus agradecimentos ao Prof. José Horta pela sua revisão prolixa e rica do texto.

Castelos a Bombordo - FINALx.indd 233 27-03-2013 16:58:00


234 • CASTELOS A BOMBORDO

lançados (nome pelo qual eram conhecidos os emigrantes “ilegais” provenientes de


Portugal).
Os portugueses chegaram à Casamansa principalmente interessados no ouro, no
marfim e nos escravos. A partir de meados do século XVI, percorriam a área compre-
endida entre o Rio Cacheu e a Gâmbia na senda destes comércios e também da cera
(Roche 1985: 67). Alguns ter-se-ão fixado no interior, penetrando rios e ribeiros, actu-
ando como chefes ou intermediários nas trocas comerciais entre africanos e europeus.
Em troca dos escravos, nesta época, os portugueses traziam ferro, vinhos, algodão,
cavalos, contaria da Índia, papel, cravo, fio vermelho, pano vermelho, alguns vestidos,
algumas peças de prata e ouro (Álvares de Almada 1594: 44; Donelha 1977:165).
O manuscrito de Valentim Fernandes não deixa dúvidas quanto ao facto de, 50
anos depois da sua descoberta, o rio Casamansa ser já frequentemente utilizado para
o comércio pelos portugueses (1951: 59), comércio que se terá mantido regularmente
pelo menos até meados do século XVI. Porém, é difícil dizer se se baseava exclusiva-
mente em ligações a Cabo Verde ou se também contemplava trocas directas com Lis-
boa, já que o arquipélago cedo se tornou na plataforma privilegiada de contacto com
a costa africana, que, em teoria, se encontrava administrativamente subordinada às
ditas ilhas.
De facto, em 1466, os senhores de Santiago viram-lhes ser outorgado o direito
exclusivo de praticar comércio nas costas da Guiné (Trincaz 1984: 17). É a evolução
deste sistema de comércio de escravos que, mais tarde, com a descoberta e exploração
da América, se transmutaria num dos mais famosos sistemas de comércio triangular
(Lisboa – Santiago – Bissau ou Cacheu – Maranhão – Lisboa), que contribuiria para
definir a importância central do arquipélago de Cabo Verde na influência “portuguesa”
sobre a Senegâmbia.
O desenvolvimento de uma comunidade de lançados em Ziguinchor, principal
mercado e entroncamento do rio Casamansa, é associado a Frei João Delgado, um
jesuíta que aí faleceu em 1609. Em 1621, Ziguinchor tinha quinze casas de comer-
ciantes “portugueses”, uma Igreja, um padre e muitos cristãos locais. Nos anos seguin-
tes, a vila tornar-se-á no principal entreposto de troca no rio entre luso-africanos e
bainuncos (Brooks 1993: 241, 2003: 74).
No entanto, Ziguinchor, que pertencia a uma tribo bainunco local, os Iziguichos
(Almada 1594: 38), só será oficialmente integrada pela administração portuguesa em
1645, quando foi classificada como presídio dependente da capitania de Cacheu, dis-
tinção que terá estado ligada à fundação de Farim, no mesmo ano (Carvalho 1963:
133). O objectivo de ambos os presídios era proteger a rota vertical de escravos que
ligava regiões do interior da actual Gâmbia a Cacheu e Bissau (Carvalho 1963: 133;
Roche 1985: 69).

Castelos a Bombordo - FINALx.indd 234 27-03-2013 16:58:00


NAVEGAR À VISTA • 235

A maioria dos dados actualmente disponíveis sobre a história da Casamansa e


Ziguinchor saltam de 1645 directamente para 1846 ou mesmo 1886, quando Ziguin-
chor é cedida à França. Sobre os séculos balizados por essas datas, existe pouca ou
nenhuma documentação. Sobretudo, desconhece-se a magnitude e qualidade da influ-
ência de, pelo menos, três vectores de influência “portuguesa” na região: o cabo-
-verdiano, o português-europeu e o guineense.
Já o referi, “os portugueses” de Cabo-Verde tinham grande influência sobre toda
a costa norte-ocidental africana. Vinham ao Casamansa, por exemplo, tentar enrique-
cer para, no regresso, conseguirem casamentos vantajosos (Brooks 2003: 287). Mas
não se sabe como esta presença se coordenava com a presença portuguesa europeia.
Em 1623, um holandês em Cacheu dividiu ali o comércio em dois tipos: aquele que
era realizado com a metrópole e o que era feito com os que viviam na ilha de Santiago
(Mark 2002: 14), mas não se sabe se a mesma divisão existiu para Ziguinchor. No
século XVII, Cacheu era muito visitada por embarcações provenientes, não só de Cabo
Verde, mas também de Sevilha e Portugal (Brooks 2003: 241) e não é de excluir que
Ziguinchor também o fosse. Muito mais tarde, em 1830, as florestas situadas entre a
Casamansa e o rio S. Domingos foram exploradas regularmente pelo governo portu-
guês, que enviava obreiros de Lisboa escolher a madeira e dirigirem a operação. Cada
ano, um ou dois barcos carregavam essas madeiras para Portugal, destinadas à cons-
trução naval. (Brosselard 1889: 139). Não obstante, esta informação deixa dois sécu-
los de interrogações para trás.
Independentemente da sua proveniência, “os portugueses” terão criado várias
alfândegas na Casamansa, numa tentativa de controlar o comércio de cera e borracha,
mas nunca terão estado presentes em número suficiente para se estabelecerem firme-
mente. Portugal concentrava o seu interesse a Sul, no rio Cacheu e, dentro da Casa-
mansa, a Sudeste (Sindone, Adeane) (Leary 1970: 65).
Em toda a literatura não existem praticamente referências à Casamansa e Ziguin-
chor, ou porque não há registos históricos ou porque não foram suficientemente inves-
tigados. Paradoxalmente, a Casamansa é repetidamente referida como uma zona de
grande influência “portuguesa”, consideração talvez mais dedutiva, quiçá suportada
pelos sinais do presente, que aferida através de documentos históricos.
Não obstante, sabe-se que os séculos XVII e XVIII foram um período de enfraque-
cimento da presença portuguesa, para a qual contribuíram as medíocres possibilidades
económicas dos “portugueses”, as grandes vantagens que ofereceu a América e que
desencorajaram a colonização africana em profundidade (Trincaz 1984; Mark 2002:
11) e a anexação temporária de Portugal à Espanha em 1580, que fez dos inimigos
espanhóis inimigos portugueses (Brooks 2003: 68) e que abriu a rota da costa africana
às potências marítimas europeias (Leary 1970).

Castelos a Bombordo - FINALx.indd 235 27-03-2013 16:58:00


236 • CASTELOS A BOMBORDO

Por volta de 1760, cresceu o ascendente luso-africano sobre Ziguinchor e o con-


trolo português-europeu, enfraquecido pelas guerras napoleónicas (Brooks 2003: 285),
foi suplantado. Os luso-africanos passaram a dominar os destinos da própria cidade,
substituindo “os portugueses” como oficiais. No século XIX, os movimentos anties-
clavagistas contribuiram, adicionalmente, para a diminuição do interesse em África. A
abolição oficial do comércio dos escravos e, depois, o agravamento da sua fiscalização
(que levaria ao seu eclipse final) contribuíram para fazer Ziguinchor e a Casamansa
caírem no esquecimento e abandono.
No início do século XIX, encontramos uma Ziguinchor administrativamente
órfã, nas mãos de uma burguesia portuguesa de origem cabo-verdiana e com liga-
ções à Guiné. Em 1808, as autoridades de Ziguinchor não sabiam quem eram os
seus superiores (Carvalho 1963: 135) e o poder e o cargo de capitão de Ziguinchor
passavam de pai para filho (Carvalho 1963: 135), espécie de domínio dinástico
que diz bem do abandono a que estava votada esta remota extensão do império
português. Economicamente, a vila vivia de um comércio de pouca envergadura e
à margem dos fluxos internacionais de troca, com excepção do arroz da Baixa
Casamansa, que parece ter sido importante na subsistência de Goré e da Gâmbia.
Este comércio terá estado nas mãos de luso-africanos vivendo em Ziguinchor, os
chamados grumetes, uma espécie de servidores mais ou menos lusitanizados dos
lançados ou de escravos próximos dos “portugueses” ou luso-africanos, progres-
sivamente mais ou menos cristianizados, falando português ou crioulo (Boulégue
1989: 72), que compunham quase exclusivamente toda a população do presídio.
Algumas aldeias do lado direito do rio estavam sobre a tutela de Ziguinchor e ven-
diam aos grumetes o sal. O mesmo era válido para as aldeias de Adeane e Sindone,
a Leste de Ziguinchor, consideradas por Ziguinchor como relevantes da autoridade
de Portugal.
Nesse mesmo ano de 1808, Ziguinchor agrupava cerca de 1500 habitantes (muitos
dos quais escravos) e era pouco mais que um conjunto de casas de palha, apertadas e
limitadas por uma paliçada rectangular em madeira (Brosselard 1892: 20). A presença
portuguesa estava assinalada por um estandarte onde se agitava a bandeira nacional,
mas nenhum português da metrópole residia em Ziguinchor. Esporadicamente, o
capitão-mor de Cacheu fazia uma inspecção.
Em sentido inverso a este cenário decadente, os franceses, que exploravam con-
comitantemente a costa africana em busca dos melhores lugares para o seu estabeleci-
mento comercial, interessam-se pela região nos anos 30. Compram terrenos no rio e,
em 1838, principiam os trabalhos para se instalarem definitivamente em Sédhiou.
Pouco depois, começam a desviar o comércio de Ziguinchor, Cacheu e Farim, levando
aos primeiros protestos na região.

Castelos a Bombordo - FINALx.indd 236 27-03-2013 16:58:00


NAVEGAR À VISTA • 237

Entre 1837 e 1890, contam-se uma longa série de episódios e pequenos conflitos
que envolveram questões relacionadas com sobreposições e renovações de tratados
em aldeias e subsequentes disputas de soberania, que implicaram repetidas trocas de
bandeiras, multas, alguns encarceramentos e terminaram frequentemente em represá-
lias sobre as populações. Os franceses, a partir de Goré, começaram a insistir na ane-
xação de Ziguinchor, movidos pela sua localização geográfica associada a motivações
comerciais (Roche 1985: 204; Trincaz 1984: 34-35). Paralelamente, estava em causa
a delimitação das fronteiras entre o Senegal e a Guiné Portuguesa, que nunca tinha
sido feita.
A 12 de Maio de 1886, os comerciantes franceses, apoiados pela administração de
Goré e pela metrópole, obtêm a desejada vitória, com a assinatura da convenção franco-
-portuguesa. Nela, delimitam-se as fronteiras entre a Guiné Portuguesa e as possessões
francesas, o que na prática equivalia a uma cedência completa da soberania portuguesa
sobre a Casamansa em troca do rio Cassini e direitos de pesca na Terra Nova. Em 1888
começariam os trabalhos de delimitação das fronteiras, que só seriam completamente
dados por concluídos em 1931.
No dia 22 de Abril de 1888, às 8.07h a bandeira francesa foi içada e saudada por
uma salva de 21 tiros de canhão (Brosselard 1889: 136), colocando oficialmente fim
a 243 anos de presença portuguesa no rio Casamansa.
Para administrar Ziguinchor, o poder é delegado no explorador Galibert, sobre-
tudo em função dos seus conhecimentos de crioulo e dos costumes das populações
“portuguesas”. Galibert inicia uma série de reformas, nomeadamente a nível da pro-
priedade, da administração local e do planeamento urbanístico da cidade que visam
diminuir e substituir o poder da elite “portuguesa”. Em 1901, a população mestiça
“portuguesa”, cabo-verdiano e bainunco-descendente, com conexões a Bissau e falante
de crioulo é inclusive relocalizada num bairro novo, periférico, erigido para o efeito.
É nesse bairro, mas também em muitos outros lugares da Casamansa que é possível
encontrar hoje sinais do “elemento português”.

Vectores da influência portuguesa na Casamansa

Entre os séculos XV e XIX, na Senegâmbia, coexistiram uma miríade de grupos de


origens espaciais, raciais e culturais muito diferentes, entre portugueses da metrópole,
cabo-verdianos e luso-africanos do continente, que se auto-identificavam como por-
tugueses. Como já referi (ver nota 1), os portugueses foram sempre mais “portugueses”
do que portugueses. Para complexificar, como alerta Mark, os marcadores utilizados
para a auto-identificação de um “português” e os próprios motivos para a apropriação

Castelos a Bombordo - FINALx.indd 237 27-03-2013 16:58:00


238 • CASTELOS A BOMBORDO

desta identidade foram mudando (Mark 2002: 10). Não obstante, podem-se distinguir,
com segurança, quatro vectores distintos de influência “portuguesa” na Casamansa.
Primeiro. A situação geográfica da Casamansa, isolada do resto do Senegal e do
centro político, económico e administrativo do país, Dacar, e a proximidade geográ-
fica mas, sobretudo, humana com a antiga Guiné Portuguesa, especialmente de Cacheu,
favoreceu e favorece um fluxo forte e constante de influência cultural “portuguesa”
(Leary 1970: 2).
Segundo. Os lançados, juntamente com os exploradores e os comerciantes, foram
os agentes directos de disseminação de uma cultura portuguesa directamente prove-
niente da metrópole. Instalaram-se nas aldeias africanas, onde, juntamente com os seus
descendentes mestiços, assumiam papéis de chefia ou de intermediários nas trocas
comerciais. Na Casamansa, terá sucedido o mesmo (Carreira 1965: 2).
Terceiro. Porventura o vector mais forte, provém das Ilhas de Cabo Verde. Do
século XVI em diante, a população cabo-verdiana manteve um contacto próximo e
regular com o continente e, provavelmente, também com a Casamansa.
Quarto. Tem que ver com os fenómenos de reprodução e evolução local, relativa-
mente autónomos, de alguns traços da cultura portuguesa. Os mais salientes são a lín-
gua e religião. Esta reprodução foi mais acentuada em Ziguinchor e, pelo que apurei
no terreno, a Leste desta vila, na região das actuais aldeias de Sindone e Adeane.

Existências e utilizações contemporâneas da Casamansa “portuguesa”

O que é particular na cronologia do case-study da Casamansa nas relações entre


sociedade e memória colectiva é que entre o longo passado de presença portuguesa e
a actualidade, existe um segundo passado – a presença colonial francesa – que, por
curto que tenha sido, agiu como uma tinta branca parcial sobre o primeiro, até porque
deixou marcas mais vincadas no presente. É lugar-comum, nos estudos sobre memória
colectiva, apelar-se à expressão de Lowenthal (1985) de que “o passado é um país
estrangeiro”, significando, essencialmente, que o passado é um território moldável.
No caso da Casamansa o passado “português” é mais do que isso: é um país, talvez,
demasiado estrangeiro ou demasiado distante.
Essa distância, aliada à referida diversidade de influências “portuguesas”, pode
explicar a heterogeneidade dos “usos do passado” “português”. A “distância” surge,
pois, como meio de desagrilhoamento do passado, como possibilitadora de liberdade
social interpretativa.
Hoje, em Ziguinchor, reside uma população espacialmente concentrada que mis-
tura influências bainunco e cristã que continua a utilizar o crioulo como língua prin-

Castelos a Bombordo - FINALx.indd 238 27-03-2013 16:58:01


NAVEGAR À VISTA • 239

cipal de comunicação. O crioulo é falado por uma grande parte da população idosa
de algumas zonas da Casamansa e o fluxo constante de migrantes da Guiné-Bissau
contribui permanentemente para o reactivar. Está ainda associado à resistência sulista3,
uma vez que o facto de ser colectivamente associado a uma Ziguinchor antiga e com
uma afinidade “portuguesa” com a Guiné-Bissau e de ser desconhecido dos “novos
colonizadores” da região – o elo wolof-muçulmano – lhe garante não apenas um poder
simbólico forte, mas também a função prática de permitir a grupos de casamansenses
conversarem entre si sem que as “gentes do norte” percebam o que eles estão a dizer.
Não raramente esta vantagem do crioulo me foi sublinhada.
A presença portuguesa relaciona-se intimamente com a história da etnia bainunco.
Os bainuncos são a população autóctone (Leary 1970: 19) e foram, em tempos, a
etnia dominante da Casamansa. Tornaram-se virtualmente extintos, já que foram
absorvidos ou conquistados por outros grupos. Segundo Leary (1970: 23), em Ziguin-
chor, foram parcialmente assimilados pelos portugueses em termos de religião e de
língua, mas talvez não apenas nessa vila, já que, no séc. XIX, como actualmente, há
inúmeros registos da presença de bainuncos cristãos também nas povoações vizinhas
de Tobor, Adeane e Sindone. Ademais, nestas como noutras povoações, os indícios
de coincidência territorial de bainuncos e “portugueses” remontam ao séc. XV. Em
Ziguinchor residem sobretudo nos velhos bairros de Thiléne, Santhiaba e Corentas,
precisamente os bairros onde o “elemento português” foi relocalizado aquando da
colonização francesa.
A 1 de Dezembro de 2010, numa conferência em Ziguinchor intitulada “Conquêtes
et Résistances en Casamance: 1850-1945” tendo Christian Roche – porventura o his-
toriador mais importante da Casamansa – como figura de destaque, o debate que se
seguiu às orações aqueceu ao sabor das intervenções do público, que, num ápice, se
encarregou de fazer um fast-forward à conferência para 60 anos à frente da sua janela
de tempo. Tal como um dos elementos do público verbalizou, “actualmente a História
não tem importância na Casamansa, é a questão política que nos interessa”. No meio
do moderado tumulto, destaco duas intervenções, a primeira delas pelo deslocamento
da direcção do debate: um dos intervenientes, de etnia bainunco, protestava veemente
contra o esquecimento votado a esta etnia, inclusive nas Histórias académicas como a
de Roche, alegando paralelamente um branqueamento francês da presença portuguesa
na Casamansa e acusando Roche de estar mal informado. O interveniente, que, através
de mapas por si trazidos reclamava a coincidência da dispersão geográfica bainunco
com a dispersão portuguesa, traído por uma débil oratória, não conseguiu fazer valer
o seu ponto e alguém desferiu uma machadada final na sua intervenção gritando “ce

3
Desde 1982 que existe uma guerra civil pela independência da Casamansa.

Castelos a Bombordo - FINALx.indd 239 27-03-2013 16:58:01


240 • CASTELOS A BOMBORDO

n’est pas ça le débat” ao mesmo tempo que Roche refutava as críticas. Poder-se-ia jul-
gar, como julguei no momento, que o interveniente estava tão isolado na sua posição
identitária fora como dentro daquele auditório. No entanto, os discursos de muitos
bainuncos com quem privei mais tarde confirmar-me-iam que a utilização do elo
português-bainunco é um fenómeno identitário minoritário mas vivo.
O corte súbito na intervenção não impediu, todavia, um outro interveniente de
afirmar que a Casamansa é portuguesa e não francesa (afirmação recorrente em toda
a Casamansa). Já esta observação foi escutada pela assistência com maior atenção,
precisamente porque foi rapidamente instrumentalizada para reaquecer o debate sobre
as questões que envolvem o separatismo da região. O caso é o da alegação de que a
Casamansa não é francesa (e, logo, senegalesa) mas sim portuguesa (e logo, indepen-
dente, ou ligada, de alguma forma, à Guiné-Bissau: seja como for, de forma alguma
ligada ao Senegal). Este discurso não é moribundo e o seu último fôlego não pertence
sequer a uma população idosa e bainunco em desaparecimento. Encontrei-o também,
por exemplo, em jovens intelectuais independentistas muçulmanos de etnia diola,
inclusive em versões ferozes e emocionadas.
Porém, aquela que é a “existência” portuguesa mais comum na Casamansa é de
outra ordem e encontra-se parcialmente ancorada no património material. Há uma
série de edifícios na cidade de Ziguinchor aos quais é generalizadamente imputada
uma origem portuguesa. Também é frequente ouvir-se que foram os portugueses que
colonizaram a ilha de Carabane, uma aldeia histórica que simboliza, talvez mais que
qualquer outra, a presença colonial branca/francesa na Casamansa, já que foi capital
desta sub-região administrativa da A.O.F. Nada nestas alegações corresponde a uma
verdade factual, embora alguns edifícios tenham, de facto, uma influência arquitectó-
nica portuguesa (Mark, 2002). A esta ancoragem num património material fictício há
que juntar uma memória colectiva sólida e imaterial: regra geral, os casamansense
sabem que a Casamansa foi, em tempos, portuguesa. Os objectos materiais atrás refe-
ridos são, pois, utilizados como provas ou evidências desta origem, funcionam como
solidificadores de uma consciência histórica. Mas o que quer isto dizer? O que quer
dizer para os naturais da Casamansa ter sido português? Em geral, esse passado é uti-
lizado, uma vez mais, como forma de aproximação identitária à Guiné-Bissau (criando,
nesse momento, um distanciamento de Dacar, do “Senegal”, do Norte e das suas etnias
predominantes). Por outro lado, creio estarmos perante uma forma subtil de vontade
de aproximação emocional e identitária à “branquitude” que, através do elemento
português, ultrapassa as memórias negativas dessa ligação, conotadas com a presença
francesa e com a intensa vivência contemporânea dessa ligação, que permanece pre-
dominantemente negativa, marcada pela diferença material, pelas assimetrias nas pos-
sibilidades de migração e por todas as sombras do colonialismo.

