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BRAUNE. Fernando. O surrealismo e a estética fotográfica.

Rio
de Janeiro: 7Letras, 2000.
Capturar visualmente o mundo e narrá-lo, sob este ponto
de vista, ontologicamente (mesmo que apenas sob a forma de um
registro gratuito de seus aspectos óbvios e cotidianos) tem
sido um dos desejos mais arraigados do homem ocidental. Tal
anseio “óptico” de representação conduziu, em termos
imagéticos, a uma autêntica “quebra” do, até então
prestigiado, ato pictórico, ao ser implementado, em pleno
século XIX, o agenciamento técnico final do dispositivo
fotográfico. Este fato se deveu a pioneiros do naipe de
Thomas Wedgwood, Joseph Nicephore Niepce, Louis Jacques Mande
Daguerre, Hippolyte Bayard e William Henry Fox Talbot - para
citar apenas os mais bem sucedidos, dentro de uma legião de
engenhosos pretendentes – precisamente em agosto de 1839,
quando o governo francês comprou a patente do daguerreótipo,
disponibilizando-o para o uso público, já com o nome
“fotografia” (híbrido dos termos gregos p h o s , “luz” e
graphein, “escrever”, literalmente significando “escrita – ou
registro – luminosa”) – sugerido, à época, por Sir John
Herschel. O referido agenciamento simplesmente arrematava uma
série de esforços, remissíveis à arquetípica câmera obscura,
tão cara aos renascentistas, em não só dar conta de uma
representação mais “pura” do real, quanto em disseminá-la e
partilhá-la em nome da racionalidade científica triunfante
ou, pelo menos, para a fruição simbólica das classes, que
então agentes oficiais do poder, nela investiam.
Autêntica interface do técnico e do estético, do jogo
duro da representação e da maleabilidade conceitual crítico-
moderna, a fotografia tem se constituído em um domínio, sem
dúvida, privilegiado – principalmente se levarmos em conta o
fato de ela não poder apelar, como pôde o cinema, para a
codificação fácil do binômio narrativa ficcional-movimento no
tempo – no que tange a uma melhor elucidação da sensibilidade
contemporânea. No entanto, e apesar disso, são ainda
relativamente ouças, em nosso idioma, as incursões teóricas
de qualidade, no que diz respeito à linguagem fotográfica e
seu entorno poético. A exemplo dos ensaios, por aqui já
traduzidos, de Philippe Dubois (O Ato Fotográfico) e de Jean-
Marie Schaeffer ( A Imagem Precária: Sobre o Dispositivo
Fotográfico ), O Surrealismo e a Estética Fotográfica, de
Fernando Braune, persegue um novo approach dessa ordem,
revelando-se enriquecedor não só por sua tentativa de
(re)discussão dos aspectos intrínsecos da fotografia, como
também por sua proposta de elucidação de um certo elemento de
“surrealidade” impregnante do olhar fotográfico. Se o
principal percalço de uma reflexão incisiva sobre a
fotografia ainda repousa sobre o cotejamento, em tese
improvável desde Platão, entre as ordens lógico-
metafisicamente excludentes da representação-simulação e da
objetividade-verdade, uma análise inter-faceante, como a aqui
fomentada, do projeto surrealista – no caso, pela
caudalosidade de um Giorgio de Chirico, um Max Ernst, um Joan
Miró ou um Marcel Duchamp – em sua intencionalidade “de
afrontamento da passividade, do enfado e da alienação
impostos pela racionalidade moderna”, decerto nos conduz a um
instigante sobrevôo emancipatório. Urge acrescentar que a
qualidade visual de tal sobrevôo jamais deixa de ser-nos
garantida pelos recortes vigorantes com que Fernando trata de
municionar nossa leitura e que, indo, entre outros, da dicção
cega das lentes de Evgen Bavcar ao voyeurismo paralisante do
estranho de Diane Arbus, balizam com acuidade todo o
percurso.
Jorge Lucio de Campos
SUMÁRIO

INTRODUÇÃO [7]

I – A FOTOGRAFIA ENTRE A CIÊNCIA E A ARTE [9]

O referente [9]
O atrelamento da fotografia às artes plásticas [10]
A busca da autonomia [12]

II - O OLHAR SOCIAL URBANO [15]

A periferia [15]
A surrealidade em Arbus e Seurat [16]
O deslocamento do conceito do belo [20]
As bases do Surrealismo [21]
A dessacralização do nu [21]
A fotografia e o 1º Manifesto Surrealista [24]
Pintura (Roma) x Fotografia (Pompéia) [26]
A surrealidade fotográfica de Miró [27]

III - A IMAGEM SUBVERTIDA [30]

Max Ernst e a colagem/ montagem surrealista [32]


A surrealidade em Picasso [33]
De Chirico [34]
Duchamp e os ready-mades [34]
Magritte [36]

IV - O MÉTODO PARANÓICO-CRÍTICO DE DALÍ E O 2º MANIFESTO


SURREALISTA [38]

A fotografia inserida na filosofia do 2º Manifesto


Surrealista [40]

V - A HERANÇA E O DESMORONAMENTO DO ESPAÇO RENASCENTISTA [49]

VI - A SURREALIDADE DA QUESTÃO ESPACIAL EM FOTOGRAFIA [53]

A transgressão do espaço [54]


A grande angular [57]
O ângulo superior [57]
A fotografia aérea e antiaérea [59]

VII - O DISTANCIAMENTO DA REALIDADE RACIONAL [62]

O aspecto psicológico [62]


O aspecto cultural [63]
O aspecto social [66]
O aspecto temporal [69]
O confronto espaço x tempo [71]
O percurso espaço-tempo nas artes [72]

VIII - A TEMPORALIDADE FOTOGRÁFICA E A MORTE [77]

A surrealidade fotográfica em Magritte [80]


Tragédia e talismã [82]
O tempo fotográfico em De Chirico [82]
O tempo fotográfico em Tanguy [83]

IX - A TEMPORALIDADE VIRTUAL E A LATÊNCIA NA LINGUAGEM


FOTOGRÁFICA [86]

X - O PARADOXO SURREAL DA LUZ EM FOTOGRAFIA [94]

XI - O CEGO, A FOTOGRAFIA E A SOCIEDADE CONTEMPORÂNEA [100]

A visão do cego historicamente [100]


O sentido da visão privilegiado pela cultura ocidental [100]
Evgen Bavcar [102]
O cego e a questão mimética da fotografia [103]
A síntese do Surrealismo na imagem fotográfica criada pelo
cego [106]

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS [112]


Para Marcia, Fernanda e Laura

portos que me amparam,


velas que me fazem navegar.

À Daniel & Cia,


que acreditou neste trabalho.
INTRODUÇÃO

Este livro nasceu da necessidade que percebo em se


discutir, cada vez mais, a fotografia por dentro, em seus
mais amplos espectros. Ative-me, de maneira mais específica,
à surrealidade impregnada à fotografia, não exclusivamente ao
Movimento Surrealista em si, embora este tenha-se configurado
como o fio condutor para os principais questionamentos. Parti
do princípio de que o Surrealismo seria um veio interessante
para se discutir a fotografia, porque as suas próprias
origens apontam para esse caminho.
Em meio ao alucinante ritmo desenvolvimentista do século
XIX, assolado pela Revolução Industrial, nasce a fotografia,
num clima permeado pelo mundano, pelo desajuste social e por
tudo o que poderia levar o homem a uma total padronização de
sentidos, apontando, assim, para a sua aniquilação como ser
individual.
Embora o Surrealismo, como movimento, tenha surgido um
pouco mais tarde, as suas raízes percorrem o rastro de toda a
desarticulação social da urbanicidade, e essa referência será
o grande elemento de comunicação entre a linguagem
fotográfica e o Movimento Surrealista em si.
O projeto surrealista teve como balizamento o direto e
objetivo afrontamento à passividade, ao enfado, à alienação,
enfim, a toda racionalidade que a modernidade acabou por
impor ao ser humano. O Surrealismo simbolizou uma luta no
sentido de devolver ao homem a sua potencialidade criativa,
retirando-o de uma estagnação paralisante e da alienação, ao
libertá-lo das forças constrangedoras e opressoras de coação,
fontes da lógica, da razão e da moral, com o intuito de
promover a verdadeira harmonização entre as suas instâncias
consciente e inconsciente. A fotografia, de uma certa forma,
perfaz o mesmo caminho, porém por outro viés, de maneira
sutil, quase imperceptível. A carga desarticuladora,
mobilizadora da fotografia concentra-se de forma mais
acentuada no que ela deixa de mostrar, no que esta implícito,
em tudo aquilo que não nos é dado de pronto, de imediato pela
imagem fotografada – há que se mergulhar na virtualidade da
fotografia para, de fato, tocá-la e ser tocado, ungido
surrealisticamente.
Neste livro, proponho trazer à tona artistas e
intelectuais que, de alguma forma, participaram, direta ou
indiretamente do Movimento Surrealista, e do qual tornaram-se
referencias marcantes, como Breton, Masson, Tanguy, Max
Ernst, Duchamp, Magritte, Miró, Dalí, De Chirico, Seurat,
Picasso, Mallarmé, Appolinaire, Artaud, entre outros. As
filosofias que permearam as obras desses artistas serviram-me
de gancho, de ponto de ignição para discutir a surrealidade
impregnada na fotografia, na tentativa de estabelecer uma
relação de vasos comunicantes entre as diversas linguagens.
I - A FOTOGRAFIA ENTRE A CIÊNCIA E A ARTE

É mais do que plausível que, desde o anúncio oficial de


sua criação, em 1839, por Daguerre, a fotografia tenha
sofrido as mais severas críticas e ataques de todos os lados.
Ela é uma atividade que nasce dúbia, permeia terrenos até
então inimagináveis de se postarem juntos – fascina,
deslumbra, mas aterroriza, amedronta. Que atividade tão
perigosa e surreal é essa, nascida da pesquisa científica,
das experiências da química e da física e que, ao mesmo
tempo, insere-se no contexto artístico? E ciência ou arte?
A sociedade sempre foi ávida pela classificação, pelo
enquadramento, para que, a partir de uma definição, possa
exercer seu poder sobre as atividades e manipulá-las da
maneira que melhor lhe convier. E o ponto nevrálgico está
exatamente aí, pois a fotografia é escorregadia, e aí está o
seu perigo, pois quando se pensava estar amarrada aos cânones
estabelecidos, ela transmutava, percorria outros caminhos,
deambulava pela própria escuridão, na retomada do que era
genuinamente da sua natureza. Por isso a fotografia foi,
durante um longo período, tão desrespeitada.
Ao mesmo tempo em que as primeiras fotografias mostravam
imagens tipicamente dentro do cenário pictórico (temas
alegóricos, históricos, naturezas-mortas etc.), o discurso em
tomo delas nascia preso ao caráter científico de suas
abordagens, apregoando uma fiel e exata representação da
realidade.

O referente

A partir daí, a fotografia passou a enredar-se em suas


próprias teias. O cerne da questão encontra-se dentro da
própria linguagem fotográfica, no que há de inerente ao seu
próprio meio, que é o referente.
Por mais abstrata que seja uma fotografia, por mais que
ela "minta", por mais que nela sejam adicionadas
interferências de quaisquer categorias, por mais surreal que
possa vir a ser uma fotografia, ela não deixa de estar
atrelada ao referencial, Aquilo que, no exato momento em que
o disparador da câmara foi acionado, estava lá – presença
incontornável –, caso contrário não haveria algo fotografado,
não haveria a fotografia. Como disse Roland Barthes em A
câmara clara, o referente adere, por mais que queiramos nos
desvencilhar dessa característica. Essa condição indiciária,
referencial, no entanto, que é a ontologia da fotografia, por
ter sido mal interpretada e pouco compreendida, acabou por
levá-la à condição de mimese, de "espelho da realidade". Essa
condição mimética atribuída à fotografia vem do
inquestionável deslocamento da realidade do objeto
fotografado à película no instante em que se fotografa, de
sua condição pragmática e existencial amarrada a um
instrumento mecânico, que só sobrevive em simbiose com a
realidade, o resto sendo retórica. Ficava, portanto,
estabelecido que a "imitação mais perfeita da realidade"
estava nas mãos da atividade fotográfica, ficando o universo
artístico relacionado a outras atividades mais nobres, mais
sublimes.
Essa visão estabelecida pela sociedade vinha respaldada
por intelectuais e críticos de arte da época, que entendiam a
arte como uma atividade da imagística, de abstração da
realidade, onde o sujeito, o ser humano, interpreta o mundo à
sua maneira. A atividade artística, enfim, era vista como
algo intimamente ligado à autoria , enquanto a fotografia,
atividade regida por um instrumento mecânico e pelas leis da
ótica e da química, nada mais fazia, segundo essa visão, do
que registrar, com fidedignidade, a realidade através da luz,
sendo-lhe negada qualquer tipo de intelectualidade, de
criatividade e interpretação. Entendia-se, assim, que nenhum
tipo de interferência era requerida pelo sujeito que a
operasse, ou seja, encontrava-se a fotografia bloqueada pelo
fundamento da atividade artística, que era a autoria. Já que
a arte era, conceitualmente, criação, e a fotografia era
considerada mero registro fidedigno da realidade, isenta,
portanto, de qualquer indicio criativo, passava esta a ser
excluída do circulo artístico, fato que se constituiu num
erro crasso de interpretação do "índice fotográfico", uma vez
que índice não implica, necessariamente, em mimese. Esse
conceito gerou as mais fantásticas discussões em torno da
atividade fotográfica, e muito embora ainda hoje, nos meios
menos atentos, a condição indiciária da fotografia seja muito
confundida e mal interpretada como mimética da realidade, foi
a partir, exatamente, de uma nova conceituação e discussão em
torno do índice que a fotografia passou a constituir-se como
meio de expressão com linguagem própria, autônoma,
independente das amarras que a prendiam aos conceitos
próprios da pintura, tornando-se, assim, parte do cenário
artístico.

O atrelamento da fotografia as artes plásticas

Antes de entrarmos na discussão da independência da


atividade fotográfica, seria interessante uma digressão em
tomo da dependência em que ela se manteve por tanto tempo.
A época do surgimento da fotografia, a pintura, que era
o meio de representação do mundo, já carregava em seus ombros
o pesado fardo de pertencer às "Belas Artes", além de
carregar, por praticamente quatro séculos, o vicio do olhar
renascentista. Obviamente, não se trata aqui de uma negação
ou critica desfavorável ao movimento renascentista, só que os
seus fundamentos e noemas encontravam ressonância nos
contextos social, político, psíquico e científico da
sociedade quatrocentista, que deixava de ser regida pelos
poderes divinos, deixava de ser meramente um reflexo do
pensamento de Deus, passando a colocar o homem como centro de
todas as coisas.
A herança renascentista vem da perspectiva linear
euclidiana,1 colocada em pratica por Brunelleschi, 2 que fazia
com que o mundo passasse a ser representado a partir de um
único ponto de vista, fixo, ideal, perpendicular ao plano do
quadro, induzindo o encontro das linhas paralelas em um ponto
de fuga, ou seja, nos dando a representação tridimensional do
mundo de forma idealizada, bela, em um espaço bidimensional –
a tela. Essa visão de representação do mundo atrelada ao
conceito do belo e conquistada pela pintura, portanto,
alijava qualquer outra visão que não pertencesse aos seus
princípios.
Em vista desse cenário, os fotógrafos, por não
encontrarem suporte dentro da própria linguagem fotográfica
para alcançarem "um lugar ao sol", e, assim, pertencerem a
uma das "Belas Artes", passavam a utilizar-se dos meios da
pintura para conseguir o status tão desejado, negando todos
os princípios da fotografia, até mesmo evitando serem
chamados de fotógrafos, preferindo denominações como
pintores-fotógrafos, escultores-fotógrafos, fotógrafos-
artistas. De forma a tirar a fotografia do seu caráter
"mundano”, "prosaico", houve, pois, uma grande corrida para a
abordagem de temas históricos, literários, anedóticos,
típicos da pintura plenamente assimilada pela sociedade da
época, já que, além da mera mecanicidade atribuída à
fotografia, havia um total descrédito a essa atividade que
tratava de temas urbanos, comuns e vulgares, sem o
comprometimento com o belo.
Os chamados fotógrafos pictorialistas perseguiram de
forma incansável os cânones das "Belas Artes", chegando ao
ápice da negação da linguagem fotográfica com fotomontagens
inspiradas nas pinturas pré-rafaelistas3, principalmente
1
Euclides: matemático grego (séc. III a.C.) autor de
Elementos, base da geometria elementar que contém o Postulado
de Euclides.
2
Brunelleschi (Fillipo): arquiteto italiano (Florença,1377-
1446). Considerado o maior iniciador da Renascença, construiu
em Florença a cúpula da catedral de Santa Maria Del Fiori.
3
Pré-rafaelismo: escola de pintura surgida na Inglaterra em
1848, capitaneada por William Hunt e Dante Gabriel Rossetti.
através de Reijlander e Robinson4, que fotografavam vários
planos de uma cena, já que os recursos da fotografia, na
época, não permitiam todos os planos em foco, para que, em
seguida, fossem montados. Essas composições compreendiam um
caráter eminentemente caricatural, de exacerbação de gestos e
atitudes, o mais próximo possível da pintura acadêmica,
diferentemente das fotomontagens tratadas pelo Movimento
Surrealista, de que falaremos adiante.

A busca da autonomia

Se por um lado as fotomontagens dos fotógrafos


pictorialistas, baseadas na perfeição de detalhes das
pinturas pré-rafaelistas, afastavam a fotografia das
características próprias de sua linguagem, por outro lado
apontavam para um caminho até então inimaginado para esta
atividade, o qual voltava-se para a criatividade, a
intervenção direta do sujeito na obra enfim, a autoria. A
fotomontagem permitia selecionar, criar, inventar uma imagem,
e assim abria-se um veio de discussão de extrema importância.
Uma vez que os fotógrafos da época sentiam a necessidade de
lançar mão de montagens para conseguir imagens o mais próximo
possível da realidade, ficava claro que a fotografia não
possuía meios suficientes para ser credenciada como a
linguagem mais exata para representar o mundo.
Vendo-se diante de tais constatações, algumas correntes
de fotógrafos passaram a discutir a atividade fotográfica por
dentro, através das características de sua própria natureza,
deixando de lado tudo o que não pertencia à sua linguagem,
voltando-se para o exame dos seus próprios fundamentos, em
suma, assumindo sua autocrítica.

Acreditando que a arte tinha tornado um rumo errado a partir


do "estilo grandiloqüente" de Rafael, de idealização da
natureza, tendo como modelo os grandes nomes do Renascimento,
Os pintores pré-rafaelistas remontam ao período pré-Rafael,
não mais idealizando e sim trabalhando a natureza com tudo o
que existia. Por não desprezarem nem selecionarem nada da
natureza, as suas pinturas eram riquíssimas em detalhes,
representando a natureza o mais fidedignamente possível.
4
Oscar Reijlander (1813-1875) e Henry Peach Robinson
(1830-1901): fotógrafos que realizaram as mais famosas
fotomontagens alegóricas, lendárias e heróicas, utilizando-se
de todos os recursos na tentativa de imitação da pintura
acadêmica, principalmente da pintura holandesa de Rembrandt,
Frans Haals e Jan Van Dyck.
A fotografia seguia, assim, na esteira da crítica
kantiana,5 fundamentada numa autocrítica de dentro para for
a, onde cada área do saber deveria estabelecer os seus
próprios limites, em oposição à religião, que, ao apoiar-se
no dogma (dogma por definição é inquestionável,
indiscutível), negava seu questionamento, sua autocrítica e,
por isso mesmo, veio perdendo poder ao longo dos anos.
Cada meio de expressão tenta buscar as qualidades
intrínsecas, únicas de sua linguagem, procurando uma
depuração, uma espécie de catarse, com o objetivo de
despoluir-se, principalmente, de tudo o que não é seu para
tornar-se plena, independente, até mesmo para ter condições
claras, sem receios ou traumas, de misturar-se, fundir-se a
outras linguagens, sem com isso perder a sua individualidade.
Essa inter-relação entre as linguagens tem sido, desde Marcel
Duchamp6, a tendência natural das artes plásticas, ratificada
de forma mais acentuada a partir da Pop Art7, principalmente
a partir de Robert Rauschenberg,8 que, através de suas
“Combine Paintings”, integrava, em um mesmo espaço, vários
meios de expressão, cada um deles guardando a sua própria
autonomia.
No caso específico da pintura, um longo caminho teve de
ser percorrido até que se percebesse a sua singularidade
diante das outras formas de expressão, o que havia de
genuinamente seu, que era exatamente a tela. A partir do
momento em que a pintura enxergou a bidimensionalidade da
tela como o que havia de particularmente seu e de mais nenhum
outro meio de expressão, os pintores passaram, pouco a pouco,
5
Kant (Emanuel) : filósofo alemão (1724-1804), autor da
Crítica da Razão Pura, Crítica da Razão Prática e Crítica do
Juízo e dos Fundamentos da Metafísica dos Costumes.
6
Marcel Duchamp : artista francês (1887-1968). Inicialmente
influenciado pelo Cubismo, teve depois participação
importante no movimento Dadá e no Surrealismo. Fixou-se nos
Estados Unidos onde dedicou-se à “antiarte” e em 1914 criou o
seu primeiro ready-made.
7
Pop Art : Escola de pintura surgida nos Estados Unidos por
volta de 1960, caracterizada por utilizar elementos da
tecnologia industrial dos grandes centros urbanos. Tinha como
fonte de inspiração os cartazes de publicidade, automóveis,
eletrodomésticos, comestíveis enlatados, histórias em
quadrinhos, fotomontagens com personagens mundialmente
conhecidos, enfim, tudo o que estava relacionado à cultura de
massa.
8
Robert Rauschenberg : pintor norte-americano (1925-), criou
as “Combine Paintings”, em que misturava elementos
fotográficos, pictóricos, escultóricos, ao lado de tintas
industriais em um mesmo suporte.
a desvencilhar-se da pintura escultórica, da representação da
tridimensionalidade do mundo, entregando-se às pesquisas do
plano, alavancadas por Braque9 e Picasso, 10 resultando em sua
total autonomia, já que estavam a lidar com o que era
realmente seu.

9
George Braque : pintor francês (1882-1963). Participou
primeiramente do Fouvismo. Em 1908 fez uma exposição onde se
observavam “pequenos cubos”nem suas telas, surgindo, daí a
expressão “cubismo”. De 1909 a 1913 trabalhou com Picasso,
criando o Cubismo analítico. Foi Braque quem executou as
primeiras colagens na pintura.
10
Pablo Picasso : pintor espanhol (1881-1973). O mais célebre
artista do século XX, embora tenha sido ligado ao Cubismo com
Braque, permaneceu um criador independente de qualquer
escola. Realizou obras de cerâmica, escultura, desenho e
gravura, além da pintura.
II – O OLHAR SOCIAL URBANO

A fotografia apontou para a vertente natural de sua


linguagem, que compreendia o lado social-urbano, assolado por
uma infinidade de contrastes e perturbações. Nessa atmosfera
nascia a fotografia, integrada às suas mais ocultas
realidades.
A periferia
O olho do fotógrafo voltava-se, portanto, para tudo o
que era não-oficial, enveredando pelos becos escuros,
conferindo importância aos desvalidos, a uma sociedade
marginal, onde o ser humano encontrava-se em total desarmonia
com a euforia desenvolvimentista da modernidade, dirigindo-
se, enfim, para uma realidade banida dos privilégios
burgueses, ou seja, para a supra-realidade, aos olhos da
sociedade oficial.
A atividade fotográfica antecipava, de certa forma, o
ambiente surrealista, os meandros pelos quais os surrealistas
iriam vaguear. A periferia, habitat natural do fotógrafo,
compreenderia, da mesma forma, o ponto de partida dos
trabalhos de vários pintores surrealistas como Yves Tanguy,11
por exemplo, que, ao colocar em questão o relacionamento do
ser humano com o mundo moderno, apresentou espaços abertos,
desérticos, construções industriais em ruínas, restos do
desenvolvimento; s”ao ambientes assombrosos, de grande mal-
estar, onde raramente há qualquer referência humana, e quando
há, é marcada pelo isolamento, pela solidão humana, pela sua
total desconexão com a sociedade, prevendo um futuro
ameaçador e de incertezas.
Esse desajuste do homem frente a sociedade, preconizado
por Tanguy e trabalhado pelos fotógrafos será, em sua
essência, a mola mestra de onde partirão os ideários
surrealistas. Embora o Movimento Surrealista bretoniano12
tenha tido diversos desdobramentos no percurso da história, o
fio condutor que o levou à sua formação foi, sem dúvida, um

11
Yves Tanguy : pintor americano, de origem francesa (1900-
1955). Foi introduzido ao Surrealismo em 1925, onde
participou de todas as exposições do movimento. Suas obras
foram realizadas com um cuidado rigoroso e podem ser
consideradas das mais ricas plasticamente e das mais
características do Surrealismo.
12
O Movimento Surrealista enquanto uma Escola: criado pelo
escritor francês André Breton (1896-1967). Breton fundou a
revista Litterature, órgão do movimento Dada, que preconizava
a destruição dos valores lógicos, morais e artísticos. O
culto do irracional o conduziu ao Surrealismo, do qual ele
foi e continuou sendo o principal articulador, chegando a ser
chamado de “O Papa do Surrealismo”. Em 1924 escreveu o 1º
Manifesto do Surrealismo e em 1930, o 2º Manifesto.
total desagravo à sociedade vigente. De fato, as
conseqüências da Revolução Industrial acabaram por criar todo
um clima favorável à formação de um movimento com as
características do Surrealismo. A mecanização da indústria
propiciou um aumento na oferta e na qualidade dos bens de
consumo, criando grandes atrativos para que as pessoas
deixassem o trabalho escravo do campo e fossem em direção aos
grandes centros, em busca de melhores ofertas de emprego.
Além disso, a própria mecanização da agricultura, ao demandar
menos mão-de-obra, favorecia o fenômeno da urbanização,
gerando uma concentração exagerada e desordenada da população
nas cidades. Por outro lado, a dinâmica da Revolução
Industrial exigia transformações urgentes, tendo como
conseqüências profundas e radicais alterações no
comportamento da classe trabalhadora, que se viu frente a
péssimas condições de trabalho e à exigência da produção em
série extremamente maçante e alienante, aliada aos baixos
salários.
Assim, se por um lado todo esse sistema pôde
proporcionar melhorias na qualidade de vida da população, por
outro gerou uma imensa massa de trabalhadores desajustados,
com sérios problemas sociais, perdendo cada vez mais a sua
identidade. Como reflexo de toda essa situação, as artes
plásticas, de um modo geral, passaram a ser permeadas não
apenas pelos novos desenvolvimentos científico-tecnológicos,
mas pelo profundo embate do ser humano frente a tamanhos
desajustes proporcionados pela modernidade.
Nesse contexto, a fotografia participou de forma intensa
e importante na formação da nova psicologia da sociedade
urbana, percorrendo um mundo assombroso, revelando a face
oculta dessa sociedade, procurando um mundo infiltrado por
tabus, enfim, voltando-se para aqueles a quem a sociedade
tinha virado as costas.
A surrealidade em Arbus e Seurat
Vários foram os fotógrafos que se alinharam a essa
vertente, porém creio ter sido Diane Arbus (1923-1971) quem,
com maior sensibilidade, entendeu e participou, de forma
profunda, desse mundo, bem ao gosto surrealista.
Arbus teve a capacidade de não se enfronhar nesse mundo
marginal de forma chã. Não era seu interesse tratar da
pobreza material dos desprotegidos. O seu projeto ia muito
além de inventário documental da evidente e incontestável
situação por que passava boa parte da população urbana, e é
aí que se forma o seu vínculo com o Surrealismo. Os elegidos
de Arbus eram aqueles que não participavam do processo
produtivo da sociedade, por isso sendo excluídos,
independentemente de sua condição social ou financeira. A
miséria de que trata Arbus passa muito mais por um caráter
interno, privado, do que externo. Todos os seus personagens,
quer se trate de doentes mentais, travestis, anões, quer se
trate de um cidadão comum das ruas, carregam dentro de si o
grotesco, o insano, o monstro, frente aos padrões sociais
estabelecidos. Todos pertencem ao mesmo universo dos
desajustados, dos excluídos. Se os personagens de suas fotos
são repulsivos, não estabelecem com o espectador a mesma
relação, não há um desejo imediato de repúdio contra o que se
está vendo, nem mesmo de compaixão para com essas pessoas.
Arbus não está a fotografar o criminoso que acabou de
ser assassinado, a criança que acabou de ser estuprada e
esfaqueada, não há sangue em suas fotos, por isso o seu
“repulsivo” não afasta, ao contrário, nos traz para perto,
nos remete a pensar sobre esse mundo tão estranho e
assombroso que há por trás de cada um desses rostos. A
própria postura de Arbus diante da pessoa a ser fotografada
nos dá indícios de sua intenção. Não há flagrante, nada é
feito às escondidas, todos sabem que estão sendo
fotografados, têm consciência de que estão a posar para uma
foto. Poderíamos dizer que estabelece-se aí uma relação
inconsciente de uma conivência quase ingênua entre as partes.
Do lado de Arbus não há intenção de marcar a anomalia em si,
de mostrar a pessoa como um doente, e sim de apontar para as
relações humanas, para o distanciamento e mesmo o
desligamento entre as pessoas; em outras palavras, para a
surrealidade de tamanhos desencontros. Por outro lado, a
pessoa diante da câmara não se concebe como monstruosa,
excêntrica ou grotesca, já que permite e colabora com o ato
de ser fotografada. Não há consciência da sua dor. A própria
frontalidade com que Arbus normalmente as fotografava nos
leva a crer nessa teoria, pois ser fotografado de frente
marca não apenas o respeito para com o espectador, mas,
sobretudo, a manifestação da essência da pessoa fotografada.
Os mosaicos bizantinos de Ravena já nos mostram que
todas as pessoas eram representadas de frente como sinal de
solenidade e respeito ao público e, principalmente, ao chefe
do Estado, da religião e do exército, aos quais os artistas
eram subjugados.
Essa frontalidade típica de Arbus (assim como a máscara
de Górgona,13 que, invariavelmente, encara de frente o
espectador que a observa) induzia os personagens a tornarem-
se ainda mais estranhos, pois os incitava a permanecer em
pose, sem qualquer falso naturalismo.
Diane Arbus, ao apresentar a solidão e o absurdo das
relações entre os seres humanos, nos remete à obra de
Seurat,14 que abriu definitivamente caminho para o pensamento
surrealista.
13
Referência aqui feita a Górgona “Medusa”.
14
George Seurat: pintor francês (1859-1891). Adotou um método
científico baseado na “mistura ótica dos tons” para a
realização dos seus trabalhos. Ao adotar um “método”, os seus
quadros são realizados de forma extremamente impessoal, tudo
tendo a mesma regularidade, tudo sendo espaço, que se
confundo com as figuras, por terem o mesmo tratamento. Suas
figuras não têm mais massa e volume como as tradicionais, não
possuem vida, individualidade, pois obedecem a esquemas
matemáticos.
O caráter intuitivo, da percepção direta e da ação
imediata da pintura impressionista, mais próxima de um esboço
do que de um quadro acabado dentro das tradições acadêmicas,
passou a ser questionado por Seurat, não apenas no sentido de
dar ao quadro uma estruturação maior, uma composição mais
trabalhada, mas sobretudo por incorporar as manifestações
tanto tecnológico-científicas quanto psicológicas da
sociedade moderna.
Seurat renunciou ao traço renascentista (não à
composição), abolindo as linhas e os desenhos que eram
preenchidos com as cores e lançou mão de um método científico
calcado na física e na matemática, no qual as cores eram
colocadas lado a lado através de pontos ou manchas. Esse
tratamento era dado em toda a superfície da tela e, com isso,
as figuras e o espaço em que elas estavam inseridas não mais
se distinguiam, o distanciamento sujeito-objeto, típico da
cultura renascentista, estava sendo colocado por terra. O
método de Seurat fazia com que a figura e o fundo fossem
feitos da mesma matéria, as manchas criando personagens com
características irreais, diferentes das tradicionais, por não
apresentarem volume, massa, peso. Ao obedecer a esquemas
formais de um método, os personagens eram estruturados de
maneira completamente impessoal, como manequins humanos sem
vida e sem individualidade, não havendo qualquer tipo de
comunicação, de interlocução entre eles, caracterizando o
absurdo dos relacionamentos humanos e o total desajuste do
homem na sociedade.
Ao colocarmos lado a lado uma fotografia de Arbus (sem
título), de 1971, (figura 1) e um quadro de Seurat (“Um
Domingo de Verão na Grand-Jatte”), de 1885, (figura 2)
seremos capazes de observar uma enorme comunicação entre
eles, por mais distantes que estejam no tempo (quase um
século os separa) e por mais diferentes que sejam as
linguagens empregadas. De fato, o que sustenta ambos os
trabalhos é a surrealidade que eles carregam. Por mais que se
especule sobre o caráter técnico da obra de Seurat, constata-
se que o que permanece, o que a faz transpor mais de um
século de escolas e correntes artísticas das mais diversas e
continuar sendo fonte recorrente de grande parte dos
artistas, admirada pelo público, é o seu caráter intrigante.
Isto porque há aí embutida uma característica cultural típica
do homem ocidental, que sempre se percebeu, principalmente
depois de Descartes, como um ser simplesmente racional. A
partir do momento em que se coloca esse homem frente a uma
instância inconsciente, por ele desconhecida, e, portanto,
fora dos seus controles, tudo passa a ser muito enigmático, e
por isso, atraente. É exatamente nesse nível, nessa instância
inconsciente que trabalham as obras de Seurat e Arbus, nos
envolvendo, nos remetendo aos mais recônditos universos
supra-reais.
Os personagens, tanto do quadro de Seurat quanto da foto
de Arbus aos quais nos referimos, possuem tais qualidades.
Frente ao “Grand-Jatte”, vivenciamos um mundo assolado por
uma atmosfera de profundo silencia, e no entanto de extrema
conturbação interna de seus personagens, sem qualquer tipo de
comunicação entre eles. Cada pessoa vive isolada e voltada
para seu próprio mundo, embora estejam todas juntas num dia
de lazer em um parque. As pessoas de pé, junto ao lago,
parecem ter seus olhares perdidos em outras águas; o casal no
primeiro plano, postado de forma imóvel, não faz nenhum tipo
de menção de, ao menos, se entreolhar; o rapaz de costas para
o lago entretém-se sozinho; até mesmo a criança que aparece
correndo transmite solidão por estar brincando isoladamente.
Todos esses personagens poderiam, sem dúvida alguma,
pertencer a uma foto de Arbus; esta cena de Seurat poderia
certamente ser uma cena fotografada por Arbus, pois os três
personagens da sua foto que citamos estão, da mesma forma,
juntos numa área de lazer, envoltos cada um em seu próprio
mundo.
O diferencial de suas obras está apenas no fato de que,
enquanto Seurat lida com pessoas típicas da classe média,
inclusive dentro dos padrões estéticos da sociedade, Arbus
elege os realmente desajustados e de aspecto desagradável
esteticamente. Não há, de fato, em Arbus, qualquer intenção
em lidar com a beleza atemporal padronizada, muito embora as
suas fotos, e de forma geral a fotografia, tenham essa
capacidade de revelar beleza em meio ao grotesco, ao
desagradável, característica, aliás, inerente à própria
linguagem fotográfica.
O deslocamento do conceito do belo
Há tempos a revelação da beleza atrelada aos aspectos
grotescos tem sido reforçada por diversos fotógrafos. Um
exemplo típico e bastante conhecido entre nós é a obra de
Sebastião Salgado (1944-), que vem sistematicamente
fotografando a pobreza e a miséria entre os povos dos países
do terceiro mundo e que, apesar de apresentar imagens de um
conteúdo estético terrível, consegue, dentro desse contexto
lúgubre, passar uma beleza que transcende a própria imagem
representada. Neste caso, a fotografia desloca o conceito
clássico greco-romano de beleza para uma outra instância,
para um lugar onde ela encontra o traço surrealista, ou seja,
um lugar onde o belo perde toda a sua condição absoluta e se
incorpora nas mais diversas situações, podendo estar presente
no grotesco, no desagradável ou, até mesmo, numa
circunstância o mais banal possível.
O gosto surrealista de beleza afina-se com a atividade
fotográfica, que procura o belo onde os olhos menos atentos o
ignoram, debruçando-se sobre a fealdade e revelando o
maravilhoso através da descoberta de imagens de assuntos e
lugares jamais considerados como tal. A beleza fotográfica,
que é eminentemente surrealista, encontra ressonância no
envolvimento emocional, na comoção com a cena fotografada,
transformando-se numa questão interna, que vai depender das
experiências e vivências culturais, sociais e psicológicas de
cada espectador, sem permanecer atrelada a um conceito
externo, absoluto. Esse investimento no surreal fotográfico
nos remete a uma situação de mobilização interna, de
proximidade e envolvimento com a cena fotografada,
arrancando-nos do torpor contemplativo, passivo e distante,
que nos foi dado como modelo para o relacionamento com o
mundo.

