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INVE i\NI )0 T DI OES


NO EXÉRCITO BRASILEIRO:
osé Pessoa e a
reforma da Escola . tar

Celso Castro

eer e, além disso, foram consciente­


Introdução mente inventados.
O fenômeno da invenção das tradi­
uem assiste a uma cerimônia de ções, expressão que ficou consagrada
forllla tura dos novos oficiais do ap6s a coletânea organizada por Hobs­
Exé cito brasileiro, na Academia Mili­ bawm & Ranger,l pode ser encontrado
tar das A gulhas Neg11lS , dificilmenta nce mais diversos países e contextos
deixa de sentir-se imerso na atmosfe­ históricos. Pode também ser patlVCina­
ra de tradição que cerca o evento. Vá­ do por diferentes agentes, desde o Esta­
rios elementos sugerem a herança de do nacional até grupos sociais específi­
um pAssa do imemorial: o "espadim", cos. Comum a todos os casos é a tenta­
uma reprodução em miniatura da es­ tiva de expressar identidade, coesão e
pada do duque de Caxias, patrono do estabilidade social em meio a situações
Exército, que os cadetes recebem no de transformação histórica. Isso é feito
primeiro ano do curso e devolvem no através do recurso à invenção de ceri­
dia da formatura; a entrada no pátio mônias e símbolos que evocam um pas"
principal de cadetes trazendo as ban­ sado muitas vezes ideal ou mitológico.
deiras e estandartes históricos; a apa­ A reforma da Escola Militar do Re­
2
rição dos formandos vestindo os uni­ alengo, idealizada e iniciada por José
formes históricos da Academia. No en­ Pessoa, comandante entre 1931 e
tanto, todos esses elementos -a exem­ 1934, é um caso exemplar de invenção
plo de muitos outros na Academia ou de tradições no Exército brasileiro.
no Exército como um todo - são bem Trata-se de um caso historicamente
mais recentes do que pretendem pare- bem-sucedido, como o prova a perws..

EstucJo. flistIJriaM, Rio de Janeiro. voL 7, n. 14, 1994. P. 231·240.


232 ESTUDOS mSTÓRlCOS -1994·14

nência, por seis décadas, das tradições o movimento revolucionário chefiado


então foIjadas. Pretendo, atravéa dele, por Getúlio Vargas. No dia 24, apás
apresentar a gênese e discutir o signi­ várias vitórias dos revoltosos, 08 co­
ficado de elementos simbólicos ainda mandantes militares da capital força­
presentes no Exército brasileiro. ram a renúncia do presidente Wash ­
ington Luís. José Pessoa tomou parte
ativa no cerco e ocupação do palácio
Guanabara. Vitoriosa a revolução, per­
1. José Pessoa maneceu um breve período como co­
mandante do Corpo de Bombeiros do
Uma tradição "inventada" precisa, Distrito Federal e em seguida foi no­
obviamente, ser aceita e Assimilada meado, em 19 de novembro de 1930,
comandante da Escola Militar do Re­
por um círculo social para "vingar", isto
é, ter eficácia e continuidade. No an­ alengo. Exerceria essa função até 28 de
.tanto, ela é sempre o resultado de um abril de 1934, e nesse período teria a
projeto consciente, desenvolvido por oportunidade de implantar a reforma
indivíduos específicos. No nosso caso, que será aqui examinada.
temos um personagem central: José
Pessoa Cavalcanti de Albuquerque
3
(1885-1959).
Nascido na Paraíba, José Pessoa 2. Política e disciplina
pertencia a uma importante família de
políticos. Era sobrinho de Epitácio Pes­ A Revolução de 30 náo foi, de forma
soa, presidente da República de 1919 a alguma, consensual no interior do
1922, e i..mão de João Pes.soa, presi­ Exército. Nos anos que se seguiram,
dente da Paraíba de 1928 a 1930, cujo ocorreram sérios conflitos internos,
AMsssinato desencadeou a Revolução motivados por divergências doutriná­
de 1930. Quanto à sua própria carJei­ rias, organizacionais a, principalmen­
ra, formou-se em 1913 pela Escola Mi­ te, políticas. Exemplo eloqüenta disso
litar de Porto Alegre e, em 1918, fez são as dezenAS de movimentos inter­
estágio na França, chegando a partici­ nos (incluindo agitações, protestos e
par de combates na guerra, comandan­ revoltes) que abalaram o Exército en­
do um pelotão de soldados franceses. tre 1930 e a instauração do Estado
Em 1919 foi promovido a capitão, por Novo, quando ftnalmente se consolidou
atos de bravura. Ainda na Europa, es­ um projeto hegemônico para a institui­
pecializou-se em carros de combate, ção, em torno de Góis Monteiro e Euri­
4
tendo sido, ao voltar ao Brasil em 1920, co Gaspar Dutra.
organizador da primeira unidade de A integridade do Exército era, por­
tanques do Exército brasileiro. Ainda tanto, uma questão em aberto quando
em 1920, foi nomeado para acompa­ José Pessoa assumiu O comando da
nhar os reis da Bélgica em visita ao Escola Militar, logo após a vitória do
Brasil. Promovido a major em 1923, movimento revolucionário. Ele procu­
assumiu o posto de subcomandante da rou, desde o início, vincular a reforma
Escola Militar. Em seguida ocupou vá­ que pretendia realizar na Escola ao
rios comandos da 8J'ü18 de Cavalaria, contexto pás-revolucionário. Essa in­
sendo promovido a coronel em 1929. tenção era explícita já no Boletim n· 1
E m 3 de outubro de 1930 eclodiu no de seu comando, de 15 de janeiro de
Rio Grande do Sul e em outros estados 1931, dia em que tomou posse:
INVENTANDO TRADIÇÕES NO ExtRCITO BRASILEIRO 233

