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COORDENAÇÃO
Maria Cardeira da Silva
TÍTULO
Castelos a Bombordo
Etnografias de patrimónios africanos e memórias portuguesas
COORDENAÇÃO
Maria Cardeira da Silva
EDIÇÃO
© Centro em Rede de Investigação em Antropologia – CRIA, 2013
Todos os direitos reservados
PAGINAÇÃO E CAPA
Gráfica 99
IMAGEM DA CAPA
Tabuleiro do jogo “Cruzeiro ao Mundo Português”, © MAJORA
(O editor agradece à MAJORA a autorização para a utilização da imagem)
ISBN
978-989-97179-1-6
IMPRESSÃO
Cafilesa
Fevereiro de 2013
LARGADA . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 9
O sentido dos árabes no nosso sentido. Dos estudos sobre árabes e sobre
muçulmanos em Portugal. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 19
Maria Cardeira da Silva
AUTORES. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 285
A silhueta da nave como transporte de traços culturais tem de alguma forma cor-
poralizado, desde a publicação do Black Atlantic (Gilroy 1993), a fluidez das diásporas.
Os projetos de investigação Castelos a Bombordo (I e II), financiados pela Fundação
para a Ciência e Tecnologia, recorreram ainda no título à mesma metáfora – associando-
-lhe a dos Castelos – para explorar outros trânsitos, de outros colonialismos, noutras
direções e sentidos que não os que Gilroy perseguiu. As investigações centraram-se
primeiro nas rotas que ligam historicamente Portugal a alguns países árabes e islâmi-
cos, balizadas por práticas de cooperação patrimoniais contemporâneas (Marrocos,
Mauritânia, Irão)1; alargaram-se, depois, a outros países africanos (Senegal, Cabo
Verde, Guiné-Bissau, Moçambique) investindo na análise de memórias, nostalgias e
outros recursos patrimoniais, e às implicações dos regimes do turismo que a estes,
muitas vezes, estão associados2.
O objetivo básico das pesquisas era o de permitir uma análise das reconfigurações
étnicas e nacionais encenadas com base em novas figurações identitárias (do que é
português, árabe, muçulmano, africano, diaspórico, nacional) construídas em parceria
através de processos da arqueologia e da patrimonialização espoletados por práticas
atuais de cooperação e diplomacia e/ou lubrificadas pelo turismo internacional. Mas
não investimos em ruminações sobre ruínas (Stoler 2008), nem nos balizámos por ins-
pirações teóricas globais do pós-colonialismo cuja força centrífuga, como já foi dito
(Vale de Almeida 2000, Ferreira 2007, Medeiros 2006), pode irradiar das etnografias
as especificidades do que foi o nosso império e seus encontros. À escala local, aquela
que acabámos por privilegiar, o objetivo de partida era o de entender a gestão quoti-
1
Castelos a Bombordo I. Práticas de monumentalização do passado e discursos de cooperação cultural entre Portugal e os países
árabes e islâmicos (POCTI/ANT/48629/2002). Instituto de Investigação Científica e Tropical, Faculdade de Ciências Sociais e
Humanas da Universidade Nova de Lisboa. Investigadora responsável, Maria Cardeira da Silva.
2
Castelos a Bombordo II. Práticas e Retóricas da Monumentalização do Passado Português, Cooperação Cultural e Turismo em
contextos africanos (PTDC/ANT/67235/2006). Centro em Rede de Investigação em Antropologia, Faculdade de Ciências
Sociais e Humanas da Universidade Nova de Lisboa, Escola Superior de Gestão, Hotelaria e Turismo da Universidade do
Algarve. Investigadora responsável, Maria Cardeira da Silva.
Isto não é um diário de bordo. Nem, em todo o caso, esgota todos os registos e
publicações que resultaram das investigações (e que podem ser consultados em for-
mato panorâmico mais adequado em http://castelos-a-bombordo.tiddlyspot.com e em
http://castelos-a-bombordo- ii.referata.com/). Registamos aqui em livro apenas alguns
dos momentos que nos pareceram significativos da reflexão que resultou da nossa
cabotagem etnográfica.
Preparando a partida, o Paulo Raposo, a Ana Rita Moreira e eu incluímos numa
primeira parte – A Norte do Oriente, a Sul do Ocidente – algumas reflexões cardeais
sobre os sentidos que os outros, que colocamos noutros lugares, têm para nós, aqui.
Assim se faz uma cartografia de expressões etnogenealógicas, académicas, diplomáti-
cas, performativas e outras que nos preparam para a fantasia de alguns dos mapas em
que, de seguida, navegaremos.
Logo a Sul, a segunda parte do livro: Marrocos a Bombordo e a Estibordo.
Foi Mazagão – um dos casos mais monumentais da “Herança patrimonial portu-
guesa em Marrocos” aqui analisada por Romeo Carabelli – que nos levou, a mim e ao
José Alberto Tavim, em deriva etnográfica pelo Atlântico, atrás de “Marrocos no Bra-
sil”, nas festas de Santiago no Amapá. Perseguimos no arquivo e no campo a memória
dos portugueses mazaganistas exilados de Marrocos na sua metadiáspora amazónica,
mas encontrámo-la hoje diluída na memoração simbolicamente mais forte e empode-
rada da diáspora africana, e mesclada com outras vindicações índias e locais. Em Mar-
rocos, José Alberto Tavim encontra também, n’ “O Castelo Abandonado” a mesma
dissipação da memória de portuguesa nas retóricas institucionais e contemporâneas
dos judeus marroquinos, frequentemente diluída na castelhana. Nessas etnogenealo-
gias, mais ou menos legitimadas academicamente, Portugal não é exaltado (muitas
vezes nem referido) por ancorar as origens sefarditas remotas do judaísmo marroquino,
mas sim por acolhê-lo, em segunda diáspora, no seu renascimento moderno: o centro
da comunidade é assim localizado em Marrocos.
O enquadramento monumental do património luso edificado em Marrocos – que,
como Carabelli demonstra só é possível ativar por se tratar de um património do “pas-
sado do passado” – não é proporcionalmente acompanhado pela vivificação da memó-
ria dos portugueses entre os marroquinos (tanto entre os poucos judeus quanto entre
os muitos muçulmanos), a não ser, precisamente, pela imagem mitificada, que frequen-
temente lhes é atribuída, de grandes construtores (imagem que a sul, na Mauritânia,
ainda se confunde com a de judeus e outros gigantes bafur: ver Freire 2011). E é a
mesma diluição num passado remoto, diferido, que permite a instalação e admite, neste
lugares, um diálogo indulgente de instituições e populações locais com o luso-tropicalismo
que ainda preside às retóricas monumentalistas portuguesas de cooperação. Como
resumi noutros lugares (Cardeira da Silva 2011 e 2012), pode argumentar-se que o
regime patrimonial do governo português – junto com projetos de outros agentes, como
os da Fundação Calouste Gulbenkian – são configurados, a nível internacional, por seis
fatores fundamentais os quais, em conjunto, desenham a especificidade de Portugal no
que respeita às relações bilaterais com uma boa parte dos territórios onde permaneceu
histórica e militarmente: 1) o discurso – e a crença – no luso-tropicalismo e a corres-
pondente performance política, 2) a harmonia entre a retórica do luso-tropicalismo e
a oratória da “diversidade criativa” do regime da UNESCO, 3) a vetustez, comparati-
vamente maior face a outros colonialismos, do colonialismo português em muitos dos
contextos em que investe patrimonialmente, 4) o facto de o poder económico e político
de Portugal, em termos globais, ser hoje inócuo e irrelevante, apesar de manter 5) uma
3
E isso mesmo quando não existem alicerces edificados que a sustentem (como acontece, por exemplo, na Mauritânia: Cardei-
ra da Silva 2006).
***
A adoção ou não do acordo ortográfico ficou ao critério dos autores. A transcrição
de vocábulos árabes segue, em traços gerais, a tabela, nalguns casos simplificada, que
Referências
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don: Zed Books
Agradecimentos
Ea
Abdelmajid Kaddouri, Université Hassan II Mohamedia-Casablanca
Abdel Wedoud ould Cheikh, CNRS
Alanna Cant, London School of Economics
Alberto Bargados, Universidade de Barcelona
Alexandre Inglez, CRIA
Angeles Ramirez, U. Autonoma de Madrid
António Araújo, Parque Nacional do Banco de Arguim
António Montenegro, Embaixador de Portugal em Dakar
António Sopa, Arquivo Histórico de Moçambique
Augustin Senghor, Maire de Gorée
Azzedine Karrah, Ministére de la Culture – Fez
Baldéu Chande, Parque Nacional do Limpopo
Dionigi Albera, IDEMEC-MMSH, Aix-en-Provence
Domingos Muala, PNG
Elemine ould Mohamed Baba, Universidade de Nouakchott
Elsa Amaral e Fernando Macedo
Francisco Máximo e Francesca Bruschi
Hermínia Ribeiro, Instituto Marquês de Valle Flôr
Isabel Fiadeiro, Nouakchott
Institut de Gorée
José Horta, Centro de Língua Portuguesa em Dakar
José da Silva Horta, FLUL
Manuela Raminhos, CRIA
Mohamed Lemine, Ouadane
Maria Esperança, Instituto Marquês de Valle Flôr
M.ª José Aurindo, Centro de Estudos Geográficos UL
Museu Etnográfico da Praia (Cabo-Verde)
Noah Cissé, Dakar
Nelson Graburn, Berkeley University
Parque Nacional da Gorongosa
Pierre Bonte, CNRS
PNBA, Direcção e funcionários
Regina Bendix, University of Göttingen, Germany
Existe um número considerável de razões que tornam difícil a reflexão acerca dos
estudos árabes e islâmicos em Portugal. Começar por enunciá-las será, talvez, a melhor
maneira de encetá-la.
Em primeiro lugar deparamos com a fluidez das fronteiras disciplinares do campo.
É, obviamente, impossível encontrar seus limites sem analisar a formação histórica e
a evolução da sua institucionalização. Assumir essa fluidez é supor uma configuração
multidisciplinar essencialista de tipo orientalista. Mas, a julgar pelo que se passa no
panorama nacional contemporâneo, o campo parece, de facto, congregar uma rede
relativamente densa (embora pouco ampla) de investigadores de diferentes disciplinas
e formações, criada, também, ao sabor de circunstâncias e de redes de conhecimento
pessoais, cooptando estudiosos ou interessados fora mesmo do meio académico, de
acordo com o tema específico elegido para os fora ou para as publicações. Contingên-
cias do mesmo tipo, que começam agora a ser sujeitas a análise2, condicionaram tam-
bém a definição histórica de um domínio que, ainda por cima, se mostrou especialmente
vulnerável a apropriações políticas, por via das construções identitárias.
Em segundo lugar, uma primeira abordagem do tema demonstra-nos que este foi
um campo que desde cedo empreendeu as suas próprias resenhas, num processo de
revisitação regular dos seus fundadores e descendentes (Garcia 1959; Machado 1964
e 1967; Farinha 1977 e 1978 e Sidarius 1986). Essa constante auto-aferição genealó-
gica – extremamente útil, para as reflexões aqui alinhavadas – mostra-nos, desde logo,
duas coisas. A primeira é a de que a sua fluidez de fronteiras (disciplinares mas tam-
bém territoriais: que árabes, que Islão?), parece ser compensada pela constante refe-
rência a uma cadeia própria de fundadores e personagens centrais. A segunda é a de
que o encadeamento dessa genealogia se reproduz, afinal, dentro de um leque restrito
1
Este texto foi publicado em 2005 na revista Análise Social n.º 173 pp.781-806. Agradeço aos editores a permissão da sua repu-
blicação, e mantenho a grafia prévia ao acordo ortográfico. Agradeço também o generoso e profícuo diálogo com Abdoolkarim
Vakil em torno deste artigo, bem como os comentários de um referee anónimo, assumindo eu, no entanto, a exclusiva respon-
sabilidade dos argumentos aqui desenvolvidos.
2
Ver, entre outros, Vakil (2000, 2003a e 2003b) e os trabalhos [então] em curso das investigadoras do [agora inexistente] Cen-
tro de Estudos Africanos e Asiáticos do IICT Eva-Maria von Kemnitz sobre o “Arabismo e Orientalismo e Relações entre Portu-
gal e o Norte de África (sécs.XVIII– XX)” e de Ana Rita Moreira sobre “Árabes e Arabismo nas Interpretações de Portugal”.
3
Testemunho disso são, entre outras coisas, os diversos congressos organizados em território nacional, como o IV Congresso de
Estudos Árabes e Islâmicos (1968, ver aavv. 1971) ou, mais tarde, o XI Congresso da União Europeia de Arabistas e Islamologos
(1982, ver AAVV 1986).
4
Reflecti já sobre estas angústias em 1999, e retiro-me aqui, discretamente, do campo dos estudos árabes, muito embora, também
a minha pesquisa, dentro do campo disciplinar da Antropologia, se tenha desenvolvido fundamentalmente em contexto árabe,
mais especificamente em Marrocos. Não recuso, por isso, a possibilidade de objectificação do meu próprio trabalho para uma
análise dos estudos árabes em Portugal que, no entanto, teria que ser muito exaustiva para merecer essa inclusão.
5
Sobretudo Vakil, no que respeita ao discurso e práticas colonialistas relativas às populações muçulmanas: ver Vakil 2003a, 2003b.
6
Outros autores trabalhando sobre os contextos incluídos, como Gilsenan 1990, Street 1990, Mitchell 1988 e, mais modesta-
mente, eu própria (1999), seguem e actualizam o mesmo exercício e argumento nas décadas subsequentes.
7
Segundo Vakil (2003c) “não existe qualquer tradição académica de estudos islâmicos, e mais especificamente, islamológicos,
em Portugal. Arabistas, sim”.
o de que o interesse pelo passado (ou outra área de investigação) relativo aos árabes
não implica, necessariamente, um distanciamento em relação aos discursos hegemó-
nicos sobre nacionalidade e outras estratigrafias identitárias e, muito menos, arabofi-
lia (ver Moreira neste volume). A linha forte a seguir aqui seria a da genealogia de
Herculano, cujo guião historiográfico introduz os árabes, como figurantes, na historia
nacional, sem que, no entanto, isso perturbe a arabofobia patente nos seus romances
(cf. Farinha 1977); seu discípulo David Lopes (1867-1942), que burilando a metodo-
logia e instrumentos científicos do campo e importando as modas do orientalismo
francês, não deixa, por isso, de seguir as teses arianistas anunciadas por Oliveira Mar-
tins (cf. Moreira 2000 [e neste volume]); e, por fim, José Garcia Domingues (1910-
-1989) que, depois de uma vida dedicada ao estudos dos aspectos da história luso-árabe,
reconhece a ausência de impacto arabizante na cultura portuguesa, assumindo-se
mesmo, gracejante, como um arabista anti-árabe (Vakil 2003a). Finalmente, recuar a
Herculano permite-nos alcançar a profundidade histórica de outro ingrediente que
encontraremos frequentemente disseminado em posteriores abordagens relativas aos
árabes em Portugal: aquele que, pode dizer-se, contem as sementes de uma espécie de
“multiculturalismo estratigráfico”, projectando no passado a convivência política de
diferentes culturas e fazendo disso uma mais-valia identitária. Herculano é o primeiro,
de outros que o seguirão, a encarar a possibilidade de uma “invasão” árabe da Penín-
sula como um movimento de ocupação relativamente pacífica, e a sublinhar a origem
comum dos homens do Alcorão e do Evangelho, o que viabilizaria a perspectiva (retro
e prospectiva) de uma possível convivência entre os povos. Em qualquer caso, falar
dos árabes não chega, como pretendeu Adolfo Coelho para o povo, para elevá-los.
Esta é a linha directa, espinha dorsal do retrato que o arabismo em Portugal faz
de si próprio. A revisão do campo disciplinar estrito costuma colocar as suas raízes
institucionais na criação do cargo de “Mestre e Interprete da Língua Arábica” do Reino
de Portugal, oficializado por decreto real em 1795, pela primeira vez ocupado por Fr.
João de Sousa. É de sublinhar, como faz Adel Sidarius (1986:22), que só na época “das
luzes pombalinas”, portanto, depois de abandonadas as últimas praças portuguesas em
Marrocos (de facto, as últimas em território árabe), e com o ímpeto académico e peda-
gógico que levara à criação de cadeiras de estudos orientais por toda a Europa, é que
se institucionalizou o campo e se abandonou o espírito pragmático que, até então,
determinara o conhecimento da aravia (Idem 21). Mas o verdadeiro momento da ins-
titucionalização chegará com David Lopes, cujo domínio da língua lhe permite o refi-
namento do argumento herculaniano que veicula e legitima. David Lopes que, como
dirá ainda Sidarius, integrará “na sua orientação científica, assim como na sua visão
cultural, as três dimensões ‘para-nacionais’ que definem o Portugal Histórico: os ára-
bes na Península, os portugueses em Marrocos e os portugueses no vasto Oriente.”
8
E, no dizer de Sidarius, foi ainda “à sombra da (…) inesquecível figura [de Figanier] que desabrochou, na Faculdade de Letras
de Lisboa, a vocação arabística [de] António Losa, Pedro Cunha e Serra e António Dias Farinha”. (1986: 36)
(1842-1951), cujos perfis mereciam ser estudados para uma compreensão mais etno-
gráfica do fenómeno9.
Mas se essa metaetnografia se mostra necessária para a desconstrução do arabismo
e da sua suposta arabofilia, ela tem que ser colocada num quadro plurisituado que não
desdenhe a formatação dos discursos hegemónicos europeus que também o definiram.
É útil reter, aqui, as hipóteses lançadas para o orientalismo académico português por
Moreira (2000), que tentarei resumir: a) como no resto da Europa, o orientalismo
português não teve que ver com a construção de um Oriente mas sim com a constru-
ção identitária de Portugal; o arabismo português reconhece-se e assume-se como tri-
butário do orientalismo europeu, mas resulta de uma apropriação local, para consumo
interno, de práticas discursivas alheias e, nessa medida, autonomiza-se dos discursos
orientalistas hegemónicos; o arabismo português visa, antes de mais, a europeização
de Portugal, com o sacrifício, isto é a “orientalização”, de algumas das suas regiões
menos desenvolvidas; o arabismo português visa também, como em outros países das
margens da Europa, embora muitas vezes sem sucesso, a “desorientalização”, conse-
quente “europeização” e “capitalização social” dos intelectuais face às camadas popu-
lares em cujo folclore diagnosticam as sobrevivências do árabe.
Assim, longe do quadro colonialista que formatou o orientalismo em França, pro-
tegido dos encarniçamentos provocados pela juventude dos nacionalismos exacerbados
europeus e relativamente distanciado das polémicas do arabismo espanhol10, a retórica
etnogenética portuguesa parece ir buscar aos debates europeus apenas o que lhe inte-
ressa para conformar um argumento que poderia, nalguns casos, sobreviver… sem os
árabes. Mas a verdade é que é a própria prática discursiva europeia orientalista que,
muitas vezes, não o permite: de facto, assiste-se, concomitantemente a uma certa orien-
talização romântica da península. Isso explica a “dupla ambiguidade do Orientalismo
português: simultaneamente consumidor das imagens ocidentais do Oriente e vítima
delas, angustiadamente consciente de ser objecto de outras formas de orientalização”
(Vakil 2000: 91). Mas, se é verdade que podemos encontrar nessa subalternização a
explicação para a inibição do orientalismo ibérico (Moreira 2000), por outra parte, é
também possível detectar um esforço de reciclagem dessa orientalização para a criação
de uma especificidade nacional, um apimentar da “psicologia étnica” que encontramos
9
“Etnografia espontânea” é a designação sugestiva de João Leal (1997) que gostaria de adoptar aqui, para reconhecer um pro-
jecto comum por trás desses diferentes tipos discursivos – literário, político, etnográfico – que argumentaram para a identidade
de um “povo”. Relativamente à criação espontânea de redes de eruditos locais – por exemplo a que se desenvolveu sob o impul-
so de Leite de Vasconcelos – cujo saber era produzido e consumido endogenamente (ver Silva 1997), seria ainda interessante,
também, fazer repousar a análise vertical entre “centro e periferia” sobre outra, mais horizontal, que residisse sobre as redes
locais intra-classistas.
10
Essa relativa distância merece, contudo, maior atenção que aquela que posso aqui dedicar-lhe. Em todo o caso a polémica em
torno da convivenza que parece manter-se hoje acesa em Espanha (ver Fanjul 2000) não parece ter alcançado em Portugal a mes-
ma exuberância que no país vizinho. Ver, também, nota 16.
em Teófilo Braga, ou no fatalismo de Teixeira de Pascoais (Cf. Leal 2000). Esse recurso
ao elemento árabe para procurar uma especificidade nacional numa identidade que é,
antes de tudo, europeia, deve ser também retido. Concomitantemente, e para abrir
mais pistas para a análise do campo e fortalecer o meu argumento a jusante, importa
referir a capitalização dessa mesma orientalização do nosso Ocidente, detectável, a
outros níveis, como no da progressiva, embora ainda incipiente, mercadorização turís-
tica. Sintra, que desde cedo promove a exaltação dos seus elementos mais arabizantes,
para melhor a conformar ao gosto dos viajantes do Grand Tour romântico (cf. Costa
2002), parece ser um bom exemplo disso.
Entretanto, a verdadeira institucionalização da Antropologia segue, com Jorge Dias
(1907-1973), na linha de preocupações etnogenéticas, socorrendo-se, como já ante-
riormente acontecera, da cultura material para traduzir o discurso importado das áreas
culturais. Para isso recorre, também, à Geografia. É ela que explica, em última análise,
a diversidade cultural portuguesa – Portugal Atlântico / Portugal Mediterrânico / Por-
tugal Trasmontano – (Dias 1990a, 1990b, 1990c). Mais uma vez a genealogia académica
é útil: é fácil reconhecer aqui a influência do modelo de Orlando Ribeiro (1911-1997).
Em ambos os casos o elemento árabe se dilui, agora, num “discurso pastoral sobre o
mediterrâneo” (Leal 1999). A cultura aparece ancorada, mais do que nos seus vestígios
arqueológicos, na natureza natural das suas fundações definindo contrastes que se
reflectem na cultura material, nas tecnologias agrícolas e, de forma particular, na arqui-
tectura. A esta vertente determinista alia Jorge Dias a inspiração difusionista da sua
formação germânica, bem como a predilecção evidente pelas culturas do Norte (suevos
e outras tribos germânicas no Portugal atlântico, e lusitanos, de origem pré-histórica,
no Portugal transmontano) que o levam a desconsiderar, na sua etnografia, o Sul, medi-
terrânico (formatado por romanos e árabes). Ao contrário, Orlando Ribeiro (1945)
entende o Mediterrâneo como o berço da civilização, e como lugar privilegiado para a
observação de um raro e profundo equilíbrio ecológico, testemunho de séculos de um
encontro harmonioso entre o homem e a natureza, preservado num mundo em que a
angústia face ao espúrio impulsionava à busca da autenticidade (MacCannell 1989
[1973]). Como refere ainda Leal (1999), se a ideia da materialização de uma utopia
nostálgica não se manifesta expressamente em Orlando Ribeiro, já em Jorge Dias ela
ganha claros contornos no seu sonho manifesto de constituição de uma comunidade
na Serra do Montemuro. Por detrás de um discurso alegadamente científico torna-se
visível o motor de um projecto político e pessoal, que voltaremos a encontrar, mais
tarde, sob novas configurações.
Ao mesmo tempo, também com Jorge Dias se institucionaliza outra vertente da Antro-
pologia: a que se vira para as colónias. E, para o que nos interessa, isso leva-nos à esteira
dos estudos, agora não sobre árabes mas sobre o Islão, fora do contexto da metrópole.
Essa vertente tem sido negligenciada, o que tem reforçado o argumento inicial de
que os estudos árabes-islâmicos se subsumiam, basicamente, nas questões relacionadas
com as origens do povo português e da Nação. E, no entanto, Said lamenta ter deixado
de lado, na sua obra, “as importantes contribuições para o Orientalismo da Alemanha,
da Itália, da Rússia, da Espanha, de Portugal” (2004:19)11. Conheceria, verdadeira-
mente, Said, a produção orientalista portuguesa? Ou pressuporia apenas, necessária e
circularmente para o seu argumento, que um gigante imperialista tinha obrigatoria-
mente que produzir orientalismo? Novamente, a resposta mais fácil é a de conceder
que, ainda que Portugal tivesse uma tradição imperial, as suas relações com os países
árabes/islâmicos foram de um colonialismo – se assim lhe podemos chamar – precoce,
e que não chegou a estimular o tipo de produção antropológica francesa ou inglesa.
Mas, como vimos, o tema da presença e influência lusitanas em terras islamizadas, para
além do seu reduto luso constitui o terceiro painel do tríptico da grandiosa obra de
David Lopes, e a sua influência terá dado frutos, também nesse sentido: Joaquim Figa-
nier, seu discípulo, ingressará na Escola Superior Colonial, depois Instituto de Línguas
Africanas e Orientais, onde leccionará nas décadas de 40 e 50.
Esse é, talvez, o elo menos conhecido na análise dos estudos árabes e islâmicos em
Portugal, e que é necessário recuperar – para além do que foi produzido na estrita
auto-genealogia disciplinar12 – para sustentar o argumento central de que o orienta-
lismo português, onde os árabes e os muçulmanos sempre apareceram como meros
figurantes externos e secundários para a construção da identidade nacional, se circuns-
creveu às paisagens constitutivas do berço da nação.
É verdade que os estudos mais divulgados que foram publicados com referência a
grupos muçulmanos nas colónias – no quadro, por exemplo da Junta de Investigações
do Ultramar (vide, entre outros “O Mundo Árabo-Islâmico e o Ultramar Português”
de José Júlio Gonçalves) – foram de tal modo generalistas e assumidos no seu utilita-
rismo político que é com relutância que os consideramos, à luz das aquisições contem-
porâneas da disciplina, de antropológicos. No entanto, eles constituem um importante
acervo de análise que só agora começa a ser explorado (Vakil 2003a e 2003b), reve-
lando uma face bem mais complexa e ambígua das relações do regime salazarista com
as comunidades muçulmanas, e seus efeitos contemporâneos. Isso coloca-nos na esteira
dos estudos pós-coloniais.
É, também, verdade que a antropologia colonial portuguesa é tardia (Pereira 1986,
1998), condicionada, entre outras coisas, pela Conferência de Bandung que, em 1955,
estigmatizava definitivamente o colonialismo português, ao mesmo tempo que se evi-
11
Itálico meu.
12
Aqui, tal como foi sugerido para a leitura das primeira aproximações etnogenéticas (ver nota 9) impunha-se o alargamento do
campo de análise a toda uma produção extra-académica que melhor esclareceria o elo orientalista do saber-poder.
13
Enquanto isso, outros trabalhos começam, simultaneamente a divulgar os discursos portugueses relativos aos árabes fora do
contexto nacional (ver, por exemplo, Bounou 1998) e a objectificar as retóricas diplomáticas (ver nota 2).
14
Sobre este ponto será interessante comparar a política espanhola colonialista e a sua retórica “hispanotropicalista” proposta
por Gustau Nerín, activada no projecto colonialista em relação a Marrocos. Ver: Tofiño-Quesada 2003 e Jensen 2001.
zarista até aí dominada pelo discurso de certo modo huntingtoniano de Silva Rego no
seu Oriente e Ocidente, que reflectiam a urgência assimilacionista – adivinhada por
Adriano Moreira – que viria a expressar-se na criação de uma nova identidade: a dos
“portugueses muçulmanos”. O testemunho prático dessa inflexão discursiva é o finan-
ciamento por parte das autoridades portuguesas, da peregrinação a Meca a muçulma-
nos da Guiné, a partir de 1959, e de Moçambique, a partir de 1970 (Vakil 2003b).
Não é minha ideia, repito, fazer a história do Orientalismo em Portugal. Mas,
assumindo aqui alguns riscos essencialistas, como os que ensombraram a obra de Said,
importa, pelo menos, referir que, paralelamente à imagem dominante e propagande-
ada pelo regime salazarista, como a tendência negligente ou negativista da “presença
árabe” (atestada, por exemplo, pela análise dos manuais escolares levada a cabo por
Rita Faria, 2001), para além da sua gestão ou reformulação política contextualizada
(evidente na inflexão de discurso relativo aos muçulmanos das colónias a partir, pelo
menos, da década de sessenta) a produção arabista anterior à revolução de Abril de
1974 incluiu ainda obras que, pelo menos na sua retórica discursiva, tentavam, osten-
sivamente, contrariá-la. O caso mais frequentemente (e apropriadamente) sublinhado
é o de Borges Coelho e do seu Portugal na Espanha Árabe15.
Mas, embora esta progressiva crítica pós-saidiana nos obrigue a um reaferimento
da postura dualista que estabelece, de forma essencialista, uma equivalência entre as
aproximações ante / pós- 25 de Abril, e as aproximações arabófobas/ arabófilas, creio
podermos continuar a dizer que os estudos árabes em Portugal estiveram, pelo menos
até ao fim do Estado Novo, condicionados politica e directamente com uma produção
identitária que se esforçava, antes de mais, por ligar atavicamente Portugal à Europa
e que, por isso, negligenciava ostensivamente a “herança árabe” ou, quando não, a
incluía na retórica patriótica da Reconquista.
Após o “ciclo do Império” Portugal esteve dez anos confinado ao seu espaço geo-
político. Depois iniciou-se o “ciclo Europeu”, no momento em que a Europa se con-
vertia numa das três grandes regiões de globalização neoliberal (Santos 2001). O país
foi assim surpreendido, num curto espaço de vinte cinco anos, com a necessidade de
reconstrução de uma nação moderna, concomitantemente com o declínio das lógicas
de desenvolvimento nacional minadas pelos processos transversais da globalização.
Depois do vinte cinco de Abril em Portugal, como em Espanha depois da queda
do Franco, multiplicam-se as investidas nos estudos e no interesse pela herança árabe16.
A rotura, a mudança e a incerteza levavam, então, à procura de modelos de regenera-
15
Do mesmo modo, encontraremos também posições arabofobas no panorama tendencialmente arabofilo do pós-25 de Abril.
16
Em Portugal o fenómeno não teve porém a dimensão que se verificou em Espanha. Em termos académicos, por exemplo, o
debate espoletado pelas teses de Pierre Guichard (1976) relativamente “às origens orientais da sociedade andaluza” nunca ferveu
aqui como ali, separando as posições tradicionalistas de posições orientalizantes.
ção – nacionais e regionais – nos quais podemos detectar semelhanças com a cultura
liberal fundada pelo romantismo oitocentista. No domínio que nos ocupa, as altera-
ções mais evidentes – ou, aquelas que foram politicamente mais exibidas17 – parece-me
a mim terem ocorrido no âmbito da Arqueologia18.
Sabemos que a Arqueologia é, talvez, o campo disciplinar mais eficaz para a sus-
tentabilidade de identidades. Aprendemo-lo com Lowenthal (1985), que lembrou que
o passado era um país estrangeiro construído para nos ajudar a definir o nosso, e com
muitos outros (Kohl 1998, Meskell 2002, Abu el-Haj 1998, Scham 1998, Wilkie e
Bartou 2000) que reflectiram sobre as implicações políticas da arqueologia e as rela-
ções directas entre a disciplina e os nacionalismos na Europa (Díaz-Andreu e Cham-
pion 1996) e em Espanha (Díaz-Andreu 1996)19. Herzfeld (2000) mostra-nos, por
outro lado, como este é o campo disciplinar que mais directamente rivaliza com a
antropologia em termos da produção e difusão de impacto identitário. A Arqueologia
parece garantir a sensação de permanência, tipicidade e materialidade que a Antropo-
logia hoje se empenha em relativizar, precisamente porque é claramente mais efectiva
em legitimar uma certa “visibilidade” ou “invisibilidade” cultural (Rosaldo 1988) num
mundo cada vez mais ávido de autencidade e segurança.
O paradigma deste novo movimento – que alcançou grande êxito mediático – foi,
sem dúvida, Mértola20. Capital de Taifa nos séculos XI e XII, os estratos arqueológicos
dos diferentes períodos romanos, paleocristãos e muçulmanos parecem ali sobrepor-se
harmoniosamente, ilustrando facilmente a possibilidade de uma multiculturalidade
sucessiva e menos conflituosa que a apresentada pela visão heroica salazarista dos
manuais escolares que haviam marcado o imaginário da geração revolucionária.
Se até aqui corri riscos de essencialismo, à procura dos ingredientes fundamentais
desse orientalismo prático que foi o nosso, ficarei, agora, mais vulnerável ainda.
Centrar-me-ei exclusivamente, daqui para a frente, sobre aquilo que designarei como
17
Lamento ter que deixar aqui de fora toda a reflexão sobre outras áreas do conhecimento nomeadamente no âmbito da Histó-
ria da Expansão Portuguesa, que não poderia aqui dominar, mas que mereciam estudo complementar para uma análise mais
completa.
18
Kohl (1998) refere a especificidade do caso espanhol em que o desenvolvimento da arqueologia não ocorreu como em França
e Inglaterra durante a expansão imperial ou, como na Alemanha, associada a aspirações imperiais, mas antes ligada à reformatação
da identidade nacional na sequência da perda do seu império Latino-Americano e todas as suas possessões no século XIX. Em ter-
mo genéricos, e tal como aconteceu em Portugal, os vestígios islâmicos foram negligenciados pela arqueologia nacionalista. No
período pós-Franco assistiu-se à descentralização da prática disciplinar com o desenvolvimento de arqueologias regionais imple-
mentadas nas províncias autónomas. Também aqui, a análise comparativa entre o caso português e espanhol pode ser frutífera.
19
É interessante notar que a esse nível encontramos, quiçá, resquícios do prosseguimento de uma certa orientalização da arque-
ologia portuguesa. Veja-se o caso de Boone e Benco (1999) que, referindo-se num artigo internacional sobre a arqueologia islâ-
mica, a Alcaria Longa, a escassos quilómetros de Mértola, não mencionam o trabalho e conclusões, incontornáveis para a
matéria em discussão, do Campo Arqueológico de Mértola…
20
Não posso desenvolver aqui o itinerário das diferentes escavações arqueológicas em zonas de povoamento árabe ou do período
islâmico em Portugal, a primeira das quais foi (premonitoriamente, se nos lembrarmos da mais valia contemporânea da herança ára-
be, também, para o turismo) a do campo de Vila Moura, no Algarve: escavações dirigidas por José Luis de Matos, nos anos setenta.
Embora com contornos políticos diversos, a utopia comunitária que Jorge Dias
ambicionara na Serra de Montemuro e que se adivinhara no fascínio de Orlando Ribeiro
pela Arrábida, é aqui cumprida. Mais do que isso vai ganhando aparato institucional
e apoio político:
(…) não poderíamos imaginar isto sem o 25 de Abril. (…). Aqui, o acaso de ter vindo
uma equipa mais completa, o acaso também do próprio presidente da Câmara, na altura o
Serrão Martins, ser meu aluno em Letras (…) conseguiu dinamizar também por aí, um des-
pertar de curiosidades. (…) Desde o início foi obviamente um projecto político, por causa
da reforma agrária em todo o Alentejo. 23
21
Negligenciarei, por isso, outros campos de estudo que não os da História e da Arqueologia bem como outros casos de patri-
monialização tão importantes como o de Silves, cuja análise seria imprescindível para uma perspectiva abrangente e mais consis-
tente do fenómeno.
22
Para com quem tenho – como muitos da minha geração que trabalham sobre contextos directa ou indirectamente relacionados
com os árabes – uma dívida pessoal imensa.
23
Cláudio Torres em entrevista realizada no âmbito do projecto que coordenei, entre 1999-2001:“Novos Fluxos e Percursos. Turismo,
consumo de património e identidades locais na zona de interacção histórica e partilha cultural entre Portugal, Espanha e Marrocos”.
Acção Piloto de Cooperação Portugal/ Espanha / Marrocos. Ordenamento do território e património cultural. Art.10 FEDER.
Até ao fim do Estado Novo as elites intelectuais operavam a partir dos grandes
centros urbanos, tentando por vezes desesperadamente mostrar a sua utilidade ao
regime, orientalizando o povo e o campo, para europeizar a nação. Nesse processo
captavam, como vimos, as elites locais, que assim se densificavam e disseminavam o
saber institucionalizado, ao mesmo tempo que, localmente, se capitalizavam social-
mente. Agora, depois da Revolução do 25 de Abril, as elites intelectuais, oriundas
ainda dos grandes centros urbanos mas de cunho político revolucionário, prosseguem
ainda a táctica da orientalização do Sul, mas com outros meios – abandonam os
grandes centros e estabelecem-se localmente, com equipas de discípulos e agentes
locais de desenvolvimento – e, também, com outros fins: os da produção de identi-
dades locais e não nacionais, com vista a à “dignidade regional e ao desenvolvimento
local”.
Embora sinuoso, será interessante, aqui, novo desvio pela antropologia – cujo inte-
resse pelos árabes se manteve, nas vésperas da revolução e no pós-25 de Abril, residual,
e diluída no debate relativo à Antropologia do Mediterrâneo. Retomando a análise de
João Leal sobre o mapeamento mediterrânico de Portugal, encontraremos, no início
da década de setenta, pela mão de José Cutileiro (de formação oxfordiana), um dis-
curso contra-pastoral, a perspectiva ácida de um Alentejo mediterrânico profundamente
estratificado e marcado pela injustiça social. Longe das preocupações etnogenealogicas
dos seus antecessores, Cutileiro toma Vila Velha (heterónimo) como “um microcosmos
social e político do Portugal de Salazar” (Leal 1999:28). Estamos, ao mesmo tempo,
perante um Alentejo que se pode, em última análise confundir, com um Norte de Africa
oprimido, com o qual partilha a área cultural24. Este desvio é importante para lembrar
a importância do Alentejo nalgum imaginário político revolucionário e para melhor
compreender a capacidade atractiva do símbolo Mértola no pós-25 de Abril. Em Mér-
tola desenterrava-se a “civilização do silêncio” a que Borges Coelho havia, timidamente,
dado voz (1972)
(…) havia de alguma forma esse paralelismo entre uma época esquecida e as comu-
nidades esquecidas da serra deste interior alentejano. Foi portanto por aí que se começou,
tentando encontrar entre umas e outras, entre aquilo que subsistiu dessas velhas comu-
nidades, dessas culturas...do interior e daquilo que era o legado mediterrânico, tentar
encontrar os tais prolongamentos de longa duração, que vêm desde o período islâmico...
Mas, obviamente, não só desde o período islâmico, são-lhe anteriores, mas aquilo que
24
Levando ainda mais longe o desvio no seio da Antropologia, encontraríamos, mais tarde, a crítica de João Pina-Cabral (1989)
à ideia de área cultural mediterrânica como categoria de comparação regional. Por seu turno, o seu desejo de demarcação dos
estudos comparativos da Europa do Sul em relação ao Mediterrâneo islâmico pode ser, segundo Horden e Purcell, interpretado
como uma espécie de “Orientalismo” (2002:487). Mas, quanto a mim, essa interpretação da crítica de Pina-Cabral releva de um
fundamentalismo saidiano nihilista.
nos interessava num primeiro momento foi de facto a época islâmica.” diz Santiago
Macias25.
Nós não estamos a fazer uma grande separação do Islão porque é o Mediterrâneo. Nós
cada vez mais tendemos a chamar-nos mediterrânicas, civilizações mediterrânicas. Não há
separação entre o paleocristão e, isso estamos aqui a constatar agora, entre o paleocristão
e o Islão. Continuam, são os mesmos, que lentamente se convertem, lentamente vão ficando
muçulmanos. Primeiro ficam hereges, primeiro são heréticos, são monofisitas, ou vários
desses clubes cristãos já heréticos, e depois passam ao Islão, o que é normal nessa época.
(…) Não tem nada a ver com guerras nem com conquistas. Tem a ver com um acto imenso,
um mar enorme de civilizações que é o Mediterrâneo, que nessa altura fala árabe26.
Cláudio Torres personifica a nova tendência que redignifica a imagem dos árabes
no percurso nacional. Ele devolve, de facto, aos árabes o seu protagonismo na Histó-
ria. Mas é importante não esquecer que, aquilo a que assistimos é ainda um processo
de figuração onde se faz apelo aos árabes e muçulmanos para a produção identitária
nacional face à Europa, ou regional face às elites urbanas europeizadas. Os árabes apa-
recem, afinal, novamente, como elemento reactivador das raízes civilizacionais do Sul
de Portugal, agora, como em Orlando Ribeiro27, mediterrânicas:
25
Santiago Macias, historiador e ex-aluno de Torres, comissário de várias exposições, autor e co-autor de diversas
publicações e catálogos e membro do Campo Arqueológico de Mértola em entrevista realizada no âmbito do projecto
mencionado na nota 23.
26
Cláudio Torres em entrevista realizada no âmbito do projecto mencionado na nota 23
27
No entanto, adverte Cláudio Torres, os laços que unem os dois lados do estreito de Gibraltar são “laços (…) bem mais antigos
que possíveis interferências provocadas pelas invasões de 711, não sendo de admitir, como [Orlando Ribeiro] defendeu, que estes
e outros elementos comuns sejam apenas o resultado da colonização de Berberes montanheiros” (1987:87)
Depois de um aparente hiato histórico em que a Hispania goda se vira para si própria,
o surgimento do al Andaluz [de que o Garb faz parte] é como o regressar ao velho seio
mediterrânico, sob a chancela dos seus antigos e prestigiados esteios intelectuais. (Torres
1992:363)
28
O êxito de Mértola nas décadas seguintes dever-se-á, também, à sua capacidade de adequação e conformidade com os mode-
los e directivas europeias relativas ao “desenvolvimento sustentável” e ao “turismo cultural como forma de desenvolvimento
regional” (ver Coelho 2002:41). Ver também nota 29.
29
Em 1997, C. Torres foi nomeado Comissário do Comité do Património Mundial da UNESCO, cargo do qual se demitirá, sem
explicações, mas provavelmente na sequência da demissão do Ministro da Cultura que o havia proposto.
30
É, também, importante referir a importância da mediatização de Mértola e da sua eventual conformidade ao processo medi-
ático de gatekeeping, para a captação de financiamentos institucionais que continuam a assegurar, em larga medida, a viabilidade
do Campo Arqueológico.
O mundo civilizacional do Mediterrâneo não tem roturas. (…). O próprio mundo reli-
gioso era muito confuso, a gente encontra com dificuldade fronteiras nítidas entre o cristia-
nismo, o judaísmo e o mundo islâmico. São muito parecidos. Os rituais são todos nos mesmos
locais...enterram-se ao lado uns dos outros, e é difícil, encontrar, muitas vezes, em épocas mais
antigas grandes linhas de...de rotura. E isso é que é realmente o interessante, que historica-
mente vamos encontrando não só justificações, como provas históricas para ir a pouco e pouco
objectivamente encontrar dinâmicas de interacção, de interajuda, e de solidariedade. 31
31
Cláudio Torres em entrevista realizada no âmbito do projecto mencionado na nota 23.
32
Ver nota 23.
33
Não faltaram, inclusivamente gracejos, por parte de alguns, de que, caso não obtivessem apoio português destruíram o patri-
mónio, como os taliban haviam feito aos budas (ameaçando, ironicamente, com a devolução de uma imagem étnica negativa dos
muçulmanos).
34
Isto complexifica, ao nível local e regional, o silenciamento que Tiesler refere em termos políticos, mediáticos e turísticos em
relação à suposta incorporação dos árabes na história e na identidade portuguesa (ver Tiesler 2000).
35
Importa voltar a referir, embora aqui não o possa analisar, a importância e proliferação de outros centros de estudos regionais
e locais ou projectos de investigação incentivados por organismos locais dedicados aos árabes, que acompanharam o processo.
36
E, ao mesmo tempo, também transnacionais. Referirei, a título de exemplo, o roteiro mediatizado das “Terras da Moura Encan-
tada”, inserido no projecto “Museu sem Fronteiras” que “concebe o espaço euromediterrênico como um imenso ‘museu sem
fronteiras’ que o público poderá visitar” (DGT 1997). Pretende promover-se “o diálogo entre a Europa, o Norte de África e o
Médio Oriente, no espírito das conclusões da Conferência Euromediterrânica (Barcelona 1995)” (Idem).
37
In “Os Caminhos do Gharb” Rede de Centros Históricos de Influência Islâmica no Sul da Península Ibérica e Norte de Mar-
rocos. CCRA. Faro
ção emergiu das suas elites) parece incorporar o discurso hegemónico, e porque conhece
a força de Mértola enquanto símbolo mediatizado da incorporação dos árabes na iden-
tidade portuguesa. O “efeito Mértola” afecta também os media que, ao mesmo tempo,
o multiplicam: um verdadeiro gatekeeping concept no seu sentido original (White
1950). Mértola é evocada quando se fala de árabes, de muçulmanos, de imigrantes,
de património, de passado, de arte, de poesia ou arqueologia, utilizada como eixo de
articulação em dossiers sobre temáticas, espoletados pela guerra, pelo véu ou pelo ter-
rorismo. O seu protagonismo e o seu efeito catalizador permitem exercícios económi-
cos de grande essencialismo culturalista muito próximo do orientalismo clássico.