As bases do Surrealismo
O Surrealismo surgiu apoiado na filosofia nietzschiana,
no sentido de tirar-nos de tantos séculos de letargia social,
tentando libertar o homem da alienação oriunda de uma
sociedade calcada nos preceitos da razão, da ética, da moral
e dos cânones religiosos erigidos sobre as bases da verdade
absoluta e da inquestionabilidade dos dogmas. André Breton,
no 2º Manifesto Surrealista, chega a radicalizar suas
posições contra a sociedade, ao dizer que “todos os meios
devem ser considerados aceitáveis para torpedear as idéias de
família, pátria e religião”, demonstrando, aí, todo o seu
poder de revolta contra a imobilidade, o enfado e a solidão
impostos por uma civilização decadente.
Aí o Surrealismo bretoniano encontra-se em perfeita
harmonia com o pensamento de Nietzsche, centrado na
embriaguez dionisíaca, que tenta devolver ao homem todo o seu
potencial criativo, sua força e movimentação, em que todas as
correntes opressoras e castradoras não encontram espaço. Em
Assim Falou Zaratustra, Nietzsche nos apresenta uma fala de
Zaratustra que invoca o indivíduo a falar, cantar e dançar,
não importando se ordenada ou desordenadamente. O que vale é
o “embalo que desperta a paixão, o ardor, a flama, a vontade
de viver”. Nietzsche, através de Zaratustra, nada mais
pretende do que nos remeter à nossa criatividade por meio das
manifestações espontâneas.
O Surrealismo, por seu lado, pretende alterar a vida ao
desencadear uma crise moral na sociedade, “desalienando o
homem dos preconceitos, dos formalismos e das convenções, não
apenas pretendendo criar uma escola literária ou uma escola
de pintura”, de acordo com a visão de Breton. A fotografia,
da mesma forma, sobretudo por não ter nenhum compromisso com
a grande arte do passado, ao debruçar-se sobre o anti-
oficial, redimindo e tirando do limbo o kitsch e o promíscuo,
pratica a anti-arte, e, assim, se adentra pelo mundo
surrealista. Sob essa visão, a fotografia questiona o que era
inquestionável, relativiza o que era absoluto, traz à tona
uma nova visão de mundo, mais despojada e leve, embora
crítica, dinâmica e participativa.
A dessacralização do nu
Mesmo ao lidar com temas “sacralizados” pelas belas
artes, como o nu, a fotografia, assim como o Surrealismo de
forma geral, dará a eles um tratamento peculiar, típico de
uma visão niilista da tradição histórica. Se tomarmos, por
exemplo, uma foto de um nu de Weston (1886-1958), “Hand on
Breast” (1923) (figura 3), poderemos fazer algumas
especulações sobre ela. De imediato, observamos que todas as
regras sacrossantas da beleza do nu são colocadas água
abaixo. Na realidade, Weston nos põe frente a um num quase
repugnante, em que o único seio a mostra, já que o close é
bastante fechado, só é reconhecido devido ao mamilo, caso
contrário poderíamos supor tratar de um pedaço de carne
cravado por grandes unhas. Ao mutilar todo o resto do corpo,
arrancando-lhe tudo o que lhe confere equilíbrio e, portanto,
beleza, ao desvincular o nu feminino de toda a carga de
sensualidade que ele traz, constatamos um apelo proposital em
evidenciar o quão grotesco é o ser humano. Aqui, o espaço
virtual, ou seja, o espaço não representado pela imagem, nos
remete a um ser humano decadente, exaurido de todas as suas
qualidades sexuais, em franca desarmonia consigo mesmo. É
difícil imaginarmos por trás dessa foto de Weston uma Vênus
de Botticelli com toda a sua graciosidade, seu nu sensual e,
ao mesmo tempo, harmonioso, no qual impera uma atmosfera de
sedução e idealização.
Antes de Weston, no entanto, Duchamp foi o artista que
mais intensamente criticou a tradição artística, muitas vezes
tendo o num como ponto de partida. Em seu quadro “o Nu
Descendo a Escada”, o que à primeira vista poderia parecer
uma apologia à mecanicidade, como se Duchamp tivesse aderido
aos aspectos da modernidade, ao Futurismo italiano15
reverenciado pela vanguarda da época, é exatamente o inverso.
O manequim com roupas metalizadas é fragmentado pela
repetição dos gestos num movimento descendente, carregando
consigo a idéia de uma fuselagem em franca decadência, o que
revela, aí, o caráter descrente e destruidor de Duchamp
frente à modernidade. Por outro lado, o nu, que em toda a
história da arte sempre representou a beleza, a sensualidade,
como os nus beatificados de Rafael ou as madonas nuas de
Rubens, descaracteriza-se por completo em Duchamp, que leva a
uma espécie de desmistificação do nu feminino, não só porque
efetivamente não há nu, já que o manequim está vestido com
roupas metalizadas, como a atração pelo “nu” se dá através de
uma visualidade negativa, e não pela beleza ou sensualidade.
Nesses dois rápidos exemplos, tanto a foto de Weston
quanto o quadro de Duchamp nos fazem pensar sobre toda uma
conceituação arraigada da beleza idealizada que a sociedade
ocidental nos impôs como referencial inquestionável, como é o
caso típico da referida Vênus, de Botticelli, em que as
proporções dos ombros e do pescoço da deusa foram alteradas
para que se atingisse uma beleza máxima, idealizada.
Esse modelo, de certa forma, passou a ter um outro
equilíbrio, um outro peso na sociedade muito em função da
fotografia, que, ao produzir imagens aleatórias do mundo,
desierarquizou os temas e se alastrou de forma rápida por
15
Futurismo: Movimento artístico italiano iniciado em 1909
por Filippo Tommaso Marinetti, afirmando a primazia da
velocidade. Reagindo contra o Cubismo, julgado estático
demais, os futuristas buscavam “a sensação dinâmica
eternizada enquanto tal”.
todos os lugares. É muito recorrente em fotografia a beleza
de uma imagem vir do acidente, do acaso. Muitas vezes, é
exatamente o que foge ao programado, a tudo aquilo que nos
predeterminamos realizar, que faz de uma foto uma grande
foto. Não estamos aqui falando do instantâneo programado
quando estamos prontos ao que pode vir a acontecer, do
momento exato de captarmos uma cena, típico da escola
bressoniana,16 mas sim do acidente momentâneo inconsciente,
característica que fez da fotografia a linguagem mais afinada
com os ideais do Movimento Surrealista.
A fotografia e o 1º Manifesto Surrealista
O acaso, inerente à própria linguagem fotográfica,
funciona através de espasmos que, por vezes, deixamos escapar
da armadura racional que nos impomos, é a nossa passagem a
uma outra realidade diferente daquela que estamos acostumados
a vivenciar, bloqueada e permeada por regras. Se por um lado
a fotografia é a forma mais próxima da representação da
realidade, por outro é ela quem desvenda o que há de mais
desconhecido e surpreendente no ser humano.
Através do acidente fotográfico, exercemos a nossa
instância inconsciente, reveladora de nós mesmos, de toda
nossa vaidade escamoteada, face oculta manifesta. Como
desdobramento, a foto será um tanto mais arrebatadora quanto
mais profundamente conseguir atingir esse universo do
espectador, já que a ele se abrirá o lúdico, o maravilhoso, o
desconhecido, enfim, tudo o que há de mais primário dentro de
si e que o remeterá a sua própria existência.
Esse encontro com o inconsciente irá reger a primeira
investida do Movimento Surrealista, que, através do seu
“Primeiro Manifesto”, começa por fazer uma distinção bastante
clara entro o que pertence à racionalidade e o que pertence
ao mundo do inconsciente. Para tal, os surrealistas irão se
afastar da realidade, mergulhando em um mundo até então
totalmente desconhecido para o homem, no qual o fantástico e
o maravilhoso se fazem presentes. Desse modo, a razão humana
perde todo o seu controle, abrindo espaço para que a
imaginação, sem qualquer tipo de freios ou críticas,
manifeste-se forma plena. De acordo com o teatrólogo Pierre-
Albert Birot, “o maravilhosos, cada vez mais livre de
entraves, toma o caráter de surpreendente realidade em si, de
Surrealismo...” e Louis Aragon17 escreve:
“Além do real, há outras relações que o espírito pode
apresentar e que são tão primárias quanto o acaso, a ilusão,
o fantástico e o sonho. Essas diferentes espécies reúnem-se e
conciliam-se num gênero que é a supra-realidade.”

16
Escola bressoniana : Estilo criado pelo fotógrafo francês
Henri Cartier-Bresson (1908-2004) de captar o momento ideal,
o instante exato para se tirar uma fotografia.
17
Louis Aragon : Poeta e romancista francês (1897-1982), um
dos fundadores do Surrealismo.
Além de Birot, um autor teatral que trabalhou com a
idéia do afastamento da realidade cotidiana para mergulhar
numa realidade onde o ser humano é remetido aos seus
instintos mais primitivos foi Antonin Artaud,18 para quem o
verdadeiro objetivo do teatro é
“traduzir a vida sob um aspecto universal, intenso, dela
extraindo imagens com que gostaríamos de nos encontrar. O
teatro deve ser considerado a cópia, não desta realidade
cotidiana e direta da qual vai-se reduzindo pouco a pouco a
ser apenas uma inerte reprodução, tão inútil como
inexpressiva, mas sim de uma outra realidade, perigosa e
típica, em face da qual os princípios se apressam a voltar à
obscuridade como os golfinhos quando vêm à tona d’água. Ora,
esta realidade não é humano mas inumano e o homem com seus
costumes ou seu caráter, é preciso dizer, quase nada
contribui para ela.”

E acrescenta:
“O teatro deve reconduzir o espectador ao mundo dos sonhos e
dos instintos, que é sanguinário e inumano. Exprimindo as
forças recalcadas do homem, uma obra o liberta; igualmente,
encontrando os espectadores pelos meios plásticos, a
encenação deverá, por assim dizer, fazê-lo entrar em transe.”

Da mesma forma, uma foto se sustentará, perdurará no


tempo não em função de sua técnica ou características
composicionais, mas ao conseguir mobilizar internamente as
pessoas, fazer com que o espectador, ao se ver frente a ela,
dê um passo em direção ao mundo desconhecido, por ter tido o
seu inconsciente acionado.
O caminho trilhado pelos surrealistas para se abstraírem
da realidade foi através do automatismo puro, daí o movimento
ter surgido muito mais com um caráter literário do que
plástico, e a linguagem fotográfica ter sido o seu grande
veículo visual.
Em pintura, por mais automáticas que seja uma
representação, há a tela, os pincéis, a paleta, enfim, já
toda uma condição processual do fazer do quadro, aliás
condição esta que a caracterizou como uma das belas artes. O
fazer do artista sempre encerrou não somente a condição
autoral do trabalho de pintura, como também a criatividade e
a individualidade do artista, que a colocou, de fato, frente
à problemática surrealista. Se o Surrealismo nasce como uma
atividade criativa na qual deve prevalecer o fluxo livre das
associações, o automatismo psíquico puro, o inconsciente
trabalhando sem qualquer tipo de barreiras, como poderia
existir uma pintura realmente surrealista, se a própria
linguagem plástica exigia fases intermediárias para sua
realização? Como o inconsciente poderia de fato se efetivar

18
Antonin Artaud: Escritor, poeta e dramaturgo francês (1896-
1948). Distiguiu-se sobretudo pelos seus ensaios dramáticos.
de forma automática, com o pintor tendo de lançar mão de
diversos materiais e, conseqüentemente, realizar seu trabalho
em vários estágios?
Há um filme sobre Matisse no qual o artista é flagrado
desenhando um retrato com gestos aparentemente irrefletidos e
inconscientes, mas que, na seqüência seguinte, a câmera
lenta, ao mostrar a mesma cena, nos faz ver a sua permanente
escolha sobre que caminho seguir, a mão, pouco a pouco,
encadeando todo um processo, uma seqüência de observações do
mundo.
Pintura (Roma) x Fotografia (Pompéia)
Das inúmeras analogias metafóricas que até então já se
fizeram utilizando-se Roma e Pompéia, inclusive no âmbito
fotográfico (vide O Ato Fotográfico de Philippe Dubois),
cabe-nos, aqui, pensar as linguagens fotográfica e pictórica
nessas circunstâncias. Poderíamos dizer que a pintura está
para Roma assim como a fotografia está para Pompéia.
Ao se tirar uma fotografia, tudo é escuridão, a imagem
impregnada na película permanecerá em latente escuridão e só
será reconhecida, só virá à tona após a sua revelação, assim
como Pompéia, que após a catástrofe ficou em estado de
latência, de escuridão, até que as pás viessem revelar o que
o Vesúvio imortalizou/ mortalizou em um único instante; aí se
completa a outra metáfora, a da instantaneidade, do momento
decisivo e único, em que tudo se passa de uma única vez.
Apertado o obturador, tudo se dá; o presente de imediato
torna-se passado e o futuro, expectativa. A imagem é captada
de forma totalizante e única, a luz/ larva varre e paralisa o
que vê pela frente de forma instantânea, sem chances para
qualquer tipo de arranjo ou racionalização. A pintura, por
outro lado, perfaz um outro caminho; o fazer de um quadro
compreende um processo, um tempo, há sobreposição das camadas
de tinta, é Roma com seu acúmulo de histórias, as camadas do
tempo agindo sobre ela de forma fragmentária, porém contínua.
Percebemos aí que a foto-Pompéia é mais próxima do
Surrealismo que a pintura-Roma.
Por melhor que seja a composição de uma foto, por mais
perfeita que seja a técnica empregada, a força motriz,
geradora de sua grande mobilização entre as pessoas está no
detalhe (o que para Barthes é o “Punctum”), principalmente se
ele provier do acidente, do acaso, pois o fascínio que a
fotografia suscita vem muito de sua condição enigmática, de
apreender em uma fração mínima do tempo o incidental, sobre o
qual nem mesmo o fotógrafo tem controle.
No exato momento do ato fotográfico, tudo é
inconsciente, por maior que seja seu controle racional sobre
o assunto a ser fotografado, até porque o ato fotográfico se
dá no escuro, é o único momento em que o fotógrafo nada vê
sobre o que está fotografando, já que o obturador, ao ser
acionado, faz levantar o espelho, tornando o fotógrafo cego
diante da imagem a ser fotografada.
A síntese do ato fotográfico compreende, pois,
exatamente essa fração mínima do tempo em que tudo se dá de
forma inconsciente, totalizante e de uma única vez, sem
hesitação.

A surrealidade fotográfica em Miró


Não se pode negar que, da mesma forma, a pintura, em
alguns momentos, tenha-se apresentado com escrita direta,
imediata, em uma relação mais estreita com o automatismo,
típico da primeira fase do Surrealismo. Yves Tanguy e André
Masson, certamente, percorreram o automatismo seguindo seus
impulsos internos, mas foi Miró (1893-1983), sem dúvida
alguma, quem melhor navegou por esses mares e, por isso
mesmo, mais próximo esteve da filosofia/ concepção da
linguagem fotográfica.
O fio da pintura Mironiana apresenta em uma das pontas a
poesia, na outra, a fotografia.
A poesia simbolista de Mallarmé,19 do final do século
passado, talvez tenha sido o foco de maior influência na
pintura de Miró. Mallarmé inaugurou uma nova época na
literatura ao quebrar toda a estrutura da poesia parnasiana e
mesmo da vanguarda romântica de Baudelaire. Os seus versos
passam a ser estruturados de forma que as palavras percorram
um fluxo contínuo de associações e simbologias, um
entrelaçamento de idéias, como se existissem vários poemas
dentro de um só; a própria técnica de montagem das palavras
induz a essa sobreposição. Mallarmé foi quem primeiro
recorreu a um espaçamento entre as palavras, jogou com a
paravisualidade, com o espaço virtual do branco do papel,
criando um campo de ação para que o leitor, agora também
autor, pudesse percorrer, igualmente, o seu próprio fluxo de
associações de forma livre e desbloqueada, em consonância com
as suas vivências e experiências. Um trecho do poema básico
para essa nova trajetória de Mallarmé, “Um lance de dados
jamais abolirá o acaso”, ilustra a análise anterior.
Um lance de dados jamais abolirá o acaso (trecho)
Stéphane Mallarmé
FOSSE
origem estelar
SERIA
pior
não
mais nem menos
indiferentemente mas outro tanto
O NÚMERO

19
Stéphane Mallarmé : poeta francês (1842-1898). Sua obra,
embora breve, foi determinante para a evolução da literatura
no século XX.
EXISTIRIA
senão como a alucinação dispersa da agonia
COMEÇARIA E CESSARIA
brotando qual negado e fechado quando surgido enfim
por alguma profusão espargida em raridade
CIFRAR-SE-IA
evidência da soma por pouco fosse uma

ILUMINARIA
O ACASO
Cai
a pluma
rítmica pausa do sinistro
sepultar-se
nas escumas originais
donde há pouco sobressaltara seu delírio até um
cinco esmaecido pela neutralidade idêntica do
abismo

Appolinaire20 foi outro poeta que, neste século,


influenciou diretamente a pintura de Miró e, na realidade, o
Surrealismo como um todo, dando inclusive o nome ao
movimento, quando escolheu como subtítulo de sua peça “Lês
Mamelles de Tirésias” a expressão “Drame Surrealiste”.
Miró desdobra a experiência adquirida na literatura em
verdadeiros “campos visuais”, não existindo mais a tela
tratada como espaço renascentista no qual os elementos eram
inseridos. Através dos seus “campos visuais”, Miró nos
apresenta um mundo encantado com uma imensidão de símbolos e
signos que percorremos em um fluxo, sem interrupção de
linhas, formas ou cores, levando o espectador a uma viagem ao
seu universo interior que tão pouco conhece. Há a formação de
um emaranhado, de uma teia de imagens envolvendo
entrelaçamentos e conexões entre os diversos elementos
representados, permitindo que o espectador percorra
continuamente a tela a partir de qualquer ponto, ou mesmo
depare-se com o todo simultâneo do quadro, que, referido em
Miró, não significa a tela fechada em si própria, o espaço
representado preso a um tema, a uma literalidade,
característica do Classicismo, em que tudo é equilíbrio, é
harmonia. Muito pelo contrário, a sensação de “vivo” em Miró
vem exatamente dessa antítese. Suas telas vibram, transmitem
dinâmica pelo caos instalado, transcendente do espaço
representado, que não se esgota por si só, tornando-se um
simulacro de visão. Assim, o olhar agitado do espectador
20
Guillaume Appolinaire : poeta e crítico de arte francês
(1880-1918). Orientou a poesia simbolista par aos novos
caminhos que já anunciavam o Surrealismo.
procura no espaço virtual a continuidade do momento
inaugurado na tela, que serve apenas como estopim para
arrancá-lo do torpor contemplativo tão habitual e fazê-lo
“viajar” em si.
O incidental, o acaso a que nos referimos anteriormente,
que constitui o punctum fotográfico, é, da mesma forma, o
catalisador de toda a obra de Miró. Segundo o próprio pintor
catalão, a força inicial que move o seu trabalho parte muito
do acidente, podendo uma gota de tinta caída ao acaso numa
tela ser o suficiente para detonar em seu inconsciente todo
um arsenal de fantasias e imaginação que comporão o quadro,
assim como um acidente no exato momento do “clic” fotográfico
poderá constituir-se na força da imagem, por mobilizar alguma
instância dentro do espectador, que não a mera visualidade
contemplativa racional.
A concepção da obra de Miró, tal qual a fotografia,
aproxima-se mais de Pompéia do que de Roma, já que os seus
“campos visuais” se dão ao espectador de forma totalizante,
servindo como pontes para a ultrapassagem dos limites da
tela, transcendência que constitui o cerne da linguagem
fotográfica, pois uma fotografia é, antes de tudo, um
recorte, uma subtração de um universo que esteve ali,
presente no instante do ato fotográfico, mas excluído do
espaço representado. Assim, uma fotografia não precisa,
necessariamente, valer-se do corte, do sangramento explícito
de uma imagem para ligar-se ao continuum do mundo, já que,
inexoravelmente, ela traz dentro de si tal compreensão. Seria
pobre, superficial, analisar ou simplesmente ver uma
fotografia apenas dentro dos limites da representação, uma
vez que ela própria, por compreender sempre uma imagem
parcial do mundo, nos dá a “dica”, nos induz a ver o que está
além dos nossos olhos, nos convida a uma viagem para além da
realidade explícita ou explicitamente, independente da sua
característica formal, uma surrealidade, mesmo que a nossa
vivência n”ao queira ou mesmo não permita assim vê-la.
O espaço virtual em fotografia é, em muitos casos, mais
importante do que o próprio espaço representado, o ausente
tendo a força da presença, assim com em Miró. Essa ausência
mobiliza, atinge de tal forma as pessoas que ela é, de uma
maneira ou de outra, muito recorrente entre os fotógrafos,
que lançam mão dessa capacidade, própria da fotografia, para
transportar o espectador ao desconhecido, ao enigmático, a
tudo que é intrigante e assim o é exatamente por pertencer a
um universo distante de sua realidade habitual, cotidiana,
cuja passividade, na maioria das vezes, bloqueia os seus
instintos e o impede de viver o maravilhoso.
III – A IMAGEM SUBVERTIDA

Além do corte natural pura e simplesmente, que é o


“sangramento” da imagem, ao qual nos referimos anteriormente,
a realidade explícita pode ser subvertida dentro do próprio
espaço de representação, como se o espaço virtual não
estivesse mais em seu “off” habitual, mas sim estivesse nele
inserido técnica. Esta é muito recorrente em fotografia, como
por exemplo em Minor Whithe (1908-1976) “Windowsill
Daydreaming” (julho 1958) (figura 4), em que vivenciamos uma
expectativa, uma instabilidade interior, ao sermos remetidos
a um espaço enigmático para além da janela entreaberta por
uma cortina oscilante. Da mesma forma, alguns pintores
surrealistas como De Chirico (1888-1978) e, principalmente,
René Magritte (1898-1967), utilizaram-se do irrealismo
fantástico para transfigurar o mundo exterior, criando uma
atmosfera de mistério e suspense ao representar um espaço
enigmático, a partir do qual iniciamos uma viagem para além
do espaço representativo da tel. Ainda dentro do próprio
espaço de representação, a realidade pode ser subvertida
surrealisticamente quando se lança mão de colagens de
quaisquer objetos que venham, de alguma forma, produzir
efeitos de mascaramento total ou parcial na imagem
representada, desestruturando o espaço e, conseqüentemente,
quebrando a homogeneidade do olhar, não apenas por
interromper a linearidade e continuidade da leitura, como por
introduzir novas texturas e campos, que alterarão os sentidos
e remeterão o espectador a experimentar novas vivências.
Conforme Tristan Tzara21 (1896-1963), “a diferença das
matérias que o olho é capaz de transformar em sensação tátil
dá uma nova profundidade ao quadro...”
Quando impregnada por tais interferências, a fotografia
abraça as artes plásticas, tornando-se linguagens unas.
Frente às colagens/ montagens, pintores e fotógrafos põem-se
diante de iguais propostas. Seja em Rauschenberg ou Man Ray,22
Max Ernst23 ou Moholy-Nagy, 24 os embates transcorrerão por

21
Tristan Tzara : (Romênia 1896 – França 1963). Um dos
fundadores do Movimento Dada, que teve início em 1916 em
Zurique, insurgindo-se contra os absurdos de sua época e
contestando radicalmente todos os meios de expressão
tradicionais.
22
Man Ray : pintor e fotógrafo americano (1890-1976). Foi um
dos criadores do Movimento Dadaísta em 1917, em Nova York, e
juntou-se ao Surrealismo em 1920. Criou as “raiografias” e
realizou diversos filmes surrealistas.
23
Max Ernst: pintor francês de origem alemã (1891-1976). Foi
um dos fundadores do Dadaísmo, participou do Surrealismo,
criou as fotomontagens surrealistas e a frottage (processo
com base na ação de esfregar a matéria). Repeliu
sistematicamente qualquer disciplina, utilizando inúmeras
técnicas e temas.
vasos comunicantes, cujas descobertas fluirão pelos mesmos
canais, principalmente se pensarmos no Surrealismo.
Não seria arriscado afirmar que o Surrealismo encontrou
as suas maiores transgressões através das colagens/
montagens, exatamente por elas permitirem uma infinidade de
combinações de imagens e elementos dentro das propostas do
movimento. As colagens surrealistas têm seu fundamento no
confronto de imagens díspares, que nos colocam frente a
situações absurdas, paradoxais, violentas, nos remetendo a
uma realidade que não apresenta qualquer nexo com a realidade
cotidiana, liberando o espírito para um mundo novo, supra-
real, caotizado pelos imprevistos choques de imagens.
Max Ernst e a colagem/ montagem surrealista
A colagem/ montagem surrealista iniciou-se,
efetivamente, com Max Ernst, que, ao beber nas fontes
cubistas de Braque e Picasso, deu um novo rumo à técnica por
eles utilizada.
É interessante reproduzir pelas próprias palavras de Max
Ernst a maneira pela qual surgiu a colagem surrealista, para
que possamos fazer uma ponte entre o seu nascimento e o seu
desdobramento futuro:
“Num dia chuvoso, em Colônia, o catálogo de uma casa que
vende material escolar desperta-me a atenção. Vejo ali
exemplares de todos os gêneros, manuais de matemática, de
geometria, antropologia, zoologia, botânica, anatomia,
mineralogia, paleontologia, etc., elementos de natureza tão
diversas que a absurdidade do seu reagrupamento me perturba a
vista e os sentidos, desencadeando em mim alucinações e
conferindo aos sujeitos representados uma sucessão de
significados novos e mutantes. A minha atividade visual ficou
de repente tão agudizada que consegui ver os objetos que se
formavam imediatamente sobre um fundo novo. Para o fixar
bastava um pouco de tinta, algumas linhas, um horizonte, um
deserto, um céu, uma divisória ou coisas idênticas. Assim se
fixou a minha alucinação.” (ERNST, Max – Taschen, p.18)

Assim, Max Ernst iniciava o que viria a ser um dos


grandes trunfos dos surrealistas, que, através das colagens,
passavam a estabelecer relações diferentes das habitualmente
conhecidas entre os objetos e os seres, tirando-os do seu
caráter absoluto, de suas identidades pró-fixadas, indo ao
encontro do fortuito, das relações relativas, circunstanciais
e, por isso mesmo, mais verdadeiras; a realidade do encontro
entre objetos, estabelecida por uma montagem, encerra o seu
caráter verdadeiro só e somente só enquanto esta durar, isto
é, em uma outra situação, em uma outra montagem, esses mesmos