Castelos a Bombordo - FINALx.indd 240 27-03-2013 16:58:01


NAVEGAR À VISTA • 241

Há uma terceira via de ligação ao passado português, a qual possui uma conotação
que não poderia ser mais negativa: Ziguinchor, nas palavras de quase todos os casaman-
senses, é um nome que teria origem no português “cheguei e chorei” – a reacção emo-
cional à função esclavagista da vila (Ziguinchor foi um presídio esclavagista português)
–, que, por corrupção fonética, teria formado o nome da cidade4. Talvez inesperada-
mente, essa ligação aos portugueses nunca é efectivada e muito menos utilizada de modo
a criar qualquer tipo de animosidade ou de memória negativa em relação a “eles”. Em
todo o Senegal, o ressentimento contra a escravatura é grande e essa emoção manifesta-
-se com uma recorrência implacável, dos círculos intelectuais aos mais populares; porém,
esse ressentimento não é reactivado em relação aos portugueses (o que é tanto mais
surpreendente quando se tem em conta que o Senegal tem um passado de escravatura
bem estudado e intelectualizado). Se convocado, perde-se, como se não tivesse base por
onde crescer, lugar por onde passar. Claro que não sobreviveram símbolos físicos (não
há nenhuma fortaleza da Mina!) que permitam sustentar a ligação com Portugal (o que,
por si só, não constitui entrave suficiente, já que, por vezes, eles são inventados mesmo
quando não existem, como é precisamente o caso de Carabane, que é falsamente conhe-
cida como tendo sido um presídio esclavagista francês) mas o factor determinante para
esse vazio emocional parece ser a ocupação francesa, que terá absorvido toda a hosti-
lidade latente contra “o branco”. Hoje em dia, a minha “lusofonia” ao passear-me na
Casamansa é anódina, apesar de o facto de ser branco o não ser, ou seja: o facto de ser
português não me distingue particularmente de outros brancos mas também não me
aproxima a um natural da França. Pelo contrário: a presença portuguesa é, por vezes,
como já referi, referida com orgulho, utilizada como forma de estabelecer uma distin-
ção dos franceses e do “Senegal”, como evidência a conferência de Christian Roche.
As subtilezas e variações presentes neste case-study encaixam particularmente bem
na tese de Pierre Nora de que a “análise das formas de fazer história sobre o passado
é uma análise das condições de produção dessa mesma história” (1977: 12). Na rea-
lidade, creio que é sobretudo a actualidade de um Senegal francófono e francofoni-
zado, vergado pelo peso do passado colonial mas sobretudo pelo peso das assimetrias
contemporâneas, que contribui decisivamente para esvaziar os gemidos de um passado
esclavagista que, apesar de tudo, tem apenas pouco mais de cem anos. Paralelamente,
é o separatismo identitário casamansense (uma vez mais, um fenómeno contemporâ-
neo), frequentemente alicerçado num discurso de identificação com uma Guiné-Bissau
que, para grande parte da população, pelo menos ao nível do significante, ainda é
“portuguesa”, que anula a “presença negativa” dos “portugueses”.

4
A etimologia do nome “Ziguinchor” está relacionada, na realidade, com a localidade bainunco de Izigichor já mencionada no
séc. XV por André de Almada (1594: 65)

Castelos a Bombordo - FINALx.indd 241 27-03-2013 16:58:01


242 • CASTELOS A BOMBORDO

Finalmente, um quarto tipo de “existência portuguesa”. Para o veicular utilizarei


uma aldeia como exemplo: Sindone.
Sindone é um caso atípico no legado português na região. Trata-se de um enclave
cultural cristão, falante de crioulo, numa zona mandinga parcialmente conquistada
nos últimos séculos à etnia bainunco. Localizada a cerca de 20km da Guiné-Bissau, a
Sul, e a outros 20km de Ziguinchor, a Oeste, é um mistério como é que esta aldeia de
aproximadamente duas mil almas se comunica interna e exclusivamente num crioulo
que, ademais, faz jus à difundida ideia de que o crioulo da Casamansa é diferente do
de Bissau, reforçando a ideia de uma influência “portuguesa” não directamente rela-
cionada com a Guiné (aliás, os seus habitantes insistem recorrentemente no esclareci-
mento de que “em Sindone o crioulo é outro”, que é “o da gente de aqui”, que não é
o que vem da Guiné). Em Sindone, a população é maioritariamente bainunco e diola
mas quase todos perderam a capacidade de comunicar nas suas línguas étnicas de ori-
gem. Os apelidos de origem portuguesa são frequentes: Tavares, Pereira, Carvalho,
etc. À excepção de duas famílias, que chegaram nos últimos anos, toda a aldeia é cristã.
A bíblia é lida, na igreja, em crioulo, numa edição de Ziguinchor de 1951.
Nos casamentos, as mulheres cantam aquilo a que chamam “mornas”. Cantaram-
-me algumas, embora não fosse dia de casamento, e, tudo aquilo me soou a português
antigo (seria interessante aí regressar com um especialista em crioulos cabo-verdianos).
Um grupo de crianças levou-me a uma zona costeira da aldeia conhecida por Lisboa.
Lisboa tem quatro ou cinco mangueiras de um tipo que toda a aldeia diz não se encon-
trarem em mais nenhum lugar da Casamansa e terem sido trazidas pelos portugueses.
Junto às mangueiras encontram-se fundações de edifícios de construção colonial, em
tijolo, que me garantiram terem pertencido aos portugueses e ainda os pilares de dois
pontões (um deles, numa zona que os aldeões dizem ter pertencido também ela aos
portugueses). Os portugueses, explicaram-me, levavam tabaco, aguardente de cana e
chabéu e em troca traziam vinho (as mulheres lembram garrafões cujos fragmentos
estão agora espalhados junto aos antigos pontões).
Uma das razões porque me parece plausível que Sindone seja muito mais uma
comunidade de influência portuguesa europeia ou cabo-verdiana do que o produto de
um fluxo migratório guineense (para além das várias referências históricas à aldeia e
à sua região neste sentido) é que, embora aqui se fale apenas o crioulo – ao contrário
de Adeane – este crioulo se encontra recheado de inúmeros vocábulos franceses e wolof
(ao contrário de outras aldeias da Casamansa onde se fala crioulo). Esses vocábulos
têm a particularidade de coincidirem com elementos da realidade que não existem em
Sindone e que, no caso de um isolamento nas condições geográficas da aldeia, teriam
sido naturalmente perdidos, ao longo das gerações (tal como aconteceu), a menos que
se tivesse mantido um input migratório guineense constante – praia, montanha, maçã,

Castelos a Bombordo - FINALx.indd 242 27-03-2013 16:58:01


NAVEGAR À VISTA • 243

laranja, dizem-se, respectivamente, no crioulo local, plage, montagne, pomme e orange.


Há ainda o caso do vocabulário abstracto e técnico deste crioulo, que se encontra sig-
nificativamente substituído pelo francês. A importância de vectores de influência que
não o guineense é reforçada, de resto, pela ampla capacidade de muitos idosos casa-
mansenses de detectarem crioulos que são recorrente e curiosamente apelidados de
“portugueses” e de os distinguirem do casamansense (seria interessante realizar um
estudo linguístico comparativo entre os crioulos de Cabo Verde, da Guiné-Bissau e da
Casamansa). O legado “português” na Casamansa tem este lado estranho, fantasma-
górico e bizarro: como em Sindone, há inúmeros lugares na região onde alguém pode
passar por nós e nos cumprimentar com um “Bom Dia” foneticamente tão português
como se estivéssemos em Alfama. Mas muitas destas pessoas nunca estiveram em Por-
tugal ou em qualquer país de expressão portuguesa. Têm a Guiné-Bissau a 20km de
distância, em linha recta, mas nunca lá puseram os pés. O seu crioulo foi aprendido
aqui, na Casamansa, onde a Guiné-Bissau continua a exercer a sua influência, é certo,
mas onde existem elementos que indicam outras influências ou que o legado da pre-
sença lusófona se terá desdobrando e multiplicando internamente ao longo dos sécu-
los com mais intensidade do que normalmente se supõe.
Não obstante, o que admira em Sindone (como na Casamansa) é o facto de os
portugueses serem uma memória vazia. Não são inexistentes porque são um passado
recordado, reactualizado recorrentemente. São, em todas as acepções do termo, um
património. Sabe-se que existiram e que colonizaram a Casamansa antes dos franceses,
e sabe-se até, vagamente, onde estiveram, com quem se relacionavam e o que transac-
cionavam. Mas a relação com essa presença (com essa memória) é neutra, factual e
praticamente desprovida de ligação afectiva (mesmo em relação à memória esclava-
gista), se não quando é utilizada nos processos políticos actuais que já referi. Excepto
nos seus usos políticos presentes, são um significante sem significado. Como disse
alguém na conferência de Christian Roche, “a História já não tem importância aqui.
É a questão política que nos interessa”. E, talvez, para essa função, nada seja mais útil
do que, mais do que um “país distante”, um país demasiado distante.
É precisamente o facto de haver um capital histórico disponível de relação com a
“etnia branca” pronto a ser utilizado mas tornado tão distante e rarefeito por esse efeito
de “borracha” que foi o período colonial francês, adicionalmente tornado difuso pela
própria heterogeneidade dessa presença “portuguesa” e mal sustentado por marcadores
materiais, que a Casamansa é um bom case-study para exemplificar uma espécie de impo-
tência do passado face às possibilidades de manipulação que o presente oferece. O que
falta ao passado “português” em memória factual, tem-no em excesso em memória selec-
tiva ou fantasiada: o significado do nome Ziguinchor, a ausência de ligação entre esse
presídio esclavagista e os portugueses, a ligação ancestral e íntima com a Guiné-Bissau.

Castelos a Bombordo - FINALx.indd 243 27-03-2013 16:58:01


244 • CASTELOS A BOMBORDO

O último tipo de “existência na Casamansa que distingo, funciona, vive e fervilha


dentro de círculos sociais completamente distintos dos que já foram referidos. Chamar-
-lhe-ia de presença intelectual-independentista, e vive de detalhes e reminiscências
invisíveis para o resto da população, como a problematização da origem portuguesa
de alguns aspectos da casa rectangular típica da etnia diola (Mark 2002). Chamo
“intelectual-independentista” a esta presença porque ela “existe” em círculos infor-
mados compostos por académicos e investigadores da Casamansa, alguns casamansen-
ses excepcionalmente instruídos e estrangeiros apaixonados pela região (frequentemente,
a curiosidade destes últimos pela história da Casamansa, como objecto isolado, desta-
cado do Senegal, parte de uma paixão pela região entrelaçada com um desdém pelo
Norte senegalês, por vezes alicerçado numa mera animosidade cultural) que se dedi-
cam mais ou menos aprofundadamente à sua história. Regra geral, utilizam precisa-
mente o registo historiográfico e etnográfico para comprovar antinomias culturais
entre a região da Casamansa e o resto do Senegal, antinomias que a “presença portu-
guesa”, por oposição à “presença francesa” a Norte, naturalmente reforça.

Conclusão

A diferença entre as várias “existências” e “utilizações” do passado na Casamansa


transporta-nos para a estimulante oposição entre “memória” e “história” trabalhada
por Nora, uma oposição clear-cut que considera a transformação das “sociedades da
memória” em “sociedades da história”, alegadamente operada, na modernidade, por
uma aceleração tão vincada do tempo que terá originado a criação de severas descon-
tinuidades temporais, mitigando as ligações entre passado e presente e dessubstanciando
os horizontes sociológicos futuros das comunidades, fenómeno este que encontra ecos,
por exemplo, na insegurança de Giddens (1994), na falta de confiança de Bauman
(1997), na sociedade do risco de Beck (2000), ou, dentro da historiografia, na ausên-
cia do futuro nos regimes de historicidade de Hartog (2003), todos eles sintomas
comummente diagnosticados às sociedades modernas. Descontinuidade, aceleração
do tempo, alcance da mudança: os factores na génese da divisão “memória-história”
de Nora são os mesmos que separam as sociedades tradicionais das modernas, de Gid-
dens (1990: 5).
Para Nora, a aceleração do tempo permitiu uma passagem da memória – “inte-
grada, ditatorial e inconsciente dela mesmo, organizadora e todo-poderosa, esponta-
neamente actualizadora, uma memória sem passado que reconduz eternamente à
herança, reenviando para o antigamente dos antepassados, o tempo indiferenciado
dos heróis, das origens e do mito – à história” (Nora 1984: XVII – tradução minha),

Castelos a Bombordo - FINALx.indd 244 27-03-2013 16:58:01


NAVEGAR À VISTA • 245

que é o que fazem do passado as “nossas” sociedades condenadas ao esquecimento,


trazido pela mudança.
O que me interessa na sobreposição deste dispositivo à Casamansa (e o de Giddens
poderia sofrer um tratamento suficiente) é que a aceleração, a descontinuidade e a
amplitude geográfica da mudança não parecem, neste caso, terem sido factores sufi-
cientes para uma passagem completa da “memória” à “história” (e, certamente, da
tradição à modernidade). Há qualquer coisa que falta ao caso casamansense (ou à teo-
ria de Nora), já que na Casamansa, e apesar do seu contexto de transformações pro-
fundas e da chegada da modernidade, a “história” não comeu ainda a “memória”, nem
lhe destruiu de todo os seus “mecanismos múltiplos e desmultiplicados, colectivos,
plurais e individualizados” (Nora 1984: XIX – tradução minha).
As transformações espectaculares na sociedade senegalesa, sem dúvida ainda mais rápi-
das e aceleradas que as do ocidente (afinal de contas, há 60 anos não existia sequer a Repú-
blica do Senegal) pressuporiam uma “passagem à história”: a aceleração do tempo, a
velocidade de alteração das práticas culturais locais, são estonteantes. Porém, a Casamansa
revela-se uma “sociedade da memória”: múltipla e desmultiplicada. Sem dúvida, nasce
aqui um alerta para o facto de a modernidade também se ter que medir pela forma como
o tempo é abarcado pela sociedade e nela reinserido. Para além da aceleração do tempo,
das descontinuidades e da sua amplitude, “a história”, para emergir, parece, pois, requerer
a criação da própria imagem de descontinuidade com o passado; requerer que o fenómeno
da passagem do tempo seja assinalado; parece necessitar de um discurso que fixe essa pas-
sagem, que inscreva a consciência da diferença temporal na sociedade, que, em suma, a
desenraíze de si própria, que lhe instale, justamente, como diz Nora, “la doute au coeur”
(Nora 1984: XXI). Neste sentido o caso casamansense insinua a importância do papel da
escola, da institucionalização da História e da sua consagração sociológica como discurso
mainstream de esmiuçamento do passado, como formas de consagração do próprio dife-
rencial temporal. Ou seja, insinua que a “memória” talvez só se deixe subjugar ao exercí-
cio antagónico da “história” através de sistemas sistemáticos e generalizados de informação
e de transformação da consciência colectiva, como o escolástico. O mesmo é dizer que
talvez a modernidade e a aceleração do tempo nunca estejam completos sem o exercício
activo da sua própria autoconsciência (isto explicaria o remetimento da “história” ao quarto
tipo de “existência” contemporânea “portuguesa”, a um restrito núcleo intelectual).
Por outro lado, a Casamansa obriga a arriscar a hipótese de que a extinção do exer-
cício da “memória”, com a sua criatividade absoluta (de que a segunda parte deste artigo
é ilustrativa), talvez requeira uma modernidade ainda mais completa que a que é gerada
pela conjugação da “aceleração do tempo” com a institucionalização da História. O
mesmo é perguntar, quais são as condições para a emergência do exercício de autocons-
ciência do tempo que parece insuflar a relação moderna com a temporalidade?

Castelos a Bombordo - FINALx.indd 245 27-03-2013 16:58:02


246 • CASTELOS A BOMBORDO

Nora critica o facto de a obsessão reflexiva e a espiral autocrítica da historiografia


francesa a terem eventualmente encurralado a atacar também os mitos fundadores da
França, como a revolução, e de esse processo ter mitigado as emanações de identidade
“mais puras”, criando problemas de fragmentação, instalando uma “doute au coeur”
(Nora 1984: XXI.). Hartog, na mesma linha, dá o exemplo da Berlim contemporânea
(e moderna) como laboratório de tempo, lego de idades (2003: 20), uma cidade em
que as perguntas – o que destruir?, o que conservar?, o que reconstruir?, o que cons-
truir? e como o fazer? – estão na praça pública (Hartog 2003: 21). No tabuleiro do
tempo casamansense contemporâneo, o mosaico de “utilizações” e “existências” do
passado “português” dá mostras de uma plasticidade semelhante. Todavia, este manan-
cial de informação, devido ao seu inestimável valor político, é generalizado e diversa-
mente utilizado sem que estas questões se coloquem e sem, por enquanto, pretensões
unificadoras ou sistematizadoras: ninguém se pergunta o que destruir, o que conservar
ou o que reconstruir, e as demandas por uma verdade histórica positivista têm baixa
expressão. As destruições, reconstruções e utilizações do passado “português” pulu-
lam, desagrilhoadas, maleáveis, na boca de diferentes etnias, de estrangeiros “amigos
da Casamansa” e dos diferentes nichos de relação política-identitária com Dacar. Mas,
ao contrário dos exemplos de Berlim ou da obsessão historiográfica francesa, não se
tratam de fragmentações que tenham emergido depois de uma unificação e estabiliza-
ção políticas relativas da sociedade (como são os casos europeus): são, antes, etapas
de um processo de construção altamente incompleto e em curso.
Neste sentido, esta pequena reflexão corrobora uma crítica de Hartog a Nora:
para Nora o efeito de aceleração da história não era apenas derivado de um lidar com
múltiplos passados (Halbwachs) mas de uma ruptura com os mesmos, efectivada por
processos de mundialização, democratização, massificação e mediatização. Ora, o que
Hartog (que não segue a divisão “memória-história”, embora a problematize) acres-
centa a Nora é que a obsessão reflexiva historiográfica que caracteriza a modernidade
e que “oficializa” essa ruptura não pode ser lida sem a sua integração nas característi-
cas particulares do contexto político Ocidental actual: um contexto de stasis, de um
presente (político) definido como eternidade, “où rien ne passe et tout est présent a la
fois” (Hartog 2003: 217).
Deste ponto de vista, simetricamente, como se poderia exigir à Casamansa uma
“passagem à história” sem uma estabilização política, concomitante com uma guerra
civil ou com os seus movimentos de independência? Ou o que aconteceria a uma Casa-
mansa hiper-etnicizada e identitariamente fragmentada se se começasse a ensinar na
escola que algumas das etnias actuais comerciavam e capturavam escravos para os por-
tugueses e outras não? À semelhança do que propõe Nora noutro lugar (Nora 1977:
12), não é apenas o passado que é reconfigurado à luz do presente: as próprias formas

Castelos a Bombordo - FINALx.indd 246 27-03-2013 16:58:02


NAVEGAR À VISTA • 247

de produção do passado alteram-se segundo as suas condições de produção. Repito a


frase do interveniente na conferência: “actualmente a História já não tem importância
aqui”. É como se dissesse, no fundo: o nosso presente precisa do nosso passado como
nunca para fazer sentido, mas é de um passado nosso, não da rigidez positivista de um
passado historiográfico. O remexer e vasculhar positivista e historiográfico do passado
é o privilégio de um presente que não se agita facilmente.

Biliografia
ALMADA, André Alvares de, 1594, Tratado Breve dos Rios de Guiné do Cabo-Verde desde o Rio do Sanagá
até aos baicos de Sant’ana. Diogo Köpke (1841), Porto, Typographia Commercial Portuense.
BECK, Ulrich, Anthony Giddens, e Scott Lash, 2000, Modernização Reflexiva Política, Tradição e Estética
no Mundo Moderno. Oeiras, Celta.
BAUMAN, Zygmunt, 1997, O Mal-estar da pós-modernidade. Rio de Janeiro, Jorge Zahar Editores.
BOULÉGUE, Jean, 1989, Les luso-africains de Sénégambie. Colab. Xavier Guillard. Lisboa, Instituto de
Investigação Científica e Tropical; Paris, Centre de Recherches Africaines, Gráfica Imperial.
BROOKS, George E., 2003, Eurafricans in Western Africa: Commerce, Social Status, Gender, and Religious
Observance from the Sixteenth to the Eighteenth Century. Anthens, Ohio University Press.
BROOKS, George E., 1993, Landlords and Strangers: Ecology, Society and Trade in Western Africa, 1000-
-1630. Boulder, Westview Press.
BROSSELARD, Henri F., 1892, Casamance et Mellacorée. Pénétration au Soudan. Paris, Librairie Illustrée.
BROSSELARD, Henri F., 1889, La Guinée portugaise et les possessions françaises voisines. Lille, Impri-
merie L. Danel.
CARVALHO, Gabriel, 1967, “Contribution à l’Histoire de la Casamance” in Afrique Documents, 91(1er
Cahier), Lyon.
DONELHA, André, 1977, Descrição da Serra Leoa e dos rios de Guiné do Cabo Verde.: 1625 / André
Donelha. Lisboa, Junta de Investigação do Ultramar.
FERNANDES, Valentim, 1951 [1506-1510], Description de la Côte Occidentale d’Afrique. trad. Monod,
Da Morta e Mauny. Bissau, Centro de Estudos da Guiné Portuguesa.
GIDDENS, Anthony, 1992, As Consequências da Modernidade. Oeiras, Celta.
HARTOG, François, 2003, Patrimoine et présent” in François Hartog Régimes d’historicité – Présentismes
et expériences du temps. Paris, Le Seuil.
LEARY, Fay, 1970, Islam, Politics and Colonialism (1850-1914). Illinois, Northwestern University.
LOWENTHAL, David, 1985, The Past is a Foreign Country. Cambridge, Cambridge University Press
MARK, Peter, 2002, “Portuguese” Style and Luso-African Identity. Bloomington e Indianapolis, Indiana
University Press.
MOTA, Avelino Teixeira, 1972, Mar, além-mar: estudos e ensaios de História e Geografia. Lisboa, Junta
de Investigação do Ultramar.
NORA, Pierre, 1977, Fazer História. Vol. I – Novos Problemas, Amadora, Livraria Bertrand.
NORA, Pierre, 1984, – “Entre Mémoire et Histoire”, em Les Lieux de Mémoire – I La République. Paris,
Gallimard.
ROCHE, Christian, 1984, Histoire de la Casamance: Conquête et résistance 1850-1920. Paris, Karthala.
TRINCAZ, Pierre, 1984, Colonisation et Régionalisme – Ziguinchor en Casamance. Paris, Éditions de
L’ORSTOM.