Mas a verdade é que o protagonismo e a expansão do fenómeno Mértola para
outros domínios que não o da história e da arqueologia, deve-se, também, à relativa
incipiência dos estudos árabes a outros níveis. Assim sendo, para objectivar a promo-
ção do “projecto Mértola”, temos forçosamente que questionarmo-nos sobre a razão
da demissão de outros campos (como a Antropologia) na concorrência para o conhe-
cimento dos contextos árabes e muçulmanos, concorrência que poderia contribuir para
uma imagem menos essencializada do que foi, e do que é hoje, ser árabe ou ser muçul-
mano em diferentes partes do mundo. O que pode ser preocupante, sublinhe-se, não
é a aproximação, a musealização e a patrimonialização empreendida por Mértola de
um passado oprimido, que também faz parte de nós, mas sim os efeitos colaterais do
“efeito Mértola” – o seu protagonismo e impacto mediáticos – na reificação de uma
certa imagem essencialista dos “árabes” e dos “muçulmanos” (essencialismo que chega
a resumir uns nos outros), e a sua apropriação pelas retóricas e paisagens da política
nacional, onde a “Vila Museu” é amiúde visitada.
Na sessão de encerramento dos trabalhos das II Jornadas sobre as “Memórias
Árabe-islâmicas em Portugal” organizadas pela Camara de Comércio e Indústria Árabe/
Portuguesa em Outubro de 2002, o então ministro da Cultura referiu
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Durante toda a segunda metade do século XIX e início do século XX, uma parte da
intelectualidade portuguesa ligada aos sectores liberal e republicano entrega-se a um
trabalho consistente de investigação e divulgação histórica sobre o passado nacional.
Este esforço científico e literário enraíza-se num projecto de criação de uma “cultura
de patriotismo cívico” inaugurado pelos autores românticos do início de oitocentos,
e carburado pelos intelectuais republicanos do final desse século (Ramos 2001). Esta
preocupação em nacionalizar a historiografia e as consciências virá emparelhada com
o desenvolvimento de um novo paradigma que privilegia a história social, “o labor
anónimo do povo” (Maurício 1987: 5). Nas primeiras páginas da História de Portugal,
Alexandre Herculano (1810-1877), referindo-se aos historiadores renascentistas,
escreve:
Mais tarde, com autores como Teófilo Braga (1834-1924) ou Oliveira Martins
(1845-1894), as teses sobre as origens e migrações étnicas europeias, auxiliadas pelo
progresso entusiástico das jovens ciências antropológicas, tomarão a dianteira na fun-
damentação histórica do espírito nacional.
Trataremos nas próximas páginas os diferentes argumentos apresentados naquele
período por uma dezena de intelectuais mais relevantes para identificar as populações
que, ao tempo da primeira batalha medieval entre mouros e cristãos, recebem o “inva-
sor”. Avaliaremos, nos diversos autores, a porosidade dessa fronteira, a congruência
1
Reproduzimos aqui, revisto e aumentado, o terceiro capítulo da nossa tese de mestrado – Árabes e Nação na Periferia da Euro-
pa: de Alexandre Herculano a David Lopes – apresentada em 2006 ao Instituto de Ciências Sociais da Universidade de Lisboa,
sob a orientação dos Professor Doutor José Manuel Sobral e Professora Doutora Maria Cardeira da Silva.
Requeimados pelo sol ardente do Estio ou pelo vento gelado dos invernos rigorosos
das serranias, incapazes de conhecerem a vantagem da ordem e da disciplina, estes homens
rudes combatiam meio nus e desprezavam todas as precauções da guerra. O seu grito de
acometer era um rugido de tigre. Vencidos, nunca se lhes ouvia pedir compaixão; porque,
vencedores, não havia a esperar deles misericórdia. Tais eram os soldados que a Espanha
opunha à mourisma que circundava os árabes. (ibidem: 26)
colectivos que se vinham demarcando desde a instalação dos romanos e cuja separação
se tinha agravado pelo domínio da monarquia visigótica:
A continuidade das invasões [romana e germânica] fez com que a banda guerreira e a
banda agrícola iguais como homens livres (werh-man) se distanciassem, prevalecendo os
homens de armas sobre a decadência da outra classe, que se foi misturando com as popu-
lações vencidas, do colonato romano, os lidi, leude, lazzi ou Lige. (Braga 1909: 24)
Nem a invasão já enfraquecida dos Celtas, na Espanha; nem os Romanos pela sua falta
de número entre os mercenários das suas legiões, nem os Fenícios, pela sua incomunicabi-
lidade semita, se mestiçaram com os Lusitanos, conservando-se, como observaram Frederico
Edwards e Deniker, a raça mais pura da Europa. (Braga 1909: 23)
Nesta tese derradeira, será a “cultura luso-bérica” a associar-se com a “banda agrí-
cola” goda:
O orgulho aristocrático cada vez separava mais a classe guerreira ou senhorial; e a deca-
dência das garantias do antigo homem-livre cada vez sincretizava mais os lites com as popu-
lações lusibéricas, que nunca tinham sido destruídas, nem escravizadas. Era nesta população
numerosa, que procurava a estabilidade territorial e a revivescência das suas garantias (a
fara) que havia de organizar-se a sociedade moderna da Espanha. (ibidem: 25)
2
Entre as obras mais populares destes autores encontram-se Les races et les peuples de la terre (1900), de Deniker, e Des carac-
tères physiologiques des races humaines considérés dans leur rapports avec l’histoire (1829), de Edwards.
3
Apenas cita, contudo, referências mais antigas, como Wilhelm Humboldt (1767-1835), Leibniz (1646–1716), Barthold Georg
Niebuhr (1776-1831) e Martins (1879: 34, 36).
Como a raça berbere, que pôde escapar à contaminação estranha, constituída em peque-
nas tribos independentes e variamente federadas, assim é de crer que teria sido a península,
se tivesse podido libertar-se dos seus conquistadores antes de fazer suas as ideias que eles
lhe ensinaram. (ibidem: 43)
(…) é também aí que a vida da djemâa é mais intensa, e mais pronunciada a resistência
à iniciação europeia. O amor quase religioso da sua língua, o culto pelos seus fueros, são
sentimentos enraizados que ainda em nossos dias a civilização espanhola não pode extin-
guir. (ibidem: 43)
Preponderância ariana
4
Esta característica insubmissa dos povos ibéricos determina, segundo o autor, a renitência não apenas às ideias vindas do Nor-
te, mas também às que chegarão por mar, vindas do Sul (semitas e não semitas) (Martins 1879: 45).
5
Ver, por exemplo, a seguir, Correia Barata sobre o reencontro entre celtiberos e godos, e, mais à frente, Alberto Sampaio sobre
a romanização.
tempos teria sido vencida pelo longo período de contacto com as populações cel-
tiberas e pela transformação imposta pela adaptação a um novo território, o que
teria conduzido à “perda de pureza” dos primeiros, assim mais dispostos a misturar-
-se na amálgama ariana (Barata 1872: 9-10): “Nestas circunstâncias a fusão com
um novo elemento ariano, como era a raça latina, não podia apresentar grandes
obstáculos” (ibidem: 10).
Os iberos, esclarece o autor, não são, como alguns crêem, provenientes de África,
mas arianos que chegaram à Península por essa via. Correia Barata aproxima-se aqui
de uma das teses de Teófilo Braga, afastando-se de Oliveira Martins. As tribos asiáticas
teriam seguido por duas grandes rotas nos seus movimentos migratórios: as costas
Norte e Sul do Mediterrâneo. Ter-se-iam assim mantido durante largos séculos sepa-
radas pelo império romano, ao ponto de não se reconhecerem quando, no século V,
se confrontam na Península sob a forma de celtiberos e godos:
O embate, pois, entre o Sul e o Norte no séc. V, deu-se entre povos inteiramente ini-
migos e que se consideravam absolutamente estranhos; o que não admira, considerando o
longo período durante o qual as migrações se fizeram, e a primeira separação das famílias,
as quais sucessivamente foram substituídas pelos seus descendentes. (Barata 1873: 65)
A tese ligúrica
O domínio romano durou aproximadamente 437 anos; durante este longo tempo a
província, em paz e em relações íntimas com os dominadores, seus parentes próximos, saiu
rapidamente do imobilismo anterior; e fundiu-se na sua civilização, romanizou-se, como
se costuma dizer, por completo. (ibidem: 206)
Nação composta
São como se sabe muito escassos os dados antropológicos seguros que temos com relação
aos antigos habitantes da Lusitânia (romana) e Callaecia; a conclusão a que se chegou é que
desde antiquíssimos tempos se cruzaram ou justapuseram aqui diversas raças; ninguém achou
entre essas, assim como nos tipos modernos da população, o tipo ligur. (Coelho 1890: 155)
No segundo artigo, Adolfo Coelho ataca as teses simplistas sobre a distinção entre
tipos loiros e morenos, a que se faz comummente corresponder uma hierarquia psicoló-
gica, onde o primeiro, o tipo setentrional, é tomado como intelectualmente superior ao
tipo meridional. O caso do poeta Antero de Quental, sobre o qual existem teorias que
relacionam o seu “carácter e inteligência” a um atavismo dos tipos antropológicos do
Norte – de que constituiriam prova suplementar os caracteres físicos exteriores: “alto, de
tez alva, cabelo loiro, olhos azuis” –, fornece o mote para a crítica (Coelho 1897: 59-60).
O argumento de Adolfo Coelho é elaborado no sentido da defesa da mestiçagem, tanto
“somática” como “psíquica”, dos tipos portugueses primitivos (onde se sucedem desde
antanho louros e morenos), e da qual não resulta a justaposição de tipos estanques mas
uma única nação composta. Esta é, no entanto, susceptível de variações regionais:
Admitindo que os árias e os turanios eram no começo o que pretende De Lapouge, que
iberos, berberes e outros quaisquer elementos da população peninsular entram nas duas
categorias étnicas ou em parte ainda numa terceira e juntando-lhe como última categoria
os semitas (judeus e árabes), a panmixia teria feito deles, ao cabo de séculos, mestiços já
pelo lado somático, já pelo psíquico, e no território português formariam uma nação, não
duas nações justapostas, com um só carácter nacional, embora com variantes provinciais,
locais, individuais. (...) tivemos [depois do século XVI] príncipes loiros e de olhos azuis,
mas não se renovaram por isso os tempos de gloriosa iniciativa. (ibidem: 109)
6
“Para o período anterior à formação do condado portucalense (...) não fez mais do que resumir as histórias de Espanha que
ao tempo existiam e longamente haviam tratado do assunto: Lembke, Rosseeuw Saint Hilaire e Romey” (Lopes 1911: 22).
Stephens, Oliveira Martins alerta o autor inglês para um equívoco em que, não obs-
tante, o próprio incorre com frequência:
Igual confusão ao chamar moorish, mouro, ao califado de Córdoba (pág. 13). O califado
dos omíadas destronados de Damasco era genuinamente árabe; e só depois da sua queda, na
fragmentação do domínio político da Espanha muçulmana, houve emiratos mouros, ou mar-
roquinos, até à segunda unificação do império sob os almorávidas; quando pela primeira vez
a Espanha ficou formando uma província do sultanato de Marrocos. (Martins 1893: 327)
“Mouros” lhe chamámos nós, por terem vindo da região que tinha o nome de Mauri-
tânia e hoje tem, em parte, o de Marrocos. Não é bem exacta esta designação: ela compre-
endia não só mouros mas outros povos que combatiam debaixo da mesma bandeira: árabes,
sírios, persas, etc., mas foi consagrada pelos séculos e por isso a usamos. (Lopes 193-: 4)
(…) a oposição mútua destas diferentes colónias nunca foi tão profundamente carac-
terizada nem tão importante como a das colónias do Magrebe, ou de raça berbere, contra
esses mesmos povos rivais. A malevolência, ora latente, ora manifestada em longas e san-
guinolentas guerras entre as tribos asiáticas e africanas, durou até que estas obtiveram um
decisivo triunfo (…)” (Herculano 1875b: 63)
A ideia de uma rivalidade ancestral entre árabes e berberes ganhará eco na histo-
riografia posterior. Pinheiro Chagas, na História de Portugal Popular e Ilustrada (1899),
caracteriza os berberes como populações “naturalmente hostis aos árabes”, o que jus-
tificaria a instabilidade política sob os califados árabes (21). Em David Lopes, por seu
turno, a oposição entre africanos e asiáticos deriva não de um antagonismo natural,
ou de raça, mas de uma afinidade étnica que faz tender ambos os povos para a “hos-
tilidade permanente”. Árabes e berberes partilham “o mesmo espírito individualista,
o mesmo sentimento de independência indómita do seu torrão”, características que o
autor relaciona com a organização social em tribos (Lopes 1928: 392-93).
Semitas e Arianos
7
Para as taxonomias humanas citam-se, entre outros, A. Quatrefages (1810-1892), W. Humboldt (1767-1835), P. Broca (1824-
-1880), G. Cuvier (1769-1832) e J-F. Blumenbach (1752-1840).
Esta tripartição recorrente, bem como muitos dos étimos usados na classificação
de povos antigos e contemporâneos, é inspirada na tradição bíblica da dispersão dos
povos após o Dilúvio, personificada nos três filhos de Noé – Shem, Ham e Japheth
– e nos seus descendentes. A intercepção entre os textos religiosos e os dados das
jovens ciências filológicas e antropológicas é um processo turvo. Numa época em que
se esforça a independência da ciência sobre a religião na explicação do mundo, esta
proximidade é motivo de um certo embaraço, obrigando alguns autores a exercícios
de justificação. Falando para uma plateia de leigos da Sociedade de Jornalistas e Escri-
tores Portugueses, no início da década de 80 do século XIX, Consiglieri Pedroso faz
um preâmbulo onde demarca as novas das velhas teses sobre a história das primeiras
civilizações:
Longe vai o tempo em que se sustentava que nas velhas civilizações da alta Ásia deviam
ver-se as nações primitivas do Globo, e que para além dessa penumbra, estendido como
um véu sobre a história dos imediatos descendentes de Noé, nada mais havia do que as
tradições conservadas na Bíblia, por detrás das quais a seu turno só existia o mundo animal,
ao qual ainda a palavra de Deus não impusera no primeiro homem o seu natural domina-
dor. (Pedroso 1883: 61)
A denominação de caucasiano dada à raça branca não nos parece contudo bem esco-
lhida. Funda-se ela nesta ideia tradicional de terem as primeiras populações habitado o
cume das altas montanhas, tais como o Cáucaso, donde se presumem provenientes os povos
da Europa e de uma parte da Ásia. (...) Ora, depois da separação, não foi nas montanhas
que os povos se estabelecerem: não é nos montes ou no sertão que as nações se civilizam.
Todo o povo que se estabeleceu por conquista em qualquer território, procura naturalmente
as regiões mais férteis, como são as planícies, as margens dos lagos e dos rios, as grandes
bacias hidrográficas. (...) Os montes são sempre um refúgio de foragidos, e nunca estação
de conquistadores. (Barata 1873: 37)
Ora o semita excluía o indo-europeu. São duas organizações antipáticas. São dois grandes
troncos do género humano; não são raças do mesmo tronco ou da mesma família. Quando
as diferenças que se cruzam são originais, o cruzamento é excessivamente difícil; mas quanto
mais próximo é o parentesco das raças tanto mais fácil se torna. Porquê? Porque todas as
influências da selecção natural cooperam para estabelecer aquelas diferenças. É uma diver-
gência devida ao trabalho efectuado por muitos e muitos séculos. Como destruí-lo no curto
espaço de tempo durante o qual, muitas vezes, vive uma nacionalidade? (Barata 1872: 26)
Islamismo e decadência
própria natureza ou como corolário das teses sobre a inferioridade dos semitas. A liga-
ção semita exige, por vezes, esclarecimentos adicionais, uma vez que também o cris-
tianismo é, segundo a cosmologia vigente, de origem semita.
É neste sentido que Oliveira Martins propõe, multiplicando a hierarquia geográfica,
uma distinção entre semitas do Norte – fenícios, assírios, sírios, populações da Meso-
potâmia, Caldeia e Palestina – e semitas do Sul – as populações da Arábia e da Susânia
–, assim valorizando o papel histórico dos primeiros no progresso da civilização indo-
-europeia. O alfabeto, a metalurgia e o cristianismo são contribuições destes povos, que
os indo-europeus puderam reconverter e utilizar no seu desenvolvimento; entre estes,
destaca-se o caso do cristianismo que, inventado pelo judeus, é helenizado para con-
sumo europeu, tornando-se parte integrante da civilização ocidental. Já os semitas do
Sul produziram apenas o islamismo, que nunca reconvertido, mantendo o seu carácter
semítico, se condena a ser apenas “um excelente código para raças inferiores”, acabando
mesmo responsável pela decadência da Pérsia (Martins 1881: 173):
Dessa religião que reúne a grandes requintes de inteligência uma obscuridade moral
singular e um materialismo sem caridade, o berbere ou o tuaregue, o negróide, o negro, só
compreendem e por isso só aceitam a segunda metade, compatível com as suas respectivas
capacidades. (Martins 1879: 120)
(…) quem se negará a ver no islamismo a causa dos rápidos progressos, mas também
da rápida decadência dos árabes? no protestantismo a causa, ou pelo menos uma das cau-
sas da crescente civilização das raças germânicas? no catolicismo ortodoxo e cheio de
fanatismo um dos motivos concorrentes, senão o principal, da decadência dos reinos da
península? (Pedroso 1883: 58).
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PAULO RAPOSO
Introdução
1
Cultura árabe é desde logo um termo muito poroso e complexo no seu uso banalizado quer na visão mediatizada, quer entre
os interlocutores desta pesquisa, contendo múltiplas outras designações que ora incluem ou excluem referenciações étnicas (ára-
bes, mouros), religiosas (muçulmana, islâmica), ou regionais (Magrebe, Próximo Oriente, Médio Oriente, Oriente), ou nacionais
(árabes do Egipto, por exemplo). Optou-se aqui pelo seu largo espetro atendendo à diversidade e polissemia de usos, apesar da
sua antropológica significação étnica de base. Sobre o interesse em Portugal pelos estudos de arabofilia e arabismo veja-se Car-
deira da Silva (2005).
…(a)o fim de muitos séculos, depois de terem sido repelidos, os muçulmanos regres-
saram em massa ao continente europeu, já não como invasores, mas como imigrantes. E,
em ambas as capacidades, o seu contributo tem sido substancial. (…) Tanto no passado
como no presente, o Islão não pode ser simplesmente entendido como o Outro. (Goody
2005: 780)
2
Estamos a falar das recriações históricas observadas em Castro Marim, Alvalade, Vidigueira, Salir, da Noite da Moura Encan-
tada de Cacela Velha, do Festival Islâmico de Mértola, de entrevistas com membros da companhia Viv’arte (a mais importante
companhia portuguesa nesta área), com os protoganistas dos projectos de dança Samira Stela (Al-Ghazalat, Granada), Joana
Saahirah (Cairo), Denise de Carvalho (Faro), Catarina Ribeiro, Sara Naadirah e Yolanda Ribeiro (Lisboa), Petra Pinto e Compa-
nhia Mozarabe (Coimbra), Crys Aisel (East Festival, Lisboa), Regina Nurenahar (Porto), dos projectos musicais de Baltazar Moli-
na (Sintra), Eduardo Ramos (Silves), Abdel Karim Essemble, Al-Caravan, Kamal Al-Nwawi, Mohamed ben Allal e Mostafá
Bakkali (Granada), e ainda com o mediador e produtor cultural em Mértola, Abdallah Khwali (Vidigueira).
sociais envolvidos nesta pesquisa. A linha divisória entre o próximo e o distante, entre
o “mesmo” e o “outro”, adquire uma nova virulência levando em conta os interstícios
das culturas, nações e disciplinas que eclodem nesses itinerários, como bem sugere
Ribeiro Sanches (2005). Deste modo, o lugar de construção das teorias – e já não ape-
nas o seu contexto histórico disciplinar – determinam a sua produção, recepção e
mútua influência, mas também, no caso que aqui se abordará, a geografia das mobili-
dades dos actores sociais envolvidos e a geometria variável do tráfego de ideias e de
modos performativos.
Atentaremos finalmente aos processos de turistificação, de evocação patrimonial
e de fruição performativa objectificadora da cultura que subjazem nos eventos e pro-
jectos aqui apresentados.
Maria Cardeira da Silva (2005 e neste volume) traça uma historiografia possível
da arabofilia e dos estudos árabes e islâmicos em Portugal, sobretudo nos campos dis-
ciplinares específicos mas interpenetráveis da Arqueologia, da História e da Antropo-
logia – ainda que esta última os tenha de algum modo negligenciado. Diz-nos a autora
que a linha forte das primeiras abordagens cruzadas da História e da Antropologia
sublinhavam a tese de inclusão do mundo árabe (e não tanto islâmico) na historiogra-
fia da identidade nacional portuguesa. Mas uma alteração se deu no interesse pelo
arabismo após a implantação da democracia e num provável contraponto à emergên-
cia do país num cenário moderno europeu, parece ter feito reemergir o interesse pela
Arqueologia ligada à presença árabe cujo ápice terá sido o que Cardeira da Silva (idem)
designa por “efeito Mértola” – magma da arabofilia portuguesa, altamente potenciado
por impulsos turistificadores e mediáticos a partir dos anos 90 e pela contaminação
que produziu em outras localidades.
Claúdio Torres, arqueólogo e activista político, foi o grande mentor deste projecto
que, como o próprio confirma, releva sobretudo de uma dinâmica utopista e de interven-
ção fora dos grandes centros urbanos com vista à produção de identidades e de desen-
volvimentos locais. Mértola, no extremo sul alentejano, configurar-se-á como arquétipo
deste modelo de abordagem no qual o arabismo e a arabofilia (mas também o islão) sur-
gem como recursos narrativos para esta visão política da modernidade. E nesse modelo
a emergência de um discurso sobre o potencial multicultural e de tolerância da histórica
presença islâmica no sul da península torna-se ele próprio uma excelente metáfora uto-
pista e romântica para pensar um novo modelo de sociedade no presente:
Mértola abriu caminho para que as regiões norte e sul do país se apercebessem das
vantagens da reabilitação de material arqueológico sempre sustentado por uma promoção
turística do mesmo através da escenificaçao da vida quotidiana em feiras e mercados da
época do Al-Andalus.(Faria 2007: 212)
Salir do Tempo dedicada a comemorar a derrota dos mouros e recriando uma ambi-
ência com inúmeros figurantes e cenários de evocação árabe; finalmente, também
no Algarve, em 2007, e após dois anos de disputa judicial entre o município e um
centro de estudos árabes local, inaugura-se a Casa da Cultura Islâmica e Mediter-
rânica de Silves que “é um equipamento, cuja finalidade é a promoção da cultura,
particularmente a islâmica e a mediterrânica, influências estas que formam a iden-
tidade cultural da cidade de Silves e do seu concelho” como se pode ler no site da
edilidade.
Esta listagem não pretende esgotar todos os exemplos que poderiam ser elen-
cados mas, para o argumento que aqui quero explicitar, a diversidade de modali-
dades acima referida permite relevar o arco de imagens produzidas sobre o mundo
árabe: por um lado, a presença, a derrota e a expulsão dos árabes (mouros) como
focos centrais destas performances; e, por outro, a periférica figuração de carácter
exoticizante do oriente em épocas e tempos históricos onde a presença árabe ou
muçulmana se encontrava já submetida aos efeitos da reconquista cristã. De alguma
maneira, em todas estas manifestações se suspende o tempo ou se constrói um ana-
cronismo histórico para a imagem do árabe cuja representação serve fundamental-
mente, ainda que não da mesma forma em cada evento, como lugar de alteridade
e de exotismo.
Como referia Fabian (1983), a forma como os povos estudados pelos antropó-
logos foram tomados como “objectos” passivos em “diferença” absoluta teve uma
consequência problemática no entendimento do tempo do outro. Esse tempo do
outro foi alvo de um distanciamento que lhe recusou sempre uma contemporanei-
dade efectiva.
Similarmente, o tempo do outro nas performances e representações do mundo
árabe, no universo das recriações históricas e dos projectos de dança e de música
de inspiração e estilo árabe ou oriental em contexto ibérico por mim observadas,
é também de algum modo um tempo suspenso da sua contemporaneidade, e não
apenas de suspensão anacrónica como acima sublinhamos. A construção funda-
mental de narrativas performativas e retóricas “orientalizantes” (cf. Said 2003
[1977]) nestes contextos artísticos investe sobretudo sobre um certo passado árabe
ou oriental, ainda que desta feita não marcados pelo arcaismo ou primitivismo,
mas pelo belo civilizacional tingido pelo exótico cultural, por sugestões de erotismo
ambíguo e por um certo higienismo estético formal na sua exibição. De modo para-
lelo, em Portugal e em Espanha (mas não apenas3) floresceram nas duas últimas
3
Para o contexto americano, veja-se por exemplo Sheila Marie Bock (2005), Sunaina Maira (2008) ou Jennifer Lynn Haynes-
Clark (2010) ou, para o Brasil, Alice Casanova dos Reis (2008).
Todavia, convém ressalvar que para o cenário das recriações históricas em con-
texto português existe uma produção ambígua de representações negativizadas e
positivizadas do outro árabe, mouro, muçulmano, oriental. De facto, por um lado, a
figura do mouro emerge num tom grotesco claramente como candidato à derrota,
como aquele que será colocado no lugar do vencido em qualquer batalha, torneio ou
duelo recriado; esta posição decorre, creio, do confronto de representações de natu-
reza política, ética, moral e religiosa. Dir-se-ia que a posição histórica do mouro, árabe
ou muçulmano serve justamente para evidenciar a fragilidade, fraqueza e a derrota
dos modelos de governação, religiosos e éticos árabes e islâmicos literalmente varri-
dos pela reconquista cristã.
Por outro lado, quando se procura retratar uma ambiência civilizacional e intro-
duzir elementos performáticos como a música, a dança ou certo tipo de acções espec-
taculares – andar de camelo, encantar serpentes, consumir produtos alimentares, ou
recriar ambientes e décors nativos em tendas –, aí intervêm outras categorias, positi-
vizadas, na construção da imagem do oriente. São antes valores emocionais e exotismos
performativos que eclodem e permitem outra condição de possibilidade para estas
figuras e géneros artísticos. E é por isso que, no contexto dos projectos de dança e de
música de inspiração árabe e oriental observados, é claramente visível este enfoque no
belo civilizacional, positivizando a imagem do outro, ainda que manipulando estere-
4
Este processo, todavia, tem mais contornos que merecem ser estudados e que, como vários autores apontam (Martín 2001;
Alcantud 2002; Albert-Llorca & Alcantud 2003; Borreguero 2006; Ybarra 2009; Krom 2009), colocam a figura do mouro
num lugar de destaque que todos desejam algum dia performar e encarnar – muito associado à riqueza de cenários e figurinos
e ao exotismo manifesto. Estes combates entre mouros e cristãos tornam-se, afinal, apropriações locais e regionais que pro-
palam mais retóricas localistas e regionalistas do que a representação imagética do outro. Noutro lugar encetei uma análise
do conhecido Auto da Floripes, realizado no Minho, onde justamente a dinâmica de toda a festa é colocada na performativi-
dade do evento enquanto singularidade local ou complexo regional de autos carolíngios, e não na questão da figura dos mou-
ros (Raposo 1998). Ver também Cardeira da Silva e Tavim, neste volume.
The exotic is the passionate haunting past at the margins of the imperial civilized world.
For the Other to become an Exotic, this threat needs to be tamed, tilted toward the side of
the pleasurable, the disturbingly enjoyable: the erotic. The dangerousness however should
be retained, evoked again and again, as proof of the necessity of colonial civilized domi-
nation. (Savigliano 1995: 81).
(…) mexe com energia sexual e liberta líbido de forma saudável. (Cristina Ribeiro,
entrevista em Lisboa)
Um outro exemplo deste tipo de exotismo pode ser visível no contexto da repre-
sentação dos ciganos pelos não-ciganos, nomeadamente na difusão e apreciação das
suas formas artísticas, a música e a dança, que contradiz a generalizada percepção
ameaçadora da perigosidade com que as famílias ciganas são votadas na larga maioria
dos contextos europeus.5
Este “capital emocional” que permite a existência do outro enquanto expressão
exótica pode ser observado no contexto da presença de “orientalismos” diversos que
se desenvolveram na Europa (e nos EUA) durante o século XIX e XX.6 E pode ainda
ser vislumbrado na sua reemergência durante as últimas décadas do século XX, sobre-
tudo em vários países da Europa, nos EUA e no Brasil.
O movimento romântico – com os estudos orientais e a absorção de estilos
exóticos nas artes – não é porém a ignição única deste fenómeno. Nos Estados
Unidos, por exemplo, mas também no Brasil, os movimentos feministas facilitaram
um consumo de estilos de dança orientais resultado da emancipação da condição
de género (Reis 2008; Haynes-Clark 2010), criando condições necessárias para
uma procura de formas de lazer, de cuidado com o corpo e de auto-valorização
disponibilizados para as mulheres. Este mesmo movimento deu-se em Portugal,
sobretudo associado à exibição da novela brasileira “O Clone” – uma telenovela
produzida em 2001 pela Rede Globo do Brasil e emitida em mais de 53 países,
cuja temática central era a clonagem de seres humanos, mas que retratava o con-
tato entre populações arábico-muçulmanas e o mundo ocidental – dando lugar a
uma explosão de ofertas de cursos de dança do ventre em academias e ginásios.
Nesta novela, diversos momentos de exibição de performances artísticas e domés-
ticas de danças orientais foram decisivas na difusão deste estilo de dança em Por-
tugal, como confirmam as diversas interlocutoras com quem pude falar no quadro
desta investigação.
Tal como defendem os historiadores Edmund Burke III e David Prochaska (2008)
em comentário crítico à abordagem fundadora de Said (1977), a retórica e as nar-
rativas proferidas pelo ocidente – e não apenas pelo mundo imperial britânico –
devem ser pensadas em quadros históricos específicos. E um dos quadros históricos
que estes autores afirmam ter escapado à visão de Said foi justamente a produção
de discursos anti-imperialistas e da teoria feminista nos EUA e na Europa durante
o século XX.
5
Curiosamente, uma das principais teses sobre a difusão da dança do ventre no mundo árabe e na Europa associa-a às gawazze,
ou gawazzi – dançarinas do Egipto (referidas frequentemente também como concubinas) –, representadas como ciganas, expul-
sas do Cairo por volta de 1830 e cujo estilo de dança estaria na base da emergência do raqs sharqi na primeira metade do século
XX, que teria depois, fruto da sua comercialização para turistas e colonos no mundo árabe (sobretudo no Egipto), sido exporta-
da para o mundo ocidental e ali cunhada como belly dance/ dança do ventre. Alguns especialistas apontam este estilo gawazzi
como a base do estilo tribal de dança do ventre que nasceu nos EUA no final dos anos 60, na Califórnia, impulsionado por Jami-
la Salimpour e que ganhou uma presença assinalável nos anos 80 e 90.
6
Aliás, a este nível registe-se a presença de “orientalismos” diversos nas obras de Flaubert, Artaud, Brook, na produção cine-
matográfica de Hollywood, na dança de Martha Graham ou Steve Paxton, para dar apenas alguns exemplos.
All Moors, white, brown, black or Negroes, were usually associated with loads of negative
characteristics; being cruel, greedy, inferior, impulsive, aggressive, pagan, devilish or voluptuous,
and a few positive ones; being daring, strong, hard-working or, sometimes, passionate. […] It
were these negative attributes associated with the Moor figure, argues Mohamed Laamiri, that
made his image “an attractive Other and a popular exotic subject which fired the public ima-
gination by the fantastic stories about the Moors and the Barbary States. (Elaskary 2008: 8)
Belly dance, for example, relays a sad history since, along with danse du ventre, it evokes
the immersion of an art form into a Western culture and its absorption into a male heterose-
xist discourse. Danse du ventre denotes the French colonial conquest of Algeria and Tunisia
as well as other regions of the Middle East, so it is redolent with imperial soldiers’ heterose-
xual pursuit of hedonist fulfillment on colonized subjects’ bodies. (Karayanni 2004: 25)
ceses estacionados no Cairo num bizarro movimento de ventres, estimulada por uma
fantasia sexual e um desejo fantasmagórico do oriente que se multiplica depois numa
produção imagética particular de ampla circulação na colónia e na metrópole – nome-
adamente através de postais de figuras femininas árabes desnudadas e provocantes por
imposição fotográfica, em poses cristalizadas nos seus movimentos tornando-os absur-
damente estáticos, cujo ápice virá a ser a figura do harém, como nos descreve Malek
Alloula (1981).
Porém, para o contexto cipriota, a dança oriental não deverá apenas ser entendida
do ponto de vista da sua exoticização perversa, mas também como um tipo de movi-
mento que potencia claramente outras formas de corporalidade que, de algum modo,
são também modos de resistir ao olhar colonial:
I examine the often elaborate procedures through which Middle Eastern dance (popu-
larly known as belly dance) has been the object of cultural appropriation, manipulated into
complicity by an Orientalist agenda. At the same time, however, this same art form incor-
porates a rare and unyielding potential (or promise) for various kinds of resistances: social,
cultural, sexual. (Karayanni 2004: xii)
7
Entrevista a Baltazar Molina, músico e ex-bailarino português, 2011
ticos. Molina conclui que tudo isso permitiu “unir os árabes para que a sua arte não
se perdesse definitivamente” 8.
Acresce ainda que a importância do cinema, que a partir dos anos 1940 através
da grande indústria de Hollywood exportou e tornou itinerante uma filmografia
musical árabe (sobretudo egípcia), rapidamente fixou ela própria novos códigos,
cânones e modos de apresentação ao nível da dança oriental, impondo-se como “ima-
gem de marca”9. Num filme de 1964, Roustabout, uma bailarina designada por Lit-
tle Egipt, dança com Elvis Presley que, por sua vez, canta uma canção associada à
presença de uma bailarina síria na Exposição Universal de Chicago de 1893. Momen-
tos antes da performance, no filme, ouvimos um apresentador anunciar a entrada da
bailarina que aguarda em biquini à frente da multidão: “She walks, she talks, she cra-
wls on her belly just like a reptile! You’ve just bought a ticket to paradise!” (Bock
2005: 14-15). A analogia entre visão do espectáculo e visão do harém reforça-se e
constrói-se sobre a imagem de um ventre serpenteante evocando o pecado original,
que coloca a figura feminina no limite ambíguo do paraíso luxuriante e do inferno
pecaminoso.
Ora são justamente estas fantasmagorias do desejo e da volúpia mas também do
mistério e do exótico oriental que se propagam no contexto das recriações históricas
em Portugal e Espanha. Digamos que, de uma maneira geral, a figura do mouro é aqui
também suspensa da história, anacrónica apesar de ser convocada para lembrar vitó-
rias ou derrotas que ocorreram na história local, chegando mesmo a perder a tonali-
dade religiosa de muçulmano para se reportar sobretudo a um pastiche cultural sobre
o qual se pode fantasiar conceptualmente sem risco ameaçador.
Assim, notas de grande fixação e cristalização da figura do mouro poder-se-iam
sintetizar da seguinte forma: sempre ligado a uma espécie de semi-nudez ou excesso
de vestuário; enfatizando posturas corporais no limiar da humanidade (deitado ou
sentado no chão, mexendo o ventre e a pélvis de forma marcante) ou na companhia
de animais ameaçadores domesticados (serpentes e camelos); encoberto por véus e
turbantes; quase sempre num contexto musical e de dança; em tendas e espaços semi-
-privados ou em bancas de comerciantes, onde se apela à fruição cinestésica (perfumes,
incensos, sabores, contacto táctil); ricamente ornamentados com elementos coloridos,
brilhantes e metálicos. Estas figurações diluem-se entre um grotesco colonial e uma
exoticização mercadorizada da ordem do desejo e da sensorialidade.
8
Idem.
9
Falamos sobretudo da mudança de figurinos das bailarinas, desnudando-as ou descobrindo os seus corpos na zona abdominal,
na centralidade nos movimentos pélvicos e abdominais que tiveram uma ressonância enorme na crítica e na opinião pública, e
acabaram por cristalizar uma imagem de bailarina oriental que mais tarde Hollywood usou até à exaustão, com figuras como
Mata Hari e Salomé a surgirem como verdadeiros heroínas do celuloide.
(…) es tudo muy superficial, en la calle tienes de tocar mas alto, mejor y en menos
tiempo. Tienes de hacer un show rapido y intenso, pero nadie te escucha con grande aten-
ción. (Abdel Karim, entrevista em Granada)
tas árabes, a imigração, a manipulação mediática das notícias sobre o mundo árabe, o
imperialismo americano, a relação com o ocidente, a globalização ou respostas à crise
financeira com regresso ao sistema padrão do ouro, entre muitos outros, foram sinais
evidentes de uma tentativa de colocar as discussões numa agenda contemporânea. E
essa temporalidade presente apenas a encontrei neste cenário do Festival Islâmico de
Mértola. Porém, desta feita, as sessões e debates eram de muito baixa frequência de
público, contando apenas com a presença de estudiosos ou muçulmanos convertidos.
Foi naquilo que se designou como Noite de Dikra que pudemos encontrar uma plateia
razoável de público não muçulmano e turistas acidentais que assistiam, assim, a esta
“performance ritual”, com curiosidade pelo exotismo muçulmano. Foram também
marcados por uma significativa presença de público os espectáculos de música árabe-
-andaluza de Eduardo Paniagua que, todavia, se iniciou com um grupo de rua de dan-
ças e cantares folclóricos árabes, percorrendo a vila até ao teatro local e com uma
sessão de dança do ventre de alunas de uma escola da região, muito marcada por uma
total “hollywoodização” dos movimentos e mero exercício coreográfico. Diga-se ainda
que o espectáculo musical final, mais “culto” e rigoroso, não deixou de apresentar
uma esbelta bailarina espanhola de dança oriental que acabou por ser a figura central
do espectáculo e a quem o público não deixou de prestar fortes aplausos.
Em suma, é sobretudo na vertente performativa e de uma certa espectacularização
comercial, balizada por uma visão naturalizada da diferença, que o outro se populariza
e se torna acessível. Baltazar Molina dizia em entrevista que a imagem da dança orien-
tal, muito marcada pela sua difusão a ocidente pela visão “hollywoodesca”, acabou
por se difundir e criar adeptas no ocidente que rapidamente se tornaram elas próprias
agentes de divulgação, mas também de releitura, quando mesmo de deformação, do
universo da dança oriental.
Na verdade, a maioria dos interlocutora/es reconheciam a dinâmica performativa
mercantilizada da dança e da música oriental e das recriações históricas. Enquanto
agentes não “autóctones”, com processos de aprendizagem ocidentais anteriores muito
diversificados (dança ou música jazz, contemporânea, africana, clássica, teatro e artes
circenses), estavam também conscientes dos processos de fusão técnica inevitáveis deste
tipo de performances. As escolas que se multiplicaram pelo país, os festivais e eventos
como o East Festival em Lisboa, organizado por Crys Ayal e Filipa Nawhaar, ou em
Coimbra pela tutela de Petra Pinto, bem como a criação da Associação Portuguesa de
Dança Oriental, são dados que evidenciam a popularização desta modalidade perfor-
mativa, mas que se produzem essencialmente em torno de uma leitura essencialmente
espectacularizada – marcada pelo trabalho de coreografia que insere técnicas como
as “meias pontas”, o peso na energia, alongamentos e força, figurinos e adereços vis-
tosos e de cabaret – e, por consequência, afastando-se do improviso emocional, do
Tem sido impossível trazer isso (a dança oriental) de forma genuína e autêntica. Para
se fazer essa ponte teve de se “espremer” e ficar só no movimento. Seria preciso encontrar
o sentimento, a atitude, o uso prático e os significados (parir, relaxar, descontrair, arrefe-
cer) para se chegar perto deste tipo de danças. Mas hoje talvez comece a ser mais fácil viver
esse movimento porque há abertura em termos sociais, há mais liberdade para sentir, menos
castração por preconceitos morais. (Baltazar Molina, entrevista em Lisboa)
Mas, creio, não se trata apenas e de facto de um confronto entre leituras puristas
e híbridas ou de fusão, mas talvez de um interface entre duas realidades que se espe-
lham há demasiados séculos, num itinerário de mútua alteridade. Karayanni (2004)
falava de corporalidades orientais (acrescentemos sonoridades) que, após a dominação
colonial e o seu refluxo pós-colonial, se mantiveram como formas de resistência, per-
mitindo assim que se conservem para além da construção que delas faz o olhar oci-
dental. Por outro lado, a entrega artística, pessoal, emocional e subjectiva que leva
mulheres e homens a se reencontrarem ou a se completarem neste outro lado do espe-
lho, onde dança e música inspiram e transpiram organicamente fluxos de descoberta
de corpos, gestos e sons, constituem-se talvez como uma resiliência quase invisível de
buscas interiores e de construção do self. Ou, como resumia Joana Saahirah, a única
bailarina entrevistada a residir em contexto árabe, quando lhe perguntava sobre o que
a cativava e entusiasmava na dança oriental:
Como bailarina, uma ARTE com um potencial criativo infinito baseada no que é orgâ-
nico e LIVRE. Instrumento de expressão profundo, emocional, sensorial, espiritual. Mais
do que qualquer outro estilo de dança, eis AQUELA que penso ter dado origem a TODOS
os estilos de Dança. Básica e complexa como o respirar, caminhar, parir, nascer e morrer.
(entrevista online, maiúsculas da interlocutora)
Obviamente todos estas relações surgem marcadas pelos processos históricos das
suas emanações e claramente pelos trajectos geográficos das suas agentes. Evoquemos
a obra mestra de Said (2003 [1977]) quando este afirma que os principais dogmas do
orientalismo existiriam hoje na sua forma mais pura nos estudos sobre os árabes e
sobre o Islão:
Curiosamente, boa parte destes dogmas podem ser reencontrados na leitura que o
ocidente tem feito da contemporaneidade árabe e oriental. Desde que em 17 de Dezem-
bro de 2010 Mohammed Bouazizi, um jovem desesperado – técnico informático que
vendia legumes numa praça tunisina – se imolou pelo fogo frente a uma esquadra da
polícia de Sidi Bouzid em Tunes, vários acontecimentos em cadeia se desenrolaram
dando origem àquilo que os média ocidentais classificaram como o despertar do mundo
árabe ou as revoluções árabes. Um quadro particularmente agitado e sob efeito dominó
se alastrou da Tunísia ao Egipto, à Síria, ao Bahrein, a Marrocos, e finalmente ao Iémen
e à Líbia. Não procurarei aqui demorar-me sobre estes distintos conflitos sociais que
geraram um movimento de sucessivas revoluções, quedas de governo, remodelações
forçadas ou repressões musculadas, durante o frenético ano de 2011. Mas importa
sublinhar que estas convulsões sociais tiverem origens diferentes e estão a ter efeitos
muito variados de país para país, tanto mais que existem modelos de governação muito
distintos – monarquias, ditaduras ou democracias liberais de cunho laico ou de cunho
religioso, com elites sunitas ou xiitas, etc. Todavia, uma vez mais este despertar árabe
parece ser de novo cunhado, nomeadamente pelos média ocidentais, à luz de lentes e
modelos cujos referentes relevam do exercício e do pensamento político ocidental,
assumindo-se assim como novas formas de “orientalismo” – projectado agora no pre-
sente e na contemporaneidade, por um lado temível e por outro carente de controlo,
cuja explicitação deverá ser feita a partir do léxico e da exegese ocidental.
Já Eickelman e Anderson (1999) haviam lançado o debate sobre o modo como a
emergência de uma classe média (muçulmana ou não) no mundo árabe, escolarizada
e com acesso à internet, estava a agilizar o crescimento de movimentos sociais, sobre-
tudo através do espaço aberto com novos média alternativos, seguindo o modelo de
Benedict Anderson a propósito do papel da imprensa na reemergência nacionalista no
final do século XIX na Europa. Um outro aspecto que releva desta turbulência social
árabe conecta-se directamente com uma redefinição da relação entre sagrado e pro-
fano, na política e no quadro do Islão, e em particular com a emergência na cena polí-
tica de partidos islâmicos e do debate entre feminismo secular e islâmico (Cardeira da
Silva 2006). Uma etnografia destes movimentos exigirá portanto que não se restrinja
conceptualmente a construção da esfera pública ao domínio de uma racionalidade
secularizada – seguindo o modelo ocidental.
O exercício de ilustração sumária deste fenómeno contemporâneo dos movimen-
tos sociais tem todavia ressonância com a dinâmica representativa do oriente e do
mundo árabe no ocidente. A leitura das mobilizações sociais pelos média ocidentais (e
pela opinião pública) tem sublinhado os contornos universalizantes das dinâmicas
democratizadoras ocidentalizadas que inundam assim as praças árabes ou os traços de
uma emergente modernidade secularizada das mulheres e do seu papel na esfera pública.
Evoco aqui estes aspectos apenas para os confrontar com o “efeito 11/9” e suas seque-
las até ao assassinato de Bin Laden, e que se focaram na produção de uma visão ame-
açadora do árabe mais uma vez decorrente de uma leitura homogeneizadora do Islão.
Em síntese, de um lado uma retórica maniqueísta em torno da delimitação do “eixo
do mal” enquanto instaurador de pânico moral, do outro, uma retórica igualmente
hegemónica em torno da interpretação dos conflitos enquanto universalização da
democracia e da modernidade.
É neste contexto contemporâneo que ainda uma outra modalidade se desenha na
relação ocidente/oriente: os processos migratórios e os de mobilidade cosmopolita,
nomeadamente centrados num fluxo de artistas ou de migrantes árabes que se tornam
artistas em direcção à península ibérica.
10
A migração marroquina, a mais significativa, “remonta ao início do século XX sendo no entanto bastante incipiente e fluido
até aos anos 1970 (…) A partir daí e até aos anos 2000 o fenómeno conhece uma evolução rápida e constante, aumentando o
número de indivíduos que vivem no país e sofrendo alterações na sua constituição: de um universo constituído por homens jovens
solteiros concentrados em algumas zonas do país (Catalunha, Madrid, Andaluzia) passa para uma diversificação de género (um
elemento específico do caso espanhol é a imigração de mulheres – solteiras, casadas e viúvas – com projectos migratórios inde-
pendentes), de idade (Espanha depara-se com uma realidade grave de imigração de menores de idade não acompanhados), de
destinos (os imigrantes marroquinos encontram-se já em todas as Comunidades Autónomas espanholas) e de origens (chegam a
Espanha marroquinos de todas as regiões de Marrocos)”(Faria 2005: 207).