24
Laszlo Moholy-Nagy : escultor e fotógrafo húngaro (1895-
1946). Realizou esculturas construtivistas, foi professor da
Bauhaus e fundador da Nova Bauhaus em Chicago (1938).
Dedicou-se à fotografia, onde marcou sua obra por fotografias
com ângulos oblíquos.
objetos compreenderão realidades diferentes, adquirindo,
assim, identidades diferentes. Desse modo, quando Man Ray
fotografa um guarda-chuva na presença de uma máquina de
costura em cima de uma mesa de dissecação, estabelece uma
realidade nova e instigante entre esses três objetos que,
anteriormente, sozinhos ou em outras montagens, possuiriam
realidades diferentes.
A surrealidade em Picasso
A circunstancialidade da montagem é extremamente
renovadora exatamente pela dinâmica e pelo caráter
transformador que ela impõe à realidade de cada objeto.
Imbuído desse espírito, Picasso, no começo do século,
revolucionou a linguagem escultórica quando, ao criar “A
Guitarra”,25 retirou a escultura do monólito, do pedestal, do
seu caráter absoluto, fixo e imutável de representação,
dando-lhe uma característica de mobilidade, de realidade
relativa, em que os objetos usados na construção de sua
“Guitarra”, em outras circunstâncias, comporiam outra
escultura e, portanto, compreenderiam outra realidade.
Assim como Picasso, que, utilizando-se dos princípios da
circunstancialidade, revolucionou de forma radical a
escultura ocidental através da sua “Guitarra”, a
fotomontagem, a partir dos surrealistas, inaugurou uma nova
concepção na linguagem fotográfica, dando-lhe autonomia,
retirando-a do pesado fardo de desempenhar o papel da fiel
representadora do mundo, do seu caráter mimético. A
unicidade, a integridade da fotografia se esvai não apenas em
função da provisoriedade da montagem, que a retira da
temporalidade, mas por ela tornar a imagem representativa
bidimensional em tridimensional, dessacralizando-a,
submetendo-a à condição de objeto manipulável, compreendendo
tantas realidades quanto possibilidades de suas montagens.
A visão fotográfica habitual do mundo é infringida pela
montagem, uma vez que ela é construída em função do que se
faz no espaço, dos choques entre as imagens sobrepostas,
evidenciando que cada imagem assim construída vive uma
experiência própria, única, não guardando mais o conceito de
espaço pronto, preconcebido por leis matemáticas dentro da
teoria euclidiana de comprimento, largura e altura.
A montagem, na realidade, vem a ser um desdobramento
natural da concepção filosófica do nosso século. Enquanto o
século XIX carregava o sentido de tempo aristotélico, linear,
no qual tudo tinha seqüencialmente um início, um meio e um
fim com desfechos lógicos, o século XX vivencia a concepção
25
Desde a Grécia que a escultura tinha o seu conceito de
unicidade, nos dando a individualidade das formas. A
“Guitarra” de Picasso, ao contrário, é construída a partir da
junção de elementos planos curvados, não sendo mais a
imitação do objeto guitarra, mas a construção de um objeto,
sem a integridade, a característica monolítica da escultura
convencional.
do todo, da simultaneidade, simbolizada pela linha de
montagem automobilística, em que o automóvel é concebido como
um todo, sendo montado parte por parte num processo de pré-
fabricação. Esse é o sentido de tempo contemporâneo, em que
os elementos se justapõem, nada mais sendo do que a colagem e
a montagem das artes plásticas.
Sem dúvida, toda essa nova potencialidade emanada pelas
colagens e montagens nas artes plásticas em geral incluindo,
aí, a linguagem fotográfica, que viria ratificar a força do
movimento surrealista foi fruto de um longo processo de
experiências antecedentes.
De Chirico
Nas artes plásticas, um dos primeiros sinais de
manifestação apontando diretamente para uma realidade adversa
à nossa veio com a fase metafísica de Giorgio De Chirico
(1888-1978). Numa época em que o Futurismo realizava
experiências com composições dinâmicas e tumultuadas e o
Cubismo chegava ao plano total com Braque e Picasso levando
às telas a funcionalidade, a mecanicidade do mundo através
das fragmentações e multiplicidades dos pontos de vista,
características da modernidade, De Chirico apontava para uma
vertente diametralmente oposta a toda essa racionalidade
ocidental, o que, posteriormente, viria a ser a pedra de
toque do Surrealismo. Seus trabalhos, nesse período, foram
marcados pela total descontextualização dos objetos, com o
confronto entre imagens díspares num mesmo espaço, remetendo-
nos a uma nova realidade, sendo o potencial revelador dessa
nova imagem tanto maior quanto mais antagônicas fossem essas
imagens e mais distantes da nossa realidade nos remetesse.
Essa descontextualização dá-se de forma extremamente
enigmática, estranha, em cenários e ambientes da mesma forma
estranhos, silenciosos, fantasmagóricos, potencializando
ainda mais a descontextualização. Essas características fazem
do mundo de De Chirico um mundo à parte, que nada tem a ver
com a realidade existente.
A tônica da fase metafísica de De Chirico apresenta
estreita relação com a montagem surrealista, que se estrutura
não em função da comparação, mas do confronto entre imagens
antagônicas.
Duchamp e os ready-mades
Paralelo a De Chirico, correm as especulações de Marcel
Duchamp (1887-1968), cujas obras apontariam para um direto
desdobramento no Surrealismo, tendo Man Ray como um de seus
principais interlocutores.
Dentre as diversas transgressões praticadas por Duchamp,
nosso interesse, no momento, se atém mais a uma investigação
sobre seus ready-mades,26 não quanto ao seu caráter indiciário
ou de traço, mas no que eles podem nos ajudar na compreensão
de suas relações com a filosofia do Surrealismo, sobretudo
com as montagens/ colagens surrealistas de que estamos
tratando.
Duchamp constata que o mundo moderno rejeita, repele
qualquer gesto individual, que é inútil e inócua qualquer
ação individual do ser humano frente à massificação e a
standardização imposta pela sociedade. Assim, parte para a
realização dos seus ready-mades , em que, na realidade, ele
nada fez além de selecionar objetos já prontos,
industrializados, entregando-os ao mundo como sendo obras de
arte, já que o mundo considera arte sempre o objeto final,
acabado, e não o gesto artístico que o gerou, o potencial
intelectual existente no fazer da obra de arte. Por isso,
Duchamp vai salvaguardar o seu gesto, não fazendo, por
perceber que iria se perder e conseqüentemente ser ignorado,
o que acaba por colocar em cheque toda uma tradição que
sempre esteve presente na história da arte: o f a z e r
artístico.
Quando Duchamp fixa uma roda de bicicleta a um banco e
os define como arte, estabelece-se de imediato um
deslocamento conceitual, já que é o próprio Duchamp que, ao
acoplar dois objetos já prontos, diz que o que está ali é uma
obra de arte, não possibilitando a intermediação da
instituição para definir e validar aquele objeto como obra de
arte. Há, portanto, uma subversão à tradição não somente por
lhe ser negado o privilégio de definir o que vai ou não ser
uma obra de arte, mas, sobretudo, por transferir essa
responsabilidade para o artista, potencializando o seu gesto
individual, marcando uma postura singular do ser humano em
oposição à massificação estabelecida.
Essa mobilização interna era acentuada pela maneira como
Duchamp escolhia os objetos para a concepção dos ready-mades,
pois eles deveriam ser isentos de qualquer qualidade
estética, tanto negativa quanto positivamente. Deveriam ser a
não-significação, o supra-sumo da assepsia estética, para que
o seu caráter atrativo e, portanto, interativo se desse,
efetivamente, em função da total descontextualização de suas
realidades próprias, no novo ambiente em que eles agora se
encontravam. De acordo com a visão do próprio Duchamp:
“O grande problema era o ato de escolher. Tinha que escolher
um objeto sem que ele me impressionasse e sem a menor
intervenção, dentro do possível, de qualquer idéia ou
propósito de deleite estético. Era necessário reduzir o meu
gosto pessoal a zero. É dificílimo escolher um objeto que não
nos interessa absolutamente não só no dia em que o elegemos,
mas para sempre, e que, por fim, não tenha a possibilidade de

26
Ready-Made: Criado por Marcel Duchamp, é um objeto já
manufaturado, pronto, promovido ao nível de arte pela simples
escolha do artista.
tornar-se algo belo, agradável ou feio...” (DUCHAMP, Marcel –
O Castelo da Pureza, p.27)

De fato, colocar alguns cubos de mármore e um termômetro


dentro de uma gaiola ou acoplar uma roda de bicicleta a um
banco é retirar completamente as funções habituais de cada um
desses objetos, é alterar radicalmente os significados
individuais de cada um deles, e, por isso mesmo, pela união
de realidades individuais tão desconexas é que se dará a
potencialização de uma realidade nova, intrigante e de
caráter interativo tão grande com o espectador, que ele
estará possibilitado a vivenciar uma experiência interna
surpreendente e, portanto, mobilizadora.
O caráter desses encontros entre objetos que compõem os
r e a d y - m a d e s é o mesmo que acompanha as fotomontagens
surrealistas, em que a fronteira entre a realidade que de
fato existe e uma outra realidade inconsciente é muito tênue,
o que nos torna perplexos, sem saber ao certo onde começa e
onde termina a realidade concreta.
Duchamp, da mesma forma, instaura esse mesmo tipo de
realidade nas poucas pinturas (se é que assim podem ser
chamadas) realizadas entre os seus ready-mades, como é o caso
do “Grande Vidro” também intitulado “A Noiva e seus
Celibatários, Mesmo”. É uma pintura sobre vidro onde ele
descreve um truncado mecanismo nas relações entre a noiva e
os celibatários, que, supostamente, estão representados no
quadro. O “Grande Vidro” é acompanhado de uma série de notas
na “Caixa Verde”, que vão explicar a funcionalidade do
quadro. Grande parte dessa descrição literal, no entanto, não
corresponde ao que está de fato representado, criando, assim,
uma fragmentação, uma ausência de integridade, sendo essa
desvinculação da realidade visual geradora de uma reflexão
sobre que realidade é essa que nos é imposta, em que a lógica
do que se vê é meramente arbitrária, convencionada.
Magritte
As fotomontagens surrealistas, por meio de justaposições
de imagens e palavras, percorrem o mesmo questionamento. Essa
absurdidade duchampiana é, da mesma forma, colocada nos
trabalhos de René Magritte (1898-1967), que desafia a lógica
da realidade ocidental instaurando o irracional, o onírico,
através de uma perfeita manipulação da realidade, ao retirar
os objetos de suas banalidades cotidianas, inserindo-os em
situações sem uma coerência aparente, onde se instalam o
mistério e o fantástico de tal forma que somos postos frente
a uma “realidade totalmente verossímil (ele não inventa nada)
e absurda ao mesmo tempo”. O mundo de Magritte é permeado
pelo mistério, em que o desconhecido surge do conhecido.
No quadro “A Chave dos Campos”, há a representação de
uma janela de vidro que dá para uma paisagem, sendo que os
vidros, ao serem quebrados, caem ao chão e cada pedaço de
vidro caído continua conservando a imagem da paisagem vista
através da janela, misturando, aí, realidade e ficção, como
afirma o próprio autor: “Criando um novo mundo a meio caminho
entre o sonho e a fantasia.”
Essa manipulação da realidade interage simbioticamente
com as operações de fotomontagem surrealista, pois Magritte,
com tinta e tela, instaura o mesmo tipo de realidade que
Hannah Höch, Robert Rauschenberg, John Heartfield, Max Ernst,
assim como tantos outros artistas, que o fazem através de
justaposições de imagens, nas quais cada realidade
fotografada (e por isso mesmo, de fato, existente) ao se
juntar em um mesmo espaço a outras imagens igualmente
verídicas, existentes, alteram-se a si próprias, inaugurando
uma desorganização da visualidade aparente e criando, a
partir desse “caos”, uma realidade além daquela que estamos
habituados a vivenciar, ou seja, uma supra-realidade.
No entanto, não é apenas através dos aspectos pictóricos
de seus quadros que Magritte nos apresenta toda a ilogicidade
do mundo, pois ele lança mão de um outro elemento, que é a
escrita, para descontextualizar ainda mais a realidade
existente. Nesse caso, embora se configure uma verdadeira
operação duchampiana pelas suas propostas, a formalização se
dá diferentemente. Ao contrário de Duchamp, a escrita, em
Magritte, faz parte, efetivamente, do campo da representação
do quadro, em cuja obra a imagem plástica e a imagem gráfica
são colocadas no mesmo espaço, configurando-se como
verdadeiras montagens surrealistas, pela total desconexão
entre o que se vê e o que se lê.
O que Magritte faz é representar objetos dentro de
compartimentos com um nome em baixo de cada representação,
que, na realidade, nada tem a ver com a representação em si.
Quando Magritte pinta um cachimbo e coloca em baixo o título
“Isto não é um cachimbo”, está nos chamando a atenção para a
arbitrariedade da linguagem, uma vez que é mera convenção o
que liga o nome cachimbo ao objeto que o representa. Desse
modo podemos perceber que as relações que sustentam o mundo
têm seu suporte em valores preconcebidos e por isso mesmo
frágeis, e conseqüentemente passíveis de modificações.
Transmutá-los é o que se pretende com o Surrealismo.
IV – O MÉTODO PARANÓICO-CRÍTICO DE DALÍ E O 2º MANIFESTO
SURREALISTA

Toda a incerteza vivenciada através das imagens


surrealistas, em que os dados da realidade concreta se
entrelaçam às visões fantasiosas do inconsciente, encontra
respaldo nas experiências com os doentes paranóicos. Uma
característica peculiar da paranóia, e que, por isso,
suscitou grande interesse entre os surrealistas, é que o
doente paranóico interpreta os fenômenos que ocorrem na
realidade em função de suas obsessões, realizando,
continuamente, uma síntese entre o real e o imaginário,
fazendo com que o mundo do delírio se transporte ao plano da
realidade. Debruçado em tais experiências, Salvador Dalí27
elaborou o seu método “paranóico-crítico”, com o qual ele
propõe um componente ativo na elaboração das imagens. Segundo
o próprio Dalí, “o método que leva em conta apenas o papel
exclusivamente passivo e receptor do sujeito surrealista deve
ser substituído por um método ativo, capaz de realizar
materialmente este mundo delirante da irracionalidade
concreta”. Por isso, em sua fase paranóico-crítica Dalí
preconizava que toda a sua ambição no plano pictórico
consistia em materializar, com a maior precisão possível, as
imagens da irracionalidade concreta e que o mundo imaginário
e a irracionalidade concreta tivessem a mesma evidência
objetiva, a mesma consistência, a mesma expressão persuasiva
e comunicável que o mundo exterior da realidade fenomênica.
Uma das características marcantes do seu método, no
plano pictórico, foi a imagem dupla, ou seja, aquela imagem
que, sem a necessidade de alterações, pode representar, ao
mesmo tempo, duas ou mais realidades diferentes. É o caso do
retrato feito por Dalí de Mae West, em que os traços faciais
da atriz representam também um mobiliário. O artista
sustentava que qualquer imagem pode multiplicar seus
significados até o infinito, dependendo, exclusivamente, da
capacidade delirante do espectador.
As imagens do método paranóico-crítico tiveram um
desdobramento extremamente interessante na construção dos
objetos surrealistas, que se prestavam a um mínimo de
funcionamento mecânico, cumprindo única e exclusivamente a
função de representante dos delírios do inconsciente, muitas
vezes desorientando mais o público do que os próprios quadros
ou poemas surrealistas. Um exemplo do objeto surrealista
27
Salvador Dalí : pintor espanhol (1904-1989). Um dos
personagens mais complexos das artes do século XX.
Interessou-se pelo Cubismo, pelo Futurismo e pela pintura
metafísica de De Chirico. Estudou profundamente a obra de
Freud e a partir daí criou o método paranóico-crítico, logo
incorporado ao Movimento Surrealista. Em 1937 rompeu com o
Surrealismo, retornando à pintura influenciada pela
Renascença Italiana, dedicando-se posteriormente à pintura
religiosa.
proposto por Dalí foi a “reprodução de grandes automóveis,
três vezes maiores que os normais e com todas as minúcias de
pormenores dos originais, em gesso, para que, envoltos em
roupas femininas, fossem enterrados em sepulturas, cujo lugar
seria reconhecido apenas por um delicado relógio de palha”.
O Movimento Surrealista, que vinha, de uma certa forma,
sofrendo desgaste em se utilizar apenas do automatismo puro,
tendo como proposta o total afastamento da realidade,
encontrou em Salvador Dalí uma fonte renovadora ao absorver o
método paranóico-crítico, que, em última instância, resgatou
o retorno à realidade da qual se afastaram, sugerindo a
integração dos delírios do inconsciente com os dados da
realidade vivida. Dalí propõe, assim, com o seu método, a
síntese inconsciente + consciente, para se chegar à supra-
realidade e, conseqüentemente, à harmonia do ser humano
consigo próprio.
A partir daí, as experimentações surrealistas passaram
por um processo contínuo de transição, em que se verificou
que o mundo vive numa permanente inter-relação entre o
racional e as fantasias subjetivas, negando, assim, todo o
sistema cultural do Ocidente, que acentua de forma negativa
esses aspectos paradoxais do mundo. Para os surrealistas, a
supra-realidade é “o ponto do espírito onde a vida e a morte,
o real e o imaginário, o passado e o futuro, o comunicável e
o incomunicável, o alto e o baixo deixam de ser percebidos
contraditoriamente” e, portanto, passam a realizar obras em
que combinam todos esses elementos contraditórios do mundo,
acreditando numa verdadeira relação de “vasos comunicantes”,
em que tais elementos juntos, ao invés de se oporem, como é
acentuado culturalmente, interagem, de maneira a se chegar à
plenitude do ser humano.
A supra-realidade já não representa, portanto, o
absolutismo do inconsciente, a total evasão da realidade, mas
se correlaciona com ela à procura da unidade, abrindo canais
através de imagens para que o mundo real seja o reflexo do
espírito humano.
Uma das concretizações mais evidentes do novo rumo
tomado pelo Surrealismo em sua segunda fase foi a
transformação do título do quadro “Revolução Noturna” de Max
Ernst, para “Revolução Diurna”, apontando, aí, para um
retorno à realidade, agora com a clareza da vivência
experimentado no mergulho ao inconsciente; os surrealistas,
retornam, então, à realidade concreta da mesma forma que os
personagens de Platão, que ao terem contato com a luza após
viverem um longo período na escuridão, retornam à caverna
enriquecidos com a experiência vivida.
Dessa forma, o contato com o cotidiano não representou
um retrocesso dos surrealistas, já que o cotidiano passou a
ser vivenciado à luz de uma experiência enriquecedora da
primeira fase do movimento, na qual se debruçaram total e
completamente sobre o mundo do inconsciente.
Toda a teoria da segunda fase do Movimento Surrealista
teve suas bases calcadas na psicologia freudiana, que
libertou o indivíduo das concepções morais da sociedade, para
que, enriquecido com essa vivência, pudesse experimentar uma
nova relação com a realidade cotidiana.
Esse retorno ao concreto acabou por desdobrar-se no
materialismo dialético de Marx, que encarava o homem como “um
conjunto de forças livremente desabrochadas”, o qual iria
reconciliá-lo com as duas faces de si mesmo: consciência +
inconsciência. Por isso, seria mais do que natural o
Movimento Surrealista encontrar respaldo nos estatutos de
Marx, que possibilitavam a união de forças contraditórias,
chegando a uma
“filosofia particular da imanência, segundo a qual a supra-
realidade estaria contida na própria realidade (não seria nem
superior, nem inferior). E reciprocamente, pois o continente
seria também o conteúdo. Tratar-se-ia quase de um vaso
comunicante entre conteúdo e continente.”

A fotografia inserida na filosofia do 2º Manifesto


Surrealista

Essa pequena imersão nos desdobramentos do Movimento


Surrealista nos coloca diante da qualidade fundamental da
fotografia, que é a oscilação entre o real e o inconsciente.
De fato, a fotografia percorre esses dois caminhos
concomitantemente. Não há imagem fotográfica que deixe de
carregar dentro de sai a realidade existente na hora do ato
fotográfico, juntamente com a carga psicológica e subjetiva
por ela emanada. Essa carga inconsciente, com certeza, é a
face mais complexa de uma imagem fotográfica, uma vez que ela
provém de várias instâncias que se intercomunicam e se
desdobram em outras tantas realidades subjetivas. Envoltos em
tais complexidades, encontram-se o sujeito fotografado, o
sujeito que fotografa e o espectador, cada qual contribuindo
com suas próprias experiências e vivências culturais, sociais
e psicológicas, que farão da imagem de fato existente,
fotografada, uma obra sempre em aberto à mercê de quem a
olha.
Se pensarmos, primeiramente, no fator técnico, podemos
observar que a linguagem fotográfica por si só já trabalha
com uma realidade deturpada. Mesmo lançando mão de uma lente
dita “normal” de 50mm, ela jamais corresponderá exatamente à
visão humana, sempre estará ocorrendo algum tipo de
desvirtuamento da realidade vista pelo olho humano. A
realidade, no entanto, estará clara e patentemente deturpada
ao trabalharmos com uma lente grande angular, que nos dará
uma imagem bastante distorcida, ou uma teleobjetiva, que
apresentará planos achatados. Todas essas imperfeições ou
anormalidades impostas à realidade como o desfoque, a
silhueta, o tremido, a dupla exposição e tantas outras mais,
são recursos eminentemente fotográficos que, de imediato, já
nos colocam frente a uma realidade diferente da que
vivenciamos em nosso cotidiano. A linguagem fotográfica,
portanto, tem a capacidade de nos prover, através do seu
aparato técnico, de todo um manancial de informações visuais
extremamente libertárias que podem alterar o nosso sentido e
relacionamento espacial com a realidade.
Ao estarmos diante de uma imagem distorcida da
realidade, caso típico de uma lente grande angular,
experimentamos, de alguma forma, um certo tipo de
desconforto, de mal-estar. Essa recusa que a princípio se
instala, tem suas raízes na ausência de correspondência entre
o espaço que estamos acostumados a vivenciar, dentro do qual
os nossos sentidos habitualmente já respondem a todas as
solicitações, e essa imagem distorcida. O homem sempre
procurou ratificar a sua presença no mundo buscando algo que
o remetesse a sua semelhança e ao espaço, que é a sua
condição básica de relacionamento com o mundo, o seu grande
referente. Caso esse referente não encontre correspondência,
isto é, caso o homem não encontre semelhança entre o que
sente e o que vê, instaura-se o caos, pois aí lhe é negada a
condição primária de se sentir parte do mundo.
Essa vivência, de certa forma, é ainda mais acentuada ao
se tratar de uma imagem fotográfica, já que a fotografia
sempre foi culturalmente encarada, desde a sua criação, como
a mais fiel representante da realidade, o referente mimético
da natureza. A partir do momento em que ela nega e frustra
essa expectativa de apresentar uma realidade com a qual
estamos habituados a conviver e que, inconscientemente,
desejamos que seja mostrada, há, sem dúvida, uma
desarticulação interna, tendo como conseqüência natural a
negação de toda e qualquer imagem que venha quebrar esse
estatuto.
O fato é que a linguagem fotográfica traz já dentro do
seu próprio meio de expressão a qualidade de apresentar uma
realidade existente e, ao mesmo tempo, transcendente a ela
própria, quer dizer, a fotografia já carrega,
intrinsecamente, a surrealidade dentro de si.
Por mais sofisticada que seja a aparelhagem fotográfica,
por maiores que sejam os avanços da tecnologia ótica, a
instância inconsciente do sujeito que fotografa, no exato
momento em que o obturador é acionado, justapõe-se a toda
essa racionalidade, impondo sua carga expressiva à imagem e,
certamente, a força dessa imagem será diretamente
proporcional a esse investimento do sujeito. Não há como ter
total controle sobre todos os parâmetros no momento em que se
está fotografando, até porque nem tudo depende apenas do
fotógrafo. Sempre há algum tipo de interferência externa,
como a mudança de luminosidade, um movimento imprevista da
cena, a entrada inesperada de algum objeto ou de alguém no
espaço a ser fotografado. Há, enfim, todo um contexto que
resvala ao controle único e exclusivo do fotógrafo.
A racionalização, a consciência sobre o que se quer
fotografar pode, e até deve, existir (se for o caso)
anteriormente ao acionamento do obturador. O ato fotográfico
em si é pura inconsciência, pois nesse exato momento tudo é
escuridão (não apenas teoricamente, já que nesse mo mento o
espelho se fecha), nesses décimos de segundo tudo ocorre de
forma totalizante e de uma única vez, não havendo tempo para
etapas processuais, para se voltar atrás.
As imagens que ficam, perduram no tempo, conseguem
atravessar gerações e, mesmo assim, continuam emocionando as
pessoas, com certeza não o fazem pelas suas qualidades
técnicas. Um fotógrafo medíocre, com uma sofisticada
aparelhagem, pode estar, tecnicamente, ao lado de um grande
fotógrafo, e mesmo assim continuar medíocre, sem brilho, sem
conseguir emocionar as pessoas. Por isso, por mais que a
tendência do mercado seja a de padronizar tecnicamente as
aparelhagens, de colocar as pessoas com praticamente o mesmo
tipo e nível de material, sempre haverá fotógrafos e
fotógrafos. Paradoxalmente, quanto mais se assemelham os
equipamentos, mais se nota a diferença entre a boa e a má
produção de imagens; o que se esperava de uma padronização
dos fotógrafos em função da sofisticação tecnológica, dos
imensos recursos que os deixariam em “pé de igualdade”, veio
somente acentuar diferenças, as quais configuram-se pela
“marca” de cada ser humano.
Essa “marca” a que nos referimos e a que chamam estilo,
esse diferencial, é produto do inconsciente de cada ser
humano, uma vez que, frente a um meio de criatividade, sai da
latência e torna-se arte. Por isso, uma imagem fotográfica,
ao ser produzida, leva consigo a realidade de fato existente,
juntamente com o manancial inconsciente do sujeito que a
produz, desdobrando-se em uma supra-realidade, em uma
realidade que não se configura apenas através do palpável,
mas, isto sim, através da inter-relação do que há de
inconsciente na produção e do que foge a tudo isso,
característico da instância inconsciente.
A unicidade consciente/ inconsciente, portanto, tão
procurada e desejada pelo Movimento Surrealista, é não
somente parte integrante como pedra fundamental, dado
inseparável da linguagem fotográfica.
O sujeito fotografado, da mesma forma, atua intensamente
nesse processo. Um olhar ou um gesto qualquer, por mais
imperceptível que possa parecer diante do todo ou da atenção
central de uma imagem, pode alterar por completo, ou então
acentuar o sentido da cena, principalmente se esse gesto não
fizer parte diretamente do contexto da foto.
Sebastião Salgado flagrou no “Raso da Catarina” (Bahia)
(figura 5) uma cena que nos remete a uma reflexão sobre essa
situação. O cenário compreende uma noiva dentro de um carro
aguardando a chegado do noivo. Uma das portas do carro
encontra-se aberta, onde se vê uma mulher de pé, fora do
carro, apoiada com um dos braços sobre a tal porta.
Quando olhamos essa foto, as nossas atenções voltam-se
imediatamente para a noiva, em seu estado de resignação,
quase patético, aguardando o momento tão desejado. Ali, tudo
é espera: o chão batido à espera do calçamento, a construção
(ao fundo) à espera de sua finalização, o lugar vazio do
motorista à espero do suposto noivo e, principalmente, a
noiva, concentrando em si toda a emocionalidade da foto. No
entanto, após um certo tempo, sinto que a força realmente
expressiva da cena encontra-se na mulher que está fora do
carro, não por ela estar efetivamente em estado de espera,
pois está grávida, mas pelo seu olhar – não há como evitar
nossas atenções sobre ela. A espera que há em seus olhos vai
além da gestualidade concentrada na noiva, pois nos pega mais
pelo que não está representado, ou seja, a espera de que
falam esses olhos não é de fato a espera pelo noivo, vai
muito além disso. A profunda desesperança nesse olhar não
corresponde a uma espera momentânea, objetiva, que, na
maioria das vezes, nesse tipo de situação, se desfaz.
Esses olhos trazem toda uma vida de espera, no
sofrimento de sua situação sertaneja.
É possível perceber que essa mulher olha para um nada,
para um vazio, pois é um olhar que está perdido dentro dela
própria, tão longe e tão próximo. A superficialidade do que
seria uma cena óbvia de espera torna-se contundente diante do
que, a princípio, se dava como algo secundário a ela, ou
seja, esse “secundário” à cena é que a qualifica, tornando-a
presente dentro do espectador que a olha, sem poder evitar o
seu comprometimento com ela. Assim, mais uma vez, a força
dessa imagem não se encontra, de fato, no espaço
representado, e sim na virtualidade a que ela nos remete.
Nos chamados “flagrantes”, aquelas fotos em que o
sujeito não percebe que está sendo fotografado, é muito
recorrente este tipo de situação. Pelo fato de ser
surpreendido pela câmara, sua participação no contexto da
imagem fotografada é toda inconsciente e esse dado tem um
caráter fundamental na animação da foto, que, no caso,
refere-se à maneira pela qual a imagem atinge o espectador. A
mobilização, aí, diz respeito não a perturbações ou choques
estéticos, mas ao confronto com o desconhecido, com o oculto
revelado do sujeito.
Cartier-Bresson (1908-2004) é o grande mestre na arte do
“momento decisivo” não por conseguir emocionar o mundo
através de imagens chocantes, carregadas de emoção ou cheias
de retórica, mas por tocar no inconsciente do espectador.
Utilizando-se de imagens extremamente simples, quase
minimalistas, Bresson faz surgir o que há de oculto, de
inconsciente nas pessoas, o qual jamais seria revelado se
elas tivessem consciência de estarem sendo fotografadas.
“Momento decisivo” é, portanto, essa fração de segundo em que
deixamos a latência inconsciente tornar-se realidade; é aí,
nessa instância, que o espectador é seduzido, é como se ele
pegasse o “gancho” dessa revelação inconsciente e trouxesse
para si, revelando-se a si próprio.
Assim, esse gesto, ato inconsciente, realiza o caminho
de volta, fotografando o espectador, que, ao ser atingido por
este punctum, mobiliza-se internamente, passando a formar um
emaranhado de associações que lhe darão possibilidades de
articular dentro de si tantas realidades quantas seu
inconsciente permitir. O espectador, portanto, participa
dessa trilogia (juntamente com o sujeito que fotografa e o
que é fotografado), mas não como um sujeito pronto a fechar
um ciclo, muito pelo contrário, abrem-se sempre novas
possibilidades associativas a cada instante em que ele for
acionado por esse p u n c t u m inconsciente, já que suas
experiências e vivências mudarão de caráter a cada momento.
Poderíamos, então, dizer que uma imagem fotográfica é
sempre vista com olhos surrealistas, pois o sujeito que
fotografa, o sujeito que é fotografado e o espectador estarão
sempre de alguma maneira inter-relacionados tanto através da
realidade existente (dado fundamental da linguagem
fotográfica) quanto por suas instâncias inconscientes (estas
dependendo das vivências e experiências individuais de cada
um).
É interessante ressaltarmos aqui a diferenciação do
caráter de supra-realidade existente em fotografia e em
outras áreas de criatividade, especialmente em pintura. A
configuração da existência de uma supra-realidade, ou seja,
da convivência concomitante entre uma realidade consciente e
uma realidade inconsciente, em fotografia compreende uma
qualidade específica, já que ela é a única linguagem
artística em que o dado de realidade, o referente, o traço,
aparecem como características inseparáveis do seu sistema,
sem os quais ela não existiria, e isto muda tudo.
Se tomarmos, por exemplo, Magritte, que foi um dos
pintores surrealistas que mais trabalhou com a realidade
consciente e inconsciente num mesmo espaço, deveremos sempre
estar atentos para o fato de que a realidade ali posta sobre
a tela é pura representação, não há qualquer vínculo de traço
entre o que ele está realizando com suas tintas e pincéis e a
realidade de fato existente (Foucault dizia que “pintar não é
afirmar”). Aliás, o próprio Magritte joga muito com esse
noema representacional da pintura. Conforme já foi enfocado,
a pintura de um cachimbo com o título “Isto não é um
cachimbo” nada mais faz do que ratificar que o que está ali
pintado na tela não é, de fato, um cachimbo e sim a
representação do objeto pintado. Além disso, nos lembra a
impossibilidade da total e fiel representação de um objeto
tridimensional em um espaço bidimensional (a tela),
diferentemente da fotografia, que, embora nos apresente uma
imagem, da mesma forma, bidimensional, essa imagem não se
constitui como uma representação e sim como a própria
realidade impressa no papel. A imagem de um cachimbo impressa
em um papel fotográfico sempre terá, indefectivelmente preso
a ela, o traço do objeto cachimbo que a originou.
Uma imagem fotográfica, portanto, compreende uma maior
complexidade quanto aos aspectos formais da supra-realidade,
visto que a realidade existente (racional), já de imediato,
imprime-se no papel fotográfico, enquanto a realidade
inconsciente, embora tenha seu ponto de partida na imagem
representada, é encontrada fora dela. De outra forma,
poderíamos colocar que a subjetividade de uma imagem
fotográfica só pode ser buscada fora (embora a partir) dela,
uma vez que o que está no papel é pura realidade. Então, da
mesma maneira que o referente, o dado de realidade, é
incondicional à fotografia, a sua virtualidade também o é. Já
em uma pintura, por ela não ter nenhum comprometimento com a
realidade, esse processo se dá de forma diferente. Por
constituir-se de uma representação (mesmo que seja a
representação de um sonho, de uma visão, de um estado de
espírito), a realidade apresentada em uma tela já carrega
dentro de si a sua própria subjetividade.
Entendo, portanto, que essa inexorabilidade da realidade
que a fotografia traz consigo seja a resposta procurada por
tantos fotógrafos atraídos por temas tão diferentes. Não há
fotógrafo que, em algum momento, não tenha empunhado a sua
câmara na compulsão de flagrar um assunto de total estranheza
para ele.
Mesmo quando se trata do banal, do corriqueiro, do que
há de mais comum, lá está o olhar do fotógrafo focado (ou
desfocado) naquilo que os olhos menos atentos não estão a
enxergar. Há, de fato, uma tendência, mesmo inconsciente, de
se buscar o adverso, o contrário, o não trivial, isto é,
aquilo que está implícito na visão imediata. Seja no
fotojornalismo, nos ensaios pessoais, nas fotografias de moda
ou em quaisquer outras áreas da linguagem fotográfica, o
fotógrafo é seduzido pelo grotesco, por tudo aquilo que, de
alguma forma, não esteja direta ou explicitamente relacionado
à própria realidade do objeto fotografado, à sua função
primordial, mesmo que esteticamente. Desse modo o fotógrafo
encontra a sua saída, o veio para transpor a realidade
indiciária e referencial que faz parte e que está dentro da
fotografia.
É como se o fotógrafo, aí, tentasse a todo custo
desafiar o próprio meio que está expressando, burlando uma
realidade que, de fato, existe. Conseqüentemente ele insiste
incessante, na busca de apreender o extraordinário, o que
foge a todo e qualquer domínio da racionalidade possivelmente
apreensível pelo homem. É a busca do desconhecido.
Aqui podemos perceber por que foi a fotografia a
linguagem artística que, com maior profundidade, levou
adiante as propostas do Movimento Surrealista. Um dos
princípios básicos do 1º Manifesto Surrealista fundamenta-se
na tentativa da criação de uma crise moral na sociedade,
passando, obviamente, pelo desvirtuamento, pela adulteração
da realidade existente em todas as formas de expressão
utilizadas pelo Movimento. A poesia, a pintura, a escultura e
o próprio teatro lidam com linguagens subjetivas, enquanto a
fotografia é a única delas em que a realidade é parte
integrante e inquestionável de sua linguagem, a única em que
a subjetividade, a instância inconsciente, encontra-se fora
dela. Da mesma forma devemos abrir aqui um espaço para a arte
de “assemblage”28(também conhecida quando introduzida no
Movimento, como “objeto surrealista”). Na assemblage, o meio
de expressão não faz referência à realidade, não a tem como
índice ou traço, como na fotografia, mas é a própria
28
Assemblage: Termo cunhado na década de 50 por Jean Dubuffet
para denotar obras de artes elaboradas a partir de fragmentos
de materiais naturais ou fabricados, como o lixo doméstico.
Usado para definir desde fotomontagens até instalações.
realidade que transfigura, assume um novo valor. A assemblage
lida com objetos do cotidiano, cujas funções habituais para
os quais foram feitos são anuladas, compreendendo, após um
processo de seleção e montagem com outros objetos, um novo
contexto. A escolha desses objetos, portanto, passa pela
instância inconsciente do artista, que, ao lançar mão de todo
os seu aparato fantasioso, seleciona-os de acordo com as suas
próprias necessidades internas para atingir uma nova
realidade. Esses objetos, assim, livres das limitações
estabelecidas por suas funcionalidades racionais,
possibilitam novas relações entre o ser humano e o meio em
que vive.
Salvador Dalí foi um dos artistas que mais contribuíram
na elaboração de objetos surrealistas, os quais denominava
“objetos que, prestando-se a um mínimo de funcionamento
mecânico, estão baseados nos fantasmas e representações
suscetíveis de serem provocados pela realização de atos
inconscientes”.
Toda essa manipulação de objetos do cotidiano para a
realização de assemblages (aqui entendidas como objetos
surrealistas) nos remete de imediato à obra de Duchamp,
principalmente aos seus ready-mades . Ocorrem aí, de fato,
verdadeiras operações duchampianas, em que o encontro
insólito de objetos com realidades tão díspares proporciona
um deslocamento na realidade interna de cada espectador, que
passa a ter de buscar outros referenciais, novos parâmetros
de entendimento, visto que a a s s e m b l a g e exige u m
envolvimento participativo do espectador no sentido de
transcender as realidades dadas, já existentes em cada um de
seus objetos. Todo esse caráter mobilizador da assemblage
encontra perfeita ressonância nos princípios surrealistas,
por ela gerar efetivamente uma crise moral, isto é, por
acionar no espectador todo um mecanismo de desprendimento ao
que é pré-conceituado, ao que é dado de maneira pronta e
acabada, já que o seu conhecimento e entendimento, a sua
conceituação e valor da realidade serão transitórios,
alterarão a cada nova obra apresentada.
Assim, subverter a realidade de forma a se criar uma
outra mais profunda a partir dessa própria realidade, isto é,
atingir uma supra-realidade calcada diretamente na realidade
existente exige um outro approach , principalmente por se
saber que esse estágio de supra-realidade em fotografia
depende de uma participação mais direta do espectador, já que
a potencialidade de uma imagem fotográfica concentra-se,
acentuadamente, na sua virtualidade, que, obviamente, depende
da vivência de cada espectador.
A transcendência da realidade concreta provida por uma
imagem fotográfica, portanto, será tanto maior e tanto mais
profunda quanto maior for o seu potencial de afastamento em
relação à realidade do espectador. Esse distanciamento entre
o que o espectador vê e as suas experiências e vivências de
vida no mundo, o hiato criado por essas diferenças de
percepção é que o levará à construção de um novo universo,
onde o consciente e o inconsciente, ao invés de serem vividos
como instâncias antagônicas, serão parte de um mesmo sistema,
voltado para um equilíbrio que não seja mais linear,
mecânico, estabelecido por regras racionais, mas sim um
equilíbrio em que prevaleça uma organização assimétrica, não
repetitiva, um caos aparente, visto que luz/ escuridão, vida/
morte, preto/ branco e finalmente consciente/ inconsciente
construirão, simultaneamente, esse sistema, cuja existência
será facultada pela presença de ambos, não mais como
conflito, oposição, mas como correntes de um mesmo fluxo.
Essa realidade à qual nos referimos constitui-se,
primordialmente, pela relação espacial que o ser humano
guarda com o mundo que o cerca.
V – A HERANÇA E O DESMORONAMENTO DO ESPAÇO RENASCENTISTA