Castelos a Bombordo - FINALx.indd 247 27-03-2013 16:58:02


A ILHA DE MOÇAMBIQUE
O património ou os usos da “comunidade”

CARLA ALMEIDA

A Ilha de Moçambique

É a herança arquitetónica herdada do período colonial português que constitui o


elemento determinante e aglutinador da Ilha de Moçambique. Todavia, e embora o
território seja pequeno, essa herança é fraturante e estruturante, quer do espaço, quer
das formas de a habitar. Na verdade, a ocupação faz-se através de dois núcleos urbanos:
por um lado a Cidade de Pedra e por outro a Cidade de Macuti, uma divisão estabele-
cida progressivamente pelos portugueses desde o século XVI. A primeira destinou-se à
população colonial e assimilados (portugueses, outros europeus, árabes, indianos e
mestiços) e a segunda à população local (inicialmente a escravos e depois fundamental-
mente à população indígena). Esta divisão espácio-social e económica perdeu “legiti-
midade” a partir da independência de Moçambique, em 1975. O país apropriou-se
então do património construído para a ilustração da sua história, baseando-se sobre-
tudo, como foi destacado no dossiê da sua candidatura a património mundial, na exem-
plaridade da Ilha como testemunho de uma identidade multicultural (Arkitektskolen
1985). Contudo, 30 anos depois e apesar do novo contexto, a fratura – moçambicanos
e estrangeiros – permanece. Mantêm-se formas de habitar, objetivos, apropriações e
representações distintas do local.
Nos horizontes do governo, os planos de futuro para a Cidade de Pedra são a recu-
peração dos seus edifícios tendo em vista o aumento do seu atrativo turístico. Pelo
contrário, a intervenção na Cidade de Macuti passa pela necessidade da sua retradi-
cionalização, o que implica o seu descongestionamento populacional e saneamento.
Algumas das casas deveriam por isso ser derrubadas e a sua população, em grande
parte em situação pobreza absoluta, deveria ser realojada no território continental,
numa chamada “aldeia do futuro”, reenviando-se a população “excedente” às suas
“origens”.1 Estas estratégias, dirigidas pelo governo moçambicano, contam com a ajuda

1
As Aldeias do Futuro, Aldeias Millenium (PNUD: 2008), são um empreendimento apoiado pelas Nações Unidas tendo em
vista a criação de aglomerados populacionais modelo em África, associando inovação tecnológica, comunicação externa e autos-
suficiência. A placa comemorativa da Aldeia do Futuro encontra-se já implantada, mas nenhuma infraestrutura foi ainda aciona-
da (http://www.millenniumvillages.org/the-villages).

Castelos a Bombordo - FINALx.indd 248 01-04-2013 10:59:46


NAVEGAR À VISTA • 249

internacional, uma ajuda que, alegadamente, tem em linha de conta o envolvimento


da comunidade local, representada através da sua participação em organismos oficiais
locais. Todavia, os sentidos antagónicos da transformação que se propõem levar a cabo
– inclusão de novos moradores na Cidade de Pedra e exclusão de muitos da Cidade
de Macuti – denotam um paradoxo pós-colonial e a conceção de uma unidade local
mítica, criada em nome da salvaguarda de um símbolo histórico universal e de um
emblema da identidade nacional. Trata-se afinal de conceber a Ilha de Moçambique
como uma comunidade imaginada (Anderson 2005), uma realidade ficcional relacio-
nada com valores e representações que, no caso, estão para além das inter-relações dos
habitantes locais.

A Ilha como Comunidade

A perceção da Ilha como “comunidade” resulta da sua individualização geográfica


e, também, do reconhecimento do seu papel como centro urbano. Situada a Norte de
Moçambique, junto à Baía de Mossuril, a Ilha faz parte da província de Nampula,
região cuja população é predominantemente macua e muçulmana. Com uma popula-
ção de mais de 17000 habitantes, aglomerada num pequeno território (3km por 500m),
situada entre duas ilhas desertas e uma orla costeira de povoamento disperso, a cidade
surge como um fenómeno excecional no espaço envolvente. Todavia, tomá-la como
comunidade ou como comunidade isolada, é uma forma de reificar o lugar: a Ilha não
só se integra em diversas relações complementares com o seu espaço envolvente, como
está longe de representar uma única realidade cultural (Goldswaser 1974; Redfield
1960). A Ilha de Moçambique afirmou-se ao longo da sua história pela capacidade de
estabelecer relações intra e extra africanas. No entanto, experimenta agora uma nova
globalização, representativa e simbólica, em consequência da classificação mundial que
adquiriu. Assim, enquanto objeto único e exclusivo, a Ilha apoderou-se afinal de um
argumento para se pensar e se refazer (Cohen 2000; Amit 2002). É a este nível, o da
articulação da patrimonialização em jogos de conexão ou desconexão, entre diversos
planos e esferas de interação, que neste caso sob a forma de duas “arenas sociais” –
Cidade de Pedra e Cidade de Macuti – a ideia de a(s) comunidade(s) da Ilha ganha(m)
relevância analítica (Clifford 2001; Pina Cabral 2003; Sousa 2005).
Administrativamente a Ilha divide-se em seis bairros. Uma divisão equitativa, não
fosse o Bairro do Museu – de indubitável supremacia em termos de capital simbólico e
económico – coincidir com a Cidade de Pedra, a Norte da Ilha. Trata-se do centro histó-
rico onde se encontram cerca de 400 edifícios/monumentos, diferenciados quanto ao seu
estado, entre ruinas e recuperados, vazios e ocupados. O Bairro do Museu é, também, o

Castelos a Bombordo - FINALx.indd 249 27-03-2013 16:58:02


250 • CASTELOS A BOMBORDO

centro administrativo e turístico. Nele se encontram edifícios ocupados por serviços – do


governo, município, polícia, escola, hospital, mercado – e algum outro comércio, a par
de casas recuperadas em grande parte para alojamento turístico ou habitações de segunda
residência. Os seus residentes permanentes são, sobretudo, funcionários e técnicos locais
aos quais se juntam habitantes temporários de casas usadas como segundas residências e
diversos estrangeiros, sobretudo europeus. Estes últimos, atraídos pela possibilidade do
desenvolvimento turístico da ilha, adquirem e reabilitam diversos edifícios, tendo em vista
a sua posterior oferta como alojamento ou estabelecimento de restauração.
Os restantes Bairros repartem-se pela cidade de Macuti, com implementação a Sul
da Ilha. O sobrepovoamento da Cidade de Macuti não permite identificar marcas de
fronteira entre os bairros, ainda que esta seja atravessada por alguns eixos de circula-
ção, As casas tradicionais de macuti, ou construções precárias de pedra e reboco,
amontoam-se de forma labiríntica. Aqui se concentra a quase totalidade dos habitantes
da Ilha, grupos domésticos numerosos, agrupados em cerca de 1200 casas exíguas.2
Trata-se de pescadores, comerciantes locais, artesãos e, sobretudo, de um conjunto de
pessoas sem qualquer atividade económica continuada e renumerada.
Estamos perante duas arenas comunitárias marcadas por diferentes formas de frui-
ção dos recursos e de representação identitária do local, por diferentes materialidades,
ocupações e modos de socialização e, sobretudo, por diferentes níveis de “densidade,
multiplexidade e sistematicidade” de relações entre os seus membros (Pina Cabral 1993,
Sousa 2005). Não se pretende com isto dizer que estas duas comunidades estejam iso-
ladas. O sentido comunitário no interior de cada uma delas, não invalida que ambas
façam parte da “localidade”, no sentido de Appadurai (1986): isto é, uma unidade
aberta ao exterior e intercomunicante. Tornar-se um “sítio de património mundial” é
um exercício por excelência de inter-relação externa e um bom veículo para a observa-
ção de relações estruturais internas. A localidade não está apenas exposta ao exterior,
ela reclama-o e incorpora-o. É deste modo que o campo do património, enquanto novo
paradigma, permite repensar e atualizar relações estruturais e históricas.
Um sítio patrimonial afirma-se como propriedade de “todos os povos do mundo,
independentemente do território em que estejam localizados” 3. A comunidade inter-
nacional e a comunidade nacional passam a deter direitos universalizantes sobre as
comunidades locais, e deste modo abre-se todo um terreno de retóricas que contestam
ou defendem o novo paradigma4. Por conseguinte, a expetativa é de que as comuni-

2
A Ilha teria tido, segundo informações locais, uma população bem mais reduzida, de cerca de 7000 habitantes. Mas a guerra
civil que grassou em Moçambique durante dezasseis anos, logo após a sua independência e até cerca de 1992, tê-la-ia transfor-
mado num local de refúgio para as populações da costa, que entretanto aí se fixaram.
3
www.unesco.org/new/pt/brasilia/culture/world-heritage/heritage-legacy-from-past-to-the-future
4
No caso da Ilha de Moçambique implicou a aprovação por parte do governo de um “Estatuto Específico da Ilha de Moçam-
bique” que teve em conta as orientações patrimoniais da UNESCO. (Boletim da República 2006)

Castelos a Bombordo - FINALx.indd 250 27-03-2013 16:58:02


NAVEGAR À VISTA • 251

dades locais se convertam à esfera global5. Mas esta passagem é mediada pelo escrutí-
nio local: são as lógicas e práticas locais que lhe surgem associadas, que conferem o(s)
sentido(s) do “sítio”, como herança patrimonializada. O processo de patrimonializa-
ção pode representar visões imaginadas (políticas e culturais) que reificam a comuni-
dade local, mas para que se mantenha “vivo”, o projeto necessita de ser veiculado
localmente, de fazer parte não só do espetáculo monumental e turístico, mas também
da “intimidade cultural” (Herzefeld 2001) sem a qual o património corre o risco de
fossilização.

Cidade de Pedra: Recuperar o Passado

A Ilha de Moçambique, enquanto parte do património da Humanidade, é definida


da seguinte forma:

The fortified city of Mozambique is located on this island, a former Portuguese trading-
-post on the route to India. Its remarkable architectural unity is due to the consistent use,
since the 16th century, of the same building techniques, building materials (stone or Macuti)
and decorative principles 6.

O património histórico é o manto que cobre a Ilha, fazendo dela um lugar “autên-
tico” e “exclusivo”, intemporal e silencioso, um legado coletivo quase sem histórias.
Os monumentos são afinal sinais da passagem do “outro”, que já partiu. Mas os seus
testemunhos permanecem sob a forma de uma “herança de que não se pode escapar”
(Lowenthal 1998). A partir dela não se encontram antepassados míticos, nem uma
etnogenealogia nacional (Leal 2000), mas pelo contrário, esta herança legitima o ocu-
pante fundador.
Instaurar o património em redor deste legado é também reconstruir e legitimar uma
velha ordem colonial, “di-visionista” (Bourdieu 1997)7, a separação espacial interna entre
“senhores” (Cidade de Pedra) e “escravos” (Cidade de Macuti). As múltiplas narrativas
feitas antes e depois da independência sobre o multiculturalismo presente na Ilha, tradu-
zem muitas vezes visões que “orientalizaram” o lugar, mascarando a política de ocupação

5
Esta globalização passa a seguir outros parâmetros: para a Ilha de Moçambique poder integrar a Rota dos Escravos, o Patri-
mónio Suaíli, o Património de Origem Portuguesa, cada uma destas integrações recoloca a Ilha em esferas mais distantes do seu
quotidiano, ou dos seus modos de vida correntes e tranfere-a para arquétipos globais.
6
Breve caraterização da Ilha de Moçambique UNESCO, http://whc.unesco.org/en/list/599/.
7
Ao contrário da comunidade comercial muçulmana estabelecida na Ilha que os portugueses expulsaram (Roque:1988), os por-
tugueses foram ocupando o território, dividindo comunidades, criando assim uma “visão” do mundo dualista, uma “fronteira”
interna que espelhou a ordem e o poder de quem governava.

Castelos a Bombordo - FINALx.indd 251 27-03-2013 16:58:02


252 • CASTELOS A BOMBORDO

da Ilha (Said 2004; Cohen 1993). A alegoria arquitetónica em redor da Cidade de Pedra
é sobretudo ocidental e cristã: a fortaleza, igrejas, palácios, feitorias. A antiga Casa do
Governador, emblema de uma cidade de corte (Elias 2001), foi convertida em museu;
nas praças públicas as estátuas homenageiam figuras portuguesas – Vasco da Gama e Luís
de Camões; as iniciativas de musealização centram-se na recuperação de igrejas8. A valo-
rização constante destes elementos contrasta com a ausência de outras “histórias” e outros
significados históricos. Apenas na Casa dos Escravos e no Jardim da Memória, constru-
ídos numa antiga feitoria, se homenageiam os escravos, uma das principais “mercadorias”
da Ilha durante séculos de ocupação portuguesa (Pereira1988; Capela 1987).
Em busca destas “relíquias”, como alegoricamente se chama um restaurante com deco-
ração colonial, deambulam pela Ilha de Moçambique turistas e os investidores turísticos,
em busca do paraíso, atraídos pela atmosfera de um passado poetizado. Os investidores
estrangeiros procuram adquirir grandes casas na Cidade de Pedra que convertem em hos-
pedarias. Na sua recuperação e decoração recorrem a elementos coloniais. A recriação das
fachadas e de interiores mais ou menos opulentos, no contexto local, contrasta com as casas
dos vizinhos moçambicanos. Muitos destes ocupam edifícios degradados, sem possibilidade
de recuperação, esperando pela oferta económica de um novo “comprador”9 que lhes per-
mitirá uma nova vida, quase sempre escolhida na Cidade de Macuti. Para estes o lugar que
move a procura turística não é exoticizado, e a Cidade de Pedra representa solidão. “Aqui
estamos sozinhos, não tem vizinhos, à noite ficamos sem ninguém. Lá (Macuti) é melhor”,
diz uma mulher que aguarda por uma oferta de “compra” que lhe permitirá despender de
uma quantia monetária para comprar uma casa na Cidade de Macuti.
Os turistas são essencialmente europeus que procuram na Ilha sinais do passado
que possam reutilizar na sua experiência do presente (Connerton 1993). As máquinas
fotográficas colhem a prova da sua experiência de autenticidade que torna a jornada
gratificante (MacCannel 1976; Bendix 1997); a Ilha torna-se numa prova tangível do
passado, onde as ruínas têm um encanto fotografável. Esta aproximação romântica
conforma-se a um roteiro turístico publicado nos anos sessenta do século XX e intitu-
lado “Panorama estético” (Lobato 1966). A narrativa constitui um roteiro de viagem
em que se parte à descoberta da “autêntica” Ilha de Moçambique. Todo e qualquer
recanto, rua e edifício da Cidade de Pedra, tem uma história, um personagem ou um
ambiente, que são retratados numa linguagem saudosista, que lembra os tempos áureos
da Ilha de Moçambique como capital da colónia. Nos anos 60 a Ilha entrava em declí-

8
Existem seis igrejas e seis mesquitas, sendo que só uma igreja tem serviço regular e diário, enquanto as mesquitas estão todas
em funcionamento, repletas de crentes cinco vezes ao dia. Na verdade são os almoedão-s que marcam o ritmo da vida dos habi-
tantes da ilha.
9
Na verdade, em Moçambique e em particular na Ilha de Moçambique, a propriedade pertence ao Estado, que após a indepen-
dência nacionalizou o parque habitacional do país.

Castelos a Bombordo - FINALx.indd 252 27-03-2013 16:58:03


NAVEGAR À VISTA • 253

nio económico e a sua descrição pitoresca pode ser melhor entendida como uma más-
cara política da decadência simbólica do império (Sousa 2009).

Cidade de Macuti: Conquistar o Futuro

No roteiro de Lobato (1966), à imponência monumental contrapõe-se a Cidade


de Macuti, sem protagonistas e sem história.

[Aqui] há simplicidade e encanto, vida e alegria natural na modéstia pitoresca. E ordem


disciplina social em tudo. A população é sossegada e alegre. (…) E as casas ingenuamente
encantadoras, típicas… no ambiente e género do povo. (Lobato 1966:s/p)

E o que mais se destaca é a cor, “não é possível que esta gente não viva nem pense senão
em função do valor e do sentimento psíquico da cor” (Idem). Duas ordens, duas metáforas
da abordagem estética: nós/eles, civilizados/primitivos, cultos/naturais. Trata-se afinal de
ler a população local numa visão baseada no luso-tropicalismo, um movimento na trans-
formação do Macuti em “ethnoscape” (Appadurai 1998). A sua versão atual pode também
ser exemplificada através da mercadorização turística. Um italiano, proprietário de uma
residência turística no limite da Cidade de Pedra mostrou-me com orgulho o seu quarto
“etnográfico”. Seria para os hóspedes que gostassem de se relacionar com o Macuti: atra-
vés de uma pequena janela, eles poderiam ouvir o Macuti, o barulho das pessoas ao fim do
dia, quando todos se reúnem e o espaço se enche de vozes. A vida quotidiana no Macuti é
marcada por outro género de transitoriedades. Desde logo pelas viagens através da ponte
que liga a Ilha ao continente, associando as populações em comércios complementares. A
partir daqui vários percursos são possíveis através de algumas artérias, mas é a mais peri-
férica e marginal aquela que conduz à Cidade de Pedra. Com exceção da Igreja de Santo
António, até entrar na Cidade de Pedra a paisagem é feita de múltiplas gentes que circulam
entre a praia e as casas. Pescadores e barcos, crianças, mulheres e lixo parecem ocupar toda
a praia em atividades diversas. Na margem oeste, na contracosta, as casas fecharam qual-
quer hipótese de circulação junto ao mar. É já à entrada da Cidade de Pedra que se destaca
o Mercado de Peixe e a Mesquita Verde. Pouco depois, o Hospital em ruínas fará a fron-
teira entre a Pedra e o Macuti. É aqui, na fronteira entre as duas Cidades, que se estabelece
também um espaço de socialização para o qual todos parecem confluir: funcionários locais,
fregueses e comerciantes e outra população que deambula até ao início da noite. Na Cidade
de Macuti, o anoitecer e o nascer do dia são os momentos mais agitados, repletos de sons
e de vozes que vêm das palhotas, casas, becos ou de alguma cantina. Os habitantes dos seis
bairros do Macuti procuram a Cidade de Pedra durante o dia para vender peixe, alguns

Castelos a Bombordo - FINALx.indd 253 27-03-2013 16:58:03


254 • CASTELOS A BOMBORDO

bens comprados ou produzidos no continente e os seus serviços: na escola, no hospital, ou


no município. Os da Pedra vão ao Macuti buscar mão-de-obra para trabalhos de constru-
ção, serviços domésticos, ou quaisquer outros. As trocas são assimétricas, constituindo o
Macuti, uma reserva para a Cidade de Pedra. A passagem entre uma e outra parte da ilha
é ocasional e dá-se tendo em conta situações particulares e específicas. Uma espécie de evi-
tamento mútuo está instalado. Seja porque a população do Macuti continua a identificar
a Cidade de Pedra com o domínio português (Arkitektskolen 1985), seja porque ali se sente
deslocada; na verdade, uma grande parte só vem a esta parte da Ilha se “precisa de tratar
de qualquer coisa. Senão fazer o quê?”. As relações entre as pessoas do Macuti parecem
ser mais consistentes dentro dos bairros, onde diversas redes de vizinhança se geram. Os
habitantes da Cidade de Pedra, por sua vez, evitam o contacto por entre as vielas apertadas
dos bairros de Macuti, ou a frequência das suas costas utilizadas como locais de defecação.
Sem saneamento básico, sem empregos e sem muitas perspetivas, a obsessão dos habitantes
do Macuti é conquistar o futuro; todos os dias descobrir um pequeno expediente que per-
mita resistir. Ainda assim, ter uma casa no Macuti é um privilégio, ela garante a pertença
à comunidade e a possibilidade de convertê-la em recurso económico.
O olhar turístico (Urry 1990) dos forasteiros é feito à distância. É marginalmente
que procuram visitar a Cidade Macuti e a sua abordagem segue as indicações de Lobato:
a apreensão de um mundo colorido e “primitivo”. Reciprocamente a população do
Macuti raramente aborda ao turistas a não ser para cobrar as fotografias. Apenas os
jovens têm uma atividade regular de contacto através da venda de missangas (despojos
de naufrágios) escavadas um pouco por toda a parte. Mas a estranheza do contacto cria
uma hierarquia. As crianças escavam, os jovens compram e vendem na Cidade de Macuti.