"Cadetes! a dever que o Exército Escola, consideradas extremamente


tinha a cumprir para com a Repú­ precárias por José Pessoa. A rede de
blica já está consumado. (...) Mas a esgotos foi canalizada, terrenos panta­
Revolução não terminou ainda, eis nosos foram drenados, modificou-se o
a palaVTa de ordem do momento. E sistema de coleta de lixo, cozinha e
é exato. A República está salva, res­ dormitórios foram pintados, o mobiliá­
ta salvar a Nação. Redimir a Repú­ rio substituído e constrlÚdos "cassinos"
blica foi o meio, engrandecer a Na­ (salas de lazer) para cadetes e ofIciais.
ção é o único e verdadeiro fIm. Reva­ A reforma, porém, deveria ir muito
lidada a forma de governo, cumpre além disso. A preocupação fundamen­
restaurar o Brasil. (... ) Assim como tal de José Pessoa era com a criação de
o Exército foi o fator decisivo da "mentalidades homogéneas", de "um
Revolução, outro papel essencial ca­ novo estado psicológico" no corpo de
ber-lhe-á no período de Renovação, ofIciais. A reforma da Escola Militar
na fase de Reeducação que 8e vai seria apenas o primeiro passo desse
iniciando. (...) a Exército, como ins­ processo. Em sua autobiografIa, ele es­
tittúção democrática por excelência, creve a respeito:
como verdadeira ossatura da nacio­
nalidade é, por sua natureza, a ins­ "a velho regime político decaído não
tituição que primeiro e mais rapida­ tinha deixado ali coisa alguma de
mente se deve recompor, tanto é ver­ útil ou merecedora de ser relembra-
dade que a integridade da Pátria,
,

da. E verdade que dava anualmente


mais que a do regime, repousa em turlllAS de aspirantes por conclusão
sua eficiência," de curso, mas nelas os elementos
variavam desde o bom ao mau. As
Para além da preservação da ordem suas últimas tUflIl9S, então, foram
republicana, os grandes objetivos da totalmente sacrifIcadas. E vemo-las
revolução eram "salvar a Nação" e ai [isto é, no início da década de 50l,
"manter a integridade da Pátria". A em grande ;mrte divorciadas da sua
identifIcação do Exército com os con­ profissão. E fato que, no seio do Alto
ceitos abstratos de "Pátria" e "Nação" Comando, surgem admiravelmente
procurava evitar refletir as divisões belas inteligências e padrão de sol­
existentes na sociedade, afastando a dados devotados, porém isso não é
instituição, no plano simbólico, dos uma regra. a que o Exército procuJ;8
conflitos políticos e ideológicos. a formar são -mentalidades unifor­
Exército, enquanto "ossatura da nacio­ mes, e não personalismos. Resta­
nalidade", teria um papel fundamental nos, entretanto, a esperança de que
na fase de "reeducação" e ')oenovaçáo" a mentalidade está sendo mudada e
que se iniciava. Era preciso, para tan­ os métodos atuais operarão, certe­
to, que ele logo se "recompusesse". A mente, novas e homogêneas gera·
Escola Militar, onde seriam formadas ções."
as futuras gerações de oficiais, era vis­
ta, nessa perspectiva, como uma insti­ a que José Pessoa quer dizer com
tuição seminal do unovo Exército" e, "homogeneidade''? a trecho acima afIr­
por extensão, da nova Nação que se ma que, dentre os oficiais fotInados
pretendia construir. durante a Primeira República C'o velho
a primeiro passo da reforma foi a regime político decaído''), agora no Alto
melhoria das condições materiais da Comando do Exército, apenas alguns
234 ESTUDOS HISTÓRICOS -1994·1<