O espaço não é uma realidade em si, dada, já pronta, na


qual o homem tenha de se adaptar, e sim uma experiência de
cada um. Ele é função direta de todas as nossas experiências
e vivências anteriores, ou seja, o espaço está todo em nós,
pois, a cada novo espaço em que nos encontramos, somos
remetidos à memória de nossos comportamentos anteriores para,
então, criarmos e sentirmos esse espaço, que terá, pois, o
caráter experimental. Certamente as vivências espaciais de um
cidadão urbano, de um índio do Alto Xingu e de um primitivo
em uma ilha do Pacífico são completamente diferentes, visto
que suas experiências culturais, sociais e corporais
compreendem qualidades divergentes.
Desde que nascemos, desenvolvemos as nossas noções de
espaço, de acordo com as sensações que passamos a
experimentar. Os fantásticos estudos de Piaget demonstraram
que a percepção espacial é cumulativa, que a sua compreensão
é determinada pelas diversas etapas por que passa o
indivíduo. As primeiras sensações espaciais de uma criança
pertencem a um universo unidimensional, sem formas fixas,
medidas, perspectivas, proporções. Fazem parte de uma
representação confusa do mundo, através de sensações
fugidias, mas que são ponto de partida e dado fundamental
para a nossa compreensão posterior do espaço no mundo.
Segundo Piaget,
“o primeiro universo do homem é topológico-deformável,
baseado em noções de separação e proximidade, de sucessão e
de ambiente, de envolvimento e de continuidade,
independentemente de qualquer esquema formal e de qualquer
escala fixa de medida.” (DUBOIS, Philippe – O Ato
Fotográfico)

A criança passa, em seguida, por uma fase projetiva do


espaço, em que ela percebe um mundo bem mais definido, com
corpos fixos e independentes, providos de formas e
classificação, ainda que sem a noção de escala. Aos poucos,
no entanto, vai havendo o enriquecimento das sensações com o
apoio da memória, abrindo-se o mundo das várias dimensões,
das relações de grandeza entre objetos, das relações lógicas
e assimétricas, enfim, de todo um sistema codificado de
perspectiva, calcado na geometria euclidiana. Piaget, no
entanto, nos chama a atenção:
“a passagem de um estágio a outro não implica o
desaparecimento total dos sistemas de percepção anteriormente
adquiridos e dominados. As representações topológicas do
espaço, por exemplo, permanecem latentes para sempre em nosso
espírito, elas não são expulsas pelas representações
projetivas e perspectivas que se lhes superpõem.” (DUBOIS,
Philippe – O Ato Fotográfico)
Crescemos, portanto, carregando o pesado fardo da
representação espacial da perspectiva euclidiana, que o
Ocidente, de forma contundente, privilegiou. Esse sistema,
especulação máxima do Renascimento, propunha que o espaço
teria a aparência de um cubo, onde todas as linhas de fuga se
reuniriam em um ponto único situado dentro do quadro e
correspondendo à visão a partir de um ponto de vista único do
olho humano. Vários séculos habituaram-nos a aceitar tais
convenções como dogmas verdadeiros e perfeitos de
representação da realidade, pois são elas a base de todo o
sistema educacional do Ocidente, que, ao desenvolver nossas
faculdades matemáticas e visuais, nos torna cidadãos moldados
e deformados por uma cultura particular. Sem dúvida alguma,
esse conjunto de articulações e métodos de representação
espacial, perspectivado, compreendeu um valor inestimável
durante o período renascentista por permitir imensos avanços
nas ciências aplicadas e humanas, nas descobertas e
conquistas territoriais, no conhecimento do mundo. De uma
forma geral, proporcionou desenvolvimentos incalculáveis de
toda sorte, porém é preciso entender que tais sistemas não
são, de forma alguma, os valores imutáveis e irrepreensíveis
de representação do mundo. Muito pelo contrário, são sistemas
arbitrados e inventados em concordância com todo o padrão
socioeconômico, cultural e político vivenciado durante a
época renascentista. Hoje ele não constitui mais a nossa
verdade.
As convenções arbitrárias de fonte única de luz e da
visão perspectivada monocular já não coincidem mais com os
valores do nosso tempo, pois deformações, mobilidade,
velocidade, plasticidade, materialidade, experimentação se
opõe, de forma radical, à estabilidade, equilíbrio e
permanência da sociedade renascentista.
Por isso, a questão espacial é, atualmente, tão ampla e
abertamente discutida. Hoje lidamos com o espaço de uma forma
muito mais experimental, imaginativa e comportamental, do que
através de teorias e métodos dados, já prontos.
A representação espacial renascentista de que estamos
tratando passou a ter os seus primeiros questionamentos no
século XIX, exatamente quando a fotografia é inventada.
Embora o cubo cenográfico e a perspectiva linear ainda
estivessem presentes em praticamente todos os artistas do
século XIX, os primeiros realistas seguidos pelos
impressionistas e pós-impressionistas já levantavam algumas
discussões em torno da representação espacial que havia
quatro séculos seguia como dogma inquestionável.
Manet foi um dos primeiros a abrir uma discussão sobre a
linguagem pictórica em si, trazendo a reboque a questão do
plano da tela, ou seja, contestar a representação
tridimensional do mundo em uma superfície bidimensional, que
é a superfície da tela, em contraposição à geometria
euclidiana, que tenta nos passar de forma ilusória a
tridimensionalidade do mundo no plano da tela.
Monet, através de trabalhos como “Catedrais”, “Pontes de
Londres” ou mesmo “As Mulheres no Jardim”, embora faça
referências ao espaço cúbico do Renascimento, ao tradicional
enquadramento e segregação dos planos em profundidade, já
coloca a questão do espaço fragmentado (através de manchas
adjacentes umas às outras) e a questão da maior proximidade
entre figura e fundo (em função da maior semelhança entre
eles).
Renoir, em alguns quadros, já sugere fundos desfocados e
achatados, assim como algumas representações em close no caso
do “Busto de Mulher” (estudo de nu), no qual o fundo é
indeterminado, o espaço feito da mesma matéria que a mulher,
evidenciando a aproximação figura/ fundo, e, principalmente,
pelo fato de o quadro deixar de ser estruturado em função
exclusivamente de um ponto de vista único (típico da
representação renascentista) para ser tratado por vários
pontos de luz (impingindo, portanto, uma mobilidade do olhar)
centrados na boca, ombro e seio.
Degas, da mesma forma, não poderia deixar de ser aqui
mencionado, por ter abordado questões espaciais cruciais que
abriram caminhos para investigações futuras e também por ter
tido a fotografia como uma de suas atividades de expressão.
A pesquisa de Degas é a pesquisa do movimento do espaço,
por isso a linha para ele tinha uma conotação muito mais
dinâmica do que formal. Embora Degas tenha composto uma série
de temas sugerindo movimento (caso das bailarinas, corridas
de cavalos, etc.), o que lhe interessava realmente era passar
a idéia do movimento pelo deslocamento do olhar no quadro,
para que assim o espaço se alterasse a cada instante. A
qualidade do espaço em Degas passava, então, de uma instância
rígida, fixa, proveniente das regras do Renascimento (altura,
largura e profundidade), para uma maior relatividade. O
espaço passava a ser definido pela nossa própria
experimentação e percepção do espaço.
Em “O Absinto”, Degas sugere um espaço vertiginoso,
desequilibrado, em direção ao espectador e, literalmente, nos
insere na cena ao cortar todos os lados do quadro. Esses
“sangramentos” nas quatro direções (em cima, embaixo, dos
lados) retiram o espectador da mera posição contemplativa,
distante, tornando-o participativo, dentro do espaço
representado, agindo sobre ele e recebendo dele toda a sua
influência. Degas, aí, já coloca uma questão fundamental e
extremamente atual ao tratar da interação sujeito/ objeto,
homem/ mundo, revelando-se uma proximidade inexistente na
cultura ocidental desde o Renascimento.
Enquanto a sociedade da Idade Média acreditava que tudo
estava em Deus e, por isso, nenhuma distância deveria haver
entre as coisas, já que elas eram manifestações de uma
essência única, o Renascimento cortava esse vínculo, propondo
uma separação homem/ Deus e afirmando que o homem passava a
ser a medida de todas as coisas. A partir desse conflito, vem
toda uma filosofia de separação, afastamento do homem em
relação à natureza, o que, certamente, iria desdobrar-se na
representação espacial, pois era de maneira distante,
separada, que o homem se percebia, se relacionava com o
mundo. Por isso, todo o sistema representacional legado pela
sociedade renascentista era calcado nas leis fixas e
imutáveis do mundo exterior. No entanto, todo esse conjunto
de regras arbitradas pelos teóricos e decodificadas pela
sociedade da época, aos poucos foi perdendo sustentação
perante novas experiências vivenciadas, e esses princípios
estabelecidos foram sofrendo modificações e renúncias em
função das transformações filosóficas, espirituais e sociais
que o homem passava a sustentar diante do novo mundo.
A modificação nas concepções de distância social passava
a alterar a relação comportamental de espaço do homem com o
mundo, e aí retornamos à modernidade atribuída a Degas, por
ter, de fato, sido sensível a tais transformações. Quando
Degas propõe um espaço interativo, nos colocando próximos à
cena representada, através dos sangramentos, antecipa-nos o
ambiente onde viveríamos; um mundo que age sobre nós de todas
as formas e de todos os lados; um mundo que não está mais
distante de nós, de que deixamos de ser meros contempladores;
um mundo que nos exige total percepção e interação, hajam
vista as constantes interferências que sofremos em nosso
cotidiano.
O século XIX, dessa forma, constituía-se num grande
laboratório cujas experiências que vinham sendo maturadas
havia algum tempo, passavam a ser efetivamente postas em
prática, em consonância com todas as emergentes
transformações sofridas pela sociedade. Ficava patente, no
entanto, que todas essas alterações e deslocamentos tinham,
em sua essência, uma maior aproximação e interação do homem
com o seu meio. Em contraponto ao distanciamento e à visão
global do mundo, imposta desde o Renascimento, estava a visão
próxima, fragmentária e direcionada aos detalhes. Essa
mudança de atitude refletia-se na maneira de ver as coisas no
mundo, e, conseqüentemente, no modo de representá-las. A
pintura, principalmente a partir dos impressionistas, e a
fotografia tiveram de lidar diretamente com o problema do
espaço em função de uma psicologia social que aos poucos foi
se instalando, e também pelo fato de o espaço constituir-se
numa característica inerente a suas linguagens. Por isso, não
é à toa que Renoir, muitas vezes, sugere a figura e o fundo
num mesmo plano de interesse; que Degas propõe uma visão
próxima, tátil, através de fundos abstratos colocados ao
primeiro plano ou através de seus diversos closes ; que
Cézanne trabalha as pesquisas da construção da totalidade das
coisas apresentando um todo simultâneo de superfície e
profundidade.
Está colocado, então, o grande embate entre como
representar o mundo em função das novas relações espaciais
vivenciadas pela sociedade e toda uma carga de quatro séculos
de cultura assimilada a partir do Renascimento. Muitos têm
sido os artistas plásticos e fotógrafos empenhados nessa
empreitada desde o final do século passado até hoje.
VI – A SURREALIDADE DA QUESTÃO ESPACIAL EM FOTOGRAFIA

A questão espacial, em fotografia, é, de fato, delicada,


e por isso mesmo compreende uma de suas vertentes
surrealistas mais interessantes. O aparato técnico da
fotografia, bem como o sistema cultural do Ocidente, induzem-
nos sempre a vermos o mundo de uma única maneira,
caracterizando-se como engrenagens arbitradas e articuladas
em função da nossa própria condição no mundo. Quando os
teóricos do Renascimento engendraram seu sistema de
representação espacial, assim o fizeram tomando por base o
ponto de vista único, monocular, ideal, acima da testa,
perpendicular ao plano do quadro. Isso, logicamente, só pôde
ser possível levando-se em consideração a ortogonalidade do
homem em relação ao mundo. Afinal, como afirma Philippe
Dubois, “somos seres eretos, vivemos de pé, postados
verticalmente diante da horizontalidade do solo, e essa é a
condição fundamental para o nosso relacionamento espacial com
o mundo.”
Ao olharmos uma imagem, de imediato é formada a relação
entre o espaço fotográfico propriamente dito e a nossa
presença no espaço. O fato é que o modelo arbitrado par anos
fornecer o espaço fotográfico é construído em torno da
ortogonalidade, ou seja, de retângulos ou quadrados,
dependendo de cada caso, mas sempre a partir do sistema das
horizontais x verticais, o que, na realidade, não corresponde
ao aspecto natural, pois a imagem provida pelas lentes da
objetiva é, a princípio, circular, assim como a imagem
formada na nossa retina. Para tanto, todo um aparato é
construído de maneira a forçar o espaço fotográfico a se
dobrar a essa estruturação ortogonal; é “janela” na câmara
com telêmetro, espelho e visor nas câmaras reflex, janelas
nos ampliadores, marginadores para os papéis e até nas
moldura para exposição: “Nada além de retângulos e quadrados
que se duplicam ao infinito.” (DUBOIS, Philippe – O Ato
Fotográfico)
Assim, todo esse modelo tem como objetivo harmonizar-se
à nossa postura, ao nosso posicionamento no mundo, que é
também ortogonal. Por isso é que quando uma pessoa quer tirar
uma fotografia dita harmoniosa, dentro dos padrões normais,
ela faz valer, o quanto possível, toda a correspondência de
paralelismos entre espaços, ou seja, todas as verticais,
assim como todas as horizontais do espaço a serem inseridas
na fotografia devem estar paralelas às verticais e
horizontais do visor da câmara, para que, conseqüentemente, a
imagem esteja em equilíbrio com a nossa posição no espaço, a
mesma forma vertical em relação à horizontalidade do solo.
Isso, portanto, faz com que a foto tenha um aspecto natural,
ilusório aos olhos do observador, por possibilitar uma
identificação com a sua experiência e percepção do espaço.
Uma vez cortada essa correspondência entre o espaço
fotográfico e o espaço vivenciado pelo sujeito, surge um
certo mal-estar e, por conseguinte, uma atitude de não
aceitação da imagem vista, em função de um sentimento de
rejeição, de exclusão de sua própria presença no mundo.
Diante desse verdadeiro “cut” , o espectador experimenta a
ausência de referências de sua própria realidade, a
desorientação do espaço que lhe é comum e, conseqüentemente,
o afastamento, o distanciamento de sua realidade racional, e
a criação, então, de uma outra realidade, em que o
inconsciente se faz presente.
A tônica do movimento surrealista recai exatamente sobre
esse distanciamento. De Chirico foi quem, através de seus
trabalhos da fase metafísica, constituiu-se na pedra de toque
para tal questionamento. A perspectiva, em seus quadros, não
encontra ressonância nem na representação renascentista da
geometria euclidiana, com um ponto de vista único, nem
tampouco na representação plana do Cubismo de Braque e
Picasso, pois, embora utilizando-se de uma multiplicidade de
pontos de vista (como o Cubismo), eles eram de uma total
incoerência conduzindo a uma impossibilidade espacial, a uma
representação da realidade em que bom senso e lógica estão
totalmente afastados. Esses trabalhos de De Chirico causam-
nos mal-estar não apenas em função de suas figuras grotescas,
de sua incoerência temporal ou da ilogicidade de seus temas,
mas sobretudo pelo distanciamento espacial a que eles nos
remetem, pela total falta de correlação entre o espaço
vivenciado por nós e o espaço da imagem representada; aí,
literalmente, perdemos a noção do espaço.
A transgressão do espaço
A fotografia, conforme apontamos, não se absteve, da
mesma forma, de subverter o espaço plástico arbitrado pelos
métodos renascentistas, muito embora – e talvez sobretudo por
isso – o seu meio de representação seja todo construído em
conformidade com tais teorias. A câmara fotográfica
proporciona uma visão que, na realidade, não corresponde à
visão normal do homem, visto que ele se utiliza de um ponto
de vista único, monocular, em função de uma objetiva única
que nos seleciona um recorte (retangular ou quadrado) a
partir de um padrão ortogonal, forjado pelo dispositivo que
chamamos de “janela”.
Esse espaço, que é provido pelo próprio meio de
representação fotográfica, passou a ter intensas
transgressões no fluxo das experimentações do Movimento
Surrealista.
O close constituiu-se numa das formas de desarticulação
do espaço perspectivo. A visão habitual do homem, que era
global e distanciada, de maneira a corresponder ao modelo
imposto desde o Renascimento, encontra o seu contraponto no
c l o s e . Primeiramente porque o c l o s e ao compreender
essencialmente um fragmento de algo, exige uma maior
atividade do olhar, induz a uma maior participação do
espectador no desvendar dos detalhes. O close , por isso,
demanda um maior aprofundamento e portanto uma maior
aproximação em relação à obra. No entanto, essa aproximação é
muito mais sensitiva, está muito mais relacionada a um
aspecto intuitivo de identificação com as demandas internas
do observador, ávido por estabelecer relações que o coloquem
em harmonia com o mundo, do que uma aproximação de fato
especial. Muito pelo contrário, o close nos traz um brutal
afastamento de nossa realidade espacial, aliás, ele só
permite a aproximação da instância inconsciente por afastar-
nos de nossa realidade cotidiana.
Uma imagem em close retira a noção de representação
tridimensional do objeto na superfície plana do suporte
(papel, tela, madeira, pano etc.), pois as linhas de fuga e
todo o sistema da geometria linear perspectivada são
eliminados. O close aproxima-se mais da representação
espacial planar do Cubismo do que da perspectiva
renascentista, pois a imagem em close realiza um fechamento
do plano no suporte, afastando assim a noção da
tridimensionalidade à qual nos acostumamos a ver representada
no plano.
Alguns fotógrafos ligados ao Movimento Surrealista
utilizaram-se do close em diversas ocasiões, na intenção de
propiciar uma relação diferenciada do homem com o mundo,
exatamente pelo fato de a imagem em close possibilitar um
afastamento da realidade espacial habitual. Afinal, quando,
frente a uma imagem, não encontramos correspondência com o
nosso próprio sistema espacial, quando somos privados do
nosso reconhecimento topológico no mundo, instala-se uma
verdadeira ausência da realidade racional, com a conseqüente
predisposição à aceitação de um novo referente, de uma nova
realidade, cujas relações se dão de forma mais intensa, mais
profunda.
Uma referência significativa com relação a esse tipo de
imagem é uma foto de Paul Strand (1890-1976) “Wire Wheel”
(N.Y. 1918) (figura 6), na qual ele apresenta um c l o s e
lateral de um carro. Ali, nossas referências habituais de
espaço perdem força em face do comprometimento de todo o
modelo de representação perspectivado; não há mais o
distanciamento que nos possibilite fazer desse suporte, que é
o papel fotográfico em si, uma “janela”, a típica
representação ilusória tridimensional do mundo. A relação com
essa imagem é participativa, o constante movimento dos olhos
é reflexo da dinâmica, do estado interativo sujeito/ imagem,
já que, para compreendermos e, verdadeiramente, sentirmos o
que essa imagem pode nos dar, é necessário percorrermos um
caminho dentro da foto, como se estivéssemos fechando a grade
do plano, que, interessantemente, pode ser, explicitamente,
vivenciado através dos raios da roda do carro. Assim, toda a
nossa placidez contemplativa habitual, validada pela total
correspondência entre a nossa tridimensionalidade no mundo e
a tridimensionalidade de uma imagem, é abalada, e em função
desse distanciamento do espaço racional criado é que se
efetiva a maior inter-relação com a imagem; é a procura de
uma nova realidade interna, em detrimento de uma outra
realidade já desgastada.
A grande angular
Um outro aspecto que nos remete a um distanciamento do
nosso espaço cotidiano e que se caracteriza como um dado de
surrealidade tipicamente fotográfica é a distorção pela lente
grande angular. Por possuir uma grande profundidade de campo,
a grande angular aproxima e aumenta o primeiro plano,
afastando os planos posteriores para o infinito. Dessa forma,
ao mesmo tempo em que ela, por esse motivo, reforça o sistema
de representação tridimensional, as linhas verticais são
distorcidas em direção ao espectador, para o centro da foto.
Uma imagem concebida por uma lente grande angular transgride
a visão normal que temos do mundo e, por isso mesmo, nos
atenta para o fato de que essa dita “visão normal” nada mais
é do que um modelo inventado, arbitrado, e que não
corresponde, em hipótese alguma, à única e inquestionável
visão do mundo. Há, de fato, uma resistência à aceitação de
uma imagem feita por uma lente grande angular porque ela
desarticula, na verdade, as leis convencionais de ortometria
a que nos habituamos, causando-nos uma certa sensação de mal-
estar ao percebermos algo fora do lugar, pois outras
instâncias sensitivas do nosso organismo são acionadas, além
da realidade racional. É interessante observar que com a
grande angular é como se o próprio meio se auto-adulterasse,
já que o seu sistema (o da grande angular) forja todo o
padrão de construção do aparato fotográfico, calcado nos
modelos rígidos da ótica e da mecânica, dispostos a
proporcionar uma visão a mais harmônica possível à nossa
visão dita normal.
O ângulo superior
O espaço é igualmente sentido de forma libertária frente
a uma composição realizada a partir de um ponto de vista
superior, aéreo ou mesmo antiaéreo (da terra, fotografar algo
no espaço). Rodchenko (1891-1956), Moholy-Nagy, Kertész
(1894-1985) e vários outros fotógrafos ligados ao Movimento
Surrealista construíram boa parte de suas obras
experimentando as contracomposições oblíquas, ou seja,
tirando fotos de um ângulo superior em diagonal. Não foi
gratuitamente que esses artistas ativeram-se de forma tão
profunda a esse tipo de pesquisa. A composição oblíqua
superior marca acentuadamente a dinâmica, o movimento. A
dinâmica tratada aí, no entanto, não intenciona de forma
alguma passar a idéia de deslocamentos rápidos, de mostrar
que as coisas apresentadas estão de fato se movendo, até
porque esse tipo de sensação poderia ser dada utilizando-se o
recurso das velocidades ultrabaixas do obturador da câmara,
onde as imagens apareceriam em “ f l o u ” , borradas, sem
definição clara. A dinâmica, nesse caso, está mais na
sensação de quem vê tais imagens. Na foto “Boats In The Old
Port Of Marseilles” (1929) (figura 7) de Moholy-Nagy, por
exemplo, todos os barcos estão completamente parados, mas
devido ao ângulo de onde a foto foi tirada, temos a nítida
sensação de que os barcos estão se movendo e de que vão
escorrer pelas bordas do papel fotográfico. Neste caso,
Moholy-Nagy acentua ainda mais esse tipo de sensação, quando,
ao utilizar-se do sangramento da imagem (vazamento dos
objetos representados pelos quatro cantos do papel), nos
coloca como se estivéssemos realmente dentro do espaço
representado, como se fôssemos parte ativa do acontecimento,
recurso este já bastante utilizado por Degas exatamente com o
mesmo intuito, conforme vimos anteriormente.
À parte essa primeira interação com a imagem sugerida
pelo sangramento, há uma natural dinâmica interna do
observador, por ele perder os seus pontos fixos de referência
habituais de espaço dentro da foto. Afinal, a tomada de
ângulo da foto proporciona uma imagem cujo espaço não
corresponde efetivamente ao nosso espaço ortogonal em relação
à horizontalidade do solo. A instabilidade criada é a mesma
que se estivéssemos dentro de um desses ba r cós, flutuando
sobre as águas, vivenciando diferentes pontos de referência
espacial a cada movimento provocado pelas águas, criando
nossa própria noção de espaço a partir de cada deslocamento
do barco, em total oposição à noção pré-fixada de espaço por
teorias e regras matemáticas que tentam generalizar a
sensação de espaço e, conseqüentemente, padronizar o
comportamento humano. A mobilidade dessa foto é gerada,
portanto, muito mais em função de uma desarticulação espacial
do que pela própria representação do objeto fotografado. As
suas linhas de composição são linhas oblíquas, transversais,
que cortam toda a imagem numa composição de espaço
tipicamente barroca, na qual as diagonais cortavam toda a
superfície na intenção da instabilidade, do movimento, da
exacerbação pela desordem, em oposição à serenidade,
intelectualidade e estabilidade renascentistas.
A desordem barroca, sugerida pelas diagonais, encontra o
Surrealismo, até mesmo confirmando que as desarticulações
espaciais, a procura de uma nova vivência espacial, deferente
da nossa noção de espaço racional, é inerente a todo ser
humano, em qualquer época que ele viva. Seja nas formas
dinâmicas e sensuais de um Bernini, nas composições
tumultuadas e dramáticas de um Tintoretto ou nas
contracomposições oblíquas de Rodchenko ou Moholy-Nagy, o
homem está sempre buscando novas realidades, distantes da sua
postura fixa, arraigada à terra.
A fotografia aérea e antiaérea
A fotografia aérea propriamente dita já coloca uma outra
questão, extremamente moderna, por vir de encontro às
discussões e pesquisas que estavam sendo realizadas nas artes
plásticas com relação ao plano da tela. Não vamos, aqui, nos
ater às fotografias aéreas feitas por Nadar (1820-1910) no
final do século XIX, que compreendiam aspectos mais
intuitivos do que experimentais, mas sim àquelas vinculadas
às investigações do espaço na composição.
Toda a representação tridimensional, marcada pela
orientação do horizonte, onde os planos superpostos e
separados dão a noção de profundidade e todas as coisas podem
ser perfeitamente localizadas dentro de um espaço
compreendendo comprimento, altura e largura, fica
comprometida frente a uma fotografia aérea. Nesse tipo de
foto (insisto em que estamos tratando das vistas aéreas
tiradas de avião) chega-se, efetivamente, ao plano total,
assim como Picasso chegava ao plano por meio de suas
pesquisas cubistas. Isso altera completamente a nossa
percepção de espaço e, conseqüentemente, a nossa relação com
o mundo, até porque o espaço plano de uma fotografia aérea
demanda uma decodificação, uma interpretação, já que o
côncavo e o convexo, as saliências e as reentrâncias não são
perceptíveis, tudo pertence ao mesmo plano de maneira
alternada, e a representação figurativa da realidade não
encontra ressonância em nossa maneira habitual de
visualização. Essa abstração, esse distanciamento de nossa
realidade racional é ainda realçado pela perda do referencial
fixo a que estamos subjugados por não estarmos presos à terra
firme.
A fotografia aérea, por ter a sua origem em um ponto de
vista especial, implica uma total liberdade, autonomia e,
principalmente, mobilidade na maneira de observá-la. O seu
flutuar no espaço exige, para que dela nos aproximemos, o
mesmo tipo de sentimento, pois a possibilidade de interação
com a imagem estará condicionada ao nosso desprendimento de
toda a ortogonalidade clássica, rígida, a que estamos
acostumados, para que possamos, da mesma forma, experimentar
uma realidade autônoma, livre, regida única e exclusivamente
pelas instâncias inconscientes.
O mesmo tipo de analogia pode ser feita ao se fotografar
do solo o espaço aéreo, alterando-se apenas o referencial de
partida. Stieglitz (1864-1946) foi quem, com maior
profundidade, se dedicou a esse estudo, ao ficar anos a fio
fotografando nuvens, cujas fotografias denominou
“Equivalências”. Muitos foram os autores que se debruçaram
exaustivamente sobre as “Equivalências” de Stieglitz, razão
pela qual me permito ser breve quanto ao comentário relativo
à obra do referido fotógrafo.
Para mim, o que há de fundamental no que diz respeito,
especificamente, ao assunto aqui tratado, por compreender o
dado efetivamente surreal nas “Equivalências”, é o fato de
Stieglitz estabelecer, através dessas imagens, um corte
radical na concepção das relações correspondentes entre o
espaço representado pela imagem fotográfica e o nosso espaço
topológico no mundo. As fotografias de nuvens, por não
possuírem qualquer orientação ortogonal, por apresentarem
total e completa autonomia espacial, não nos deixam o mínimo
vestígio referencial que leve a uma relação com o nosso
espaço habitual. Essas imagens comprovam, efetivamente, que
toda e qualquer tentativa no sentido de atrelar,
obrigatoriamente, a harmonia entre o espaço proporcionado
pela linguagem fotográfica e a nossa maneira de ver o mundo é
pura retórica, pois, afinal de contas, as “Equivalências” não
deixam de ser fotografias, sem, com isso, apresentarem
qualquer sinal ou traço de nossa espacialidade racional.
Sem dúvida alguma, essas imagens de nuvens
proporcionaram autonomia à linguagem fotográfica, não por
elas abandonarem o sistema figurativo de representação,
tampouco por elas deixarem de lado o modelo mimético de
reprodução da tridimensionalidade do mundo, mas
principalmente, e sobretudo, pela carga de sensações a que
somos remetidos quando com elas interagimos; aí tudo é
liberdade, independência, ausência de domínio sobre o espaço
vivenciado, sensações essas configuradas pela relação de
equilíbrio entre o inconsciente e uma nova realidade
diferente da que nos é dada a priori, o que nada mais é do
que a própria surrealidade.
VII – O DISTANCIAMENTO DA REALIDADE RACIONAL