11
Veja-se como constrói o seu perfil no seu blog pessoal (http://kamalnawawi.blogspot.com/)
12
Nascido em Tanger, teve formação musical em buzakhi, baixo e percussão; foi estudante universitário de Informática e Turis-
mo em Granada; pertenceu a vários grupos arabo-andaluzes influenciados pelo sucesso de grupos marroquinos dos anos 1970,
Nass el Ghiwan e Jil. Esteve emigrado em Inglaterra (1998-2002) onde dirigiu um restaurante e depois de regressar a Granada
foi dono de uma sala de espectáculos; nos anos 90 organizou, festivais de música clássica árabe, arabo-andaluza e o Encontro
Hispano-Maghreb durante 5 anos. Faz parte da actual formação dos Al-Caravan e participou em diversas recriações históricas.
13
Leia-se no site de um dos seus grupos o seu perfil (http://www.juanlsanchez.com/jardin/Welcome.html)
Estes itinerários migrantes artísticos devem ser cruzados com um outro itinerário
músical migrante: o legado al-andaluz ou arabo-andaluz criado pelo célebre músico e
musicólogo Ziriab,14 discípulo dos mestres udhistes ou lutistas da escola de Bagdad, de
onde será compelido a partir para Córdova (no ano de 822), passando pelo Egipto e
pela Tunísia onde estudou as músicas locais. O fluxo de exílio e de retorno deste estilo
musical é extremamente curioso e demonstra que o tráfego artístico das tradições musi-
cais orientais foi claramente marcado pelo dinamismo, pela fusão e por interfaces locais,
regionais, nacionais e até intercontinentais. Assim o estilo clássico arabo-andalus está
ligado à partida de Ziriab de Bagdad para o emirato de Córdova, e retornará ao Magrebe
após a expulsão dos árabes da península ibérica constituindo-se, depois, em versões
regionais de fusão consoante o país do Norte de África onde se vier a reactivar. O con-
tributo de Ziriab acabou por permitir a fusão de estilos musicais orientais, sefarditas e
cristãos no contexto regional do Al-Anduluz que posteriormente circularam de regresso
ao Magrebe. Com a reconquista cristã, este contributo foi liminarmente suspenso na
península ibérica durante vários séculos, sendo recuperado apenas nos séculos XIX-XX
quando a imigração árabe regressa à Europa ainda de forma precária, e sobretudo a
partir dos anos 1980, na Andaluzia, com a emergência de grupos árabe-andaluzes. Ou
seja, é um género musical itinerante, e tal como as teorias itinerantes de Said, foi tendo
emanações e reapropriações locais na sua deriva que assim devem relativizar a cristali-
zação da sua identidade e as narrativas de uma pureza e autenticidade inabaláveis ao
longo da história.
Complementarmente, a maior parte dos projectos musicais de tradição clássica
árabe-andalusa observados (quer em Espanha com os músicos acima referidos, com
o andaluz Abdel Karim15 e seu grupo Al-Caravan, ou com o madrileno Eduardo Pania-
gua16 e o seu grupo Ibn Báya Ensemble, quer em Portugal com Eduardo Ramos ou
Baltazar Molina) e que participam em diversos eventos de recriação histórica ou em
14
Seu verdadeiro nome é Abu al-Hasan ‘Ali ibn Nafi’ (789-857). Foi um músico e cantor da corte do emirado de Córdova, onde
fundou um conservatório de música e ficou conhecido pelo nome de Ziriab. Era um erudito em astronomia e geografia e um
poeta de origem pouco conhecida, talvez persa, curdo ou negro africano.
15
Sobre Abdel Karim, de Sevilha, mas residente em Granada, podemos ler no programa do seu grupo Abdel Karim Ensemble:
“En cuanto a su formación académica, realiza sus estudios musicales oficiales en el Conservatorio Superior de Música de Sevilla
en los instrumentos de Flauta de pico y Flauta travesera (1988-1994) asistiendo a posteriores cursos de perfeccionamiento de
técnica e interpretación con profesores como Aldo Abreu, Marcos Volonteiro, Vicente Balseiro, Jorje Karyevsky etc. Se ha for-
mado en el Maqam (modo), Wazn (patrones rítmicos) árabes y técnica e interpretación del Nay con el prestigioso nayati Noureddin
Acha, en Tánger. Ha recibido consejos de Ziyad Qadi Amin, (Ensemble Al-Kindi) considerado el mejor nayati de Siria, del cual
ha recibido un valioso instrumento que emplea en sus conciertos. Cabe destacar que ha sido director y profesor del Aula Muni-
cipal de Música de Aracena. Cuenta con la grabación de diversos programas musicales para television y grabaciones discográficas.
Ha sido el fundador y director de la Muestra de Música Antigua de Aracena (Huelva, 1994 a 1998) así como coordinador de la
I Muestra de Música Antigua de Ubeda y Baeza (Junta de Andalucía). En 1999 funda el grupo “Al-Baraka” (Música Tradicional
de Oriente Medio y El Maghreb), con el que ha ofrecido mas de cincuenta actuaciones en prestigiosos Ciclos y Festivales tanto
en nuestro país como en el extranjero en el año 2000.” Funda depois o grupo Al-Caravan com quem tem realizado inúmeros
concertos e participado em recriações históricas em Portugal e Espanha.
16
Veja-se o seu perfil no site: (http://www.ctv.es/USERS/pneuma/grupo.htm)
17
Estes grupos marroquinos, tal como os de rai moderno argelino, foram responsáveis pela introdução de instrumentos e har-
monizações “ocidentais” (saxofones, guitarras elétricas e baterias), fundindo-se com instrumentos e harmonizações locais, e tive-
ram um importante papel político e de intervenção quer em Marrocos quer na Argélia, desde a década de 1970.
18
Eduardo Ramos define o seu perfil no seu site: http://www.myspace.com/eduardoramosmocarabe.
19
Veja-se o seu site: http://www.baltazarmolina.com.
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ROMEO CARABELLI
Propomos aqui uma leitura das dinâmicas do “fenómeno patrimonial”1 que envol-
vem as heranças arquitetónicas dos portugueses na costa atlântica de Marrocos. Na
apresentação desses processos de patrimonialização procuraremos ter em conta tanto
os laços diretos com o meio físico e social envolvente, quanto as relações que se esta-
belecem a uma escala geográfica e conceptual mais vasta.
A nossa atenção focalizar-se-á, sobretudo, no impacto das construções nos espaços
públicos, tendo em conta a sua dupla presença, por um lado representativa da sua
“visibilidade”, da sua força ostensiva no quadro urbano, mas por outro de ocultação
das alterações a que foram sendo sujeitas: a sua constituição material original e a sua
utilização específica – principalmente militar – emprestam-lhes a inércia inerente à
ilusória falta de maleabilidade das construções imponentes.
Os vestígios portugueses desempenham hoje um papel importante na construção
da autorrepresentação de Marrocos, mas sobretudo na projeção emitida para os estran-
geiros, nomeadamente, os turistas. Esses vestígios têm um valor histórico e simbólico
particular no conjunto do património arquitetónico marroquino sobretudo em virtude
do seu carácter alógeno. Na verdade trata-se de construções produzidas por uma “geo-
grafia colonial espacialmente diferida” (Turco 1988: 184), objetos que, no momento
da sua conceção, não contemplaram qualquer mediação com os locais, sendo, de certa
forma, impostos ao lugar, com vista à sua modificação.
Tendo em conta o período de permanência dos portugueses no atual território de
Marrocos (1415-1769), a sua herança mergulha as origens num passado longínquo
que poderíamos definir como “o passado do passado”. Isso permite situar os confron-
tos históricos – militares, religiosos e sociais – fora da memória imediata e num espaço
percetivo externo aos factos contemporâneos. A distância temporal relativa da colo-
nização portuguesa faz com que a memória recente não retenha lembrança dos por-
tugueses. As arquiteturas luso-marroquinas2, bem como o processo de conquista que
as justificou, são, por isso, um caso interessante para o estudo da integração do patri-
1
Isto é: o conjunto das ações e dos efeitos ligados a um “objeto patrimonial”, tal como ele se apresenta no seu meio.
2
Utilizo o termo composto para indicar a dupla pertença estatutária: certamente portuguesa, irrecusavelmente marroquina.
neo a outras latitudes, onde serão testadas, retidas ou aperfeiçoadas as futuras formas
de dominar o mundo” (Moreira 1989: 119).
O dispositivo litoral português em Marrocos era constituído por portos que não
mantinham relações fortes com o interior e que, por isso, sofria uma evolução quase
independente dos enclaves litorais. De resto, historicamente, e para além do caso dos
enclaves estrangeiros, a antiga influência das cidades litorais sobre o interior do país
foi até aos nossos dias, sempre bastante limitada, situação que viria a inverter-se ape-
nas com os desígnios coloniais do século XX. Nos períodos anteriores À colonização
foram, ao contrário, sobretudo as cidades interiores que, com iniciativas variadas e
sucessivas, projetaram o seu poder sobre a costa.
O processo de patrimonialização
Ocupada pelos espanhóis entre 1912 e 1956, Arzila nunca foi suficientemente
poderosa para poder assumir um papel nacional de primeiro plano, transformando-se,
quando terminou o estatuto internacional de Tanger, numa espécie de satélite da cidade
do Estreito.
A longa permanência portuguesa evidencia-se na estrutura morfológica da cidade,
dado que existem praças intramuros e que a principal de entre elas – a praça Abdellah
Guennoun – é vulgarmente chamada de T’rriro (do português, “terreiro”).3 Para lá
converge um pequeno bairro de estrutura e trama quase regulares. A fortificação da
vila, obra do arquiteto Diogo Boytac, datada do período manuelino, é ainda hoje visí-
vel. Os arquitetos e engenheiros militares tinham a última palavra no que respeitava
a defesa, favorecendo a mobilidade das tropas no interior das praças-fortes: a guarni-
ção devia poder acorrer rapidamente onde fosse necessário e, por causa disso, a largura
3
Segundo Melehi (1983) as denominações topográficas internas da cidadela derivam tradicionalmente do nome de um santo
ou de uma mesquita, de antigas personalidades da medina ou, ainda, das atividades desenvolvidas no lugar. Ao pretender con-
servar as denominações tradicionais, a administração marroquina acaba por introduzir novas, modificando as antigas: denomi-
nações impostas, que os habitantes quase nunca usam.
das ruas de ligação deveria ser ampla e homogénea ao longo de todos os trajetos,
devendo estes ser o mais retos e diretos possível.
Bab Homar, a porta que dá para as terras do interior, está inserida num baluarte
que é tipologicamente posterior à torre de menagem. Este constitui um exemplo dos
primórdios da introdução dos canhões na defesa: as canhoneiras de que os bastiões
eram dotados permitiam aos defensores “bater” todo o território envolvente, numa
época em que esta conceção de defesa era ainda desconhecida. Os muros de defesa
são muito visíveis e têm um peso considerável na imagem da cidade. A cerca está intacta
e a sepultura de um marabuto, o palácio de Raissouli e ainda, depois da construção
do último andar, a silhueta da torre de menagem, abrilhantam o aspeto espetacular da
cidadela junto ao mar.
Hoje, as pedras da muralha encontram-se à vista, sem qualquer reboco. A escolha
deste tipo de restauro, bastante alheio a uma atitude conservadora,4 empresta-lhes
uma fascinante expressividade, resultado do jogo de luzes e sombras que ganham forma
quer com a luz natural, quer com iluminação artificial. Os muros revestem assim uma
função cenográfica e turística, não apenas pela imagem que proporcionam, mas tam-
bém porque funcionam como suporte e pano de fundo à atividade dos restaurantes e
dos cafés que acolhem nas suas imediações, do lado exterior, emoldurando o espaço
público das atividades quotidianas, de lazer ou repouso, comércio ou passeio da comu-
nidade. Um imenso passeio arborizado serve igualmente os cafés e os vendedores
ambulantes que o ocupam, aproveitando a sua sombra.
O mercado subterrâneo que se encontra junto aos muros, a sul de Bab Homar,
retoma o tema arquitetónico do antigo fosso. Foi construído em 1985 e é praticamente
invisível: do nível do chão emerge apenas a cobertura. Este mercado tem a vantagem
de não prejudicar a vista e, logo, a imagem das muralhas, preservando, ao mesmo
tempo, o lugar tradicional do mercado de frutos e legumes extramuros que foi, outrora,
semanal.
A qualidade do espaço intramuros de Arzila explica que ela seja frequentada em
virtude da sua “vida quotidiana” e do seu Festival5 como o referiu já Berriane há mais
de dez anos:
Seja pela profundidade histórica, seja pela vida quotidiana que a Medina – uma das
mais bem conservadas – esconde, ou ainda, pela animação cultural desenvolvida pelos seus
habitantes e eleitos, a verdade é que tudo isso constitui uma importante base para um pro-
duto turístico diversificado, cada vez mais procurado pelo turismo de massas que mostra
4
Hoje é possível ver, nos bastiões e nas muralhas, as pedras nuas, sem a proteção do reboco, o que não acontecia na época por-
tuguesa: por questões de proteção do impacto dos projéteis, as paredes externas eram sempre rebocadas e lisas.
5
Lançado em 1972, e interrompido entre 1995 e 2001, continua até agora com grande sucesso.
Foi o início, o verdadeiro início. O começo de todas as coisas da cidade: todos os ser-
viços, infraestruturas e instalações. (…) Tínhamos criado a Associação Cultural Al Muhit,
a primeira organização não-governamental do país (Ben Aïssa in Fondation du Forum
d’Assilah 2003: 4 6 – tradução da editora).
6
Antigo ministro dos Negócios Estrangeiros e ministro dos Assuntos Culturais (várias vezes entre 1985 e 1992), ex-embaixador
nos EUA, e Presidente do Concelho do Município de Arzila.
7
Mohammed Melehi é um dos representantes das antigas famílias proprietárias de terras agrícolas na região de Arzila. Foi asses-
sor do ministro dos Assuntos Culturais.
8
Denoeux e Gateau descrevem esta associação como “regional”, com uma forte relação com o poder central: oficialmente, os
porta-vozes não têm um papel político instituído, mas os seus laços muito fortes com o poder autorizam-nos a duvidar que, na
realidade, assim seja. Com efeito, algumas destas associações podem ser meros instrumentos de controlo, mais eficazes do que
as antigas formas de regulação social: “A estratégia que consistira, nos anos 1960 e 1970, em apoiar-se nos notáveis rurais, dei-
xou de ser suficiente para assegurar o nível de controlo social e político desejado pelo Palácio” (Denoeux e Gateau 1995: 23).
O novo mundo multipolar exige, dos países e dos povos, o reforço das formas de coo-
peração e afirmação de zonas geográficas de grande interesse estratégico (…). A inaugura-
ção da torre de Arzila foi um ato de confirmação dessa vontade universal (cf. Fundação
Gulbenkian 1995: 7 e 8).
9
E segundo as palavras de José Blanco, então administrador da Fundação Calouste Gulbenkian, “A proposta inicial partiu do
lado marroquino: há já quase 10 anos, Sua Excelência Mohammed Benaissa, na época Ministro da Cultura e hoje, como antes,
amigo de Portugal e amigo pessoal, tomou a iniciativa de se dirigir à Fundação Calouste Gulbenkian. Esta aproximação, que
resulta da vontade iluminada de Sua Majestade o Rei Hassan II, de reafirmar cada vez mais os laços entre os nossos dois países,
recebeu imediatamente o acolhimento positivo da Fundação” (ver Fundação Calouste Gulbenkian 1995)
10
Sob o alto patrocínio da família real e a participação do príncipe que é, agora, o rei Mohamed VI, como convém a um ato
“importante” e “elevado”.
11
Nos últimos anos, contudo, o fenómeno de recuperação da medina de Azamor através da recuperação de muitas casas tradi-
cionais, transformadas em casa de fim-de-semana, vem confirmar a análise aqui desenvolvida: sem um “artifício” (uma pessoa,
agente, instituição ou ator económico que aja em primeiro lugar) a valorização patrimonial é quase impossível. No caso recente
de Azamor, é de destacar, a esse nível, o papel do Ministro das Comunicações, que aqui não podemos seguir.
12
A propósito do Centre d’études et de recherches du patrimoine maroco-lusitanien, ver adiante.
13
Ver adiante. A então Diretora do Centro, que sempre se recusou a utilizar o termo “restauro” para se referir aos trabalhos
empreendidos em Arzila, teria preferido uma série de pequenas operações repartidas sobre o conjunto do património português
em Marrocos, acreditando que isso teria prevenido muitos dos problemas técnicos de que hoje padecem.
14
Segundo informação prestada na Embaixada de Portugal em Rabat em 1997, os responsáveis portugueses pelo projeto de Arzila
não estão totalmente satisfeitos, na medida em que os custos foram demasiado elevados para o retorno obtido. O investimento foi
de 920 milhões de escudos portugueses (cerca de 5 milhões de euros), sendo 10% da responsabilidade da Associação Al Mohuit.
15
Que, por seu turno é a apropriação do nome berbere da localidade pré-existente.
16
Isso é confirmado em Embaixada de Portugal 1985: 24
17
Os trabalhos de recuperação da igreja com vista á sua reutilização religiosa começaram a 4 de Agosto de 1919 (Ricard 1935.
Ver, também, Correia 1923).
18
Faculdade de Arquitetura da Universidade do Porto em colaboração com o IPPAR e o Centro do Património Marroquino-Lusitano,
no quadro de uma Ação Piloto de Cooperação Portugal / Espanha / Marrocos financiada pelo programa FEDER, 2001.
rico. Isso foi realizado muito lenta e discretamente, provavelmente para evitar even-
tuais protestos ou a reclamação de indemnizações por expropriações por parte dos
habitantes.
Estes empreendimentos foram desenvolvidos na expectativa de um aumento sig-
nificativo do fluxo turístico esperado, entre outras coisas, pela construção de uma
marina de recreio cujo pré-projecto foi estabelecido em 1989 (Municipalité d’El Jadida
1990). Este último projeto de valorização encontra-se, no entanto, numa fase de quase
suspensão, não se adivinhando a data e a forma do seu desfecho.
Na segunda metade dos anos noventa assiste-se à chegada de um novo ator patri-
monial que depressa toma protagonismo: o, aqui já mencionado, Centre d’études et
de recherches du patrimoine maroco-lusitanien. Este organismo, que depende do minis-
tério marroquino da Cultura e da Comunicação, foi criado em colaboração com as
autoridades portuguesas, com o objetivo de centralizar as investigações e as ações de
reabilitação e restauro do património português. A sua sede situa-se em AlJadida, para-
doxalmente fora do “bairro português”.
A cooperação institucional baseou-se em laços interministeriais, o que torna a sua
atuação eventualmente mais lenta e menos espetacular do que os projetos desenvolvi-
dos por privados em Arzila, mas lhe confere, no entanto, maior abrangência. O Cen-
tro – criado por decreto de 30 de Janeiro de 1995, embora inaugurado previamente
em 13 de Julho de 1994 – é o resultado mais evidente deste tipo de cooperação. A
inauguração fez-se com pompa e circunstância na presença do ministro da Cultura e
da Comunicação, do governador da província de AlJadida, do embaixador português
em Rabat e, consolidando a sua vertente científica, dos responsáveis do Campo Arque-
ológico de Mértola e da então diretora do Palácio Nacional de Sintra (vila geminada
com AlJadida).
Este Centro foi instituído pelo protocolo de cooperação entre Portugal e Marro-
cos assinado em Lisboa a 24 de Setembro de 1993, que prevê a criação em Al Jadida
de um “departamento de estudos relativos à salvaguarda dos monumentos patrimo-
niais portugueses em Marrocos” (Visite officielle de Sa Majesté le Roi Hassan II au
Portugal, 1993: 59). A sua atividade está sobre a alçada de uma comissão mista que
deve reunir uma vez por ano, alternadamente em cada um dos países. A estrutura que
lhe preside é fortemente orientada para uma arqueologia não intrusiva e restritiva,
focalizando-se na dimensão exclusivamente morfológica e material do património
construído e distanciando-se das dinâmicas da sua valorização. A sua ação, legitimada
pela sua dependência direta dos mais altos níveis do Estado, visa a garantia de uma
integração máxima das ações e atores locais.19
O campo de atuação do Centro de Património Marroquino-Lusitano circunscreve-
-se à herança reconhecida juridicamente enquanto património – tudo aquilo que é
legalmente protegido –, o que o torna relativamente impotente face ao número con-
siderável de demolições efectuadas para além dos limites assim estabelecidos. Dessa
restrição é exemplo a Igreja espanhola, edifício histórico em risco que se encontra no
interior da cidadela e que é referenciado na lista da ICOMOS e do Comité do Patri-
mónio Mundial (UNESCO). Por não ser nem classificada, nem portuguesa, fica fora
da esfera de intervenção do Centro20. A compartimentação de poderes, embora com-
preensível, torna-se excessivamente rígida e constrangedora. Apesar das suas compe-
tências e boa vontade, o Centro sofre limitações operacionais muito fortes: tem funções
de intervenção ao nível local e nacional, mas o seu orçamento é francamente limitado
e não dispõe senão de um poder consultivo. Apesar disso, é preciso reconhecer que
introduziu competência científica e técnica no acompanhamento das intervenções no
património de origem portuguesa, elevando a qualidade dos trabalhos precedentes na
área do restauro.
A primeira iniciativa operacional desta instituição consistiu no inventário conjunto
do património móvel e imóvel, com vista a uma definição efetiva do acervo patrimo-
nial português. O inventário visava a constituição de dossiês individualizados sobre os
diferentes monumentos, que permitissem a sua recuperação e reabilitação, entendida
como revificação “...porque não basta restaurar; é preciso, também reabilitar esses
monumentos, fazê-los reviver” (Zurfluh, 1994: 12 – tradução da editora).
Foi nesse âmbito que, nos anos 1995 e 1996, se iniciaram os trabalhos da muralha
e da igreja de S. Sebastião – edifício que chegou anteriormente a funcionar como sina-
goga. Daí para a frente, esta construção destacar-se-á do conjunto edificado da cidadela
graças ao seu imaculado reboco branco. As antigas grades das janelas – de formas
sugestivas e corroídas pelo sal, o que contribuía para a sua aura romântica e evocava
a relação com o mar – foram substituídas por grades novas e janelas de quadrícula.
Mesmo conhecendo a insuficiência dos meios financeiros e as limitações técnicas da
mão-de-obra local, um caixilho sem interrupção visual teria sido mais eficaz na manu-
tenção do pathos do sítio.
Também a cisterna foi alvo da ação direta do Centro. Todos os objetos que alber-
gava – canhões, fuzis, outro tipo de armas, etc. – foram devidamente inventariados e
classificados. Terminado o inventário, procedeu-se a algumas alterações nas salas con-
19
Entrevista com a então diretora do Centro do Património Marroquino-Lusitano em Setembro de 2005.
20
Entretanto vendida – a investidores privados e estrangeiros – e recuperada para atividade hoteleira, o que denuncia a especu-
lação imobiliária esperada.
21
Entrevista a Azzeddine Karra, diretor do Centro do Património Marroquino-Lusitano até 2007.
22
http://whc.unesco.org/pg.cfm?CID=31&ID_SITE=1058&l=FR consultado em Maio 2007
23
Posição contestada pelo arqueólogo e então diretor do Centro do Património Marroquino-Lusitano, proponente do dossiê de
candidatura.
em Marrocos. A candidatura referia ainda uma confusa ligação entre a África “branca”
e África “negra” e colocava Mazagão no “caminho para a Índia”, sabendo-se que
Mazagão não se inscrevia nessa rota.
É mais que evidente que a situação do património de origem portuguesa em Mar-
rocos está a mudar. Os monumentos restaurados e patrimonializados são cada vez mais
frequentemente retirados do espaço comum e transformados em enclaves. Já subli-
nhámos o fecho da torre de Arzila, da antiga igreja/sinagoga de S. Sebastião em AlJa-
dida e também as restrições de acesso à cobertura da Cisterna e à Igreja da Assunção.
Noutra situação chegou mesmo a tentar fechar-se ao público o acesso ao passadiço das
muralhas de AlJadida24. Limitando-se o acesso a estes bens patrimoniais, cria-se um
paradoxo: ao mesmo tempo que se lhe atribui valor histórico, assiste-se à sua “exclu-
são”, à sua “expulsão” da história. Claro que estas escolhas não implicam má-fé, mas
o efeito colateral do impulso protecionista do património, redunda na transformação
da paisagem urbana numa série de representações tipo “postal ilustrado”, acéticas e
irreais, cujos beneficiários são os turistas, por definição estrangeiros aos lugares em
causa. A produção destes espaços acéticos tem efeitos negativos sobre os habitantes
que deixam de ter a possibilidade de usar os “seus” espaços sem, contudo, beneficia-
rem das vantagens económicas produzidas pelo turismo.
Conclusões
I.
Quisemos aqui sublinhar as linhas de força que transformam a coleção dos bens
culturais de origem portuguesa num conjunto de objetos patrimoniais. O nosso pres-
suposto foi o de uma re-territorialização desses enclaves que, por múltiplas razões, se
reinscrevem hoje no espaço urbano com configurações que derivam das suas caracte-
rísticas territoriais originais. A sua territorialização original fornece memórias materiais
e espaciais organizadas que alimentam os processos de patrimonialização agora em
curso. Na verdade, os objetos patrimoniais luso-marroquinos são fragmentos de ter-
ritório ambíguos: ao mesmo tempo que sofrem as dinâmicas da nação na qual residem
territorialmente, são frequentemente considerados como expressão de interesse aló-
geno, ou mesmo neocolonial.
A questão do restauro e da reabilitação de monumentos com fins patrimoniais
é objeto de numerosos discursos e declarações formais promovidas pelos media. As
24
Ver Carabelli 1999.
25
Um dos exemplos mais evidentes disso é o do relato patrimonial produzido em torno da cidade de Essaouira: todos os produ-
tos que contribuem para a promoção turística da cidade remetem para o seu espaço luso-marroquino, quando ela é de constru-
ção muito mais recente e nada reste da instalação portuguesa, abandonada em 1541. A fundação da atual cidade de Essaouira
data de 1769, após a partida definitiva dos portugueses de Marrocos. A sua estrutura europeia deve-se ao facto de o seu plano
ter sido concebido por um europeu (o francês Theodore Cornut, convertido e, à época, ao serviço do rei de Marrocos) e não, a
qualquer intervenção lusa. Para aumentar a imagem histórica da cidade, foram instalados canhões na Skala – fortificação no lado
marítimo – que evidenciam bem o escudo do rei português.
26
“A ausência de interpretações teóricas capazes de responder de forma efetiva às interrogações relativas a fragmentação da cida-
de e a concomitante dificuldade em construir um percurso explicativo convincente a partir de uma análise comparada, sublinham
a necessidade de explorar novas formas de colocar a questão” (Balbo e Navez Bouchanine 1993:10).
II.
O património é uma construção social que deve a sua existência a fatores culturais.
Mitologias e/ou mitos são, a este nível, referências fundamentais que geram diferenças
de valor entre diferentes edifícios e o passado. É esse diferencial de “valor” que dis-
tingue uma “velha construção” e um edifício patrimonial.
Tivemos a ocasião de realizar um pequeno inquérito junto de alguns estudantes das
cidades de Arzila, Azamor, AlJadida e Safi que, embora sucinto, nos permite, pelo menos,
Bibliografia
27
O inquérito foi aplicado a cerca de trinta estudantes do último ano do liceu mais próximo dos bairros intramuros, com idade
média de 18 anos.
Zakhor
1
Este estudo foi previamente publicado na revista Ellipsis. Journal of the American Portuguese Studies Association, vol. 3, 2005:
39-62, sendo autorizada a sua reedição. Optámos por introduzir aqui pequenas alterações lexicais e alguma actualização, que
pouco alteram o conteúdo. A bibliografia remete para um estado de conhecimento em 2005. Sirva também este artigo como
homenagem a Simon Lévy, secretário-geral da Fondation du Patrimoine Judéo-marocain, director do Musée du Judaisme Maro-
cain, de Casablanca, e professor do Departamento de Espanhol da Faculté de Lettres de Rabat, entretanto falecido.
África. É o caso da erudita obra de Haim Zeev Hirschberg, A History of the Jews of
North Africa, de 1974, e do volume informativo de André Chouraqui, Histoire des
Juifs en Afrique du Nord, de 1985. Se bem que o aparelho crítico do livro de Choura-
qui seja menos imponente, sem dúvida que em ambas as obras se denota o objectivo
escrupuloso de elucidar o público sobre a evolução histórica das comunidades judaicas
da região, tendo como base uma pesquisa aturada em fontes ou obras de probidade
científica. Outros autores são reputados especialistas da História das comunidades
judaicas de Marrocos, per se. Por exemplo, ninguém pode realizar trabalho científico
sobre essas comunidades sem folhear as bem informadas obras de Haim Zafrani, como
Les Juifs du Maroc – Vie sociale, économique et religieuse. Études de Taqqanot et Res-
ponsa, ou Deux mille ans de vie juif au Maroc. Histoire et culture, religion et magie
(Zafrani 1983), entre outras.
Nestes e em outros trabalhos eruditos, o passado português é devidamente men-
cionado, quer no que respeita à contextualização da presença judaica em solo penin-
sular, e na explicação do fenómeno de expulsão e de diáspora para o Norte de África,
quer nas alusões à presença portuguesa nesta região, mormente em termos de posse
de cidades e fortalezas, e sua relação com os judeus. As próprias fontes portuguesas
(publicadas) são utilizadas para elucidar acerca do passado judaico em Marrocos. Mas
é verdade que, a outros níveis, se Portugal não é um “ilustre desconhecido”, é pelo
menos um “ilustre pouco conhecido”. Ali estão os castelos e as cidades da costa aban-
donados, que todos os marroquinos associam de imediato aos “antigos” portugueses,
expulsos pela força do Islão e dos poderes santificados de Marrocos. Mas para além
do restrito plano erudito e do reconhecimento de um património arquitectónico, que
imagens ficaram dos senhores dos castelos e das suas atitudes face aos judeus? E que
percepções restam do meio cultural português entre os judeus que, saindo de Portugal,
acabaram por se estabelecer em Marrocos?
No contexto peninsular, entre esses judeus, o peso da cultura espanhola, ao nível
da língua (o Judeoespañol), dos valores, de elementos fulcrais da cultura como os roman-
ces entoados – para além do interesse pelo que se passava em Espanha – é por de mais
reconhecido, quer pelos eruditos, quer ao nível do “senso comum” dos judeus marro-
quinos (Séphiha 1986; Díaz-Mas 1993, 1994; Dobrinsky 1986; Leibovici 1982).
E no caso de Portugal: qual a importância da língua, da cultura, do interesse pelo
passado português, no contexto da construção de uma identidade judaica marroquina?
Em comunicação intitulada “Quatre siècles plus tard, quelles traces portugaises?”,
Simon Lévy chama a atenção para o facto de a “historiografia popular”, francesa e
colonial, atribuir aos portugueses tudo o que é anterior ao Protectorado (francês e
espanhol), salvo evidentemente as mesquitas. No universo dos judeus marroquinos,
no domínio da linguística – disciplina em que o autor era especialista – os elementos
portugueses, “seguros”, são pouco numerosos, até pelo facto de muitos termos exis-
tirem, em simultâneo, nas línguas portuguesa e castelhana, e da sua paternidade só
poder ser atestada no caso se existirem apenas naquela língua. É o caso da palavra
alfinete (ela própria de origem árabe), que teria originado o “fnita” e suas variantes,
nos meios judaicos marroquinos, no século XVII. E ainda do pão lêvedo, que se trans-
formaria no bolo utilizado nas cerimónias judaicas em Marrocos – pallebe –, e do garfo
(Lévy 2004: 233-238). Tudo o resto foi coberto pela espessura das relações com o
passado e com o presente espanhol (Lévy 2001).
Também em comunicação intitulada “Temas comunes en el romance Portugués y
Sefardí”, Paloma Díaz-Mas não deixa de apresentar um significativo mea culpa colec-
tivo, quando alerta que os estudiosos do romanceiro hispânico tendem a considerar o
romanceiro judaico sefardita (dos judeus oriundos da Península Ibérica) como uma
variedade arcaizante do romanceiro castelhano, preterindo involuntariamente as rela-
ções com os outros romances hispânicos, como o catalão, o galego e o português. Par-
tindo destas premissas, neste estudo verdadeiramente pioneiro, Paloma Díaz-Mas
evidencia que, de facto, existem romances entoados simultaneamente nos meios por-
tugueses e sefarditas, mas ausentes da tradição castelhana, e que alguns romances
sefarditas desenvolvem temas da História de Portugal. Curiosamente, estes últimos
estão conotados com eventos negativos (ou que podiam ser negativos) para os judeus:
“La pérdida del rey don Sebastián”, entoado entre os judeus de Tetuão, e “La expul-
sión de los judíos de Portugal”, com versões diferentes entre os judeus daquela cidade,
de Tânger e de Alcácer-Quibir. Em todos os casos, a língua em que os romances são
evocados, em Marrocos, não é o Português (Díaz-Mas 2004: 239-260).
Outros elementos relacionados com as presenças judaica e portuguesa tendem tam-
bém a “esfriar” um passado português que a documentação revela multifacetado. No
“Rollo para el segundo dia de lunes (1.º del mês de Elul), de 5338 (1578)”, ainda hoje
lido nas sinagogas de Tânger, é recordado que D. Sebastião fez voto que se conquistasse
Marrocos baptizaria os judeus à força, e aqueles que se recusassem seriam passados a
fio de espada. Também segundo esta fonte, foram conversos, ou seja, judeus converti-
dos à fé cristã, vindos nos exércitos do rei português, que disseram aos judeus de Tân-
ger: “Rogad a Dios para que se apiade de vosotros y suplicad por nosotros al Santo,
bendito sea” (Cantera 1945: 222-225). Assim, quando comemoram este Purim, os
judeus de Tânger lembram simultaneamente dois fenómenos tenebrosos relacionados
com Portugal: a decisão do rei e a longa persistência das autoridades portuguesas para
acabar com a sua identidade social e religiosa, mormente através do “extenso braço”
da Inquisição.
Notório é também o caso dos Oulad Zmirru (Ben Zamirro ou Ben Zmiro, para os
judeus), alvo de uma hiloula, como já foi referido, na cidade de Safim. Simon Lévy
observa que, cinco séculos após a sua existência, os judeus ignoram tudo sobre eles, “car
du Saffim des Portugais seules restent parlantes les magnifiques fortifications” (Lévy
2004: 238). Na verdade, os peregrinos e convivas que hoje encerram o local como espe-
cífico para comemorações e festividades judaicas, estão longe de saber que os Benzamerro
foram homens cuja existência pode ser traçada na documentação portuguesa – uma
família que liderou a comunidade judaica permitida naquela cidade portuguesa, e cujos
membros vieram várias vezes a Portugal, no contextos de interesses económicos e de
missões diplomáticas. Abraão Benzamerro, que foi rabi de Safim entre 1537 até à sua
morte em 1540, possuía mesmo feitores judeus em outras praças portuguesas da costa
marroquina, e frequentava os círculos de poder em Marrocos e em Portugal (Tavim
1993; idem 1997:195-213, 429-434). Aliás, o seu nome surge no anónimo anedotário
quinhentista português Ditos Portugueses Dignos de Memória, que revela o poder da
personagem:“Andando neste reino um judeu rico chamado Abraão Benzamerro, trazia
em sua casa e serviço muitos mouros e judeus...” (Saraiva s.d.:157).
Em Janeiro de 2000, na entrada do “santuário Ben Zmiro”, os irmãos Ohana, de
Safim, acompanhantes de Ralph Toledano, parece que nada sabem sobre a historici-
dade dos irmãos Benzamerro (Toledano, 2004: 120).
Como bem considerou Jocelyne Dakhlia, o esquecimento não é, frequentemente,
um simples desaparecimento, mas sim algo “produzido” – um esquecimento agido,
activo (Dakhlia 1990: 5). Julgo que algo nesta dimensão aconteceu relativamente ao
caso dos Oulad Ben Zmerro. O seu lugar no tempo real sofreu uma metamorfose: foi
integrado e transformado em função do desinteresse, desconhecimento ou pouco
conhecimento das suas actividades materiais, perdidas no passado; e determinado pelo
processo de integração em que os judeus de Marrocos o incluíram, no contexto da
produção da sua história passada nesta região. Face a esse distanciamento cronológico,
e perante a especificidade dos ritos religiosos dos judeus de Marrocos, o véu do mara-
vilhoso era a mais “apropriada” forma de dignificação da sua memória, como homens
“extraordinários”. Resta questionar se em algum momento deste processo não estará
subjacente o acto colectivo de empurrar para as trevas de um tempo menor, melhor,
despojado de significado, aquele em que os Benzamerro serviram a “potência colonial”
e intransigente religiosamente (Toledano 2004:119). Se como bem salienta Lucette
Valensi, o Marrocos independente é um lugar onde – como em muitos outros – se
“manufacturaram” e negociaram os símbolos da consciência histórica (Valensi 1990:
280), os judeus marroquinos não estiveram, em interesse próprio e no contexto do
seu universo sócio-religioso, alheios desse processo.
Na sequência do que foi referido, penso que só podemos interpretar com ironia o
parágrafo final de Simon Lévy no seu artigo sobre os possíveis traços portugueses na
memória dos judeus de Marrocos, quando afirma:
Penso que mesmo assim existem aqui dois equívocos: a inclusão da palavra “his-
pano”, que remete para outros círculos culturais mais amplos e incisivos no patrimó-
nio dos judeus marroquinos; e a referência que o “fenómeno maravilhoso” dos Oulad
Zmirru é um dos raros elementos que restam na memória desses judeus, das “peregri-
nações hispano-luso-marroquinas” – a partir do momento em que essa memória os
integrou “maravilhosamente” no seio do seu espectro cultural e religioso sem o refe-
rencial português, os “Oulad Zmirru” passaram a ser um elemento “exclusivo” da
“memória interna” dos judeus de Marrocos, sem ligação fundamental a Portugal.
Por antítese, os exemplos afloram. Entre os rabis famosos de Fez, alguns vieram
de Portugal aquando da Expulsão, como Moisés ibn Danon, nascido em Coimbra
(Tavim 1997: 84). Alguém se recorda da especificidade do facto, além dos eruditos?
Por exemplo, na placa exterior do “Premier Musée Juif du Maroc” (da “Fondation
Em-Habbanim”), erguido no interior do cemitério judaico de Fez, lê-se que este encerra
os mausoléus de grandes rabis do século XVII aos dias de hoje, tais como Vidal Has-
serfaty, Jacob Abensur e Raphael Hasserfaty, entre os descendentes dos “Mégouréchés
Casilla”, ou seja, os “Megorashim” ou “Expulsos” de “Castela”.
CD -ROM
grandeza do seu passado, e que no caso da comunidade judaica marroquina, tem raízes
nos princípios fundamentais do Judaísmo, e suas virtudes capitais: a procura da paz, a
busca da justiça e a prática do diálogo. Inventa depois uma palavra, ao referir que aquele
repousa na sua marocanité, fruto da sua longa coexistência com uma população reco-
nhecida pelas suas tradições de generosidade e hospitalidade (Berdugo 1992: 1). O
Avant Propos de André Azulay reenvia o leitor mais para as questões da preservação
patrimonial. Chama a atenção que a comunidade marroquina foi durante muito tempo
marginalizada, mesmo ocultada, na memória ou no pensamento judaico, na Diáspora
e em Israel, mas que se esforça desde alguns anos por recuperar uma palavra e uma
identidade há muitos anos instalados no olhar e na escrita dos outros. Elogia depois a
energia dos judeus da diáspora de Marrocos, que conservam fielmente os seus valores
culturais específicos nos países em que se instalaram. E, finalmente, acentua que o livro,
além do testemunho histórico e iconográfico, reflecte a vitalidade do Judaísmo marro-
quino, sendo por isso mesmo uma homenagem a todos os judeus e muçulmanos que,
protegendo o seu património comum, dão aos árabes e judeus uma outra leitura da sua
história, e uma outra visão do seu futuro (Azulay 1992: 5).
À obra colectiva ficam então (teoricamente) subjacentes alguns pressupostos fun-
damentais em termos de estratégia de preservação identitária. Nas considerações de
Serge Berdugo, o que interessa, na verdade, são os “traços” do passado em que se veri-
ficaram as três virtudes capitais acima referidas, ou seja, a trama dos acontecimentos
fica subordinada a considerações próprias da Ética Judaica. A marocanité inventada
por Serge Berdugo invoca uma coexistência específica e acentua um dos trunfos pre-
tendidos no discurso patrimonial: que a comunidade judaica marroquina é um exem-
plo excepcional – e excepcionalmente positivo – da convivência com a população
árabe, quando este fenómeno social é uma fonte de problemas, mesmo para o Estado
de Israel. Esta arquitectura ideológica passa por uma hiper-valorização das capacidades
de acolhimento da população muçulmana, factor decisivo no discurso de André Azu-
lay, para explicar a virtuosidade do Judaísmo marroquino. É por isso também que
André Azulay considera que Les Juifs du Maroc é um dos exemplos da “palavra” da
comunidade judaica a que pertence, ou seja, aquela que mais direito e objectividade
apresenta para contar a sua própria história.
Resta questionar sobre o “lugar” dos outros que ficaram longe do “quadro positivo”
desta história arquitectada a nível interno, ou seja, aqueles elementos do processo histó-
rico que não se ajustam ao valor essencial, invocado por Serge Berdugo, da tolerância.
A prosa mais erudita dos autores da obra Les Juifs du Maroc matiza um pouco as
palavras dos políticos. O antropólogo André Goldenberg, coordenador do volume, e
que assina o texto “Des Saadiens aux premiers Alouites (XVe-XVIIIe siècles)”, lembra
que os judeus vindos de Portugal – e não somente de Espanha – foram designados
Zafrani, que assina alguns itens do Pórtico número 1 – “Vie Religieuse”. Além deste,
do CD -ROM constam mais cinco pórticos, dedicados às artes e tradições populares,
às figuras ilustres, à criação artística e literária, à vida comunitária e social, e à sua his-
tória e seu contexto. Comporta ainda uma bibliografia onde não consta qualquer livro
sobre a presença dos judeus em Portugal e, nomeadamente, sobre os judeus portugue-
ses em terras marroquinas.
As mesmas ausências em relação a Portugal estão patentes ao longo deste CD-ROM,
embora um pouco mais matizadas. Por exemplo, Haim Zafrani, no pórtico “Vie Reli-
gieuse”, escreve sempre sobre Espanha, acerca da elite intelectual de origem castelhana,
de vultos da mesma origem na Literatura Cabalística e Vida Mística dos judeus de Mar-
rocos, e que a produção homiléctica deve muito aos antepassados espanhóis. Ou seja,
o passado em Castela torna-se presente em Marrocos, e o passado em Portugal não tem
qualquer repercussão na vida cultural e religiosa dos judeus marroquinos. E se tal asser-
ção passou do domínio da Memória para o dos estudos eruditos, a verdade é que o peso
da cultura judaico-castelhana é uma realidade. Mas tal não se passa apenas ao nível da
“vida espiritual”. Nas artes e tradições populares, a influência espanhola também é
marcante: os colares de esmalte revelam uma técnica oriunda de Espanha, assim como
o fabrico de pérolas de ouro e da passamanaria se devem aos judeus expulsos daquele
país. A língua, veículo fundamental da comunicação e do pensamento, possui compo-
nentes hebraicos, espanhóis, árabes, berberes, franceses (Zafrani CD -ROM) – e tão
raros os portugueses que nem se pensa neles como de origem lusa. Oro Anahory Libro-
wicz, estudiosa do cancioneiro sefardita, e autora da obra Florilegio de romances sefar-
díes de la Diáspora (una colección malagueña) (Librowicz 1980) também salienta apenas
o cadinho espanhol anterior à Expulsão e a influência de canções espanholas dos sécu-
los XVI e XVII (Librowicz CD-ROM) – o que vai de encontro ao mea culpa colectivo de
Paloma Díaz-Mas. Contudo, este não teria sido arrastado pelo minorar da presença
portuguesa, nas várias vertentes de construção identitária dos judeus marroquinos? O
Português não se fala, o Português não se escreve: nos tempos modernos, os jornais
judaicos de Marrocos estão escritos em judéo-árabe, em francês e em espanhol (Berdugo
e Cohen CD -ROM: “Institutions Communautaires”).
Os portugueses surgem logicamente no pórtico História e seu contexto, carre-
gados com as tintas da percepção judaica sobre os mesmos: exerceram nos seus
domínios costeiros um proselitismo reforçado pelo seu sucesso comercial, e eram
intransigentes na metrópole. Pelo contrário, o papel dos Benzamerro como interme-
diários dos portugueses em Safim é mencionado de forma ligeira, assim como o
auxílio financeiro dos judeus de Azamor ao famoso David Reubeni, o qual perma-
necia em Portugal no ano de 1525. Este judeu, que se dizia de linhagem régia e
oriundo de “estranhas terras”, é apontado de forma errada como de origem portu-
guesa (Tavim 2004). Mais uma vez, um erro que deriva do pouco interesse pelo
assunto “Portugal”. Pelo contrário, é bom recordar a acção da Inquisição nas cidades
marroquinas sob controlo português, assim como a batalha de Alcácer-Quibir e o
Purim que lhe é dedicado. Ao nível da história das comunidades, faz-se algumas alu-
sões aos judeus que habitaram nas praças portuguesas, e a comunidade de Agadir é
mesmo mencionada como “lusitano-sepharade”. Mas a acção da Inquisição e a per-
seguição aos judeus são as lembranças maiores das atitudes dos portugueses como
ocupantes de Tânger.