Reviver o Passado: Negociar o Presente

Na Ilha existem diversas “forças vivas” que estão integradas na discussão sobre o
património e as suas opções. Cada uma delas reivindica o direito de representar a
comunidade, mas a sua pluralidade revela afinal, não uma, mas diversas comunidades.
Em primeiro lugar as representações institucionais do governo moçambicano (Gover-
nador, Município, Gabinete de Conservação da Ilha de Moçambique), depois, os Ami-
gos da Ilha de Moçambique, sediados sobretudo na Cidade de Pedra e, por fim, os
representantes dos Bairros do Macuti.
A posição defendida pelos órgãos representativos do governo traduz em grande
parte as posições da UNESCO sobre a recuperação do património. A maioria da popu-
lação, excessivamente presa a ciclos de pobreza, parece emergir como um entrave ao
desenvolvimento harmonioso da Ilha patrimonial. Deste modo, a opção governamen-
tal parece ser a de reencaminhar uma parte da população local para a orla marítima

Castelos a Bombordo - FINALx.indd 254 27-03-2013 16:58:03


NAVEGAR À VISTA • 255

do continente, onde uma Aldeia do Futuro os acolheria. Esta opção é também defen-
dida, de algum modo, pela Associação dos Amigos da Ilha. Um dos seus membros
afirmou-me que grande parte da população residente no caniço não era originária da
Ilha, nem “partilhava de alguns dos seus costumes e cultura”. Uma população exógena
que deveria por isso voltar às suas origens – rurais e não urbanas. Por fim, para os
representantes dos Bairros (Macuti), esta é uma opção sem sentido, porque todos,
originários dali, ou não, são hoje da Ilha, e a questão deve antes ser colocada sobre o
projeto patrimonial, sobre a redistribuição de benefícios e sobre o controle comuni-
tário dos novos investimentos turísticos.
No seu conjunto, os vários organismos de governo da Ilha, representam uma jovem
elite política que tem o poder de decisão sobre as formas de desenvolvimento locais,
fortemente condicionada pela necessidade de preservação do património. Em seu
entender, disso depende o desenvolvimento futuro. Confrontados com graves proble-
mas de sobrepovoamento, procuram junto dos organismos internacionais meios para
a deslocação da população, que está longe de ser consensual ou de ser bem aceite no
Macuti. Por outro lado, a Associação dos Amigos da Ilha de Moçambique, agrega mui-
tos dos herdeiros mais diretos da cultura colonial, uma burguesia criada no período
de ocupação portuguesa. A Associação constituiu-se a partir do seu regresso à Ilha,
após uma prolongada ausência, devido à guerra civil. Uma vez regressados reocuparam
as suas habitações e o seu lugar diferenciado na sociedade local. De um modo geral,
a recuperação da Ilha equivale à recuperação das paisagens que povoaram a sua infân-
cia e das memórias que transportam. Uma Ilha que se descobre sobretudo na Cidade
de Pedra e que se estendeu progressivamente, através de programas de desenvolvimento
– especialmente de apoio às crianças – à Cidade de Macuti.
Quando perguntei a um dirigente da Associação dos Amigos da Ilha se estavam
previstas intervenções para a recuperação da Cidade de Macuti, tive como resposta
um silêncio, seguido por….“parece que uma alemã já ali comprou uma casa para recu-
perar”. Senti que tinha colocado uma questão bizarra. Recuperação rima com Cidade
de Pedra, tal como demolição rima com Cidade de Macuti. Na Cidade de Macuti,
todos os que habitam na Cidade de Pedra são vistos com suspeição, eles retêm os fundos
porque “são os donos da Ilha”. Mas “nós somos daqui. Afinal quem é o estrangeiro?
E esses que vêm para as casas, são o quê?”. Nos Bairros do Macuti a recuperação de
casas é feita todos os dias pelos seus moradores. A modernização chega sob a forma
de chapas de zinco e de tijolos. Pesam os argumentos económicos e funcionais: “Quando
foi o ciclone ficámos sem teto. Agora para pôr custa muito dinheiro. E vai estragar
outra vez!”.
O “ruído” entre uns e outros reflete um mal-estar e formas de não comunicação
que a responsável de um grupo de tufo – performances rituais femininas associadas às

Castelos a Bombordo - FINALx.indd 255 27-03-2013 16:58:03


256 • CASTELOS A BOMBORDO

confrarias islâmicas resumiu desta forma: “Quando vamos lá dançar, nós cantamos de
três maneiras: macua, português ou suaíli. Às vezes cantamos para a FRELIMO, outras
vezes para o festival, outras para o hotel… Eles só vêm comer e vão embora. A gente
canta isso, mas eles não vão entender. Mas é por isso que a gente canta”. Esta visão
mordaz traduz certa resistência à mercadorização turística ou à sua utilização como
elemento de apoio à propaganda política.
O tufo é um valor a preservar enquanto património intangível na Ilha de Moçam-
bique. Chegam à cena do património como espetáculo, animam inaugurações e discur-
sos, mas, sobretudo, mantêm nos Bairros do Macuti um espaço feminino de encontros
diários, entre mulheres e levam a sua voz e o seu ritmo até aos palcos da Ilha Patrimo-
nial. A sua espetacularização sob a forma de folclore que objetifica a “comunidade tra-
dicional” está assinalada como parte da herança imaterial, como “tradição”, “força
viva” e talvez a única institucionalizada. Visitantes na Cidade de Pedra conferem-lhe
talvez a única dimensão de cultura popular institucionalizada. Mas nos Bairros, nem
todos concordam: “o tufo não é das confrarias! É só de uma e serve para certas coisas
entre as mulheres. Vêm aqui buscar as mulheres, mas quem é que autorizou? A quem
é que pediram? O que é que eles sabem? Aquilo assim até fica mal”.

Percursos transversais

A leitura dualista do espaço social da Ilha de Moçambique assenta numa dicotomia


estabelecida pelo regime de povoamento e sustentada por modos de vida e de repre-
sentação em contextos diversos: colonial, nacional, internacional. Destacam-se nesta
perspetiva, duas comunidades e faz-se o reconhecimento da(s) “intimidade(s) cultural(is)”
específicas a cada uma das partes. Mas esta leitura que vai ao encontro de clássicas rei-
ficações, baseadas em dicotomias tais como – centro/periferia, moderno/tradicional,
rico/pobre, desenvolvido /subdesenvolvido – que alimentam muito dos discursos cor-
rentes, não traduz dinâmicas baseadas antes na “localidade”. De alguns relatos de vida
sobressaem, mais do que as dicotomias, formas unívocas de identificação com a locali-
dade. A Cidade revela-se através de discursos que não só articulam as partes – Cidade
de Macuti e Cidade de Pedra – como as reunifica na diáspora.

O João fundador da Associação dos Amigos da Ilha, descreve-se a si mesmo desta forma:
nasceu na Ilha nos anos 30, os seus pais, tinham vindo da Índia. Viveu na Cidade de Pedra (na
casa que agora voltou a habitar para férias). O pai era escrivão no Tribunal e a mãe era a dona
da farmácia local. O seu percurso de vida foi sendo feito ao sabor dos estudos: Ilha, Lourenço
Marques (Maputo), Coimbra. Ali licenciou-se em História e casou. No regresso a Moçambi-

Castelos a Bombordo - FINALx.indd 256 27-03-2013 16:58:03


NAVEGAR À VISTA • 257

que fixou residência em Lourenço Marques. Virá nas férias, com a família, de visita à Ilha. Por
isso, segundo ele, os seus filhos também são daqui. Ainda hoje se reúnem aqui. Quando veio
a revolução o João aderiu ao partido e teve um papel relevante na área da educação, mas tam-
bém nos assuntos da Ilha. Quando pôde voltar à Ilha no fim da guerra, “estava tudo destru-
ído”, e era preciso fazer alguma coisa. Apoiou a candidatura à UNESCO; fundou a Associação
dos Amigos de Moçambique, trouxe uma ONG para os bairros. Já não estava “ninguém da
ilha”. Segundo ele agora “são camponeses, que se refugiaram aqui (Cidade de Macuti), desde
o tempo da guerra e por cá ficaram”. Segundo o João distinguem-se dos outros habitantes
quanto aos hábitos. Para exemplificar fala nas “tradicionais” mulheres da Ilha. Tinham um
enxoval, capulanas e brincos, colares, que guardavam nuns pequenos baús, a pintura do rosto
com pó de mciro…. A população do Macuti trabalhava pela ilha, nas habitações, comércio….
Para ele o excesso de população é um flagelo para a própria ecologia da Ilha e para o turismo.
Como são pessoas muito pobres, tem que se encontrar uma solução. Sobre a Cidade de Pedra
não vê outra solução que não seja a recuperação e a venda porque as pessoas, umas foram-se
embora e outras, os que ocuparam as casas (depois da independência em 1974) não têm pos-
sibilidades de as recuperar. (Caderno de Campo, Agosto 2009)

A Joana, que nasceu nos anos 40, faz parte da Associação dos Amigos e mora na Cidade
de Pedra onde regressou depois do acordo de paz (1992). Nos anos 60 tinha partido para
Lourenço Marques, onde num lugar de prestígio, trabalhou numa companhia aérea. Na
origem da sua família está o desterrado Tomás António Gonzaga (1744-1810), figura mítica,
poeta no Brasil e advogado e Juiz na Ilha de Moçambique. Do tempo deste antepassado
destaca a escravatura como uma coisa terrível que de resto também aconteceu na cave da
casa onde mora, herança familiar. No seu tempo já não era assim, só soube o que era racismo
quando foi para a capital e descobriu que não conseguia alugar um quarto por ser “negra”
(na verdade é mestiça). A Joana voltou depois da guerra e ajudou a formar um grupo –
Associação dos Prestadores de Serviços de Hotelaria, formado por diversas mulheres da Ilha.
Ela própria aluga quartos na sua casa e tem uma hospedagem compartilhada com a Cristie
(norueguesa) que já vive em Moçambique, como cooperante, há muitos anos e de quem a
Joana é amiga. (da entrevista feita em sua casa, Dezembro de 2008)

Conheci o Abdul porque ele me conduziu pela orla continental, mais do que uma vez.
O Abdul nasceu nos anos 50, foi filho de um comerciante vindo da Índia que se estabeleceu
na Ilha. A propriedade da família ficava no continente e durante a guerra ele e a família deci-
diram defender a propriedade. Acabaram por viver num vai-e-vem entre as terras, no conti-
nente e a loja e habitação, na Ilha. O Abdul nunca saiu para ir estudar: é motorista, tem uma
carrinha que usa para serviços de transporte. Tinha também um sonho: reaproveitar a loja
do pai que estava abandonada. Um dia chamou-me para pedir a minha opinião sobre as obras.

Castelos a Bombordo - FINALx.indd 257 27-03-2013 16:58:03


258 • CASTELOS A BOMBORDO

Explicou-me que tinha muita dificuldade em decidir sobre as cores para a pintura, que móveis
deviam ficar, como devia expor os produtos. É que seria uma pastelaria para turistas e ele,
ao contrário do Sr. Vito, não lia revistas e não sabia o que é que os turistas gostavam. Mais,
como me explicou, o segredo podia estar em pormenores, porque o senhor Vito tinha muita
atenção a isso. E até a fachada de casas em ruinas (do Sr. Vito), era uma coisa por causa dos
turistas de que ele (Abdul) nunca se lembraria. (Caderno de campo Agosto, 2009)

Visitei o Senhor Alberto, como outros responsáveis de bairro, no Macuti. O Senhor


Alberto, que tem mais de 70 anos, recebeu-me em sua casa no Bairro de Santo António, na
companhia da sua jovem esposa. Contou-me sobre os prejuízos que tinham resultado do
ciclone naquele ano e de como nem o Governo, nem a UNESCO, nem ninguém tinha dado
dinheiro para arranjar os telhados. Quando chegasse a chuva ia chover na casa dele. Que
o arranjo da Fortaleza não era para nada, não vivia gente lá e até nem gostava porque diziam
que ela tinha sido construída com a ajuda de jīns. O senhor Alberto tinha vindo trabalhar
para a Ilha (anos 50), não era de cá, mas que isso já tinha sido há muito tempo e, por isso,
agora era da Ilha. Tinha trabalhado em muitas casas e lojas de indianos e portugueses. Que
tinha muitas saudades daquele tempo porque quem tinha um patrão tinha ajuda; aliás ele
era uma pessoa irrepreensível e do fundo de um baú, com quem destapa um segredo, tirou
a sua carta de “assimilado”, a garantia de que, naquele tempo, podia andar por onde qui-
sesse. Com frequência a conversa voltava à falta de apoios. A sua esposa que não é da Ilha,
entrava e saia do quarto contíguo trazendo diferentes capulanas e adereços. (Caderno de
Campo, Novembro 2008)

Estas quatro histórias mostram como na Ilha, para além de uma “intimidade cultu-
ral” comunitária, se reproduzem, por um lado, reciprocidades e, por outro, relações
identitárias com o exterior. É na cidade de Pedra que este último aspeto parece mais
pertinente. As referências de filiação do João, da Joana e do Abdul, alicerçam-se sobre
figuras externas na identificação da sua filiação, algumas poderosas como no caso da
Joana10. Mas, esta referência é compatível com uma forte valorização das origens locais,
africanas. O mesmo se poderia dizer do Abdul ou mesmo do João que acabará por fazer
um segundo casamento com uma moçambicana. O Sr. Alfredo cuja genealogia é africana,
reivindica uma pertença ao mundo do colonizador, como parte da sua identidade dife-
renciada no presente. O Abdul procura no presente apropriar-se do mundo do turismo,
procurando encontrar os termos da sua própria glocalização. Também a Joana quer levar
o turismo a toda a ilha. Nestes movimentos identitários vão articulando as “duas” cida-

10
Trata-se de António Tomáz Gonzaga, advogado, figura da revolta Inconfidência Mineira, revolta pró-independentista no Bra-
sil e que foi desterrado para a Ilha de Moçambique, em 1972; aqui exerce a profissão de advogado e casa numa família abastada
de comerciantes de escravos. No Brasil continua a ser homenageado como figura literária.

Castelos a Bombordo - FINALx.indd 258 27-03-2013 16:58:03


NAVEGAR À VISTA • 259

des. Articulam-nas no espaço e no tempo, sobretudo quando isso permite olhar o futuro
e é aí que a referência transversal ao turismo aparece implicada.

Nota Final

Na Ilha de Moçambique o processo de patrimonialização abre terreno às questões


políticas (ou culturais). É na relação entre o carácter hegemónico do património e a
diversidade “local” que a articulação entre política e cultura faz sentido, do ponto de
vista antropológico. Através da integração da Ilha, em diferentes escalas, macro e micro,
da metáfora comunitária à construção do “local”, a matéria do património transforma-
-se num instrumento de reflexão identitária que exige uma articulação constante. Por
isso, como diz o diretor do GACIM (Gabinete de Conservação da Ilha de Moçambi-
que): “o meu papel é falar, passo o dia a falar. Tenho que falar com todos e todos que-
rem alguma coisa, querem todos ter razão”. A razão desta constante negociação na
Ilha não é o passado, mas a possibilidade da conversão dos seus testemunhos para o
futuro. Ou como diria Wagner (cit. Clifford 2001), “todos querem olhar para o futuro”,
isto é todos querem tomar o património ou a tradição, como uma porta para a trans-
formação. Uma transformação que pode não ser consensual, pode não ter os mesmos
significados, pode não oferecer as mesmas possibilidades, mas que ocorre através não
só das diretrizes internacionais, mas através da articulação de discursos identitários e
de pertença que se vão localmente registando.

Bibliografia

ARKITEKTSKOLEN, Aarhus e Secretaria de Estado da Cultura, 1985, Ilha de Moçambique Relatório –


Report. Aarhus, Universidade de Aarhus.
ANDERSEN, Benedict, 2005 [2001], Comunidades Imaginadas, reflexões sobre a Origem e a Expansão do
Nacionalismo. Lisboa, Edições 70.
AMIT, Vered, 2002, Realizing Community. Londres, Routledge.
APPADURAI, Arjun, 1986, “Theory in Anthropology; Centre and Periphery”, Comparative Studies in
Society and History, 28 (2) 356-361.
– 1998, Modernity at Large: Cultural Dimensions of Globalization. Minnesota, University of Minneapolis.
BENDIX, Regina, 1997, In Search of Authenticity, The formation of Folklore Studies. Wisconsin, Wisconsin
University Press.
BOURDIEU, Pierre, 1997 [1977], Razões Práticas sobre a teoria da Acção. Oeiras, Celta.
CANCLINI, N. G., 1997 [1989], Culturas híbridas. Estratégias para entrar e sair da modernidade. São
Paulo, EDSPU.
CLIFFORD, James, 2001, “Indigenous Articulations”, The Contemporany Pacific, 13 (2): 568-490.
CAPELA, José 1987, O Tráfico de Escravos para as Ilhas do Índico 1720-1902. Maputo, Univ. Eduardo Mondlane.

Castelos a Bombordo - FINALx.indd 259 27-03-2013 16:58:04


260 • CASTELOS A BOMBORDO

COHEN, Abner, 1993, Masquerade: Politics Explorations in the Structure of Urban Cultural Movement.
Oxford, Berg.
COHEN, Anthony P., 2000 [1985], The symbolic Construction of Community. Londres, Routledge.
CONNERTON, Paul, 1993 [1989], Como as Sociedades Recordam. Oeiras, Celta.
ELIAS, Norbert, 2001 [1974], A sociedade de Corte. Rio de Janeiro, Jorge Zahar.
GOLDWASSER, Maria Júlia, 1974, “Estudos de Comunidade: teoria ou método?”, Revista de Ciências
Sociais,5 (1), Fortaleza, UFCE, pp. 69-81.
HERDFIELD, Maureen, 1998, Ilha de Moçambique: A Programme for Sustainable Human Development
and Integral Conservation. Paris, Unesco Project.
HERZEFELD, Michael, 2001 [1987], A Antropologia Crítica do Outro Lado do Espelho. Miraflores,
Difel.
LEAL, João, 2000, Etnografias Portuguesas (1870-1970). Lisboa, D. Quixote.
LOBATO, Alexandre,1966, Ilha de Moçambique: Panorama Estético. Lisboa, Agência Geral do Ultra-
mar.
LOWENTHALL, David, 1998, The Heritage Cruzade and The Spoils of History. Cambridge, Cambridge
University.
MACAGNO, Lorenzo, 2006, Outros Muçulmanos – Islão e narrativas coloniais. Lisboa, ICS.
MACCANNELL, Dean, 1976, The Tourist: a New Theory of the Leisure Class. Nova Iorque, Schocken
Books.
PEREIRA, Luís Filipe, 1988, “Nota sobre o Comércio do Norte de Moçambique”, Boletim semestral do
Boletim Histórico de Moçambique, 4: 79-89.
PINA CABRAL João, e Nelson Lourenço, 1993, Em terra de tufões: dinâmicas da etnicidade macaense.
Macau, Instituto Cultural.
REDFIELD, Robert 1960 [1949], The Little Community and Peasant Society and Culture. Chicago, Uni-
versity of Chicago Press.
ROQUE, Ana Cristina, 1988, “Da Ilha de Moçambique como porto de escala da Carreira da Índia ou…
porque no princípio era o Mar e a Ilha”, Boletim Semestral do Boletim Histórico de Moçambique, 4:
47-59.
SAID, Edward, 2004 [1978], Orientalismo, Representações Ocidentais do Oriente. Lisboa, Cotovia.
SOUSA, Carla, 2005, Alte: Elites Locais e Recriação Identitária numa Aldeia Algarvia. Lisboa; ISCTE/Tese
Doutoramento.
SOUSA, Carla, 2009, “Heritage: Discourses and Practices in Mozambique Island”, Sharing Cultures, Ser-
gio Lira (coord.). Barcelos: Green Lines Institute, pp. 267-271.
UNESCO, 2010, Convenção da proteção do património cultural e natural mundial, 34.ª edição. Brasília.
URRY, John, 1990, The Tourist Gaze: Leisure and Travel in Contemporary Society’s. Londres, Sage.

Castelos a Bombordo - FINALx.indd 260 27-03-2013 16:58:04


PAQUETES DO IMPÉRIO
O “Primeiro Cruzeiro de Férias às Colónias”

MARIA CARDEIRA DA SILVA E SANDRA OLIVEIRA

Os estudos históricos e sociais sobre o turismo em Portugal começaram tardia e


timidamente a desenvolver-se apenas nos finais da década de noventa, depois de durante
muito tempo a obra panorâmica de Paulo Pina (1987) ter permanecido quase isolada,
tendo, até recentemente, incidido sobretudo nas suas articulações com a construção
da nação durante o Estado Novo.
O fascínio pela eficácia propagandística que, por vezes precipitadamente, se foca-
lizou no Estado Novo e, em particular, na personagem centrípeta de António Ferro,
ofuscou muitas vezes entidades e diligências que o precederam na construção de um
imaginário propagandístico e turístico nacional, nomeadamente durante a primeira
República, altura em que, na verdade, se fundaram as primeiras instituições e proce-
dimentos de regulação e fomento da atividade turística que viriam a ser apurados polí-
tica, performativa e graficamente nos “anos de Ferro” (Ramos do Ó 1999).
Mas em 2010 as celebrações do centenário da República, e particularmente a expo-
sição Viajar e respetivo catálogo (Comissão Nacional para as Comemorações do Cen-
tenário da República 2010), repuseram algum equilíbrio nessa genealogia do turismo
em Portugal, exibindo a importância das iniciativas da Sociedade de Propaganda de
Portugal – verdadeiro “embrião civil da organização turística” (Pina 1987:13) fundado
ainda antes de 1910 – e dos primeiros congressos de Turismo na construção identitária
das elites nacionais, devolvendo-se assim à República o pioneirismo neste processo.
Do mesmo modo, também a força centrípeta das aparatosas medidas de Ferro terá
eventualmente retraído um espraiamento da análise das relações entre turismo e pro-
paganda para além da nação continental, território de eleição das “aldeias mais por-
tuguesas” e do exercício de marketing nacional.
Estamos nós aqui interessadas em explorar as mesmas relações entre turismo e propa-
ganda acompanhando momentos decisivos em que a nação teve que sair do seu território
natal para abraçar e engolir o Império, mostrando que “Portugal não [era] um país pequeno”1,
abrindo assim o campo para a análise das viagens de soberania e do turismo colonial.