O que torna a linguagem fotográfica um meio de expressão


essencialmente surrealista é a sua capacidade de proporcionar
imensos afastamentos da realidade do observador, nos mais
diferentes níveis. Seja no aspecto cultural, temporal,
estético, espacial, social, psicológico, seja em qualquer
outra instância em que se configure um distanciamento da
realidade vivida por uma pessoa, instala-se a surrealidade. O
excêntrico, o exótico, o grotesco, conforme vimos
anteriormente, se por um lado provoca repulsa, angústia,
aversão, por outro atrai, fascina, estimula, exatamente pelo
fato de sermos colocados frente ao desconhecido, a tudo
aquilo que não sabemos bem do que se trata, por nos faltar
dados suficientes de classificação. Podemos, então, formular
a equação: afastamento externo é inversamente proporcional a
aproximação interna, isto é, quanto mais distante da nossa
realidade racional (externa) estiver uma imagem, para mais
próximos da nossa realidade interna, sensitiva, inconsciente,
seremos remetidos e, conseqüentemente, maiores serão as
possibilidades de harmonia com o universo que nos cerca.
O aspecto psicológico
Neste momento, não poderíamos deixar de citar,
novamente, a obra de Diane Arbus, por ser praticamente toda
ela calcada em um afastamento que não se sabe, por certo, de
onde vem. Há sempre algo de velado em seus personagens, é
como se Arbus apontasse para alguma coisa que não se
encontra, efetivamente, no que se vê, ou seja, ela acaba
trabalhando mais profundamente com a virtualidade da imagem
e, por conseguinte, com o inconsciente do observador. Desse
modo, Arbus nos aterroriza, principalmente porque, com essa
atitude, nos coloca uma imensa responsabilidade diante de
cada imagem sua, uma vez que pede para vermos algo que, de
fato, não se encontra explícito. Então, somos obrigados a
formular toda uma compreensão subjetiva da imagem, somos
levados a refazer todo o percurso elaborado pelo autor e,
diante de tal participação, nos comprometemos com a imagem,
tornamo-nos cúmplices do ato realizado e, portanto, co-
autores da obra.
Convenhamos que o sentimento de co-autoria em uma imagem
de Arbus traz, no mínimo, fortes arrepios. Mas por que isso?
O fato é que as suas fotografias sugerem, de uma maneira ou
de outra, imagens carregadas de angústia, mesmo que o assunto
não implique necessariamente tal sentimento. A vivência que
temos quando Diane Arbus nos apresenta uma fotografia de uma
criança chorando, de uma família reunida em pleno lazer de
domingo ou de uma mulher comum porto-riquenha é a mesma que
experimentamos quando estamos frente a suas fotografias
realmente grotescas, como as dos decadentes travestis, das
figuras circenses, da Albina engolidora de espadas, do
hermafrodita ou de quaisquer outras figuras excêntricas. O
que permeia todas elas é o distanciamento que sentimos, e
isso se dá porque nas suas imagens há sempre a lembrança da
anomalia, da doença mental, qualquer que seja o tema, o que
nos remete, conseqüentemente, ao afastamento, ao
distanciamento psicológico, por isso é tão aterrorizador.
Vivemos, de imediato, uma dissociação entre o nosso mundo
racional, ordenado, filtrado por regras, e por isso dentro de
todo um limite bastante previsível, e o mundo desses loucos,
doentes mentais, atravessado pela fantasia e inconseqüência.
O que se passa é que esses personagens, em função de
suas anomalias mentais, ou mesmo devido às suas próprias
características de exotismo e excentricidade, não estão a
sofrer, a dor não lhes pertence, mas está dentro de nós,
observadores “normais”. Somos nós que, talvez por um processo
de transferência, por sentirmos, de uma certa forma,
responsabilidade por tais danos, colocamos a dor, a
infelicidade nessas pessoas. E a partir do momento em que as
fazemos infelizes (já que elas não possuem, de fato, a
consciência do estado em que se encontram), somos tomados
pelo sentimento gerador da culpa, da angústia, do medo e,
conseqüentemente, do afastamento.
As fotografias de Arbus, assim, não permitem que o
espectador se afaste do tema fotografado, justamente por
estarem alicerçadas nos distanciamentos psicológicos entre o
universo vivido pelo sujeito fotografado e aquele vivido pelo
observador, pois é em função desse distanciamento que o
observador é colocado frente a sua própria realidade interna,
que se torna isenta de todos os controles racionais, e, por
isso mesmo, carregada de tamanha mobilização; é o encontro
com o desconhecido, com o inconsciente.
Ao longo de tudo o que temos visto até aqui, podemos
observar que a surrealidade em fotografia, o alcance de uma
realidade mais intensa, próxima das nossas sensações mais
profundas e, por isso, mais verdadeiras, não está única e
exclusivamente relacionada ao Movimento Surrealista em si,
mas sim constitui-se como característica inerente à própria
fotografia. A linguagem fotográfica por si só já guarda a
qualidade surrealista de reter atemporalmente todo seu
afastamento da realidade racional, independente de qualquer
engajamento ou intenção.
O aspecto cultural
Diante de tal articulação, encontramos August Sander
(1876-1964), que, embora tenha-se constituído como um
fotógrafo extremamente eclético (sua obra apresenta uma
variedade imensa de diferentes temas), marcou a sua presença
de forma definitiva na história ao realizar o seu projeto que
foi um verdadeiro inventário do povo alemão. Sander efetivou
uma varredura em praticamente todo tipo de profissão e classe
social de forma imparcial, através de um olhar neutro (em
oposição a Diane Arbus). O que importava era a tipologia, o
que cada uma dessas pessoas representava na sociedade. Todos,
independentes da sua posição social, recebem o mesmo tipo de
tratamento por parte do autor, que afirmou: “Não é minha
intenção nem criticar, nem descrever estas pessoas.”
Por trás deste discurso frio, distante e racional, no
entanto, um universo permeado por incógnitas, estranhezas,
exotismos e tudo o que há de mais intrigante se descortina à
nossa frente. Sander lançou mão do mais puro padrão
convencional, tanto formal quanto temático, para justamente
desarticular o que estava por trás disso tudo. Não era sua
proposta discutir o espaço plástico em si, assim como não era
a dos artistas surrealistas. Utilizou-se ortodoxamente de
toda a estrutura ortogonal construída em torno do aparato
fotográfico – afastamento dos planos, típico da relação
figura/ fundo em que o centro de atenção da cena destacava-se
claramente dos planos secundários; ratificação da
representação mimética tridimensional do mundo na
bidimensionalidade do papel (característica do ponto de vista
único e fixo); composição equilibrada, tudo isso disposto em
torno do assunto, da mesma forma, de extremo convencionalismo
da linguagem fotográfica – o retrato. Os retratos de Sander,
no entanto, não permaneceram para a história, não
atravessaram gerações devido a suas belas composições. Há
algo de inquieto flutuando sobre seus personagens, algo de
indefinido, de que só nos damos conta após uma imersão na
imagem. (Os retratos de Sander, de uma certa forma,
desmobilizam a retórica criada em torno da instantaneidade da
fotografia, em que o instantâneo é substituído pelo
simultâneo, pois assim como um quadro de Miró, que, a
princípio, se dá de forma totalizante, eles exigem um certo
tempo, demandam que percorramos os seus meandros, que
viajemos sobre a sua surrealidade para irmos além da
visualidade explícita.)
Sander, em sua fase dos retratos, realiza um verdadeiro
contraponto com o método paranóico-crítico de Salvador Dalí,
já que, enquanto este descobre novos significados no
irracional, fazendo com que o mundo do delírio passe ao plano
real, aquele parte de uma realidade o mais convencional
possível ao alcance do delírio imagético.
Dentre as suas composições durante esse período, “The
Wife of the Painter Peter Abeleen” (1926) (figura 8) não
poderia deixar de ser mencionada. Aí percebemos a
transcendência de que estamos falando. Ao olharmos essa foto
sem lermos seu título, não encontraremos indícios suficientes
que nos garantam tratar-se de um homem ou de uma mulher, nem
tampouco caracteriza-se um homossexual; tudo é incógnito, é
velação, não apenas observado nos trajes ou no penteado do
personagem, mas, sobretudo, na sua postura, em que a maneira
típica masculina do cigarro pendurado na boca é contraposta
ao seu olhar, que, direto e fixo sobre nós, parece questionar
o modelo de classificação, identificação e definição adotado
em relação aos seres humanos. Em contrapartida, isentos de
qualquer referencial que nos situe dentro desses padrões já
predeterminados, somos exigidos a buscar, dentro de nossas
próprias experiências e vivências, dados de reconhecimento,
que só terão sentido em sua instância à parte da realidade
racional, em que conceitos, dogmas, ou qualquer tipo de
doutrina moralizante ou de conduta não estão presentes, pois
elementos relacionados a instâncias inconscientes, fora de
nosso controle, pertencentes a uma supra-realidade estão
sendo acionados. Essa mobilização interna, que nos afasta do
estado letárgico em que freqüentemente nos encontramos e que
se constitui como o ponto de partida, vem a ser a questão
fundamental do Surrealismo, que, neste caso, apresenta-se a
reboque de um distanciamento caracteristicamente cultural,
mais do que propriamente psicológico, caso típico da obra de
Arbus.
Sander, de fato, navegou por mares cáusticos,
principalmente elevando em consideração que a sua fase dos
retratos se deu no período entre guerras, que foi marcado
pela exacerbação de um modelo de eficiência e moralidade
imposto pelo fascismo e pelo nazismo. Desse modo, Sander se
viu obrigado a abandonar o seu projeto e passar a fazer
fotografia de paisagens.
Toda essa qualidade meio dissimulada da obra de Sander,
na qual o que parece explícito e racional encontra-se apenas
a serviço de toda uma elaboração subjetiva, profunda e
inconsciente, encontra respaldo na sua própria filosofia de
trabalho, quando afirma que uma de suas maiores influências
coube a Kandinsky, nada menos do que o precursor da pintura
abstrata.
O aspecto social
O distanciamento cultural que aqui tentamos mostrar por
meio de especulações sobre a obra de Sander nada mais é do
que uma derivação do aspecto social, eminentemente
característico da fotografia. Desde a sua criação, a
fotografia circulou pelos meandros da sociedade, em especial
através do retrato, a ponte de ele tornar-se sinônimo de
fotografia, e a câmara, “máquina de tirar retrato”. Esse
veículo (o retrato) foi e é de extraordinária riqueza no
sentido de possibilitar a ampliação do (re)conhecimento das
diversas classes sociais, , suas inter-relações, conflitos e,
sobretudo, seus comportamentos. Se hoje temos, no Brasil, uma
iconografia profunda de nossa sociedade, devemos a todos
esses fotógrafos (além das entidades públicas e
colecionadores que possibilitam a continuidade de suas obras)
que se dedicaram ao retrato desde os primórdios até a
atualidade, refletindo toada a evolução do pensamento social,
passando pela nobreza do Império, pelos senhores de engenho,
políticos, intelectuais, comerciantes, escravos, camponeses
etc. O retrato nos dá evidências não apenas dos tipos físicos
que compõem a sociedade, mas também de sua ambientação, modo
de trajar, de calçar, de pentear.
Independentemente da época em que é realizado, seja em
sua fase daguerreotípica, seja atualmente, o retrato nos dá
pistas, nos aponta de uma maneira sutil para o confronto com
a nossa própria realidade. Para a classe média, por exemplo
(a grande consumidora da fotografia), a nobreza possui um
caráter tão intrigante quanto a pobreza, pois o que entra em
jogo, nesse caso, é o distanciamento imposto pelas classes
sociais, o que na realidade constitui-se como fato
(meramente) relativo, já que o que para determinado grupo de
pessoas pode parecer estranho, não necessariamente o é para
um outro. O retrato tem sido sempre o grande catalisador
dessas discussões.
Se tomarmos como exemplo os primeiros retratos em
daguerreótipos no Brasil (placas de cobre banhadas com prata
e polidas em seguida), ali está estampada,
representativamente, a burguesia emergente de meados do
século passado, que, na realidade, se aproveitou de tal
processo para perpetuar-se na história, da mesma forma que os
nobres o conseguiram, só que através dos célebres pintores.
Uma vez que almejavam alcançar o mesmo status da nobreza, os
burgueses chegavam a limites excessivos de sofisticação e
opulência na realização dos daguerreótipos, não apenas nos
trajes e ambientação como também nas suas próprias confecções
e acabamentos. Era comum os daguerreótipos virem dentro de
estojos luxuosos, feitos em madeira, revestido de couro, com
forros de veludo, molduras douradas, placas com aplicações
douradas, tudo isso envolvendo retratos de personagens dentro
de suas mais rebuscadas roupagens e ambientação.
Abstraindo-se da distância temporal (a qual trataremos
adiante), um cidadão comum, sem acesso a tais meios, frente a
imagens de tamanha sofisticação, sentiria-se tão deslocado
quanto se estivesse diante da mais parca pobreza ou mesmo
diante dos escravos fotografados por Marc Ferrez (1843-1923)
ou dos camponeses de Walker Evans (1903-1975), pois o que
importa, aí, é a distância social entre o sujeito que observa
e o sujeito fotografado, e essa distância é que confere todo
o caráter de surrealidade da imagem. Certamente para a classe
média do nosso século assistir ao casamento da princesa Diana
com o príncipe Charles, em toda a sua opulência, foi tão
surreal quanto observar a pobreza existente nas ruas das
grandes cidades. O que marca, o que caracteriza todo esse
tipo de situação é a distância, sempre a distância...
Uma imagem que me parece colocar de uma só vez essa
questão é a fotografia “A Rainha Vitória”, de 1863 (figura
9), tirada por G.W.Wilson (1823-1893). Lá está a rainha
Vitória sobre o seu cavalo, como que guardada dentro do seu
manto, invocando extrema austeridade (aqui não há qualquer
sugestão de opulência ou sofisticação). Há, no chão, ao lado
do cavalo, um cavalariço ou criado, que imagina-se escocês
por estar vestindo um kilt . Frente a frente, em um mesmo
espaço (fotográfico), encontram-se o dominador e o dominado,
o que seria para a sociedade britânica o representante máximo
de tudo o que determina e impõe ao lado do que acata e serve.
A distância existente na composição da fotografia entre
o criado e sua majestade demonstra radicalmente a que classe
cada um pertence: o criado no chão, próximo ao animal,
distante da nobreza (a rainha). Tanto para um quanto para
outro, por mais conveniente que seja a circunstancialidade da
situação em que se encontram (querendo ou não, há dependência
mútua entre ambos), há uma imensa carga de surrealidade,
marcada pela diferença social. Ambos, embora pertencentes a
um espaço comum, não fazem a menor menção de interlocução, de
comunicação entre si, caracterizando o absurdo das relações
humanas, o surrealismo que permeia a convivência entre os
indivíduos, sobretudo quando salientado por fatores externos,
que, no caso, é a distância social. Por este aspecto, a
fotografia da rainha Vitória, de G.W.Wilson, encontra boa
parte da obra de Seurat, calcada justamente no disparate da
convivência humana, que, na realidade, serviu como um dos
pontos de partida para o Movimento Surrealista.
O aspecto temporal
Lidar com distanciamento, afastamento, diferenças, em
fotografia é, antes de qualquer coisa, lidar com o mistério
da temporalidade implicada em sua linguagem. Nenhuma análise
relacionada à fotografia alcança tamanha complexidade se não
for comparada a sua questão temporal. Se o estudo do tempo
tem sido palco de profundas e infinitas discussões por toda
intelectualidade (filósofos, artistas plásticos, matemáticos,
físicos, astrônomos etc.) desde os primórdios das
civilizações, a fotografia veio fertilizar ainda mais esse
solo já tão profícuo a tais questionamentos.
Por séculos a fio, tempo e espaço conviveram como
entidades antagônicas, contraditórias e independentes uma da
outra. Na realidade, somente no século XX com os
relativistas, principalmente através da Teoria da
Relatividade de Einstein, é que espaço e tempo passaram a
fazer parte de um mesmo universo, passaram a ser enxergados
como um conjunto unívoco.
Antes, porém, de focarmos objetivamente o surrealismo
temporal que permeia a fotografia, seria interessante a
deambulação por algumas fases de determinadas sociedades cujo
binômio espaço-tempo tenha sido, em algum nível, discutido de
forma mais direta. A minha intenção, neste momento, é
revisitar a maneira pela qual algumas sociedades vivenciaram
a questão temporal sob a ótica das artes plásticas,
acreditando na possibilidade de uma maior estrutura para o
entendimento e aprofundamento dessa discussão no âmbito da
fotografia.
Qualquer experiência estética está atrelada, de um
amaneira ou de outra, ao tempo. Por mais que se queira
atribuir uma instantaneidade, um imediatismo de visão em
relação a uma imagem, a sua apreensão só se dará numa
dimensão temporal, pois é impossível absorver algo de
representação plástica como uma olhada instantânea (supondo-
se esta possibilidade real).
Quando se diz, por exemplo, que um quadro de Miró se dá
de forma imediata, como um todo, sem dúvida alguma se está
lançando mão de uma retórica para o melhor entendimento do
trabalho, pois no exato momento em que o visualizamos, uma
série de associações ligadas a nossa experiência começa a se
delinear, instalando-se aí, obviamente, o fenômeno temporal.
Cézanne, da mesma forma, estabelece em seus quadros uma
relação temporal extremamente interessante: quando tudo
parece dado num único instante, captado como um todo imediato
em uma primeira olhada, como o decorrer do tempo, após várias
outras visadas, passamos a perceber em seus trabalhos que
tudo está em ebulição, que todos os objetos relacionam-se uns
com os outros, ocasionando tensão e dinâmica, a ponte de
termos a sensação de que tudo pode despencar se tirarmos algo
de seu lugar. Não é necessário, portanto, que se estabeleça
uma seqüência de imagens para que haja a configuração do
tempo; não há imagem fixa – por mais que a sua figuração o
seja, a sua percepção é dinâmica.
Quando nos postamos diante de uma imagem, os nossos
olhos varrem o espaço de representação e, mesmo quando somos
atraídos a uma parte específica do todo e ali permanecemos
fixos, a dinâmica não cessa. O nosso espírito e o nosso
cérebro não param de estabelecer associações e diferenciações
com todo um arsenal de conhecimentos acumulados, pois cada
elemento da representação, por mais isolado que possa
parecer, adquire sentido em quem o vê quando, internamente,
articula-se a integração entre as partes e quando o
relacionamos às nossas próprias vivências adquiridas. Por
isso a visão é sempre ativa, o espírito nunca permanecendo em
total passividade (a não ser na escuridão total da
imobilidade da morte), pois a percepção só existe atrelada à
dinâmica, à mobilidade, compreendida numa dimensão temporal,
já que o encadeamento de fatos, idéias e elementos sucessivos
só se dá no tempo.
Na realidade, a apreensão temporal de uma obra é questão
de referencial, é função dos parâmetros internos de cada
pessoa. E é por isso que temos tanta dificuldade em
reconhecer algo que não apresente qualquer ligação com a
nossa própria cultura. Por isso nos sentimos muitas vezes
incapazes de analisar obras de outras civilizações, das quais
não temos conhecimento prévio. A temporalidade da visão só
faz sentido quando a integramos em um sistema coerente com o
nosso saber, com o nosso conhecimento prévio. Daí nasce a
impossibilidade de pessoas de civilizações e épocas
diferentes terem o mesmo comportamento analítico diante de
uma obra de arte. Quando a visão está incorporada em um
determinado tempo, a memória coletiva passa a fazer parte de
cada imagem, razão pela qual, por mais estranhas que possam
parecer as obras de arte atuais, elas estão em sintonia com o
momento psicológico da sociedade atual. O fato é que qualquer
imagem incorpora elementos retirados do real com elementos
retirados da experiência pessoal de cada indivíduo,
ratificando, assim, a proposição da impossibilidade de se
reter o conteúdo de uma imagem no real imediato. Assim,
enquanto o espaço é função da estrutura física de cada
objeto, o tempo depende do encadeamento de idéias dos
elementos compreendidos na memória, sendo, em última
instância, função direta da cultura de cada um. A elaboração
será tanto maior quanto maiores forem os recursos
cognoscíveis do espectador, mas sempre, por menores que sejam
as condições de articulação, ou mesmo por menos complexa que
seja uma imagem, o tempo estará presente. O nosso cérebro
permanece em constante atividade, assim como o universo em
constante movimento.
O fator cultural de cada época, portanto, determina, de
uma certa forma, o grau de complexidade nas articulações, ou
seja, a maior ou menor possibilidade de associações e
aprofundamento na leitura de uma imagem. A Idade Média, por
exemplo, vivia uma situação em que a sociedade estava
completamente subjugada ao poder divino, e por isso suas
aspirações iam aonde os dogmas da igreja permitiam. Qualquer
reflexão fora do âmbito eclesiástica era sumariamente
inaceitável. Diante dessa conjuntura, os temas para as
representações eram todos retirados da religião. O pouco
acesso que as pessoas tinham a algum tipo de imagem dava-se
através da observação dos retábulos e dos vitrais das
igrejas, os quais compreendiam cenas de ensinamentos
sagrados, constituindo um universo de reflexão e
questionamento extremamente restrito. Por mais que o grau de
complexidade nas elaborações e análises das imagens fosse
incomparavelmente menor do que o que temos hoje, ou seja, por
mais familiar e mais diretas que fossem as referências, a
temporalidade, no entanto, sempre aparecia impregnando,
fazendo parte da captação de cada imagem.
O confronto espaço x tempo
O inter-relacionamento, a interdependência entre tempo e
espaço é inerente a qualquer imagem, assim como a combinação
entre o tempo individual do autor, o tempo relativo às
articulações dos elementos culturais e da experiência
(vivência) do espectador e o tempo referente à memória
coletiva do meio quando da observação da imagem, não havendo,
assim, a possibilidade da apreensão instantânea, imediata, de
uma obra de arte.
Embora o espaço compreenda convergência, unificação,
concentração (já que implica localização) e o tempo pertença
ao universo da divergência, da dispersão, da distribuição
(por implicar desenvolvimento entre passado, presente e
futuro, por compreender memória), o binômio espaço-tempo não
pode ser visto como uma dicotomia, e sim como uma unidade
constituída de entidades recíprocas, uma atuando com a outra,
pensamento este em total oposição aos princípios newtonianos
sobre espaço e tempo que vigoraram por séculos e que
encontram respaldo nas criações artísticas. Segundo Newton,
“o espaço é essencialmente um recipiente absoluto,
independente, infinito, tridimensional, eternamente fixo e
uniforme, dentro do qual Deus depositou o universo material
no momento da criação. O tempo é estrutura absoluta,
independente, infinita, unidimensional, fixa e uniforme.”

Para Newton, portanto, espaço e tempo são quantidades em


si mesmas, possuindo existências independentes, não
relacionais e que compreendidas de propriedades invariáveis e
absolutas. Estes “principia” de Newton só passaram a cair por
terra quando os relativistas começaram a criar modelos e
teorias apontando para um continuum de pontos de espaço-
tempo. Para os relativistas,
“não se pode mais identificar uma porção única de tempo que
represente todo o universo num instante e à qual todos os
eventos próximos e distantes possam ser referidos (...) a
única idéia de movimento com sentido é a de movimento
relativo a outros objetos materiais (...) o espaço-tempo
abandona a noção de se estar no mesmo lugar em momentos
diferentes, deixando a noção de estrutura geral rígida no
sentido newtoniano.”

A Teoria da Relatividade de Einstein, ao questionar o


tempo e o espaço, passou a alterar as relações do universo,
desdobrando-se nas artes plásticas.
O percurso espaço-tempo nas artes
Um longo caminho teve de ser percorrido pelos teóricos e
artistas plásticos até que se chegasse aos níveis de
questionamento sobre tempo e espaço que vemos atualmente.
A arte bizantina29 assentava-se de forma extremamente
rígida sobre o dogma cristão. O segmento mais poderoso da
sociedade bizantina (em oposição aos iconoclastas) tentava
sustentar-se no poder através do mais extremado rigor
cristão. Para eles, as imagens eram verdadeiros ícones, razão
pela qual os artistas eram obrigados a fecharem-se em torno
dos temas sagrados. Não havia possibilidade de se aceitar uma
representação que guardasse qualquer semelhança com a ordem
natural, visto que o universo, para eles, nada mais era do
que a continuação, o desdobramento do pensamento de Deus. Não
poderia haver um espaço figurado, criado, se o universo como
um todo era uno, proveniente das leis divinas, nada existindo
além da essência de Deus.
No transcorrer da sociedade bizantina, já em finais da
Idade Média, o tempo e o espaço passaram a ter uma nova
configuração, principalmente através das experiências de
Giotto.30 O dito sistema figurativo moderno passou a existir,
efetivamente, no decorrer dessa época, em que os artistas

29
Arte bizantina : oriunda da antiguidade helenística e
romana, foi essencialmente religiosa, utilizando-se muito dos
afrescos e dos mosaicos (igrejas de Ravena).
30
Giotto di Bondonne : pintor e arquiteto italiano (1266-
1337). Famoso pelos murais e afrescos, sua arte modificou
radicalmente toda a concepção da pintura ao passar a
representar as cenas sagradas como se elas estivessem
acontecendo diante dos nossos olhos, superando, assim, a
rigidez do espaço unitário da arte bizantina. Foi Giotto quem
redescobriu a arte de criar a ilusão de profundidade numa
superfície plana, relacionando o universo divino ao terreno.
passaram a representar signos, nos quais tempo e espaço
colocavam-se como valores ligados à vida terrena, comum da
sociedade, desligados de sua afeição direta à tradição
evangélica, em que os temas, ainda que vinculados à
religiosidade, aos santos, passavam a ser trazidos para um
nível da vida cotidiana, havendo, portanto, a dessacralização
da imagem, ou seja, a “modernização do sagrado”. O objetivo
da arte agora deixava de ser única e exclusivamente o de
servir aos ensinamentos da igreja, de cultuar só o que vem
das leis divinas, passando a uma preocupação voltada para os
valores do homem na terra.
Por constituir-se como passagem, como intensa transição,
é comum encontrar-se, em uma mesma representação dessa época,
referências a tempos e espaços diferentes. O tempo lendário e
o tempo contemporâneo, muitas vezes, misturaram-se em uma
mesma composição, havendo já aí a introdução de um tempo
relativo à memória, onde o que se vê é diferente do que se
sabe. Uma vez que a representação incorpora elementos da
experiência individual, do acontecimento cotidiano do mundo,
remeterá o espectador a efabulações e articulações ligadas ao
seu arsenal de conhecimento, à sua bagagem cultural,
refletindo, assim, em uma alteração na análise e na absorção
da obra de arte, pois que o tempo, agora, deixa de estar
atrelado exclusivamente a uma referência única, a da
eternidade celeste, para incorporar a experiência individual
do espectador.
Levando-se em conta essas articulações que acabamos de
ver, podemos observar que as representações na Idade Média,
em suas últimas fases, compreendem uma temporalidade mais
próxima da concepção relativista de Einstein do que da
absolutista de Newton, uma vez que o entendimento da obra de
arte passava a ser também função da vivência pessoal de cada
um, isto é, relativa a cada espectador.
Assim, as especulações góticas (plasticamente mais bem
representadas por Giotto) dentro do desenvolvimento de toda
uma mentalidade e cultura sociais da época, servirem de
estofo e de ponte para toda a experimentação renascentista.
Seria leviano pensar que Brunelleschi, dentro do seu gênio,
tenha descoberto uma fórmula matemática mágica capas de
alterar de uma hora para outra todo um sistema figurativo
para criar o que se chamou de Renascimento. Não há como
duvidar: no mundo, qualquer transformação, qualquer
desenvolvimento exige uma temporalidade em seu encalço.
A concepção renascentista, portanto, voltava-se, total e
completamente, para a racionalidade do mundo, em que o homem
passava a se colocar como o centro, “a medida de todas as
coisas”, Brunelleschi, Uccello, Donatello e vários outros
renascentistas aproveitaram-se das teorias da matemática e da
geometria desenvolvidas, principalmente, por Alberti e
Euclides, para formular um novo espaço figurativo, criando
assim um modelo estético que acabaria por revolucionar o
mundo da representação e, por que não dizer, alteraria por
completo as relações do homem com seu meio ambiente. O
sistema por eles idealizado, em oposição ao sistema de blocos
da Idade Média, baseava-se na perspectiva linear euclidiana,
na qual as imagens deveriam estar representadas como s e
estivessem dentro de um cubo aberto de um lado ( a chamada
“janela de Alberti”) e vistas a partir de uma visão
monocular, fixa, em que as leis da física e da ótica
prevaleceriam, de forma que qualquer objeto do universo
pudesse ser medido e localizado no espaço segundo uma mesma
escala, permitindo-lhes reduzir o universo da maneira
desejada. De posse de tão poderoso instrumento para a
representação exata do mundo exterior, em função de tamanho
investimento na representação espacial do mundo, o binômio
espaço-tempo deixa de existir como funções recíprocas,
surgindo, assim, a concepção do espaço unitário, homogêneo e
atemporal.
O Renascimento, assim, ao contrário do que vimos em
relação à Idade Média, por alijar a temporalidade do seu
sistema figurativo, dando total ênfase à representação
espacial, aproximou-se mais claramente daquilo que viria a
ser a teoria absolutista de Newton do que da relatividade
einsteiniana. O Renascimento criou a noção do espaço
absoluto, completamente mensurável, perspectivado, em
completa oposição à futura noção de relatividade do mundo, em
que tempo e espaço passariam a constituir um todo,
relacionar-se-iam entre si, enfim, o tempo constituindo-se
como a 4ª dimensão do espaço.
Tratar do tempo, em fotografia, é lidar diretamente com
o momento único em que o obturador [e acionado. Ao olharmos
de forma separada e específica o ato fotográfico em si, essa
fração de segundo que o acompanha, podemos dizer que, de
fato, há um corte na continuidade do tempo e que, por se
tratar de um tempo pontual, há separação, há abstração de
algo do mundo, em que, a princípio, pela imobilização de um
momento, toda a temporalidade encerrada parece estagnar-se
imediatamente, de uma vez por todas, como que jogada às
trevas e esquecida. A sensação que se tem diante do exato
momento em que é consumado o ato fotográfico não é, como
veremos adiante, a de ausência por se ter retirado algo de
algum lugar. A idéia de que o tempo da imagem fotografada se
interrompe quando ela é captada e fixada na superfície do
papel não se sustenta, pois a fotografia na pára aí. Muito
pelo contrário, aí tudo começa, todas as especulações e
vivências em torno de uma imagem fotográfica são feitas a
partir desse momento. A fragmentação temporal que a
fotografia instala, a instantaneidade e pontualidade do tempo
que seu processo compreende é, sem dúvida alguma, o traço
característico que a faz distinta de qualquer outra linguagem
artística. Esse “momento” único, entretanto, não seria mágico
se aí permanecesse, se aí se esgotasse.
A temporalidade instantânea, imediata, de que estamos
aqui tratando, foi sem dúvida um dos grandes catalisadores do
pensamento surrealista. Duchamp utilizou-se desse conceito
para conceber as suas obras revolucionárias no mundo das
artes plásticas, o qual se viu questionado em seu mais
profundo pilar, que era o fazer artístico, pois jamais se
conceberia a realização de uma obra de arte sem que houvesse
a intervenção direta, a participação efetiva do autor (que
compreende o tempo do fazer do artista). Duchamp, porém, como
num ato fotográfico, criou seus ready-mades, integrando-se na
concepção da temporalidade imediata. Selecionar um mictório e
elevá-lo imediatamente ao nível de um objeto de arte,
denominando-o “A Fonte” é afastar, por completo, a idéia do
fazer artístico, de toda a concepção processual que sempre
caracterizou uma obra de arte. O tempo de Duchamp, em seus
ready-mades , é muito mais fotográfico (Pompéia) do que
pictórico (Roma), pois através de um simples gesto seu, de
sua própria vontade e desejo, um objeto industrializado, já
pronto, passa imediatamente de um nível utilitário, prático,
ao status de objeto de arte. De modo a ratificar a filosofia
da temporalidade fotográfica de Marcel Duchamp, lembremos que
uma de suas obras mais fantásticas “O Grande Vidro”,
permaneceu em processo de concepção por quase 10 anos e só
foi dada como finalmente terminada quando, durante o seu
transporte, o vidro rachou.
Para Duchamp, o exato momento em que o vidro se quebrou
revestiu a obra de um mistério que ela não possuía, concedeu
à obra desdobramentos ainda não alcançados. Precisou o tempo
imediato (fotográfico), pontual, instantâneo, agir sobre a
obra para eternizá-la no próprio tempo. Assim, “O Grande
Vidro” de Duchamp torna-se a grande metáfora fotográfica,
pois o momento da quebra do vidro (o momento do ato
fotográfico, do acionamento do obturador) não faz com que ela
se esgote nesse instante, não destrói a obra, mas a
transporta para uma outra temporalidade, em que infindáveis
especulações se seguirão, e o tempo imediato, desamarrado,
passa a se articular com o tempo memorial.
Daí surge o grande mistério, a grande complexidade que
envolve a fotografia – o fato de ela compreender de uma só
vez presente, passado e futuro. Através de um corte no
presente, a fotografia perpetua para o futuro o que já se
tornou passado. Toda a perplexidade da fotografia converge
como que por inteiro para esse momento único em que se aperta
o obturador da câmara. Esse instante, particularmente, faz da
fotografia uma linguagem absolutamente diferenciada de todas
as outras, que compreendem um fazer contínuo. A pintura,
conforme vimos anteriormente, por mais que jogue com o fluxo
livre do inconsciente, com o imediatismo, é composta por
diversos momentos (em uma mesma obra), nos quais o autor,
pelo fato de lançar mão do pincel, espátulas, tinta e outros
materiais, já suscita uma temporalidade progressiva. A
fotografia, ao contrário, se dá toda de uma única vez, não há
recuo, não há vacilação, nem tampouco esboços, rascunhos,
retoques, a não ser no produto final. Uma vez apertado o
obturador, a imagem vista está, imediata e irremediavelmente,
inscrita nos grãos de prata da película; nada mais há que
fazer, tudo está inscrito para todo o sempre.
Sem dúvida alguma, nada acontece sem que o obturador
seja acionado, daí esse momento ser o mais crucial e, por
isso mesmo, o mais complexo da fotografia, pois tudo gira a
partir dessa fração de segundo.
A caça só morrerá após o gatilho da arma ser acionado
pelo caçador, mas, uma vez consumado o ato e uma vez morta, a
caça se desfaz no tempo, desaparece. A surrealidade temporal
fotográfica aparece justamente porque ela desfaz esse
processo, construindo o seu próprio modelo, pois o
acionamento do gatilho (obturador) provê a morte, que será
perpetuada no tempo. Em fotografia, a “caça”, após sua morte
(captada pelo ato fotográfico) pe embalsamada para sempre (no
que se refere ao tempo de sua duração, pois a fotografia não
se constitui como um objeto eterno em si). Ao adquirir o
caráter de permanência, de ser o seu próprio contínuo (por
fazer parte da história), transporta-se do tempo cronológico
a um tempo memorial afetivo.
O exato momento do acionamento do obturador retira o
sujeito do tempo para inseri-lo no seu próprio “tempo”, que
seguirá seu caminho como memória, vivificando a “morte”,
reanimando o que se tornou pedra. Pr isso, o mito da Górgona
Medusa vir sempre atrelada à metáfora da morte fotográfica.
Não é somente o fato de ela transformar em pedra todos os que
cruzam o seu olhar, levando-os à eterna imobilização, que a
faz próxima da fotografia; esse fato se dá, sobretudo, pela
petrificação ocorrer exatamente no momento em que sua cabeça
é decapitada, o que torna os seus poderes eternamente ativos.
Ou seja, a sua morte (por ter sido olhada) não a levou para o
reino das trevas, mas lhe possibilitou conservar os seus
poderes para sempre, perpetuando-os ativamente (aí é que vejo
sua estreita relação com a fotografia, por isso acho que a
câmara é a própria máscara de Gorgó, que petrifica, imobiliza
todos os que a olham, sem jogá-los no limbo do tempo, mas
transportando-os a um continuum memorial).
VIII – A TEMPORALIDADE FOTOGRÁFICA E A MORTE