são bons soldados. A maioria, encon­ Em nome da reestruturação do


tra-se udivorciada de sua proflssão". A Exército no período pós-revolucionário
imagem de um "divórcio" aparece tam­ e da formação de um corpo disciplinado
bém em uma entrevista concedida por de oficiais, José Pessoa queria em pri­
José Pessoa ao jornal A Noite de 17 de meiro lugar afastar a política - que
dezembro de 1931, ao final de seu pri­ divide - e enfatizar a disciplina que
-

une. Uma de suas medidas mais im­


meiro ano no comando da Escola. Per­
portantes foi justamente na área disci­
guntado sobre política, responde:
plinar, com a criação de uma entidade
chamada .'Corpo de Cadetes", reunin­
"Não sou político. Não quero ser. A
do o conjunto dos cadetes. Esse cor:po
nossa maneira de fazer política tem
foi criado oficialmente no dia 25 de
sido a gênese de muitas infelicida­
agosto de 1931- não por acaso data de
des para o país. (...) Ao assumir este 6
nascimento do duque de Caxias -, em
comando, reuni mestres e cadetes,
solenidade à qual estiveram presentes,
advertindo-os de que seria desacon­
entre outras autoridades, o chefe do
selhável o trato de assuntos em de­
governo provisório, Getúlio Vargas.
sacordo com a disciplina militar, se­
parando-me completamente dos po­ A respeito dessa solenidade, há um
líticos. Só não chamo a isso um di­ fato curioso. Por encomenda de José
vórcio porque nunca estivemos jun­ Pessoa, foi feito pelo pintor J. Rocha
tos. Não se deve inferir daí que eu os Ferreira 11m quadro retratando o mo­
condene. Absolutamente. (... ) Mas a mento da entrega do estandarte do
política, para os políticos e mais nin­ Corpo de Cadetes pelo presidente Ge­
guém." túlio Vargas. O pintor baseou-se em
fotografias publicadas pelos jornais,
que retratavam Vargas com seu costu­
Para José Pessoa, política e discipli­
meiro chapéu gelot escuro à cabeça.
na militar eram, portanto, duas coisas
José Pessoa, no entanto, solicitou, o
que não se misturam. Unindo os dois
quadro já pronto, que o chapéu fosse
trechos transcritos, é possível inferir
"retirado" da cabeça de Vargas, num
que gerações homogêneas de oficiais
sinal de respeito devido, porém esque­
seriam aquelas disciplinadas e "divor­
cido. Foi feita, então, esta pequena fal­
ciadas" da política, enquanto as hetero­
sificação da realidade, em nome do
gêmas seriam as "sacrificadas" pela efeito simbólico do quadro, que hoje se
política, que fere a disciplina militar. encontra na biblioteca da Academia
Em outro documento (JP/ag 36.04.12), Militar das Agulhas Negras.
referindo-se ao seu tempo de estudante
Com a criação do Corpo de Cadetes,
na Escola Militar, José Pessoa fala dos
o aluno matriculado na Escola passava
"hábitos turbulentos dos meninos de a ser considerado parte de uma entida­
Floriano", que cometiam "excesso s de
• de coletiva e adquiria, além da condi­
conduta". E conhecido o papel político ção de aluno, a situação militar de
de destaque que os jovens oficiais tive­ "praça especial". O enquadramento
ram na consolidação da República. militar dos alunos foi consolidado, no
Mas se aquela geração mereceu, se­ ano seguinte, pelo RegulCD1le nto inter­
gundo José Pessoa, as regalias discipli­ no do Corpo de Cadetes. Seu artigo 1"
nares de que desfrutou, elas não deve­ dizia que o Corpo de Cadetes, fonte
riam tê-Ias passado como herança às permanente de onde saem as futuras
gerações futuras. gerações de oficiais, é verdadeiro sím-
INVENTANDO TRADiçõES NO EXÉRCITO BRASILEIRO 235

