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Rio
de Janeiro: 7Letras, 2000.
Capturar visualmente o mundo e narrá-lo, sob este ponto
de vista, ontologicamente (mesmo que apenas sob a forma de um
registro gratuito de seus aspectos óbvios e cotidianos) tem
sido um dos desejos mais arraigados do homem ocidental. Tal
anseio “óptico” de representação conduziu, em termos
imagéticos, a uma autêntica “quebra” do, até então
prestigiado, ato pictórico, ao ser implementado, em pleno
século XIX, o agenciamento técnico final do dispositivo
fotográfico. Este fato se deveu a pioneiros do naipe de
Thomas Wedgwood, Joseph Nicephore Niepce, Louis Jacques Mande
Daguerre, Hippolyte Bayard e William Henry Fox Talbot - para
citar apenas os mais bem sucedidos, dentro de uma legião de
engenhosos pretendentes – precisamente em agosto de 1839,
quando o governo francês comprou a patente do daguerreótipo,
disponibilizando-o para o uso público, já com o nome
“fotografia” (híbrido dos termos gregos p h o s , “luz” e
graphein, “escrever”, literalmente significando “escrita – ou
registro – luminosa”) – sugerido, à época, por Sir John
Herschel. O referido agenciamento simplesmente arrematava uma
série de esforços, remissíveis à arquetípica câmera obscura,
tão cara aos renascentistas, em não só dar conta de uma
representação mais “pura” do real, quanto em disseminá-la e
partilhá-la em nome da racionalidade científica triunfante
ou, pelo menos, para a fruição simbólica das classes, que
então agentes oficiais do poder, nela investiam.
Autêntica interface do técnico e do estético, do jogo
duro da representação e da maleabilidade conceitual crítico-
moderna, a fotografia tem se constituído em um domínio, sem
dúvida, privilegiado – principalmente se levarmos em conta o
fato de ela não poder apelar, como pôde o cinema, para a
codificação fácil do binômio narrativa ficcional-movimento no
tempo – no que tange a uma melhor elucidação da sensibilidade
contemporânea. No entanto, e apesar disso, são ainda
relativamente ouças, em nosso idioma, as incursões teóricas
de qualidade, no que diz respeito à linguagem fotográfica e
seu entorno poético. A exemplo dos ensaios, por aqui já
traduzidos, de Philippe Dubois (O Ato Fotográfico) e de Jean-
Marie Schaeffer ( A Imagem Precária: Sobre o Dispositivo
Fotográfico ), O Surrealismo e a Estética Fotográfica, de
Fernando Braune, persegue um novo approach dessa ordem,
revelando-se enriquecedor não só por sua tentativa de
(re)discussão dos aspectos intrínsecos da fotografia, como
também por sua proposta de elucidação de um certo elemento de
“surrealidade” impregnante do olhar fotográfico. Se o
principal percalço de uma reflexão incisiva sobre a
fotografia ainda repousa sobre o cotejamento, em tese
improvável desde Platão, entre as ordens lógico-
metafisicamente excludentes da representação-simulação e da
objetividade-verdade, uma análise inter-faceante, como a aqui
fomentada, do projeto surrealista – no caso, pela
caudalosidade de um Giorgio de Chirico, um Max Ernst, um Joan
Miró ou um Marcel Duchamp – em sua intencionalidade “de
afrontamento da passividade, do enfado e da alienação
impostos pela racionalidade moderna”, decerto nos conduz a um
instigante sobrevôo emancipatório. Urge acrescentar que a
qualidade visual de tal sobrevôo jamais deixa de ser-nos
garantida pelos recortes vigorantes com que Fernando trata de
municionar nossa leitura e que, indo, entre outros, da dicção
cega das lentes de Evgen Bavcar ao voyeurismo paralisante do
estranho de Diane Arbus, balizam com acuidade todo o
percurso.