Fotografar é testemunhar a mortalidade, é participar


ativamente da “inexorável dissolução do tempo”, é entrar em
confronto com a sua própria morte e com a do sujeito
fotografado. Apertar o obturador é lançar o dardo de Ártemis,
a deusa cretense. “Senhora dos Animais”, cujas flechas não só
abatem os animais, como, muitas vezes, atingem as mulheres,
dando-lhes morte súbita. Poe matar brusca e imediatamente,
sem que se perceba, as flechas de Ártemis são “doces” e a
morte que proporciona, uma “terna morte”; o simples toque no
obturador determina a mesma morte súbita provocada por
Ártemis, uma morte terna e doce.
Fotografar é a inserção imediata num tempo póstumo, pois
que é a travessia instantânea do sujeito que ali estava,
preso à sua temporalidade cronológica, ao sujeito-imagem
memória. A fotografia atua como uma “crônica de uma morte
anunciada” (conforme García Márquez) e, talvez, seja também
esse um dos determinantes para o mal-estar que a maioria das
pessoas sente ao saber-se sendo fotografada. O fantasma da
morte (mesmo que inconsciente) que ronda a fotografia (é mais
do que sabido que há inúmeras comunidades e sociedades que
não se deixam fotografar em hipótese alguma, por medo de
serem tiradas as suas vidas) nos coloca, de uma certa forma,
cara a cara com a nossa própria fragilidade com a nossa
vulnerabilidade de meros seres humanos à espera da nossa
irrefutável passagem, aqui não mais metafórica. É desse
grande mistério, aterrorizador pelo desconhecido, que nos
fala a fotografia; é como se ela, a cada momento, nos
lembrasse que também (como ela) somos nada mais do que
passagem. Deixar-se fotografar é, de alguma maneira, permitir
que seja realizado o ensaio da morte; é admitir que o momento
que estamos vivendo compreende não um todo-momento, mas
apenas parte de uma universalidade; é presentificar a nossa
ausência, nos fazendo ver o que há de unicamente implacável
em nossas vidas – a morte.
Quem sabe não seja talvez esse grande mistério vida/
morte que envolve o que está sub-repticiamente por trás da
fotografia, o seu determinante para que a sociedade
contemporânea, cada vez mais e mais, faça uso de sua
linguagem? A fotografia, para manter a vida, proporciona a
morte (seu grande paradoxo), e o sujeito, no afã desesperado
de manter-se vivo, sucumbe ao risco da imobilização na busca
da perpetuação de si, nem que seja através da sua imagem. A
perpetuação de que trata a linguagem fotográfica, porém, não
enseja o mesmo enfoque de eternidade absoluta, não compreende
o mesmo caráter de perenidade associado à psicologia das
sociedades mais antigas, cujas lembranças da vida eram
eternizadas através dos monumentos monolíticos, absolutos em
suas próprias concepções eternas e materiais, sem risco de se
perderem no tempo. A perenidade do monumento monolítico era a
certeza inquestionável da lembrança da vida.
A partir do momento em que a sociedade tomou
conhecimento da fotografia e passou a adotá-la como paradigma
de tudo o que pudesse remeter à lembrança, à memória, o seu
relacionamento coma morte deslocou-se da instância absoluta,
dogmática. A absorção da linguagem fotográfica trouxe à
sociedade moderna um maior sentido de transitoriedade, de
fugacidade, exatamente pelo fato de a fotografia também
participar direta e fisicamente da mortalidade. Não é apenas
por testemunhar o envelhecimento do sujeito fotografado que a
fotografia fala da morte. Também carrega dentro do seu
próprio meio a noção do perecimento, pois a própria imagem
impressa no papel é assolada pela ação do tempo, através da
luz, umidade, calor, etc., o que a faz deixar o sentido
absoluto, monolítico, do monumento, colocando-a no reino da
transitoriedade. A fotografia, assim, relativiza não apenas o
modo de olhar, como vimos anteriormente, mas também o tempo
(através da morte). Dessa forma, a psicologia da sociedade
moderna, ao incorporar a fotografia, despreza o monumento,
rechaça a perenidade, o tempo absoluto e imutável, optando
por uma forma fugaz de tratar a morte, daquilo que fica da
morte, relativizando a eternidade temporal.
Quando, anteriormente, falamos da inscrição perpétua da
imagem no papel fotográfico e de que ela estaria para sempre
imortalizando/ mortalizando o sujeito fotografado, apontamos,
da mesma forma, para o sentido “relativo” de “perpetuação” e
“eternidade” compreendidos na linguagem fotográfica. Afinal
de contas, o estado de desgaste a que chega a fotografia é
uma das características que a aproximam do gosto surrealista
e dadaísta. Por ter como objetivo central desmobilizar as
concepções morais da sociedade, as quais estavam atreladas a
toda uma tradição cultural do Ocidente, fincadas em
preconceitos, regras e doutrinas inquestionáveis e
preestabelecidas, é que os surrealistas e dadaístas passaram
a desmistificar todo o conceito de arte, e assim o fizeram
lançando mão de tudo o que poderia ir contra a tradição
artística. Começaram, assim, a trabalhar com materiais de uso
comum, de baixo valor, usados, principalmente, com refugos e
sucatas, extremo oposto aos materiais estereotipados das
academias de Belas Artes.
Nada mais apropriado, portanto, do que utilizar a
fotografia como meio de expressão composta por esses objetos
baratos, encontrados em qualquer canto, jogados em qualquer
gaveta, retirados de revistas e jornais, facilmente
reproduzíveis, carregando consigo fragmentos do mundo prestes
a seguirem juntos viagem rumo ao envelhecimento, tempo afora.
A fotografia, assim, já nasce com a marca surrealista
incorporada em si, que de latente passa a ser explicitamente
percebida no decorrer do tempo, pois se por um lado ela
envelhece a imagem captada, por outro, como objeto, sobre o
seu próprio processo de desgaste. Conseqüentemente, torna-se
inevitável o seu encontro com a surrealidade, visto que o
tempo, de uma maneira ou de outra, encarrega-se de afastá-la
de nossa realidade. Como objeto, há dois caminhos a seguir:
se o tempo a faz marginal pela sua própria decomposição,
tornando-a desprezível pela qualidade visual que apresenta,
fazendo dela um objeto obsoleto, de outra forma, cobre-a de
uma aura que jamais alcançara antes do envelhecimento. Nesse
caso, a surrealidade provém do fato de a fotografia acabar
tornando-se, por si própria, uma antiguidade, uma raridade,
uma relíquia mesmo, tamanha a distância que guarda do momento
de sua realização.
É interessante observar como a fotografia, com o passar
do tempo, vai adquirindo um certo status, prestígio e, até
mesmo, um respeito que antes não possuía. A viragem sépia
(amarronzada), bastante recorrente entre os fotógrafos,
pressupõe carregar precocemente a fotografia dessa aura que o
tempo lhe assegura. O tempo, aqui, aproxima a fotografia bem
mais da arquitetura do que da pintura: por menor que seja a
beleza estética das ruínas romanas, o tempo impregna cada uma
daquelas pedras com tamanha força emotiva, que os seus
desgastes não apenas as retiram de uma conceituação plástica
como lhes asseguram um peso e uma intensidade jamais provida
pelo novo. Assim também é a fotografia: o desbotamento, a
mancha, a sua degeneração enfim, lhe proporcionam uma beleza
intrínseca que se sobrepõe a qualquer análise estética, ao
contrário da pintura, que sempre carregou o conceito do belo
de forma explícita.
O fato é que o envelhecimento da fotografia traz consigo
o envelhecimento da própria realidade fotografada,
presentifica “os estragos do tempo”, comove pelo que já
passou. A fotografia age, portanto, como a efetiva premonição
do amanhã, o que, sem dúvida, lhe confere imensa mobilização.
Toda essa carga que envolve a fotografia vem a reboque do que
há de mais peculiar em sua linguagem e que a torna única: a
referência. Por pior que seja a imagem (fora de foco,
tremida, desbotada, mal iluminada), incorporada a ela está a
referência do sujeito (ele esteve lá, caso contrário não
teria havido fotografia). O sujeito transmuta, desloca-se de
sua própria realidade para a realidade do papel fotográfico,
e juntos seguem seu envelhecimento.
O desenho e a pintura, por mais perfeitos e fiéis que
sejam, não são o modelo, do qual são separados por um imenso
abismo. Por isso a questão temporal em fotografia apresenta
uma surrealidade bem mais profunda, o que significa, de fato,
sem rodeios, trazer o sujeito para envelhecer junto. Os
álbuns de família nada mais são do que bancos depositários do
tempo (leia-se aí tempo como momento) de vida de cada sujeito
fotografado. Esse fato faz, na realidade, com que fotografias
geralmente muito mal tiradas possuam um nível de mobilização
e envolvimento tão intenso. E cada vez que se revisitam tais
álbuns, o grau de surrealidade das fotos é maior. É a
distância temporal agindo sobre elas, que confere a tais
imagens tamanha força e violência, o que explica voltarmos de
forma recorrente a esses álbuns, na intenção de recuperarmos
o irrecuperável, de testemunharmos a nossa juventude, de
possuirmos uma realidade já inatingível.
O tempo acaba por revestir a fotografia não apenas do
sentido da lembrança do vivido, de todo o manancial emotivo
que ela evoca, mas também de uma excentricidade que a faz
extremamente intrigante, e a excentricidade será tanto maior
quanto mais distante no tempo, em relação a nossa realidade
atual, a imagem se apresentar. Os retratos fotográficos são
um grande exemplo dessa situação, uma vez que, mesmo sendo os
grandes representantes da tradição e da ortodoxia em
fotografia, mostram o tempo alterando de tal forma os hábitos
apresentados pelos modelos fotográficos – o vestuário, os
penteados, as suas posturas – que o exotismo com que os vemos
nos remete a uma surrealidade muito mais intensa do que
algumas das montagens fotográficas contemporâneas mais
inventivas.
O nosso interesse diante de uma fotografia antiga, o
poder de atração que ela exerce sobre nós está intimamente
relacionado a essa inexorável circunstância do tempo, que
tudo envelhece, afasta, atribuindo um caráter de mistério e
excentricidade ao passado, constituindo-se, por isso mesmo,
no termômetro do presente. Não é à toa que a fotografia causa
tão grande fascínio. Mesmo as mais recentes já estão
investidas de um passado irrecuperável, em desaparecimento, o
que nos faz sair em busca do que já foi e garimpar dentro da
imagem impressa o que gostaríamos que fosse o presente. O
sentido arqueológico, muitas vezes depositado no fotógrafo,
transporta-se para o observador, que, uma vez tocado pelo
interesse por uma imagem, realiza uma verdadeira incursão
fotográfica adentro. É de fato uma arqueologia contemporânea,
em que escava-se um passado quase presente, e a decalagem
temporal entre o presente e o passado, por menor que seja,
transforma, imediatamente, o momento em antiguidade, aqui
vivenciado como um resumo fragmentário e surrealístico do
mundo, pois que pertencente, então, ao excêntrico, ao
grotesco, ao exótico.
A característica arqueológica do observador diante de
uma fotografia pressupõe um sentido surrealista por se dar
não uma investigação dos vestígios de civilizações antigas,
mas por se vasculhar, “escavar” a própria civilização atual,
que , por um simples (porém irremediável) toque no obturador,
passa a representar uma “antiguidade instantânea”. Essa
arqueologia contemporânea, imediata, está em plana harmonia
com a filosofia da sociedade atual, que, na verdade, se
organiza e se concebe a partir de fragmentos de passados
recentes. Essa sociedade, que cada vez mais se forma a partir
do refugo, do descartável, do que já foi posto fora por ter-
se tornado velharia, é a sociedade da reciclagem. Toda essa
velharia a que me refiro, se pensarmos, compreende a própria
fotografia, pois, para a sociedade atual, o que aconteceu
ontem, ou , mais especificamente, há alguns décimos de
segundo (pelo obturador), já faz parte de um passado
arqueológico.

A surrealidade fotográfica em Magritte


Esse mergulho – a que chamei incursão – rumo ao mistério
de uma imagem fotográfica carrega a mesma vivência
estabelecida nas obras de Magritte. É, como já vimos, fazer
surgir o desconhecido do conhecido. O que há de surrealístico
impregnando o universo das obras de Magritte também permeia a
imagem fotográfica, porque as correlações se passam de forma
paralela. Magritte utiliza-se de situações e coisas
conhecidas, retiradas da própria realidade, mas envoltas em
uma atmosfera misteriosa, por possuírem identidades ocultas.
Penetrar em uma obra de Magritte é desvendar, pouco a pouco,
os véus do óbvio, para então embrenhar-se na floresta oculta,
onde a realidade explícita cede lugar a uma série de
articulações sucessivas do inconsciente, que, livre de toda e
qualquer regra pertencente à racionalidade, retira o modelo
(sujeito ou objeto representado) de sua banalidade, de sua
apreensão lógica. Esse processo faz surgir a verdadeira face
oculta do modelo, revelando o que os olhos da
superficialidade não podem alcançar.
As obras de Magritte nos transportam a sucessivas
viagens de idas e vindas, ao passarmos de uma realidade
racional, explícita, em que todos os elementos do quadro são
representados de maneira extremamente clara, dentro do mais
puro figurativismo, a uma outra realidade, em que esses
elementos juntos potencializam as realidades particulares
(explícitas) de cada um, fazendo surtir do banal, do trivial,
o novo, o maravilhoso. É uma verdadeira investida no que não
se conhece, no que, a princípio, não se vê; é partir do
concreto, do que já está preestabelecido e definido, de
antemão, em direção à real essência das coisas, ao que elas
não deixam transparecer de imediato.
Uma leitura mais atenta de uma fotografia não deixa de
constituir-se como uma operação magrittiana, talvez mesmo um
aprofundamento dessas qualidades, uma vez que ela lida direta
e implacavelmente com a realidade. Enquanto Magritte, através
da pintura, trabalha a representação, a interpretação de
aspectos da realidade, a fotografia parte sempre e
inexoravelmente da realidade existente, retomando, mais uma
vez, o fato de ela ser fundamentalmente referência da
realidade. Assim sendo, a grande “descoberta” de uma imagem
fotográfica passa sempre, primeiramente, pelo que é retirado
da realidade existente, pelo que é dado explicitamente, para,
aí sim, começarem as articulações e deambulações imagem
adentro (caso seja do desejo do observador).
Ao lermos uma fotografia (ou ao observarmos um quadro de
Magritte) acontece justamente isto, o ir e vir de uma
realidade a outra, até sabermos, ao certo, em qual delas nos
encontramos, pois estamos diante de três realidades e três
tempos diferentes de uma só vez: a nossa realidade em si, a
realidade imposta pelo fotógrafo – o que, em última
instância, é a realidade da própria imagem impressa – e a
realidade construída por nós, a partir das articulações
provenientes das duas primeiras, o que faz com que cada
fotografia estabeleça com o observador uma ligação tão
misteriosa. O tempo participa também de forma contundente
nesse mistério, uma vez que o tempo fotográfico e o tempo
cronológico são postos lado a lado, estabelecendo embates dos
mais diversos cada vez que nos encontramos frente a uma
fotografia. A temporalidade fotográfica nos investe tanto de
um fascínio quanto de um temor muito grande, sobretudo quando
se trata de pessoas que já morreram.

Tragédia e talismã
Após a morte do meu pai, resolvi escolher uma fotografia
dele para tê-la comigo em meu dia-a-dia. Talvez por não poder
mais desfrutar de sua presença na vida real, tenha tido esse
anseio de carregá-lo perto de mim, ao menos na sua realidade
fotográfica. Dentre as diversas fotos que conheci do meu pai
nas mais diferentes épocas de sua vida, fui acometido
compulsivamente pelo desejo de escolher uma, muito embora ela
apresente todos os defeitos técnicos que uma boa fotografia
não deveria ter. Lá estava o meu pai em pé, em uma estação de
trem, abraçado à sua irmã mais velha, por volta dos seus seis
anos de idade. Por que escolhi especificamente esta foto e
não uma outra qualquer de sua fase mais adulta, que o
representasse melhor e que guardasse uma lembrança mais
próxima da época em que convivemos juntos? Acredito que o
fascínio pela escolha dessa foto esteja relacionado à
implacável condição, inerente à própria fotografia, de se
jogar com o tempo de forma tão incontestável, fato que nos
remete às mais diversas inquietações. Há algo de extremamente
perturbador ao observar o meu pai ali tão novo, com um futuro
tão grande à sua frente, e saber que ele já está morto. Que
tragédia é essa, imposta pela fotografia, se no exato momento
da sua realização condena irremediavelmente o sujeito
fotografado à morte? Que aponta de forma tão cruel
(exatamente porque não está mentindo) para a morte?
Ratificamos mais uma vez essa grande surrealidade
fotográfica, de brincar de vida e morte de uma só vez, de
fazer com que, no instante em que o obturador é acionado,
surja uma imagem natimorta. Se por um lado ela imortaliza o
sujeito naquele tempo, por outro ela declara a sua morte,
condena-o à morte futura. Apesar dessa catástrofe
fotográfica, no entanto, volto todos os dias àquela imagem,
talvez por me sentir redimido desse drama, por perceber que a
fotografia me possibilita alcançar (mesmo que só por uns
instantes) a realidade inatingível da presença daquela pessoa
que tanto amei. Por isso, acho essa capacidade da fotografia
de conviver, a todo momento, com os mais profundos paradoxos,
o seu grande mistério – ser tragédia e talismã, ao mesmo
tempo.
Essa inquietação provocada pela temporalidade
fotográfica é sentida de forma tão surrealista como nas obras
de De Chirico e Tanguy, dois pintores que seguiram caminhos
plásticos bastante distintos, mas que apontaram para a
questão temporal com a mesma dramaticidade que a fotografia.
Aqui, o tempo pictórico e o fotográfico suscitam
surrealidades paralelas.
O tempo fotográfico em De Chirico
A obras de De Chirico apresenta questionamentos
marcantes em relação ao espaço, onde ele experimenta
representações em oposição tanto à perspectiva linear vigente
desde o Renascimento quanto em relação ao plano cubista,
criando, assim, uma espacialidade nova, de nulidade,
aparentemente de total incoerência (conforme já vimos). A sua
obra, porém, questiona sobretudo o tempo, de onde vem a sua
maior aproximação com a fotografia. As obras metafísicas de
De Chirico apresentam, de forma bastante recorrente, uma
falta de unidade temporal muito grande, por apresentarem, em
um mesmo espaço, diversos tempos diferentes (colunas gregas,
arcadas romanas, elementos da Idade Média, da
modernidade...), o que nos traz uma certa sensação de
desconforto pela perda de um referencial coerente, linear, e
por não sabermos, de fato, a que realidade estamos sendo
remetidos.
O que, a princípio, é percebido apenas como um mal-estar
transforma-se num gancho para uma investida mais profunda na
surrealidade temporal instalada. De imediato, o tempo
fotográfico presentifica-se na obra de De Chirico quando
percebemos que o que está representado ali na tela se passa
como um flagrante instantâneo transposto direto para a tela,
como se De Chirico, num passe de mágica, tivesse captado
através de pincéis e tintas um momento único (fotográfico),
embora de uma realidade que, definitivamente, não pertence à
nossa vida. As suas imagens, de fato, nos levam a crer que as
cenas apresentadas pertencem a um tempo congelado de uma
realidade indeterminada, freqüentemente composta com relógios
marcando as horas da tarde, assoladas por um sol causticante
que, ao varrer toda a cena, nos deixa o enigma causado pelas
sombras. De Chirico, aí, nos leva novamente ao mesmo mistério
fotográfico da ausência/ presença da ambigüidade, vivenciada
através das sombras humanas que deixam o rastro desse passado
recente congelado (fotográfico) e que nos faz experimentar o
grande paradoxo fotográfico de vida e morte, ao imortalizar/
mortalizar o sujeito representado (fotografado) como sombra.
Tudo isso está envolto pela atmosfera de uma realidade
extremamente inquietante, por ser desconhecida e enigmática,
em oposição à realidade fotográfica (que, por mais abstrata
que seja, é proveniente da realidade existente), mas que, por
isso mesmo, vem acentuar drasticamente a sua temporalidade
misteriosa, como a realidade fotográfica.
O tempo fotográfico em Tanguy
A obra de Tanguy, por seu lado, não encontra a
temporalidade fotográfica através da captação do momento
único, do congelamento instantâneo da realidade. Muito pelo
contrário, os seus quadros nos mostram ambientes silenciosos,
sombrios, abissais, de uma imensa solidão, com total ausência
do ser humano, com referências feitas apenas a alguns tipos
de vidas amorfas, compreendidos em um tempo em suspenso. Tudo
parece estar há muito tempo parado, de uma estática
verdadeiramente incômoda, pairando sobre a cena um grande
mistério pelo fato de o espectador se perceber diante de um
passado ilocalizável, confuso e, por isso mesmo, melancólico.
As suas representações nos causam estranheza, até porque,
normalmente, não sabemos ao certo de que se tratam; ora
parecem formas orgânicas pertencentes ao fundo do mar, ora
lembram cidades arrasadas por uma catástrofe atômica, ou
mesmo um parque industrial abandonado com um amontoado de
sucatas. A força dessas imagens, a excentricidade que as
envolve e que, na realidade, nos arrebata, não está nas
representações plásticas, no sistema figurativo em si, por
mais exótico que nos possa parecer, mas provém da distância
temporal que vivenciamos. Justamente aí é que vejo o gancho
da obra de Tanguy com a fotografia; pos as suas
representações estão de tal forma investidas de um
afastamento no tempo, de uma distância tão brutal da nossa
realidade cotidiana, que somos levados ao mesmo embate que
ocorre quando estamos diante de uma fotografia que nos toca.
O fascínio pelo que se há a descobrir, esse grande
mistério de se desvendar o desconhecido, o que se encontra
por trás da realidade explícita das coisas, surge ao mesmo
temo em que somos tomados exatamente pelo medo dessa
descoberta, pelo devir de uma realidade que não sabemos qual.
A fotografia nos coloca essa questão bem de perto, por lidar
com uma realidade existente e uma outra que se esconde atrás
dela. A obra de Tanguy me parece aprofundar ainda mais essa
discussão por lançar mão de uma realidade a princípio
possível, mas que, jogada em um abismo temporal tão grande,
torna-se total e completamente desconhecida por nós,
marcando, assim, de maneira mais intensa, um afastamento da
nossa realidade, tanto por nos dar esse passado tão longínquo
como por passar uma visão tão aterrorizada e desarticulada do
futuro. A obra de Tanguy, portanto, tal qual a fotografia,
sustenta uma premonição do futuro, mas sempre de maneira
muito negativa. Assim, a distância temporal trabalha aqui,
mais uma vez, apontando para uma descontextualização da visão
que temos das coisas e trazendo consigo a sua própria carga
surrealista.
Na realidade, tanto De Chirico quanto Tanguy instigaram
constantemente os nossos sentidos por jogar com a latência,
com a virtualidade impregnada na distância temporal de suas
imagens.
A obra de Tanguy é permeada pela virtualidade, na medida
em que ele prioriza um tempo em suspenso, parado no ar e nos
joga, irremediavelmente, a um passado desconhecido, sem
qualquer vínculo referencial interno, apontando,
conseqüentemente, para um futuro ameaçador, incerto, sem
garantias. As representações de Tanguy, por flutuarem no
tempo, nos provocam uma instabilidade muito grande em relação
ao que poderá vir adiante. Tudo parece estar por fazer, como
se algo estivesse prestes a acontecer, mas permanecesse ainda
em seu estado de latência, em potencial, gerando muita
angústia e ansiedade por sermos levados a especular e prever
algo a partir do desconhecido.
De Chirico, por sua vez, em meio a uma atmosfera já tão
carregada de mistério, coloca em suas representações sombras
humanas “sangrando” pelos espaços entre as construções. Na
realidade, as únicas possibilidades de movimento (que é o que
nos faz especular sobre o corte fotográfico do momento
instantâneo de suas cenas) frente a representações tão
estagnadas, em que não transparece qualquer tipo de animação,
são as tais sombras humanas. Quantas elucubrações e fantasias
não nos passam pela cabeça ao nos depararmos com aquelas
imagens virtuais de seres humanos que passaram ou passarão
por aquele local? Não há como evitar especulações em torno de
quem seriam essas figuras que estariam transitando em locais
tão estranhos, ou que pessoas conviveriam em lugares tão
misteriosos. A virtualidade imposta por essas sombras provoca
o mesmo tipo de inquietação estabelecida pelas imagens
fotográficas quando ainda não foram reveladas; tudo é
especulação, é fantasia. Embora somente o próprio De Chirico
pudesse nos dar a certeza de suas intenções, creio que,
nesses casos, ele brinca de fotografia, por ela invadir,
literalmente, a pintura, fazendo parte dela, como se uma
linguagem se transpusesse virtualmente, assim como a sombra
para dentro de outra. Tal fato constitui-se em mais um
elemento de desarticulação na obra de De Chirico, pois ele
intensifica a surrealidade da sua pintura através do
pensamento fotográfico.
IX – A TEMPORALIDADE VIRTUAL E A LATÊNCIA NA LINGUAGEM
FOTOGRÁFICA