bolo do "futuro do Exército e da segu­ co. Inventou-se um conjunto de símbo­


rança da Pátria." Os títulos de algu­ los que expressavam o perlencimento
mas seções desse regulamento de­ dos cadetes a uma tradição vinculada
monstram o grau de detalhamento que aos valores nacionais mais profundos.
atingia, até então inédito na Escola Em primeiro lugar, os unifonnes dos
Militar: "Da atividade e do repouso", cadetes foram mudados. José Pessoa
"Dos alojamentos, dos pátios e dos ba­ os considerava simbolicamente inex­
nheiros", ''Do refeitório", "Do portão", pressivos e pouco distintos dos unifor­
"Das visitas", "Da conespondência", mes dos soldados. Foi então solicitado
uQ levantar e o café", "Da reunião após o auxílio do artista José Walsht Rodri­
o café", "Das aulas e sessões de estudo", gues, autor de um A/bum dos unifor­
"Da revista do recolher e outras revis­ mes do Exército, para criar o novo pla­
�", "Do silêncio" etc. no de uniformes da Escola Militar.
O espaço e o tempo dos cadetes pas­ Adotaram-se elementos retirados dos
savam a ser, dessa forma, totalmente uniformes militares do Império, prin­
visíveis e previsíveis. Com isso, a Esco­ cipalmente da campanha de 1852 con­
la Militar aproxirnava-se do modelo de tra Rosas: barretina, cordões com pal­
uma instituição total, categoria utiliza­ matórias e borlas, charlateiras de pal­
da por E. Goffman para designar esta­ ma e palmatória escarlate e emblema
belecimentos sociais que concentram simbólico para a cobertura. A cor pre­
indivíduos em tempo integral num dominante passava a ser a turquesa.
único local e sob uma única autoridade, O novo plano de uniformes foi apro­
com atividades diárias rigorosamente vado em 30 de abril de 1931. Segundo
estabelecidas e padronizadas.6 Mas a José Pessoa, não se tratava de urna
autoridade que deveria controlar o simples combinação de peças, mas de
cumprimento dos regulamentos pelos um verdadeiro plano que visava obje­
cadetes não era basicamente exterior, tivos bem determinados, entre os quais
como é o nOMnal nas instituições totais. "restabelecer-se, embora respeitando
O principal controle deveria ser a cons­ as l inhas gerais dos uniformes contem­
ciência dos próprios cadeus, através porâneos, os liames históricos do Cade­
da criação do que José Pessoa chamava te da Escola Militar." (JPfvp 31.05.12,
de "um novo estado psicológico", que doc. 1)
tarnaria cada um "escravo de sua dig· Um últímo elemento - porém o sim­
nidade pessoaL ( ...) Cada cadete era bolicamente mais importante - veio a
prisioneiro de si mesmo. E, podemos
completar o uniforme dos cadetes: o
afirmar, não havia prisão mais sólida." "espadim", uma réplica em miniatura
(JP/dv 53.00.00, 1II:33) da espada de campanha do duque de
Caxias. A peça original foi localizada
no Instituto Histórico e Geográfico
Brasileiro, copiada, e os desenhos en­
3. Os novos símbolos viados à Europa, onde foram feitos os
espadins. Através desta arll19 simbóli-
O objetivo principal da reforma pre- ca, José Pessoa pretendia cultuar "o
tendida por José Pessoa era, portanto, pilar que sustentou o Império", "o
atingir "a alma e o coração" dos jovens maior general sulamericano", "invicto
candidatos a oficial. Por isso, suas mais soldado", "aquele que melhor serviu à
importantes iniciativas - e as mais pãtria e mais a estremeceu." A figura
duradouras - foram no campo simból" de Caxias deveria "pairar no seio dos
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236 ESTUDOS HISTÓRICOS -1994·1.