1
Da celebrizada legenda do mapa que esteve patente na Exposição Colonial Portuguesa, realizada no Porto, em 1934, em que o
império colonial português aparece sobreposto, para efeitos comparativos, sobre os principais países da Europa.

Castelos a Bombordo - FINALx.indd 261 27-03-2013 16:58:04


262 • CASTELOS A BOMBORDO

Embarcando no Primeiro Cruzeiro de Férias às Colónias, promovido em 1935 pela


Revista O Mundo Português, órgão da Sociedade de Propaganda Nacional, tentaremos
encetar uma análise preliminar ao mundo do turismo colonial português. Acompa-
nhando o cruzeiro demonstraremos que aí, tal como no que respeitou ao turismo con-
tinental, a relação entre turismo e propaganda durante o Estado Novo era indelével,
e a sincronização de iniciativas turísticas, ou para-turísticas, com a necessidade de afir-
mação internacional do território ultramarino, se torna evidente.
Durante muito tempo houve um consenso generalizado no âmbito das ciências
sociais em atribuir ao Grand Tour romântico as origens do turismo moderno (Towner
1985, e resenhas de Sharpley 2008 [1994], Silva 2005, entre muitos outros). Mas a
esta leitura mais sociológica e “civilizacional” da emergência do turismo se associaram
outras que davam mais ênfase às suas articulações claras com os processos de configu-
ração e estruturação dos Impérios, e mostravam como os primeiros fluxos claramente
turísticos se sobrepuseram às rotas e entrepostos do Indian Mail (Fuster 1991) e de
outros aparatos coloniais cujas infraestruturas e burocracias facilitavam e encorajavam
todo o tipo de tráfego. Colónias de férias e colónias do Império frequentemente coin-
cidiram (Cazes 1989).
Foi convergindo para esta segunda tendência que uma parte da Antropologia inter-
nacional do turismo, sobretudo anglófona – que se diz, por tradição, ter sido inaugu-
rada com a obra coligida por Valene Smith (1978) –, tomou o turismo como uma forma
de imperialismo, como um “modo de produção” que reforçou as relações de assime-
tria que as metrópoles (Nash 1978) produziam nas suas “pleasure peripheries” (Turner
e Ash 1976). Nessa perspetiva, perdeu-se muitas vezes, por seu turno, a dimensão
pedagógica e identitária do turismo que encontramos mais evidente naquelas aborda-
gens que perseguiram até à Modernidade a genealogia do Grand Tour (Urry 1991,
Towner 1985), a passagem do sagrado à autenticidade (MacCannel 1973), ou do ritual
à peregrinação (Smith 1992, Cohen 1996 [1979], Graburn 1978).
Por outro lado, ao acentuar a dicotomia entre metrópole e colónia, as perspetivas
que tomam o turismo como “forma de imperialismo” negligenciaram frequentemente
as abordagens às coevas formas de turismo e suas claras associações ao romantismo e
à confeção das nações, mesmo quando este se desenrola em território colonial. Mais
ainda, e porque construídas de acordo com modelos coloniais específicos (sobretudo
o inglês), essas mesmas perspetivas criaram tipologias e etapas de ocupação imperial
que tomaram a “invasão” turística (Turner e Ash 1976) como uma espécie de selo da
colonização, depois dos processos de invasão militar, pacificação religiosa e ocupação
científica (cf. Bruner 1989).
Todas estas abordagens, que incidem ora sobre os nacionalismos românticos de
provimento dos estados, ora sobre as óbvias forças que ligam turismo e colonialismo

Castelos a Bombordo - FINALx.indd 262 27-03-2013 16:58:04


NAVEGAR À VISTA • 263

inspirando-se em impérios persuasivos como o britânico (estas últimas reforçando a


posição de vanguarda dos ingleses no “modelo aristocrático de desenvolvimento do
turismo”, Thurot e Thurot 1983), embora eloquentes, escamoteiam ainda outros pro-
cessos políticos igualmente essenciais para o desenvolvimento turístico do século XX,
e para a massificação do lazer na modernidade, nomeadamente as organizações repu-
blicanas de regulação dos tempos livres e suas congéneres dos regimes totalitários como
os da Alemanha, a Itália e também de Portugal.
Ora, o que parece passar-se no caso português é que, dado o próprio carácter
nacionalista da constituição do imaginário topográfico do Império, que se desenhou
de acordo com um princípio de dilatação da nação – que, por seu turno, é vista como
a “família em grande” – se torna impossível 1) dissociar os pressupostos presentes na
configuração política do turismo nacional e do turismo colonial; 2) dissociar algumas
formas turísticas ou para-turísticas – como a que abaixo descreveremos – das anterio-
res etapas do próprio processo de colonização; 3) dissociar a ideia de viagem/férias
colonial/ais do aparato político regulador do lazer e da juventude portuguesa.
O que propomos aqui, de forma ainda ensaística, é que nesta leitura da inaugura-
ção portuguesa do turismo colonial, se recuperem e articulem estes diferentes prismas
da genealogia do turismo e da colonização ditos modernos. Mostraremos então como
o Primeiro Cruzeiro de Férias às Colónias foi um ato decididamente colonial – uma
viagem de soberania e sua exibição nacional e internacional com intuitos políticos de
subordinação cultural e de angariação económica – mas também como nele embarca-
ram ainda todos os pressupostos da constituição da nação e da pedagogia do sujeito
português moderno.

Do Cais da Nação

A 10 de Agosto de 1935 sai do Cais da Fundição o paquete Moçambique, apreen-


dido aos alemães durante a I Guerra Mundial e recauchutado como um dos melhores
navios da Companhia Nacional de Navegação2, com destino às Colónias Ocidentais3.

2
À semelhança doutros impérios, e à sua pequena escala, Portugal exibe assim a estreita relação da emergência do turismo com a
das companhias de navegação, cujos arquivos merecem maior atenção. A Empresa Nacional de Navegação foi constituída no ano
de 1881, mediante contrato com o Governo português para efetuar a ligação Lisboa/Moçâmedes e as ligações entre as ilhas de Cabo
Verde e entre estas e a Guiné. Em 1918 passou a designar-se por Companhia Nacional de Navegação. A partir de 1922 esta com-
pete com a Companhia Colonial de Navegação, constituída em Angola a 3 de Julho desse ano. Na década de setenta, com o aumen-
to do tráfego aéreo, estas companhias perdem importância, vindo a extinguir-se, a primeira em 1985, e a segunda em 1974.
3
O itinerário, longo e apressado, incluía paragens em S. Vicente, Praia, Bissau, Bolama, Príncipe, S. Tomé, Cabinda, Sazaire,
Luanda, Pôrto Aboim, Novo Redondo, Lobito, Mossâmedes, S. Tomé e Funchal. Apenas as visitas a Luanda, Lobito e Mossâme-
des se prolongavam por mais do que um dia, não ultrapassando muitas das outras umas breves horas. Alguns registos de impren-
sa testemunham o desagrado de colonos em relação à rapidez e ligeireza das visitas (ver adiante).

Castelos a Bombordo - FINALx.indd 263 27-03-2013 16:58:04


264 • CASTELOS A BOMBORDO

A bordo, “250 excursionistas – professores, estudantes, aristocratas, comerciantes (…)


cheios de fé patriótica, vão por seus olhos conhecer a grandeza do nosso Ultramar”4.
Esta não era a primeira missão organizada às colónias. Outras, mais ou menos
académicas5, haviam já inaugurado a ocupação científica dos territórios ultramari-
nos, e outras haveriam de lhe suceder, nesse sentido e em sentido inverso6: em 1937
realizar-se-ia o Primeiro Cruzeiro de Férias dos Estudantes das Colónias à Metró-
pole7, transportando estudantes dos liceus de Angola e Moçambique ao Portugal
europeu, seguido de outro, que levou estudantes de Moçambique a Angola, e mais
tarde, chegariam ao cais da Nação os cruzeiros dos velhos colonos8; ainda alguns
anos depois iniciar-se-iam os cruzeiros da Mocidade Portuguesa e, posteriormente,
da FNAT (Fundação Nacional para a Alegria no Trabalho, ver adiante). Por seu
turno, o ACP (Automóvel Clube de Portugal) – associação de origem e cariz repu-
blicano – encetara entretanto a prática turística do cruzeiro, ao organizar, em 11
de Julho de 1933, o primeiro cruzeiro ACP a Marrocos (Tânger e Casablanca) e
Madeira, a bordo do Quanza, fretado à Companhia Nacional de Navegação9. Mas
nem foi, tão pouco, o Primeiro Cruzeiro de Férias às Colónias, o único a realizar-se
em 1935: no mesmo ano parte também o Cruzeiro Aéreo Português10, em que par-
ticipam vários oficiais liderados por Cifka Duarte e que foi igualmente mediatizado
em profusão11.

4
Escreve o então Ministro das Colónias, José Silvestre Ferreira Bossa, na dedicatória de cada uma das edições dos Lusíadas que
os diretores do Cruzeiro vão oferecer aos governadores das quatro colónias da África Ocidental. O número de passageiros desce
para 208 na capa do Diário de Notícias de 11 de Agosto de 1935.
5
Como a primeira Missão Académica a Angola, organizada pela Junta de Educação Nacional e dirigida em 1929 por Luiz Car-
risso, botânico da Universidade de Coimbra, em que participaram 22 pessoas entre professores e alunos finalistas universitários
de todo o país. Em 1937, Luiz Carrisso voltará a dirigir nova missão académica a Angola. Em carta dirigida a Augusto Cunha e
publicada n’O Mundo Português (Ano II, Vol. II, 1935), Carrisso manifesta o seu apoio ao Primeiro Cruzeiro de Férias.
6
Ver, por exemplo, Sarmento, Alexandre 1942, “A ocupação Científica de Angola”. Boletim Geral das Colónias, Vol. XVIII, n.º
209: 16-20.
7
Cf. “Cruzeiro dos estudantes coloniais à metrópole”, Moçambique: Documentário trimestral. n.º 011, 1937, p.89.
8
Como o de 1940 que “tinha por fim principal facultar aos velhos colonos, que há longos anos não [vinham] ao Portugal europeu,
uma visita que lhes permit[isse] participar nos festejos comemorativos do Duplo Centenário, da nacionalidade e da restauração” (Art.
2.º do Dec. Lei 30: 374). “Esta romagem à mãi-pátria” permitiria aos colonos verificar o “progresso, a paz e a ordem de que o País
hoje disfruta” (Idem). Cf. Silva, Marinho da, 1940, “Cruzeiro dos velhos colonos”, O Mundo Português. Vol. 7, n.º 78: 235-239.
9
Seguido a 9 de Julho de 1934 do II Cruzeiro ACP ao Mediterrâneo (com escala em Gibraltar, Palma de Maiorca, Barcelona,
Nice, Ajaccio e Argel) e a 1 de Agosto de 1935 do III Cruzeiro ACP (de Lisboa e Leixões a Rouen, Antuérpia e Tilbury/Londres).
A organização destes cruzeiros, interrompida pela II Guerra Mundial, viria a ser retomada apenas no final dos anos 70 (Ferreira
2009).
10
Notícia de 1.ª página do Diário de Notícias de 6 de Setembro de 1935; o tema ocupa também a primeira página deste jornal
no dia 3 de Outubro, ao lado da notícia sobre a invasão da Etiópia pela Itália. Seguindo as notícias que saem neste diário próxi-
mo do regime sobre este Cruzeiro Aéreo, apercebemo-nos da mesma ideia de reforço da presença colonial através destas inicia-
tivas: na véspera da partida, 14 de Dezembro de 1935, o Ministro das Colónias, José Bossa, declara ao jornal O Século ser esta
“mais uma afirmação da soberania de Portugal”.
11
E relativamente ao qual podemos encontrar intervenções registadas, ao contrário do que sucede em relação ao cruzeiro, nas
sessões parlamentares de 1935, dado que estas foram interrompidas entre abril e novembro desse ano. O Cruzeiro Aéreo teve
o patrocínio dos Ministros da Guerra, das Colónias e da Instrução, do Diretor da Aeronáutica Militar e do Almirante Gago
Coutinho.

Castelos a Bombordo - FINALx.indd 264 27-03-2013 16:58:04


NAVEGAR À VISTA • 265

Mas na verdade, logo na primeira República, em 1916, o primeiro número na


Revista de Turismo12 aborda já o turismo náutico, apelando à sua divulgação como
forma de desenvolver “a indústria do Turismo […] ainda uma árvore muito moça no
nosso paiz”13, fato que se deveria em parte à ausência de uma marinha mercante robusta.
Segundo o articulista

Uma viagem marítima a bordo de um pequeno vapor, onde o asseio seja irrepreensível,
onde uma orquestra nos delicia, onde um salão nos atrai para uma partida de bridge, onde
um restaurante nos chame para um bom jantar, tudo isto, além dos espetáculos que a natu-
reza nos possa proporcionar e dos encantos do bulício de uma assistência agradável, será
ou não será, um ideal, uma justa aspiração, para quem possui um Tejo, um Mondego e a
costa mais ocidental da Europa?14.

Não será de mais lembrar que Lisboa era um importante porto marítimo no pri-
meiro quartel do século, e que essa condição, que trazia “touristes” ao “cais da Europa”
é enfatizada logo no primeiro cartaz turístico nacional que o promove como “the shor-
twest way between America and Europe”.
Esta preocupação será retomada no primeiro Congresso Nacional de Turismo, já
durante o Estado Novo15, em 1937, dois anos depois da realização do Cruzeiro que aqui
nos ocupa, por A. M. de Cid Perestrelo que exaltará a posição geográfica de Portugal,

(…) uma situação magnífica para atrair os viajantes quer da navegação transatlântica,
quer da navegação intercontinental (…) no extremo ocidental da Europa e no caminho dos
grandes países do norte para as Américas, para a África e para o Mediterrâneo, o que lhe
permitiria transformar as suas cidades marítimas em grandes centros de turismo como já
se fazia nos portos do Norte da França, da Bélgica e da Inglaterra (Perestrelo 1936: 3)16.

12
Cujo subtítulo é, significativamente, Publicação quinzenal de turismo, propaganda, viagens, navegação, arte e literatu-
ra. Trata-se de um eloquente e pioneiro, mas infelizmente breve, quinzenário publicado em Lisboa, cinco anos depois da
institucionalização do turismo em Portugal (se tomarmos como data para tal a fundação do Conselho de Turismo), entre
1916 e 1924. O corpo da direção e autores inclui nomes ligados às instituições nacionais do pelouro e os seus núcleos de
propaganda regional, mas o conjunto de participantes – bem como o de temas abordados – é vasto, incluindo nomes
estrangeiros.
13
Guerra Maio in Revista de Turismo, 1916, Ano 1, n.º8 p. 63.
14
Labinna – “Turismo Náutico”, Revista de Turismo, 1916, Ano I, n.º 1, p.4. E, embora a exaltação das potencialidades do turis-
mo náutico se concentre então, fundamentalmente, no porto de Lisboa e na sua vocação Atlântica a exibir à, e a, Europa, não
será por acaso que nos últimos números deste periódico (ano 4, 1920) se começam a multiplicar anúncios das companhias de
navegação com trânsito para as colónias.
15
Se bem que tenha chegado a ser previsto e anunciado para 15 de Setembro de 1935 (Diário de Notícias de 21 de Agosto).
16
PERESTRELO, A. M. de Cid¸1936, “Os Portos e o Turismo. Têse Apresentada pelo Eng.º A. de M. Cid Perestrelo”. I Con-
gresso Nacional de Turismo. Lisboa. Mas a Guerra viria também a contribuir para o atraso nesse investimento, nomeadamente
a partir do bloqueio imposto pelos ingleses. E, apesar de projetadas entre 1934 e 1936 pelo arquiteto Porfírio Pardal Monteiro,
só em 1943 e 1948 são inauguradas, respetivamente, a Gare Marítima de Alcântara e a Rocha Conde d’Óbidos.

Castelos a Bombordo - FINALx.indd 265 27-03-2013 16:58:04


266 • CASTELOS A BOMBORDO

Os arredores da Metrópole e a Mística Imperial

Também do ponto de vista do interesse político destas iniciativas, já em 1928, anos


antes de Portugal ser definitivamente obrigado a empenhar-se em mostrar ao mundo
que “merecia” o seu Império, Álvaro Fontoura, então capitão de engenharia e estu-
dante da Escola Superior Colonial – num texto que tem tanto de voluntarismo quanto
de antecipação política – conjetura já viagens pedagógicas idênticas. Criticando a falta
de propaganda colonial portuguesa num panorama internacional que descreve exaus-
tivamente por império, refere o plano de criação do Instituto de Educação Colonial
do “ilustre” professor Rui Ulrich, que a determinado ponto exalta:

(…) o Instituto seria o intérprete junto dos poderes públicos das reclamações e aspira-
ções das colónias. O instituto promoveria viagens às colónias nacionais e estrangeiras, rea-
lizadas pelos mancebos que com melhores classificações concluíssem as suas formaturas e
cursos. A bordo de um navio, fretado para esse efeito, os professores que acompanhariam
os mancebos realizariam conferências. No regresso todos elaborariam relatórios superior-
mente apreciados17.

Mas, ainda que há muito tempo houvesse evidências dessa conexão enunciada e
anunciada do desenvolvimento do turismo com a vocação náutica portuguesa – que
juntava mais uma vez propaganda nacional e turismo, política e lazer – o Primeiro
Cruzeiro de Férias às Colónias – uma iniciativa que Augusto Cunha, escritor e humo-
rista, diretor da revista O Mundo Português, preparou laboriosamente18 –, responde a
algo de novo que retorquia de forma mais plena à conjuntura de Portugal e do Impé-
rio no panorama europeu.
O tempo é de crise económica mundial após o crash de 1929, particularmente sen-
tida nos territórios coloniais portugueses, produtores de matérias-primas. A Alemanha
e a Itália mostram o seu apetite por mais territórios: Goebbels proclama a superioridade
ariana nos mesmos discursos onde reclama as colónias que a Alemanha perdeu em
191819, enquanto o partido nazi engrossa o exército e prepara a indústria militar; Mus-
solini ameaça a Abissínia/Etiópia e o conflito iminente revela a impotência da Sociedade
das Nações. Em Portugal, Salazar tece a estranha e – aparentemente – insustentável rede
diplomática com que procura manter Portugal afastado da guerra.

17
FONTOURA, Álvaro da, 1928, Breve Notícia sobre alguns órgãos de Propaganda Colonial. Separata do Anuário da Escola
Superior Colonial. Lisboa.
18
Cf. Cunha, Augusto, 1934, “‘Uma patriótica iniciativa de o Mundo Português’. Os Cruzeiros de Férias às Colónias”, O Mun-
do Português, 1: 37.
19
Disso dá conta o jornal República de 5 de Agosto 1935

Castelos a Bombordo - FINALx.indd 266 27-03-2013 16:58:05


NAVEGAR À VISTA • 267

Os jornais do início de 1935 estão repletos de notícias que relatam, de forma con-
vergente, estas realidades. Ao mesmo tempo que o cruzeiro parte do Tejo a “seguir as
pisadas dos descobrimentos”20, inflama-se a importância de todas as iniciativas de apoio
às colónias, como os discursos exacerbados de diplomatas no estrangeiro em aconte-
cimentos irrelevantes21 que falam das colónias que “são Portugal”. Paradigmática é,
por exemplo, a primeira página do Diário de Notícias de 23 de Agosto: aqui se men-
cionam “os rumores sobre a negociação de partilha das nossas colónias” tentando
minimizar-se as pretensões da Alemanha, ao lado se dá enfase a uma pequena “mani-
festação de apoio indígena em Angola” que terá juntado colonos e indígenas no apoio
a Portugal, e se insere ainda uma pequena notícia sobre “as festas na Guiné em honra
dos excursionistas do Cruzeiro de Férias à Colónias”22.
A mera análise colateral da concomitância destas notícias demonstra a relevância
das articulações políticas entre os factos23. Mas nem tão pouco é necessária. Sabemos
nós que, já o Ato Colonial de 1930 e a Carta Orgânica do Império Colonial Português
em que Salazar define o Império Colonial Português e a “missão civilizadora” dos
colonos, respondia, no período entre guerras, a ameaças e ambições externas relativas
aos territórios ultramarinos, justificadas pelo “défice de colonização” portuguesa (San-
tos 2002). Reagindo então às pretensões de outras potências relativamente às colónias
portuguesas e belgas, e aos rumores de que a Itália estava negociando com a Inglaterra
os territórios de Angola e Moçambique, o Ato Colonial – depois inscrito na Consti-
tuição de 1933 – estipula que a metrópole e as colónias formam uma “comunidade e
solidariedade natural”. Perante as dificuldades políticas e económicas de uma coloni-

20
Escrevia Marcelo Caetano – diretor cultural do Cruzeiro –, em editorial publicado a 10 de Agosto de 1935, dia da partida no
Diário da Manhã: “Partimos, pois, para o primeiro Cruzeiro de Férias. Outros, certamente, se hão de seguir, nenhum porém,
como êste, segue na rota dos descobrimentos: porque vamos descobrir um novo Mundo moral para a Nação Portuguesa”.
21
“Pela terra e honra de Portugal”, Diário de Notícias, 22 de Agosto 1935.
22
E no Jornal do Comércio e das Colónias de 21 de Setembro de 1935 é Marcelo Caetano, quem discursa à chegada a Luanda: “(…)
não creio, meus senhores, que esteja em perigo o nosso património colonial, nem julgo que valha a pena sobressaltarmo-nos com
os boatos que de vez em quando circulam sôbre possíveis assaltos à integridade do território nacional. Angola não foi adquirida por
nós em qualquer aventura de exploradores, ou por combinação dos políticos à mesa de qualquer conferência diplomática. Angola
é terra sagrada por quatro séculos de colonização (...) não pode estar à mercê de cobiças seja de quem for! (...) Tranquilizemo-nos
pois. (...) E se hoje nos faltam alguns progressos materiais de que as colonias de outros países se orgulham, respondamos que esta-
mos ainda a tempo de fazer tais progressos até ao dia em que essas nações consigam conquistar a simpatia espontânea, a comunhão
admirável dos indígenas com o colono e de todos com a metrópole, que permite a Portugal colonizar sem violência e vencer sem a
força. E se o domínio das coisas representa muito – senhores: este domínio das almas é mais valioso!”.
23
Estamos conscientes dos riscos alienantes desta concomitância; ainda mais tendo em conta que os materiais analisados foram
maioritariamente os da imprensa e de arquivos (como o de Marcelo Caetano) conotados com o regime então vigente. Mas dado
que é sobretudo a articulação da sua atividade propagandística com a iniciativa turística que aqui nos ocupa, não nos pareceu
prejudicial esse mimetismo metodológico estando esperançadas de ainda vir a resgatar e analisar posteriormente, mas a tempo,
outros materiais: as fotografias e filmes feitos a bordo (das coleções dos diferentes jornais que tinham correspondentes embar-
cados), as coleções particulares (dado que em vários registos são referidas as muitas “kodaks” disparadas) e particularmente a da
família de Manuel San Payo que deverá ter a película de bordo do fotógrafo que realizou o filme propagandístico O I Cruzeiro
de Férias às Colónias do Ocidente (sobre o qual aqui também não nos deteremos), os diários de bordo que algumas das famílias
guardarão e até, eventualmente, o testemunho de algum dos estudantes mais jovens que realizaram a viagem em 1935. Também
merecem análise, que igualmente pretendemos empreender, os registos mais críticos publicados que aqui apenas afloraremos (ver
adiante).