A referência a um pequeno número de figuras ilustres entre os judeus marroquinos
conotados com Portugal tem um fundo realista, que procede das parcas relações entre
este país e Marrocos, após o século XVI. De entre as 51 figuras apontadas entre os
séculos IX a XVI, só 7 estão relacionadas com Portugal. E nenhuma é mencionada como
referência deste país, para as secções seguintes, até aos séculos XIX-XX. Nesta última
secção são esmiuçados de facto os nomes dos judeus marroquinos ilustres estabeleci-
dos em Portugal: 11 num total de 80 pessoas, o que mesmo assim é relevante, pois o
quadro abrange os judeus marroquinos vivendo fora do país – como se fosse uma cha-
mada de atenção que a modernidade portuguesa em todos os sectores deve muito a
estes judeus instalados em Portugal. Mas, não obstante a salvaguarda dos nomes dos
judeus portugueses de origem marroquina, Portugal não surge igualmente nas entradas
específicas para os judeus marroquinos no Mundo, que abrangem a Inglaterra, a Argen-
tina, o Brasil, o Canadá, os Estados Unidos, a França, Israel, Venezuela, e mesmo a
Espanha. A Espanha “dourada”, que também os expulsara e perseguira, ficou isenta
ao nível cultural, sendo recordada como o reino do diálogo entre as Três Civilizações
no Medievo, e protectora das comunidades judaicas aquando da ocupação do norte
de Marrocos (com algumas excepções). Não será por acaso que é mencionado com
brio o facto da comunidade judaica de Marrocos ter recebido o prémio “Concórdia”,
em Junho de 1990, em Oviedo, das mãos do príncipe das Astúrias (Berdugo e Cohen
CD -ROM: “Figures Ilustres”).
Em 2004 surgiria uma obra profusamente ilustrada com excelentes fotografias,
e possuindo interessantes textos informativos, fruto das viagens pelo Marrocos
judaico de outro membro da iminente família Toledano: Voyages dans le Maroc juif,
de Ralph Toledano. Denota-se através do seu texto sobre Safim que Ralph assimilou
leituras sobre a ambiguidade pragmática dos portugueses face aos judeus da cidade,
cuja argúcia negocial foi essencial na aproximação entre Portugal e as autoridades
muçulmanas locais. E embora transmita alguns dados interessantes, quase desconhe-
cidos, como acerca da figura de José Dahan, nascido em Lisboa e cônsul de Portugal
em Safim até à sua morte em 1985 (Toledano 2004: 119-123), deste país restam na
sua obra sobretudo a memória das muralhas e dos espaços abandonados em Marro-
Nous avons conçu cet ouvrage pour que nos parents et nos amis puissent caresser
une nostalgie sans tristesse, pour que les jeunes générations puissent, un instant, s`extraire
de l`uniformisation de l`âge moderne en abordant le chapitre de ses origines (Toledano
2004: 9).
Contudo, é evidente que no seu livro o passado português surge bastante desvanecido.
Em Setembro de 2001, a revista brasileira Menorah publicou um artigo designado
“Marrocos: sol, cores, luz, sinagogas e mesquitas”, em que são apresentadas facetas
da vida moderna dos judeus daquele país, nomeadamente através de entrevistas a res-
ponsáveis, como o próprio Serge Berdugo. Uma cronologia inicial e as imagens legen-
dadas facilitam esta introdução no mundo do “Outro” judeu – que afinal não é tão o
“Outro”, dada a existência de núcleos importantes de judeus com passado marroquino,
sobretudo na Amazónia e no Rio de Janeiro. A única menção que se faz a Portugal é
a lacónica nota cronológica: “1497 – Judeus chegam de Portugal após as conversões
forçadas” (Marrocos: 26). E interessaria esmiuçar mais o passado de colonização e
“opressão religiosa”, mesmo entre estes brasileiros herdeiros da “civilização portu-
guesa”? Talvez seja este o motivo que explica a inexistência de páginas deste tipo,
oriundas de Portugal, sobre os judeus marroquinos. É que os portugueses não são ape-
nas os distantes herdeiros...
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1
Este trabalho não teria sido possível sem o apoio in loco de Katy Motinha, do José Munoz e de Adriana Lavoura. Gostaríamos
também de agradecer a Céline Spinelli as informações relativas à cavalhada de Caçapava do Sul, no Rio Grande do Sul. O artigo
foi previamente publicado nas Actas do Congresso Internacional Atlântico de Antigo Regime: poderes e sociedades, organizado
pelo CHAM na FCSH-UNL em Novembro de 2005.
2
Vide Augusto Ferreira do Amaral, in História de Mazagão. Lisboa, Publicações Alfa, 1989, “Cronologia dos Acontecimentos
Militares”, e as sínteses de José Manuel Azevedo e Silva, “Mazagão. De Marrocos para a Amazónia”, in Revista de História da
Sociedade e Cultura, I, 2001, pp. 81-82; idem, “Mazagão. Retrato de uma cidade luso-marroquina deportada para o Brasil”, in
Camões. Revista de Letras e Culturas Lusófonas, n.os 17-18, Novembro de 2004, pp. 166-170.
3
Vide Renata Araújo, “A Razão na Selva. Pombal e a reforma urbana da Amazónia”, in Camões. Revista de Letras e Culturas
Lusófonas, n.ºs 15-16, Janeiro-Junho de 2003, pp. 164-165.
4
Vide Rosa Elisabeth Acevedo Marin, “Prosperidade e Estagnação de Macapá Colonial: as experiências dos colonos”, in Nas
Terras do Cabo Norte. Fronteira, colonização e escravidão na Guiana Brasileira – séculos XVIII/XIX, org. de Flávio dos Santos
Gomes. Belém, Editora Universitária/UFPA, 1995, p. 36. Agradecemos deveras ao colega Rogério Ribas, da Universidade Fed-
eral Fluminense (Rio de Janeiro), a obtenção desta obra.
teiras para manter relações com os índios, levaram franceses, mas também holandeses
e espanhóis, a tentarem apropriar-se de territórios sob domínio português 5. Além da
motivação estratégico-defensiva – a Vila Nova de Mazagão funcionaria como um refe-
rente de apoio militar a S. José de Macapá 6 – está subjacente uma política desenvol-
vimentista apoiada por aquela, dando-lhe também o suporte humano e económico.
O grande mentor desta política colonizadora e não apenas defensiva e explorativa
seria precisamente Francisco Xavier de Mendonça Furtado: foi praticamente durante
a sua governação que se fundaram na Amazónia cerca de 60 vilas e lugares. Renata
Malcher de Araújo comprova que desde o último ano da sua governação no Grão-Pará,
Mendonça Furtado pensava na instalação de um povoado na margem do rio Mutuacá,
devido ao facto do terreno em redor ter potencialidades para pastagens, mas também
no âmbito da consolidação do “Plano de Segurança da capitania de Minas Gerais”,
pois por ali passariam provimentos e escravos para a região mineira 7.
A Vila Nova de Mazagão foi planeada “ab initio” para receber os futuros colonos,
entre 1770 e 1771 8. O objectivo era proporcionar aos recém-vindos uma existência
segura e eficaz nos planos da colonização e rentabilização estatal. Renata Araújo refere
que a Vila Nova de Mazagão, efectivamente fundada em 1770, representa o dado utó-
pico de todo o projecto pombalino para a Amazónia 9. A vila foi desenhada pelo enge-
nheiro genovês Domingos Sambucetti 10, no “terreno místico ao Lugar de Santana do
Rio Mutuacá”, ou seja, definido sobre o povoado indígena já existente, organizado
pelo “capitão do mato” Francisco Portilho. Sambucetti, que há treze anos trabalhava
nas fortalezas de Gurupá, Santarém, Almeirim e Macapá, foi auxiliado no terreno por
outro homem experiente – Ignacio da Costa de Moraes Sarmento, antes encarregue
da administração de Bragança. As três plantas de Mazagão que Renata Araújo consi-
dera da autoria de Sambucetti, revelam a projecção de uma vila típica do Iluminismo,
com ruas traçadas a esquadro e outros espaços urbanos geometricamente definidos,
com os pólos civil (Casa da Câmara, cadeia e pelourinho) e religioso (a igreja matriz)
dominando o conjunto e projectando para uma importância secundária a única insti-
tuição de pedra pré-existente: a igreja de Santa Ana, que passa a ser designada por
“igreja dos índios”. Digamos que a malha reticular da povoação tem o seu equivalente
na construção padronizada das habitações (contudo, de dimensão variada), construídas
5
Vide Flávio dos Santos Gomes, “Fronteiras e Mocambos: o protesto negro na Guiana Brasileira”, idem, pp. 239-336.
6
Vide Eliana Ramos, “Estado e administração colonial: a vila de Mazagão”, in A Escrita da História Paraense, org., de Rosa
Acevedo Marin, Belém do Pará, NAEA/UFPA, 1998, p. 95.
7
Cf. Renata Malcher de Araújo, As Cidades da Amazónia no Século XVIII. Belém, Macapá e Mazagão, Porto, Faup Publicação,
2.ª ed., 1998, pp. 267-268.
8
Vide Robert Ricard, «Le transport au Brésil de la ville portugaise de Mazagan», in Hespéris, n.º 24, 1.º-2.º trimestres, 1937, p. 141.
9
Cf. Renata Araújo, art. cit., p. 164.
10
Sobre Domingos Sambucetti vide Renata Araújo, op. cit., pp. 111 e 270.
11
Dados amplamente retirados da obra já citada de Renata Araújo. Escusamo-nos a reproduzir aqui as plantas de Vila Nova de
Mazagão e seu casario, facilmente acessíveis na sua obra.
12
Cf. José Manuel Azevedo e Silva, “Mazagão. De Marrocos para a Amazónia”, pp. 89-91; idem, “Mazagão. Retrato de uma
cidade luso-marroquina deportada para o Brasil”, pp. 17-18.
13
Cf. Renata Araújo, op. cit., pp. 282-283. Sobre o assunto do transporte dos mazaganistas até ao Pará, e do seu estabelecimen-
to aí, e particularmente em Mazagão, vide ainda Katy Eliana Ferreira Motinha, A Festa do Divino Espírito Santo: Espelho de
Cultura e Sociabilidade na Vila Nova de Mazagão, tese apresentada ao Curso de Doutorado em História como requisito parcial
para obtenção do título de Doutor em História Social. São Paulo, 2003, cap. 2.3.2 – “A Criação de Vila Nova de Mazagão para
dar “as mãos com o Macapá”.
aqueles que resistiram foram transportados para o palácio da Quinta Velha, também
em Belém 14.
A análise dos códices resistentes sobre o transporte e provimento dos mazaganistas
revela que a maior parte dos nobres se incluiu nos contingentes daqueles que ficaram
no reino. E atestando que todo o processo era um acto do poder iluminista, foi em
navios régios e da Companhia Geral do Grão-Pará e Maranhão que acabaram por ser
transportadas as famílias mazaganistas. Em 15 de Setembro de 1769, aquelas foram
repartidas por dez navios, sendo sete do rei e os restantes da Companhia. Os do rei
chamavam-se São Francisco Xavier, Nossa Senhora da Glória e Santa Ana, Nossa
Senhora das Mercês, Nossa Senhora da Conceição, São João, Nossa Senhora da Puri-
ficação e São José. Os da Companhia designavam-se Nossa Senhora do Cabo, Nossa
Senhora das Mercês e Santa Ana 15. Explorando os códices publicados por Maria de
Nazaré Lima Ramos, no artigo “O Estabelecimento de Mazagão do Grão-Pará”, publi-
cado nos Anais do Arquivo Público do Pará, vol. I, tomo 1, de 1995, verificamos que
em 1769, na Charrua de São José, foram transportadas 45 famílias; no navio Nossa
Senhora da Conceição, 43 famílias; no navio Nossa Senhora do Cabo, 49 famílias; no
navio Nossa Senhora das Mercês, da Companhia, 60 famílias; no navio Nossa Senhora
da Purificação, 28 famílias, e no navio Nossa Senhora das Mercês, de Sua Majestade,
21 famílias. O total perfaz 186 famílias, se bem que os contingentes mazaganistas
tivessem como destino Belém do Pará 16.
Contudo, os dados obtidos nas fontes são variados e é difícil chegar a uma conclusão
relativamente a esta questão –, como, aliás, já se vislumbrava pelos quantitativos lança-
dos por Renata Araújo. A notícia de 340 famílias transportadas aparece num códice do
Arquivo Público do Pará, transcrito em 1918 na Revista do Instituto Histórico e Geo-
gráfico Brasileiro. O documento tem o título “Relação das Famílias, que vão estabelecer-
-se por ordem de S. Majestade...”, e data de 11 de Agosto de 1769 17. Maria de Nazaré
Lima Ramos publica também este códice no seu artigo acima referido, mas logo aqui se
verifica que a autora transcreve uma sequência do mesmo documento não publicada na
Revista do Instituto Histórico e Geográfico, onde surge a referência a mais 41 homens
14
Vide Luiz Maria do Couto de Albuquerque da Cunha, Memórias para a História da Praça de Mazagão, revistas por Levy Maria
Jordão, Lisboa, Tipografia da Academia, 1849, pp. 156-157.
15
Vide Francisco d`Assis Oliveira Martins, “A fundação de Vila Nova de Mazagão no Pará. Subsídios para a História da Colo-
nização Portuguesa no Brasil”, Lisboa, Sociedade Nacional de Tipografia, 1938, pp. 3-7; e José Manuel de Azevedo e Silva,
“Mazagão. De Marrocos para a Amazónia”, p. 93.
16
Vide pp. 19-60. Segundo o “Ofício do [governador e capitão-general do Estado do Pará, Maranhão e Rio Negro], Fernando de
Castro de Ataíde de Teive de Sousa Coutinho, para [o secretário de Estado da Marinha e Ultramar] Francisco Xavier de Men-
donça Furtado, Pará, 14 de Janeiro de 1770, in AHU, Caixas do Pará, cx. 65, doc. 5601, remetendo a relação das madeiras embar-
cadas nos navios de transporte da gente de Mazagão, aqueles foram sete: Nossa Senhora da Purificação, S. Francisco Xavier,
Nossa Senhora da Glória, Nossa Senhora da Conceição, Nossa Senhora das Mercês, S. José, e galera S. Joaquim e Santa Ana.
17
T. 84, pp. 617-695. Trata-se do cod. 197, livros 1 e 2, do Arquivo Público do Pará. Este códice foi também apontado por Rob-
ert Ricard. in art. cit., pp. 141-142.
de armas 18. Por outro lado, observa-se que as referidas famílias estão estabelecidas em
Belém do Pará, e a lista elaborada tem como objectivo o pagamento “em escravos e
fazendas pelos preços correntes por conta dos soldos, tenças, moradias e alvarás que
vencerão na Praça de Mazagão”19. Outro documento revela uma disparidade: segundo
o livro do vencimento que se deve fazer às pessoas que se vão estabelecer no Grão-Pará,
de 14 de Setembro de 1769, à guarda do Arquivo Histórico Ultramarino, em Portugal,
deviam ser já 371 as famílias a enviar para aquela região20.
Como especifica Maria de Nazaré Lima Ramos, a primeira notícia da passagem de
pessoas, concretamente, para a nova Mazagão, é o códice 208 do Arquivo Público do
Pará, e intitula-se “Famílias de Mazagão que vão para a Vila deste nome, tendo prin-
cípio em 4 de Abril de 1770”: são 114 famílias, transportadas entre Abril de 1770 e
13 de Maio de 1772, num conjunto de dez diferentes transportes 21. De 1 de Julho até
princípios de Novembro de 1773 seguiram de Belém para Mazagão mais 35 famílias
e 4 pessoas isoladas, num total de 292 pessoas, se bem que o governador João Pereira
Caldas anuncie que na primeira urbe ainda restava mais de metade “daquele Povo”.
No “Mappa de todos os Habitantes, e Fogos, que existem na Freguesia de N. S.ª da
Assunção da V.ª de Mazagam”, em 1 de Julho do referido ano, apenso ao seu ofício,
o governador elucidava que viviam então na vila 428 pessoas livres e 115 cativos, num
total de 543 habitantes 22. Segundo outro “ofício” do mesmo governador para o Secre-
tário de Estado da Marinha e Ultramar, Martinho de Melo e Castro, datado do Pará,
de 3 de Fevereiro de 1775, foram 265 pessoas, distribuídas por 51 famílias, da extinta
Mazagão marroquina, que no ano anterior passaram para o estabelecimento do mesmo
nome, no Pará 23. Em 27 de Maio de 1775, seriam levadas mais 28 famílias. Em data
ignorada deviam juntar-se 24 famílias, mas mais duas quedaram-se na estrada. E ainda,
seguindo o códice 208, em 23 de Dezembro de 1775 deviam embarcar para Mazagão
25 famílias, e mais 5 avulsos 24. Segundo a “Rellação de todas as Famillias, e Pessoas
de Mazagão, que existem ainda serem transportadas à Vila da mesma denominação,
para onde he determinado o seu destino”, datada do Pará, de 1 de Dezembro de 1778,
18
Cod. pub. nas pp. 61-113.
19
Vide notas 16 e 17.
20
Arquivo Histórico Ultramarino (doravante AHU), cod. 1991.
21
Pub. por Maria de Nazaré Lima Ramos, in art.cit., pp. 145-161.
Ofício do governador e capitão-general do Estado do Pará e Rio Negro, João Pereira Caldas, para o [secretário de Estado da
22
Marinha e Ultramar] Martinho de Melo e Castro, sobre a viagem a Vila Vistosa e Vila Nova de Mazagão”. Contem em anexo
uma relação e um mapa. Pará, 8 de Novembro de 1773, in AHU, Caixas do Pará, cx. 71, doc. 6066.
23
Idem, ibidem, cx. 73, doc. 6195.
24
Pub. por Maria de Nazaré Lima Ramos, in art. cit., pp. 162.-176. Incluiriam estas famílias de 1775 as 368 pessoas de Mazagão,
mencionadas no Ofício do governador e capitão-general do Estado do Pará e Rio Negro, João Pereira Caldas, para o Secretário
de Estado da Marinha e Ultramar, Martinho de Melo e Castro, datado do Pará, de 5 de Maio de 1776, in AHU, Caixas do Pará,
cx. 75, doc. 6291.
25
AHU, cod. 1790.
26
P. 2. Sem menção de autor.
27
http://ibest.estadao.com.br/educando/noticias/2004/mar/09/38.htm, p. 2.
28
Cf. http://www.magmarqueologia.pro.br/MazagaoVelhonaMidia.htm, de 7/7/2004, p. 8.
29
Idem, p. 9. Vide Figura 1.
«Município de Mazagão», estudo de Edgar Rodrigues, in Governo do Estado do Amapá. Fundação de Cultura do Amapá,
30
33
Francisco d’Assis Oliveira Martins, «A fundação de Vila Nova de Mazagão…» cit., p. 9
34
Vide AHU, cod. 1790.
35
Vide nota 15.
36
Vide notas 16 e 17.
37
Videnota 20.
38
Vide nota 21.
39
Vide nota 23.
Nos níveis discursivos portugueses é hoje visível também uma imagem salvítica
relativamente à terra amazónica, com raízes no discurso político pós-colonial brasileiro
acerca do novo país como terra de imigração e da tolerância42. Um dos textos mais
exemplificativos é a notícia de Fernanda Durão Ferreira, saída na revista Pública,
n.º 9, de 21 de Julho de 1996, e intitulada “Santiago na Amazónia. Procissão, Missa e
Batalha”: Passamos a citar o trecho relativo à viagem de Marrocos até à Amazónia”:
Por seu turno, a mesma mitificação parece encontrar-se nas narrativas contempo-
râneas brasileiras, como adiante veremos.
No decorrer da Festa de São Tiago, no sábado 24 de Julho de 2004, um dos nar-
radores “oficiais” do evento evocava um dos episódios da mesma – a entrega dos pre-
40
AHU, cod. 1790.
41
Katy Eliana Ferreira Motinha, A Festa do Divino Espírito Santo….
42
Entre outros, vide o clássico de Darcy Ribeiro, O povo brasileiro. A formação e o sentido do Brasil. São Paulo, Companhia das
Letras, 1995.
43
Pp. 30-31.
44
Gravação registada na data citada: ver adiante.
45
http://www2.uol.com.br/amazonview/view19/negro.htm: “Centro de Cultura Negra”, 24-4-2004.
46
Vide nota 12.
47
AHU, Caixas do Pará, cx. 65, doc. 5602.
48
“Relação das pessoas provenientes da extinta Praça de Mazagão e que não embarcaram para o Estado do Pará na expedição
de 15 de Setembro de 1769 pelas cousas que se declara”, Lisboa, 24 de Agosto de 1771, idem, ibidem, cx. 67, doc. 5769.
49
“Ofício do governador e capitão-general do Estado do Pará e Rio Negro, João Pereira Caldas, para [o Secretário de Estado da
Marinha e Ultramar], Martinho de Melo e Castro, sobre o número de pessoas que no ano de 1775 foram transportadas para
Vila Nova de Mazagão e a Ordem de suspensão de auxílio às famílias da extinta praça de Mazagão e que ainda permanecem na
cidade de Belém do Pará”, Belém do Pará, 5 de Março de 1776, idem, ibidem, cx. 75, doc. 6291.
50
In Raúl da Silva Veiga, Documentos referentes ao governo da Praça de Mazagão, 1758-1769 (Cartório dos Condes da Cunha),
Coimbra, Publicações da Universidade de Coimbra, 1982, p. 88, doc. 115.
51
“Carta de Francisco Afonso da Costa para D. José Vasques Álvares da Costa”, Macapá, 25 de Novembro de 1780, idem, ibi-
dem, pp. 88-89, doc. 116.
52
AHU, Caixas do Pará. Vide cx. 73, doc. 6171, cx. 78, doc. 6461; cx. 78, doc. 6467; cx. 81, doc. 6670; cx. 107, doc. 8343.
53
“Ofício do Juíz de Fora e provedor da Fazenda Real da Capitania do Pará, D. Francisco Xavier Ribeiro de Sampaio, para o
Secretário de Estado da Marinha e Ultramar, Martinho de Melo e Castro”, Belém do Pará, 31 de Janeiro de 1772, idem, ibidem,
cx. 67, doc. 5798.
vida, “por serem inertes”. Acerca da família de Luís Loureiro do Rego surge a informa-
ção que vive daquilo que os escravos adquirem, pois aquele não tem “jeito nenhum para
granjear a vida”. E avança-se que os filhos de José da Costa Lopes são “parvos”...
Há excepcionalmente pessoas ricas, como o Cavaleiro da Ordem de Cristo Ignácio
Freire da Fonseca, que possuía uma fábrica de madeiras e 22 escravos, obtendo facil-
mente licença para passar a Lisboa. Os mais pobre podiam seguir caminhos semelhan-
tes, mas de forma ínvia: Inácio José da Penha de França e sua esposa fugiram pelo rio
Tocantins e alcançaram Minas Gerais; e Manuel António Quaresma escapou-se mesmo
para o reino. O desespero de alguns levou ainda ao desmembramento familiar: Lázaro
Valente Loureiro escapou-se para Salvador da Bahia, deixando a esposa e os dois filhos
em grande pobreza; mas no caso do alfaiate Francisco de Pina Valente, são a esposa e
os três filhos que fogem para o reino, sem licença régia 54.
Logicamente que há um fundo de verdade em toda esta situação de miséria, mas
não será por acaso que este primeiro grande mostruário de pobreza foi redigido em
1778. No ano anterior tinha subido ao trono D. Maria I, e os deslocados mazaganistas
aproveitaram a “Viradeira” para tentarem fazer vingar os seus intentos contra a impe-
riosa política do Marquês de Pombal e seu irmão, durante o reinado de D. José I. É
de facto perante a rainha e os seus apoiantes que os habitantes de Mazagão se expri-
mem em colectivo.
Logo em Outubro de 1778, os moradores que reforçavam o seu apego ao passado
marroquino e não ao presente amazónico que detestavam como uma imposição;
anunciando-se como “moradores da extincta praça de Mazagão”, queixavam-se à rai-
nha da situação de miséria em que se encontravam no Pará, e solicitavam providências
para a remediar 55. Passados dois anos, como vimos pelo códice acima referido, alguns
moradores obtiveram da rainha a esperada licença de passarem para o reino, mas o
governador do Estado do Pará elucidava que outros apresentavam as mesmas preten-
sões 56. Em 1781, os solicitadores tentaram aproveitar de forma oportunista a política
saneadora da rainha, requerendo um Conselho de Guerra para julgar as razões que os
obrigaram a viver no Estado do Pará, e continuando-se a apresentar como “Morado-
res da extincta praça de Mazagão” 57. Em 1783, insistiram com estratégias diversifica-
das: enviaram uma representação de todos os estratos sociais ao Reino – dos oficiais
da Câmara, da nobreza e do povo da “extincta Praça de Mazagão” – e aí tentaram que
54
AHU, cod. 1790.
55
S.l., s.d., 8 de Outubro de 1772, idem, Caixas do Pará, cx. 80, doc. 6639.
56
“Ofício do governador e capitão-general do Estado do Pará e Rio Negro, José de Nápoles Teles de Meneses, para o Secretário
de Estado da Marinha e Ultramar, Martinho de Melo e Castro”, Belém do Pará, 2 de Maio de 1780, idem, ibidem, cx. 85, doc.
6980.
57
“Requerimentos dos Moradores da extinta Vila de Mazagão para a rainha D. Maria I”, s.l., 17 de Dezembro de 1781, idem,
ibidem, cx. 88, doc. 7161.
58
“Consulta do Conselho Ultramarino para a rainha D. Maria I”, Lisboa, 19 de Setembro de 1783, idem, ibidem, cx. 90, doc.
7346.
59
“Petição dos moradores de Vila Nova de Mazagão à rainha D. Maria I”, Vila Nova de Mazagão, 1793, in Raúl da Silva Veiga,
op. cit., p. 89, doc. 117.
60
“Petição de Manuel Correia e outros moradores de Vila Nova de Mazagão a D. José Vasques Álvares da Cunha (Conde da
Cunha)”, Vila Nova de Mazagão, 17 de Janeiro de 1793, idem, p. 89, doc. 118.
61
Idem, pp. 56-59. E ainda Augusto Ferreira do Amaral, op. cit., pp. 250-255.
62
“Ofício do governador e capitão-general do Estado do Pará e Rio Negro, João Pereira Caldas, para [o Secretário de Estado da
Marinha e Ultramar] Martinho de Melo e Castro”, Belém do Pará, 5 de Janeiro de 1773, in AHU, Caixas do Pará, cx. 69, doc.
5933.
63
In João Palma Muniz, “Limites Municipaes do Estado do Pará. Município de Mazagão”, in Annaes da Biblioteca e Archivo
Público do Pará, t. IX, 1916, pp. 395-396 e 425.
64
Idem, p. 413.
65
Idem, p. 419.
66
“Ofício de Manuel da Gama Lobo de Almeida para José de Nápoles Teles de Menezes”, S. José de Macapá, 23 de Abril de
1782, in AHU, Caixas do Pará, cx. 88, doc. 7193.
67
Cf. Eliana Ramos Ferreira, art. cit., p. 106.
68
Cf. Rosa Elizabeth Acevedo Marin, art. cit., pp. 33-64.
D. Maria I (1777-1816) durante oito dias, estando seis deles a cargo do Senado, e dois
a cargo do Sargento-Mór, e do sucesso cujo eco se fez sentir nos circuitos governativos
e militares de Belém do Pará 69. Não se tratou de um acto inusitado, mas antes do
reflexo do júbilo de adesão à nova rainha, que os colonos sabiam estar em oposição à
política de seu pai, esperando disso obter dividendos.
A questão maior da oposição dos mazaganistas à permanência no Pará deve-se, na
verdade, sobretudo ao seu quadro sociológico de origem. Luiz Maria do Couto de
Albuquerque da Cunha mostra, no capítulo XXII das Memórias para a História da
Praça de Mazagão, uma relação das pessoas que serviram durante o cerco e saíram de
Mazagão aquando da entrega da praça. Essa lista é constituída apenas por clérigos e
pessoas a eles adstritas, oficiais de Justiça e força militar 70. Como já verificou Robert
Ricard, os artífices e funcionários estavam ausentes da relação das 340 famílias exis-
tente no Arquivo Público do Pará, na sua opinião porque estes se tinham dispersado
por vários postos no reino 71.
José Manuel Azevedo e Silva constrói um fiel retrato da população saída de
Mazagão, através da análise do códice 1784 do Arquivo Histórico Ultramarino. Dá
conta assim que os efectivos da guarnição representavam 28,3% do todo social, e
79% do universo dos homens e jovens capazes de se habilitarem a pegar em armas.
Acrescenta também que os outros 21% dos homens válidos se ocupavam de activi-
dades comerciais e artesanais, das tarefas de conservação do património urbano e da
prática de alguma agricultura dentro e fora do espaço amuralhado 72. De qualquer
forma, neste último caso estamos perante um sector de subsistência, de importância
menor no conjunto das actividades rentáveis da praça. Como já foi referido, a “Rella-
ção de Todas as Famíllias, e Pessoas de Mazagão”, de 1779, que jaz no Arquivo His-
tórico Ultramarino, devido à riqueza da sua descrição é também o documento mais
importante para auscultar as profissões dos que então residiam na Mazagão do Pará:
além dos militares, dos funcionários régios e dos clérigos com as fontes de rendi-
mentos justificadas, muitas das famílias dependiam apenas do trabalho dos escravos
avançados pela Companhia, ou faziam deste uma importante fonte de receitas. Outros
andavam em canoa a negociar alimento. Há também taberneiros, feitores e os habi-
tuais artesãos: sapateiro, ourives, alfaiate, etc. Os agricultores dedicados eram pou-
cos, mas alguns, como João Duarte e a esposa, pareciam ter disposição para serem
bons lavradores 73.
69
Cf. João Palma Muniz, art. cit., pp. 422-424. Voltaremos a falar desta festa mais à frente.
70
Luiz Maria do Couto de Albuquerque da Cunha, Memórias para a História da Praça de Mazagão, pp. 158-163.
71
Robert Ricard, art. cit., p. 142.
72
Cf. José Manuel Azevedo e Silva, “Mazagão. Retrato de uma cidade luso-marroquina”, pp. 171-172.
73
AHU, cod. 1790.
Em suma, parece estramos perante uma população desajustada face ao seu passado
e aos planos do Portugal Iluminista. Na Mazagão marroquina, estes colonos viviam
dos soldos régios nas suas actividades militares ou de funcionários, ou eram pessoas
que gravitavam em torno destes e do abastecimento a partir do reino: comerciantes e
artífices. Repentinamente, o Marquês de Pombal e seu irmão pretenderam que se
transformassem em colonos desenvolvimentistas, avançando-lhes verbas, “fazendas”
e escravos, que deviam pagar mais tarde, ou seja, empurraram-nos para um processo
rápido e contínuo de endividamento, não só por não terem feito da agricultura o seu
modo de vida em Marrocos, mas também porque deviam vender os seus artigos exclu-
sivamente à Companhia 74. É verdade que, como vimos com o caso do comércio do
arroz, alguns deles adaptaram-se e prosperaram. Mas o grupo dos desertores e daque-
les que se serviam da sua posição social para regressarem ao reino ou saírem para Belém
ou outra terra brasileira mais ambicionada, e as vozes dos protestantes que aproveita-
ram a “Viradeira” de D. Maria I, mostra que o falhanço da Mazagão colonial do Amapá
se deve sobretudo ao facto da população para aí transportada não possuir o perfil para
aguentar o esforço de enveredar por outra actividade económica em território afas-
tado, de clima inóspito e atreito a epidemias.
74
Cf. Francisco d`Assis Oliveira Martins, art. cit., pp. 10-11; Renata Malcher de Araújo, op. cit., p. 284, mas sobretudo os arti-
gos recentes de Rosa Elizabeth Acevedo Marin, “Agricultura no delta do rio Amazonas. Colonos produtores de alimentos em
Macapá no período colonial”, in A Escrita da História Paraense, 1998, pp. 77-84; idem, “Prosperidade e estagnação de Macapá
colonial”, pp.37-43.
75
Cf. João Palma Muniz, «Limites Municipaes…» cit., p. 407.
76
Idem, Ibidem, p. 428: e Paulo Dias Morais, Ivoneide Santos do Rosário e Jurandir Dias Morais, O Amapá na mirados
primórdios do lugar ao Laudo Suiço. Macapá, JM Editora Gráfica, 2003, pp. 49-50.
A igreja matriz de Vila Nova de Mazagão, sita na rua Augusta, designou-se de Nossa
Senhora da Assunção, como a padroeira da Mazagão marroquina. E logo em 1770 foi
confirmado como seu padre João Valente do Couto 83, embora só em 1773 o edifício
tenha sido concluído, feito de pedra do rio Maracá, tijolo e taipa 84. Estácio Vidal
77
Idem, Ibidem, pp. 508-509; e Estácio Vidal Picanço, Informações sobre a História do Amapá cit.,pp. 50-52.
78
Cf. Estácio Vidal Picanço, op. cit., pp. 53-55.
79
http://www.magmarqueologia.pro.br./MazagaoVelho2.htm. “Brasil Arqueológico. Site do Laboratório de Arqueologia da Uni-
versidade Federal de Pernambuco. Arqueologia de Mazagão Velho”, p. 3.
80
Cf. João Palma Muniz, art. cit., pp. 424 e 426; e Eliana Ferreira Ramos, art. cit., p. 99.
81
Estácio Vidal Picanço, Informações sobre a História do Amapá cit., p. 5. Em Perfil do Amapá, 1999/2000, p. 30, o mesmo
autor data uma fotografia da antiga matriz de Mazagão Velho, ainda de pé, da década de 40.
82
Vide nota 78.
83
“Ofício do vigário capitular do bispado do Pará, Giraldo José d`Abranches, para o Secretário de Estado da Marinha e Ultramar,
Francisco Xavier de Mendonça Furtado”, Belém do Pará, 12 de Janeiro de 1770, in AHU, Caixas do Pará, cx. 63, doc. 5593.
84
Cf. João Palma Muniz, art. cit., p. 424; e Eliana Ramos Ferreira, art. cit., p. 99.
Picanço refere que na antiga igreja havia imagens enfeitadas de ouro e de pedras pre-
ciosas, bem como uma mesa de prata trazida pelos mazaganistas de Marrocos 85. De
facto, estes e outros ornamentos, assim como as imagens, foram transportados da
homónima matriz da Mazagão marroquina86. De acordo com o sítio “Brasil Arqueo-
lógico. Site da Equipe do Laboratório de Arqueologia da Universidade Federal de Per-
nambuco”, a análise das plantas mostra que a construção da matriz tinha sido planeada
primeiramente na margem do rio, próximo da antiga aldeia indígena, mas que a sua
edificação frente à praça do pelourinho – hoje um vasto campo vazio, que serve de
antecâmara à povoação habitada – se impusera como uma solução mais de acordo com
os padrões da época 87.
Também a igreja matriz da Mazagão marroquina marcara o cenário maior das principais
evocações ali verificadas, sobretudo após combates vitoriosos sobre os muçulmanos88.
Chegou até nós um conjunto de textos impressos à custa de particulares – cava-
leiros locais ou outros homens de armas – que remetem, entre 1752 e 1766 (ou seja,
apenas três anos antes do abandono da praça) 89 – para narrativas desses combates
heróicos e para eventos verificados frente à matriz. Presume-se que esses pequenos
textos volantes – de entre 7 a 12 páginas – seriam distribuídos facilmente e trans-
portados como documentos que atestariam para a posteridade o valor imortal do
aguerridos mazaganistas. Teriam eles sido transportados, também, como parte do
património material, para Mazagão do Pará?
Estão todos redigidos num modelo hierárquico, cavaleiresco e barroco, que evoca
sempre a vitória dos portugueses cristãos, em pequeno número, contra os muçulma-
nos, em grande número e identificados vulgarmente como “bárbaros”90. Remetem para
um fundo de cultura clássica, comparando os objectivos dos autores e as matérias por
eles descritas, aos objectivos dos autores da Antiguidade Clássica e aos assuntos beli-
cosos e heróicos neles descritos. Desta forma, as narrativas dos combates em Marrocos
pareciam pretender continuar a evocação heróica dos Clássicos, ou seja, transpor para
a memória futura uma realidade transformada em matéria mítica edificante.
85
Estácio Vidal Picanço, op. cit., p. 52.
86
Cf. Eliana Ramos Ferreira, art. cit., p. 99.
87
http://www.magmarqueologia. pro./br/IconografiaMazagãoVelho5.htm.
88
Sobre a igreja matriz de Nossa Senhora da Assunção na Mazagão marroquina vide Luiz Maria do Couto de Albuquerque, op.
cit. p. 8; e António Dias Farinha, História de Mazagão durante o período filipino. Lisboa, Centro de Estudos Históricos Ultra-
marinos, 1970, p. 46.
89
Encontrámos até agora 14 destes textos, alguns com dois exemplares disponíveis. Estão depositados na Biblioteca Nacional de
Lisboa (Secções de Reservados e de Leitura Geral). Referiremos alguns deles de seguida.
90
Vide Biblioteca Nacional, Reservados (doravante BNR), 1352P e 432/1 P, Relaçam do Combate, que tiverão, e vitoria, que
conseguirão as armas portuguezas Dos nobres Cavaleiros de Mazagão, comandadas pelo Illustrissimo, e Excelentissimo Senhor D.
Antonio Alves da Cunha, Governador e Capitão General da dita Praça, Contra os Mouros da Aduquela; chamados os Alarves, os
mais guerreiros da Barbaria, em o dia 7 de Dezembro do anno proximo passado de 2751 [sic], escrito por um dos seus cavaleiros,
Lisboa, na Oficina de Pedro Ferreira, 1752, p. 3.
É neste contexto que surge a ideia de pertença a África. Mas uma África enqua-
drada num modelo visionário, clássico e cristão: a África a ser conquistada à Barbárie
– neste caso, “muçulmana” – pela civilidade cristã. Fala-se por exemplo de Mazagão
como a única praça que resta em “terras dos Africanos” 91. É por isso mesmo que os
cavaleiros portugueses de Mazagão são designados, neste contexto, orgulhosamente,
de “africanos”. Por exemplo, no início da Relaçam do Combate que tiverão, e vitoria
que conseguirão as armas portuguezas..., escreve-se:
“Entre os repetido debates, que, por serem de menos ponderação, se não referem, e
em que quotidianamente conseguem gloriosos triunfos os nobres Cavaleiros Africanos (...),
como distintos costumão valerosamente defender a Purissima Conceição da mesma Senhora,
dandolhes nos campos de Africa huma insigne vitoria (...)” 92.
91
BNLR, 903/4 P, Relação da batalha que o presido de Marzagam teve com os Mouros em o dia primeiro de Mayo do anno de
1753, perigo em que se viu, e a gloriosa Victoria que delle alcançou, Lisboa, s.ed., s.d. [1754], p. 3.
92
BNLR, 1352P e 432/1 P, p. 2.
93
BNLR, 903/8 P e Fundo Geral (doravante FG) HG 9787/17 P, Notícia da Grande Batalha que houve em a Praça de Mazagão
no dia 6 de Fevereiro do presente anno de 1757, Lisboa, s.ed., 1757, pp. 1-3.
94
BNLR, 903/7 P, e BNFG, HG 9787/11 P, “Noticia do Grande Assalto e Batalha, que os Mouros derão à Praça de Mazagam em
o mez de Junho do presente anno de 1756. Com outras cousas notaveis modernamente sucedidas na mesma Praça”, Lisboa, Na
Officina de Domingues Rodrigues, 1756
“Desde a conquista das terras africanas, os lusitanos, fervorosos católicos, tentaram obrigar
os muçulmanos a se tornarem cristãos e aceitar a fé em Cristo e o batismo da sua religião”
Não se trata, agora, de um texto setecentista, mas sim do folheto distribuído pela
Prefeitura Municipal de Mazagão, relativo à Festa de São Tiago, realizada em Mazagão
Velho, entre 16 e 28 de Julho de 2004 95.
E outros indícios afloram do passado, permitindo entender determinados elemen-
tos estruturantes da actual festa de São Tiago em Mazagão Velho.
Neste âmbito, uma das fontes mais interessantes é a Relação do Grande Combate,
e fatal peleja, que agora proximamente tiverão os Soldados, e Cavalleiros da Praça de
Mazagão, com os Mouros de Azamor e Mequinez, de 1752. Segundo o seu autor – o
assistente Simão Correia de Mesquita – no contexto da batalha, diziam os comandan-
tes da tropa a cavalo, para incitarem os militares cristãos: “Viva a Fé de Christo. San-
tiago, cavaleiros fortes...”.
95
“Festa de São Tiago. Mazagão Velho. 16 a 28 de Julho de 2004”. Realização da Prefeitura Municipal de Mazagão com o apoio
do Governo do Estado do Amapá.
Portanto, a alusão a São Tiago como santo cavaleiro que auxilia os cristãos está
presente na Mazagão marroquina, como vai estar na do Pará. Mas a verdadeira pre-
ciosidade desta fonte é a descrição da festa da vitória, realizada dentro da praça.
Refere o autor que os “marciais” vencedores eram homenageados ao som de “caixas”
– instrumento musical ainda hoje utilizado como referente em Mazagão Velho – desfilando
até à Igreja Matriz da Mazagão marroquina, que tinha “Orago, e Padroeira a N.S. da
Assumpção”. Nessa igreja cantou-se o “Te Deum laudamos”, enquanto repicavam os sinos,
e lá fora se ouviam os toques das caixas e as descargas de artilharia – cena que nos nosso
dias é repetida, com bastante estrépito e assiduidade, em Mazagão Velho. Os vencedores
mazaganistas são mais uma vez designados, triunfalmente, de “Africanos Catholicos”96.
Como foi referido acima, guarda-se no Arquivo Público do Pará uma “Notícia da
Festividade” realizada em Mazagão do Pará, durante oito dias, aquando da aclamação
de D. Maria I como rainha de Portugal, em 1777. Já verificámos também, anterior-
mente, que a grandeza das festividades não só matiza as queixas dos mazaganistas sobre
a sua geral pobreza, como revela o júbilo pela ascensão de uma nova soberana que
sustentava uma política oposta à do seu antecessor, e a qual por isso mesmo preten-
diam influenciar para migrarem para outras paragens mais apetecíveis.
As festividades começaram no dia 16 de Novembro de 1777 com uma missa solene
mandada cantar pelo Senado da Câmara, sendo ordenado também um “Te Deum”
durante a noite. No sábado, dia 22, foi organizado um espectacular cortejo, a gosto
clássico. Acenderam-se as luminárias e surgiu na praça um “vistoso carro triunfante”
de 20 figuras de meninos que cantavam, acompanhados de orquestras e “dez mascaras
de dançarinos que formavão hua bem vistosa contradança”. No meio do carro, um
Máscara recitava vários epílogos e Obras Poéticas e à sua frente desfilavam duas alas
de máscaras com suas alabardas, além de um anjo a cavalo.
As marchas, danças, cantos e outras práticas eram conduzidos não só até à porta
do comandante, mas também de todos os oficias. Depois surgiram uma nau de guerra
e um corsário que se encontraram com um grande chavalo de mouros, o qual, após
vistoso combate, se rendeu.
A partir de domingo, dia 23, foram encenadas as óperas “Demonfonte em Trácia”,
“Dido desprezada”, “Destruição de Cartago”, Eneias em Getulia”, e “Ataxerxes”97.
Se bem que não exista ainda um estudo consagrado especificamente ao assunto,
sabemos que estas festas, moldadas ao gosto clássico, e adaptadas à ambiência marcial
96
BNFG, HG 9786/3 P. Editado em Lisboa, na Officina de Manuel Soares, p. 10.
97
Vide João Palma Muniz, art. cit., pp. 422-424. Baseia-se na “Noticia da festividade que se celebrou na Villa de Mazagão nas
festas Reaes, em aplauso da Aclamação da Rainha Nossa Senhora e Desposorios do Sereníssimo Príncipe Nosso Senhor”, que
acompanha a carta de 30 de Novembro de 1770, de Izidoro Cabral de Mesquita ao governador capitão-general do Pará, in
Arquivo Público do Pará.
genérica do Império e também à idiossincrasia de cada local, eram comuns nas várias
cidades e vilas coloniais quando se verificava uma aclamação régia 98. O gosto pelas
Alegorias e outras figuras de estilo cénicas fazem parte daquilo que Fernando Bouza
Álvarez designa de “memória visual dos afectos na Política Barroca” e que “descia”,
estrategicamente, a partir das cortes reinantes, com o exemplo retórico mais expres-
sivo nas festas de casamento régias 99.
Por outro lado ainda, na festividade aqui descrita, o combate entre cristãos e mou-
ros é naval, e não cavaleiresco, remetendo num contexto popular, se fosse possível,
mais para as “Cheganças de Mouros”, do que para as encenações de “Cristãos e Mou-
ros”, que estão relacionadas com o combate em terra 100.
Mas até que ponto este repositório popular do tema das lutas entre cristãos e mou-
ros (marítimas ou terrestres) não se infiltrou nas manifestações trazidas pelos colonos-
-guerreiros da Mazagão marroquina, em que imperava a estética barroca, mas em que
o determinismo narrativo era singularmente o mesmo: a derrota física, e sobretudo
espiritual, do mouro, que assim realçava a invulnerabilidade e positividade da crença
cristã?