Jorge Lucio de Campos
SUMÁRIO
INTRODUÇÃO [7]
O referente [9]
O atrelamento da fotografia às artes plásticas [10]
A busca da autonomia [12]
A periferia [15]
A surrealidade em Arbus e Seurat [16]
O deslocamento do conceito do belo [20]
As bases do Surrealismo [21]
A dessacralização do nu [21]
A fotografia e o 1º Manifesto Surrealista [24]
Pintura (Roma) x Fotografia (Pompéia) [26]
A surrealidade fotográfica de Miró [27]
O referente
A busca da autonomia
9
George Braque : pintor francês (1882-1963). Participou
primeiramente do Fouvismo. Em 1908 fez uma exposição onde se
observavam “pequenos cubos”nem suas telas, surgindo, daí a
expressão “cubismo”. De 1909 a 1913 trabalhou com Picasso,
criando o Cubismo analítico. Foi Braque quem executou as
primeiras colagens na pintura.
10
Pablo Picasso : pintor espanhol (1881-1973). O mais célebre
artista do século XX, embora tenha sido ligado ao Cubismo com
Braque, permaneceu um criador independente de qualquer
escola. Realizou obras de cerâmica, escultura, desenho e
gravura, além da pintura.
II – O OLHAR SOCIAL URBANO
11
Yves Tanguy : pintor americano, de origem francesa (1900-
1955). Foi introduzido ao Surrealismo em 1925, onde
participou de todas as exposições do movimento. Suas obras
foram realizadas com um cuidado rigoroso e podem ser
consideradas das mais ricas plasticamente e das mais
características do Surrealismo.
12
O Movimento Surrealista enquanto uma Escola: criado pelo
escritor francês André Breton (1896-1967). Breton fundou a
revista Litterature, órgão do movimento Dada, que preconizava
a destruição dos valores lógicos, morais e artísticos. O
culto do irracional o conduziu ao Surrealismo, do qual ele
foi e continuou sendo o principal articulador, chegando a ser
chamado de “O Papa do Surrealismo”. Em 1924 escreveu o 1º
Manifesto do Surrealismo e em 1930, o 2º Manifesto.
total desagravo à sociedade vigente. De fato, as
conseqüências da Revolução Industrial acabaram por criar todo
um clima favorável à formação de um movimento com as
características do Surrealismo. A mecanização da indústria
propiciou um aumento na oferta e na qualidade dos bens de
consumo, criando grandes atrativos para que as pessoas
deixassem o trabalho escravo do campo e fossem em direção aos
grandes centros, em busca de melhores ofertas de emprego.
Além disso, a própria mecanização da agricultura, ao demandar
menos mão-de-obra, favorecia o fenômeno da urbanização,
gerando uma concentração exagerada e desordenada da população
nas cidades. Por outro lado, a dinâmica da Revolução
Industrial exigia transformações urgentes, tendo como
conseqüências profundas e radicais alterações no
comportamento da classe trabalhadora, que se viu frente a
péssimas condições de trabalho e à exigência da produção em
série extremamente maçante e alienante, aliada aos baixos
salários.
Assim, se por um lado todo esse sistema pôde
proporcionar melhorias na qualidade de vida da população, por
outro gerou uma imensa massa de trabalhadores desajustados,
com sérios problemas sociais, perdendo cada vez mais a sua
identidade. Como reflexo de toda essa situação, as artes
plásticas, de um modo geral, passaram a ser permeadas não
apenas pelos novos desenvolvimentos científico-tecnológicos,
mas pelo profundo embate do ser humano frente a tamanhos
desajustes proporcionados pela modernidade.
Nesse contexto, a fotografia participou de forma intensa
e importante na formação da nova psicologia da sociedade
urbana, percorrendo um mundo assombroso, revelando a face
oculta dessa sociedade, procurando um mundo infiltrado por
tabus, enfim, voltando-se para aqueles a quem a sociedade
tinha virado as costas.
A surrealidade em Arbus e Seurat
Vários foram os fotógrafos que se alinharam a essa
vertente, porém creio ter sido Diane Arbus (1923-1971) quem,
com maior sensibilidade, entendeu e participou, de forma
profunda, desse mundo, bem ao gosto surrealista.
Arbus teve a capacidade de não se enfronhar nesse mundo
marginal de forma chã. Não era seu interesse tratar da
pobreza material dos desprotegidos. O seu projeto ia muito
além de inventário documental da evidente e incontestável
situação por que passava boa parte da população urbana, e é
aí que se forma o seu vínculo com o Surrealismo. Os elegidos
de Arbus eram aqueles que não participavam do processo
produtivo da sociedade, por isso sendo excluídos,
independentemente de sua condição social ou financeira. A
miséria de que trata Arbus passa muito mais por um caráter
interno, privado, do que externo. Todos os seus personagens,
quer se trate de doentes mentais, travestis, anões, quer se
trate de um cidadão comum das ruas, carregam dentro de si o
grotesco, o insano, o monstro, frente aos padrões sociais
estabelecidos. Todos pertencem ao mesmo universo dos
desajustados, dos excluídos. Se os personagens de suas fotos
são repulsivos, não estabelecem com o espectador a mesma
relação, não há um desejo imediato de repúdio contra o que se
está vendo, nem mesmo de compaixão para com essas pessoas.