Quando tratamos de tempo em fotografia, todas as suas


correlações com os ready-mades de Marcel Duchamp que citamos
anteriormente caem por terra. Neles, o objeto é o próprio
índice, ele é, ao mesmo tempo, signo e referência, ao passo
que, em fotografia, por mais próxima que ela esteja do objeto
que representa, seja por raiografia, por cópia contato,
fotograma, ou qualquer outra forma, lá está o tempo,
irredutivelmente agindo como elemento de corte, de separação,
afastando a imagem do seu próprio índice. É dentro desse
espaço de tempo, entre o exato momento em que o obturador é
acionado (e a foto realizada) e a imagem revelada, que
transcorrem as mais diversas e profundas especulações em
torno da fotografia. Nesse intervalo, toda e qualquer
racionalidade que se possa ter da imagem que se fotografou se
esvai por completo, foge do nosso controle, deixa de ser uma
verdade para tornar-se mera conjectura, pois passamos, aí, a
atuar no campo das fantasias, que nunca poderão ser
comprovadas, nem mesmo diante da foto, pois, nessa defasagem,
o tempo já atua de forma a fazer com que a imagem revelada
denote algo sempre diferente do que imaginamos. Aliá, um
outro fator que torna a fotografia uma linguagem tão
fascinante é verificar, em cada foto que tiramos, que ela
jamais corresponde exatamente ao que pensávamos ver.
A cada filme que revelo, ao observar o resultado
alcançado, me convenço mais de que a ligação da fotografia se
dá de forma muito mais profunda com o inconsciente, com algo
que foge a todo e qualquer controle, do que com a
racionalidade que lhe é atribuída. A partir daí, podemos
especular que esse talvez seja um dos maiores atestados de
que a fotografia já nasce carregando dentro de si uma
excessiva dose de surrealidade, independentemente de ela
estar ou não engajada em qualquer movimento ou escola. A
surrealidade é ratificada a cada nova imagem revelada, já
impressa com o golpe da fatalidade de se opor à nossa
fantasia.
Justificam-se, então, o medo e a ansiedade que nos
ocorrem nessa transição, entre o ato fotográfico em si e a
foto já pronta. Sempre ficará no ar, sem resposta, o que
realmente foi visto durante a sua realização, ou seja, uma
vez pronta, a foto servirá apenas como uma referência,
sugestão de um momento, o que nos levará a questionar a
respeito do que pertencia ao reino da nossa imaginação e o
que de fato estava posto como realidade em si. A foto aponta
para todo um lado inconsciente, ligado às nossas efetivas
intenções e desejos escamoteados por trás da realidade
racional dada. Ao invés de perguntarmos o que, realmente,
tínhamos visto, somos levados a pensar no que realmente
queríamos ver, e a partir daí uma série de intruncadas
articulações começa a se dar, do consciente ao inconsciente,
da realidade racional a uma supra-realidade, na tentativa de
dar conta, de harmonizar ou mesmo de separar dentro de nós o
universo fantasioso do real. Nesse caso, a fotografia
trabalha no sentido de quebrar todas as certezas que temos
das realidades vivenciadas.
As incertezas que experimentamos diante de uma
fotografia pertencem ao mesmo universo das discussões
colocadas por Magritte quando ele desarticula a escrita da
imagem, empregando títulos que nada têm a ver com a imagem
representada. Ao desenhar um cachimbo, não se faz necessário
escrever embaixo que aquilo se trata, de fato, de um
cachimbo, pois a associação daquele objeto com o nome
cachimbo é criada imediatamente em nossa mente. Quando
Magritte, no entanto, pinta um cachimbo e escreve embaixo, no
mesmo espaço de representação, “Isto não é um cachimbo”,
coloca-nos não apenas diante da arbitrariedade da linguagem,
da fragilidade da comunicação, da mera convencionalidade que
rege as relações do mundo, mas sobretudo chama-nos a atenção
para as inquestionáveis verdades que simplesmente passamos a
admitir, sem ao menos pensarmos sobre elas.
Magritte, com esse gesto, dilui as nossas certezas
racionais e aponta para a existência de uma outra realidade
permeada pela ficção e pelo imaginário, desfazendo, assim, a
inabalável segurança de identidade do ser humano com o mundo
palpável, fazendo-nos desconfiar do nosso modo de ver a
realidade, de aceitar e reconhecer as coisas do universo
como elas nos são dadas. Enquanto a fotografia instaura uma
enorme perturbação interna, em relação ao seu período de
latência diante do resultado final, ao levantar conjecturas
sobre o que se imaginava ter visto durante o ato fotográfico,
Magritte, nessa sua fase, não sugere, não lança suposições
nem suscita dúvidas, mas aponta direta e objetivamente para a
questão, nos fazendo crer que, definitivamente, o que estamos
vendo não corresponde à imagem representada (no caso da
fotografia, imagem fotografada). Afinal de contas, estar
diante da representação de um cachimbo e do título “Isto não
é um cachimbo” é presentificar, efetivamente, a
desarticulação e desarmonia entre o signo e o nome que lhe é
atribuído; é olhar algo e perceber que aquilo não corresponde
ao que estamos vendo. O que se observa aí é que Magritte
conserva para sempre a inquietação provocada pela latência
fotográfica. Em outras palavras, enquanto a perturbação
provocada pela latência fotográfica se dilui, se dispersa com
o tempo, Magritte estampa e inscreve para sempre, num mesmo
espaço de representação, que o que vemos não corresponde,
necessariamente, ao que a realidade nos mostra.
A superposição desse conceito de latência entre as
linguagens pictórica e fotográfica vem amarrada à noção de
passagem, de mudança de condição, de um estado primitivo (no
sentido de primeiro) a um estado avançado no tempo. Essa
passagem pode constituir-se através de um processo, de uma
evolução gradual (pintura/ Roma) ou pode se dar de uma só vez
como um todo (fotografia/ Pompéia). Talvez o estado de
latência em fotografia nos mobilize de uma maneira tão
angustiante e ansiosa justamente pelo fato de o processo
fotográfico trabalhar sempre nos dois extremos, pois antes da
revelação nada se tem, não há absolutamente nada a não ser
fantasias, imaginações, conjecturas, que são bloqueadas e
rompidas de uma só vez no exato momento em que o filme é
retirado do tanque de revelação e estirado contra a luz. A
passagem do nada para o tudo é imediata, não há como alterar
a imagem captada durante esse processo (a não ser
tecnicamente, o grão, o contraste etc.). A latência
fotográfica pode, assim, ser vista aqui metaforicamente como
uma mola comprimida que, quando solta, explode de imediato
todo o potencial acumulado, sem qualquer passagem
intermediária (podemos até mesmo comparar o susto que se tem
ao se abrir uma dessas caixas que possuem em seu interior
brinquedos de mola, ao “susto” que se tem quando da revelação
de um filme – tudo é surpresa, tudo é sobressalto diante do
imprevisto).
Não podemos esquecer, entretanto, que o rito da passagem
relacionado à latência fotográfica, por mais que se dê de
forma brusca, imediata, envolve uma grande soma de etapas
processuais que vão desde o acionamento do obturador até o
filme revelado, sendo que o resultado final da imagem
compreenderá, cumulativamente, cada um desses resultados,
isto é, embora o processo de visão manifeste-se apenas nas
duas pontas da cadeia (na hora do ato fotográfico e no
momento do filme já revelado), cada etapa realizada na
escuridão vai sendo guardada como memória, influenciando no
resultado final.
No curso do pensamento da latência fotográfica,
vislumbramos novamente o mito de Artemis, a sagitária
selvagem, que percorre os mesmos rituais de passagem. Ela
acompanha todos os passos dos seres, desde o embrião ao
nascimento e à juventude, até tornarem-se adultos,
estabelecendo, precisamente, as delimitações dessas diversas
etapas e fazendo as ligações entre elas. Ártemis proporciona
a passagem, a mudança de condição, representa a ponte entre
passados e futuros, de tal forma que as diversas fases dessas
passagens não sejam esquecidas e apagadas. Ela é, portanto, a
grande representante mitológica da latência fotográfica, já
que cuida para que todos os estágios intermediários de
mudanças de condição sejam realizados sem atropelos, sem que
nada se perca. Ártemis é a própria imagem do que existe entre
a latência e a revelação.
Percebe-se, então, que o mito de Ártemis articula-se de
forma bastante interessante com a fotografia, principalmente
em função do seu sentido de administração e coordenação entre
as passagens. As fotografias, em muitos casos, possuem a
capacidade de funcionar como verdadeiras bombas-relógio à
medida que estão sendo reveladas, e quando já prontas, de
fato, explodem dentro de nós com tamanho impacto que somente
clamando por Ártemis, para que com o seu poder concilie,
restabeleça a ordem perdida. É como se a fotografia
necessitasse embutir a presença de Ártemis em sua linguagem
para nos livrarmos do susto de sermos acometidos,
subitamente, por tamanhas mobilizações internas e,
conseqüentemente, remetidos aos mais imprevistos encontros
com o nosso inconsciente. Essas mobilizações são provocadas
pela virtualidade temporal inerente à própria fotografia. De
fato, intensas articulações internas são suscitadas quando
uma imagem está impregnada com um tempo virtual. Passamos,
aí, a lidar novamente com o desconhecido, como que poderá vir
a acontecer, e, muitas vezes, o desfecho da cena dependerá da
nossa própria imaginação, das nossas próprias fantasias. É
justamente essa aproximação, esse chegar tão próximo aos
nossos desejos mais recônditos, que nos faz tremer e nos faz
pensar sobre o imenso potencial bélico (já que falamos de
bomba) acumulado, latente, dentro de nós.
Assim, a virtualidade temporal tornou-se uma referência
marcante e recorrente em praticamente todos os pintores
surrealistas, exatamente por ela possibilitar remeter o
espectador, de forma imediata e intensa, aos seus desejos
irrealizáveis, a tudo aquilo que a realidade racional, por
força das circunstâncias, afasta e impede que se efetue.
Trabalhar com o tempo virtual é percorrer a sugestão, é
insinuar, é gerar um grande veio de inspiração para que o
espectador, a partir de uma imagem inicial que guarda um
imenso potencial imaginário, possa dar continuidade à cena
vista, tendo como referência as suas próprias experiências e
fazendo delas a sua grande ferramenta de criatividade, de
liberação do seu inconsciente.
O tempo virtual é a própria surrealidade, pois ele só
existe, só faz sentido, dentro do universo imaginário e
fantasioso. Parte sempre de uma realidade dada (através de
uma imagem) para, então, tomar o seu rumo, encontrar o seu
desenvolvimento no inconsciente de cada um. Por isso, uma
obra permeada pela virtualidade temporal jamais configura-se
como sendo de um único autor; há sempre a presença (virtual)
de quem quer que seja, para lhe dar a completude. A sensação
de vazio, de um certo mal-estar do incompleto, do faltar algo
na imagem é justamente o estopim para a mobilização, para que
o espectador participe de forma tão intensa diante de tais
imagens, no impulso de dar continuidade àquela realidade.
Assim, uma vez iniciado o processo de criação, o que era mal-
estar agora é pulsação, é verve, é tudo aquilo que possa
remeter à plenitude, pois, atravessada a ponte da
racionalidade para a estrada do inconsciente, a possibilidade
deixa o campo da dúvida para se deleitar à mercê do desejo –
basta o desejo para a conquista. Essas imagens têm algo de
vento, de soltura, de desvario, até porque experimentamos
mesmo a embriaguez. Navegar pela virtualidade temporal é
partir do porto seguro da realidade racional em direção aos
“mares nunca dantes navegados” do inconsciente, é ter a
coragem de desamarrar os sapatos de ferro que nos prendem à
terra. Deixar-se levar por tais imagens é não se contentar em
ser um mero espectador, é sair do estado contemplativo para a
real participação, percorrendo a obra de um ponto de vista do
artista para recriá-la dentro de suas possibilidades e
desejos, é, enfim, passar do apolíneo ao dionisíaco.
A virtualidade temporal, que para os pintores do
Movimento Surrealista constituía-se uma questão intencional
de mobilização interna, no sentido de gerar crise, de retirar
o ser humano de seu estado de torpor e passividade habituais,
passou a ser trabalhada pelos fotógrafos de uma maneira mais
intuitiva, embora igualmente impregnada de uma carga de
mobilização muito grande, vindo daí mais um gancho para a
proximidade com a arte surrealista.
Conforme já mencionado anteriormente, praticamente todos
os pintores surrealistas, em algum momento e em algum nível,
trabalharam com a virtualidade temporal, o que nos
impossibilita ver aqui toda a sua abrangência, de forma
totalizante. Podemos pinçar, no entanto, um quadro do Dalí,
“A Persistência da Memória”, que aponta de forma bastante
clara a investida na virtualidade temporal. O cenário é
extremamente fantasmagórico, tendo ao fundo um mar (como um
espelho d’água totalmente parado) e uma montanha, dando para
uma faixa de terra que se estende até o primeiro plano, que
compreende três relógios deformados, como se estivessem
derretendo, cada um deles pendurado sobre um galho de árvore,
uma mesa e um objeto não identificado. Dalí, ao apresentar um
ambiente de total paralisação, não está, com isso,
transmitindo passividade; muito pelo contrário, utiliza-se
desse estado de estagnação no sentido de potencializar a
representação, de criar uma força motriz capaz de retirar o
espectador do mal-estar gerado por tamanha inércia. A
impressão que se tem é que Dalí, nesse quadro, coloca de
forma plena e explícita uma questão fundamental entre nós,
que é a de decidirmos tomar ou não as rédeas de nossas vidas,
de enfrentarmos o medo do passo adiante, quando tomados pela
angústia da paralisação diante da vida.
A virtualidade temporal presentifica-se nesse quadro de
forma intensa por vir carregada de dois aspectos que se
complementam e se potencializam. Inicialmente, há toda uma
vivência da expectativa do que pode vir a acontecer a partir
desse ambiente, típico da virtualidade temporal em si, quando
somos levados a desdobrar a cena representada ao sabor dos
nossos desejos e fantasias. Instala-se, portanto, aí, o
primeiro temor do que podemos ou do que, de fato, vamos
(leia-se, aí, nosso inconsciente) fazer a partir dessa
realidade com a qual nos defrontamos, principalmente a partir
dessa imagem, em especial, que oculta um acúmulo imenso de
informações e ramificações represadas, prestes a eclodir. O
segundo aspecto que a meu ver atua no sentido de intensificar
a virtualidade temporal de fato é justamente esse equilíbrio
extremamente instável entre todos os elementos da cena, de
que a estática está a serviço, sustentando-se na realidade,
em função das diversas forças de tensão que atuam em cada
objeto.
Assim, se por um lado Dalí nos provê, através dessa
imagem, de um veículo riquíssimo que nos possibilita entrar
em contato com as nossas fantasias e “quereres”, liberando o
nosso inconsciente para trabalharmos livres o rumo a ser dado
àquela cena, por outro gera uma imensa angústia no afã de
darmos esse passo. Afinal de contas, a exagerada inércia que
permeia a cena é pura aparência, é como se estivéssemos
diante de diversos barris de pólvora interligados por pavios,
que, na primeira fagulha, colocariam tudo pelos ares,
provocariam o desarranjo total da cena. O grande medo,
portanto, reside exatamente aí – colocados frente à
possibilidade de experimentar algo novo, fustigados a viajar
pelos meandros da temporalidade virtual, somos acometidos,
repentinamente, pelo temor de tudo desarticular, de gerar um
imenso desequilíbrio em cadeia, pois deslocar qualquer peça
dessa imagem tão tencionada é correr o risco do total
descontrole, de não darmos conta do que provocamos. Se
vivenciamos esse embate frente a essa imagem é porque ele
está, da mesma forma, presente em nossas vidas, e a força de
“A Persistência da Memória” manifesta-se, justamente, quando
ela passa de mera representação, quando sai do quadro, da
parede, e ganha vida, desdobra-se literalmente dentro de cada
espectador.
A fotografia, por seu lado, quando banhada pela
virtualidade temporal, enriquece e aprofunda tudo o que
discutimos em relação à pintura (mais especificamente em
relação ao quadro de Dalí) pelo fato de estar sempre presa ao
índice, à referência. Assim, todo o temor ao qual nos
referimos quando tratamos das obras representadas pelos
pintores surrealistas toma um outro corpo, configura-se de
forma diferente, quando falamos da fotografia, pois nesse
caso estamos lidando com a própria realidade. Não partimos
mais de uma ficção, de uma representação, e sim da própria
realidade, do que, de fato, esteve lá. Uma imagem fotográfica
com a qualidade da virtualidade temporal avança um passo
dentro da surrealidade, uma vez que, qualquer que seja o
caminho, o desdobramento dado à imagem, o perigo iminente
instaurado sai do mero estado representacional para o real,
como se o que imaginamos pudesse, realmente, vir a acontecer,
afinal de contas, a imagem de onde partimos, de fato,
aconteceu.
Há uma fotografia realizada por um fotógrafo anônimo que
demonstra tipicamente esse estado de angústia e ansiedade. A
imagem nos mostra um equilibrista num circo, flagrado no
exato momento em que cai da corda onde estava executando a
sua apresentação. Por ter sido tirada de uma distância muito
grande e por estar muito escura, a foto não nos permite
observar a reação facial do equilibrista diante da queda.
Tanto melhor, pois ao refletirmos sobre a virtualidade
temporal, esse fato só intensifica a nossa análise, por fazer
com que a imagem deixe todas as elucubrações ao nosso
encargo. Por não nos ser possível ver o rosto do
equilibrista, a foto nos obriga a partir apenas do fato
ocorrido em si, não nos deixando qualquer referencial do
artista a que nos apegarmos. Estaria ele dando gargalhadas
por provocar, intencionalmente, o pânico no público e deixar-
se cair em uma rede, ou será que, efetivamente, a queda
existiu independentemente de seu desejo? O fato é que, embora
o público tenha vivenciado um momento de pânico e tensão em
quaisquer das duas situações, a realidade mostrou, logo em
seguida, o desfecho do ocorrido, pois, pelo bem ou pelo mal,
a cena se fechou ali, enquanto que, na fotografia,
principalmente do ângulo em que foi tirada, tudo fica por
conta da nossa imaginação e fantasia, a captação e a
paralisação da cena naquele exato momento impõem uma
infinidade de desdobramentos. Não estamos, então, diante do
que a realidade irá nos mostrar (a morte ou a gargalhada?).
O pânico de que estamos falando, em fotografia, insere-
se num outro contexto, visto que ele não vem de fora para
dentro e nós não ficamos à mercê do que a realidade irá nos
impor, mas porque caberá a nós dar o destino que bem
entendermos ao equilibrista. O temor talvez não esteja
relacionado ao rumo que daremos àquele equilibrista,
especificamente, até porque a realidade já lhe deu uma
direção de qualquer maneira. O medo está, provavelmente,
relacionado àquilo de que o nosso inconsciente será capaz,
pois, diante de uma imagem como essa, que certamente se
abrirá a desdobramentos, todo o nosso poder fantasioso estará
à flor da pele e, então, entraremos em contato íntimo com a
nossa verdadeira e mais pura realidade interna, o que,
possivelmente, nos causará assombro.
Muitas vezes a nossa racionalidade não sustenta, não se
dá conta do que se passa em nosso inconsciente, que, na
realidade, é quem representa os nossos verdadeiros desejos e
instintos. Saber-se, experimentar-se desejoso de danos e
estragos nos causa não apenas mal-estar e incômodo, mas
também um grande medo de sabermos que somos capazes de tais
atos. As primeiras perguntas que, de imediato, vêm a nós,
diante de uma cena como essa, são: Qual deve ter sido a
reação do equilibrista nessa hora? O que estaria ele
pensando? O que estaria passando em sua mente? Essas
perguntas, no entanto, perdem peso, se esvaem e se esvaziam
no tempo quando nos damos conta de que são perguntas, na
realidade, que estamos nos fazendo, apontando para dentro de
nós mesmos. Daí o temor dos desdobramentos, o temor de
“viajarmos” na virtualidade temporal da imagem, que nada mais
é do que responder a todas essas questões através de uma
realidade que não é a racional, limitada e controlada, mas a
que não tem regras nem medidas e que, por isso mesmo,
constitui-se como a que mais se aproxima da nossa verdadeira
identidade, que se pode dizer, a nossa própria surrealidade.
Dentre as inúmeras situações em que a fotografia joga
com a virtualidade temporal, há uma outra que lida com um
aspecto diferente daquela que foi vista em relação ao
equilibrista. Trata-se das imagens em que o autor induz,
direciona a sensação da virtualidade temporal de forma mais
objetiva para o próprio sujeito fotografado. Nesses casos,
saímos do domínio do susto, do sobressalto, e adentramos num
universo mais denso, silencioso e de maior introspecção.
Refiro-me, aqui, às incontáveis fotografias tiradas nos
campos de concentração durante o período de guerra, e mesmo
àquelas realizadas ainda hoje como registros nos presídios
antes da execução sumária de um preso. Todas apresentam o
mesmo fio de ligação – a morte. Nesses casos, o aspecto
fantasioso desloca-se de forma mais intensa do espectador
para o sujeito fotografado porque o desfecho, o desdobramento
da cena possui um espectro mais reduzido, por já estar
amarrado a um final que, de antemão, sabemos que será. Por
mais terrível que seja a sensação, partimos do princípio de
um final conhecido e irremediável e, por isso mesmo,
transferimos, intuitivamente, a vivência do tempo virtual
para aquele que experimenta, efetivamente, a sensação de
estar com a sua vida por um fio. A “viagem” virtual, nestes
casos, fica mais relacionada ao fato de se saber o que deverá
se passar na cabeça de uma pessoa que tem a certeza da morte
tão próxima, qual a história dessa pessoa, o que a levou,
durante a sua trajetória no mundo, a ser conduzida a tamanha
tragicidade. Essas fotos carregam grande tensão e ansiedade
referentes à idéia de “passagem”, pois a virtualidade
temporal, aqui, incorpora-se a tudo o que diz respeito a uma
mudança de estado, à travessia – vida/ morte.
A fotografia, por ser um recorte do mundo, a captação de
um momento único do universo, de uma maneira ou de outra,
sempre lida com a virtualidade temporal, mesmo que essa
questão não esteja estampada de forma explícita na imagem
(como é o caso do equilibrista). Ela, de fato, se presta de
forma fantástica a esse tipo de elucubração, por sempre
permitir uma brecha, sempre deixar algo no ar a ser dito, o
que, aliás, configura-se como uma das grandes características
surrealistas. Uma fotografia jamais se encerra dentro de si
própria, jamais se fecha em um universo unívoco e unilateral.
Ao contrário, constitui-se sempre como uma obra em aberto,
permeada por vasos comunicantes, em que o espectador é tão
parte da produção e da autoria da imagem quanto o próprio
fotógrafo, o que conduz a fotografia a uma grande
surrealidade, uma vez que cada espectador desdobrará a imagem
de maneira particular, por ter acúmulos de experiências
diferenciadas.
X – O PARADOXO SURREAL DA LUZ EM FOTOGRAFIA

Pensar em tempo fotográfico é pensar em passagem,


transposição de estados, latência/ revelação, vida/ morte,
que, em fotografia, adquirem a capacidade de conviver não de
forma paradoxal, mas complementar e, mais do que isso, de
inter-relacionar-se a tal ponto que uma não encontra sentido
sem a outra. A toda essa concepção incorpora-se o significado
da luz, em fotografia. Não há como exercer a atividade
fotográfica sem que haja luz, pois ela é vital, é elemento
primeiro como ferramenta de trabalho. A luz, em fotografia,
desempenha idêntico papel que o oxigênio em nossas vidas,
pois sem oxigênio não há como sobrevivermos, é ele que nos dá
a vida e também nos tira a vida, já que todo o nosso processo
de envelhecimento provém da oxidação de nossas células, da
“corrosão” provocada pela ação do oxigênio em nosso organismo
(por mais paradoxal que possa parecer, o mesmo elemento que
nos dá vida, nos tira!). A luz se processa da mesma forma.
Uma vez captada, impressa na película e guardada como imagem
latente, deverá ser evitada, rechaçada, pois haverá o risco
de, literalmente, essa luz destruir (matar) a imagem a ser
manifestada. Além disso, a luz deverá sofrer uma série de
controles para trabalhar efetivamente como geratriz de
imagem, pois o seu excesso (ou a sua falta) no momento em que
atinge a película poderá, igualmente, destruir, fazer
desaparecer a imagem, configurando-se, aí, de maneira mais
clara a metáfora do oxigênio.
A fotografia constitui-se como escritura feita pela luz,
que é o seu princípio ativo, acionador de todo o seu
processo. A luz, em fotografia, nos faz lembrar o mito Jano,
um dos antigos deuses romanos, representado por dois rostos
opostos. O seu nome já o designa como passagem, tanto
espacial quanto temporal. Espacialmente, tem como
representação a porta, que implica sempre dois lugares, um
que se deixa e outro em que se penetra (por isso a sua imagem
ter dois rostos, duas frentes); e, temporalmente, carrega o
símbolo de princípio, o mês Januarius lhe é atribuído, ponte
entre o ano que findou e o que está a começar. Jano é uma
“divindade circular”, sendo o início o seu próprio fim. É
reflexivo por desdobrar a sua imagem, pois, da mesma forma,
recebe-a de volta para o início de um outro ciclo.
A luz, em fotografia, apresenta a mesma duplicidade,
sendo início de tudo e, concomitantemente, o seu próprio
potencial destruidor, aniquilador de tudo o que fez
construir. Tem-se, então, a irrefutável condição da imagem
fotográfica: pela luz gerada (início), pela luz destruída
(fim). Uma vez a luz presentificada, marcada a sua aparição
inicial, qualquer nova manifestação apontará para o fim do
que foi o seu próprio início. Assim, a luz compreende,
intrinsecamente, a sua negação, e é essa condição de negação
que acaba por ser a sua grande força motriz, pois gera em si
o seu grande enigma e, conseqüentemente, torna a imagem
fotográfica tão reflexiva.
A metáfora da luz fotográfica extrapola, transcende a
linguagem artística e incorpora-se em nossas vidas, pois
vivemos, diariamente, o mesmo drama da película e da imagem
fotográfica. Somos todos os dias assolados, banhados pela luz
do sol que nos dá a vida e que nos proporciona o verdadeiro
espetáculo da visão, pois é a sua luz que nos faz enxergar o
mundo. Paradoxalmente, é justamente essa mesma luz que tudo
pode escurecer, levando-nos à total escuridão, se nela
fixarmos o nosso olhar. Somos remetidos às trevas pela falta
e pelo excesso da luz do sol. Assim, o sol. Cumpre sobre nós,
surrealisticamente, a mesma trajetória de duplicidade feita
pela luz, de maneira generalizada, em relação à imagem
fotográfica – tanto pode compreender vida quanto morte para o
nosso olhar; tanto nos traz a claridade quanto pode nos
trazer a escuridão. O sol nesse caso, realiza a grande
ligação, ou melhor, a “re-ligação” (re-ligião) entre as
trevas e a claridade, por isso não podemos olhar diretamente
para ele sem correr o risco de ter somente trevas.
Nesse mesmo domínio, evocamos e deixamo-nos seduzir
pelos objetos de Marcel Duchamp. Ao mesmo tempo em que ele
tenta desvalorizar a arte enquanto um fazer, ao materializar
a sua idéia através dos objetos visuais, como os ready-mades,
por exemplo, toda a ironia incorporada a eles acaba negando o
seu próprio conceito de idéia, por apresentar-se como
crítica. Duchamp, a todo momento, joga com o paradoxo, com a
ambivalência de sentidos. A sua arte configura-se, no fundo,
com a negação de si própria, sendo, ao mesmo tempo, a
negativa do fazer artístico e do seu próprio conceito de
idéia e constituindo-se como a metáfora da luz na imagem
fotográfica.
Esta ambivalência de Duchamp torna-se mais explícita
quando da realização de “O Grande Vidro”, até porque o vidro,
por si só, já traz o paradoxo de afastar e unir (o vidro nos
possibilita enxergar o que está do outro lado, e permite a
ligação visual e/ ou espiritual a algo que ele mesmo separa),
principalmente nesse caso, em que a obra é realizada no
próprio vidro. Como havia comentado anteriormente, “O Grande
Vidro” é acompanhado, paralelamente, de toda uma descrição em
que Duchamp narra, minunciosamente, a presença de diversos
objetos e personagens que estão compreendidos na obra, mas
que não estão explicitamente, representados. Dentre esses
personagens, a noiva é colocada como uma das figuras
centrais; por isso mesmo, prendemo-nos à sua pseudopresença
de forma ambígua. Na realidade, não há uma presença
propriamente dita, pronta a consumirmos e contemplarmos como
imagem dada, já pronta. O que há, na verdade, é um
vislumbramento, uma aparição de algo a ser decifrado e que,
por isso mesmo, está diretamente ligado aos nossos sentidos.
O que ocorre de fato são rápidas aparências que se
manifestarão à medida que os nossos sentidos (e, obviamente,
os nossos desejos) estiverem predispostos à sua presença, e
que logo desaparecerão. A noiva é, portanto, uma idéia que se
nega e se destrói a cada aparição, continuamente aniquilada a
cada nova manifestação, quando não conseguimos detê-la como
presença, mas como simples aparição que a cada momento deverá
ser refeita por nós para termos a sua aparência. É esse jogo
de ambivalência o enigma da presença-ausência, da construção-
destruição (assim como a luz em fotografia) manipulado por
Duchamp, que faz a sua obra tão hermética e reflexiva que,
conseqüentemente, nos faz sair da condição de meros
contempladores, voyeurs, para, efetivamente, participarmos da
sua elaboração.
O fenômeno psíquico de passagem que vivenciamos em uma
situação de latência fotográfica é paralelamente acompanhado
e só existe frente ao fenômeno de mudança do estado físico da
luz, visto que, uma vez apreendida, a luz só será imagem na
extremidade final do processo, quando a química se sobrepuser
a ela.
O papel desempenhado pela luz no desenvolvimento da
realização de uma fotografia como um todo adquire um caráter
de extremos, em função da relação que ela mantém com o
fotógrafo. Há, de fato, uma procura incessante da luz para
que a sua inserção sobre a película possa gerar a imagem
desejada, mas uma vez estabelecido esse laço afetivo de
tamanha entrega e intensidade e o obturador acionado, ou
seja, consumado o ato de amor, a relação esvazia-se por
completo, tomando um rumo diametralmente oposto. O fotógrafo
agora passa a ter verdadeira ojeriza, repugnância a qualquer
raio de luz, configurando-se mesmo numa verdadeira neurose.
Uma bateria de verificações e checagens percorre a sua
cabeça, motivado pelo pânico de a imagem ser destruída
exatamente pelo que a gerou. Será que a câmara está,
realmente, vedada o suficiente para que nenhum facho de luz
venha penetrá-la? Será que o filme está totalmente rebobinado
ao se abrir a câmara para retirá-lo? O laboratório está de
fato em completa escuridão? Haverá vazamento de luz no tanque
de revelação? Os papéis fotográficos estão devidamente
protegidos em suas embalagens? Em suma, todas essas questões
e muitas outras relacionadas aos cuidados com a luz
certamente já passaram em algum momento pela cabeça de um
fotógrafo. Há realmente uma relação de amor e ódio, assim
como na vida, em que se tem ódio somente de quem realmente se
ama, ou seja, para o fotógrafo, a luz identifica-se como os
dois lados de uma mesma moeda. Fotografia é, ao mesmo tempo,
de uma só vez e complementarmente, corpo físico e corpo
químico. Dois estados coabitam, transfiguram-se um no outro
como o intuito de garantir a sobrevivência, caracterizando,
assim, materialmente, a vivência psicológica que temos da
passagem do que acontece em um nível inconsciente para o
racional.
Conforme vimos, o ato fotográfico em si, este exato
momento em que o obturador é acionado, configura-se de
maneira mais próxima a uma atitude inconsciente do que
propriamente racional, haja vista a impossibilidade de se
manter o total controle de tudo o que acontece diante da cena
a ser captada. Por mais sofisticados que sejam os aparatos
técnicos e por maior que seja a atenção e o controle
psicológico do sujeito que fotografa, há sempre algo que
escapa e que foge do nível racional, algo que não conseguimos
ou não queremos ver com os olhos da realidade consciente. E é
esse lapso, essa “falha” que, muitas vezes, dá consistência e
qualifica a imagem. Tanto é assim que, freqüentemente, nos
surpreendemos com o resultado final do trabalho, com o que,
de fato, a fotografia após revelada nos mostra. A passagem
que se efetua do ato fotográfico em si para a fotografia já
pronta não deixa de ser passagem do inconsciente para o
consciente. A fotografia, de forma bastante interessante,
materializa essa travessia por meio da luz e da química. Todo
o aspecto inconsciente que permeia o momento em que o
obturador é acionado é efetivado sempre (nunca de outra
forma) pela luz, enquanto que a racionalização, a mudança
desse estado de fantasias e imaginações, diante da imagem já
pronta, só poderá ser concretizado através da química. Em
outras palavras, em fotografia a luz caracteriza-se como o
inconsciente, enquanto a química como o consciente, e ambas,
por coabitarem o mesmo espaço e qualificarem o mesmo
universo, presentificam a surrealidade embutida na
fotografia, que nada mais é do que a manifestação inconteste
da convivência mútua entre o consciente e o inconsciente.
A analogia que acabamos de fazer, relacionada à
surrealidade existente na convivência mútua entre dois
estados materiais diferentes (luz/ química) no mesmo universo
da película fotográfica, pode ser encontrada, de maneira
similar, nas pinturas de Dalí, em sua fase paranóico-crítica,
não mais através de estados materiais e sim por meio de
estados psíquicos diferentes. Dalí, nesses casos, realiza uma
síntese entre o real e o imaginário, propondo a sua
desarticulação por parte do espectador. Os seus quadros da
fase paranóico-crítica apresentam, normalmente, dois veios a
serem percorridos. Primeiramente, Dalí utiliza-se de todo o
seu virtuosismo técnico para nos dar uma imagem de total
compreensão, dentro do mais puro figurativismo estético, o
mais próximo possível da nossa realidade racional. Em meio a
essa primeira fase representativa, Dalí compõe outras figuras
e objetos entremeados, a princípio imperceptíveis. Assim,
temos várias imagens compreendidas em níveis diferentes,
adentro de um mesmo universo espacial, no caso a tela. Tudo
agora dependerá do espectador, que desdobrará a cena
representada de acordo com o seu manancial de experiências
acumuladas. Em uma primeira visada, ficamos absortos na
extraordinária e fantástica plasticidade que essas imagens
apresentam, tamanha a versatilidade e, portanto, proximidade
com a natureza das coisas. Em uma segunda instância, no
entanto, obviamente se for do interesse e do desejo do
espectador ater-se de forma mais profunda à cena
representada, começaremos a desvendar o que há nas
entrelinhas, o que está por trás daquela imagem primeira,
nítida e chapada. Passaremos a vislumbrar um universo
infinito de associações de imagens.
Nesse momento, estaremos transpondo a barreira do
racional e adentrando no mundo das articulações
inconscientes, a partir do qual desdobraremos a cena
representada em tantas outras imagens quanto estivermos
predispostos a fazê-lo. Dalí em sua fase paranóico-crítica
dispõe, em um mesmo espaço representativo, coabitando de
forma integrada (assim como no caso da fotografia), elementos
que fazem parte nitidamente da realidade racional, que são
aqueles de apreensão imediata, objetiva e direta, com
elementos direcionados à realidade inconsciente, instigadores
do nosso sistema de autodefesa. Basta, então, a nós,
espectadores, fazermos a passagem do que está latente ao que
será manifesto, de realizarmos uma verdadeira transfiguração
que partirá de uma imagem figurativa identificada com a
realidade cotidiana, e que nos remeterá às inúmeras
associações de imagens que, a princípio, estavam em
potencial, sem serem reconhecidas, em imagens agora
manifestas através do nosso inconsciente. Constata-se aí a
surrealidade dalineana, por surgirem em um mesmo espaço de
articulação as instâncias racional e inconsciente
concomitantemente, assim como na película fotográfica.
A ambivalência físico-química da imagem fotográfica
reflete-se na ambivalência psíquica dalineana e a absorve
novamente, metaforicamente, como a caverna de Platão, de
maneira enriquecida e iluminada, uma vez que a instância
material da linguagem fotográfica nada mais é do que a
ratificação, a confirmação palpável de todas as articulações
vivenciadas por nós a nível inconsciente. Talvez o mais puro
ideal surrealista, tão exaustivamente procurado por André
Breton em todos os seus manifestos, esteja sub-repticiamente
cristalizado na fotografia, em transe com a pintura.
Walter Benjamin (1892-1940) já apontava para um
“inconsciente ótico” existente em cada um de nós, o qual só é
manifesto através da fotografia. Benjamin estava aí a falar
das diversas experiências e atitudes que vivenciamos
inconscientemente, mas que só são percebidas e flagradas pelo
olhar da câmara. É como se a fotografia possibilitasse a
revelação do “inconsciente ótico”, tornasse consciente,
fizesse surgir o vivido, enfim, desse forma, geografia, ao
que era apenas experimentado. Segundo Benjamin:
“A natureza que fala à câmara não é a mesma que fala ao
olhar; é outra, especialmente porque substitui a um espaço
trabalhado conscientemente pelo homem, um espaço que ele
percorre inconscientemente. Percebemos, em geral, o movimento
de um homem que caminha, ainda que em grandes traços, mas
nada percebemos de sua atitude na exata fração de segundo em
que ele dá um passo. A fotografia nos mostra essa atitude
através de seus recursos auxiliares. Só a fotografia revela
esse inconsciente pulsional.” (BENJAMIN, Walter – O b r a s
Escolhidas, p.94)

Essa aparição, visão do inconsciente de que estamos


falando, só é possível através da luz, a grande intermediária
de todo esse processo. Conforme Giordano Bruno, “para que a
visão seja constituída não bastam o olho e o objeto a ser
olhado, é necessária uma intermediação que é a luz”. Por
tratar-se de ponte, mediadora entre duas instâncias, a luz
comporta-se tanto como remédio quanto como veneno. Remédio
por proporcionar a emersão, realizar a verdadeira
esporulação, por dar origem e forma às vivências e
experiências que são apenas sentidas, mas que ainda não foram
localizadas e articuladas; remédio também, no sentido de
“curar”, preparar e tratar a película fotográfica para se
chegar à imagem desejada (a película, para deixar o seu
estado cru, original e tornar-se imagem, atinge a cura pela
luz, a “fotocura”), assim como no sentido filosófico e
psicológico de fazer vir à tona todos os nossos sonhos e
desejos, inscritos através de imagens. Paradoxalmente, nesse
mesmo sentido ela se torna veneno, por matar justamente o que
lhe deu vida, pois se a luz se faz remédio pelo fazer surgir,
assim o é devido aos impulsos inconscientes, que,
imediatamente, são aniquilados como tais, a partir do exato
momento de sua materialização. Desse modo, a luz trabalha
para dar vida e morte ao inconsciente.
Todo esse intrincado embate vivenciado em função da luz
apareceu também, interessantemente, na 2ª fase do Movimento
Surrealista que presentifica a Primavera do mito grego
Perséfone. Após ter sido raptada, Perséfone, a “Rainha dos
Infernos”, comeu três grãos de romã, o que a ligou,
definitivamente, ao reino das sombras. Deméter, sua mãe, que
saiu desesperada à sua procura, com um archote em cada mão,
só retornou ao Olimpo (monte considerado como a morada dos
deuses) com a promessa de que, a cada primavera, Perséfone
voltaria à luz. O Surrealismo cumpre, assim, o mesmo ciclo
percorrido por Perséfone. Para chegar à luz, portanto, foi
preciso que a “Rainha dos Infernos” permanecesse um longo
período na escuridão – a luz só lhe foi possível, só lhe foi
concedida a partir da escuridão.
É essa escuridão, entremeada de mistério e sabedoria,
que nos interessa como reflexão, frente ao contraponto da
visualidade e da luz, vitais à linguagem fotográfica.
XI – O CEGO, A FOTOGRAFIA E A SOCIEDADE CONTEMPORÂNEA

Refletir sobre instâncias opostas como luz e escuridão


sempre gerou infindáveis discussões, principalmente em se
tratando da sociedade ocidental, que, continuamente,
privilegiou tais instâncias como entidades paradoxais,
contraditórias e não complementares e inter-relacionais. A
escuridão da cegueira, talvez por envolver-se de intenso
mistério, tem sido, ao longo da história, palco de inúmeras
considerações e estudos.
A visão do cego historicamente
E meio à preparação de sua E n c i c l o p é d i a , Diderot
formulou um tratado relacionado a essa discussão em suas
“Cartas sobre os cegos para o uso dos que vêem”, em que,
interessantemente, a cegueira é examinada exatamente no
Século das Luzes. Paradoxalmente, o cego presentificou-se
como emblema do “Homem da Luz” justamente por participar, por
estar imerso em regiões a que outros não têm acesso. O cego
carrega um saber diferenciado, vê de outra forma e, como tal,
sempre surpreende, por olhar com os olhos de um mago que está
pronto a revelar algo que só a ele cabe e que só ele conhece.
Já no século VI a.C., um dos primeiros poetas gregos, Homero
(que era cego), era tido como o “mestre da verdade
inacessível”. O cego Tirésias, da peça Antígona, de Sófocles,
era vidente; mais recentemente, no século XX, podemos falar
do escritor argentino Jorge Luis Borges, que ficou cego nos
anos mais produtivos de sua vida literária, deixando uma obra
de extraordinário valor pela visão filosófica e metafísica
que tinha da vida. Todos eles, dentro das suas diferentes
temporalidades, representavam sábios diferentes, apontavam
para uma nova ordem filosófica, baseada em uma nova maneira
de se perceber o mundo.
Ao mergulharmos um pouco mais fundo no século XVIII e em
seu Iluminismo, percebemos que os seus próprios teóricos
incorporaram a escuridão em seu pensamento, levando-nos a
crer que a luz (a razão) associava-se à escuridão para fazer
dela o seu próprio fermento, ou seja, que o caminho para se
chegar à razão (à luz) deveria, necessariamente, passar pelas
trevas. Quando Diderot coloca Saunderson, um cego de
nascença, como personagem principal de seu livro, identifica
a sabedoria com a escuridão, inclusive reforçando a sua
formulação ao colocá-lo como um geômetra (nada mais paradoxal
para nós, que enxertamos, do que um geômetra cego). A outra
leitura, que faz parte do mesmo pensamento, seria a de que
Diderot, através do Saunderson, nos fala da insipiência, da
superficialidade e, mesmo, da vaidade daqueles que vêem,
principalmente dos que vêem demais.