Na igreja actual, de Mazagão Velho, fundada em 1935, pontificam os santos guer-
reiros São Tiago e São Jorge, que “ganham vida” na grande festividade da terra, em
honra do primeiro, quando dois homens especialmente escolhidos “os encarnam”. No
entanto, segundo os ecos da narração setecentista na Mazagão primordial, o nome de
São Tiago era apenas evocado como “grito de combate”. Era em honra de Nossa
Senhora da Assunção que os “cavaleiros vencedores” desfilavam diante da antiga matriz.
E assim sucederia enquanto a igreja do mesmo nome continuava de pé, em Vila Nova
de Mazagão do Pará, embora aqui os cavaleiros só tivessem amargas reminiscências
das suas antigas ocupações, agora que o poder régio pretendia fazer deles colonos
exemplares. Aliás, não se designava a freguesia de “Nossa Senhora da (de) Assunção”?101
Parece-nos, pois, que houve uma mudança de sentido nos ponteiros do relógio, no
processo evolutivo de Mazagão Velho. O abandono da velha matriz de Nossa Senhora
da Assunção até se fazer dela um “vestígio arqueológico” de sensacional descoberta,
98
Vide, por exemplo, as festas verificadas em Cochim, aquando da aclamação de D. João IV, com alguns elementos muito semel-
hantes aos das festa de Mazagão, in Biblioteca Pública de Évora, cod. CXVI/1-23, Augostinho de Almeida Gato, Triunfos festivaes
da insigne e nobre Cidade de Santa Cruz de Cochim, circa 1644. Referência in José Alberto Rodrigues da Silva Tavim, Judeus e
cristãos-novos de Cochim. História e Memória (1500-1662), Braga, Edições APPACDM Distrital de Braga, 2003, p. 155.
99
Cf. Ângela Barreto Xavier, Pedro Cardim e Fernando Bouza Álvarez, Festas que se fizeram pelo casamento do rei D. Afonso VI,
Lisboa, Quetzal Editores, 1996, p. 7.
100
Vide, entre outros, Mário de Andrade, Danças Dramáticas do Brasil, Belo Horizonte, Brasília, Editora Itatiaia Ltda., T. I,
1982, cap. II; Luís da Câmara Cascudo, Dicionário do Folclore Brasileiro, São Paulo, Editora Global, 2000, pp. 129-130 e 166;
e Beatriz G. Dantas, Chegança, Cadernos de Folclore 14, Rio de Janeiro, Ministério da Educação e Cultura – Departamento de
Assuntos Culturais, Fundação Nacional de Arte, s.d.
101
Vide notas 21 e 40.
A FESTA, HOJE
Para analisar a festa de S. Tiago seria preciso procurar as raízes históricas de dife-
rentes performances em vigôr (eventualmente reactivadas pelos mesmos processos
contemporâneos de revitalização tão bem descritos por Boissevain102 e outros para
diversos contextos) hoje no Brasil. Diversos autores o têm ensaiado, sem almejarem
um sucesso total, para outras performances que, em diversos locais do país, conjugam
elementos das cavalhadas (lutas equestres encenando batalhas), cheganças, (auto popu-
lar, de assunto guerreiro, onde uma nau cristã é assaltada pelos mouros que acabam
por ser vencidos e batizados), marujadas, mouriscadas e outras celebrações. Ater-nos-
-emos aqui à narrativa e ao elemento dramático central – o da simulação da luta entre
mouros e cristãos – para entender como ele é importante para a construção de uma
imagem comunitária conveniente.
Na verdade existe um conjunto suficientemente diversificado de performances que recor-
rem à luta entre mouros e cristãos como elemento central, mas que se fragmenta e recompõe
em configurações que aqui não pretendemos resumir, recorrendo, algumas delas ao formato
102
Jeremy Boissevain, Revitalizing European Rituals. London, Routledge, 1992.
carolíngeo103. No Brasil, onde Luis da Câmara Cascudo104 refere desconhecer registos ante-
riores ao século XVIII, encontramos notícia de variantes diversificadas que, entretanto, num
percurso igualmente difícil de rastrear, se deixaram embeber e contaminar por outras práti-
cas performativas, consoante os contextos onde se foram desenvolvendo. Está por fazer o
inventário completo dessas práticas em cuja importância já Jaime de Cortesão insistia105.
O caso da festa de Santiago em Mazagão Velho, afigurou-se-nos, contudo, prome-
ter características e manipulações particulares, na medida em que, no seu trajecto de
produção, incorpora elementos históricos que lhe permitem melhor legitimar uma nova
historicidade: nomeadamente o da triangularidade étnica da sua migração Portugal /
Marrocos / Portugal /Brasil. Por isso, neste caso o confronto entre as fontes históricas
e a análise antropológica ainda se nos apresentou mais pertinente do que em outros
contextos. Por outro lado, a confirmação arqueológica dessa historicidade – o facto de
uma equipa de arqueólogos fortemente mediatizada liderada por Marcos Albuquerque,
da Universidade Federal de Pernambuco, se encontrar em campo – reforça ainda o
“positivismo” irrecusável das origens da comunidade e da festa. Tudo isto faz com que
as fronteiras entre o saber erudito ou académico sejam fluidas e concorram, concomi-
tantemente, na mesma direcção: a de dar sentido e profundidade à comunidade local.
Não cabe aqui fazer um relato detalhado da festa. Ater-nos-emos, por isso, tam-
bém, aos momentos estruturantes do seu calendário106.
Os festejos iniciam-se no dia 16 de Julho, altura em que são nomeados os festeiros,
com novenas e procissões com círios, acompanhadas, desde logo, com actividades de
lazer como leilões e bingos e mergulhos no rio.
No dia 24 à noite há uma novena mais participada e o dia termina com o baile de
máscaras, recriação de um baile de máscaras organizado pelos mouros para celebrar
uma primeira vitória sobre os cristãos. Nesta recriação, as mulheres não podem par-
ticipar107, o que introduz na disposição dos figurantes para a festa, considerações
(inversões) também de género, relativamente à comunidade.
É no dia 25 que se desenrola a maior parte da encenação, intercalando batuques com
registos de música popular vária (corais religiosos, música “pimba”), perante a crítica da
contaminação da tradição, por parte de alguns e a narração dos acontecimentos, encena-
103
Ver, entre outros, Mário de Andrade, op.cit.; István Jacsó e Iris Kantor (org.) Festa. Cultura e Sociabilidade na América Portu-
guesa. S. Paulo, Hucitec-Edusp, 2001, 2 vol; Jerusa Pires Ferreira, “Um Rei a Resmas: Carlos Magno e a América” in Euro-América:
Uma realidade Comum?. Comissão Nacional Folclore/ BECC/UNESCO. Rio de Janeiro, Ed. Tempo Brasileiro, 1996.
104
Luís da Câmara Cascudo, Dicionário...
105
Ver Nunes Pereira, O Sahiré e o Marabaixo. Recife, Fundação Joaquim Nabuco/ Editora Massangana, 1989, p.114.
106
A classificação daquilo que é aqui considerado “estruturante” baseou-se na observação directa, na percepção dos informantes
recolhida através de entrevistas abertas e na análise do material de divulgação da festa com a qual confrontámos os informantes.
O calendário corresponde ao observado no ano de 2004.
107
Embora não o tivéssemos podido observar foi-nos relatado que, pelo menos este ano, muitas mulheres tentaram imiscuir-se
no baile, em registo de desafio, parodiando o comportamento masculino travestido.
dos por outros. Este ano, depois de muitos em que assim foi108, coube ainda ao senhor
Vává – Washington Elias dos Santos de nome completo, um ancião de tez e cabelos bran-
cos que se diz descendente de turcos indicando com isso a sua origem síria109 – o honorá-
vel cargo de narrador. Mas o senhor Vává, pessoa social e politicamente influente, passa
agora o testemunho a membros da comunidade mais jovens (entre as quais Eliana, sua
sobrinha professora em Macapá) e, também de outra côr. A emergência social de uma classe
negra – de cuja côr parece ser a maioria da população local – educada e com eventual
ambição social, traz à ribalta jovens como José Hosana, prometido sucessor de Vává110.
Os festeiros – eleitos pela comunidade e exibindo o prestígio social que isso tam-
bém lhes confere 111 – saiem da nova capela (no outro extremo do terreiro fronteiriço
108
Também Laurent Vidal, na descrição que faz da festa de 2003 em Mazagão. La Ville que traversa l’Atlantique. Du Maroc à
l’Amazonie (1769-1783). Paris, Flammarion, 2005, menciona o Seu Vává, “historiador local”.
109
De facto o campo semantico do termo mouro é, nas apropriações comuns brasileiras, ainda mais abrangente do que em Portugal.
110
José apresenta-se como pedagogo e exibe as qualidades e eloquência dos historiadores locais. É irmão de Verónica, “estudante
de jornalismo, artista e professora”, cantora e exuberante defensora dos valores negros e das mulheres, casada com Hermano
Benedito de Araújo que se apresenta como um índio (o fenotipo confirma) de genealogia perdida e é responsável pelo património
histórico da Fortaleza de S. José de Macapá. Segundo Verónica, Hermano tinha em preparação uma obra relativa a Mazagão a
que chamaria Memória.
111
A festa serve também de montra social, exibindo-se e celebrando-se genealogias e personagens que a capitalizam. Diferentes
autores demonstraram já que, independentemente da especificidade das suas origens e das variantes performativas que hoje assumem,
as cavalhadas foram, historicamente, manifestações de elite: vide José Ramos Tinhorão, As Festas no Brasil Colonial. S. Paulo, Edi-
tora 34; Niomar de Sousa Pereira Cavalhadas no Brasil: de cortejo a cavalo a lutas de mouros e cristãos. São Paulo, Escola de Fol-
clore, 1983; Alceu Maynard Araújo. Folclore Nacional: festas, bailados, mitos e lendas. São Paulo, Martins Fontes, 2004; Théo
Brandão, Cavalhadas de Alagoas. Cadernos de Folclore n.º 24. Rio de Janeiro, MEC/ FUNARTE, 1978; Carlos Rodrigues Brandão.
Cavalhadas de Pirenópolis: um estudo sobre representações de mouros e cristãos em Goiás. São Paulo, Oriente, 1974. Este último
autor acrescenta a esse carácter elitista da festa a sua função bourdieusiana de reprodução simbólica do capital social.
ao local da antiga igreja matriz) para a actual Igreja, frente ao rio, caiada para o efeito,
personificando e carregando as imagens de Santiago e de S. Jorge, de particular devo-
ção dos negros.
Os elementos seguintes do argumento incluem a batalha equestre – cavalhada –
entre mouros e cristãos, as simulações de aproximação e tentativas de envenamento
por parte dos mouros, a devolução dos presentes enevenenados, pelos cristãos, a morte
do rei Caldeira, depois substituído pelo menino Caldeirinha, e a vitória final – com a
morte heróica do Atalaia – dos cristãos sobre os mouros. Outros episódios integram,
segundo relatos, a tomada de mescal no barraco do Santo e um momento presenseado
da dança vominé – traços que alguns entrevistados atribuem à incorporação de ele-
mentos indígenas – celebrando a vitória final dos cristãos.
No dia 28, repete-se a encenação tendo agora como figurantes as crianças, vestidas,
também elas, de vermelho ou branco, conforme representam mouros ou cristãos. Ques-
tionadas as crianças sobre se preferiam ir de mouros ou de cristãos a resposta maiori-
tária foi a de que preferiam ir de cristão para não serem perseguidas pelo rei dos
mouros, de actuação mais aguerrida. Por vezes, contaram os que vão de mouros, ves-
tiam as capas ao contrário para assim não ser reconhecida sua hoste pela côr da veste.
Na verdade, o que parece mais interessante aqui é que, apesar do elemento estru-
turante da festa ser a luta entre cristãos e mouros (e de ser esse o elemento ao qual
se vai buscar a profundidade histórica da comunidade), não é tanto cada um dos
polos dessa oposição que conta (não é tão importante assim ir de mouro ou de cris-
112
Céline Spinelli, da UFSM refere, em artigo não publicado “A encenação da cavalhada e suas implicações socioculturais” sobre
as cavalhadas de Caçapava do Sul, no Rio Grande do Sul, a mesma indiferença relativamente à hoste que se integra. Em comu-
nicação verbal atestou, no entanto, a frequente transmissão genealógica dessa incorporação.
113
Conseguimos apenas concluir que a antiga proprietária se havia convertido à Igreja Evangelista e por isso a corôa havido
sido transferida para a família onde agora se encontra. Isso parece confirmar o adiantado por Vidal in op. cit. p. 247 e nota 53,
p. 293.
114
O facto, referido por Vidal (op. cit. p. 247) de a festa que celebrava a abolição da escravatura ter sido suprimida em 1985
levanta questões importantes a explorar: poder-se-á pensar numa eventual reactivação da festa de Santiago (ver adiante) como
uma nova forma de reinvidicação e empoderamento comunitário através do princípio da negritude?
“Moros y Cristianos y Mujeres e Indios: Tamunangue y las fronteras de la etnicidad” in Revista de Investigaciones Folclóricas,
115
118
Laurent Vidal, op. cit. p. 236, refere o comentário do então pároco Enrico Bertazzoli ao evitar permanecer em Mazagão no
período das festas, comentando: “Tudo isso é um pouco pagão” (tradução nossa). Maria do Socorro dos Santos Oliveira, em
“Religiosidade Popular em comunidades estuarinas amazônicas: um estudo prelimiminar do Marabaixo no Macapá”, Scripta
Nova. Revista eletronica de Geographia e Ciencias Sociales, Univ. De Barcelona, n.º 45 (49), 1 de Agosto de 1999 (http://www.
ub.e/geocrit/sn-45-49.htm) também reflete sobre a demissão da Igreja nas manifestações de religiosiade popular da região.
119
Ver Edward Bruner, “Tourism in Ghana. The Representation of Slavery and the Return of the Black Diaspora”. American
Anthropologist 98 (2) pp. 290-304, 1996. Embora este proto-turismo seja ainda eminentemente académico, será interessante
seguir a sua evolução.
Palma Muniz, art. cit. p. 421, refere também a realização de uma festa/encenação de combate naval por altura do nascimento
120
do príncipe D. Pedro.
121
Vidal, op. cit. p. 249.
122
Nunes Pereira, op. cit, pp. 113-114.
Algumas personalidades, nem sempre muito generosas, têm sugerido que o “kit
soberania” dos países recém independentes, particularmente em África, no início dos
anos 1960, incluiria, obrigatoriamente, para além da bandeira e do hino nacional, o
estádio de futebol. O museu nacional, se não fosse herdado directamente de qualquer
poder colonial, viria apenas mais tarde. A noção de património, também ela mobili-
zada na ocasião com vista a (re)tecer, (re)encontrar,(re)inventar uma memória colectiva
ou, simplesmente, para promover um capital turístico na era do “turismo cultural”
mais ou menos massificado, apenas se tornará visível em desenvolvimentos posterio-
res. A forma como o património é construído e utilizado não escapará, evidentemente,
aos conflitos de memórias, a combates classificatórios entre grupos tribais ou comu-
nidades etno-linguísticas rivais ou às pretensões dinásticas encobertas de alguns “pais
da nação” e outros putschistas desejosos de se eternizarem no poder nessas jovens
nações em vias de (des)construção. O país de que aqui se trata – a Mauritânia – sofreu,
pelo menos em parte, desse sindroma.
Na proposta que agora apresento gostaria de evocar alguns aspectos relativos ao
tratamento da questão do património neste jovem Estado, após uma breve evocação
das modalidades e circunstâncias através das quais a sua história oficial – uma vez que
património e história são indissociáveis – começou a ser constituída.
A Mauritânia, nos seus contornos actuais, é um país com uma história de Estado
relativamente curta. É verdade que o país pertenceu, parcial ou totalmente, e durante
períodos mais ou menos alargados, a formações políticas regionais de dimensões sig-
nificativas, ainda que o funcionamento institucional dessas formações, no espaço mau-
ritano actual, continue a permanecer envolto em mistério. Os vestígios arqueológicos
1
Sobre “Takrûr” que, nas fontes árabes, designa umas vezes um Estado vagamente situado na região do alto Senegal, e outras
o conjunto da África muçulmana sub-sahariana, ver Umar al-Naqqâr, “Takrûr, the history of a name”, Journal of African History,
10, 1967, 365-374.
2
Sobre “Shinqît”, ver mais abaixo, nota 22.
3
Consagrei alguns desenvolvimentos a estes debates, Ould Cheikh, Nomadisme, islam et pouvoir politique dans la société
maure précoloniale, Paris, Thèse pour le Doctorat, Paris V, 1985, III, pp. 755-830.
4
Para as referências relativas a essa documentação pode consultar-se, Ould Cheikh, “Vous avez dit histoire?”, in Histoire de la
Mauritanie. Essais et synthèses, Nouakchott, LEHRI, 1998.
5
Era assim que se chamavam os registos de recenseamento dos grupos tribais, estabelecidos sobretudo com fins fiscais, e exis-
tentes em todas as circunscrições administrativas da colónia.
6
Penso em particular nos trabalhos de Basset, Hamet, Gaden, Marty, A. M. Bâ, Amilhat, Leriche, etc. Ver bibliografia da tese
citada na nota 3.
7
Vejam-se, especialmente, o texto de Bâba Wuld al-Shaikh Sidiyya sobre os Idaw’îsh e os Mashzûf, escrito a pedido do Capitão
Gerhardt (manuscrito, traduzido por H. T Norris, Saharan Myth and Saga, Oxford, Oxford Univ. Press, 1972, e editado por Izîd
Bîh b. Muhammad Mahmûd, Imâratâ Idaw’îsh wa Mashzûf, Nouakchott, Impr. Nle, 1992), a “Suite” de Muhammad Fâl Wuld
Bâba sobre os Maghâfira (manuscrito, editado por Ahmad Jamâl Wuld al-Hasan, al-Takmila fî târîkh al-Brâkna wa al-Trârza,
Tunis, Bait al-Hikma, 1986), ou ainda, Chroniques du Fouta, de Siré Abbas Soh (Paris, Leroux, 1913), reunidos a pedido do
Governador Gaden.
8
Este foi um dos temas essenciais da diplomacia marroquina, entre os anos 1956-1969. O “Grande Marrocos”, que se estende-
ria até às margens do Níger e do Senegal, constituiu ao longo desse período uma ambição por parte do – muito influente – par-
tido de Allâl al-Fâsî, o Istiqlâl.
9
Sobre os resultados dessas escavações ver Ould Cheikh (1998).
Resumo parcial em Ould Cheikh & Saison, “Vie(s) et mort(s) d’al-Imâm al-Hadramî. Autour de la postérité saharienne du
10
14
Os acordos de Madrid (1975), assinados entre a Espanha, Marrocos e a Mauritânia, atribuem a este último país o terço meri-
dional da ex-colónia espanhola de Rio de Oro, sendo que o restante território é atribuído a Marrocos. Face à vitoriosa resistên-
cia da Frente Polisário, a Mauritânia é forçada a renunciar ao território que lhe estava afectado, e que é imediatamente ocupado
por Marrocos.
15
O Iraque foi o único país a apoiar abertamente a Mauritânia durante o período de alta tensão que a opôs ao Senegal, no segui-
mento do conflito étnico de 1989.
16
À data da independência (1969) pouco mais de 5% das crianças em idade escolar, eram efectivamente escolarizadas, numa estru-
tura escolar quase exclusivamente francófona e limitada ao ciclo primário. Actualmente a taxa oficial de escolaridade aproxima-se
dos 90%, e todos os níveis escolares, quase inteiramente arabizados, permitem uma progressão até ao ensino superior.
17
Era assim que era designado o registo administrativo de uma família ou de um grupo, no “livro” (ktâb) de recenseamento de
uma fracção ou de uma tribo. A administração podia também decidir conferir autonomia a um grupo recenseando-o à parte,
criando desta forma uma nova chefferie. Para além do seu significado em termos de autonomia ou de dependência, existe um
outro aspecto deste sistema de “recenseamento”, os dividendos fiscais: os chefes de unidade de recenseamento estavam implica-
dos na cobrança dos impostos do seu grupo, sobre o qual recebiam uma percentagem.
18
Alguns investigadores foram agredidos ou ameaçados pelos representantes tribais que se julgavam insuficientemente celebrados
nos seus trabalhos.
19
“Création, vie et mort d’un musée africain: le Musée national de Nouakchott”. Comunicação apresentada no congresso:
L’objet archéologique africain et son devenir, UNESCO & CNRS, Paris, 5-6 Novembro 1992. Ronéoté, pp.1-2. Arqueóloga,
membro da equipa de investigadores franceses que, sob a direcção de Jean Devisse, realizaram, durante vários anos, campanhas
de escavação nas principais estações arqueológicos mauritanos. Denise Robert foi também a primeira responsável pelo Museu
Nacional da Mauritânia, sob os auspícios da cooperação francesa no país.
nas a três vidraças, cheias de reflexos; escaparates, estantes, vitrinas planas com pouca
ou nenhuma iluminação interna, tudo isto concorrendo para a impressão de imobili-
dade e solenidade que se desprende do conjunto da instalação museográfica assim
entregue ao recém-criado Estado Mauritano.
Montra oficial do país, oferecida à vista de chefes de Estado e a delegações estran-
geiras de maior importância, o Museu Nacional reduz-se, de facto, nos dois pisos que
o constituem, a fornecer uma leitura da pré-história e da arqueologia da Mauritânia,
e a apresentar uma paisagem sucinta da etnografia do país, essencialmente consagrada
à sociedade moura. A maioria dos objectos etnográficos em exposição provem da
colecção do Institut Français d’Afrique Noire (IFAN) de São Luís, que as autoridades
senegalesas, diligentemente, devolveram à Mauritânia, como parte do legado colonial
comum, acumulado pelos investigadores e administradores franceses ao tempo da
ocupação francesa. Quanto à parte pré-histórica e arqueológica do museu, ela foi ali-
mentada pelos resultados do trabalho dos investigadores franceses associados ao seu
estabelecimento, particularmente os membros da equipa de Jean Devisse.20 A transfe-
rência dessa equipa para Nouakchott em 1973 fornecerá ao Museu Nacional da Mau-
ritânia as competências e meios materiais (financiados pela França) que lhe permitirão
iniciar uma existência institucional. Apesar do interesse que o primeiro presidente da
Mauritânia, Mokhtar Ould Daddah, sempre manifestou pelo trabalho arqueológico
e museológico da equipa de Jean Devisse21, as autoridades mauritanas não tinham
recursos necessários para colocar ao serviço dessa montra memorial do país que se
começava a esboçar. O orçamento atribuído ao funcionamento desta instituição era
muito modesto, o que explica, em boa medida, por um lado o aspecto artificial do
aparato expositivo (prisioneiro da herança hierática chinesa já mencionada) e, por
outro, a progressiva degradação geral do conjunto museológico (edifícios, colecções,
materiais expositivos, etc.), sobretudo a partir do início da era do poder militar. Mas,
na verdade, com a chegada dos militares ao poder (1978) e num contexto em que o
apoio francês tende a interromper-se, não é apenas a escassez dos meios financeiros
atribuídos ao museu que comprometem o seu funcionamento. Será mesmo a indife-
rença para com a sua missão enquanto local de conservação que conduzirá, em pelo
menos duas ocasiões, a situações verdadeiramente catastróficas para a instituição. Em
1987, por ocasião de uma cimeira de chefes de Estado da CEDEAO (Comunidade
Económica dos Estados da África Ocidental) a ocorrer em Nouakchott, e sob a ordem
do chefe militar da altura, a totalidade das colecções expostas nas vitrinas do museu
20
Que desde o início dos anos sessenta dinamizava, a partir da Universidade de Dakar, campanhas anuais de escavação nos locais
antes mencionados: Tegdaoust e Koumbi Saleh.
21
Tal como testemunha o seu prefácio ao primeiro volume da série Tegdaoust, onde se apresentam os resultados dessas pesqui-
sas. Cf J. Devisse, D. & S. Robert (orgs.), Tegdaoust I, Paris, Arts et Métiers Graphiques, 1971.
dutos da África saeliana (escravos, marfim, âmbar pardo…) por mercadorias prove-
nientes do Magrebe (sal, metais, contas em vidro, lã, papel…), estas cidades foram
também, durante alguns períodos, oásis de próspera actividade agrícola. Desde muito
cedo estas acolheram, num quadro arquitectónico original e particularmente adaptado
ao meio ambiente, pesquisas intelectuais nos domínios mais diversos do pensamento
árabo-muçulmano, o que é testemunhado, ainda hoje, pelas centenas de manuscritos
das suas bibliotecas públicas e privadas, ao mesmo tempo que ofereciam a estudantes,
vindos por vezes de muito longe, um ensino de alto nível e reputação regional.
Essas velhas cidades sofreram, ao longo dos séculos, os efeitos de múltiplos factores
de declínio: desvio das vias comerciais trans-saarianas, guerras intestinas e ataques asso-
ciadas ao ciclo infernal seca-fome-razia-epidemia. A colonização e a herança económico-
-institucional pós-colonial virão gerar novas formas de deliquescência: deslocação dos
centros de decisão políticos e económicos para novas cidades, transformação nos hábitos
e modelos de consumo, enfraquecimento do conjunto das instituições nas quais repou-
savam a produção e reprodução da sociedade moura tradicional (estruturas hierárquicas,
políticas, fundiárias, etc.). O ciclo de seca sem precedentes do início dos anos 1970 (empo-
brecimento dos lençóis freáticos, ameaça de progressão das areias, etc.), assim como a
guerra do Saara (a sua situação periférica fazia desses oásis alvos privilegiados) vieram
acrescentar novos motivos de inquietação para a sobrevivência dessas antigas cidades.
É inegável que esses velhos “portos” caravaneiros do deserto mauritano tiveram
um papel significativo na formação da herança cultural do espaço hoje em dia chamado
Mauritânia. Não é menos verdade que a sua “invenção”, enquanto elemento central
da herança em questão, é fruto de uma conjectura na qual o património nacional do
jovem Estado deve ser (re)apropriado e (re)lido à luz das evoluções que acabamos de
descrever. Mais do que passar em revista as cidades incluídas no projecto, gostaria de
me concentrar em duas delas: Chingueti e Ouadane. A primeira, por via do seu lugar
simbólico de quasi-icone nacional depois da chegada do poder militar; a segunda, pelo
interesse que presentemente desperta para as relações luso-mauritanas, e mais ampla-
mente, luso-árabes, inscritas no âmbito desta obra.
A emergência de Chingueti como aglomerado com alguma importância não é fácil
de situar historicamente, dada a raridade e fragilidade das fontes disponíveis. De acordo
com a tradição local – sempre ansiosa por dados de origem absolutos – a cidade terá
sido fundada em 660 da hégira/1262. Uma parte dessas mesmas tradições, resumidas
no opúsculo bem conhecido de Sîdi ‘Abdullâh Wuld al-Hâj Brâhîm (m. 1817), escrito
em 179022 – Sahîhat al-naql fî ‘alawiyyat Idawa’li wa bakriyyat Muhammad Ghulli –,
22
Nossa cópia do manuscrito. Este texto foi publicado, com uma tradução inglesa e comentários, por H. T. Norris, “The history
of Shinqît according to the Idaw’li traditions”, Bulletin de l’IFAN, 24, 3-4, 1962, pp. 393-409.
23
Trata-se, diga-se de passagem, da tribo de Moawiyya Ould Sîd Ahmad Ould Taya, presidente da Mauritânia entre 1984 e
2005.
24
As dimensões épicas com as quais as tradições orais descrevem Chingueti – as suas doze mesquitas, as caravanas de 30 000
camelos, etc –, retomadas no opúsculo de Sîdi ‘Abdullâh, revelam uma crédula retrospectiva sobreestimada. Com efeito, tudo
indica que Chingueti, mesmo aquando da sua maior prosperidade, não terá, na realidade, ultrapassado as centenas, porventura
milhares, de habitantes.
25
Incluindo-se a reivindicação de aptidões sobrenaturais de dupla visão, de curas milagrosas, etc., que constituem, há muito, uma
“especialidade local” de exportação saariana, particularmente a partir da região da as-Sâgya al-Hamra.
26
Assinale-se também a criação (1990), por parte do governo Taya, de um “Prémio Shinqît da Cultura”, destinado a recompen-
sar as obras de maior mérito em todos os domínios da produção intelectual, sendo a cerimónia de atribuição também ela um
momento muito “sultaniano” de celebração do próprio presidente.
27
Desenvolvimentos mais extensos sobre Ouadane e Chingueti poderão ser consultados em: A. W. Ould Cheikh et B. Lamarche,
Etude sur Ouadane et Chinguetti, Luxembourg, Office des Publications Officielles des Communautés Européennes, 1996.
de curta duração, devido à hostilidade da população local. Embora essa presença tenha
sido breve (porventura menos de um ano), ainda subsistem dela alguns traços na
memória colectiva dos habitantes de Ouadane. É assim que as antigas – e míticas –
populações de Adrar (os Bâvûr) são, por vezes, assimiladas aos “Portugueses” (burtugês,
em hassâniyya, com “t” e “s” enfáticos). É também atribuída aos “Portugueses” a cons-
trução da fortificação de Agwaydîr (i.e: “a pequena fortaleza”), sendo as suas ruínas
ainda visíveis a cerca de trinta quilómetros a nordeste de Ouadane28. A cidade terá,
porventura, conhecido o auge da sua prosperidade no século XVI, atraindo então ensejos
e tentativas (marroquinas) de conquista. As lutas intestinas, conjugadas com a deslo-
cação dos eixos comerciais trans-saarianos, concomitantemente para a costa atlântica
e para traçados saarianos mais a Leste, provocarão o progressivo declínio da cidade.
Um declínio que, desde então, não parou de se acentuar, devido às múltiplas razões já
enunciadas.
28
Segundo Théodore Monod, o primeiro investigador a observar de perto as ruínas deste forte (em 1928), quando estas se
encontravam nitidamente em melhor estado de conservação do que presentemente, tratar-se-ia de uma construção marroquina,
ou songhay. Para referências veja-se o estudo citado na nota precedente.
29
Ver o sítio do projecto: www.tourath.mr
Como entendido por autores como, Arjun Appadurai (Modernity at Large. Cultural Dimensions of Globalization, Minneapolis,
30
FRANCISCO FREIRE
Au fond d’un Sahara qui serait vide, se joue une pièce secrète, qui résume les passions
des hommes. La vraie vie du désert n’est pas faite d’exodes de tribus à la recherche d’une
herbe à paître, mais du jeu qui s’y joue encore. Quelle différence de matière entre le sable
soumis et l’autre! Et n’en est-il pas ainsi pour tous les hommes? (Antoine de Saint-Exupéry,
Terre des hommes)
1
Este trabalho foi apoiado pela Fundação para a Ciência e Tcnologia atrvés da bolsa de doutoramento SFRH/BD/18668/2004.
Entre 2002 e 2006 participei como investigador no projecto “Castelos a Bombordo. Práticas de Monumentalização do Passado
e Discursos da Cooperação Cultural entre Portugal e os Países Árabes e Islâmicos” (POCTI/ANT/48269/2002), que igualmente
financiou esta investigação, assim como, posteriormente, o projecto “Castelos a Bombordo II” (PTDC/ANT/67235/2008). Para
além destes fundamentais apoios, gostaria ainda de agradecer aos Professores José da Silva Horta (FLUL) e Abdel Wedoud ould
Cheikh (Paris, CNRS), que em muito contribuíram parea a estrutura definitiva deste texto, assim como à Professora Maria Car-
deira da Silva que teve a ousadia de retomar, e renovar, a área de estudos em contextos islâmicos na academia portuguesa. A
minha investigação na Mauritânia, sobre um tema que se mostrou sensível para muitos dos meus interlocutores, foi em muito
facilitada por Yahya ould al-Bara, Mahmuden ould Hally e Muhammad ould Sidi, meus amigos.
2
População de língua árabe, dialecto hassāniīa, compreendida maioritariamente na região onde vemos implantada a República
Islâmica da Mauritânia. Al-BiDān é o seu nome auto-reconhecido (etimologicamente um plural de branco, “os brancos”), que
ao longo deste capítulo, para facilidade de leitura, surgirá como “bidan”. Nas transcrições do hassāniīa são acrescentadas ao
alfabeto árabe a fricativa “v”, o fonema “g” e as vogais “e” e “o”.
3
Esta designação, literalmente traduzida como “nazareno”, refere-se a personagens identificadas como europeias/cristãs. É através
deste termo que se consideram, indiscriminadamente, as figuras tidas como responsáveis pelos primeiros contactos euro-saarianos:
portugueses, espanhóis, holandeses, ingleses ou franceses. Para um enquadramento global deste termo ver Fiey (1993: 970-3).
4
Expressão geralmente traduzida como “tribo”, que será trabalhada ao longo de todo o texto, procurando descrever alguns
dos mecanismos que localmente qualificam a sua utilização contemporânea (Ahmed e Hart [eds.] 1984; Bonte et al. 1991; Bon-
te e Ben Hounet [eds.] 2009; Eickelman 1998: 123-46; Kouri e Kostiner [eds.] 1990).
5
Apresentações prévias de alguns dos materiais aqui discutidos podem ser consultadas em Freire 2009, 2011a, 2011b; Horta e
Freire 2012.
6
Para um enquadramento do modelo estatutário bidan ver Bonte 1990; Boubrik 1998; Hall 2011; Hamès 1968; Norris 1969,
1986; Stewart 1973; Tamari 1991.
7
A região de Trarza corresponde geograficamente ao sudoeste da actual Mauritânia, sendo um topónimo associado a Tarruz ben
Magvar, antepassado dos árabes Ūlād Ahmad ben Damān que a partir do início do século XVII consolidaram o controlo deste
território. Utiliza-se igualmente a expressão, mais antiga, Guibla, ampliando o tecido social da região, e desvinculando-a de uma
visão estritamente arabocêntrica. Em termos oficiais, prevalece actualmente a utilização da expressão Trarza.
Each age and society re-creates its ‘Others’. (Eduard Said, posfácio a Orientalism)
8
Norris assinala o litoral norte da actual Mauritânia como um território ancestralmente associado aos Tandgha (confederação
onde se incluem os Ahl Bouhubbaīni): “The Tandgha of south-west Mauritania (…) were settled to the north until the fifteenth
and sixteenth centuries” (1969: 516). No mesmo sentido, Muhammad al-Xannāfi identifica os Ahl Bouhubbaīni como “gente
do camelo”, historicamente ligados à região de Nouadhibou e às pastagens de Rio de Oro (comunicação pessoal, Nouakchott,
Maio 2006).
9
A liderança Ahl Bouhubbaīni defende a existência de cerca de 1500 khīam (khaīma, singular; “tenda”, mas também “família nucle-
ar”) do grupo, um número muito provavelmente demasiado alto, ao apontar um universo de cerca de oito a nove mil indivíduos.
10
Se antes se assinalou uma presença Tandgha historicamente associada ao norte do país (nota 8), no início do século XX Paul
Marty confirma a influência Tandgha na foz do rio Senegal (1919: 257-8).
De início apenas os homens iam até lá, mas pouco a pouco conquistaram a confiança de
todos os habitantes da ilha, através dessas prendas.
Depois de terem conquistado a confiança das pessoas da ilha, chegou um dia em que
os do barco levaram quase toda a gente, ficando apenas duas ou três pessoas. Os que fica-
ram procuraram os outros por toda a parte… mas não os encontraram.
Um ano depois o mesmo barco voltou, trazendo muita, muita gente. Entre essa gente
vinham naçāra, sudan [negros], argelinos, e também os antigos habitantes da ilha, que vol-
taram completamente “europeizados.” Os que voltaram eram, verdadeiramente, todos
naçāra. Os europeus que vinham nesse barco eram como a gente das Canárias.
Houve uma nova aldeia que nasceu, e que assim permaneceu por muito tempo. Toda
essa gente ficou depois por lá. Antigamente, para chegar à ilha de Agadir era necessária
uma autorização dos naçāra que lá estavam. (Muhammadīn ould ‘Abdarrahmān, Tīn Ieija,
Dezembro 2005)
11
A descrição do famoso poço de Arguim, por exemplo, aparece-nos aqui com particular exactidão: “(…) il s’agit de puisards, creusés
dans deux dépressions plus ou moins ensablées sous un auvent rocheux constituant le plafond d’une sort de grotte ouverte sur la sur-
face du sol; il faudra donc, pour atteindre l’eau, descendre d’abord verticalement pour se trouver au niveau de l’orifice du puits, puis
avancer horizontalement jusqu’à celle-ci” (Monod 1983: 176). Os trabalhos dedicados a Arguim são tão diminutos que julgo valer a
pena incluir aqui a descrição que Teixeira da Mota faz do local: “A feitoria estava recolhida na fortaleza, e o seu funcionamento, diri-
gido por um feitor (que em Arguim era também normalmente o capitão da fortaleza), operava-se por meio de vários oficiais régios,
protegidos por um pequeno número de soldados (…). A feitoria fortificada de Arguim – estabelecida na única ilha com água doce na
região e a pouca distância de Uaden, importante escala do comércio trans-saariano – serviu para obter sobretudo ouro e escravos (e,
em menor escala, goma e pescado), por permuta principalmente com trigo, tecidos europeus, têxteis marroquinos e prata. Não se
conhecem os regimentos que regulavam o seu funcionamento, mas a legislação geral manuelina e outros documentos de começos do
século XVI permitem ter uma ideia daquele e concluir, como era lógico, que a experiência aí adquirida foi útil para estabelecer o
regime iniciado por Diogo de Azambuja em S. Jorge da Mina em 1482. A importância desta última rapidamente superou em muito
a da feitoria de Arguim, cujo comércio declinou ao 1ongo do século XVI” (Teixeira da Mota 1976: 16; cf. Azinhaga 1965).
12
Insisti, em sucessivos encontros, para que este interlocutor desenvolvesse esta ou outras narrativas relacionadas, mas Muhammadīn
ould ‘Abdarrahmān sempre afirmou que aquela era a única tradição familiar que seriamente se relacionava com a presença por-
tuguesa. No entanto, e ainda entre os Ahl Bouhubbaīni, são referidas, de forma bastante mais vaga, tradições que associam o
desaparecimento de figuras locais com viagens forçadas à Europa. Estas narrativas são activadas, e as suas personagens identifi-
cadas, através dos processos de partilha de herança destes familiares desaparecidos, uma vez que alguns destes acordos seriam já
registados por escrito.
Figura 1. Acampamento Ahl Bouhubbaīni em Tīn Ieija (uma localização assinalada por Paul Marty
como um dos poços Tandgha [Marty 1991: 258]). © F. Freire.
Note-se que este tipo de associação não é de todo vulgar, e geralmente distancia-
-se do surpreendente realismo da tradição registada nesta família. Tratam-se, na maior
parte das vezes, de reconfigurações muito pouco objectivas, cruzando cronologias
quase sempre contraditórias e que apontam um esforço de definição identitária e,
sobretudo, de valorização estatutária. A narrativa supracitada não foi, no entanto, a
única encontrada entre os Ahl Bouhubbaīni, e ainda nesta região, Bādi ould Ahmad
repetiu-nos uma outra tradição ligada a Arguim e aos seus visitantes naçāra. Neste
caso, muita embora continuem a articular-se os mesmos dois elementos, são também
enunciados aspectos bastante menos claros, e cronologias historicamente muito mais
ambíguas, mas que considero ainda assim relevantes ao ilustrarem a amplitude dos
desenhos identitários desenvolvidos:
Posso contar uma história que se transmite na minha família – e que é conhecida por
todos os Ahl Bouhubbaīni –, que envolve o “posto” [marKez] de Agadir, Portugal e
Muhammadīn ould Bouhubbaīni.
No tempo de Muhammadīn ould Bouhubbaīni os Portugueses estavam no porto de
Agadir. Viviam aí permanentemente, mas faziam incursões no continente. Os Portugueses
tinham leões guardados no porto de Agadir e lançavam-nos sobre o continente quando
faziam as suas razias. Esses leões destruíam tudo à sua passagem e os Portugueses utilizavam-
-nos sempre.
Os Tandgha da região estavam em Bīr al-Gareb [no continente], abastecendo-se de água
na ilha de Agadir. Os Ūlād Rizg vieram ter com os Tandgha pedindo-lhes ajuda contra os
Portugueses e contra os seus leões. Os Portugueses tentavam controlar todo o território e
já tinha havido combates. Os Ūlād Rizg ajudaram os Bouhubbaīni a construir um novo poço
em Bīr al-Gareb, quinze ou vinte quilómetros em frente de Agadir [uma vez perdido para
os Portugueses o poço de Agadir].
Quando as pessoas compreenderam que não conseguiam vencer [militarmente] os Por-
tugueses, decidiram pedir a ajuda a Muhammadīn ould Bouhubbaīni. Este disse conhecer
uma “magia” [sihr] que podia utilizar sobre um grande vitelo: – Vou mandá-lo contra os
leões, e, se o vitelo ganhar, isso quer dizer que vocês vão poder combatê-los; se o vitelo for
derrotado, não há nada a fazer, vocês são impotentes contra os Portugueses.
Esperaram então que os Portugueses soltassem os leões, lançando nesse momento o
vitelo. O vitelo matou os leões e a partir daí os Portugueses progressivamente deixaram a
zona. Mais tarde chegaram os Holandeses…
(Bādi ould Ahmad, Baguend, Dezembro 2005)
Apenas encontrei tradições deste tipo entre dos Ahl Bouhubbaīni. Na maioria
dos casos, como veremos, o tipo de associação entre populações locais e europeias
faz-se sobre elementos de cariz económico e comercial, ou sobre impressões que
empurram uma qualquer fractura genealógica – onde se incluiu um(a) personagem
europeia – sobre uma tribo que não a sua própria. Junto dos Ahl Bouhubbaīni, no
entanto, encontrámos a reprodução de quadros mais abrangentes, que directamente
conjugam a inicial presença europeia em Arguim com a definição estatutária do
grupo.
Para além da associação entre Muhammadīn ould Bouhubbaīni e a fortaleza de
Arguim – historicamente improvável –, desenha-se também uma aproximação aos
Ūlād Rizg.13 O facto de ser apresentada uma colaboração entre um grupo eminen-
temente pré-árabe (os Ahl Bouhubbaīni), e os primeiros árabes que se instalam
definitivamente no sudoeste saariano (os Ūlād Rizg), promove, naturalmente,
repercussões importantes. Concretamente, a antiguidade dos Ahl Bouhubbaīni no
território, e a possibilidade de um relacionamento profícuo entre dois quadros
estatutários distintos. Mas, de facto, concretiza-se aqui também uma afirmação da
superioridade dos poderes zuāīâ face às armas dos Ūlād Rizg (de estatuto hassān),
uma vez que terá sido o talismã utilizada pelo filho do fundador dos Ahl Bouhubbaīni
sobre um vitelo, que provocou a derrota dos invasores cristãos. É desta forma que
a qabīla reclama ter estado na origem da decadência portuguesa/europeia na costa
saariana, “provando” a sua supremacia numa região até então ocupada por naçāra,
e devolvida aos seus habitantes pela intervenção “divina” de Muhammadīn ould
Bouhubbaīni.
13
Os quadros genealógicos estabelecidos relativamente aos Ūlād Rizg comportam inúmeras versões, mas todas elas os associam
a um corpo árabe que terá chegado ao sudoeste na Mauritânia entre o final do século XV e o início do século XVI (Bonte 1998:
231; Norris 1982: 201; Ould Hamidoun 1952: 39).
14
A aldeia de Tigumatin surge como vértice do processo que reinventa o estatuto zuāīâ dos Idau al-Hājj, e onde se consolida a
sua vocação comercial. Pensando, desde já, em ligar a narrativa Idau al-Hājj abaixo exposta, com os projectos comerciais desen-
volvidos por europeus na região, interessará notar que Tigumatin se aproxima geograficamente da escala de “Anterote” (a sul da
actual Tiguent), onde se reconhecem transacções comerciais euro-saarianas desde o início do século XVI: “(…) onde está outro
resgate que se chama Anterote (…) E tem o resgate alli como em Arguym em seus navios, porque nom ha hy lugar nem castello,
nem nada” (Valentim Fernandes em Cénival e Monod [eds.] 1938: 124 e nota 245).
(ver Moreira, neste volume) na foz do rio Senegal (uma operação que seria, de facto,
implementada, pelo seu irmão Atjfagha Aubak).15
Transcrevo abaixo uma das narrativas que define a inicial associação euro-saariana
dos Idau al-Hājj, tal como é actualmente apresentada pelo seu mais respeitado “histo-
riador”, Ahmad ould Sīdī Muhammad (ele próprio, sem surpresa, também um comer-
ciante; ver Figura 2):
Najib ould Xams al-Dīn, “filho” de um dos fundadores de Ouadane, saiu de Oua-
dane e viajou até Tigumatin. Em Tigumatin encontra-se com Omar Fall, e questiona-o
sobre alguém que o pudesse ajudar a coser os tecidos que negociava. Omar Fall apresenta-
-lhe Hafsa mint Muhammad Sadik, uma mulher Tandgha, da fracção Idagvūdia, de
origem xerifal. Najib deixa os seus tecidos com Hafsa, e, no seu regresso, fica muito
satisfeito com as costuras que ela fez. Najib pergunta então a Omar Fall se Hafsa é
casada. Este responde que não. Pergunta então quem é o seu tutor, ao que Omar Fall
responde ser ele próprio. O casamento é organizado em Tigumatin pelo próprio Omar
Fall.
Deste casamento nascem três filhos: Atjfagha Aubak, al-Amīn e al-Uahij (ou al-Uavij).
Quando cresce, o segundo filho parte para Marrocos. Al-Amīn, criado num meio zuāīâ,
viaja com o objectivo de comprar livros. Em Marrocos trabalha para a casa real, sendo daí
enviado à Europa para comprar papel.