Castelos a Bombordo - FINALx.indd 267 27-03-2013 16:58:05


268 • CASTELOS A BOMBORDO

zação efetiva, Portugal recorre a uma vigorosa retórica etnogenealógica e moral: a da


mística imperial.
Com a instituição do Estado Novo Salazar cria o Ministério das Colónias e o Secre-
tariado de Propaganda Nacional que entrega a António Ferro, o grande empreendedor
da “política do espírito”. Mas o que dará voz ao Ato é a mística imperial cujo paladino
virá a ser Armindo Monteiro que assumiu, de 1931 a 1935, a pasta das Colónias24.
Para dar matéria à mística, multiplicam-se os eventos durante a década de 30: em 1933
foi realizada a Conferência Imperial Colonial, em 1934, a I Exposição Colonial Por-
tuguesa no Porto e o I Congresso de Intercâmbio Comercial com as Colônias. Além
desses, no mesmo ano em que partiu o Cruzeiro, comemorou-se a Semana das Colô-
nias, promovida pela Sociedade de Geografia, e realizou-se o I Congresso da União
Nacional. Todas estas iniciativas anteciparam o clímax da mística: a Exposição Colo-
nial do Mundo Português de 1940.
A ode imperial ecoava por todo o lado. E é assim que o editorial do Diário de
Notícias, voz do regime, aplaude o Cruzeiro no dia 1 de Agosto 1935:

Urge que os portugueses de hoje, sobretudo os das novas gerações, deixem de sonhar
com as colónias para passarem a viver nelas ou com elas (...) multiplicarem-se os “cruzeiros
de férias”, de forma a fazer sentir aos portugueses que vão chegando, aos nossos filhos, aos
nossos netos, que as nossas colónias de Africa, até da Asia, são como arredores da metró-
pole, melhor, são Portugal e são em Portugal

…do Minho a Timor. O Cruzeiro às Colónias almejava assim tornar contínuo e


denso o tracejado colonial, a incorporação do novo mapa da nação, o de O Mundo
Português, do continente e das colónias que viriam cedo a designar-se, como então já
se preconizava “carinhosamente”, de Portugal Ultramarino25.
Mas às outras iniciativas da parafernália exibicionista do Império e ao reforço
da cartografia imperial, o Cruzeiro de Férias acrescentava-lhes a itinerância e a expe-
riência e, sobretudo, a sua incorporação: “É preciso, se queremos voltar a ser um
grande povo, que cada português tenha dentro de si (...) o panorama exato das suas
possessões”26.

24
A organização do Cruzeiro realizar-se-ia sobre o seu mandato, muito embora à data da partida o cargo fosse já ocupado pelo
seu sucessor José Silvestre Ferreira Bossa.
25
“O cruzeiro de férias às colónias portuguesas, que nós devíamos chamar mais carinhosamente províncias ultramarinas, tem um
profundo alcance” (Cunha, Eugénia Penha, 1935, “Cruzeiro de Férias às Colónias. Impressões de V.ª Excelência. Autógrafos
expressamente escritos por alguns excursionistas”, Diário da Manhã, 30 de Agosto).
26
Editorial do Diário de Notícias, 1 de Agosto 1935.

Castelos a Bombordo - FINALx.indd 268 27-03-2013 16:58:05


NAVEGAR À VISTA • 269

“Um banho de portuguesismo para todos”.


Jornal de Notícias 4 de Outubro de 1935

Da mesma forma que a exaltação excursionista dos republicanos servira a confi-


guração territorial da nação (cf. Pina 1987 e Comissão Nacional para as Comemora-
ções do Centenário da República 2010), a proposta dos Cruzeiros acompanhava a
dilatação ultramarina da consciência nacional, num “banho de portuguesismo”27 espe-
cialmente dedicado à mocidade, abrindo-lhe “novas perspetivas ao espírito e à ação:
sobretudo os estudantes (...). Dela regressarão mais homens e mais portugueses”.28

O navio escola do Império ou a campanha contra o Quimzinho

(…) Lembra-se do Quimzinho, aquele rapaz que Fradique Mendes conheceu num terceiro
andar da Travessa da Palha, ídolo da mãe viúva, gordo e anémico, reprovado no liceu e candi-
dato á burocracia? Essa imagem de uma juventude sem caracter, sem gôsto de iniciativa nem
amor de responsabilidades é que temos que demolir ou de relegar para o canto das aberrações
se, na verdade, pretendemos ser um povo imperial. As colónias, procuradas pelos melhores de
cada geração no ânimo do trabalho, na esperança de construir um Novo Mundo, serão, como
já começaram a ser nas campanhas da ocupação a escola da iniciativa, da energia e do carácter.

27
“Não fazia a mais pequena ideia do que aquilo era. (…) Foi um verdadeiro banho de portuguesismo para todos nós”, lê-se no
título do artigo retirado do comentário de Estevão Amarante, celebrado ator da época, que participou no Cruzeiro (Diário de
Lisboa, 3 de Outubro de 1935).
28
Entrevista a Marcelo Caetano publicada nas páginas 1 e 2 do Diário da Manhã de 26 de Julho de 1935.

Castelos a Bombordo - FINALx.indd 269 27-03-2013 16:58:05


270 • CASTELOS A BOMBORDO

O cruzeiro de Férias também é uma campanha: a campanha contra o Quinzinho, a


campanha pelo melhoramento moral e intelectual da mocidade portuguesa29.

…a Mocidade Portuguesa que se viria a institucionalizar no ano seguinte, em 1936


(e que virá, depois, a organizar os seus próprios cruzeiros às colónias30) também ela
mais resultado da conjuntura política que pressionava o regime para uma radicalização
da sua política do que como consequência de uma execução programática das bases
ideológicas do regime (cf. Kuin 1993)31. Também aqui, a iniciativa reguladora do Estado
Novo havia sido precedida por tentativas republicanas, algumas delas persistentes,
como as da criação da Associação dos Escuteiros Portugueses em 1911 e do Corpo
Nacional de Escutas em 192332. E são estas ainda as organizações que representam no
Cruzeiro a mocidade portuguesa, a quem é dado protagonismo na imprensa33 que não
se cansa de exaltar sua energia alegria e aprumo34 e retrata em sua “romagem”, parti-
cularmente nos momentos ritualizados e iniciatórios, publicando fotos do “jogo do
conselho” numa festa que os escuteiros realizaram a bordo35, relatando o “batismo de
mato” que muitos receberam na Guiné36, ou a festa de Neptuno (incarnado por San
Payo, o fotógrafo de serviço e realizador do filme oficial do Cruzeiro37) à passagem
pelo Equador38.
Ao cariz comunitário e iniciatório da viagem turística em si, tão longamente anali-
sado na literatura das ciências sociais, aliavam-se, aqui, os ritos de iniciação à idade
adulta e à nação, que assim eram exponenciados. A isso se juntava ainda a oratória da

29
Idem.
30
Cf. “Cruzeiro das raparigas da Mocidade Portuguesa”, Boletim Geral das Colónias. – Ano 26.º, n.º 302-303, 1950, p. 163-
-165; “Cruzeiro de raparigas da M.P. ao Ultramar”, Boletim Geral das Colónias – Ano 26.º, n.º 301, 1950, p. 104; “Cruzeiro
Gago Coutinho”, Boletim Geral do Ultramar. – Ano 35.º, n.º 411-412 (Setembro-Outubro de 1959), p. 270-276.
31
A organização foi depois alargada “à Mocidade Portuguesa das colónias, de origem europeia, e à juventude indígena assimila-
da” a quem é “dada (....) uma organização nacional e pré-militar que estimule a sua devoção à Pátria, o desenvolvimento integral
da sua capacidade física e a formação de carácter, e que, incutindo-lhes o sentimento da ordem, o gôsto pela disciplina e o culto
do dever militar, as coloque em condições de concorrer eficazmente para a defesa da Nação” (Decreto-lei n.º 29453, de 17 de
Fevereiro de 1939).
32
Às quais se juntaram depois as influências e configurações das congéneres organizações italianas e sobretudo alemãs. Mas a
eclosão da Segunda Guerra Mundial viria a pôr fim aos intercâmbios que chegaram a estabelecer-se entre a Hitlerjugend e a
Mocidade Portuguesa.
33
A bordo seguia também o Dr. Gomes dos Santos que, “em nome da mocidade, e mais propriamente da mocidade escotista”
portuguesa, discursou no Porto de Honra de Luanda (“Cruzeiro de Férias”, A Província de Angola, 4 de Setembro de 1935).
34
Que Augusto Cunha virá a público defender em longa coluna reagindo a boatos caluniosos, que os responsabilizariam pelo
suicídio de um empregado do bar do Moçambique (Jornal de Notícias, 29 de Outubro de 1935).
35
O Século a 29 de Agosto de 1935.
36
O Século a 25 de Setembro de 1935.
37
Ver nota 22. A bordo seguia ainda o operador cinematográfico Costa Macedo (Jornal de Notícias, 11 de Agosto de 1935).
38
“O Cruzeiro de Férias à colónias. O tradicional julgamento e os divertimentos tradicionais quando da passagem do equador”
(O Século, 2 de Outubro de 1935). San Payo parece ter tido especial papel na animação cultural da juventude, criando ainda o
grupo dos “Ferro-Bico” (“Embaixada de saudade. O Cruzeiro de Férias às colónias”, Diário de Notícias de 4 de Outubro de
1935).

Castelos a Bombordo - FINALx.indd 270 27-03-2013 16:58:05


NAVEGAR À VISTA • 271

peregrinação que exaltava “os peregrinos do cruzeiro, cheios de fé patriótica”39 que


iam por seus olhos conhecer “os santos lugares onde se realizaram os milagres do hero-
ísmo que fizeram da pequenina Pátria lusitana um grande Império no Mundo”.40
Esta era a “campanha contra o Quinzinho” enunciada por Marcelo Caetano, dire-
tor cultural da missão, que respondia assim ao repórter quando este lhe perguntava se
a missão principal do cruzeiro era pedagógica. Mas a resposta já vinha contida no
decreto que a promulgara:

Com essas viagens, convenientemente orientadas por um critério pedagógico, não só


se ministra à mocidade académica uma lição prática de geografia, que ela jamais esquecerá,
mas também no seu ânimo juvenil se cria a consciência da grandeza de Portugal no mundo.
E se daqui não resultarem novas vocações para a vida colonial, há-de pelo menos robustecer-
-se o orgulho e a alegria de ser português, há-de fazer boa sementeira da propaganda das
cousas belas do nosso ultramar e hão-de estreitar-se os laços morais que serão a mais forte
garantia da unidade do Império.41

O objetivo pedagógico não era, de facto, meramente retórico: Marcelo Caetano


fora nomeado para diretor cultural do Cruzeiro, assessorado pelos “drs. Cardigos dos
Reis e Orlando Ribeiro, dois novos de valor”42, que se encarregaram de um calendário
apertado de cursos para os estudantes e conferências para os seus acompanhantes, espe-
cialmente concorridas pelas “senhoras, que à hora da aula disputa(va)m os melhores
lugares para ouvirem as interessantes lições de História e Geografia coloniais”43. As
lições deveriam revestir “uma feição simples e quando possível prática (…), que sirvam
para aquisição de conhecimentos novos ou aplicação dos já adquiridos”, e eram prece-
didas de uma parte “consagrada a uma leitura dos ‘Lusíadas’, acompanhada de um
ligeiro comentário (…)”44. Os cursos eram acompanhados de notas e pequenas publi-
cações de apoio preparadas para o efeito. E, a par do calendário pedagógico, um intenso
programa social, de que nos dão registo a imprensa e os programas publicados, marca-

39
Autógrafo do Ministro das Colónias José Bossa inscrito nos exemplares dos Lusíadas destinados aos governadores das colónias
visitadas (Boletim Geral das Colónias, n.º 122-123 – Vol. XI, 1935: 93-94).
40
Idem.
41
Decreto-lei 25.555, de 28 de Junho de 1935.
42
O Século, 27 de Agosto de 1935.
43
Enviado especial do Diário de Notícias, a 15 de Agosto de 1935, publicado a 24 do mesmo mês. Os cursos, tal como consta
no Roteiro do Cruzeiro e nos apontamentos manuscritos do arquivo de Marcelo Caetano, incluíam: I. Noções sumárias de Geo-
grafia do Continente Africano; II. O Descobrimento da África Ocidental; III. História das Colónias da África Ocidental; O Mar;
Noções Sumárias da Ciência da Colonização; e Noções Sumárias da Administração Colonial Portuguesa. Para além disso, era
sugerido aos estudantes que tomassem, em todas as excursões por terra, apontamentos para registo das suas observações e impres-
sões e futura elaboração de um relatório da viagem.
44
Roteiro do 1.º Cruzeiro de Férias às Colónias. Uma Iniciativa de “O Mundo Português”. Lisboa, 1935.

Castelos a Bombordo - FINALx.indd 271 27-03-2013 16:58:06


272 • CASTELOS A BOMBORDO

vam o ritmo de uma intensa socialização e doutrinamento, guarnecidas de momentos


de exibição e celebração do Império, como a recriação histórica da embaixada “que o
rei de Molembo, Kapita Munipolo, mandou ao governador geral para prestar juramento
de preito ao Muene-Puto, o rei de Portugal D.Pedro V”, ou a Exposição Histórica pro-
movida na Igreja da Nazaré em Luanda, pela Sociedade de Estudos de Angola45. Os
estudantes foram ainda estimulados a participar num concurso literário e noutro foto-
gráfico sujeitos ao tema “O que eu vi em África”, cujos trabalhos foram posteriormente
publicados n’O Mundo Português46, integrando a parafernália que ali, e em toda a
imprensa do regime, divulgou e amplificou a iniciativa, assim orquestrando uma eficaz
campanha que, embora eminentemente produzida a bordo do pequeno paquete47, ecoou
eficaz e duradouramente por todo o Império.
Na verdade, se o Cruzeiro alegava almejar a largada iniciática de uma mocidade
que se queria enérgica para descobrir e gerir o Império, este – a julgar pelos relatos e
aparato da imprensa – terá sido provavelmente um objetivo menos conseguido do que
aquele que efetivamente visava: o da recriação e relançamento, pela circunavegação,
da épica portuguesa, pontuada, em cada porto, pelos discursos oficiais inflamados da
glória passada e presente de Portugal. Mas isto não impediu que, pelo menos formal-
mente, o Cruzeiro de Férias inaugurasse ao mesmo tempo modelos reguladores da
mocidade e do lazer também inspirados noutros países nacionalistas.

Colónias de férias

Em 1938, Rebêlo de Queiroz, relatando o Cruzeiro de Moçambique a Angola rea-


lizado por altura da visita do Presidente da República à grande colónia ocidental, filia
claramente este tipo de iniciativa nas suas congéneres europeias:

O prazer de viajar é comum a todos. Mas os ricos podem realizá-lo, porque não lhes
escasseiam os meios necessários; ao passo que os pobres, e os simplesmente remediados, esses,
se alguém não vier corrigir de algum modo os caprichos da sorte, não conhecerão mais do
que aquilo que lhes permite o pequeno horizonte em que se confinam. Assim o compreen-
deram alguns países como a Itália e a Alemanha, não deixando no papel as vantagens como

45
Referida em, A Província de Angola, 4 de Setembro de 1935.
46
Ruy Cinatti, para quem esta viagem se tornaria decisiva (ver adiante), viria, neste concurso, a ganhar o prémio “Julio Henri-
ques”, atribuído à conferência que revelasse melhor capacidade de observação, cabendo o prémio “Capelo Ivens”, atribuído à
palestra “mais interessante”, a Mlle. Esther Cochat, a mais aplaudida (Diário de Notícias, e O Século a 11 de Outubro de
1935).
47
O Gabinete de Imprensa a bordo incluía delegados do Diário de Notícias, de O Século, de O Comércio do Pôrto, do Diário da
Manhã, de A Voz, do Momento e ainda Dante da Silva Ramos, como colaborador artístico.

Castelos a Bombordo - FINALx.indd 272 27-03-2013 16:58:06


NAVEGAR À VISTA • 273

Kraft durch Frende e Doppolavoro e assim se vai seguindo em Portugal, onde êste assunto está
merecendo um grande carinho dos homens que felizmente nos governam.48

Foi também em 1935, o ano do lançamento do Cruzeiro¸ que os “homens que nos
governavam” criaram, à semelhança das suas congéneres europeias, a Fundação Nacio-
nal para a Alegria no Trabalho. Intervindo na esfera do lazer a FNAT assegurava ao
aparelho do estado a “integração das massas”, enquadrando as atividades sindicais no
regime corporativo e na política do Estado Novo, resgatando-as de tentações de outros
nacionalismos, como os comunistas, e convertendo-se num poderoso órgão de propa-
ganda. Mas estas instituições, particularmente a alemã, que viriam a ter um importante
papel na massificação do lazer e na regulação dos tempos livres, não eram conhecidas
apenas do regime que as viria a imitar. O comum dos portugueses conhecia já a atua-
ção da congénere nazi porque a presenciava nas visitas dos cruzeiros alemães, como
aquele que, em 1936 passou em Lisboa a caminho da Madeira49.

O St. Louis, o Deutsche e o Sierra Cordoba, o primeiro pintado de negro e os dois res-
tantes de branco, entraram na barra [de Lisboa] manhã cedo, embandeirados em arco. No
mastro da popa, a nova bandeira do Reich com a cruz suástica. No topo do mastro de vante
o pavilhão português (…). Quando a aurora rompeu já ninguém dormia a bordo. [descrevia
o jornal. Os passageiros], gente acostumada a erguer-se cedo, assomaram sorridentes nas
cobertas, admirando os contornos sinuosos das duas margens do Tejo. Os operários alemães,
fortes e sadios, e as frauleins desenvoltas e esbeltas não deixavam de observar o panorama
que se desenrolava, cinematograficamente, ao longe50.

Entre outras coisas, a Kraft durch Frende51 organizava estas viagens para exibir o
Nacional-Socialismo a outros países e, tal como o Primeiro Cruzeiro às Colónias veio
a fazer, incluíam no seu plano treino político e pedagógico, sendo dada especial atenção
ao “aprumo de conduta” dos participantes52. Um dos principais objetivos da organiza-
ção nazi era o de transpor os limites entre trabalho e lazer, combatendo o ócio, ao

48
Moçambique: Documentário trimestral, n.º 16, 1938,: 79-80.
49
De 1935 a 1939, cerca de 20 mil alemães terão visitado Lisboa e o Funchal – mas, além deste destino de férias, os cerca de
sete milhões de excursionistas da Força pela Alegria também viajavam pela costa alemã ou optavam por ir até à Noruega e à
Dinamarca, a Espanha e a Itália (Fernando Madaíl em “Cruzeiros nazis para operários”, Diário de Notícias, 27 de Março de
2010).
50
Citado por Fernando Madaíl, Ibidem..
51
Força pela Alegria, fundada em 1933.
52
“Os estudantes não esquecerão, em nenhuma emergência, que junto dos colonos portugueses do Ultramar representam a Pátria
de hoje e suas energias de amanhã. Importa que pela dignidade e aprumo da conduta, elevação de atitudes e nobreza de manei-
ras, deixem por onde passarem as mais gratas recordações e as mais claras esperanças” (Art. 10.º do Plano Cultural do Cruzeiro,
Roteiro do 1.º Cruzeiro de Férias às Colónias. Uma Iniciativa de O Mundo Português. Lisboa, 1935 p.: 24).

Castelos a Bombordo - FINALx.indd 273 27-03-2013 16:58:06


274 • CASTELOS A BOMBORDO

mesmo tempo que geria as diferenças de classe, alargando prerrogativas de lazer e edu-
cação das classes médias a outros grupos sociais: tal como almejava Queiroz em sua
apologia dos cruzeiros portugueses, e como parecia implícito nas indicações úteis publi-
cadas no Roteiro do Primeiro Cruzeiro, explicitamente amplificadas pela imprensa53:

A Direcção do cruzeiro começa por lembrar, mais uma vez, a todos os srs. excursionis-
tas, que não há qualquer distinção de classes, quer a bordo, quer nos diferentes transportes
para as visitas ao interior.