Arbus não está a fotografar o criminoso que acabou de
ser assassinado, a criança que acabou de ser estuprada e
esfaqueada, não há sangue em suas fotos, por isso o seu
“repulsivo” não afasta, ao contrário, nos traz para perto,
nos remete a pensar sobre esse mundo tão estranho e
assombroso que há por trás de cada um desses rostos. A
própria postura de Arbus diante da pessoa a ser fotografada
nos dá indícios de sua intenção. Não há flagrante, nada é
feito às escondidas, todos sabem que estão sendo
fotografados, têm consciência de que estão a posar para uma
foto. Poderíamos dizer que estabelece-se aí uma relação
inconsciente de uma conivência quase ingênua entre as partes.
Do lado de Arbus não há intenção de marcar a anomalia em si,
de mostrar a pessoa como um doente, e sim de apontar para as
relações humanas, para o distanciamento e mesmo o
desligamento entre as pessoas; em outras palavras, para a
surrealidade de tamanhos desencontros. Por outro lado, a
pessoa diante da câmara não se concebe como monstruosa,
excêntrica ou grotesca, já que permite e colabora com o ato
de ser fotografada. Não há consciência da sua dor. A própria
frontalidade com que Arbus normalmente as fotografava nos
leva a crer nessa teoria, pois ser fotografado de frente
marca não apenas o respeito para com o espectador, mas,
sobretudo, a manifestação da essência da pessoa fotografada.
Os mosaicos bizantinos de Ravena já nos mostram que
todas as pessoas eram representadas de frente como sinal de
solenidade e respeito ao público e, principalmente, ao chefe
do Estado, da religião e do exército, aos quais os artistas
eram subjugados.
Essa frontalidade típica de Arbus (assim como a máscara
de Górgona,13 que, invariavelmente, encara de frente o
espectador que a observa) induzia os personagens a tornarem-
se ainda mais estranhos, pois os incitava a permanecer em
pose, sem qualquer falso naturalismo.
Diane Arbus, ao apresentar a solidão e o absurdo das
relações entre os seres humanos, nos remete à obra de
Seurat,14 que abriu definitivamente caminho para o pensamento
surrealista.
13
Referência aqui feita a Górgona “Medusa”.
14
George Seurat: pintor francês (1859-1891). Adotou um método
científico baseado na “mistura ótica dos tons” para a
realização dos seus trabalhos. Ao adotar um “método”, os seus
quadros são realizados de forma extremamente impessoal, tudo
tendo a mesma regularidade, tudo sendo espaço, que se
confundo com as figuras, por terem o mesmo tratamento. Suas
figuras não têm mais massa e volume como as tradicionais, não
possuem vida, individualidade, pois obedecem a esquemas
matemáticos.
O caráter intuitivo, da percepção direta e da ação
imediata da pintura impressionista, mais próxima de um esboço
do que de um quadro acabado dentro das tradições acadêmicas,
passou a ser questionado por Seurat, não apenas no sentido de
dar ao quadro uma estruturação maior, uma composição mais
trabalhada, mas sobretudo por incorporar as manifestações
tanto tecnológico-científicas quanto psicológicas da
sociedade moderna.
Seurat renunciou ao traço renascentista (não à
composição), abolindo as linhas e os desenhos que eram
preenchidos com as cores e lançou mão de um método científico
calcado na física e na matemática, no qual as cores eram
colocadas lado a lado através de pontos ou manchas. Esse
tratamento era dado em toda a superfície da tela e, com isso,
as figuras e o espaço em que elas estavam inseridas não mais
se distinguiam, o distanciamento sujeito-objeto, típico da
cultura renascentista, estava sendo colocado por terra. O
método de Seurat fazia com que a figura e o fundo fossem
feitos da mesma matéria, as manchas criando personagens com
características irreais, diferentes das tradicionais, por não
apresentarem volume, massa, peso. Ao obedecer a esquemas
formais de um método, os personagens eram estruturados de
maneira completamente impessoal, como manequins humanos sem
vida e sem individualidade, não havendo qualquer tipo de
comunicação, de interlocução entre eles, caracterizando o
absurdo dos relacionamentos humanos e o total desajuste do
homem na sociedade.