Nessa viagem al-Amīn desloca-se a Portugal, onde, durante uma refeição, o ten-
tam envenenar. Apercebendo-se do que se estava a passar, imediatamente toma um
“antídoto” que a sua mãe lhe havia preparado para situações como esta: pó de goma-
-arábica. Os seus anfitriões, apercebendo-se que ele estava salvo, perguntam como é
que ele tinha conseguido resistir ao veneno. Al-Amīn revela que tomou um produto
que a sua mãe lhe havia dado. Os Portugueses perguntam onde encontrar esse pro-
duto. Al-Amīn diz-se indisponível para os guiar, uma vez que estava em missão para
os marroquinos, mas decide ajudar os Portugueses escrevendo uma carta que estes
15
As diferentes versões desta narrativa estabelecem localizações divergentes quanto ao local onde se terá efectivado a negociação
deste trato, mas todas elas referem um encontro com cristãos. São mencionadas fortalezas no litoral marroquino, o acolhimento
no seio de uma coroa cristã da Península Ibérica, ou uma recepção em Gibraltar (Ould Hamidoun 1952: 14; Webb 1995b: 109-
-1). A associação que no meu caso foi estabelecida com Portugal, deve ser compreendida de forma mais geral, cruzando diferen-
tes nacionalidades europeias, mas sempre resultando no estabelecimento de operações comerciais euro-saarianas. Neste sentido,
leia-se ainda o excerto do texto, não publicado, de um outro notável Idau al-Hājj: “Tout a commencé, selon la tradition orale,
quand Elemine ould Enejib, qui était au Maroc pour suivre ses études, a effectué une visite à Gibraltar; là, il a réussi à intéresser
des commerçants Anglais à la gomme arabique qui est récoltée en abondance dans son pays (…). Quand les Anglais se sont mon-
trés intéressés, Elemine leur a remis une lettre de recommandation adressée à son frère Alfagha Awbek au Trarza. Les Anglais
sont vénus l’y trouver; et là ils ont signé avec lui un accord commercial qui fait obligation aux capitaines de tous les navires qui
accostent au large du Trarza pour l’achat de la gomme arabique de payer exclusivement aux descendants de Najib une taxe appe-
lée amkouboul. Les premières opérations de traite de la gomme effectuées au niveau du Trarza avec les Européens, l’ont été par
Alfagha Awbek ould Najib. A sa mort, son neveux El Moctar ould Elemine ould Najib a assuré la relève et depuis lors les Idawal-
haj ont eu la haute main sur cette activité qu’ils ont gardé pendant long temps la prérogative de réguler et de taxer à leur profit
exclusif ” (Mohamed Lemine ould al-Kettab, Les Idawalhaj et leurs différents migrations de Ouadane).
deveriam apresentar ao seu, irmão mais velho, Atjfgha Aubak, em Beijik, junto à foz
do rio Senegal (ainda que as operações comerciais viessem depois a decorrer em
Injahen, na margem senegalesa).
Os Portugueses começaram então a enviar os seus barcos, estabelecendo relações pri-
vilegiadas com os Idau al-Hājj, seus principais interlocutores, que reuniam a goma-arábica
que era comerciada nas margens do rio Senegal, em troca de tecidos, armas, espelhos…
(Ahmad ould Sīdī Muhammad, Idau al-Hājj da fracção Ahl Atjfagha; Zamzam/Rosso,
Outubro 2004, in Freire 2009: 164-6)
16
Nunca foram encontrados vestígios materiais da presença portuguesa no Adrar, muito embora as tradições orais que local-
mente a mencionam, e os dados historiográficos que a confirmam (Godinho 1983/1984, 1: 67).
A maioria das tradições orais e genealogias que recolhi, referem que Maham, um
dos filhos de al-Amīn ould Najib, terá casado com uma mulher estrangeira. Essa mulher,
‘Aguiga mint Barmi, “é espanhola ou portuguesa”, lê-se no al-Ansab al-Ūlād Daimān
(Ould Emmain s/d [meados do século XX]: 14), uma respeitada carta genealógica do
sudoeste saariano. A origem de ‘Aguiga é também por vezes associada aos famosos
bafur,17 sendo que actualmente é geralmente descrita sobretudo como naçrānīa.18 O
enquadramento etimológico do nome ‘Aguiga mint Barmi levanta problemas imediatos,
que acompanham o labirinto que a enquadra genealogicamente. Ainda assim, insisto,
nota-se uma ênfase na defesa de uma origem europeia de ‘Aguiga, quando esta não é,
verdadeiramente, a única direcção que o nome pode tomar (Freire 2009: 248-2).
Outro dado relevante prende-se com o facto do destaque atribuído a Maham na
tradição oral, e nos manuscritos mais antigos, não ser valorizado pela actual liderança
Idau al-Hājj (ligada à fracção Ūlād Mukhtār), surgindo possibilidades genealógicas con-
traditórias em relação à própria descendência de al-Amīn, o precursor da aventura
comercial da qabīla. Se é verdade que uma carta do líder dos Idau al-Hājj ao “rei de
França”, em 1819, responsabiliza “Eliman Ould Nagib/Al-Amin Wuld Najib” pelas acti-
17
A discussão em torno desta população comporta os mais diversos argumentos, mas aqui, muito resumidamente, pensaria ape-
nas em qualificar a utilização dos bafur como categoria ampla sobre a qual podem recair dificuldades de enquadramento gene-
alógico, sobretudo ligadas com a antiguidade da implantação no território e perda de relevo estatutário (Bonte 1998).
18
Entre os Ūlād Bāba Ahmad, ‘Aguiga é referida como “kitābiīa”, e não apenas como naçrāniīa, aproximando-a do conceito de
Ahl al-Kitāb (“Gentes do Livro”); acrescentando a possibilidade judaica ao já complexo labirinto genealógico associado a esta
personagem. Ainda neste grupo, refere-se que Maham ould al-Amīn “trabalharia como tradutor para os Portugueses” (Freire
2009: 245).
vidades comerciais desde sempre desenvolvidas pela tribo (Webb 1995b: 180), as pro-
postas actuais quanto à sua descendência não são claras. Para alguns, al-Amīn terá deixado
apenas um descendente, Mukhtār (Webb 1995b: 110); noutras tradições, al-Amīn teve,
isso sim, três filhos: “Mukhtār, Maham e Ahmad Meilud. Mukhtār teve quatro filhos,
mas os seus irmãos actualmente já não têm descendência. Os filhos de Mukhtār são os
actuais chefes dos Idau al-Hājj. É sobretudo este ramo familiar que permanece mais
activo” (Ahmad ould Sīdī Muhammad, citado em Freire 2009: 239; ver Figura 3).
Para a actual liderança Idau al-Hājj, o primogénito de al-Amīn será Mukhtār, e
Maham, quando referido, será um dos seus irmãos mais novos. Os quadros genealó-
gicos – ou “histórias privadas”, seguindo a proposta de Ould Cheikh (ver antes, neste
volume) – actualmente exibidos, fazem de Maham ould al-Amīn uma figura apagada,
ou, verdadeiramente, “um homem sem qualidades”, na genealogia, hoje prezada, escrita
por Ould Hamdi (década de setenta do século XX). Muito embora reconhecendo que
esta é uma versão heterodoxa da história da tribo (ainda que ligada a algumas das suas
figuras centrais), é precisamente esta versão que procuram patentear – pensando obvia-
mente na valorização da sua própria fracção, os Ūlād Mukhtār. O “blackout genealó-
gico” (Ould al-Bara 2004: 196) relativo a Maham, “o tradutor” (segundo uma versão
bem conhecida na região, e igualmente identificada, mas não valorizada, pelos actuais
líderes Idau al-Hājj), e o progressivo destaque de Mukhtār – e da fracção epónima –,
promovem o último ao lugar de primogénito de al-Amīn, e herdeiro legítimo da saga
comercial dos Idau al-Hājj de Trarza.
Figura 3. Genealogia dos Idau al-Hājj segundo Ahmad ould Sīdī Muhammad.
A defesa desta tese – que hoje se quer oficial – surge fragilizada pelo facto da
descendência de Maham ser bem conhecida em contextos sociais contíguos aos
Idau al-Hājj. Nesses casos, Maham é geralmente reconhecido como “o pai de
Hemeila”, uma mulher de origem Idau al-Hājj que casou com al-Kuri, o primo-
génito do epónimo dos Ūlād Sīdī al-Vali. Nesse contexto, Maham é sempre reco-
nhecido como “Maham ould al-Amīn”. A sua filha, Hemeila, é dita “Hemeila
al-Hajiīa” (isto é, de origem Idau al-Hājj), ou “Hemeila mint Maham mint al-Amīn
ibn Najib”, coincidindo com o texto de Muhammad al-Yadāli (primeira metade
do século XVIII, in Ould Babah [ed.]1990: 148), e com a sua lápide em Tindalah
(ver Figura 4).19
Este apagamento pode associar-se quer ao papel dos descendentes de Mukhtār
ould al-Amīn (actuais líderes da qabīla), quer ao facto da biografia conhecida de Maham
se ligar a elementos “não ortodoxos” (leia-se, a sua proximidade com personagens
cristãs). O facto de Maham poder ser associado ao comércio euro-saariano enquanto
tradutor, mas, sobretudo, a possibilidade de este ter assumido uma aliança matrimonial
com uma estrangeira (quase sempre descrita como europeia), constituirão aspectos
suficientes para ancorar o seu actual “esquecimento”.20
19
Ahmad ould Sīdī Muhammad defende ainda que Maham terá sido o primeiro Idau al-Hājj a ser sepultado em Tindalah.
20
A actual chefia Idau al-Hājj não destaca o papel de Maham como tradutor no comércio euro-saariano, e procura, a todo cus-
to, ocultar este elemento banalizado sobretudo na tradição oral.
21
O emirato de Trarza estrutura-se em redor dos Ūlād Ahmad ben Damān, mas comporta ligações importantes a muitas outras
tribos, que se posicionam junto, ou contra, o emir do momento (Curtin 1971; Ould Cheikh 1991; Ould Sa‘ad 1989; Taylor
2002).
ples vocação profissional, mas definido como uma perfeita sublimação do ordenamento
estatutário da qabīla: os dotes linguísticos de Bāba Ahmad fazem dele um interlocutor
respeitado junto do emirato, capacitado para todas as matérias escritas (“leitor de tudo
o que é escrito”, é a expressão sempre repetida). Este enquadramento incorpora os
encontros comerciais desenvolvidos junto de agentes europeus na faixa atlântica saa-
riana no tecido identitário da qabīla, e serve a sua inscrição (estatutária) na sociedade
bidan; transformando o que seria um mero tradutor, num quase paradigma da ética
zuāīâ.
A tradição que relata o início das actividades de Bāba Ahmad junto do emirato de
Trarza é apresentada por H. T. Norris:
Bāba Ahmad was honoured by the Maghfar ‘Arab’ clan of Ahmad b. Dāmān. It is said
that Portendick (Injil) near to Nouakchott was founded after the conclusion of a treaty
between Ahmad b. Dāmān and a European, possibly a Portuguese called Rodrigo or Rodri-
gues. The latter had written to the Arab prince asking for a trading agreement, and it was
Bāba Ahmad who read and translated the proposal to this prince. As a reward the latter
gave Bāba Ahmad a portion of the dues (amkūbal or kharāj) exacted on trading vessels, and
this privilege was enjoyed by his descendants (Norris 1969: 499).22
22
Ould Cheikh refere que os primeiros acordos comerciais entre o emirato de Trarza e comerciantes europeus foram estabele-
cidos ao tempo do sucessor de Ahmad ben Damān, o seu filho “Häddi” (1991: 76-7). Em termos de documentação escrita,
devemos considerar apenas o século XVIII como o momento em que se identificam acordos comerciais euro-saarianos (cf. Kol-
termann e Rebstock 2006).
23
Os esforços que desenvolvi junto dos Ūlād Ahmad ben Damān (qabīla emiral) não foram frutíferos. A relação comercial com
europeus nunca me foi referida como significativa, ainda que se reconheça o encontro entre os primeiros emires Trarza e comer-
ciantes europeus (indiscriminadamente associados quer a Portugueses, Holandeses ou Ingleses). A forma como neste contexto se
expõem esses encontros não parece apontar uma significativa intensidade no tecido identitário definido. As actuais chefias Ūlād
Ahmad ben Damān surgem valorizadas sobretudo através de narrativas de conquista e organização de um espaço político próprio
(o emirato), e estas fórmulas menorizam qualquer ligação com europeus.
Quando Bāba Ahmad era jovem foi enviado até Sīdī Ahmad al-‘Arusi.24 Nessa “dele-
gação” [surba] iam Bāba Ahmad, Ahmad Bazaid [primo materno de Bāba Ahmad] e um
Tandgha chamado Buiader. Conta-se uma “história” [ruāia] sobre cada um deles: Bāba
Ahmad decide ocupar-se de tudo o que seja escrito; Ahmad Bazaid, de todo o “oculto”
[baTna]; Buiader, do “mundo visível”.25
Quando chegaram, Sīdī Ahmad al-‘Arusi decide testá-los. Na mão direita encerra uma
tâmara, na mão esquerda um pedaço de carvão. No momento em que al-‘Arusi tenta trocar
a tâmara pelo carvão, Buiader agarra-o, impedindo-o de os enganar. Sīdī Ahmad al-‘Arusi
mostra depois o seu “quadro mágico” [jaduāl], no qual Ahmad Bazaid descobre rapida-
mente um erro, e trata de o corrigir. Al-‘Arusi mostra depois uma carta espanhola, que Bāba
Ahmad começa a ler. Al-‘Arusi impede Bāba Ahmad de continuar a leitura em público e
retira-se na sua companhia. (...)
Mas voltando ao kubl… isso passou-se entre Bāba Ahmad e Ahmad ben Damān (al-‘Arusi
depois partiu e não voltou). Bāba Ahmad ajudou Ahmad ben Damān a fazer acordos e con-
tractos com um país europeu, que eu não sei qual é. Foi assim que Bāba Ahmad se tornou
tradutor. Ele era muito forte em tudo o que era escrito. Ahmad ben Damān concedeu-lhe
o kubl da salina [sebkha], que continuou a ser recebido até um passado próximo, já muito
depois de Bāba Ahmad. (Ahmadu ould Hmaiada, Igerm [Trarza], Novembro de 2006)
Neste caso, tal como nos exemplos Idau al-Hājj, o enquadramento do inicial encon-
tro euro-saariano assenta em vectores comerciais, ainda que aqui se prove uma recon-
figuração positiva do papel de Bāba Ahmad, que evolui da figura de simples tradutor,
para a consolidação de um modelo eminentemente zuāīâ, ligado ao saber escrito, e
neste caso, ao domínio da palavra.26
Voltando a Norris e à tradução que Bāba Ahmad terá efectuado da carta de um
certo Rodrigo (ou Rodrigues), uma “Memória” depositada na Biblioteca da Ajuda
(Lisboa), datável das primeiras décadas do século XVII, identifica efectivamente uma
personagem de nome “Rodrigo Freire” operando no rio Senegal em datas que podem
24
Companheiro do emir Ahmad ben Damān e figura eminente da “conquista” árabe do sudoeste saariano, na primeira metade
do século XVII (Norris 1986).
25
Este debate deve também incluir-se no quadro de uma competição inter-tribal, uma vez que Ahmad Bazaid (Barikallah), tal
como Bāba Ahmad, proveria também “acompanhamento espiritual” aos emires de Trarza (Norris 1969: 499-0), e, em algumas
tradições, seria ele próprio o responsável pelo aprofundamento das transações comerciais euro-saarianas: “On raconte encore
sur la côte l’histoire d’un Barikallah du nom d’Ahmed Bazeid qui aux XVe-XVIe siècles (?) se serait rendu à Agadir (Arguin) et
conclu un traité avec les Portugais” (Monod 1983: 219).
26
Ainda que neste capítulo se procurem sobretudo apontar as tradições que relacionam Bāba Ahmad com o emirato de Trarza
e com o comércio atlântico, reconhecem-se inúmeras outras dimensões zuāīâ a esta personagem: “Saints such as Abā Zayd of the
Īdaygub and his cousin Bāba Ahmad al-Daymānī provided food or rain when either was scarce, punished offenders by long-
-distance guidance of meteors and magic spells, and undertook swift journeys on holy donkeys and on flying sticks” (Norris
1969: 499). Este enquadramento “místico” de Bāba Ahmad não é hoje em dia valorizado, e é dificilmente desencerrado nos dis-
cursos que oficialmente visam a definição identitária dos Ūlād Bāba Ahmad.
Primeiramente no rio Senegal se carregão cada hum anno seis, e sette naos de courama,
marfim, goma arábico, que lhes serve para tinturas no qual rio os Ingreses tem feito hua
ilhotta, que o mesmo rio fas da banda de dentro da barra huã casa na qual lhe fiqua sempre
gente depois de terem carrega para outras que ham de vir das mesmas partes ao dito rio
em as quaes veio por muitas vezes hum Rodrigo Freire natural de Villa Nova de Portimão
a fazer resgate no dito rio em huã nao ingresa (…).27
Conclusão
27
Este documento foi-me generosamente cedido pelo Professor José da Silva Horta (FLUL), que será a autoridade a consultar
sobre a autoria e datação desta “Memória” (catalogada como Memoria, e relação do resgate que fazem francezes, ingrezes, e fra-
mengos na costa de Guiné a saber do rio de Sanaga atee Serra Leoa, Biblioteca da Ajuda, cód. 51-VI-54, n.º 38, fls. 145-147,
[s.d.], fl. 145).
alógicos entre Idau al-Hājj e Ūlād Daimān; ou a associação dos Ūlād Bāba Ahmad ao
emir “árabe” de Trarza.
Os elementos aqui apresentados provam também que o encontro entre qabā‘il
bidan e personagens naçāra não se institui como uma ruptura, traduzida no desenvol-
vimento de uma nova historicidade. Trata-se de um quadro relacional plenamente
incorporado e identitariamente significativo até aos dias de hoje. Os vínculos criados
através da representação do encontro euro-saariano definem-se em conjunto com
outros quadros (locais), que são reconsiderados à luz destes elementos. Nota-se tam-
bém a contínua aplicação do conceito de qabīla nos quadros narrativos expressos,
relacionando-se com uma reiterada afirmação dos posicionamentos estatutários. Esta
reflexão prova uma plena integração das narrativas orais que debatem a inicial pre-
sença europeia no Saara atlântico nos contextos bidan, uma vez incorporadas num
debate endógeno que evidencia a flexibilidade e vitalidade dos idiomas tribais.
As fórmulas apresentadas no tratamento dos iniciais encontros euro-saarianos afir-
mam também que os contextos bidan não são passíveis de um tratamento linear, tradu-
zível através de uma qualquer “grande narrativa” (neste caso associada à gesta Almorávida,
à arabidade, ao islão, ao estatuto social, ou à etnicidade). O estudo destas comunidades
não deverá ser circunscrito a uma qualquer leitura teleológica, que apenas servirá para
ampliar uma visão fútil do presente; e que, nesse caso, arrisca o esquecimento de uma
história milenar, que mesmo que marcada por contradições profundas, continua a mere-
cer ser amplamente discutida, procurando incorporar todas as complexidades que defi-
nem as relações sociais e históricas entre diferentes períodos e diferentes populações.
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Introdução
1
Esta reflexão resulta de três missões de terreno à Mauritânia todas no âmbito dos projectos: Castelos a Bombordo I (POCTI/
ANT/48629/ 2002) e II (PTDC/ANT/67235/2006), coordenado cientificamente por Maria Cardeira da Silva. A primeira missão
decorreu em Janeiro de 2005, a segunda entre Janeiro e Fevereiro de 2006 e a terceira em Maio de 2008. Sempre num exercício
de etnografia partilhada, foram levadas a cabo estadias em três aldeias do PNBA: Arkeiss, Agadir e Iwik, mas os nossos modos
de permanência e de envolvimento com a vida das aldeias diferiram substancialmente entre elas. O apoio logístico do PNBA foi
essencial para o desenrolar deste trabalho, facilitando as estadias e integração e possibilitando as deslocações entre as várias
aldeias, e entre o Parque e Nouakchott.
Contexto em análise
O Parque Nacional do Banco de Arguim foi criado em 1976 cobrindo uma área
geográfica de 12 000 Km2 (terrestre e marítima), e está localizado ao longo da costa
atlântica mauritana entre a capital do país, Nouakchott, e a segunda maior cidade e
capital económica – Nouadhibou. Actualmente a sede do PNBA encontra-se em Nou-
akchott existindo uma delegação em Nouadhibou e uma estação / observatório cien-
tífico sur place numa das aldeias do Parque.
O objectivo da criação do Parque foi justificado pela necessidade de protecção e
conservação de um território considerado frágil, cuja riqueza ecológica explica a pre-
sença de densas populações de aves, peixes, invertebrados e mamíferos marinhos, bio-
diversidade esta que legitimou a elevação do PNBA a Património Natural Mundial
pela UNESCO em 1989. O seu financiamento é garantido por várias instituições inter-
nacionais, como a União Internacional para a Conservação da Natureza (IUCN), o
World Wildlife Fund (WWF), o Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento
(PNUD), a Deutsche Gesellschaft für Technische Zusammenarbeit (GTZ), pela Coo-
peração Francesa e Holandesa e, ainda, pela União Europeia. A Fundação Internacio-
nal do Banco de Arguim (FIBA), instituição criada em 1986 para divulgar o lugar além
das fronteiras da Mauritânia, tem sido desde então uma das principais instituições de
apoio ao PNBA, mobilizando e canalizando apoios financeiros e científicos.
Num país onde a pesca representa uma considerável fonte de rendimentos dentro das
políticas de exportação nacionais, a diversidade e abundância dos recursos piscatórios do
PNBA foi alvo de exploração intensiva pelas indústrias piscícolas mauritanas e estrangei-
ras. Com vista à protecção deste frágil ecossistema, o PNBA pôs em marcha um sistema
de vigilância das suas águas, garantido pelos agentes que se encontram no terreno, por
dois radares e por várias embarcações que interditam a entrada de barcos não autorizados
ou detêm os que se encontram em infracção. As únicas embarcações permitidas dentro
dos limites do Parque são as que possuem vela latina e pertencem às populações residentes2.
O PNBA inscreve-se na geografia desértica que caracteriza a Mauritânia e a água
potável não é abundante. Neste sentido, o vasto território do Parque não é propício a
qualquer tipo de produção agrícola, acentuando-se assim a dependência do mar para
sobrevivência, e de alguma pastorícia. Actualmente existem oito aldeias3 dentro dos
limites do Parque, todas com existência prévia à do PNBA, com excepção de Arkeiss
(1993) e Tissot (1998). Aquelas sobre as quais a nossa pesquisa incidiu – Arkeiss, Aga-
dir e Iwik – apresentavam em 2001, de acordo com Ould Cheikh (2003:15), números
2
Na área do PNBA estão autorizadas um total de 114 embarcações movidas com recurso a vela latina (Ould Cheikh 2010).
3
Do sul para o norte: Mamghar (centro administrativo e político da região), Awgej, R’Gueiba, Teichott, Tissot, Iwik, Ten Alloul,
Arkeiss e Agadir.
4
Uma vasta literatura antropológica tem-se dedicado à análise das formas de diferenciação social mauritana, onde a linguagem
tribal desempenha um papel importante, em diálogo com outros indicadores de distinção, como o género, a raça e a idade. Ficam
aqui alguns exemplos dessa literatura: Bonte & Conte (1992), Hamés (1969), López Bargados (2003), Marchesin (1992), Ould
Cheikh (1985) Taine-Cheikh, (1989), Villasante-De Beauvais (1997 a e b). Ver também Freire, neste volume.
para delimitar, tanto cultural como academicamente, estas populações face a outras,
maioritariamente ligadas à pastorícia e ao nomadismo.
Théodore Monod (1902-2000), explorador e científico francês e responsável por
um dos maiores acervos de costumes e formas de vida do deserto do Sara, era um apai-
xonado pelas populações da Mauritânia e publica na década de trinta do século XX,
com Pierre Cénival, um dos primeiros textos descritivos da costa atlântica africana pelos
navegadores portugueses. Trata-se do manuscrito de Valentim Fernandes (Cénival e
Monod [1506] 1938) que representa uma recolha extraordinária do que os navegado-
res portugueses viram ao longo das suas expedições referindo-se já a uma população
específica costeira – os Azenégas shirmeyros:
Eles são chamados pelos Mouros de Azenégas shirmeyros, por causa do peixe que eles
apanham e do qual eles vivem, e schirmeyros por oposição com os outros Azenégas que
habitam no interior onde são caçadores ou comerciantes, e negociam com a Guiné. Estes
Azenégas schirmeyros constituem uma raça distinta, de muito baixa condição e desprezada
por todos os Mouros, sendo considerados por estes como os judeus no nosso país. Schirme
significa peixe. (Cénival e Monod 1938: 55 – tradução nossa)
5
Citação traduzida directamente do original, em alemão, por Gabriele De Angelis.
Por ocasião duma conversa com um grupo de habitantes da aldeia de Agadir, estes assi-
nalaram que a ideia de maré baixa era consignada com a expressão libhar razin: o mar brota
tranquilo, o mar tem pastos, que remete ostensivamente para o universo dos pastores (Ould
Cheikh 2010:173 – tradução nossa)
6
Noutro sítio tivemos oportunidade de desenvolver estas questões (Lucas 2008; Carvalheira 2008).
7
Tendas hoje feitas de tecido de algodão branco no exterior e de tiras de aproveitamento de tecido colorido no interior, supor-
tadas por uma viga de madeira, são tradicionalmente fabricadas pelas mulheres. No PNBA servem sobretudo para abrigar os
turistas, já que a população local vive geralmente em construções feitas a partir da combinação de vários materiais (madeira,
contraplacado, latão). Algumas casas são feitas de cimento, mas a sua construção é proibida no PNBA.
8
De acordo com os registos de entrada de visitantes no PNBA disponíveis na estação /observatório científico de Iwik, os núme-
ros de visitantes foram em 2003 de 628, em 2004 de 528 e em 2005 de 357. As nacionalidades mais representativas eram a
francesa, a italiana e a espanhola. Estes registos apenas podem dar uma ideia aproximada dos turistas na medida em que não são
recolhidos de forma sistemática pelos guardas do PNBA.
Iwik, a aldeia onde se realizou a reunião anual e o arranque das festividades, sofreu
uma verdadeira convulsão por esta data. Dias antes as mulheres começaram a montar
dezenas de khaīmâ-s junto à aldeia e uma khaīmâ gigante onde decorreria a reunião
A própria estação científica de Iwik sofreu também uma pequena “revolução”, tendo
sido parcialmente remodelada para a reunião da FIBA e para servir de estrutura de
apoio logístico para todos os acontecimentos.
Durante esses dias todos os habitantes do Parque contribuíram para a cerimónia
performativa: os homens vestiram os seus melhores boubous, as mulheres estrearam
as melahfâ-s da moda, e também grande parte dos “toubabs” (nome pelo qual são
conhecidos os europeus) com um papel relevante na reunião em questão acabaram
por usar o indispensável boubou numa ou noutra circunstância. Reinava a maior agi-
tação durante esses dias e nós juntámo-nos à azáfama colectiva.
No decorrer da reunião as mulheres e os homens aglomeravam-se separadamente
nas esteiras da grande khaīmâ, intervindo inicialmente apenas um representante de
cada uma das aldeias. Estavam também presentes representantes de ONG’s interna-
cionais, assim como de organismos estatais mauritanos.
Na reunião cada um dos representantes de cada uma das aldeias faz um balanço
sobre a actividade piscatória e a recente actividade turística dos acampamentos. Ques-
tões como a do tamanho da malha de redes autorizadas, ou as restrições de captura às
espécies protegidas são assuntos quentes e polémicos. Também o ponto da situação no
que diz respeito à actividade turística é motivo de controvérsia, pois nem todas as
aldeias usufruem das mesmas condições e dos mesmos apoios por parte do PNBA na
gestão dos seus acampamentos.
No segundo dia de trabalhos foram discutidas novas medidas de protecção do
ecossistema do PNBA. Este é sem dúvida o momento mais conflituoso da reunião, já
que essas medidas são alvo de negociações demoradas em busca de um consenso que
satisfaça tanto as medidas proteccionistas do Parque como a sobrevivência económica
das populações Imraguen.
Esta reunião é tida pela direcção do PNBA como um importante momento na ges-
tão do Parque, pois é um instrumento formal de participação das populações nas polí-
ticas e decisões que dizem respeito às actividades económicas que têm lugar no seio
do mesmo. Também para as populações ela representa, como iremos ver, um canal
efectivo de reivindicação no acesso aos recursos (piscatórios e turísticos), e é um acon-
tecimento onde estas têm possibilidade de negociar com o PNBA as medidas e regu-
lamentações que irão ser postas em prática.
Sendo o único evento onde é dada às populações a possibilidade de dialogarem e
negociarem directamente com as autoridades do PNBA, a mobilização para o mesmo
é de um grande investimento de parte a parte.
Atelier de Concertação
2006 © Lucas
acontece nas oito aldeias do Parque e num território com 12 000 Km2. Esta é também
uma oportunidade para as populações gerirem os recursos disponíveis, nem sempre
concordantes com as políticas do Parque. Um dos funcionários do PNBA referiu-nos,
em conversa informal, que pelo menos 50% da tripulação dos barcos de pesca deve-
riam ser residentes e autóctones das aldeias do Parque. No entanto, uma percentagem
razoável de pescadores do Senegal e de outras regiões do país (uma percentagem que
segundo o conservador é cada vez maior) integram a tripulação das embarcações Imra-
guen. O crescimento de migrantes sazonais para a pesca à corvina é associado ao
aumento da pesca para objectivos comerciais. Para o funcionário a mão-de-obra estran-
geira, mais barata, substitui os pescadores Imraguen, que terão assim de se debater
para ganhar espaço no novo mercado de trabalho. Como membro do PNBA, o seu
discurso mostra um desejo de protecção da população local, que sendo autóctone
deveria ser privilegiada como tripulante dos barcos.
Os proprietários dos barcos, por seu lado, acabam por gerir a sua actividade tendo
em conta os benefícios económicos da mesma, indiferentes, na sua maioria, às ques-
tões de protecção dos pescadores locais. Foi-nos dito também, que muitos deles não
seriam Imraguen, mas sim indivíduos que tinham vindo das regiões interiores da Mau-
ritânia (o que se comprova através do exemplo de Arkeiss), e cujos laços tribais àquela
região permitiam a sua fixação no local, usufruindo assim de uma actividade comercial
em franca expansão.
No caso da população de Arkeiss, estes laços tribais mantidos com o território do
PNBA são um exemplo de como uma população reivindica direitos de usufruto e ocu-
pação do território. Na Mauritânia pré-colonial a propriedade do solo era regulada
de forma consuetudinária, tendo a administração colonial tentado implementar o
regime da propriedade privada, que significava ao mesmo tempo um apelo à sedenta-
rização (Leservoisier, 1994). É com base nesta utilização ancestral do território que os
habitantes de Arkeiss legitimaram a sua ocupação em 1993: “Anteriormente implan-
tados no norte (bairro da Tcharka em Nouadhibou) (…) eles reivindicam, desde que
se instalaram na aldeia de Arkeiss, uma presença antiga na zona do Parque enquanto
nómadas e pescadores ocasionais” (Ould Cheikh 2003:6 – tradução nossa).
Se o PNBA se afigura como um novo gestor daquela área geográfica, não significa
que a sua presença tenha eliminado anteriores formas de apropriação do território,
genealogicamente justificadas. Os Imraguen e outras populações ocupantes da costa,
continuam a relacionar-se com essas antigas apropriações, respeitando-as ou tentando
alterá-las para benefício pessoal ou familiar. Mas a grande parte dos Imraguen conti-
nua a constituir a base de uma pirâmide social. Sem recursos monetários para a cons-
trução dos seus próprios barcos, acabam por integrar as tripulações e, como já se viu,
em franca concorrência com mão-de-obra estrangeira.
Quando numa aldeia se reivindicam terras ou direitos comuns “com base em costumes
de tempos imemoriais”, o que expressa não é um facto histórico, mas o equilíbrio de forças
na luta constante da aldeia contra os senhores da terra ou contra outras aldeias (Hobsbawm
1997:10).
Conclusão
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AMÉLIA FRAZÃO-MOREIRA
1
Este texto retoma alguns elementos apresentados no “IVth International Congress of Ethnobotany” (ICEB 2005) e publicados
em Frazão-Moreira 2006 e outros apresentados no “Xth International Congress of Ethnobiology” (ICE 2006).
quer na estampagem e no polimento dos tecidos. Por tudo isto, o comércio interna-
cional deste produto vegetal, permanece.
A observação e recolha directa realizada no contexto de uma vila mauritana do
Adrar, Ouadane, permite afirmar que, em termos locais, a goma-arábica mantém, na
contemporaneidade, usos e sentidos quotidianos do passado, entre eles os etnofarma-
cêuticos e artesanais.2 Pelo que, percorrer as rotas transcontinentais deste produto
vegetal e observar as suas apropriações locais, permite, afinal, clarificar como proces-
sos de reprodução cultural local com contornos de estabilidade, se estabelecem a par
dos mecanismos históricos complexos de globalização de mercados e consumos.
É possível reconstruir as rotas de tráfico na África Ocidental a partir do séc. VII (Devisse
1990; Godinho, 1956a)4. Os produtos essenciais destas rotas eram, vindo do Norte, o
sal, e, do Sul, o ouro, os escravos e a goma. Mas outros bens eram igualmente trocados:
o cereal, o couro, o cobre, as pedras preciosas, o âmbar cinzento, os cauris e as tâmaras.
2
No trabalho de terreno que realizei muito fiquei a dever: aos especialistas mauritanos, a partilha dos seus saberes; a António
Araújo (conservador do Parque Nacional do Banco de Arguim) e a Zeida (Hospedaria Vasque em Ouadane), a generosa hospi-
talidade com que me receberam e apoiaram; e a Mohamed Lemine Ould Kettab, a disponibilidade enquanto tradutor. Agradeço
igualmente a Luís Carvalho (ESAB/IPB) e a Margarida Fernandes (FCSH/UNL) as sugestões bibliográficas e a Cristina Duarte
(Centro de Botânica/IICT) o trabalho de identificação botânica das plantas colhidas.
3
Albornozes seriam gabões com mangas e capuz; alquicés, capas de lã; alambéis, tecidos coloridos e bordates, tecidos.
4
Tanto J. Devisse (1990) como V. M. Godinho (1956a) reconstroem pormenorizadamente os itinerários transaarianos ante-
riores ao séc. XV, com base nas fontes árabes, e Godinho (1956a; 1962; 1991) fundamenta as descrições posteriores sobretudo
nas fontes históricas portuguesas, entre as quais: Zurara 1994 [1453]; Pereira 1905 [1505-1520], Cadamosto1948 [1507] e
Fernandes 1940 [1507]. Das descrições dos dois historiadores foram retirados para este texto apenas alguns aspectos, de forma
a enquadrar a importância, quer da goma-arábica enquanto produto do tráfico transsaariano, quer de Ouadane e Arguim como
entrepostos do seu comércio.
Uma destas rotas percorria o Saara atlântico, unindo os oásis do Sul de Marrocos,
a R’kiz, Tagante e ao Senegal, e tinha as escalas principais na serra Bafor (Adrar mauri-
tano) e, a Sul, em Audaghoste. Os itinerários não permaneciam fixos, quer por motivos
geofísicos, quer por razões políticas, pelo que as escalas e mercados mais importantes
foram-se alterando ao longo dos séculos5. Assim, a partir do séc. XI a rota referida
deslocou-se para Oeste e a escala principal no Adrar mauritano passou a ser Azougui6,
para mais tarde, no séc. XIII, o itinerário sofrer nova inflexão para Leste e Ouadane
ganhar importância como ponto de paragem.
O estabelecimento da primeira feitoria europeia na costa ocidental de África,
Arguim, fundada entre 1448 e 14507, vai permitir alargar o percurso dos produtos
até à Europa, agora pela rota marítima.
No que diz respeito à goma-arábica, esta chegava a Arguim em caravanas vindas
do Sul, sobretudo da região do Trarza e aí era trocada, quer por produtos manufactu-
rados, como os têxteis, entre eles as mantas fabricadas no Sul de Portugal, ou objectos
diversos (selas, estribos e bacias), quer por prata, coral e pedras vermelhas, ou ainda
por trigo. Como nos relata Magalhães Godinho (1956a; 1962; 1991), este tráfico ter-
-se-á mantido florescente até cerca de 1505.
Iniciava-se então o processo que Emmanuel Wallerstein (1974) mostra conduzir a
uma “economia-mundo”, em que as decisões económicas passam a estar orientadas
primeiramente para o palco do mundo, enquanto que a ordem política continua orien-
tada, principalmente, para estruturas menores sob controlo legal e político.
No séc. XVI, a indústria têxtil, a primeira indústria importante no processo de
industrialização requeria materiais não existentes na Europa: tintas para os tecidos de
algodão e lã e goma para endurecer a seda no processo de acabamento (Godinho 1950,
citado por Wallerstein 1974: 45). E é neste quadro de um processo de “mundialização”
da economia que a importância da goma-arábica foi crescendo.
Contudo, há que ter em atenção que o alargamento das redes económicas a partir
do comércio atlântico não pode ser confundido com o nascer duma lógica económica
totalmente nova, pois trata-se sobretudo de uma “mudança de escala” (Henriques
2004), já que nas sociedades africanas o “valor de troca” era essencial e as relações
intensas entre as diferentes regiões de África, marcadas por fluxos comerciais, popu-
lacionais e de difusão de técnicas, são muito anteriores à presença europeia8.
5
Para entender a relação entre as alterações das rotas comerciais e os ciclos climáticos, ver Blanchard 2005.
6
Esta mudança coincide com o início do império almorávida (séculos XI e XIV), durante o qual Azougui conheceu um período
de prosperidade.
7
Ver referência à feitoria de Arguim em Freire nesta obra.
8
Por exemplo, Bathly (1990) descreve os fluxos entre as regiões africanas, para o período do séc. VII a XI, nomeadamente das
matérias-primas (onde se insere a goma-arábica), dos produtos de subsistência e dos produtos de luxo de uso doméstico (como
os escravos e os cavalos) e dos produtos de consumo de luxo (como os têxteis ou as pedras preciosas).
Como mostra Ould Cheikh (1999), o “comércio atlântico” não foi sinónimo do
declínio imediato do comércio caravaneiro, a “caravela não ganhou à caravana”. As
rotas terrestres mantiveram-se, e continuaram até os seus percursos a norte de Arguim;
por exemplo a goma-arábica manteve o seu lugar nos mercados marroquinos, nome-
adamente em Safim e Messa, como atestam os documentos da época, sintetizados em
Godinho (1945) e Tavim (1997).
Tal constatação não põe em causa o facto indiscutível de as potências europeias,
devido às necessidades da industrialização emergente, terem tentado dominar o comér-
cio transaariano. Mas sim que:
No que se refere ao Sahara, a abertura da via marítima, fez surgir uma verdadeira
“idade da goma” (Ould Cheikh 1991; 1999). Após um período marcado pela impor-
tância do sal, extraído sobretudo das minas de Idjil, e transportado para o Sul (“idade
do sal”), a goma passa a ser o produto comercial mais importante da Mauritânia, como
que um “ouro vegetal” (Cabot 1997).
No que se refere à História do comércio da goma-arábica, são inúmeros os docu-
mentos que dão conta, após o declínio da hegemonia portuguesa, ou seja, entre os
séculos XVI e XVIII, das rivalidades comerciais entre holandeses, franceses e ingleses.
De forma sucinta, pode-se afirmar que o domínio sobre os portos, Arguim e, mais
tarde Portendick (mais a Sul), foi alternando de acordo com as conjunturas políticas
europeias e a manipulação de alianças, por parte dos grupos comerciais, com as dife-
rentes tribos mouras no decorrer dos conflitos locais.
Um estudo exaustivo desse momento histórico é apresentado por Koltermann
(1996). Em concreto, o entreposto até então português, Arguim, foi palco destes atri-
bulados acontecimentos. Após a reunificação de Portugal e Espanha, em 1580, e na
sequência da guerra da independência dos Países Baixos face a Espanha deu-se, em 1633,
a ocupação holandesa de Arguim. Em 1665, os ingleses conquistaram o entreposto mas,
no ano seguinte, a Companhia Holandesa das Índias Ocidentais ocupou de novo a Ilha.
O comércio da goma prosperou, o que levou ao interesse da França, estabelecida já no
Senegal com a Companhia do Senegal, que assim investiu contra os holandeses. Após
9
As traduções das citações ao longo do texto são da responsabilidade da autora.
uma semana de confronto, nesse mesmo ano, 1666, Arguim ficou sob o domínio fran-
cês. Em 1678, a França e a Holanda estabeleceram um tratado de paz e, então, os fran-
ceses destruíram o forte outrora construído pelos portugueses, na tentativa de chamar
o comércio da goma à Ilha de S. Luís na embocadura do Rio Senegal.
Arguim só vai voltar a estar sob soberania europeia a partir de 1685, devido ao
esforço expansionista brandeburguês. A partir dessa data as Companhias de comércio
brandeburguesas (cujos mercadores e marinheiros eram em grande parte holandeses),
os representantes do rei da Prússia, a Companhia Francesa das Índias Ocidentais e a
Companhia Holandesa das Índias Ocidentais, vão-se alternando na ocupação da Ilha,
nas rivalidades, confrontos e estabelecimento de acordos de comércio, entre si e com
os emiratos mouros de Trarza e Brakna10. Em 1728, os franceses, últimos ocupantes
europeus, retiram-se de Arguim.
Pode-se assim considerar esta época como um período de “guerras da goma”, em
que os grupos comerciais europeus se opunham com o objectivo de alcançar o mono-
pólio do tráfico deste produto (Gillier 1926; Ould Cheikh 1999; Webb 1985). A con-
corrência nos anos seguintes realizou-se, sobretudo, entre franceses e ingleses (numa
relação com as tensões políticas na Europa, nomeadamente com a guerra dos sete anos)
e levou à ocupação por parte da Inglaterra dos entrepostos franceses do Senegal, entre
1759 e 1783 e, mais tarde, entre 1809 e 1817. Com o avançar do séc. XIX, a França
empenhou-se em transformar o território mauritano numa colónia sob administração
conjunta com o Senegal, e o comércio da goma passou a estabelecer-se sob a hegemo-
nia francesa.
Até então, forçosamente que o comércio de modo geral (e com especial relevância
o de escravos) e o da goma-arábica em particular tinham tido consequências nas orga-
nizações políticas locais11. Como nos explica Ould Cheikh (1991:202), o comércio foi
um factor na centralização política a Norte (os xerifados) e a Sul (os impérios sahelia-
nos e os principados berberes), bem como afectou permanentemente os povos nóma-
das em cujos territórios as caravanas passavam, porque os grupos mais fortes nas armas
ou dominantes politicamente beneficiavam das caravanas e as tribos e as suas fracções
envolviam-se no transporte e venda dos bens.
No território que é objecto deste estudo, a tribo biDān Idau al-Hājj, originária de
Ouadane,12 ter-se-á constituído como parceiro comercial privilegiado dos europeus no
comércio da goma, no séc. XVII (Ould Hamedou 1992; Webb 1995). Existe aliás uma estó-
10
Désiré-Vuillemin (1970) faz a história das tensões políticas entre emirados, e no interior dos emirados entre grupos tribais, na
sua ligação com as relações estabelecidas com os europeus no decorrer do comércio da goma-arábica, nos séc. XVII e XVIII.
11
Os estudos de Barry sobre a Senegâmbia (1979; 1989) apontam neste sentido e demonstram as mudanças socio-políticas do
Reino de Waalo, situado nas duas margens do rio Senegal, no Sul da actual Mauritânia e no Norte do actual Senegal.
12
Sobre a questão da origem e estruturação dos Idau al-Hājj ver Freire neste volume. [e, sobretudo, Webb 1995]
ria, protagonizada por um membro dos Idau al-Hājj, que relata a suposta origem do comér-
cio da goma e que permanece ainda hoje em diferentes versões, como a publicada por
Freire Francisco neste volume. Na narrativa publicada por Ould Hamidou em 1952:
El Emim Ould En-nejib, dos Idaw El Hadj realizou uma viagem de Médersa a Marro-
cos. A sua mãe recomendara-lhe que comesse três bolinhas de goma depois de cada refei-
ção. Chegado a Marrocos foi, com outros viajantes, aos entrepostos europeus da costa. Aí
tomaram uma refeição que deixou todos os outros doentes, mas que não lhe fez mal. Os
europeus perguntaram-lhe porque razão não tinha adoecido e ele atribui o facto à ingestão
de goma. Os europeus perguntaram então em que região se encontrava a goma e ele deu-
-lhes uma carta para o seu irmão Etchfagha Eoubouk, para que os recebesse bem e fizesse
o tratado da goma com eles. E daí adveio uma grande riqueza para os Idaw El Hadj (Ould
Hamidou 1952:14 – tradução minha).13
Nos relatos orais, quer nos recolhidos e estudados por Freire (2009; capítulo nesta
obra), quer no que nos foi relatado em Ouadane por um membro desse grupo tribal,
numa versão de menor riqueza de pormenor, os narradores apresentaram os europeus
como sendo portugueses, podendo-se eventualmente levantar a hipótese de esta iden-
tificação ser influenciada pelo facto dos narradores estarem em face de interlocutores
dessa nacionalidade. De qualquer modo, como nos mostra Freire, esta estória é con-
tada como fundamento e legitimação de posicionamentos sociais auto-reconhecidos.