cadetes do Brasil" como Napoleão en­ "A constituição sienítica-nefelítica


tre os de'"Saint-Cyr e Washington entre das rochas das Agulhas Neglas em­
7 presta-lhes caráter eruptivo de alta
os de West Point.
Os primeiros espadins foram entre­ significação geológica, em vista da
gues em dezembro de 1932, em soleni­ idade que lhes assegura a estabili­
dade realizada em frente à estátua de dade de rocha primitiva do maciço
Caxias no centro do Rio de Janeiro.
,
central do Brasil. Este sentido seria
Confol'lue as recém-criadas Instruções transmitido ao brasão pela firmeza
para0 recebimento e uso do espadim, os e estabilidade do símbolo, repre­
cadetes pronunciaram o seguinte jura­ sentando a firmeza e a estabilidade
,s
do Exército:
mento: ''Recebo o sabre de Caxias como
o próprio símbolo da honra militar." O
espadim passou, desde entáo, a ser peça
mantida pelos cadetes durante o curso
na Escola Militar e devolvido pouco an­
4. Uma nova aristocracia
tes da solenidade de formatura, quando
é passado a um aluno calouro. Outro elemento simbólico impor­
Outros símbolos materiais foram tante da reforma implementada por
criados durante a reforma de José Pes· José Pessoa foi a reutilização do título
soa: o estandarte e o brasão de aflUas de cadete para designar os alunos da
9
Escola Militar. Este título existira du­
do Corpo de Cadetes. Igualmente dese­
rante o Império e nos primeiros anos
nhado por Walsht Rodrigues, o brasão
da República (até 1897), sendo, origi­
trazia um escudo com uma torre de
nalmente, exclusivo dos alunos de ori­
ouro, que simbolizava a Escola, tendo,
gem nobre. José Pessoa começou seu
ao fundo, o perfIl estilizado do pico das
discurso de posse no comando da Esco­
Agulhas Negras. Por que esta monta­
la - do qual acima foi transcrita uma
nha? Na ocasião, a Escola Militar fun­
parte - justamente com o vocativo "ca­
cionava no subúrbio carioca do Realen..
detes". em desuso havia mais de duas
go, e não na região de Resende/ltatiaia,
décadas. Com isso, ao mesmo tempo
onde está situado o pico das Agulhas
dava-se um ar aristocrático à condição
Negras. Ocorre que, na época, esse pico
de aspirante a oficial do Exército, reto­
ainda era considerado a mais alta mava-se um elemento do passado e
montanha do Brasil. Além disso, fazia transmitia-se a idéia de que ser cadete
parte do maciço central brasileiro - é pertencer a uma elite social. Numa
espinha dorsal do território nacional­ carta ao ministro da Guerra, Góis
e era de idade geológica muito antiga­ Monteiro, de 31 de março de 1934, José
outro aspecto de forte apelo simbólico. Pessoa escreveu:
Para os que inventavam novas tradi­
ções, o pico das Agulhas Negras era "Com os exércitos contemporâneos,
visto, enquanto "síntese fIsiográfica" a tarefa mais dificil para os gover­
do maciço central, como um símbolo da nos, a parte mais delicada a tratar,
unidade estrutural do Brasil, da mes­ é a criação desse nervo motor que dá
ma fOl'ma que o Exército o era da Na­ vida à nação arll1ada, isto é. a orga-
ção e a Academia o era do Exército.
-

nização do corpo de oficiais. E que


Nas palavras de época do capitáo hoje, mais do que nos tempos passa­
Mário Travassos, ajudante-de-ordens dos, torna-se preciso que o corpo de
de José Pessoa: oficiais constitua uma verdadeira
INVENTANDO TIlADlçãES NO EXÉRCITO BRASILEIRO 237

aristocracia, não a aristocracia de


sangue, mas uma aristocracia f"lSi� 5. Uma nova escola
ca, moral e profISsionaL" (JPfvp
31.05.12, doc. 29) A localização da Escola Militar no
Realengo sempre desagradou a José
A visão do cadete como membro de Pessoa:
uma elite social, uma aristocracia do
mérito, fundamentou uma série de ini· "Ali tudo é impróprio à formação do
ciativas tomadas por José Pessoa du­ corpo de oficiais. O clima é exausti­
rante seu comando. No que toca ao vo; 05 campos empantanados facul­
recrutamento de alunos para a Escola tam a proliferação dos mosquitos e,
Militar, ele reservou metade das vagas pois, os surtos de impaludismo; a
para o concurso de admissão aberto ao. paisagem, por toda parte, é cansati­
civis - até então, a maioria de alunos va e monótona; as condições da loca­
era oriunda dos três colégios militare. lidade, qualquer que seja o ponto de
em funcionamento (Rio de Janeiro, vista por que sejam encaradas, es­
Porto Alegre e Fortaleza). No mesmo tão abaixo das exigências necessá­
sentido, ele sempre se opôs à idéia de rias. E pela localização dentro da
recriar uma escola preparatória ao in­ capital federal, ainda está sujeita a
gresso na Escola Militar. ser presa de agitações políticas que,
José Pessoa pretendia alargar a ba­ periodicamente, inflamam a capital
se social de recrutamento para a Esco­ do país, como freqüentemente tem
la, evitando o predomínio do recruta­ acontecido." (JP/ag 36.04.12, doc.
mento no próprio meio militar e favo­ 14)
recendo o i ngresso dos "melhores ele­
mentos". Já em seu Boletim n·1, José Pessoa
Foi também instituída uma inspe­ falara da necessidade de se escolher
ção médica eliminatória e a necessida­ um novo local para a Escola Militar.
de de o candidato à Escola trazer um Criou-se então, em 4 de dezembro de
"conceito" firmado pelos comandantes 1931, uma Comis,ão Executiva da No­
dos colégios militares ou dos estabele­ va Escola, por ele presidida, e que logo
cimentos de ensino secundários civis, elegeu a região de Resende como ideal
que se tornavam, assim, fIadores do para a construção da nova sede. Entre
candidato perante o comando da Esco­ as razões apontadas, destacavam-se: a
la Militar. localização intermediária entre Rio,
Para José Pessoa, a "missão" da Es­ São Paulo e Minas Gerais, proporcio­
cola Militar era "aprimorar qualida­ nando facilidades de comunicação com
des, e não corrigir defeitos" (JP/ag as principais cidades do país; o clima
36.04.12, doc. 32). Foram tomadas vá­ privilegiado - a região foi apelidada
rias providências para dar projeção so­ pelo médico Miguel Couto de "a Suíça
cial ao cadete, como contatos com os brasileira"; a variedade de acidentes
clubes de maior projeção da época, o geográficos de que dispunha - as Agu­
Fluminense e o Tijuca Tênis Clube, lhas Negras, o rio Paraíba -, que, além
para que cadetes fossem convidados do valor para a instrução militar, fa­
para todas as festas, ao mesmo tempo ziam José Pessoa sonhar com excur­
que se desestimulava seu compareci­ sões dos cadetes às montanhas e com a
mento aos festejos suburbanos do prática de esportes nãutico. no rio Pa­
10
M'"
818r e de Bangu. raíba, podendo a futura escola tornar-
238 ESTUDOS mSTÓRICOS -19{j.j·14