E depois informava-se que à mesa não era necessário o uso de smoking, sendo o
trajo de cerimónia obrigatório apenas para as festas oficiais…que, no entanto, foram
muitas.
De acordo com Augusto Cunha no Relatório do Cruzeiro, de início a viagem
destinava-se quase exclusivamente a estudantes e alguns acompanhantes. Mas, por
razões imponderadas da calendarização do período de exames, alguns não pude-
ram comparecer o que veio a contribuir para uma grande diversificação etária e
social dos passageiros e também complicar o seu financiamento. No Roteiro do
Cruzeiro estão listados apenas sessenta e nove “estudantes”, dezanove “professo-
res” e noventa e três “pessoas de família”. Nas notas de viagem manuscritas de
Marcelo Caetano estão referenciados pelo nome e instituição escolar, apenas setenta
e dois estudantes. E, retrospetivamente, em 1958, é de novo Marcelo Caetano
quem comenta:

Não sei se os académicos enchiam metade do barco…Tornou-se indispensável permitir


que se inscrevessem outras pessoas, o que deu ao cruzeiro um caracter de excursão onde
havia de tudo: militares como o Almirante Afonso de Cerqueira, e o coronel Namorado
de Aguiar: homens de letra como Hipólito Raposo e José Osório de Oliveira; advogados
como Mário Monteiro e João Emauz; médicos, comerciantes, industriais e proprietários
– e até muitas senhoras, entre as quais se destacava o vulto gentilíssimo da Marquesa de
Fialho, que acompanhava os seus dois filhos: António Martim, ao tempo estudante de
Direito e D. Maria que é hoje activa e operosíssima da Congregação de S. José de Cluny.
(…) E no meio de toda aquela gente até havia o actor Estêvão Amarante que havia sido
contratado para acompanhar quatro marquezes espanhóis em demanda dos paraísos vena-
tórios de Angola que haviam embarcado no cruzeiro por ser a viagem mais próxima – e
mais barata!54

53
Por exemplo no Província de Angola de 13 de Agosto de 1935.
54
Marcelo Caetano em “A minha primeira visita a Angola”, A Província de Angola, 31 de Dezembro de 1958.

Castelos a Bombordo - FINALx.indd 274 27-03-2013 16:58:06


NAVEGAR À VISTA • 275

Bem diferentes são estas memórias, da estratégica e rigorosa resposta que o futuro
Comissário Nacional da Mocidade Portuguesa dera ao repórter que lhe perguntara,
na altura da largada, se o objetivo primeiro do Cruzeiro era pedagógico: este era “um
cruzeiro de férias, sim, mas não havia de (…) degenerar no delírio das excursões da
tuna académica em Valladolid”55, dizia então, severo, Marcelo Caetano. O objetivo,
era o de criar

sem prejuízo da alegria e do natural desprendimento das férias, um ambiente de serie-


dade nos propósitos e objectivos da viagem: fazer com que se não perca nenhuma oportu-
nidade de apreensão directa e viva dos conhecimentos.

Para isso, era importante “preparar a observação primeiro, e aproveitar a obser-


vação depois56.

Kodaks do Império

À chegada aos Bijagós “não têm descanso os binóculos, as objectivas dos kodaks, e
as canetas de tinta permanente. (…) Discute-se etnologia e etnografia; fala-se de aspec-
tos indígenas”57. A exaltação da observação, da visão como sentido e forma de conhe-
cimento, o olhar panorâmico, da posição de espectador a partir do deck ou dos palanques
montados para as coreografias especialmente encenadas, é evidente nos relatos que
abundam ao longo da viagem. Ao lado dos relatos, o olhar dos excursionistas é ampli-
ficado pela imprensa de forma igualmente duradoira e multiplicada, através da presença
dos fotógrafos e cinematógrafos a bordo, da imprensa e da difusão dos resultados do
concurso de fotografia depois publicado n’O Mundo Português58. A fotografia serve ao
mesmo tempo de “autentificação da realidade” e de testemunho de presença. Mas, para
os mais treinados – mas também mais implicados no retrato que se encomendava – como
San Payo, as câmaras dificilmente davam conta da grandiosidade do império:

É tão difícil materialisar a grandioziodade da païsagem africana. A tela do cinema é


demasiado pequena e a objectiva dificilmente seleciona aquilo que tanto agrada à nossa vista.
Perante o maravilhoso do nosso Império quem não se sentirá demasiado pequeno?59

55
Entrevista a Marcelo Caetano, Diário da Manhã, 26 de Julho de 1935.
56
Idem.
57
Diário da Manhã, 16 de Setembro de 1935.
58
N.º. 39, Vol. IV, 1937.
59
Diário da Manhã, 30 de Agosto de 1935..

Castelos a Bombordo - FINALx.indd 275 27-03-2013 16:58:06


276 • CASTELOS A BOMBORDO

De um ponto de vista analítico, Timothy Mitchell (1991) certamente que encontraria


nas performances e produtos fotográficos do Cruzeiro evidências quase caricaturais da
sua demonstração da construção do world-as-exhibition (1991) nas visões coloniais do
mundo. Tal como a Exposição Universal de Paris antecipara e configurara a gestão urba-
nística do Cairo, a Exposição Colonial do Porto informou o framing das encenações afri-
canas, determinado pelo princípio dos espelhos paralelos que alegadamente refletem a
autenticidade. Por exemplo, à chegada a Bolama, onde as entidades promoveram a vinda
de “vários grupos negros” para fazerem demonstrações coreográficas, comenta-se:

Quem visitou a exposição colonial do Porto conhece mais ou menos estas danças. Mas
vistas aqui, no meio do próprio, ao sol ardente que as fez nascer, não têm o simples carac-
ter de um espectaculo curioso, mas o sentido profundo das coisas essenciais60.

E, ainda do ponto de vista analítico, também Bennett (1988) certamente exultaria


com este exemplo exponenciado de um exhibitionary complex: o Cruzeiro servia para
ver e para ser visto, para criar sujeitos nacionais pela exibição e pela imitação, dentro
e fora do paquete: “(…) o Cruzeiro não deixará de emocionar os colonos e de impres-
sionar os indígenas”, diz novamente o delfim de Salazar61. Neste contexto, a coreo-
grafia oficial jogava duplamente na performance dos excursionistas, simultaneamente
sujeitos aprendizes de observadores62, e observados como modelo de conduta nacio-
nal: é novamente Marcelo Caetano quem dirá que “para os colonos, sobretudo, [o
Cruzeiro] será um tónico de patriotismo, uma fonte de novas energias tão necessárias
no período doloroso que atravessa a economia de algumas colónias a visitar”.63

Um colonialismo flutuante mas moderno

Logo a seguir a declarar a primazia dos objetivos pedagógicos do Cruzeiro, Mar-


celo Caetano prossegue, na mesma entrevista64:

Em primeiro lugar vejamos o que o CF significa nesta nova fase da política colonial.
Não há ainda cinquenta anos a costa de África era o lugar negregado da expiação dos gran-

60
Diário de Notícias, 20 de Setembro de 1935.
61
Marcelo Caetano em entrevista publicada no Diário da Manhã de 26 de Julho de 1935.
62
Algo que temos, infelizmente também, que remeter para outras publicações, dada a quantidade e eloquência do material
encontrado.
63
Diário da Manhã de 26 de Julho de 1935.
64
Idem.

Castelos a Bombordo - FINALx.indd 276 27-03-2013 16:58:06


NAVEGAR À VISTA • 277

des crimes, um motivo dolente de fados da Mouraria: e eis que hoje parte um navio com
um ar festivo, com boa parte do escol da mocidade portuguesa e até das camadas dirigen-
tes do País, a fim de procurar o repouso e as emoções que outros irão buscar ao Estoril ou
a Biarritz. Com uma diferença, está claro: é que os viajantes do Cruzeiro são guiados pelo
puro amor do Portugal de além-mar, e não pela ansia de futilidades elegantes. Não lhe
parece que vai nisto uma pura subversão de velhos conceitos? Que marcamos o ponto de
partida para uma nova visão da vida colonial?

Esta última declaração de Marcelo Caetano resume muito do que dissemos ante-
riormente e coloca, claramente, o Cruzeiro no quadro das visões do mundo de Impé-
rios precedentes e, de forma explícita, na perspetiva dos colonialismos modernos.
Como outros depoimentos que a acompanharam, denunciava-se, afinal, mais do que
um deficit de colonialismo, um deficit de capitalismo no Império português, quando
inserido no quadro internacional contemporâneo dos colonialismos modernos, algo
que era importante ultrapassar (Santos 2002).
Embora considerando o estreitamento que uma abordagem excecionalista e com-
parativa pode impingir à análise das performances do colonialismo português (Vale de
Almeida 2000, Ferreira 2007, Medeiros 2006), não deixa de ser útil recrutar aqui
práticas internacionais que, naturalmente, foram inspiradoras das políticas coloniais
que, naquela conjuntura própria, Portugal se viu obrigado, também, a imitar.
A viagem organizada (sem mencionar aqui a individual que a precedeu em
séculos), o cruzeiro por mar ou por terra, eram práticas comuns de configuração
e aglutinação colonial, já desde anos anteriores, quando, por exemplo, André
Citroën organizou La Croisière Noire, que se desenrolou sob os auspícios do
governo francês e do colonialismo humanista do então ministro francês das coló-
nias Albert Sarraut. E, tal como a propósito desse cruzeiro terrestre, viremos a
compreender que também os objetivos daquele, marítimo, que Portugal organizou
doze anos depois, eram também, para além de pedagógicos e políticos, claramente
económicos, visando estimular a abertura de rotas de tráfego que ativassem as
economias metropolitanas e ultramarinas. Para dar conta disso basta olhar para
as páginas do Roteiro do Cruzeiro onde se exibe a publicidade de múltiplas firmas
e serviços e produtos que terão subsidiado a viagem, em réclames dirigidos a um
público com interesses coloniais. Entre as oito entidades oficiais, os vinte e oito
industriais e comerciantes e cinquenta e oito anunciantes, encontramos os vinhos
Borges, “vinhos aconselhados para os climas tropicais”, os fósforos nacionais para
o Império Colonial Português (Sociedade Nacional de Fósforos), a loiça esmaltada
Michin, “a única que concorreu às feiras de Luanda e Lourenço Marques”, e as
águas Vidago, Melgaço e Pedras Salgadas, “bebida ideal para climas tropicais”, bem

Castelos a Bombordo - FINALx.indd 277 27-03-2013 16:58:06


278 • CASTELOS A BOMBORDO

como o vinho do Pôrto, que “adicionado de uma determinada percentagem de


quina é um delicioso aperitivo e um maravilhoso antídoto contra as febres de
África”65.
Para além disso, a bordo seguia também, da metrópole, a maquete dos “armazéns
do Império”, uma exposição flutuante que

ocupava o deck de 1.ª classe de bombordo a estibordo (…) constituída por mostruários
de géneros e mercadorias fabricadas na metrópole, como vinhos, frutas, tecidos, pratas,
calçado, etc., de casa de Lisboa e Pôrto e cuja permuta com produtos coloniais não pode
deixar de representar um processo de desenvolvimento da economia66,.

Esta linguagem mais capitalista67, é bem explícita no “conceito moderno de colo-


nização exposto pelo Sr. Ministro das Colónias”:

Não basta mandar para as colónias famílias prolíficas de aldeões: seriam bocas que
aumentariam o consumo; mas continuariam a faltar ali as iniciativas para vencer as dificul-
dades que os países novos oferecem, as competências para resolver os problemas de que
depende o seu progresso (…)68.

Os problemas que justificavam e acompanhavam o Cruzeiro eram de ordem polí-


tica, nacional e internacional, e económica e percebiam-se, por simetria, na exaltação
de certos temas comuns a todos os discursos – a reafirmação da soberania colonial
sobre os territórios ultramarinos portugueses, a exaltação da profundidade histórica
do colonialismo português, a solidariedade entre habitantes da metrópole e das coló-
nias. E, apesar da censura, nalguns artigos de jornal surgiam mais explícitos eviden-
ciando a ponta do iceberg69.
O próprio relatório de Augusto Cunha refere que, nos últimos dias do Cruzeiro,
terá havido discussões a bordo sobre as questões coloniais e as condições de vida em
Angola, apesar de durante a fase de inscrição ter havido especial preocupação na sele-

65
Como foi o gin tonic nas colónias inglesas. Mas Portugal incentivava declaradamente o consumo de vinho nas colónias: “Abri
as portas de vossas casas ao vinho do velho rincão lusitano, a esse vinho forte de energias e de generosidade, que sempre acom-
panhou os vossos Maiores na enorme e esforçada obra construtora do nosso império”.
66
Boletim Geral das Colónias, n.º 122-123, Vol. XI, 1935.
67
Embora aparentemente desajeitada, a julgar por algumas descrições que referiram a “exposição flutuante” como “modesta e
quasi deficiente na apresentação de alguns artigos (…) pensando talvez que para África aquilo seria mais que bom” (O Lobito, 7
de Setembro de 1935).
68
Diário da Madeira, 1 de Outubro de 1935.
69
São claras, por exemplo, as críticas à assimetria nos incentivos e protecionismo económico, e no balanço entre importações
(de vinho) da Metrópole e exportações (de milho) de Angola (Diário de Lisboa, 15 de Novembro de 1935 e Jornal do Comércio
e das Colónias de 22 de Novembro de 1935).

Castelos a Bombordo - FINALx.indd 278 27-03-2013 16:58:07


NAVEGAR À VISTA • 279

ção dos participantes70. E, em arquivo ainda mais discreto, encontramos fontes mais
dramáticas: entre os documentos de Marcelo Caetano, está uma carta de vinte e três
nativos de S. Tomé, deportados e prisioneiros sem justa causa na Ilha do Príncipe.
(carta é datada de 24 de Agosto de 1935, altura em que Ilha foi visitada apenas pela
direção do cruzeiro, mantendo-se o resto dos cruzeiristas a bordo). Nem tudo era,
obviamente, um mar de rosas, no itinerário do Cruzeiro colonial, e o clima entre colo-
nos e excursionistas ter-se-á exaltado quando Marcelo Caetano alegadamente disse
“aos excursionistas, à largada de Cabo Verde ou Guiné que se deveria dar um desconto
de 75% aos queixumes que iam ouvir dos portugueses que iam ver nas colónias a
visitar”71. As críticas mais severas vêm de O Intransigente de Benguela que, reagindo
à displicência dos “touristes” face às manifestações empenhadas de receção organiza-
das pelos portugueses de Angola, diz que:

O cruzeiro perde as suas características, pouco se diferenciando de uma viagem orga-


nizada por qualquer Cook, com especiais atrativos para amadores cinegéticos e proporcio-
nada a turistas que passeiam Africa por diletantismo, numa diversão às suas constantes
caminhadas por Londres e Paris.72

Innocents Abroad73

(…) seria curioso inventariar os estudantes que viajaram no Cruzeiro, e ver o que deram na
vida. Muitos, muitíssimos mesmo voltaram ao ultramar para aí fazerem a sua carreira. Perderam
o medo à África ou deixaram-se seduzir por ela. Mas esta crónica já vai tão longa (…)74

Partilhando esta curiosidade de Marcelo Caetano pretendemos no futuro perseguir


os passos de alguns dos excursionistas deste e doutros cruzeiros às colónias. Mas pode-
mos adiantar que entre os que se tornaram mais ilustres, encontramos alguns daqueles
que virão a defender e divulgar a doutrina luso-tropicalista. Osório de Oliveira, res-
ponsável pelo gabinete de Imprensa do Cruzeiro é um dos grandes promotores do

70
“Tive durante muito tempo a grata impressão de que levava apenas 200 portugueses, vibrando no mesmo ansioso desejo de
conhecer as colónias, congregados no mais belo exemplo de união nacional. Só nos últimos dez dias essa impressão se dissipou,
em consequência de alguns incidentes que se deram, provocados aliás, por pessoas que tinham o dever de os evitar, já pela sua
categoria e cultura, já pelas atenções que devem à atual situação e, portanto, pelo respeito que lhe deveriam tributar” (Relatório
do 1.º Cruzeiro de Férias às Colónias, 1936, p. 3).
71
O Intransigente, 11 de Setembro de 1935.
72
Idem.
73
Da obra de Mark Twain sobre o périplo de seis meses a bordo do Quaker City que realiza o primeiro cruzeiro organizado a
partir dos EUA e que contribuiu para a difusão deste novo tipo de viagem junto do público.
74
“A minha primeira visita a Angola”, A Provincia de Angola 31 de dezembro de 1958.

Castelos a Bombordo - FINALx.indd 279 27-03-2013 16:58:07


280 • CASTELOS A BOMBORDO

trabalho de Freyre, logo após a publicação de Casa Grande e Sanzala em 1933, da


prestação do Mestre no Congresso da Expansão Portuguesa no Mundo em 1937 e da
sua nomeação, em 1938, como membro da Academia Portuguesa de História pelo
próprio Salazar. Merecem análise aprofundada as suas crónicas coloridas da acostagem
nos diversos portos “durante cinquenta e quatro dias tocando só em terras de Portu-
gal”, e a especial relação que desenvolve com o

Rui, que todos a bordo conhecem por Tahiti, alma possuída de um lirismo cósmico,
que sonha com as ilhas encantadas da Polinésia; e o Manuel, o Miguel, o Pedro, todos os
outros. Para eles, e talvez só por eles, valeu a pena fazer este cruzeiro.75

O Rui era Cinatti, futuro Professor da Faculdade de Letras da Universidade de


Lisboa a partir da década de 1940, onde se juntaria a Orlando Ribeiro, seu professor
no Cruzeiro, e outros futuros simpatizantes e divulgadores do luso-tropicalismo. Dele
viria o próprio sociólogo brasileiro a dizer mais tarde que

chega a ser, na sua ciência, um voluptuoso das plantas e das cores e aromas dos trópicos.
Não conheço hoje português algum que seja, mais do que ele, um tropicalista. Tropicalista
pela sua especialidade de botânico e pelo amor com que estuda a natureza tropical76

E é o próprio Cinatti quem virá a considerar-se “o discípulo da última fila” do


mestre de Apipucos (Cinatti, 1952 cit. em Castelo 2011). Logo após o seu regresso do
Primeiro Cruzeiro de Férias às Colónias Ruy “Tahiti” decide que o seu futuro será África
e manifesta-o claramente em carta dirigida a Amy Christie:

It is settled, I will go to Africa, to Angola, I will go to Timor, I will go to any of the


distant provinces of my Portugal. Oh! What bliss it was for me to be in those lands. Those
large horizons made me have a broader view of things (cit. in STILWELL 1995: 33)

Cinatti parecia responder antecipadamente a um apelo a que o seu mestre no Cru-


zeiro – Marcelo Caetano – só mais tarde viria a repetir: o da necessidade de aguçar a
especial “vocação para os trópicos” anunciada por Freire. Mas o luso-tropicalismo e
a celebração da miscigenação terão que esperar pela década de 50 e por nova conjun-
tura internacional que, novamente, no pós-guerra, obriga o Governo português a
reformular a retórica da unidade nacional perante as pressões externas favoráveis à

75
Osório de Oliveira. Diário da Manhã, 19 de outubro 1935.
76
FREYRE, Gilberto, 1954, Aventura e rotina: sugestões de uma viagem à procura das constantes portuguesas de carácter e de
acção. Lisboa, Livros do Brasil, p. 34, citado em Castelo 2011: 7.

Castelos a Bombordo - FINALx.indd 280 27-03-2013 16:58:07


NAVEGAR À VISTA • 281

autodeterminação das colónias. Até lá, é a retórica e o processo de assimilação con-


trolado pelo rigoroso regime do “indigenato”, ainda herdeiro do darwinismo social,
que vigora.
É nesse quadro de darwinismo racial e social, e com a decorrente preocupação em
evitar as relações interétnicas em larga escala que poderiam comprometer a “essência”
da grei (Omar 1996) civilizadora que se pode entender e que se deve explorar a con-
comitância da retórica que acompanhou o cruzeiro com a da exaltação do papel das
mulheres portuguesas nas colónias.

Ah! Se as mulheres portuguesas acompanhassem os maridos!...No Pôsto mais lon-


gínquo, perdido na selva africana poderia haver uma nota delicada de ternura feminina
e bem portuguesa, vasos com plantas, uma jarra com flores, cortinas nas janelas, uma
toalha garrida, um quadrinho na parede, às refeições um prato que fizesse lembrar a Pátria
distante.77

Esta exaltação ecoa na cuidada cobertura dada pelos organizadores e pelos média às
excursionistas encorajadas a embarcar no Cruzeiro. Dizia Augusto Cunha, em Luanda

(…) traz este cruzeiro alguns dos nosso valores mentais (…) e não quiz também a mulher
portuguesa que tão elevado e patriótico papel tem tido em todos os tempos na nossa His-
tória, deixar de acompanhar neste momento, esta Cruzada Nacionalista de exaltação patri-
ótica, deixar de apontar com o seu nobre exemplo a missão que à mulher portuguêsa cabe,
cada vez mais, na obra da colonização78.