Remete-nos assim para o carácter reconstruído da tradição oral (Fentress e Wickam
1994), nomeadamente das narrativas africanas (Tonkin 1986). A goma-arábica entra
desta forma também na configuração simbólica das relações políticas históricas que
permanecem até à actualidade.
Embora fosse uma mercadoria importante do tráfico a bordo dos navios europeus nas
escalas do rio, trocada por contas de vidro e tecidos de algodão (o famoso guinée), a goma
é agora abandonada pela dextrina. O Sul mauritano produz ainda três mil toneladas por
ano, mas o preço caiu de seis francos o kilo em 1927, para um franco e vinte cinco, e depois
um franco em 1934. (relato de viagem de Odette du Puigaudeau, 1933-1934; Puigaudeau,
1992:148 – tradução minha)
13
Podem-se encontrar registos escritos doutras versões desta narração em, por exemplo, Daro 1999. A função dum recurso vege-
tal, normalmente duma planta medicinal, como mediador simbólico face a um grupo social exterior encontra-se noutros contex-
tos africanos. Verifiquei isso nas narrativas nalu da Guiné-Bissau (Frazão-Moreira 2009).
14
Walter Rodney, na sua explicação do subdesenvolvimento africano enquanto resultado da exploração europeia que levou ao
esvaziamento de África em termos do trabalho (mão de-obra escrava enviada para os continentes americano e europeu) e das
matérias-primas, expõe assim o papel da goma-arábica: “A goma de África também desempenhou a sua parte na indústria têxtil,
que, como se sabe, foi um dos instrumentos mais poderosos do crescimento da economia europeia” (1972: 94 – tradução minha).
Para uma síntese da temática do desenvolvimento europeu e subdesenvolvimento económico do “terceiro mundo” nas fases do
mercantilismo, colonialismo e neo-colonialismo, ver Hoogveld 1979.
15
Trata-se do tecido de azul índigo (nomeado pelo vocábulo francês guinée) que, a partir do séc. xviii, se tornou o traje tradicio-
nal da sociedade moura (Ould Cheikh 1999: 62) e, depois, emblema etnográfico dos “homens azuis”.
16
O declínio do comércio da goma está descrito e interpretado essencialmente em Webb 1985.
17
Désiré-Vuillemin (1997) considera que, em 1960, a exportação de goma perfazia 5% do total das exportações mauritanas. Os
dados encontrados nos vários textos e relatórios não são coincidentes no que se refere aos valores anuais das exportações, mui-
to embora mostrem generalizadamente um decréscimo nas últimas décadas. Por outro lado, nenhum dos relatórios mais recentes,
entre eles o referido (Amadou 2005), apresenta de modo consistente os montantes posteriores a 1993.
18
R. Pierlot (1997) considerou que, na Mauritânia, a quantidade de goma-arábica presente no mercado interno era tão signifi-
cativa como a exportada (cerca de 1000 toneladas), e que o consumo per capita anual seria de cerca de 500 gramas. F. Cabot
(1996) apontou para a presença de 300 toneladas/ano de goma no mercado nacional.
19
Não obstante os sistemas de exploração das acácias se relacionarem com dinâmicas socais e económicas, o seu estudo ultra-
passava o âmbito desta pesquisa, uma vez que não foi contemplada a realização de trabalho de terreno nas regiões produtoras
de goma-arábica.
20
É de ressalvar que dois dos estudos apresentados integram-se no quadro de actividades da AFVP (Association Française des
Volontaires du Progresse) com objectivos de desenvolver a produção e comercialização da goma-arábica. Mais uma vez, o estudo
da goma-arábica, seria um bom objecto para entender dinâmicas que ultrapassavam o âmbito desta pesquisa, nomeadamente o
papel das ONG na economia mauritana.
21
Pelas entrevistas que realizei a pequenos comerciantes nos mercados de Atar e Nouakchott, compreendi que parte deles fazem
acordos, eventualmente selados na base de relações familiares ou sociais, quer directamente com colectores/produtores, quer
com comerciantes do Sul, superando assim o peso dos grandes comerciantes. Contudo, estas entrevistas, realizadas aliás, com
alguma dificuldade, tiveram um carácter somente prospectivo e, como tal, as informações obtidas não se podem considerar con-
clusivas. O entendimento da complexidade do comércio da goma-arábica terá eventualmente de partir da análise das relações
estreitas entre a organização económica e a forte estruturação da sociedade mauritana.
madeira), e escrevem na sua ardósia o versículo do Corão que é ditado pelo talib (mestre).
(relato de viagem em 4x4, casal francês pertencente a um projecto humanitário, 2004-05;
Les Bourlingueurs 2004-05 – tradução minha)
Deve-se mais saber, que na direitura de Cabo Branco, pela terra dentro, ha uma
povoação por nome Hodem, que dista da costa obra de seis jornadas de camelo, a qual
não é murada, mas nela se recolhem os Árabes, e serve de escala para pousarem as
caravanas, que vêm de Tombuto, e outros lugares dos Negros a esta nossa Barbaria de
cá.22 O sustento dos habitantes deste lugar, são tâmaras e cevada, de que têm quanti-
dade, que lhes nasce em alguns lugares, mas não quanta lhe baste (…) Não têm habi-
tação fixa, mas andam sempre vagando por aqueles desertos; vão às terras do Negros,
e vem tambem a esta nossa Barbaria de cá: são em grande número, têm muita cópia
de camelos, e neles acarretam cobre, prata, e outras cousas da Barbaria para Tombuto,
e terras de Negros, donde trazem ouro e malagueta, que conduzem para cá (…) (Godi-
nho 1956b: 124-5).
Como referi, Ouadane foi, a partir do séc. XIII, uma escala das rotas das caravanas
largamente ligada ao comércio de sal, e ter-se-á mantido um importante centro de
comércio até ao séc. XVIII.
Actualmente, a população residente nesta cidade ocupa-se da agricultura, nomea-
damente da produção hortícola e dos palmares no oued circundante, enquanto que a
população nómada da região se dedica ao pastoreio. Todavia, o número de famílias
que complementa o seu rendimento com serviços ligados ao comércio e ao turismo é
significativo (ver Cardeira da Silva 2006).
No que se refere à goma-arábica, distinguem-se localmente dois tipos de goma das
acácias existentes na região: talhaia (de Acacia tortilis raddiana) e tamat (de Acacia
ehrenbergiana). Devido à progressiva seca, as árvores da região de Ouadane deixaram
de exsudar, pelo que a goma usada é proveniente do Sul e comprada nas inúmeras
mercearias da cidade. Aqui se vende igualmente um terceiro tipo de goma, auruware,
22
Barbaria era o nome atribuído ao Norte de África, terra de berberes.
23
Ver, por exemplo, Augé 1986; Fassin 1992; Frazão-Moreira 2009.
24
A recolha dos usos medicinais das plantas resultou apenas da tentativa de contextualizar a importância da goma-arábica enquan-
to elemento etnofarmacológico, pelo que não tem um carácter aprofundado, nem foi realizado um estudo comparativo com os
trabalhos anteriores acerca da flora mauritana, nomeadamente: Lamarche 2002; Monod 1952; Monteil e Sauvage 1949; Mon-
teil 1953; Naegelé 1958. É, contudo, interessante salientar que as acácias produtoras de goma são igualmente fonte de um con-
junto vasto de utilizações, medicinais, artesanais e outras.
Nome
Identificação Botânica Utilização Medicinal
(hassaniiya)
Taixat Balanites aegyptiaca (L.) Del. sementes – feridas;
flores – defumações contra doenças pro-
vocadas por magia
Tamat Acacia ehrenbergiana Hayne goma – infecções olhos
Tourja Calatropis procera (Ait.) Ait. seiva – feridas
Velejite Senna alexandrina Mill. folhas – cólera
Neste percurso local, a goma arábica permite fazer face, antes de tudo, à doença
denominada igindi: “É a doença de quem come muito sal ou muita gordura, ou bebe
demasiado chá, o que provoca indisposições, e até tosse e dores de garganta” (síntese
das “variantes” escutadas aos especialistas locais).25 No seu tratamento utiliza-se a goma-
-arábica (de talhaia ou de auruuare) dissolvida em água ou leite, podendo-se também
fazer um medicamento composto por goma e folhas de talhaia maceradas em água.
As outras doenças apontadas como categorias nosológicas semelhantes a igindi
foram: l’brut l-bred (frio), que provoca constipação, dor nas costas e febre; aurak (tra-
duzido por um informante como icterícia) e cujos sintomas são a acidez no estômago
e o tom amarelado da pele e dos olhos; e as doenças de djnun (génios), males, sobre-
tudo de foro psíquico, provocados por seres sobrenaturais da cosmologia islâmica.
Contudo, a goma-arábica não foi apontada como fazendo parte do tratamento de
qualquer uma destas doenças.
Pelas informações recolhidas, no âmbito da “medicina local” recorre-se à goma sempre
nas situações de indigestão, no tratamento de feridas e nos problemas nos olhos. No pri-
meiro caso, a goma é dissolvida em leite ou esmigalhada e misturada com açúcar e consu-
mida na forma de pó; ou ainda, como explicou uma das especialistas, antiga parteira,
quando uma parturiente se sente mal devido ao que comeu antes do parto, dissolve-se
goma num caldo de carne de camelo ou de cabra para ela ingerir. Nas feridas, coloca-se
um pouco de goma esmigalhada de modo a preservar a zona afectada e a sará-la; enquanto
que nos olhos se aplica preferencialmente goma de tamat com um pouco de água.26
A par dos especialistas médicos locais, os doentes podem consultar, nas grandes
cidades, como na mais próxima Atar, os cabinets de médicine traditionnel. São con-
25
Possivelmente as consequências de qualquer ingestão em excesso serão consideradas igindi. Nesse sentido, aponta também
Aline Tauzin, na sua monografia sobre a “arte feminina” do henna na Mauritânia (1998), quando, ao explicar as propriedades
terapêuticas dessa planta (Lawsonia inermis), alerta para o facto de que o consumo do medicamento resultante da decocção das
folhas pode provocar igindi, por ser excessivamente amargo.
26
Pelas descrições recolhidas trata-se de curar situações em que se forma um “grão branco” no olho. Segundo alguns informan-
tes, na preparação do medicamento pode-se misturar na água, não só goma, como com um pouco de kohl (produto cosmético
com que se desenha uma linha escura nas pálpebras, composto por antimónio, mas que pode conter outros elementos, como o
chumbo).
27
Existe mesmo um hadit que a considera uma panaceia: “o remédio para todas as coisas está na goma” (Leriche 1953:280).
28
Estes autores baseiam-se nos textos de Désirée-Vuiellemin 1960 e de Labat 1728.
29
O sistema de saúde estatal prevê que os casos mais graves sejam remetidos para o hospital da grande cidade mais próxima, Atar,
ou para o da capital, Nouakchott, embora, na prática, essas deslocações se tornem difíceis para as famílias de menores recursos.
é apenas e somente: “…uma intoxicação! Mesmo que as pessoas tenham frio e tosse,
vão dizer que é igindi, mas não é”. Embora admitindo que o tratamento com goma-
-arábica se possa revestir de alguma eficácia (ao contrário de outras situações para as
quais não reconhece de todo a utilização das plantas medicinais), este representante
da medicina moderna, “traduz”, deste modo, com base em parâmetros biomédicos, a
concepção da doença, num processo redutor, ao omitir categorias e conexões com
sentido na cultura local.30
Por tudo isto, a utilização da goma-arábica no tratamento da doença igindi permite
constatar a alteridade de percepções e a confluência de conhecimentos e práticas de
diversas géneses.
Contudo, o uso da goma-arábica é também importante noutras práticas do quoti-
diano, para além das terapêuticas.
A goma é essencial para manter a aparência do vestuário de acordo com os padrões
culturais locais. Os boubous, longa túnica que constitui o traje masculino e um dos
tipos de melafa (véu) feminino, denominado alghiata (literalmente “com costuras”),
são engomados do seguinte modo: após a lavagem são demolhados em água onde foi
dissolvida goma (auruuare) e depois são secos ao ar e passados com o ferro aquecido
em brasas.31
Finalmente, a goma é igualmente indispensável para a fabricação de tinta para
escrever. Junta-se goma com carvão (ambos preferencialmente de talhaia) e água e
obtêm-se a tinta utilizada hoje, quase exclusivamente, nas tábuas da escola corânica32.
A goma funciona neste processo como fixador do carvão o que conduz, tal como as
práticas farmacológicas, ao entendimento experiencial das propriedades químicas
deste produto vegetal. Afinal, o conhecimento e uso da goma-arábica insere-se num
conjunto de “etnoconhecimentos”33 que, neste contexto cultural se expressam gran-
demente em campos como o da alimentação humana e animal, da higiene e da esté-
tica e do fabrico de artefactos. Apresentando apenas algumas ilustrações, lembro: o
conhecimento acumulado pelos pastores sobre as herbáceas com que os animais se
poderão alimentar no deserto, por exemplo, al-jerjir (Schouwia purpurea var. schim-
30
Por exemplo, Sindzingre (1984) refere este mesmo processo de “tradução” das categorias nosológicas locais a partir do para-
digma da ciência biomédica, noutro contexto africano (senufo da Costa do Marfim).
31
De notar que o termo “engomar” em português que se tornou sinónimo de “passar a ferro” remete para o uso histórico da
goma-arábica que era colocada nas peças de roupa antes de serem alisadas com um ferro quente.
32
A tinta usada para escrever suras do Alcorão ganha um valor “milagroso”, passa a conter baraka, pelo que é ingerida ou usada
em lavagens em medicamento e talismãs em diferentes contextos islâmicos (Bledsoe e Robey 1997; Hamès 2007), remetendo-
-nos para a componente simbólica e mágica e de incorporação personalizada da escrita corânica (Goody 1981 [1968]; Lory
1993).
33
Evito consistentemente a expressão em muito consagrada de “conhecimentos ecológicos tradicionais” (“TEK – Traditional
Ecological Knowledge”) porque uma discussão da operacionalidade deste conceito ultrapassa os objectivos deste texto (ver por
exemplo, Ellen e Harris 2000.
peri), vulé (Crota1aria saharae) e tajarkin (Fagonia arabica. var. viscidissima); o uso
quotidiano dos pequenos ramos de atil (Maerua crassifolia) na higiene dentária; o
fabrico de esteiras com a erva sabtaia (Stipagrostis pungens); e o aproveitamento das
potencialidades químicas das sementes de al-amur (Acacia nilotica) e das folhas de
amujlud (Pergularia tomentosa) e de sdrai (Ziziphus lotus saharae) e na curtição das
peles.
Está-se assim perante uma continuidade histórica de práticas e saberes associa-
dos a um processo de apropriação social da natureza que se pode considerar local.
Esta continuidade da “localidade” explicar-se-á pelo facto de a vida diária dos
indivíduos ser marcada por um carácter prático e rotineiro, de as interrelações
“face-a-face” se revestirem de enorme importância, de a formação dos mais jovens
se desenrolar precocemente e no meio familiar, e de as experiências individuais
serem fortemente contextualizadas, serem, antes de mais, experiências do corpo e
dos sentidos:
Isto é verdade enquanto a realidade for experienciada, mesmo quando muito do que
está no lugar é adaptado do exterior. Desistimos da ideia de que o local é autónomo, que
tem uma integridade em si mesmo. Ele terá o seu significado mais como uma arena em que
uma variedade de influências vêm em conjunto, actuam talvez como uma combinação única,
debaixo de condições especiais (Hannerz 1996: 27 – tradução minha).
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ZURARA, Gomes Eanes de, 1994 [1453]), Crónica de Guiné. Lisboa, Livraria Civilização Editora.
FRANCISCO LEITÃO
Não se sabe o ano exacto em que os portugueses subiram o rio Casamansa, que
fende horizontalmente a região homónima. Teixeira da Mota é da opinião que foi
provavelmente descoberto por Álvaro Fernandes em 1446 e não por Cadamosto, nave-
gador veneziano que subiu o rio em 1456, ao serviço do Infante D. Henrique, como
é defendido por outros historiadores (Mota 1972).
Desde meados do século XV e início do século XVI, Portugal estabeleceu uma
presença comercial na costa ocidental africana assente no comércio de escravos,
baseada na fundação de feitorias, mas também efectivada não-oficialmente pelos
1
Ao longo do texto “os portugueses” aparecerão frequentemente entre aspas. Opção inspirada no trabalho de Peter Mark (2002),
pretende responder ao problema semântico de pensar a presença portuguesa na Casamansa, quando, muitas vezes, não encon-
tramos aí qualquer português originário da Península Ibérica.
2
Os meus agradecimentos ao Prof. José Horta pela sua revisão prolixa e rica do texto.
Entre 1837 e 1890, contam-se uma longa série de episódios e pequenos conflitos
que envolveram questões relacionadas com sobreposições e renovações de tratados
em aldeias e subsequentes disputas de soberania, que implicaram repetidas trocas de
bandeiras, multas, alguns encarceramentos e terminaram frequentemente em represá-
lias sobre as populações. Os franceses, a partir de Goré, começaram a insistir na ane-
xação de Ziguinchor, movidos pela sua localização geográfica associada a motivações
comerciais (Roche 1985: 204; Trincaz 1984: 34-35). Paralelamente, estava em causa
a delimitação das fronteiras entre o Senegal e a Guiné Portuguesa, que nunca tinha
sido feita.
A 12 de Maio de 1886, os comerciantes franceses, apoiados pela administração de
Goré e pela metrópole, obtêm a desejada vitória, com a assinatura da convenção franco-
-portuguesa. Nela, delimitam-se as fronteiras entre a Guiné Portuguesa e as possessões
francesas, o que na prática equivalia a uma cedência completa da soberania portuguesa
sobre a Casamansa em troca do rio Cassini e direitos de pesca na Terra Nova. Em 1888
começariam os trabalhos de delimitação das fronteiras, que só seriam completamente
dados por concluídos em 1931.
No dia 22 de Abril de 1888, às 8.07h a bandeira francesa foi içada e saudada por
uma salva de 21 tiros de canhão (Brosselard 1889: 136), colocando oficialmente fim
a 243 anos de presença portuguesa no rio Casamansa.
Para administrar Ziguinchor, o poder é delegado no explorador Galibert, sobre-
tudo em função dos seus conhecimentos de crioulo e dos costumes das populações
“portuguesas”. Galibert inicia uma série de reformas, nomeadamente a nível da pro-
priedade, da administração local e do planeamento urbanístico da cidade que visam
diminuir e substituir o poder da elite “portuguesa”. Em 1901, a população mestiça
“portuguesa”, cabo-verdiano e bainunco-descendente, com conexões a Bissau e falante
de crioulo é inclusive relocalizada num bairro novo, periférico, erigido para o efeito.
É nesse bairro, mas também em muitos outros lugares da Casamansa que é possível
encontrar hoje sinais do “elemento português”.
desta identidade foram mudando (Mark 2002: 10). Não obstante, podem-se distinguir,
com segurança, quatro vectores distintos de influência “portuguesa” na Casamansa.
Primeiro. A situação geográfica da Casamansa, isolada do resto do Senegal e do
centro político, económico e administrativo do país, Dacar, e a proximidade geográ-
fica mas, sobretudo, humana com a antiga Guiné Portuguesa, especialmente de Cacheu,
favoreceu e favorece um fluxo forte e constante de influência cultural “portuguesa”
(Leary 1970: 2).
Segundo. Os lançados, juntamente com os exploradores e os comerciantes, foram
os agentes directos de disseminação de uma cultura portuguesa directamente prove-
niente da metrópole. Instalaram-se nas aldeias africanas, onde, juntamente com os seus
descendentes mestiços, assumiam papéis de chefia ou de intermediários nas trocas
comerciais. Na Casamansa, terá sucedido o mesmo (Carreira 1965: 2).
Terceiro. Porventura o vector mais forte, provém das Ilhas de Cabo Verde. Do
século XVI em diante, a população cabo-verdiana manteve um contacto próximo e
regular com o continente e, provavelmente, também com a Casamansa.
Quarto. Tem que ver com os fenómenos de reprodução e evolução local, relativa-
mente autónomos, de alguns traços da cultura portuguesa. Os mais salientes são a lín-
gua e religião. Esta reprodução foi mais acentuada em Ziguinchor e, pelo que apurei
no terreno, a Leste desta vila, na região das actuais aldeias de Sindone e Adeane.
cipal de comunicação. O crioulo é falado por uma grande parte da população idosa
de algumas zonas da Casamansa e o fluxo constante de migrantes da Guiné-Bissau
contribui permanentemente para o reactivar. Está ainda associado à resistência sulista3,
uma vez que o facto de ser colectivamente associado a uma Ziguinchor antiga e com
uma afinidade “portuguesa” com a Guiné-Bissau e de ser desconhecido dos “novos
colonizadores” da região – o elo wolof-muçulmano – lhe garante não apenas um poder
simbólico forte, mas também a função prática de permitir a grupos de casamansenses
conversarem entre si sem que as “gentes do norte” percebam o que eles estão a dizer.
Não raramente esta vantagem do crioulo me foi sublinhada.
A presença portuguesa relaciona-se intimamente com a história da etnia bainunco.
Os bainuncos são a população autóctone (Leary 1970: 19) e foram, em tempos, a
etnia dominante da Casamansa. Tornaram-se virtualmente extintos, já que foram
absorvidos ou conquistados por outros grupos. Segundo Leary (1970: 23), em Ziguin-
chor, foram parcialmente assimilados pelos portugueses em termos de religião e de
língua, mas talvez não apenas nessa vila, já que, no séc. XIX, como actualmente, há
inúmeros registos da presença de bainuncos cristãos também nas povoações vizinhas
de Tobor, Adeane e Sindone. Ademais, nestas como noutras povoações, os indícios
de coincidência territorial de bainuncos e “portugueses” remontam ao séc. XV. Em
Ziguinchor residem sobretudo nos velhos bairros de Thiléne, Santhiaba e Corentas,
precisamente os bairros onde o “elemento português” foi relocalizado aquando da
colonização francesa.
A 1 de Dezembro de 2010, numa conferência em Ziguinchor intitulada “Conquêtes
et Résistances en Casamance: 1850-1945” tendo Christian Roche – porventura o his-
toriador mais importante da Casamansa – como figura de destaque, o debate que se
seguiu às orações aqueceu ao sabor das intervenções do público, que, num ápice, se
encarregou de fazer um fast-forward à conferência para 60 anos à frente da sua janela
de tempo. Tal como um dos elementos do público verbalizou, “actualmente a História
não tem importância na Casamansa, é a questão política que nos interessa”. No meio
do moderado tumulto, destaco duas intervenções, a primeira delas pelo deslocamento
da direcção do debate: um dos intervenientes, de etnia bainunco, protestava veemente
contra o esquecimento votado a esta etnia, inclusive nas Histórias académicas como a
de Roche, alegando paralelamente um branqueamento francês da presença portuguesa
na Casamansa e acusando Roche de estar mal informado. O interveniente, que, através
de mapas por si trazidos reclamava a coincidência da dispersão geográfica bainunco
com a dispersão portuguesa, traído por uma débil oratória, não conseguiu fazer valer
o seu ponto e alguém desferiu uma machadada final na sua intervenção gritando “ce
3
Desde 1982 que existe uma guerra civil pela independência da Casamansa.
n’est pas ça le débat” ao mesmo tempo que Roche refutava as críticas. Poder-se-ia jul-
gar, como julguei no momento, que o interveniente estava tão isolado na sua posição
identitária fora como dentro daquele auditório. No entanto, os discursos de muitos
bainuncos com quem privei mais tarde confirmar-me-iam que a utilização do elo
português-bainunco é um fenómeno identitário minoritário mas vivo.
O corte súbito na intervenção não impediu, todavia, um outro interveniente de
afirmar que a Casamansa é portuguesa e não francesa (afirmação recorrente em toda
a Casamansa). Já esta observação foi escutada pela assistência com maior atenção,
precisamente porque foi rapidamente instrumentalizada para reaquecer o debate sobre
as questões que envolvem o separatismo da região. O caso é o da alegação de que a
Casamansa não é francesa (e, logo, senegalesa) mas sim portuguesa (e logo, indepen-
dente, ou ligada, de alguma forma, à Guiné-Bissau: seja como for, de forma alguma
ligada ao Senegal). Este discurso não é moribundo e o seu último fôlego não pertence
sequer a uma população idosa e bainunco em desaparecimento. Encontrei-o também,
por exemplo, em jovens intelectuais independentistas muçulmanos de etnia diola,
inclusive em versões ferozes e emocionadas.
Porém, aquela que é a “existência” portuguesa mais comum na Casamansa é de
outra ordem e encontra-se parcialmente ancorada no património material. Há uma
série de edifícios na cidade de Ziguinchor aos quais é generalizadamente imputada
uma origem portuguesa. Também é frequente ouvir-se que foram os portugueses que
colonizaram a ilha de Carabane, uma aldeia histórica que simboliza, talvez mais que
qualquer outra, a presença colonial branca/francesa na Casamansa, já que foi capital
desta sub-região administrativa da A.O.F. Nada nestas alegações corresponde a uma
verdade factual, embora alguns edifícios tenham, de facto, uma influência arquitectó-
nica portuguesa (Mark, 2002). A esta ancoragem num património material fictício há
que juntar uma memória colectiva sólida e imaterial: regra geral, os casamansense
sabem que a Casamansa foi, em tempos, portuguesa. Os objectos materiais atrás refe-
ridos são, pois, utilizados como provas ou evidências desta origem, funcionam como
solidificadores de uma consciência histórica. Mas o que quer isto dizer? O que quer
dizer para os naturais da Casamansa ter sido português? Em geral, esse passado é uti-
lizado, uma vez mais, como forma de aproximação identitária à Guiné-Bissau (criando,
nesse momento, um distanciamento de Dacar, do “Senegal”, do Norte e das suas etnias
predominantes). Por outro lado, creio estarmos perante uma forma subtil de vontade
de aproximação emocional e identitária à “branquitude” que, através do elemento
português, ultrapassa as memórias negativas dessa ligação, conotadas com a presença
francesa e com a intensa vivência contemporânea dessa ligação, que permanece pre-
dominantemente negativa, marcada pela diferença material, pelas assimetrias nas pos-
sibilidades de migração e por todas as sombras do colonialismo.
Há uma terceira via de ligação ao passado português, a qual possui uma conotação
que não poderia ser mais negativa: Ziguinchor, nas palavras de quase todos os casaman-
senses, é um nome que teria origem no português “cheguei e chorei” – a reacção emo-
cional à função esclavagista da vila (Ziguinchor foi um presídio esclavagista português)
–, que, por corrupção fonética, teria formado o nome da cidade4. Talvez inesperada-
mente, essa ligação aos portugueses nunca é efectivada e muito menos utilizada de modo
a criar qualquer tipo de animosidade ou de memória negativa em relação a “eles”. Em
todo o Senegal, o ressentimento contra a escravatura é grande e essa emoção manifesta-
-se com uma recorrência implacável, dos círculos intelectuais aos mais populares; porém,
esse ressentimento não é reactivado em relação aos portugueses (o que é tanto mais
surpreendente quando se tem em conta que o Senegal tem um passado de escravatura
bem estudado e intelectualizado). Se convocado, perde-se, como se não tivesse base por
onde crescer, lugar por onde passar. Claro que não sobreviveram símbolos físicos (não
há nenhuma fortaleza da Mina!) que permitam sustentar a ligação com Portugal (o que,
por si só, não constitui entrave suficiente, já que, por vezes, eles são inventados mesmo
quando não existem, como é precisamente o caso de Carabane, que é falsamente conhe-
cida como tendo sido um presídio esclavagista francês) mas o factor determinante para
esse vazio emocional parece ser a ocupação francesa, que terá absorvido toda a hosti-
lidade latente contra “o branco”. Hoje em dia, a minha “lusofonia” ao passear-me na
Casamansa é anódina, apesar de o facto de ser branco o não ser, ou seja: o facto de ser
português não me distingue particularmente de outros brancos mas também não me
aproxima a um natural da França. Pelo contrário: a presença portuguesa é, por vezes,
como já referi, referida com orgulho, utilizada como forma de estabelecer uma distin-
ção dos franceses e do “Senegal”, como evidência a conferência de Christian Roche.
As subtilezas e variações presentes neste case-study encaixam particularmente bem
na tese de Pierre Nora de que a “análise das formas de fazer história sobre o passado
é uma análise das condições de produção dessa mesma história” (1977: 12). Na rea-
lidade, creio que é sobretudo a actualidade de um Senegal francófono e francofoni-
zado, vergado pelo peso do passado colonial mas sobretudo pelo peso das assimetrias
contemporâneas, que contribui decisivamente para esvaziar os gemidos de um passado
esclavagista que, apesar de tudo, tem apenas pouco mais de cem anos. Paralelamente,
é o separatismo identitário casamansense (uma vez mais, um fenómeno contemporâ-
neo), frequentemente alicerçado num discurso de identificação com uma Guiné-Bissau
que, para grande parte da população, pelo menos ao nível do significante, ainda é
“portuguesa”, que anula a “presença negativa” dos “portugueses”.
4
A etimologia do nome “Ziguinchor” está relacionada, na realidade, com a localidade bainunco de Izigichor já mencionada no
séc. XV por André de Almada (1594: 65)
Conclusão
Biliografia
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CARLA ALMEIDA
A Ilha de Moçambique
1
As Aldeias do Futuro, Aldeias Millenium (PNUD: 2008), são um empreendimento apoiado pelas Nações Unidas tendo em
vista a criação de aglomerados populacionais modelo em África, associando inovação tecnológica, comunicação externa e autos-
suficiência. A placa comemorativa da Aldeia do Futuro encontra-se já implantada, mas nenhuma infraestrutura foi ainda aciona-
da (http://www.millenniumvillages.org/the-villages).
2
A Ilha teria tido, segundo informações locais, uma população bem mais reduzida, de cerca de 7000 habitantes. Mas a guerra
civil que grassou em Moçambique durante dezasseis anos, logo após a sua independência e até cerca de 1992, tê-la-ia transfor-
mado num local de refúgio para as populações da costa, que entretanto aí se fixaram.
3
www.unesco.org/new/pt/brasilia/culture/world-heritage/heritage-legacy-from-past-to-the-future
4
No caso da Ilha de Moçambique implicou a aprovação por parte do governo de um “Estatuto Específico da Ilha de Moçam-
bique” que teve em conta as orientações patrimoniais da UNESCO. (Boletim da República 2006)
dades locais se convertam à esfera global5. Mas esta passagem é mediada pelo escrutí-
nio local: são as lógicas e práticas locais que lhe surgem associadas, que conferem o(s)
sentido(s) do “sítio”, como herança patrimonializada. O processo de patrimonializa-
ção pode representar visões imaginadas (políticas e culturais) que reificam a comuni-
dade local, mas para que se mantenha “vivo”, o projeto necessita de ser veiculado
localmente, de fazer parte não só do espetáculo monumental e turístico, mas também
da “intimidade cultural” (Herzefeld 2001) sem a qual o património corre o risco de
fossilização.
The fortified city of Mozambique is located on this island, a former Portuguese trading-
-post on the route to India. Its remarkable architectural unity is due to the consistent use,
since the 16th century, of the same building techniques, building materials (stone or Macuti)
and decorative principles 6.
O património histórico é o manto que cobre a Ilha, fazendo dela um lugar “autên-
tico” e “exclusivo”, intemporal e silencioso, um legado coletivo quase sem histórias.
Os monumentos são afinal sinais da passagem do “outro”, que já partiu. Mas os seus
testemunhos permanecem sob a forma de uma “herança de que não se pode escapar”
(Lowenthal 1998). A partir dela não se encontram antepassados míticos, nem uma
etnogenealogia nacional (Leal 2000), mas pelo contrário, esta herança legitima o ocu-
pante fundador.
Instaurar o património em redor deste legado é também reconstruir e legitimar uma
velha ordem colonial, “di-visionista” (Bourdieu 1997)7, a separação espacial interna entre
“senhores” (Cidade de Pedra) e “escravos” (Cidade de Macuti). As múltiplas narrativas
feitas antes e depois da independência sobre o multiculturalismo presente na Ilha, tradu-
zem muitas vezes visões que “orientalizaram” o lugar, mascarando a política de ocupação
5
Esta globalização passa a seguir outros parâmetros: para a Ilha de Moçambique poder integrar a Rota dos Escravos, o Patri-
mónio Suaíli, o Património de Origem Portuguesa, cada uma destas integrações recoloca a Ilha em esferas mais distantes do seu
quotidiano, ou dos seus modos de vida correntes e tranfere-a para arquétipos globais.
6
Breve caraterização da Ilha de Moçambique UNESCO, http://whc.unesco.org/en/list/599/.
7
Ao contrário da comunidade comercial muçulmana estabelecida na Ilha que os portugueses expulsaram (Roque:1988), os por-
tugueses foram ocupando o território, dividindo comunidades, criando assim uma “visão” do mundo dualista, uma “fronteira”
interna que espelhou a ordem e o poder de quem governava.
da Ilha (Said 2004; Cohen 1993). A alegoria arquitetónica em redor da Cidade de Pedra
é sobretudo ocidental e cristã: a fortaleza, igrejas, palácios, feitorias. A antiga Casa do
Governador, emblema de uma cidade de corte (Elias 2001), foi convertida em museu;
nas praças públicas as estátuas homenageiam figuras portuguesas – Vasco da Gama e Luís
de Camões; as iniciativas de musealização centram-se na recuperação de igrejas8. A valo-
rização constante destes elementos contrasta com a ausência de outras “histórias” e outros
significados históricos. Apenas na Casa dos Escravos e no Jardim da Memória, constru-
ídos numa antiga feitoria, se homenageiam os escravos, uma das principais “mercadorias”
da Ilha durante séculos de ocupação portuguesa (Pereira1988; Capela 1987).
Em busca destas “relíquias”, como alegoricamente se chama um restaurante com deco-
ração colonial, deambulam pela Ilha de Moçambique turistas e os investidores turísticos,
em busca do paraíso, atraídos pela atmosfera de um passado poetizado. Os investidores
estrangeiros procuram adquirir grandes casas na Cidade de Pedra que convertem em hos-
pedarias. Na sua recuperação e decoração recorrem a elementos coloniais. A recriação das
fachadas e de interiores mais ou menos opulentos, no contexto local, contrasta com as casas
dos vizinhos moçambicanos. Muitos destes ocupam edifícios degradados, sem possibilidade
de recuperação, esperando pela oferta económica de um novo “comprador”9 que lhes per-
mitirá uma nova vida, quase sempre escolhida na Cidade de Macuti. Para estes o lugar que
move a procura turística não é exoticizado, e a Cidade de Pedra representa solidão. “Aqui
estamos sozinhos, não tem vizinhos, à noite ficamos sem ninguém. Lá (Macuti) é melhor”,
diz uma mulher que aguarda por uma oferta de “compra” que lhe permitirá despender de
uma quantia monetária para comprar uma casa na Cidade de Macuti.
Os turistas são essencialmente europeus que procuram na Ilha sinais do passado
que possam reutilizar na sua experiência do presente (Connerton 1993). As máquinas
fotográficas colhem a prova da sua experiência de autenticidade que torna a jornada
gratificante (MacCannel 1976; Bendix 1997); a Ilha torna-se numa prova tangível do
passado, onde as ruínas têm um encanto fotografável. Esta aproximação romântica
conforma-se a um roteiro turístico publicado nos anos sessenta do século XX e intitu-
lado “Panorama estético” (Lobato 1966). A narrativa constitui um roteiro de viagem
em que se parte à descoberta da “autêntica” Ilha de Moçambique. Todo e qualquer
recanto, rua e edifício da Cidade de Pedra, tem uma história, um personagem ou um
ambiente, que são retratados numa linguagem saudosista, que lembra os tempos áureos
da Ilha de Moçambique como capital da colónia. Nos anos 60 a Ilha entrava em declí-
8
Existem seis igrejas e seis mesquitas, sendo que só uma igreja tem serviço regular e diário, enquanto as mesquitas estão todas
em funcionamento, repletas de crentes cinco vezes ao dia. Na verdade são os almoedão-s que marcam o ritmo da vida dos habi-
tantes da ilha.
9
Na verdade, em Moçambique e em particular na Ilha de Moçambique, a propriedade pertence ao Estado, que após a indepen-
dência nacionalizou o parque habitacional do país.
nio económico e a sua descrição pitoresca pode ser melhor entendida como uma más-
cara política da decadência simbólica do império (Sousa 2009).
E o que mais se destaca é a cor, “não é possível que esta gente não viva nem pense senão
em função do valor e do sentimento psíquico da cor” (Idem). Duas ordens, duas metáforas
da abordagem estética: nós/eles, civilizados/primitivos, cultos/naturais. Trata-se afinal de
ler a população local numa visão baseada no luso-tropicalismo, um movimento na trans-
formação do Macuti em “ethnoscape” (Appadurai 1998). A sua versão atual pode também
ser exemplificada através da mercadorização turística. Um italiano, proprietário de uma
residência turística no limite da Cidade de Pedra mostrou-me com orgulho o seu quarto
“etnográfico”. Seria para os hóspedes que gostassem de se relacionar com o Macuti: atra-
vés de uma pequena janela, eles poderiam ouvir o Macuti, o barulho das pessoas ao fim do
dia, quando todos se reúnem e o espaço se enche de vozes. A vida quotidiana no Macuti é
marcada por outro género de transitoriedades. Desde logo pelas viagens através da ponte
que liga a Ilha ao continente, associando as populações em comércios complementares. A
partir daqui vários percursos são possíveis através de algumas artérias, mas é a mais peri-
férica e marginal aquela que conduz à Cidade de Pedra. Com exceção da Igreja de Santo
António, até entrar na Cidade de Pedra a paisagem é feita de múltiplas gentes que circulam
entre a praia e as casas. Pescadores e barcos, crianças, mulheres e lixo parecem ocupar toda
a praia em atividades diversas. Na margem oeste, na contracosta, as casas fecharam qual-
quer hipótese de circulação junto ao mar. É já à entrada da Cidade de Pedra que se destaca
o Mercado de Peixe e a Mesquita Verde. Pouco depois, o Hospital em ruínas fará a fron-
teira entre a Pedra e o Macuti. É aqui, na fronteira entre as duas Cidades, que se estabelece
também um espaço de socialização para o qual todos parecem confluir: funcionários locais,
fregueses e comerciantes e outra população que deambula até ao início da noite. Na Cidade
de Macuti, o anoitecer e o nascer do dia são os momentos mais agitados, repletos de sons
e de vozes que vêm das palhotas, casas, becos ou de alguma cantina. Os habitantes dos seis
bairros do Macuti procuram a Cidade de Pedra durante o dia para vender peixe, alguns
Na Ilha existem diversas “forças vivas” que estão integradas na discussão sobre o
património e as suas opções. Cada uma delas reivindica o direito de representar a
comunidade, mas a sua pluralidade revela afinal, não uma, mas diversas comunidades.
Em primeiro lugar as representações institucionais do governo moçambicano (Gover-
nador, Município, Gabinete de Conservação da Ilha de Moçambique), depois, os Ami-
gos da Ilha de Moçambique, sediados sobretudo na Cidade de Pedra e, por fim, os
representantes dos Bairros do Macuti.
A posição defendida pelos órgãos representativos do governo traduz em grande
parte as posições da UNESCO sobre a recuperação do património. A maioria da popu-
lação, excessivamente presa a ciclos de pobreza, parece emergir como um entrave ao
desenvolvimento harmonioso da Ilha patrimonial. Deste modo, a opção governamen-
tal parece ser a de reencaminhar uma parte da população local para a orla marítima
do continente, onde uma Aldeia do Futuro os acolheria. Esta opção é também defen-
dida, de algum modo, pela Associação dos Amigos da Ilha. Um dos seus membros
afirmou-me que grande parte da população residente no caniço não era originária da
Ilha, nem “partilhava de alguns dos seus costumes e cultura”. Uma população exógena
que deveria por isso voltar às suas origens – rurais e não urbanas. Por fim, para os
representantes dos Bairros (Macuti), esta é uma opção sem sentido, porque todos,
originários dali, ou não, são hoje da Ilha, e a questão deve antes ser colocada sobre o
projeto patrimonial, sobre a redistribuição de benefícios e sobre o controle comuni-
tário dos novos investimentos turísticos.
No seu conjunto, os vários organismos de governo da Ilha, representam uma jovem
elite política que tem o poder de decisão sobre as formas de desenvolvimento locais,
fortemente condicionada pela necessidade de preservação do património. Em seu
entender, disso depende o desenvolvimento futuro. Confrontados com graves proble-
mas de sobrepovoamento, procuram junto dos organismos internacionais meios para
a deslocação da população, que está longe de ser consensual ou de ser bem aceite no
Macuti. Por outro lado, a Associação dos Amigos da Ilha de Moçambique, agrega mui-
tos dos herdeiros mais diretos da cultura colonial, uma burguesia criada no período
de ocupação portuguesa. A Associação constituiu-se a partir do seu regresso à Ilha,
após uma prolongada ausência, devido à guerra civil. Uma vez regressados reocuparam
as suas habitações e o seu lugar diferenciado na sociedade local. De um modo geral,
a recuperação da Ilha equivale à recuperação das paisagens que povoaram a sua infân-
cia e das memórias que transportam. Uma Ilha que se descobre sobretudo na Cidade
de Pedra e que se estendeu progressivamente, através de programas de desenvolvimento
– especialmente de apoio às crianças – à Cidade de Macuti.
Quando perguntei a um dirigente da Associação dos Amigos da Ilha se estavam
previstas intervenções para a recuperação da Cidade de Macuti, tive como resposta
um silêncio, seguido por….“parece que uma alemã já ali comprou uma casa para recu-
perar”. Senti que tinha colocado uma questão bizarra. Recuperação rima com Cidade
de Pedra, tal como demolição rima com Cidade de Macuti. Na Cidade de Macuti,
todos os que habitam na Cidade de Pedra são vistos com suspeição, eles retêm os fundos
porque “são os donos da Ilha”. Mas “nós somos daqui. Afinal quem é o estrangeiro?
E esses que vêm para as casas, são o quê?”. Nos Bairros do Macuti a recuperação de
casas é feita todos os dias pelos seus moradores. A modernização chega sob a forma
de chapas de zinco e de tijolos. Pesam os argumentos económicos e funcionais: “Quando
foi o ciclone ficámos sem teto. Agora para pôr custa muito dinheiro. E vai estragar
outra vez!”.
O “ruído” entre uns e outros reflete um mal-estar e formas de não comunicação
que a responsável de um grupo de tufo – performances rituais femininas associadas às
confrarias islâmicas resumiu desta forma: “Quando vamos lá dançar, nós cantamos de
três maneiras: macua, português ou suaíli. Às vezes cantamos para a FRELIMO, outras
vezes para o festival, outras para o hotel… Eles só vêm comer e vão embora. A gente
canta isso, mas eles não vão entender. Mas é por isso que a gente canta”. Esta visão
mordaz traduz certa resistência à mercadorização turística ou à sua utilização como
elemento de apoio à propaganda política.
O tufo é um valor a preservar enquanto património intangível na Ilha de Moçam-
bique. Chegam à cena do património como espetáculo, animam inaugurações e discur-
sos, mas, sobretudo, mantêm nos Bairros do Macuti um espaço feminino de encontros
diários, entre mulheres e levam a sua voz e o seu ritmo até aos palcos da Ilha Patrimo-
nial. A sua espetacularização sob a forma de folclore que objetifica a “comunidade tra-
dicional” está assinalada como parte da herança imaterial, como “tradição”, “força
viva” e talvez a única institucionalizada. Visitantes na Cidade de Pedra conferem-lhe
talvez a única dimensão de cultura popular institucionalizada. Mas nos Bairros, nem
todos concordam: “o tufo não é das confrarias! É só de uma e serve para certas coisas
entre as mulheres. Vêm aqui buscar as mulheres, mas quem é que autorizou? A quem
é que pediram? O que é que eles sabem? Aquilo assim até fica mal”.
Percursos transversais
O João fundador da Associação dos Amigos da Ilha, descreve-se a si mesmo desta forma:
nasceu na Ilha nos anos 30, os seus pais, tinham vindo da Índia. Viveu na Cidade de Pedra (na
casa que agora voltou a habitar para férias). O pai era escrivão no Tribunal e a mãe era a dona
da farmácia local. O seu percurso de vida foi sendo feito ao sabor dos estudos: Ilha, Lourenço
Marques (Maputo), Coimbra. Ali licenciou-se em História e casou. No regresso a Moçambi-
que fixou residência em Lourenço Marques. Virá nas férias, com a família, de visita à Ilha. Por
isso, segundo ele, os seus filhos também são daqui. Ainda hoje se reúnem aqui. Quando veio
a revolução o João aderiu ao partido e teve um papel relevante na área da educação, mas tam-
bém nos assuntos da Ilha. Quando pôde voltar à Ilha no fim da guerra, “estava tudo destru-
ído”, e era preciso fazer alguma coisa. Apoiou a candidatura à UNESCO; fundou a Associação
dos Amigos de Moçambique, trouxe uma ONG para os bairros. Já não estava “ninguém da
ilha”. Segundo ele agora “são camponeses, que se refugiaram aqui (Cidade de Macuti), desde
o tempo da guerra e por cá ficaram”. Segundo o João distinguem-se dos outros habitantes
quanto aos hábitos. Para exemplificar fala nas “tradicionais” mulheres da Ilha. Tinham um
enxoval, capulanas e brincos, colares, que guardavam nuns pequenos baús, a pintura do rosto
com pó de mciro…. A população do Macuti trabalhava pela ilha, nas habitações, comércio….
Para ele o excesso de população é um flagelo para a própria ecologia da Ilha e para o turismo.