se, "muito breve, uma espécie das fa­ seus últimos dias à frente da institui­
mosas universidades de Oxford e Cam­ ção foram ainda tumultuados por uma
bridge, situadas à borda do Tâmisa, greve dos alunos, temerosos ante a
movimentando toda a cidade de Lon­ aplicação de uma nova inspeção de
dres por ocasião de suas regatas"; fi­ saúde. Pouco após deixar o comando,
nalmente, o fato de a cidade de Resen­ José Pessoa foi preso por 48 horas por
de ser considerada ideal para o conví­ ordem do ministro, devido a um artigo
vio social do cadete, por abrigar uma que publicou no Correio da Manhã de
"sociedade homogênea" e de "arraiga­ 16 de maio de 1934. Duas décadas mais
das tradições", características da anti­ tarde, em sua autobiografla, José Pes­
ga área cafeeira do vale do Paraíba, em soa ainda guardava enorülB mágoa
cujo apogeu econômico "surgiu a famí­ contra Góis Monteiro. a quem qualifica
lia resendense organizada, estável, e de "oficial preguiçoso e ineficiente".
que hoje dá vida à atividade pastoril apelidado quando jovem de ''Mimi bi­
das fazendas e aos surtos industriais lontra" pelos colegas. "mergulhado nu­
correlatos quejá se verificam em larga ma vida dissoluta e beberronia" na ju­
escala. Além disso, Resende está in­ ventude, ainda "dissoluto e desregrado
u
cluída entre as estações de repouso e, na maturidade.u
assim, mantém periodicamente conta­
to com elementos sociais mais adianta­
dos." (JP/vp 31.12.15, doc. 9)
A transferência da Escola Militarpa­ 6. Revolução e tradição
ra Resende com o nome mais pomposo
de Academia Militar das Agulhas Ne­ Consideradas em seu conjunto, as
gras seria, para José Pessoa, a coroação tradições inventadas por José Pessoa
da reforma no sistema de formação dos são impressionantes. Em suas pala­
futuros oficiais do Exército. Ela não se vras, após quatro anos de comando
concretizaria, no entanto, durante seu "criou�se uma ideologia, que é um mis­
comando. Apesar de conseguir a apro­ to de brasilidade e sentimento militar,
vação de todas S11AS inovações no início amalgamados pelo culto do passado,
de seu comando, na gestão do general pelo espírito de tradição." (JP/dv
Leite de Castro no Ministério da Guerra 53.00.00, III:34) 'Ibdos os elementos da
(novembro de 1930 - junho de 1932), refOtlllQ permanecem praticamente
José Pessoa teve sérios desentendimen­ inalterados até hoje, e \Im busto de
tos com o novo ministro, general Góis José Pessoa colocado em posição de
Monteiro. Em 1932, por exemplo, opôs­ destaque na AMAN por ele idealiza­
-