Era ainda a família (e a casa) da nação – aquela que inspirava a sua estrutura, com
as suas mulheres presentes mas menorizadas –, que se impunha na configuração do
império, e o Cruzeiro era mais uma vez o palco onde se encenava e exibia o modelo
conjugal e nacional:

Os enjoados são em número reduzido: em geral senhoras, que já saíram de casa


sugestionadas e que tinha forçosamente que enjoar mesmo que o barco não houvesse
passado da baía de Cascais (…) Desaparecida a primeira frieza natural que dão sem-
pre as primeiras horas de contacto viagem, os excursionistas vivem já numa estreita
camaradagem. Há sorrisos acolhedores e andamos todos empenhados em captar com
a nossa simpatia a simpatia dos outros. Constituem-se grupos por afinidade de pro-

77
“A mulher Portuguesa e as Colónias”, O Sul de Angola (Mossamedes) publicado n’O Mundo Português, N.º 125, Vol. XI, 1935
p. 100.
78
“Cruzeiro de Férias às Colónias”, A Província de Angola, 31 de Agosto de 1935.

Castelos a Bombordo - FINALx.indd 281 27-03-2013 16:58:07


282 • CASTELOS A BOMBORDO

fissão, parentesco ou temperamento. Esboçam -se “flirts”, desenham -se amizades,


dedicações…79

Mas, no mesmo registo, é também através da mulher que se insinuam as críticas:

A menina veio dernier cri e viu uma moda mais exigente. Trazia o cérebro cheio de
ideias de conquista de africano ricaço, e encontrou rapazinhos bem trajados, olhos sonha-
dores (...). A menina julgava-se uma beldade plástica, uma beldade de star, inimitável no
jogo dos quadris, e vê raparigas elegantes, de olhos em braza, corpos coleantes (...). A
Menina vinha plena de ilusões. Irá desiludida. Também nós ao desembarcar julgamo-nos
em terra conquistada (...). A menina pensava vir em missão de estudo. Nada estudou, nem
a fauna, nem a flora, (...) nada de nada. Só comeu, só bebeu, só fumou, só dançou... da sua
viagem uma só coisa bôa resultará: a certeza de que Angola não é aquilo que imaginava:
uma terra bôa para pretos... (...) A Menina do Cruzeiro não deixou saudades...80

Breves conclusões, antes de seguir viagem

Em 1952, depois deste e de muitos outros Cruzeiros oficiais às Colónias, por


altura do IV Congresso Internacional de Turismo Africano em Lourenço Marques,
Marcelo Caetano faz um discurso transparente e já eivado de luso-tropicalismo81. O
exemplo brasileiro – então aclamado pela UNESCO como bom modelo das relações
raciais82 – é apresentado como testemunho da especificidade dos territórios ultrama-
rinos configurados pelas práticas exclusivas da colonização portuguesa: “Temos o
culto da hospitalidade; temos o sentido da fraternidade”. Numa altura em que o colo-
nialismo português se encontrava novamente no pós-guerra sobre a mira crítica que
antecipava os disparos da conferência de Bandung (1955), entende-se que o discurso
de Caetano se dirigia mais aos leaders políticos internacionais do que aos turistas;
mas era atrativo e eficaz em ambos os registos e assim se manteve, como o sabemos,
até aos dias de hoje.

79
Enviado especial do Diário de Notícias, 15 de Agosto de 1935, publicado a 24. Contudo, a presença e atividade feminina
parece ter sido exagerada e romanceada; mais adiante neste mesmo artigo refere-se que “há muitas senhoras, algumas delas ten-
do já dobrado os cinquenta anos”, e na verdade, o próprio Roteiro do Cruzeiro lista apenas duas professoras, seis estudantes
femininas, e trinta e uma mulheres entre as “pessoas de família”. As notas de preparação dos cursos – que evidenciam especial
cuidado em premiar a única concorrente feminina nos concursos pedagógicos – denunciam apenas duas excursionistas do liceu
e uma das escolas comerciais e industriais, embora na entrevista concedida ao Diário da Manhã publicada a de 26 de Julho de
1935, refira com entusiasmo “para cima de trinta!”.
80
“A Menina do Cruzeiro”, por José Licínio Rendeiro. Última Hora, Luanda, 1 de Setembro de 1935.
81
Boletim Geral do Ultramar, N.º 326-327, Vol. XXVIII, 1952, pp. 83-88.
82
UNESCO, 1952, Correio, Agosto Setembro, Vol. V, n.ºs 8 e 9.

Castelos a Bombordo - FINALx.indd 282 27-03-2013 16:58:07


NAVEGAR À VISTA • 283

Perseguir e desmontar as práticas e as retóricas que foram construindo essa alegada


especificidade do colonialismo e do pós-colonialismo português que se veio a crista-
lizar no mote insinuante do luso-tropicalismo, não significa, no entanto, negá-la. Os
cruzeiros às colónias, como este que aqui analisamos já indicia, permitem seguir micros-
copicamente o modo como essa especificidade resulta de configurações particulares
da nação, da família e do género, e de encontros singulares com regimes de controlo
das classes sociais, da juventude e do lazer inspirados noutros nacionalismos imperia-
listas, mas que não deixam de buscar raízes em formas prévias republicanas de cons-
tituição da nação e da pedagogia do sujeito português moderno83. Se, tal como outros,
o turismo português de então pode ser entendido como uma forma de imperialismo,
ele tem que ser visto à luz da nação e do nacionalismo que o produziu.

Bibliografia

AAVV, Catálogo da Exposição Viajar – Viajantes e Turistas à Descoberta de Portugal do Tempo da Primeira
República. 2010, Lisboa, Comissão Nacional para as Comemorações do Centenário da República.
BARANOWSKI, Shelley, 2007, Strength Through Joy: Consumerism and Mass Tourism in the Third Reich.
Cambridge, Cambridge University Press.
BENNET, Tony 1988, “The Exhibitionary Complex”, em New Formations n.º 4, reeditado em BENNETT,
CLIFFORD, ROBINS e URRY in BOSWELL, D. E EVANS, J. Representing the Nation. A Reader. His-
tories, Heritage and Museums. 1999. Londres/ Nova Iorque, Routledge, pp. 332-362.
BRUNER, Edward, 1989, “Of Cannibals, Tourists, and Ethnographers”, Cultural Anthropology, 4 (IV):
438-445.
CAETANO, Marcelo, 1977, Minhas memórias de Salazar. Lisboa, Editorial Verbo.
CASTELO, Cláudia, 1999. ‘O modo português de estar no mundo’: o luso-tropicalismo e a ideologia colo-
nial portuguesa: 1933-1961. Porto, Edições Afrontamento.
– 2011. “Ruy Cinatti: poeta, ‘agrónomo e etnólogo’, instigador de pesquisas em Timor”, Atas do Colóquio
Timor: Missões Científicas e Antropologia Colonial. AHU, 24-25 de Maio.
CAZES, Georges, 1989, Les nouvelles colonies de vacances? Le tourisme international à la conquête du
tiers-monde. Paris, Harmattan.
COHEN, Eric, 1996 (1979), “A Phenomology of Tourist Experiences”, em Yiorgos Apostolopoulos et al.
(orgs.), The Sociology of Tourism. Londres, Routledge.
CORREIA, Luís Miguel, 1992, Paquetes Portugueses. Lisboa, Edições Inapa.
– 2007, Lisboa na rota do mundo: Paquetes de Lisboa. Lisboa, Porto de Lisboa.
FERREIRA, Ana Paula, 2007, “Specificity without Exceptionalism: Towards a Critical Lusophone Postco-
loniality”, em Paulo de Medeiros (org.), Postcolonial Theory and Lusophone Literatures. Utrecht, Uni-
versiteit Utrecht, pp. 21-40.
FERREIRA, H., 2009, “Turismo de cruzeiros. Ousar navegar: a experiência irresistível”, em J. M. Simões e
C. C. Ferreira (orgs.), Turismos de nicho. Motivações, produtos, territórios. CEG, Lisboa, pp. 135-155.

83
Para além disso, e embora aqui não o tenhamos podido testemunhar, acompanhando de forma mais discriminada a cabotagem destes
cruzeiros podemos aperceber-nos das variantes discursivas do próprio colonialismo português, adaptado a cada destino ultramarino.

Castelos a Bombordo - FINALx.indd 283 27-03-2013 16:58:07


284 • CASTELOS A BOMBORDO

FUSTER, Luis Fernández, 1991, Historia General del Turismo de Massas. Madrid, Alianza.
GRABURN, Nelson, 1978, “Tourism: The Sacred Journey”, em Valene Smith, Host and Guests. The
Anthropology of Tourism. Oxford, Basil Blackwell, pp. 21-36.
GRENIER, Alain A. 2009 (2008), “Le tourisme de croisière”,, Téoros, [online]. Disponível em http://
teoros.revues.org/135 (acesso em 26-08-2012).
JAAKSON, Reiner, 2004, “Beyond the tourist bubble? Cruise ship Passengers in Port”, Annals of Tourism
Research, 31 (1): 44-60.
KUIN, Simon, 1993, “A Mocidade Portuguesa nos anos 30: anteprojectos e instauração de uma organiza-
ção paramilitar da juventude”, Análise Social, 28 (122), pp. 555-588.
MacCANNEL, D., 1989 (1973), The Tourist: A New Theory of the Leisure Class. Nova Iorque, Shocken Books.
MARIN, Pierre-Henri, 1989, Les paquebots: ambassadeurs des mers. Paris, Gallimard.
MEDEIROS, Paulo de, 2006, “‘Apontamentos’ para conceptualizar uma Europa pós-colonial”, em Manuela
Ribeiro Sanches (org.), Deslocalizar a Europa: Antropologia, Literatura e História na Pós-Colonialidade.
Lisboa, Cotovia, pp. 339-358.
MITCHELL, T. 1991, Colonizing Egypt. Berkeley, University of California Press.
NASH, Denisson, 1978, “Tourism as a form of imperialism”, em Valene L. Smith (org.), Host and Guests.
The Anthropology of Tourism. Oxford, Basil Blackwell, pp. 33-47.
NETO, Sérgio, 2008, “Representações Imperiais n’O Mundo Português”, em Luís Reis Torgal e Heloisa
Paulo (orgs.), Estados Autoritários e Totalitários e suas Representações. Coimbra, Imprensa da Univer-
sidade de Coimbra, pp. 119-130.
THOMAZ, Omar, 1996, “Do saber colonial ao Luso-tropicalismo: ‘Raça’ e ‘Nação’ nas primeiras décadas
do salazarismo”, em Marcos Chor Maio e Ricardo Ventura Santos (orgs.), Raça, Ciência e Sociedade.
São Paulo, Editora Fiocruz, pp. 85-106.
PINA, Paulo, 1987, Portugal. O Turismo no século XX. Lisboa, Lucidus.
RAMOS do Ó, Jorge, 1999, Os Anos de Ferro. O dispositivo cultural durante a política do espírito 1933-
-1949. Lisboa, Estampa.
ROSAS, F., 1995, “Estado Novo, império e ideologia imperial”, Revista de História das Ideias, 17: 19-32.
SANTOS, Boaventura de Sousa, 2002, “Entre Próspero e Caliban: colonialismo, pós-colonialismo e inter-
-identidade”, Luso-Brazilian Review, 39 (2): 9-43.
SHARPLEY, Richard, 2008 (1994), Tourism, Tourists and Society. Huntingdon, Cambridgeshire, ELM
Publications.
SILVA, Maria Cardeira da, 2005, Outros Trópicos. Novos destinos Turísticos, Novos Terrenos da Antropo-
logia. Lisboa, Livros Horizonte.
SMITH, Valene (org.), 1978, Host and Guests. The Anthropology of Tourism. Oxford, Basil Blackwell.
SMITH, Valene L., 1992, “The Quest in Quest”, Annals of Tourism Research, 19: 1-17.
THUROT, J. e THUROT, G., 1983, “The ideology of class and tourism”, Annals of Tourism Research, 10:
173-89.
TOWNER, J., 1985, “The Grand Tour: A Key phase in the History of Tourism”, Annals of Tourism Research,
12: 297-333.
TURNER, Louis e ASH, John, 1976, The Golden Hordes: International Tourism and the Pleasure Periph-
ery. Nova Iorque, St. Martin’s Press.
URRY, John, 1991, The Tourist Gaze: Leisure and Travel in Contemporary Society. Newbury Park, CA, Sage.
VALE DE ALMEIDA, Miguel, 2000, Um Mar da Cor da Terra: Raça, Cultura e Política da Identidade.
Oeiras: Celta Editora.
YARNAL, Careen M., 2004, “Missing the Boat? A Playfully Serious Look at Group Cruise Tour Experi-
ence”, Leisure Sciences, 21 (3): 349-372.
YARNAL, Careen M. e Deborah KERSTERRER, 2005, “Casting Off – An Exploratorion of Cruise Ship
Space, Group Tour Behaviour, and Social Interaction”, Journal of Travel Research, 43: 368-379.

Castelos a Bombordo - FINALx.indd 284 27-03-2013 16:58:07


AUTORES

Carla Almeida é doutorada em Antropologia Social pelo ISCTE-IUL, docente da Universidade


do Algarve, na Escola Superior de Gestão, Hotelaria e Turismo onde tem lecionado em cursos
e disciplinas diversas, e investigadora do CRIA (Centro em Rede de Investigação em Antro-
pologia). Lecionou também na área do Turismo em planos de cooperação em Moçambique
e S.Tomé e Príncipe. A sua investigação tem sido pautada pela Antropologia do Turismo em
áreas distintas: turismo e espaço rural, turismo e património, bem como o turismo e a área
da museologia. No âmbito do projeto Castelos a Bombordo II (PTDC/ANT/67235/2006)
cruzaram-se alguns dos seus interesses focalizados na ilha de Moçambique. Atualmente cola-
bora com a divisão de Museus da Câmara Municipal de Faro e desenvolve a sua pesquisa
sobre turismo de residência no Algarve.

Romeo Carabelli tem formação em arquitetura e geografia e é membro do CITERES (Cen-


tre Interdisciplinaire CItés, TERritoires, Environnement et Sociétés) da Universidade de
Tours. Foi coordenator do Projecto Mutual Heritage (EuroMed Heritage) e é especialista
em património tendo publicado sobre o património de origem portuguesa em Marrocos.
É diretor da revista EvHe – Evolving Heritage. Foi consultor do projeto Castelos a Bom-
bordo II (PTDC/ANT/67235/2006).

Maria Cardeira da Silva é doutorada pela FCSH-UNL e docente na mesma Faculdade. Até
2011 foi coordenadora da Linha de Investigação Cultura: Práticas, Políticas e Exibições do
CRIA (Centro em Rede de Investigação em Antropologia). Desenvolveu trabalho de campo
relativo aos processos e retóricas de patrimonialização e turismo em zonas de património de
origem portuguesa, particularmente em Marrocos, Mauritânia e com breves incursões no
Senegal (ilha de Gorée) e Irão (Ormuz). Desenvolveu ainda trabalho de pesquisa e reflexão
teórica sobre o património de origem árabe em Portugal. Investigou e publicou também sobre
questões de identidade de género em contextos árabes e islâmicos. Foi Investigadora Res-
ponsável dos projetos Castelos a Bombordo I (POCTI/ ANT / 48269/ 2002) e Castelos a
Bombordo II (PTDC/ANT/67235/2006) e Novos Fluxos e Percursos Turismo, consumo de
património e identidades locais na zona de interação histórica e partilha cultural entre Por-
tugal, Espanha e Marrocos (FEDER).

Castelos a Bombordo - FINALx.indd 285 27-03-2013 16:58:08


286 • CASTELOS A BOMBORDO

Raquel Carvalheira é licenciada pela FCHS-UNL e mestre em Antropologia Social e Cultu-


ral no Instituto de Ciências Sociais da UL. Atualmente é doutoranda no mesmo instituto e
as suas áreas privilegiadas de investigação têm sido a cooperação, o associativismo e o turismo
em contextos árabes (Marrocos e Mauritânia). Tendo trabalhado inicialmente no contexto
mauritano, como bolseira dos projetos Castelos a Bombordo I e II (POCTI/ ANT / 48269/
2002 e PTDC/ANT/67235/2006) sobre movimentos associativos juvenis, presentemente
realiza pesquisa em Essauira, em Marrocos sobre família e associativismo feminino.

Amélia Frazão-Moreira é doutorada em Antropologia (ISCTE-IUL), Professora no Depar-


tamento de Antropologia da FCSH (UNL) e investigadora do CRIA (Centro em Rede de
Investigação em Antropologia). Tem realizado investigação no âmbito da Etnobiologia,
Antropologia do Ambiente e Antropologia da Educação, em contextos portugueses e afri-
canos (Guiné-Bissau, Mauritânia e Moçambique). Os seus domínios de interesse incluem
as relações cultural e historicamente construídas entre os homens e a natureza, perspeti-
vando racionalidades sociais, programas de conservação da biodiversidade e processos de
turistificação, temas que desenvolveu como investigadora da equipa dos projetos Castelos
a Bombordo I e II (POCTI/ ANT / 48269/ 2002 e PTDC/ANT/67235/2006) com especial
incidência na Mauritânia e em Moçambique.

Francisco Freire é doutorado em Antropologia (FCSH-UNL), e Mestre em Antropologia:


Colonialismo e Pós-colonialismo (ISCTE). Tem, desde 2001, centrado a sua investigação
na República Islâmica da Mauritânia, trabalhando o islão político, os processos de recon-
figuração histórica e identitária da população bidan da Mauritânia e mais recentemente,
os processos contemporâneos de articulação das esferas tribais. Foi bolseiro, e depois mem-
bro da equipa dos projetos Castelos a Bombordo I e II (POCTI/ ANT / 48269/ 2002 e
PTDC/ANT/67235/2006). É também investigador do CRIA (Centro em Rede de Investi-
gação em Antropologia).

Francisco Leitão é licenciado e mestre em Antropologia pela FCSH-UNL. Integrou, como


bolseiro, a equipa do projetos Castelos a Bombordo II (PTDC/ANT/67235/2006) no âmbito
do qual desenvolveu trabalho de campo prolongado em Casamance no Senegal. Parte do seu
trabalho de investigação resultou na tese de Mestrado sob o tema Paraísos cruzados: itinerá-
rios simétricos em Carabane, uma ilha turística no Sul do Senegal.

Joana Lucas é doutoranda em Antropologia na FCSH-UNL e bolseira da Fundação para a


Ciência e Tecnologia. Desenvolve, para a sua dissertação, uma investigação sobre represen-
tações coloniais e pós-coloniais e suas implicações na construção de uma identidade nacio-
nal na Mauritânia, com especial enfoque na configuração e promoção de atrações turísticas.
É licenciada em Antropologia pela FCSH-UNL e Mestre em Antropologia “Multicultura-

Castelos a Bombordo - FINALx.indd 286 27-03-2013 16:58:08


NAVEGAR À VISTA • 287

lismo e Identidades” (ISCTE-IUL). Foi bolseira dos projetos Castelos a Bombordo I e II


(POCTI/ ANT / 48269/ 2002 e PTDC/ANT/67235/2006).

Ana Rita Moreira é licenciada em Antropologia (FCSH-UNL) e mestre em Ciências Sociais


(ICS-UL 2006). Desde 2000 que faz investigação sobre as relações institucionais e discursivas
entre Portugal e os países árabes e islâmicos, tendo colaborado, como bolseira e depois como
membro da equipa, dos projetos Castelos a Bombordo I e II (POCTI/ ANT / 48269/ 2002 e
PTDC/ANT/67235/2006). Trabalha atualmente, com vista à realização da dissertação de
Doutoramento (FCSH-UNL), sobre a política externa portuguesa com o “Mundo Árabe”.

Sandra Oliveira é licenciada em Ciências da Comunicação (FCSH-UNL), trabalha no sector


da comunicação desde 1992 e da educação não-formal há uma década. Encontrou no mes-
trado de Antropologia, variante Culturas Visuais, a disciplina que solidificou as aptidões
como investigadora social. Encontra-se neste momento a realizar a sua dissertação de Mes-
trado após o trabalho de campo no arquipélago dos Bijagós, Guiné-Bissau, desenvolvido no
âmbito do projeto, de que foi bolseira: Castelos a Bombordo II (PTDC/ANT/67235/2006).

Paulo Raposo é doutorado em Antropologia e Professor Auxiliar no Departamento de


Antropologia do ISCTE-IUL. Foi presidente do Centro de Estudos de Antropologia Social
(CEAS), e membro fundador da Direção do Centro em Rede de Investigação em Antropo-
logia (CRIA). Realizou várias investigações em Portugal trabalhando sobre temáticas como
o corpo, educação, património, turismo e, sobretudo, na área das performances culturais,
publicando os resultados em livros e outras publicações diversas. Teve formação de ator e
colaborou em diversos trabalhos de natureza performativa. Foi investigador do projeto
Castelos a Bombordo II (PTDC/ANT/67235/2006).

Abdel Wedoud Ould Cheikh é especialista em antropologia histórica no espaço sahariano,


antropologia do Islão e do mundo árabe-muçulmano e antropologia do desenvolvimento,
particularmente em contexto africano, temas sobre os quais tem publicado profusamente.
Foi Professor de Antropologia na Universidade Paul Verlaine, Metz, e é actualmente inves-
tigador no Laboratório d’Anthropologie Sociale du Collège de France/CNRS. É Presidente
do Conselho Científico da Fondation Internationale du Banc D’Arguin (Mauritanie). Foi
consultor dos projetos Castelos a Bombordo I e II (POCTI/ ANT / 48269/ 2002 e PTDC/
ANT/67235/2006.

José Alberto Tavim é doutorado em Estudos Portugueses, (FCSH-UNL) com investigação


e publicações no âmbito Historia dos Judeus Portugueses, Diáspora, Identidade e Memória
e História e Memória entre Minorias. É investigador no Instituto de Investigação Científica
e Tropical e foi membro do projeto Castelos a Bombordo I (POCTI/ ANT / 48269/ 2002).

Castelos a Bombordo - FINALx.indd 287 27-03-2013 16:58:08


Castelos a Bombordo - FINALx.indd 288 27-03-2013 16:58:08

Você também pode gostar