Como são pessoas muito pobres, tem que se encontrar uma solução. Sobre a Cidade de Pedra
não vê outra solução que não seja a recuperação e a venda porque as pessoas, umas foram-se
embora e outras, os que ocuparam as casas (depois da independência em 1974) não têm pos-
sibilidades de as recuperar. (Caderno de Campo, Agosto 2009)
A Joana, que nasceu nos anos 40, faz parte da Associação dos Amigos e mora na Cidade
de Pedra onde regressou depois do acordo de paz (1992). Nos anos 60 tinha partido para
Lourenço Marques, onde num lugar de prestígio, trabalhou numa companhia aérea. Na
origem da sua família está o desterrado Tomás António Gonzaga (1744-1810), figura mítica,
poeta no Brasil e advogado e Juiz na Ilha de Moçambique. Do tempo deste antepassado
destaca a escravatura como uma coisa terrível que de resto também aconteceu na cave da
casa onde mora, herança familiar. No seu tempo já não era assim, só soube o que era racismo
quando foi para a capital e descobriu que não conseguia alugar um quarto por ser “negra”
(na verdade é mestiça). A Joana voltou depois da guerra e ajudou a formar um grupo –
Associação dos Prestadores de Serviços de Hotelaria, formado por diversas mulheres da Ilha.
Ela própria aluga quartos na sua casa e tem uma hospedagem compartilhada com a Cristie
(norueguesa) que já vive em Moçambique, como cooperante, há muitos anos e de quem a
Joana é amiga. (da entrevista feita em sua casa, Dezembro de 2008)
Conheci o Abdul porque ele me conduziu pela orla continental, mais do que uma vez.
O Abdul nasceu nos anos 50, foi filho de um comerciante vindo da Índia que se estabeleceu
na Ilha. A propriedade da família ficava no continente e durante a guerra ele e a família deci-
diram defender a propriedade. Acabaram por viver num vai-e-vem entre as terras, no conti-
nente e a loja e habitação, na Ilha. O Abdul nunca saiu para ir estudar: é motorista, tem uma
carrinha que usa para serviços de transporte. Tinha também um sonho: reaproveitar a loja
do pai que estava abandonada. Um dia chamou-me para pedir a minha opinião sobre as obras.
Explicou-me que tinha muita dificuldade em decidir sobre as cores para a pintura, que móveis
deviam ficar, como devia expor os produtos. É que seria uma pastelaria para turistas e ele,
ao contrário do Sr. Vito, não lia revistas e não sabia o que é que os turistas gostavam. Mais,
como me explicou, o segredo podia estar em pormenores, porque o senhor Vito tinha muita
atenção a isso. E até a fachada de casas em ruinas (do Sr. Vito), era uma coisa por causa dos
turistas de que ele (Abdul) nunca se lembraria. (Caderno de campo Agosto, 2009)
Estas quatro histórias mostram como na Ilha, para além de uma “intimidade cultu-
ral” comunitária, se reproduzem, por um lado, reciprocidades e, por outro, relações
identitárias com o exterior. É na cidade de Pedra que este último aspeto parece mais
pertinente. As referências de filiação do João, da Joana e do Abdul, alicerçam-se sobre
figuras externas na identificação da sua filiação, algumas poderosas como no caso da
Joana10. Mas, esta referência é compatível com uma forte valorização das origens locais,
africanas. O mesmo se poderia dizer do Abdul ou mesmo do João que acabará por fazer
um segundo casamento com uma moçambicana. O Sr. Alfredo cuja genealogia é africana,
reivindica uma pertença ao mundo do colonizador, como parte da sua identidade dife-
renciada no presente. O Abdul procura no presente apropriar-se do mundo do turismo,
procurando encontrar os termos da sua própria glocalização. Também a Joana quer levar
o turismo a toda a ilha. Nestes movimentos identitários vão articulando as “duas” cida-
10
Trata-se de António Tomáz Gonzaga, advogado, figura da revolta Inconfidência Mineira, revolta pró-independentista no Bra-
sil e que foi desterrado para a Ilha de Moçambique, em 1972; aqui exerce a profissão de advogado e casa numa família abastada
de comerciantes de escravos. No Brasil continua a ser homenageado como figura literária.
des. Articulam-nas no espaço e no tempo, sobretudo quando isso permite olhar o futuro
e é aí que a referência transversal ao turismo aparece implicada.
Nota Final
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1
Da celebrizada legenda do mapa que esteve patente na Exposição Colonial Portuguesa, realizada no Porto, em 1934, em que o
império colonial português aparece sobreposto, para efeitos comparativos, sobre os principais países da Europa.
Do Cais da Nação
2
À semelhança doutros impérios, e à sua pequena escala, Portugal exibe assim a estreita relação da emergência do turismo com a
das companhias de navegação, cujos arquivos merecem maior atenção. A Empresa Nacional de Navegação foi constituída no ano
de 1881, mediante contrato com o Governo português para efetuar a ligação Lisboa/Moçâmedes e as ligações entre as ilhas de Cabo
Verde e entre estas e a Guiné. Em 1918 passou a designar-se por Companhia Nacional de Navegação. A partir de 1922 esta com-
pete com a Companhia Colonial de Navegação, constituída em Angola a 3 de Julho desse ano. Na década de setenta, com o aumen-
to do tráfego aéreo, estas companhias perdem importância, vindo a extinguir-se, a primeira em 1985, e a segunda em 1974.
3
O itinerário, longo e apressado, incluía paragens em S. Vicente, Praia, Bissau, Bolama, Príncipe, S. Tomé, Cabinda, Sazaire,
Luanda, Pôrto Aboim, Novo Redondo, Lobito, Mossâmedes, S. Tomé e Funchal. Apenas as visitas a Luanda, Lobito e Mossâme-
des se prolongavam por mais do que um dia, não ultrapassando muitas das outras umas breves horas. Alguns registos de impren-
sa testemunham o desagrado de colonos em relação à rapidez e ligeireza das visitas (ver adiante).
4
Escreve o então Ministro das Colónias, José Silvestre Ferreira Bossa, na dedicatória de cada uma das edições dos Lusíadas que
os diretores do Cruzeiro vão oferecer aos governadores das quatro colónias da África Ocidental. O número de passageiros desce
para 208 na capa do Diário de Notícias de 11 de Agosto de 1935.
5
Como a primeira Missão Académica a Angola, organizada pela Junta de Educação Nacional e dirigida em 1929 por Luiz Car-
risso, botânico da Universidade de Coimbra, em que participaram 22 pessoas entre professores e alunos finalistas universitários
de todo o país. Em 1937, Luiz Carrisso voltará a dirigir nova missão académica a Angola. Em carta dirigida a Augusto Cunha e
publicada n’O Mundo Português (Ano II, Vol. II, 1935), Carrisso manifesta o seu apoio ao Primeiro Cruzeiro de Férias.
6
Ver, por exemplo, Sarmento, Alexandre 1942, “A ocupação Científica de Angola”. Boletim Geral das Colónias, Vol. XVIII, n.º
209: 16-20.
7
Cf. “Cruzeiro dos estudantes coloniais à metrópole”, Moçambique: Documentário trimestral. n.º 011, 1937, p.89.
8
Como o de 1940 que “tinha por fim principal facultar aos velhos colonos, que há longos anos não [vinham] ao Portugal europeu,
uma visita que lhes permit[isse] participar nos festejos comemorativos do Duplo Centenário, da nacionalidade e da restauração” (Art.
2.º do Dec. Lei 30: 374). “Esta romagem à mãi-pátria” permitiria aos colonos verificar o “progresso, a paz e a ordem de que o País
hoje disfruta” (Idem). Cf. Silva, Marinho da, 1940, “Cruzeiro dos velhos colonos”, O Mundo Português. Vol. 7, n.º 78: 235-239.
9
Seguido a 9 de Julho de 1934 do II Cruzeiro ACP ao Mediterrâneo (com escala em Gibraltar, Palma de Maiorca, Barcelona,
Nice, Ajaccio e Argel) e a 1 de Agosto de 1935 do III Cruzeiro ACP (de Lisboa e Leixões a Rouen, Antuérpia e Tilbury/Londres).
A organização destes cruzeiros, interrompida pela II Guerra Mundial, viria a ser retomada apenas no final dos anos 70 (Ferreira
2009).
10
Notícia de 1.ª página do Diário de Notícias de 6 de Setembro de 1935; o tema ocupa também a primeira página deste jornal
no dia 3 de Outubro, ao lado da notícia sobre a invasão da Etiópia pela Itália. Seguindo as notícias que saem neste diário próxi-
mo do regime sobre este Cruzeiro Aéreo, apercebemo-nos da mesma ideia de reforço da presença colonial através destas inicia-
tivas: na véspera da partida, 14 de Dezembro de 1935, o Ministro das Colónias, José Bossa, declara ao jornal O Século ser esta
“mais uma afirmação da soberania de Portugal”.
11
E relativamente ao qual podemos encontrar intervenções registadas, ao contrário do que sucede em relação ao cruzeiro, nas
sessões parlamentares de 1935, dado que estas foram interrompidas entre abril e novembro desse ano. O Cruzeiro Aéreo teve
o patrocínio dos Ministros da Guerra, das Colónias e da Instrução, do Diretor da Aeronáutica Militar e do Almirante Gago
Coutinho.
Uma viagem marítima a bordo de um pequeno vapor, onde o asseio seja irrepreensível,
onde uma orquestra nos delicia, onde um salão nos atrai para uma partida de bridge, onde
um restaurante nos chame para um bom jantar, tudo isto, além dos espetáculos que a natu-
reza nos possa proporcionar e dos encantos do bulício de uma assistência agradável, será
ou não será, um ideal, uma justa aspiração, para quem possui um Tejo, um Mondego e a
costa mais ocidental da Europa?14.
Não será de mais lembrar que Lisboa era um importante porto marítimo no pri-
meiro quartel do século, e que essa condição, que trazia “touristes” ao “cais da Europa”
é enfatizada logo no primeiro cartaz turístico nacional que o promove como “the shor-
twest way between America and Europe”.
Esta preocupação será retomada no primeiro Congresso Nacional de Turismo, já
durante o Estado Novo15, em 1937, dois anos depois da realização do Cruzeiro que aqui
nos ocupa, por A. M. de Cid Perestrelo que exaltará a posição geográfica de Portugal,
(…) uma situação magnífica para atrair os viajantes quer da navegação transatlântica,
quer da navegação intercontinental (…) no extremo ocidental da Europa e no caminho dos
grandes países do norte para as Américas, para a África e para o Mediterrâneo, o que lhe
permitiria transformar as suas cidades marítimas em grandes centros de turismo como já
se fazia nos portos do Norte da França, da Bélgica e da Inglaterra (Perestrelo 1936: 3)16.
12
Cujo subtítulo é, significativamente, Publicação quinzenal de turismo, propaganda, viagens, navegação, arte e literatu-
ra. Trata-se de um eloquente e pioneiro, mas infelizmente breve, quinzenário publicado em Lisboa, cinco anos depois da
institucionalização do turismo em Portugal (se tomarmos como data para tal a fundação do Conselho de Turismo), entre
1916 e 1924. O corpo da direção e autores inclui nomes ligados às instituições nacionais do pelouro e os seus núcleos de
propaganda regional, mas o conjunto de participantes – bem como o de temas abordados – é vasto, incluindo nomes
estrangeiros.
13
Guerra Maio in Revista de Turismo, 1916, Ano 1, n.º8 p. 63.
14
Labinna – “Turismo Náutico”, Revista de Turismo, 1916, Ano I, n.º 1, p.4. E, embora a exaltação das potencialidades do turis-
mo náutico se concentre então, fundamentalmente, no porto de Lisboa e na sua vocação Atlântica a exibir à, e a, Europa, não
será por acaso que nos últimos números deste periódico (ano 4, 1920) se começam a multiplicar anúncios das companhias de
navegação com trânsito para as colónias.
15
Se bem que tenha chegado a ser previsto e anunciado para 15 de Setembro de 1935 (Diário de Notícias de 21 de Agosto).
16
PERESTRELO, A. M. de Cid¸1936, “Os Portos e o Turismo. Têse Apresentada pelo Eng.º A. de M. Cid Perestrelo”. I Con-
gresso Nacional de Turismo. Lisboa. Mas a Guerra viria também a contribuir para o atraso nesse investimento, nomeadamente
a partir do bloqueio imposto pelos ingleses. E, apesar de projetadas entre 1934 e 1936 pelo arquiteto Porfírio Pardal Monteiro,
só em 1943 e 1948 são inauguradas, respetivamente, a Gare Marítima de Alcântara e a Rocha Conde d’Óbidos.
(…) o Instituto seria o intérprete junto dos poderes públicos das reclamações e aspira-
ções das colónias. O instituto promoveria viagens às colónias nacionais e estrangeiras, rea-
lizadas pelos mancebos que com melhores classificações concluíssem as suas formaturas e
cursos. A bordo de um navio, fretado para esse efeito, os professores que acompanhariam
os mancebos realizariam conferências. No regresso todos elaborariam relatórios superior-
mente apreciados17.
Mas, ainda que há muito tempo houvesse evidências dessa conexão enunciada e
anunciada do desenvolvimento do turismo com a vocação náutica portuguesa – que
juntava mais uma vez propaganda nacional e turismo, política e lazer – o Primeiro
Cruzeiro de Férias às Colónias – uma iniciativa que Augusto Cunha, escritor e humo-
rista, diretor da revista O Mundo Português, preparou laboriosamente18 –, responde a
algo de novo que retorquia de forma mais plena à conjuntura de Portugal e do Impé-
rio no panorama europeu.
O tempo é de crise económica mundial após o crash de 1929, particularmente sen-
tida nos territórios coloniais portugueses, produtores de matérias-primas. A Alemanha
e a Itália mostram o seu apetite por mais territórios: Goebbels proclama a superioridade
ariana nos mesmos discursos onde reclama as colónias que a Alemanha perdeu em
191819, enquanto o partido nazi engrossa o exército e prepara a indústria militar; Mus-
solini ameaça a Abissínia/Etiópia e o conflito iminente revela a impotência da Sociedade
das Nações. Em Portugal, Salazar tece a estranha e – aparentemente – insustentável rede
diplomática com que procura manter Portugal afastado da guerra.
17
FONTOURA, Álvaro da, 1928, Breve Notícia sobre alguns órgãos de Propaganda Colonial. Separata do Anuário da Escola
Superior Colonial. Lisboa.
18
Cf. Cunha, Augusto, 1934, “‘Uma patriótica iniciativa de o Mundo Português’. Os Cruzeiros de Férias às Colónias”, O Mun-
do Português, 1: 37.
19
Disso dá conta o jornal República de 5 de Agosto 1935
Os jornais do início de 1935 estão repletos de notícias que relatam, de forma con-
vergente, estas realidades. Ao mesmo tempo que o cruzeiro parte do Tejo a “seguir as
pisadas dos descobrimentos”20, inflama-se a importância de todas as iniciativas de apoio
às colónias, como os discursos exacerbados de diplomatas no estrangeiro em aconte-
cimentos irrelevantes21 que falam das colónias que “são Portugal”. Paradigmática é,
por exemplo, a primeira página do Diário de Notícias de 23 de Agosto: aqui se men-
cionam “os rumores sobre a negociação de partilha das nossas colónias” tentando
minimizar-se as pretensões da Alemanha, ao lado se dá enfase a uma pequena “mani-
festação de apoio indígena em Angola” que terá juntado colonos e indígenas no apoio
a Portugal, e se insere ainda uma pequena notícia sobre “as festas na Guiné em honra
dos excursionistas do Cruzeiro de Férias à Colónias”22.
A mera análise colateral da concomitância destas notícias demonstra a relevância
das articulações políticas entre os factos23. Mas nem tão pouco é necessária. Sabemos
nós que, já o Ato Colonial de 1930 e a Carta Orgânica do Império Colonial Português
em que Salazar define o Império Colonial Português e a “missão civilizadora” dos
colonos, respondia, no período entre guerras, a ameaças e ambições externas relativas
aos territórios ultramarinos, justificadas pelo “défice de colonização” portuguesa (San-
tos 2002). Reagindo então às pretensões de outras potências relativamente às colónias
portuguesas e belgas, e aos rumores de que a Itália estava negociando com a Inglaterra
os territórios de Angola e Moçambique, o Ato Colonial – depois inscrito na Consti-
tuição de 1933 – estipula que a metrópole e as colónias formam uma “comunidade e
solidariedade natural”. Perante as dificuldades políticas e económicas de uma coloni-
20
Escrevia Marcelo Caetano – diretor cultural do Cruzeiro –, em editorial publicado a 10 de Agosto de 1935, dia da partida no
Diário da Manhã: “Partimos, pois, para o primeiro Cruzeiro de Férias. Outros, certamente, se hão de seguir, nenhum porém,
como êste, segue na rota dos descobrimentos: porque vamos descobrir um novo Mundo moral para a Nação Portuguesa”.
21
“Pela terra e honra de Portugal”, Diário de Notícias, 22 de Agosto 1935.
22
E no Jornal do Comércio e das Colónias de 21 de Setembro de 1935 é Marcelo Caetano, quem discursa à chegada a Luanda: “(…)
não creio, meus senhores, que esteja em perigo o nosso património colonial, nem julgo que valha a pena sobressaltarmo-nos com
os boatos que de vez em quando circulam sôbre possíveis assaltos à integridade do território nacional. Angola não foi adquirida por
nós em qualquer aventura de exploradores, ou por combinação dos políticos à mesa de qualquer conferência diplomática. Angola
é terra sagrada por quatro séculos de colonização (...) não pode estar à mercê de cobiças seja de quem for! (...) Tranquilizemo-nos
pois. (...) E se hoje nos faltam alguns progressos materiais de que as colonias de outros países se orgulham, respondamos que esta-
mos ainda a tempo de fazer tais progressos até ao dia em que essas nações consigam conquistar a simpatia espontânea, a comunhão
admirável dos indígenas com o colono e de todos com a metrópole, que permite a Portugal colonizar sem violência e vencer sem a
força. E se o domínio das coisas representa muito – senhores: este domínio das almas é mais valioso!”.
23
Estamos conscientes dos riscos alienantes desta concomitância; ainda mais tendo em conta que os materiais analisados foram
maioritariamente os da imprensa e de arquivos (como o de Marcelo Caetano) conotados com o regime então vigente. Mas dado
que é sobretudo a articulação da sua atividade propagandística com a iniciativa turística que aqui nos ocupa, não nos pareceu
prejudicial esse mimetismo metodológico estando esperançadas de ainda vir a resgatar e analisar posteriormente, mas a tempo,
outros materiais: as fotografias e filmes feitos a bordo (das coleções dos diferentes jornais que tinham correspondentes embar-
cados), as coleções particulares (dado que em vários registos são referidas as muitas “kodaks” disparadas) e particularmente a da
família de Manuel San Payo que deverá ter a película de bordo do fotógrafo que realizou o filme propagandístico O I Cruzeiro
de Férias às Colónias do Ocidente (sobre o qual aqui também não nos deteremos), os diários de bordo que algumas das famílias
guardarão e até, eventualmente, o testemunho de algum dos estudantes mais jovens que realizaram a viagem em 1935. Também
merecem análise, que igualmente pretendemos empreender, os registos mais críticos publicados que aqui apenas afloraremos (ver
adiante).
Urge que os portugueses de hoje, sobretudo os das novas gerações, deixem de sonhar
com as colónias para passarem a viver nelas ou com elas (...) multiplicarem-se os “cruzeiros
de férias”, de forma a fazer sentir aos portugueses que vão chegando, aos nossos filhos, aos
nossos netos, que as nossas colónias de Africa, até da Asia, são como arredores da metró-
pole, melhor, são Portugal e são em Portugal
24
A organização do Cruzeiro realizar-se-ia sobre o seu mandato, muito embora à data da partida o cargo fosse já ocupado pelo
seu sucessor José Silvestre Ferreira Bossa.
25
“O cruzeiro de férias às colónias portuguesas, que nós devíamos chamar mais carinhosamente províncias ultramarinas, tem um
profundo alcance” (Cunha, Eugénia Penha, 1935, “Cruzeiro de Férias às Colónias. Impressões de V.ª Excelência. Autógrafos
expressamente escritos por alguns excursionistas”, Diário da Manhã, 30 de Agosto).
26
Editorial do Diário de Notícias, 1 de Agosto 1935.
(…) Lembra-se do Quimzinho, aquele rapaz que Fradique Mendes conheceu num terceiro
andar da Travessa da Palha, ídolo da mãe viúva, gordo e anémico, reprovado no liceu e candi-
dato á burocracia? Essa imagem de uma juventude sem caracter, sem gôsto de iniciativa nem
amor de responsabilidades é que temos que demolir ou de relegar para o canto das aberrações
se, na verdade, pretendemos ser um povo imperial. As colónias, procuradas pelos melhores de
cada geração no ânimo do trabalho, na esperança de construir um Novo Mundo, serão, como
já começaram a ser nas campanhas da ocupação a escola da iniciativa, da energia e do carácter.
27
“Não fazia a mais pequena ideia do que aquilo era. (…) Foi um verdadeiro banho de portuguesismo para todos nós”, lê-se no
título do artigo retirado do comentário de Estevão Amarante, celebrado ator da época, que participou no Cruzeiro (Diário de
Lisboa, 3 de Outubro de 1935).
28
Entrevista a Marcelo Caetano publicada nas páginas 1 e 2 do Diário da Manhã de 26 de Julho de 1935.
29
Idem.
30
Cf. “Cruzeiro das raparigas da Mocidade Portuguesa”, Boletim Geral das Colónias. – Ano 26.º, n.º 302-303, 1950, p. 163-
-165; “Cruzeiro de raparigas da M.P. ao Ultramar”, Boletim Geral das Colónias – Ano 26.º, n.º 301, 1950, p. 104; “Cruzeiro
Gago Coutinho”, Boletim Geral do Ultramar. – Ano 35.º, n.º 411-412 (Setembro-Outubro de 1959), p. 270-276.
31
A organização foi depois alargada “à Mocidade Portuguesa das colónias, de origem europeia, e à juventude indígena assimila-
da” a quem é “dada (....) uma organização nacional e pré-militar que estimule a sua devoção à Pátria, o desenvolvimento integral
da sua capacidade física e a formação de carácter, e que, incutindo-lhes o sentimento da ordem, o gôsto pela disciplina e o culto
do dever militar, as coloque em condições de concorrer eficazmente para a defesa da Nação” (Decreto-lei n.º 29453, de 17 de
Fevereiro de 1939).
32
Às quais se juntaram depois as influências e configurações das congéneres organizações italianas e sobretudo alemãs. Mas a
eclosão da Segunda Guerra Mundial viria a pôr fim aos intercâmbios que chegaram a estabelecer-se entre a Hitlerjugend e a
Mocidade Portuguesa.
33
A bordo seguia também o Dr. Gomes dos Santos que, “em nome da mocidade, e mais propriamente da mocidade escotista”
portuguesa, discursou no Porto de Honra de Luanda (“Cruzeiro de Férias”, A Província de Angola, 4 de Setembro de 1935).
34
Que Augusto Cunha virá a público defender em longa coluna reagindo a boatos caluniosos, que os responsabilizariam pelo
suicídio de um empregado do bar do Moçambique (Jornal de Notícias, 29 de Outubro de 1935).
35
O Século a 29 de Agosto de 1935.
36
O Século a 25 de Setembro de 1935.
37
Ver nota 22. A bordo seguia ainda o operador cinematográfico Costa Macedo (Jornal de Notícias, 11 de Agosto de 1935).
38
“O Cruzeiro de Férias à colónias. O tradicional julgamento e os divertimentos tradicionais quando da passagem do equador”
(O Século, 2 de Outubro de 1935). San Payo parece ter tido especial papel na animação cultural da juventude, criando ainda o
grupo dos “Ferro-Bico” (“Embaixada de saudade. O Cruzeiro de Férias às colónias”, Diário de Notícias de 4 de Outubro de
1935).
39
Autógrafo do Ministro das Colónias José Bossa inscrito nos exemplares dos Lusíadas destinados aos governadores das colónias
visitadas (Boletim Geral das Colónias, n.º 122-123 – Vol. XI, 1935: 93-94).
40
Idem.
41
Decreto-lei 25.555, de 28 de Junho de 1935.
42
O Século, 27 de Agosto de 1935.
43
Enviado especial do Diário de Notícias, a 15 de Agosto de 1935, publicado a 24 do mesmo mês. Os cursos, tal como consta
no Roteiro do Cruzeiro e nos apontamentos manuscritos do arquivo de Marcelo Caetano, incluíam: I. Noções sumárias de Geo-
grafia do Continente Africano; II. O Descobrimento da África Ocidental; III. História das Colónias da África Ocidental; O Mar;
Noções Sumárias da Ciência da Colonização; e Noções Sumárias da Administração Colonial Portuguesa. Para além disso, era
sugerido aos estudantes que tomassem, em todas as excursões por terra, apontamentos para registo das suas observações e impres-
sões e futura elaboração de um relatório da viagem.
44
Roteiro do 1.º Cruzeiro de Férias às Colónias. Uma Iniciativa de “O Mundo Português”. Lisboa, 1935.
Colónias de férias
O prazer de viajar é comum a todos. Mas os ricos podem realizá-lo, porque não lhes
escasseiam os meios necessários; ao passo que os pobres, e os simplesmente remediados, esses,
se alguém não vier corrigir de algum modo os caprichos da sorte, não conhecerão mais do
que aquilo que lhes permite o pequeno horizonte em que se confinam. Assim o compreen-
deram alguns países como a Itália e a Alemanha, não deixando no papel as vantagens como
45
Referida em, A Província de Angola, 4 de Setembro de 1935.
46
Ruy Cinatti, para quem esta viagem se tornaria decisiva (ver adiante), viria, neste concurso, a ganhar o prémio “Julio Henri-
ques”, atribuído à conferência que revelasse melhor capacidade de observação, cabendo o prémio “Capelo Ivens”, atribuído à
palestra “mais interessante”, a Mlle. Esther Cochat, a mais aplaudida (Diário de Notícias, e O Século a 11 de Outubro de
1935).
47
O Gabinete de Imprensa a bordo incluía delegados do Diário de Notícias, de O Século, de O Comércio do Pôrto, do Diário da
Manhã, de A Voz, do Momento e ainda Dante da Silva Ramos, como colaborador artístico.
Kraft durch Frende e Doppolavoro e assim se vai seguindo em Portugal, onde êste assunto está
merecendo um grande carinho dos homens que felizmente nos governam.48
Foi também em 1935, o ano do lançamento do Cruzeiro¸ que os “homens que nos
governavam” criaram, à semelhança das suas congéneres europeias, a Fundação Nacio-
nal para a Alegria no Trabalho. Intervindo na esfera do lazer a FNAT assegurava ao
aparelho do estado a “integração das massas”, enquadrando as atividades sindicais no
regime corporativo e na política do Estado Novo, resgatando-as de tentações de outros
nacionalismos, como os comunistas, e convertendo-se num poderoso órgão de propa-
ganda. Mas estas instituições, particularmente a alemã, que viriam a ter um importante
papel na massificação do lazer e na regulação dos tempos livres, não eram conhecidas
apenas do regime que as viria a imitar. O comum dos portugueses conhecia já a atua-
ção da congénere nazi porque a presenciava nas visitas dos cruzeiros alemães, como
aquele que, em 1936 passou em Lisboa a caminho da Madeira49.
O St. Louis, o Deutsche e o Sierra Cordoba, o primeiro pintado de negro e os dois res-
tantes de branco, entraram na barra [de Lisboa] manhã cedo, embandeirados em arco. No
mastro da popa, a nova bandeira do Reich com a cruz suástica. No topo do mastro de vante
o pavilhão português (…). Quando a aurora rompeu já ninguém dormia a bordo. [descrevia
o jornal. Os passageiros], gente acostumada a erguer-se cedo, assomaram sorridentes nas
cobertas, admirando os contornos sinuosos das duas margens do Tejo. Os operários alemães,
fortes e sadios, e as frauleins desenvoltas e esbeltas não deixavam de observar o panorama
que se desenrolava, cinematograficamente, ao longe50.
Entre outras coisas, a Kraft durch Frende51 organizava estas viagens para exibir o
Nacional-Socialismo a outros países e, tal como o Primeiro Cruzeiro às Colónias veio
a fazer, incluíam no seu plano treino político e pedagógico, sendo dada especial atenção
ao “aprumo de conduta” dos participantes52. Um dos principais objetivos da organiza-
ção nazi era o de transpor os limites entre trabalho e lazer, combatendo o ócio, ao
48
Moçambique: Documentário trimestral, n.º 16, 1938,: 79-80.
49
De 1935 a 1939, cerca de 20 mil alemães terão visitado Lisboa e o Funchal – mas, além deste destino de férias, os cerca de
sete milhões de excursionistas da Força pela Alegria também viajavam pela costa alemã ou optavam por ir até à Noruega e à
Dinamarca, a Espanha e a Itália (Fernando Madaíl em “Cruzeiros nazis para operários”, Diário de Notícias, 27 de Março de
2010).
50
Citado por Fernando Madaíl, Ibidem..
51
Força pela Alegria, fundada em 1933.
52
“Os estudantes não esquecerão, em nenhuma emergência, que junto dos colonos portugueses do Ultramar representam a Pátria
de hoje e suas energias de amanhã. Importa que pela dignidade e aprumo da conduta, elevação de atitudes e nobreza de manei-
ras, deixem por onde passarem as mais gratas recordações e as mais claras esperanças” (Art. 10.º do Plano Cultural do Cruzeiro,
Roteiro do 1.º Cruzeiro de Férias às Colónias. Uma Iniciativa de O Mundo Português. Lisboa, 1935 p.: 24).
mesmo tempo que geria as diferenças de classe, alargando prerrogativas de lazer e edu-
cação das classes médias a outros grupos sociais: tal como almejava Queiroz em sua
apologia dos cruzeiros portugueses, e como parecia implícito nas indicações úteis publi-
cadas no Roteiro do Primeiro Cruzeiro, explicitamente amplificadas pela imprensa53:
A Direcção do cruzeiro começa por lembrar, mais uma vez, a todos os srs. excursionis-
tas, que não há qualquer distinção de classes, quer a bordo, quer nos diferentes transportes
para as visitas ao interior.
E depois informava-se que à mesa não era necessário o uso de smoking, sendo o
trajo de cerimónia obrigatório apenas para as festas oficiais…que, no entanto, foram
muitas.
De acordo com Augusto Cunha no Relatório do Cruzeiro, de início a viagem
destinava-se quase exclusivamente a estudantes e alguns acompanhantes. Mas, por
razões imponderadas da calendarização do período de exames, alguns não pude-
ram comparecer o que veio a contribuir para uma grande diversificação etária e
social dos passageiros e também complicar o seu financiamento. No Roteiro do
Cruzeiro estão listados apenas sessenta e nove “estudantes”, dezanove “professo-
res” e noventa e três “pessoas de família”. Nas notas de viagem manuscritas de
Marcelo Caetano estão referenciados pelo nome e instituição escolar, apenas setenta
e dois estudantes. E, retrospetivamente, em 1958, é de novo Marcelo Caetano
quem comenta:
53
Por exemplo no Província de Angola de 13 de Agosto de 1935.
54
Marcelo Caetano em “A minha primeira visita a Angola”, A Província de Angola, 31 de Dezembro de 1958.
Bem diferentes são estas memórias, da estratégica e rigorosa resposta que o futuro
Comissário Nacional da Mocidade Portuguesa dera ao repórter que lhe perguntara,
na altura da largada, se o objetivo primeiro do Cruzeiro era pedagógico: este era “um
cruzeiro de férias, sim, mas não havia de (…) degenerar no delírio das excursões da
tuna académica em Valladolid”55, dizia então, severo, Marcelo Caetano. O objetivo,
era o de criar
Kodaks do Império
À chegada aos Bijagós “não têm descanso os binóculos, as objectivas dos kodaks, e
as canetas de tinta permanente. (…) Discute-se etnologia e etnografia; fala-se de aspec-
tos indígenas”57. A exaltação da observação, da visão como sentido e forma de conhe-
cimento, o olhar panorâmico, da posição de espectador a partir do deck ou dos palanques
montados para as coreografias especialmente encenadas, é evidente nos relatos que
abundam ao longo da viagem. Ao lado dos relatos, o olhar dos excursionistas é ampli-
ficado pela imprensa de forma igualmente duradoira e multiplicada, através da presença
dos fotógrafos e cinematógrafos a bordo, da imprensa e da difusão dos resultados do
concurso de fotografia depois publicado n’O Mundo Português58. A fotografia serve ao
mesmo tempo de “autentificação da realidade” e de testemunho de presença. Mas, para
os mais treinados – mas também mais implicados no retrato que se encomendava – como
San Payo, as câmaras dificilmente davam conta da grandiosidade do império:
55
Entrevista a Marcelo Caetano, Diário da Manhã, 26 de Julho de 1935.
56
Idem.
57
Diário da Manhã, 16 de Setembro de 1935.
58
N.º. 39, Vol. IV, 1937.
59
Diário da Manhã, 30 de Agosto de 1935..
Quem visitou a exposição colonial do Porto conhece mais ou menos estas danças. Mas
vistas aqui, no meio do próprio, ao sol ardente que as fez nascer, não têm o simples carac-
ter de um espectaculo curioso, mas o sentido profundo das coisas essenciais60.
Em primeiro lugar vejamos o que o CF significa nesta nova fase da política colonial.
Não há ainda cinquenta anos a costa de África era o lugar negregado da expiação dos gran-
60
Diário de Notícias, 20 de Setembro de 1935.
61
Marcelo Caetano em entrevista publicada no Diário da Manhã de 26 de Julho de 1935.
62
Algo que temos, infelizmente também, que remeter para outras publicações, dada a quantidade e eloquência do material
encontrado.
63
Diário da Manhã de 26 de Julho de 1935.
64
Idem.
des crimes, um motivo dolente de fados da Mouraria: e eis que hoje parte um navio com
um ar festivo, com boa parte do escol da mocidade portuguesa e até das camadas dirigen-
tes do País, a fim de procurar o repouso e as emoções que outros irão buscar ao Estoril ou
a Biarritz. Com uma diferença, está claro: é que os viajantes do Cruzeiro são guiados pelo
puro amor do Portugal de além-mar, e não pela ansia de futilidades elegantes. Não lhe
parece que vai nisto uma pura subversão de velhos conceitos? Que marcamos o ponto de
partida para uma nova visão da vida colonial?
Esta última declaração de Marcelo Caetano resume muito do que dissemos ante-
riormente e coloca, claramente, o Cruzeiro no quadro das visões do mundo de Impé-
rios precedentes e, de forma explícita, na perspetiva dos colonialismos modernos.
Como outros depoimentos que a acompanharam, denunciava-se, afinal, mais do que
um deficit de colonialismo, um deficit de capitalismo no Império português, quando
inserido no quadro internacional contemporâneo dos colonialismos modernos, algo
que era importante ultrapassar (Santos 2002).
Embora considerando o estreitamento que uma abordagem excecionalista e com-
parativa pode impingir à análise das performances do colonialismo português (Vale de
Almeida 2000, Ferreira 2007, Medeiros 2006), não deixa de ser útil recrutar aqui
práticas internacionais que, naturalmente, foram inspiradoras das políticas coloniais
que, naquela conjuntura própria, Portugal se viu obrigado, também, a imitar.
A viagem organizada (sem mencionar aqui a individual que a precedeu em
séculos), o cruzeiro por mar ou por terra, eram práticas comuns de configuração
e aglutinação colonial, já desde anos anteriores, quando, por exemplo, André
Citroën organizou La Croisière Noire, que se desenrolou sob os auspícios do
governo francês e do colonialismo humanista do então ministro francês das coló-
nias Albert Sarraut. E, tal como a propósito desse cruzeiro terrestre, viremos a
compreender que também os objetivos daquele, marítimo, que Portugal organizou
doze anos depois, eram também, para além de pedagógicos e políticos, claramente
económicos, visando estimular a abertura de rotas de tráfego que ativassem as
economias metropolitanas e ultramarinas. Para dar conta disso basta olhar para
as páginas do Roteiro do Cruzeiro onde se exibe a publicidade de múltiplas firmas
e serviços e produtos que terão subsidiado a viagem, em réclames dirigidos a um
público com interesses coloniais. Entre as oito entidades oficiais, os vinte e oito
industriais e comerciantes e cinquenta e oito anunciantes, encontramos os vinhos
Borges, “vinhos aconselhados para os climas tropicais”, os fósforos nacionais para
o Império Colonial Português (Sociedade Nacional de Fósforos), a loiça esmaltada
Michin, “a única que concorreu às feiras de Luanda e Lourenço Marques”, e as
águas Vidago, Melgaço e Pedras Salgadas, “bebida ideal para climas tropicais”, bem
ocupava o deck de 1.ª classe de bombordo a estibordo (…) constituída por mostruários
de géneros e mercadorias fabricadas na metrópole, como vinhos, frutas, tecidos, pratas,
calçado, etc., de casa de Lisboa e Pôrto e cuja permuta com produtos coloniais não pode
deixar de representar um processo de desenvolvimento da economia66,.
Não basta mandar para as colónias famílias prolíficas de aldeões: seriam bocas que
aumentariam o consumo; mas continuariam a faltar ali as iniciativas para vencer as dificul-
dades que os países novos oferecem, as competências para resolver os problemas de que
depende o seu progresso (…)68.
65
Como foi o gin tonic nas colónias inglesas. Mas Portugal incentivava declaradamente o consumo de vinho nas colónias: “Abri
as portas de vossas casas ao vinho do velho rincão lusitano, a esse vinho forte de energias e de generosidade, que sempre acom-
panhou os vossos Maiores na enorme e esforçada obra construtora do nosso império”.
66
Boletim Geral das Colónias, n.º 122-123, Vol. XI, 1935.
67
Embora aparentemente desajeitada, a julgar por algumas descrições que referiram a “exposição flutuante” como “modesta e
quasi deficiente na apresentação de alguns artigos (…) pensando talvez que para África aquilo seria mais que bom” (O Lobito, 7
de Setembro de 1935).
68
Diário da Madeira, 1 de Outubro de 1935.
69
São claras, por exemplo, as críticas à assimetria nos incentivos e protecionismo económico, e no balanço entre importações
(de vinho) da Metrópole e exportações (de milho) de Angola (Diário de Lisboa, 15 de Novembro de 1935 e Jornal do Comércio
e das Colónias de 22 de Novembro de 1935).
ção dos participantes70. E, em arquivo ainda mais discreto, encontramos fontes mais
dramáticas: entre os documentos de Marcelo Caetano, está uma carta de vinte e três
nativos de S. Tomé, deportados e prisioneiros sem justa causa na Ilha do Príncipe.
(carta é datada de 24 de Agosto de 1935, altura em que Ilha foi visitada apenas pela
direção do cruzeiro, mantendo-se o resto dos cruzeiristas a bordo). Nem tudo era,
obviamente, um mar de rosas, no itinerário do Cruzeiro colonial, e o clima entre colo-
nos e excursionistas ter-se-á exaltado quando Marcelo Caetano alegadamente disse
“aos excursionistas, à largada de Cabo Verde ou Guiné que se deveria dar um desconto
de 75% aos queixumes que iam ouvir dos portugueses que iam ver nas colónias a
visitar”71. As críticas mais severas vêm de O Intransigente de Benguela que, reagindo
à displicência dos “touristes” face às manifestações empenhadas de receção organiza-
das pelos portugueses de Angola, diz que:
Innocents Abroad73
(…) seria curioso inventariar os estudantes que viajaram no Cruzeiro, e ver o que deram na
vida. Muitos, muitíssimos mesmo voltaram ao ultramar para aí fazerem a sua carreira. Perderam
o medo à África ou deixaram-se seduzir por ela. Mas esta crónica já vai tão longa (…)74
70
“Tive durante muito tempo a grata impressão de que levava apenas 200 portugueses, vibrando no mesmo ansioso desejo de
conhecer as colónias, congregados no mais belo exemplo de união nacional. Só nos últimos dez dias essa impressão se dissipou,
em consequência de alguns incidentes que se deram, provocados aliás, por pessoas que tinham o dever de os evitar, já pela sua
categoria e cultura, já pelas atenções que devem à atual situação e, portanto, pelo respeito que lhe deveriam tributar” (Relatório
do 1.º Cruzeiro de Férias às Colónias, 1936, p. 3).
71
O Intransigente, 11 de Setembro de 1935.
72
Idem.
73
Da obra de Mark Twain sobre o périplo de seis meses a bordo do Quaker City que realiza o primeiro cruzeiro organizado a
partir dos EUA e que contribuiu para a difusão deste novo tipo de viagem junto do público.
74
“A minha primeira visita a Angola”, A Provincia de Angola 31 de dezembro de 1958.
Rui, que todos a bordo conhecem por Tahiti, alma possuída de um lirismo cósmico,
que sonha com as ilhas encantadas da Polinésia; e o Manuel, o Miguel, o Pedro, todos os
outros. Para eles, e talvez só por eles, valeu a pena fazer este cruzeiro.75
chega a ser, na sua ciência, um voluptuoso das plantas e das cores e aromas dos trópicos.
Não conheço hoje português algum que seja, mais do que ele, um tropicalista. Tropicalista
pela sua especialidade de botânico e pelo amor com que estuda a natureza tropical76
75
Osório de Oliveira. Diário da Manhã, 19 de outubro 1935.
76
FREYRE, Gilberto, 1954, Aventura e rotina: sugestões de uma viagem à procura das constantes portuguesas de carácter e de
acção. Lisboa, Livros do Brasil, p. 34, citado em Castelo 2011: 7.
Esta exaltação ecoa na cuidada cobertura dada pelos organizadores e pelos média às
excursionistas encorajadas a embarcar no Cruzeiro. Dizia Augusto Cunha, em Luanda
(…) traz este cruzeiro alguns dos nosso valores mentais (…) e não quiz também a mulher
portuguesa que tão elevado e patriótico papel tem tido em todos os tempos na nossa His-
tória, deixar de acompanhar neste momento, esta Cruzada Nacionalista de exaltação patri-
ótica, deixar de apontar com o seu nobre exemplo a missão que à mulher portuguêsa cabe,
cada vez mais, na obra da colonização78.
Era ainda a família (e a casa) da nação – aquela que inspirava a sua estrutura, com
as suas mulheres presentes mas menorizadas –, que se impunha na configuração do
império, e o Cruzeiro era mais uma vez o palco onde se encenava e exibia o modelo
conjugal e nacional:
77
“A mulher Portuguesa e as Colónias”, O Sul de Angola (Mossamedes) publicado n’O Mundo Português, N.º 125, Vol. XI, 1935
p. 100.
78
“Cruzeiro de Férias às Colónias”, A Província de Angola, 31 de Agosto de 1935.
A menina veio dernier cri e viu uma moda mais exigente. Trazia o cérebro cheio de
ideias de conquista de africano ricaço, e encontrou rapazinhos bem trajados, olhos sonha-
dores (...). A menina julgava-se uma beldade plástica, uma beldade de star, inimitável no
jogo dos quadris, e vê raparigas elegantes, de olhos em braza, corpos coleantes (...). A
Menina vinha plena de ilusões. Irá desiludida. Também nós ao desembarcar julgamo-nos
em terra conquistada (...). A menina pensava vir em missão de estudo. Nada estudou, nem
a fauna, nem a flora, (...) nada de nada. Só comeu, só bebeu, só fumou, só dançou... da sua
viagem uma só coisa bôa resultará: a certeza de que Angola não é aquilo que imaginava:
uma terra bôa para pretos... (...) A Menina do Cruzeiro não deixou saudades...80
79
Enviado especial do Diário de Notícias, 15 de Agosto de 1935, publicado a 24. Contudo, a presença e atividade feminina
parece ter sido exagerada e romanceada; mais adiante neste mesmo artigo refere-se que “há muitas senhoras, algumas delas ten-
do já dobrado os cinquenta anos”, e na verdade, o próprio Roteiro do Cruzeiro lista apenas duas professoras, seis estudantes
femininas, e trinta e uma mulheres entre as “pessoas de família”. As notas de preparação dos cursos – que evidenciam especial
cuidado em premiar a única concorrente feminina nos concursos pedagógicos – denunciam apenas duas excursionistas do liceu
e uma das escolas comerciais e industriais, embora na entrevista concedida ao Diário da Manhã publicada a de 26 de Julho de
1935, refira com entusiasmo “para cima de trinta!”.
80
“A Menina do Cruzeiro”, por José Licínio Rendeiro. Última Hora, Luanda, 1 de Setembro de 1935.
81
Boletim Geral do Ultramar, N.º 326-327, Vol. XXVIII, 1952, pp. 83-88.
82
UNESCO, 1952, Correio, Agosto Setembro, Vol. V, n.ºs 8 e 9.
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83
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Maria Cardeira da Silva é doutorada pela FCSH-UNL e docente na mesma Faculdade. Até
2011 foi coordenadora da Linha de Investigação Cultura: Práticas, Políticas e Exibições do
CRIA (Centro em Rede de Investigação em Antropologia). Desenvolveu trabalho de campo
relativo aos processos e retóricas de patrimonialização e turismo em zonas de património de
origem portuguesa, particularmente em Marrocos, Mauritânia e com breves incursões no
Senegal (ilha de Gorée) e Irão (Ormuz). Desenvolveu ainda trabalho de pesquisa e reflexão
teórica sobre o património de origem árabe em Portugal. Investigou e publicou também sobre
questões de identidade de género em contextos árabes e islâmicos. Foi Investigadora Res-
ponsável dos projetos Castelos a Bombordo I (POCTI/ ANT / 48269/ 2002) e Castelos a
Bombordo II (PTDC/ANT/67235/2006) e Novos Fluxos e Percursos Turismo, consumo de
património e identidades locais na zona de interação histórica e partilha cultural entre Por-
tugal, Espanha e Marrocos (FEDER).