se à idéia do ministro de utilizar os da - é o sinal ma is claro de que SUB


cadetes nas operações militares contra empresa foi historicamente bem-suce­
a Revolução Constitucionalista de São dida. As pessoas que assistem às come­
Paulo. Posteriormente, Góis Monteiro, morações na AMAN, incluindo os pró­
segundo José Pessoa, teria tentado re­ prios cadetes e oficiais, provavelmente
matricular alguns cadetes desligados e supõem serem os simbolos que vêem
adotado outras medidas que caracteri­ muito mais "tradicionais" e antigos do
zariam a ''politicagem'' do minis tro con­ que são na realidade.
tra a Escola. No caso das tradições inventadas
Por causa das desavenças com Góis por José Pessoa, pode ser visto como
Monteiro, José Pessoa pediu desliga­ uma contradição o fato de se vincular
mento do comando da Escola Militar, e um "novo Exército", criado num mo-
INVENTANDO TRADIçõES NO EXÉRCITO BRASILEIRO 239

mento pós-revolucionário, ao passado, polltica do interior do Exército, reser­


ao invés de inventar símbol08 que rom­ vandose a política "para 08 pollticoe e
pam com tudo o que existiu anterior­ mais ninguém". Ao mesmo tempo, im­
mente e apontem para o novo, para o plementavam-se me<lidas que enfati­
futuro. Esta contradição é, no entanto, zavam a clisciplina, com a criação do
apenas aparente. Uma das caracterís­ Corpo de Cadetes, o novo regulamento
ticas centrais de todo processo de in­ e o controle mais rigoroso da vida coti­
venção de traclições é justamenta esta­ diana dos alunos.
belecer continuidade com 11m passado Se as traclições inventadas na época
histórico considerado como aqropria­ permsnecem existindo até hoje, é pro­
do. Como aponta Hobsbawm,l blemática, no entanto, a visão de des­
taque social do futuro oficial do Exér­
"É o conl.aste entre as constantes cito, que deveria presidir a formação
mudanças e inovações do mundo doe cadetes. Embora ela seja, desde a
moderno e a tentativa de estruturar reforma de José Pessoa, a "ideologia
de maneira ímutável e invariável ao oficial" da instituição, aquela que é
men08 alguns aspectos da vida so­ transmitida aos cadetes, existe 11m ní­
cial que torna a 'invenção das tracli­ tido descompasso entre a auto-imsgem
çóea' um assunto tão interessante d08 militares e a visão negativa de
para 08 estucliosos da história con­ amplos setores da sociedade civil a res­
temporânea." peito da profISS ão militar.13 Isso se de­
ve, em grande parte,à atuação polltica
Qual passado era apropriado, no ca­ das Forças Armadas durante o regime
so aqui apresentado? Não era, certa­ militar de 1964-1985. Na r.."" de crise
mente, o da República Velha que se de identidade social em que a institui­
derrubara, "o velho regime polltico de­ ção militar se encontre, é uma questão
caído", Restava o Império, ma! não seu em aberto saber se as traclições inven­
início ou seu final, amb08 tumultuados tadas por José Pessoa há sessenta anos
para o Exército. O ideal era um "méclio" continuarã o tendo força simbólica no
Império, afastado das rupturas pollti­ Exército do futuro.
C80- que comprometem a clisciplina -,
tendo como centro a figura de Caxi9S,
considerado símbolo da unidade do
Exército e da Nação.Assim,lançava-se Notas
uma âncora num paAAado remoto -
uma tentativa de demonstrar a estabi,­ 1. Eric Hobsbawm & Terence Ranger
(orga.), A invenção das tradições (Rio de
lidade da instituição que deveria ser a
Janeiro, Paz e Terra, 1984).
"ossatura da nacionalidade". Era essa
a característica que José Pessoa consi­ 2. A Escola Militar do Realengo é a
ante;)eS80ra histórica da Escola Militar de
derava essencial para superar as ins­
Resende, inau gurada em 1944, e que teve
tabilidades do presente. Daí a coerên­
seu nome alterado em 1951 para Academia
cia de todos os símbolos inventados: os
Militar da. Agulhas Negras (AMAN), ca­
novos uniformes "tradicionais", O aspa­ ma permanece até hoje.
clim de Caxias representando a "honra
S. A principal fonte da dadoe para este
militar", a imagem telúrica e intempo­ artigo é o arquivo pessoal de José Pessoa,
ral das Agulhas Negras. depositado no CPDOC da Fundação Getu­
Exorcizavam.se, assim, ao menos lio Val'gWl. Há várioB dossiês de documen­
no plano simbólico, as turbulências da to. referente. à Escola Militar e ao ensino
240 ESTUDOS jDS1'ÓRlCOS -1994-14