O sentido da visão privilegiado pela cultura ocidental


O sentido do “ver demais” acaba por atualizar, por
inserir o pensamento de Diderot na contemporaneidade, porque
vivemos, hoje, a cegueira por vermos demais. A nossa
civilização privilegia, acima de tudo, o olhar , mais que
qualquer outro sentido. No mundo grego, pré-socrático, o
mundo do mito, o homem é levado pela força da música
(Mellus). Percebendo que ela se destrói, se dissolve, o homem
trata de criar Apolo, representante da imagem, para se ater a
uma aparência, para buscar a sua estabilidade, para se
perpetuar no mundo e, então, não desaparecer. A partir daí, a
nossa civilização passa a valorizar a imagem, o visual, o que
vem do olhar, e desde então temos sido, pouco a pouco, e cada
vez mais, envolvidos por imagens, principalmente após a
Revolução Industrial. Em função da pressa, da agilidade com
que as coisas acontecem no mundo, a cultura ocidental
contemporânea passou a ser calcada na fragmentação (o cubismo
já apontava esse caminho), na redução do todo, buscando na
fração, no fragmento, a síntese, o máximo de informação, num
mínimo de tempo despendido. Nesse sentido, o texto, a
literalidade passou a sucumbir frente à imagem, e desde então
temos sido abarrotados, literalmente “metralhados” por toda
sorte de imagem, a todo momento. Assim, ironicamente, a
contemporaneidade nos coloca diante do mesmo impasse vivido
pela fotografia (uma de suas filhas mais rebeldes) diante da
luz – o excesso como fator destruidor, aniquilador e
paralisante. Quando nos defrontamos com o imenso acúmulo de
imagens a que somos submetidos, corremos sério risco de nada
vermos, da saturação tornar-se prenúncio da não-absorção e
metafórica e paradoxalmente, da própria escuridão.
Essa talvez seja a verdadeira cegueira, pois ao
contrário daquele que, de fato, não enxerga, temos sido
privados do nosso sentido de visão seletiva, e nem por isso
nos aguçamos, nos esmeramos em nossos outros sentidos. Ao
contrário do que deveria acontecer, encontramo-nos
progressivamente mais embotados, indiferentes e apáticos, e
esse estado letárgico, por comprometer a nossa visão, faz da
fotografia um verdadeiro instrumento seletivo daquilo que se
vê, ou melhor, do que se quer ver e não se consegue. De outra
maneira, poderíamos dizer que o olhar passou a ser de tal
forma privilegiado em nossa cultura, que os outros sentidos
atrofiaram-se ou não se desenvolveram o suficiente. Quando o
próprio sentido visual torna-se velado pelo excesso do que há
para ser visto, deparamo-nos de frente com todas as nossas
fragilidades sensitivas e, conseqüentemente, com uma brutal
dificuldade em reagir às intempéries do mundo moderno. Dentro
deste contexto específico, o cego (aquele que, de fato, não
possui o sentido da visão) não apenas integra-se à
contemporaneidade como interage com ela de maneira muito mais
intensa. Justamente por encontrar-se privado do sentido de
maior valoração em nossa cultura é que o cego potencializa
todos os seus outros sentidos e, conseqüentemente, a sua
relação com o mundo passa, obrigatoriamente, por canais
diferenciados. A sua noção de tempo, de espaço e toda a sua
atitude diante das coisas do mundo são trabalhadas em função
dos sentidos extremamente aguçados de que dispões. Por isso
ficamos tão perplexos ao percebermos a interação do cego com
o meio em que vivemos.
Ao cego, no entanto, falta a luz, e “para que a visão se
constitua torna-se imprescindível a mediação da luz”
(G.Bruno). A escuridão, portanto, seria a própria negação da
fotografia, a sua maior antítese, já que a sua existência
depende, irredutivelmente, do que vem da luz. Não por não ter
a luz, mas por não vê-la, é que o cego constitui-se
teoricamente, como o grande paradoxo da fotografia, que,
necessariamente, exige a visão. Mas qual é essa visão? Será
que a visão de que fala a fotografia está conectada, única e
exclusivamente, ao olhar, isto é, ao poder da visualidade em
si?
Evgen Bavcar
Se todas as reflexões, por mais pertinentes que sejam, v
em ensejar qualquer dúvida a respeito do que foi dito acima,
faz-se necessário tomar conhecimento da obra do fotógrafo
cego esloveno Evgen Bavcar. Neste momento, abandonamos o
universo da visão do olho para penetrarmos na visão
sensitiva. Bavcar é o fotógrafo da sombra, não da luz; é a
própria redundância por ser, como ele mesmo diz, “uma câmara
escura atrás de uma câmara escura”. Na verdade, o que ele faz
é inverter o processo da caverna de Platão, a fim de nos
provar que é preciso um retorno à escuridão para que se possa
voltar, efetivamente, a enxergar, e para que, na escuridão
das trevas, as pessoas possam encontrar as imagens que
realmente procuram.
Conforme pudemos refletir anteriormente, a fotografia
carrega algo de vidente em sua linguagem, aponta para algo
que os olhos comuns não vêem, revela para o futuro situações
imperceptíveis e que escapam à realidade cotidiana,
principalmente à contemporânea, já tão impregnada e poluída
visualmente, na qual pouco se pode ver, não somente pelo
excesso do que há para se ver como também pela crescente
padronização das imagens com as quais nos deparamos. Essa
vidência fotográfica à qual nos referimos nada mais é do que
o resultado lógico da ansiedade vivida pelo homem
contemporâneo. É como se ele tivesse encontrado na fotografia
a sua própria redenção, o veículo necessário para reencontrar
a imagem perdida, enfim, tivesse adquirido olhos
contemporâneos, uma vez que o homem passou a ter,
necessariamente, de reavaliar todo o seu processo de visão,
selecionar as imagens a ele impostas, de modo a não sucumbir
perante o clichê e não perder a sua identidade diante da
massificação. Assim, fugindo da cegueira contemporânea o
olhar retoma um outro caminho, realiza uma espécie de
assepsia, no sentido de afastar tudo o que é excesso, tudo o
que é retórica, impondo a si mesmo um processo de reeducação.
O olho, então, mais seletivo, mais esmerilhado, encontrar-se-
á capacitado a ver o que outros não vêem, ou mesmo, o que ele
antes não via. Esse processo, portanto, em função da apuração
do olhar, leva ao que estamos chamando de vidência, de ver o
invisível.
Por mais contraditório que possa parecer, o olho, para
efetivamente ver, deve aproximar-se cada vez mais da redução,
de algo minimalista, em franca oposição à redundância, e
Bavcar leva essa proposição às últimas conseqüências. Mais do
que realizar um processo de redução, ele é a própria redução,
a própria negação da visualidade, faz verdadeira “tabula
rasa” do que é o olhar. Com ele, há o rompimento da barreira
da apuração máxima do olhar por materializar a visualidade
através da fotografia, estando, literalmente, na escuridão.
Bavcar vê o invisível, mas o invisível para nós, que
enxergamos, pois ele vê de forma diferente, sem fazer da
fotografia uma atividade reprodutora da natureza. A partir do
momento em que um cego realiza ensaios fotográficos, toda e
qualquer discussão em torno da fotografia ser ou não mimese
da realidade cai por terra. A sua postura diante da
fotografia, a maneira como ele lança mão dessa linguagem é
única e exclusivamente de forma criativa, materializando e
dando formas às imagens através de um processo de construção,
elaborado em sua imaginação via sensações adquiridas. Talvez
aí esteja o ponto nevrálgico da autonomia tão procurada pela
fotografia, que parece estar se autodriblando (pois que há,
de fato, a “finta”, mas ainda prevalecendo o total controle
do meio).
O cego e a questão mimética da fotografia
Quando os fotógrafos pictorialistas tentaram, a todo
custo, retirar da fotografia o pesado fardo que lhe tinha
sido imposto, que era o de ser o mero “espelho da realidade”,
acabaram por torná-la um verdadeiro pastiche da pintura, de
cujos princípios ficou dependente e servil. De lá para cá
incontáveis discussões e questionamentos relacionados ao jugo
da fotografia à realidade e à pintura têm sido levantados,
embora essa discussão já tenha se esvaziado por si mesma,
pois vivemos hoje uma época das artes visuais, em que as
linguagens artísticas não se percebem mais de forma cindida,
seccionada, mais inter-relacionada (hoje o conceito de “artes
visuais” é bem mais apropriado do que o de “artes plásticas”,
haja vista a total inter-relação entre as linguagens, a
imensa impregnação de uma linguagem em outra, e o fato de o
suporte, a materialização e a desmaterialização estarem sendo
tão amplamente discutidos).
Evgen Bavcar dá um passo fundamental em torno de toda
essa discussão ao exercer o seu processo de criação através
da fotografia, ao mesmo tempo afastando-a de toda e qualquer
submissão tanto em relação à pintura, conforme o conceito dos
pictorialistas, quanto em relação à realidade. Ele se utiliza
da luz que a natureza lhe proporciona (e que lhe foi negada)
para construir a sua arte, tendo a fotografia como veículo,
não fazendo dela um meio para repetir a realidade. Por
faltar-lhe o sentido da visão, tudo passa a ser pura criação,
o que afasta a conceituação mimética imposta à fotografia
desde a sua criação, e que, porventura, ainda possa
permanecer entre os menos atentos. A fotografia, aí, é livre,
plenamente independente, desprovida de qualquer amarra, seja
ela no sentido conceitual ou moral. É interessante observar a
plena autonomia da fotografia (linguagem eminentemente
visual) aparecendo justamente na abstração da visão, como se
tivesse havido a necessidade de se limpar total e
completamente a visão do olhar, realizar a sua inteira
despoluição, para se chegar à sua plena liberdade.
Enxergar não pode caracterizar-se como um processo
meramente visual, pois seria banalizar, superficializar em
demasia a condição humana. Homero, Tirésias de Sófocles,
Borges e tantos outros entraram para a história, e de alguma
forma influenciaram na transformação das sociedades em que
viveram, privados do sentido da visão. Nesse contexto,
podemos falar também de Bavcar, por ele ter tido a ousadia de
resgatar a questão do sentido da visão em uma sociedade como
a nossa, extremamente racional, calcada nos cânones
aristotélicos, em que o ver relaciona-se estreitamente – e,
por isso mesmo, reduz-se bruscamente – aos elementos
intelectuais e às relações entre as idéias. Bavcar, de uma
certa forma, radicaliza a sua contraposição a toda essa
cultura, por levantar essa questão justamente através da
linguagem que exige o olhar como o elemento ativo.
Por não possuir a visão, a postura e a relação do cego
com o mundo passa não apenas pelos outros sentidos já tão
aguçados, como pela memória que ele guarda das coisas a
partir desses estímulos sensitivos. O trabalho de Bavcar
estrutura-se, basicamente, em função do conceito da memória
conectado aos sentidos, não a memória conceitualmente
histórica e usualmente tratada por nós. Assim como as pessoas
que enxergam possuem a memória visual das coisas (muitas
vezes tida como “memória fotográfica”), o cego exercita a sua
memória através do olfato, da audição, das sensações de frio
e quente, do sopro do vento sobre as coisas (Bavcar costuma
dizer que fotografa contra o vento para perceber a forma e a
posição das coisas) e, principalmente, através do tato, que
pode tornar-se extremamente refinado em decorrência de
constantes exercícios. Assim, percebemos em Bavcar a própria
totalidade do artista, a plena inserção e integração no
trabalho, uma vez que o seu processo de criação passa,
essencialmente, tanto pelo corpo quanto pelo espírito, por
todos os sentidos e pela mente.
Assim como Picasso por meio de “Máscaras Africanas”,
“Guitarra”, “Demoiselles D’Avignon” e tantos outros trabalhos
revolucionou a cultura ocidental ao negar qualquer tipo de
hierarquia entre os objetos (orgânico e inorgânico) e entre
os valores provenientes do Oriente e do Ocidente, Bavcar
afasta a noção de subordinação e hierarquia entre o racional
e o inconsciente, exercendo, de fato, a plena surrealidade.
Ao visitar a belíssima exposição do fotógrafo esloveno
no Museu da República (Rio de Janeiro), tive a oportunidade
de observar algumas pessoas extremamente mobilizadas pelo que
estavam vendo, não apenas pelo fato de aquelas imagens terem
sido captadas por um fotógrafo cego, mas pela própria
estranheza das imagens em si. Havia algo desconectado, algo
de diferente naquelas imagens, de forma a suscitar tamanhos
questionamentos, os quais, em última instância, acabavam por
localizar o trabalho como surrealista. Confesso que fui
tomado por todas aquelas articulações, a ponto de me
perguntar por que tais pessoas haviam associado aquelas
imagens ao Surrealismo. O que seria esse “Surrealismo” ao
qual se referiam? Estaria esse “Surrealismo” no lugar
exatamente de uma falta de definição? (É comum as pessoas
fazerem referência ao Surrealismo quando estão diante de algo
estranho, diferente.) Penso em que deslocamentos, na
realidade interna de cada uma daquelas pessoas, tais imagens
poderiam ter provocado para que elas passassem a reagir com
tamanha estranheza.
Certamente, em alguma instância algo rompeu-se, desfez-
se na relação entre a realidade racional do espectador e a
vivência inconsciente experimentada diante daquelas imagens,
para que houvesse tal mobilização. Não acredito que as
características técnicas das fotografias (ângulo de tomada,
pontos de vista bastante insólitos, em alguns casos, perda da
profundidade de campo, sobreposição de planos etc.) por mais
que apresentem aspectos realmente incomuns, possam ter sido o
fator determinante para o questionamento. Creio que
poderíamos pensar em algo mais além, em algo que, a
princípio, estaria velado, escamoteado por trás do exotismo
técnico, mas que, talvez, possa ter servido de estopim, de
elemento desencadeador, e por isso de gancho de união e
mobilização com o espectador.
Primeiramente, é preciso atentar para a extrema
dificuldade que temos em admitir e absorver algo que venha
caracterizar-se como uma visão nova e diferente do mundo, e
Bavcar coloca isso de imediato, até porque ele, realmente, vê
diferente. Enquanto a nossa visão é truncada, afastada e
carregada de uma imensidão de vícios, críticas e regras, haja
vista toda a teorização que trazemos desde o Renascimento, a
visão do Bavcar é total e participativa. Nela, corpo e mente
são acionados de uma só vez, interagindo constantemente um
com o outro e proporcionando, desta forma, uma imagem
liberta, isenta do vício cultural, moral, e racional, vinda
do exterior. Se as suas fotografias são realmente diferentes
das que normalmente encontramos, se causam tamanho espanto e
perplexidade, é justamente porque a sua visão é mais
profunda, mais completa, realizada de dentro de cada
situação, uma vez que não são “tiradas” em decorrência de
apenas um dos nossos sentidos (a visão). Para nós que
enxergamos, fotografar pode depender única e exclusivamente
da visão, e, obviamente, de um mínimo de conhecimento
técnico, enquanto que para um cego esse processo certamente
terá de envolver a memória sensitiva captada de vários
sentidos, aliada a uma profunda percepção inconsciente do
mundo.
Assim sendo, não há dúvidas de que o envolvimento e o
investimento colocados em uma fotografia realizada por um
cego são, incomparavelmente, maiores do que as que executamos
e, por isso mesmo, ela parece tão diferente para nós. Ao
fotografar, o cego efetiva a síntese do Surrealismo, atua a
plena comunhão entre a realidade racional existente, que lhe
serve como referencial e índice, e a realidade inconsciente,
que, intrínseca, faz parte do seu universo em trevas, que só
a ele pertence.
A síntese do Surrealismo na imagem fotográfica criada pelo
cego
Quando refletimos a respeito do momento mágico em que o
obturador é acionado, momento único, capaz de integrar
naquele décimo de segundo a síntese surrealista, pois este é
o instante em que o espelho se fecha proporcionando a
escuridão, quando mergulhamos na instância inconsciente (em
harmonia com a instância racional da realidade dada), estamos
nos referindo ao universo do cego, ao único momento em que
experimentamos, embora de maneira tênue, a vivência do cego.
Dessa forma, Bavcar não apenas vive a escuridão, como é o
próprio espelho fechado. O que, para nós, passa-se em alguns
décimos de segundo, para ele identifica-se com a sua própria
existência. A escuridão lhe proporciona um estado natural de
constante vigília inconsciente. Diríamos que ele
representaria o nosso “negativo”, por percorrer um sentido
inverso ao nosso, pois enquanto nós, para realizarmos uma
fotografia, temos, de antemão, a realidade racional dada e
saímos em busca do décimo de segundo da nossa escuridão
(instância inconsciente), Bavcar já parte da sua própria
escuridão, ávido pela realidade racional. Assim, o seu
percurso, ao fotografar, compreende uma carga inconsciente
extremamente acentuada, o que lhe confere uma visão
diferenciada do mundo.
A condição do cego, enquanto fotógrafo, identifica-se de
certa forma com os “Penetráveis” de Hélio Oiticica31 e com os
“Contra-Relevos” do artista russo Vladimir Tatline, um dos
elaboradores do Construtivismo russo. Os “Contra-Relevos” são
planos abertos e vazados cujos espaços internos compreendem o
mesmo espaço externo (exterior) do espectador. Então o que é
o espaço interior dele? É o meu espaço exterior. Não há,
portanto, espaço interno e espaço externo, tudo é uma coisa
só, ou seja, o “Contra-Relevo” está totalmente imerso no
ambiente em que se encontra e que o qualifica. Enquanto o
relevo nos passa a ilusão da saliência, do estar para fora, o
“Contra-Relevo” se insere no ambiente. A postura do Bavcar,
31
Hélio Oiticica : artista brasileiro (1937-1980).
Transformava os processos de arte em sensações de vida.
Considerava como “problemas sensoriais básicos aqueles
relacionados à sensação de estímulo-reação condicionados a
priori ”. Para ele, a “participação sensorial” deveria ser
relacionada a um sentido supra-sensorial, no qual o
participante iria elaborar dentro de si mesmo suas próprias
sensações.
ao fotografar, é justamente a da plena inserção, em que o
nosso espaço externo caracteriza-se como o seu espaço
interno, exatamente como o “Contra-Relevo”. Para Bavcar, os
espaços interno e o externo fazem parte de um mesmo universo,
não havendo diferenciação entre ambos, uma vez que “o seu
lugar é o de dentro”, o da plena imersão no ambiente, e é
precisamente essa postura que o leva a participar da
contemporaneidade de forma tão absoluta.
Se observarmos um pouco o desenvolvimento da sociedade
ocidental e o seu percurso até o atual momento em que nos
encontramos, podemos perceber que o homem sempre buscou uma
dualidade (sujeito/ objeto, tempo/ espaço, corpo/ alma),
identificando, assim, uma cisão ao se afastar do mundo e,
conseqüentemente, de si próprio. O mundo encontrava-se lá
fora, e o homem, postado à distância, observava todos os
acontecimentos e fenômenos de forma racional, sem qualquer
envolvimento direto. Não é por acaso que a pintura (reflexo
da sociedade) manteve-se praticamente, durante quatro séculos
(do Renascimento a Cézanne) representando a figura destacada
do fundo. Partia-se do pressuposto de que havia uma estrutura
preconcebida do espaço onde o objeto era, então, inserido, e
a garantia de que, naquele espaço, haveria a inserção de um
objeto, o que nos leva a pensar que, ao se pintar primeiro um
fundo e depois a figura, o homem se pressupõe num mundo em
que há uma estrutura prévia a qualquer acontecimento, com uma
ordem espacial garantindo os acontecimentos do mundo. Essa
atitude aponta para uma total falta de integração do homem
com o mundo (falta de integração figura/ fundo). Somente nos
finais do século XIX, com Cézanne, é que essa relação do
homem com o universo em que vive começa a aparecer de forma
diferenciada. Cézanne passa a trabalhar na tela experiências
percebidas a partir de uma nova qualidade no relacionamento
homem/ mundo, pois passa a ser a tônica da arte contemporânea
a proximidade, a interação.
Até o século XIX, os mecanismos da cultura ocidental
tentaram, o quanto puderam, manter distantes a
intelectualidade e tudo o que pudesse remeter à emoção e à
afetividade, estigmatizando o desenho como o representante da
racionalidade (intelectualidade) e a cor como pertencendo à
emoção. Esses universos eram postos à parte com o intuito de
sustentar o distanciamento do homem em relação ao seu
universo. Historicamente, ou se era desenhista, pertencente à
escola florentina, ou se era colorista, segundo a tradição
veneziana. Na realidade, essa conceituação arrastou-se até as
proximidades do Impressionismo, que trabalhava,
exclusivamente, a sensação visual através da cor, abstraindo-
se de uma maior estruturação do quadro. Matisse, que
certamente bebeu na fonte dos trabalhos de Gauguin, quebrou o
ciclo estabelecido ao construir os seus quadros,
racionalmente, através da cor. O equilíbrio, embora
extremamente instável, verificado em seus trabalhos, vem da
construção racional das massas de cores no plano (ora
“esfriando”, ora “esquentando” as cores), sendo que a cor,
aí, representa também o intelectual, não estando, apenas, a
serviço da pura emoção. Matisse chega à extrema síntese
desenho/ cor quando passa a realizar a découpage, que são os
recortes em papel colorido, os quais eram compostos e
colados. Há, aí, a total integração desenho/ cor, pois forma
e cor são, agora, uma única coisa, como se Matisse passasse a
pintar com a tesoura e, assim, representasse a total
interação do homem com o mundo. O Cubismo, por outro lado,
perseguiu a mesma harmonia e equilíbrio, mas pelas vias da
intelectualidade, pois objeto e espaço eram integrados
através da pesquisa racional, na busca representativa da nova
relação de aproximação e participação homem/ mundo.
Ao observarmos a obra de Bavcar parece-nos que ele
perfaz ambos os caminhos trilhados por Matisse e Picasso ao
mesmo tempo, como se ele fosse a própria síntese dessas
vertentes. SE, por um lado, prescindir do olhar lhe rouba o
veículo privilegiado pela nossa civilização, por outro lhe
confere a plena integração, o que o coloca no cerne do embate
contemporâneo, que é a divisão, o afastamento entre as
instâncias racional e emocional, afetiva (em última
instância, inconsciente). Bavcar nega todo esse arcabouço
construído em função da separação, uma vez que a sua condição
não permite o distanciamento imposto pelo sentido da visão,
em que não há superficialidade, não há voyeurismo, não há
meias palavras, pois que sua visão é dentro, é tátil, é, como
disse anteriormente, o próprio “Contra-Relevo” de Tatline. A
partir daí, Bavcar nos faz perceber que o seu trabalho é,
efetivamente, inter-relacional, que a realidade racional e o
inconsciente, que a materialidade das coisas e a sua
espiritualidade pertencem a uma mesma hierarquia, em que nada
se sobrepõe a nada, pois sujeito/ objeto, figura/ fundo,
dentro/ fora, corpo/ alma, tudo carrega o seu próprio grau de
luminosidade e reflete o brilho a cada entidade complementar.
Assim, a equação Matisse/ Picasso refaz-se no decorrer
da obra de Bavcar. A carga inconsciente que permeia de forma
intensa o seu trabalho resgata o investimento emocional
depositado por Matisse através da cor (por mais paradoxal que
possa parecer um fotógrafo cego evocar a cor como uma de suas
referências), ao mesmo tempo em que a sua efetivação só se dá
se estiver sustentada pela sensibilização de seus outros
sentidos que não a visão, adquirida através da materialidade
das coisas da realidade existente. Configura-se, aí, a
própria estruturação do trabalho, a real construção da
imagem, surgindo, então, o referencial da obra de Picasso.
Para Bavcar, fotografar é entregar-se, literalmente, de corpo
e alma, é perceber-se Matisse e Picasso, é ser-se matéria e
espírito, consciência e inconsciência concomitantemente.
Por estar dentro, por estar efetivamente inserido,
fazendo parte do ambiente que está fotografando, é que as
imagens de Bavcar transmitem uma extraordinária carga de
materialidade. A cegueira o leva a fotografar através do tato
(mais do que qualquer outro sentido), pois ele toca, apalpa o
objeto antes de fotografar, fazendo com que o universo ao seu
redor torne-se parte integrante do seu próprio universo. Com
isso, interpõe matéria sobre matéria à imagem, sem lançar
mão, na realidade, de qualquer tipo de material, o que acaba
por aproximar a sua obra fotográfica à pintura. Essa
aproximação não se dá de acordo com o que “fotógrafos
pintores” no final do século XIX tentaram fazer. Ao contrário
de Robinson e Reijlander – que ansiavam por elevar a
fotografia ao status que a pintura havia alcançado na época,
e que, em função disso, tiveram de abrir mão das
características inerentes à própria linguagem fotográfica em
prol dos meios típicos da pintura – a obra de Bavcar remete à
pintura e interage com ela a partir da sua própria postura
diante da imagem a ser fotografada. Ele altera o que seria o
nosso ponto de vista porque, na realidade, ele não o tem.
O seu deslocamento, por não ter o vício do ponto de
vista único, possibilita vários pontos de vista diferentes e,
freqüentemente, as suas “tomadas” são angulosas, oblíquas,
produzindo imagens cujos planos sobrepõem-se uns aos outros,
remetendo a uma materialidade típica da linguagem pictórica,
em função das diversas superfícies planares em contigüidade.
Aí, sim, a fotografia encontra a pintura sem traumas ou
complexos, sem o medo da sua própria descaracterização por
querer ser o outro; a partir daí torna-se totalmente inócua a
discussão que gira em torno do fato de a fotografia pertencer
ou não às artes plásticas, e de ter o status de outras
atividades artísticas, de tentar ou não fazer da pintura o
sue próprio noema.
A obra de Bavcar nos faz perceber que é possível a
interação e a aproximação entre as linguagens artísticas, sem
que com isso haja a perda da integridade de cada meio, até
porque ao evocar, de alguma forma, a pintura em seus
trabalhos, reafirma toda uma conceituação e princípios
próprios da fotografia, ao mesmo tempo em que deixa-se
permear por manifestações externas.
Pensar a obra de Bavcar é ver a fotografia por dentro,
com tudo o que ela tem de escuridão, sem restrições ou
limites; é possibilitar-nos tirar o véu do meio tom,
restando-nos o preto e o branco, que, afinal, é a linguagem
por ele escolhida para trabalhar. De fato, é bastante
coerente, para um cego que fotografa, a escolha pelo processo
em preto e branco, pois, afinal de contas, essa linguagem
apresenta um grau interpretativo muito maior do que a
linguagem em cor. De imediato, a fotografia em preto e branco
distancia-se da realidade existente, que é colorida. A
relação que mantemos com o meio em que vivemos sempre se deu
de forma colorida. Assim, uma fotografia colorida, por pior
que seja (tecnicamente falando), encontra-se muito mais
próxima da nossa realidade, já apresenta, de antemão, o mesmo
código intelectivo da nossa realidade. Por isso a fotografia
colorida ser considerada (muitas vezes equivocadamente) mais
fácil de se fazer. É como se ela permitisse uma margem de
erro muito maior, pois só pelo fato de possuir a cor já
encontra ressonância, já possibilita um maior entendimento
para o espectador. A cor, no entanto, ao mesmo tempo em que
compreende um fator de aproximação com a realidade, pode, por
outro lado, banalizar a fotografia, levá-la ao constante
risco da retórica. Em função da maior compreensão da foto
colorida, o mercado de consumo passou a ser massificado pela
linguagem em cor e, com isso, a “boa” fotografia colorida
passou a sofrer um processo de desvalorização artística muito
grande. Assim, essa referência mais explícita à realidade
dada acaba por tornar a fotografia colorida desprovida de
elementos subjetivos mais intensos, comprometendo,
conseqüentemente, o seu valor criativo.
Por outro lado, a fotografia em preto e branco afasta-se
da realidade existente por não lhe prover códigos de
entendimento compatíveis com os seus, o que a leva a
desfrutar de um maior descomprometimento mimético. O lastro
de sua autonomia amplia-se à medida que ela prescinde do seu
maior referencial com a pintura, que é a cor. Uma fotografia
em preto e branco, por melhor que represente a realidade, por
mais que dela se aproxime, guarda consigo alguma coisa de
oculto, de não revelado. Ela é uma linguagem que pressupõe
algo além da mera contemplação, não há como estar realmente
envolvido, “tomado” por uma imagem em preto e branco com uma
postura simplesmente voyeurista, pois essa implicação exige
desvendar as suas entrelinhas, descobrir, pouco a pouco, o
que a imagem nos proporciona implicitamente, o que há para
ser visto por trás dos claros e escuros. Então, há de se
fazer da fotografia em preto e branco um verdadeiro
palimpsesto, em que os diversos planos de sombras e luzes
vão, passo a passo, desdobrando-se em outras visões dentro do
mesmo espaço fotográfico, no mesmo suporte.
A fotografia em preto e branco, portanto,
independentemente de sua abordagem, já parte de um intenso
dado reflexivo, que a coloca, de alguma forma, como
referência à interiorização, ao estar dentro, ao profundo.
Quando Evgen Bavcar debruça-se sobre a fotografia por
meio da linguagem em preto e branco, configura-se a pura
essência do que se poderia chamar de Surrealismo, uma vez que
a realidade existente, racional, integra-se, de forma plena,
à instância inconsciente, produzindo, assim, a fotografia
surrealista contemporânea por excelência. A constante
atualização e, portanto, a grande contemporaneidade da
fotografia encontra-se justamente nessa capacidade de ela
carregar, já impregnada em sua linguagem, toda uma carga
surrealista de oscilar constantemente entre o real e o
imaginário, em convivência mútua.
A fotografia pertence ao universo científico e artístico
ao mesmo tempo, além de possibilitar o automatismo através do
acidente, o acaso. Trabalhando ininterruptamente a distância
espacial, social, cultural e psicológica, a linguagem
fotográfica coloca-nos frente ao desconhecido, ao que é
estranho à nossa vivência comum, tendo como fio o excêntrico,
o exótico, proporcionando, assim, um vasto manancial de
questionamento. Por tudo isso, a fotografia nos faz ver que o
surrealismo a ela incorporado não se adequa única e
exclusivamente a uma época ou ao Movimento Surrealista em si,
mas sim ao que pode ser identificado tanto em um retrato de
Julia Margaret Cameron (1815-1879) quanto em uma imagem
contemporânea de Bavcar.
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