militar, além dos originais da autobiogl'a­ 10. Ver declarações do ex-cadete Carlos
fia não-publicada DiCu·io da minha vida, de Meira Mattos em Câmara, op. clt., p. 88,
terminada provavelmente em 1953 (código e de Jeová Mata, Fonnação do oficial do
JP/dv 53.00.00; as pastas III e IV referem­ Exército (Rio de Janeiro, eia. Brasileira de
se à Escola Militar). Para lima biografia de Artes GráfiNls, 1976), p. 364, nota 52.
José Pessoa, ver Ten-Cel Riram de Freitas
11. Não é aqui o local para investigar se
Câmara, Marechal José Pessoa: a (orça de
um ideal (Rio de Janeiro, Bibliex, 1985). as divergências entre Góis Monteiro e José
Pessoa eram de caráter também doutriná·
4. Ver José MuriIa de Carvalho,"Forças
rio, além de pessoais. De qualquer fonna,
armadas e política, 1930-1945", em A Re­
em questões políticas, as diferenças entre os
volução de 30: seminário internacional
dois são visíveis já durante o comando da
(Brasília, UnB/CPDOC, 1982), p. 109-50.
Escola Militar, e se aprofundariam dePJis.
5. A data de nascimento de Luiz Alves
AJJ deixar o oomando, já como general�e-­
de Lima e Silva - 25 de agosto -era, desde
brigada (havia sido promovido em 1933),
o Aviso do Ministro da Guerra n' 443 de
José Pessoa foi nomeado comandante do
25/8/23, comemorada como ''Dia do Solda­
Distrito de Artilharia de Costa da l' Região
do". Caxias, no entanto, só foi reconhecido
Militar, no Distrito Federal. Contrário ao
oficialmente como "Patrono do Exército"
golpe do Estado Novo, foi acusado por Góis
paIo Decreto n' 51.429, de 13/3/62. Apasar
Monteiro de "inimigo do regime", e fioou
de José Pessoa ter desempenhado, com a
algum temJXI sem comissão, sendo depois
reforma da Esrola Militar, um papel im­
nomeado comandante da 911 Região Militar,
portante no desenvolvimento do "culto a
em Mato Gl"OSSO. No irúcio de 1939, foi no­
Caxias", o processo de mitificação deste
meado inspetor da Arma de Cavalaria, car·
personagem pelo Exército é muito mais
go que ocupou até 1945. Em maio de 1944
amplo, e um tema ainda à espera de pes�
foi eleito presidante do Clube Militar, na
quisa histórica.
chapa de oposição ao candidato do ministro
6. Erving Goffinan, Manicômios, pri­
da Guerra. Em seguida,foi adido militarem
sões e conventos (São Paulo, Perspectiva,
Londres de 1946 a 1947 e comandante da
1974). Goffman inclui as academias mili�
Zona Militar Sul de 1948 a 1949, quando
tares entre as instituições totais (ver p. 25
passou para a reserva no JXlsto de general·
e 55), embora suas referências básicas se�
de-divisão. Foi um dos fundadores do Cen­
jam as prisões e os hospitais para doentes
tro de Estudo e Defesa do Petróleo e da
mentais. Em livro sobre pesquisa que re·
Economia Nacional (CEDPEN) e presiden­
alizei na atual AMAN , faço, no entanto,
te da Comissão de Localização da Nova
algumas restrições ao uso automático do
Capital Federal (1954-6).
conceito de instituição total para caracte�
rizar as academias militares. Ver Celso 12. Eric Hobsbawm, '�ntrodução: a in­
Castro, O espfrito militar: um estudo de venção das tradições", em Hobsbawn &
antropologia social na Academia Militar Ranger, op. cit, p. 9-10.
d01lAglllh01l Negras (Rio de Janeiro, Jorge
Zahar Editor, 1990), p. 32-34. 13. Ver, a esse respeito, Castro, op. cit.,
capo 4: "Os cadetes e o mundO de fora."
7. As referências a Caxias encontram�se
na autobiografia, JP/dv 53.00.00, III:63-8.
8. Artigo publicado na Revista da Esco­ (Recebido para publicação em jullw ti< 1994)
laMilitar de 1931 e citado por Câmara, op.
cit, p. 69.
9. O Decreto n' 20.307, de 15/8/31, ofi­
cializou o uso do título de cadete pelos Celso Castro é pesquisador do CPDOC
alunos da Escola Militar. FGV e doutorando do PPGAS-UFRJ.

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