Ao colocarmos lado a lado uma fotografia de Arbus (sem
título), de 1971, (figura 1) e um quadro de Seurat (“Um
Domingo de Verão na Grand-Jatte”), de 1885, (figura 2)
seremos capazes de observar uma enorme comunicação entre
eles, por mais distantes que estejam no tempo (quase um
século os separa) e por mais diferentes que sejam as
linguagens empregadas. De fato, o que sustenta ambos os
trabalhos é a surrealidade que eles carregam. Por mais que se
especule sobre o caráter técnico da obra de Seurat, constata-
se que o que permanece, o que a faz transpor mais de um
século de escolas e correntes artísticas das mais diversas e
continuar sendo fonte recorrente de grande parte dos
artistas, admirada pelo público, é o seu caráter intrigante.
Isto porque há aí embutida uma característica cultural típica
do homem ocidental, que sempre se percebeu, principalmente
depois de Descartes, como um ser simplesmente racional. A
partir do momento em que se coloca esse homem frente a uma
instância inconsciente, por ele desconhecida, e, portanto,
fora dos seus controles, tudo passa a ser muito enigmático, e
por isso, atraente. É exatamente nesse nível, nessa instância
inconsciente que trabalham as obras de Seurat e Arbus, nos
envolvendo, nos remetendo aos mais recônditos universos
supra-reais.
Os personagens, tanto do quadro de Seurat quanto da foto
de Arbus aos quais nos referimos, possuem tais qualidades.
Frente ao “Grand-Jatte”, vivenciamos um mundo assolado por
uma atmosfera de profundo silencia, e no entanto de extrema
conturbação interna de seus personagens, sem qualquer tipo de
comunicação entre eles. Cada pessoa vive isolada e voltada
para seu próprio mundo, embora estejam todas juntas num dia
de lazer em um parque. As pessoas de pé, junto ao lago,
parecem ter seus olhares perdidos em outras águas; o casal no
primeiro plano, postado de forma imóvel, não faz nenhum tipo
de menção de, ao menos, se entreolhar; o rapaz de costas para
o lago entretém-se sozinho; até mesmo a criança que aparece
correndo transmite solidão por estar brincando isoladamente.
Todos esses personagens poderiam, sem dúvida alguma,
pertencer a uma foto de Arbus; esta cena de Seurat poderia
certamente ser uma cena fotografada por Arbus, pois os três
personagens da sua foto que citamos estão, da mesma forma,
juntos numa área de lazer, envoltos cada um em seu próprio
mundo.
O diferencial de suas obras está apenas no fato de que,
enquanto Seurat lida com pessoas típicas da classe média,
inclusive dentro dos padrões estéticos da sociedade, Arbus
elege os realmente desajustados e de aspecto desagradável
esteticamente. Não há, de fato, em Arbus, qualquer intenção
em lidar com a beleza atemporal padronizada, muito embora as
suas fotos, e de forma geral a fotografia, tenham essa
capacidade de revelar beleza em meio ao grotesco, ao
desagradável, característica, aliás, inerente à própria
linguagem fotográfica.
O deslocamento do conceito do belo
Há tempos a revelação da beleza atrelada aos aspectos
grotescos tem sido reforçada por diversos fotógrafos. Um
exemplo típico e bastante conhecido entre nós é a obra de
Sebastião Salgado (1944-), que vem sistematicamente
fotografando a pobreza e a miséria entre os povos dos países
do terceiro mundo e que, apesar de apresentar imagens de um
conteúdo estético terrível, consegue, dentro desse contexto
lúgubre, passar uma beleza que transcende a própria imagem
representada. Neste caso, a fotografia desloca o conceito
clássico greco-romano de beleza para uma outra instância,
para um lugar onde ela encontra o traço surrealista, ou seja,
um lugar onde o belo perde toda a sua condição absoluta e se
incorpora nas mais diversas situações, podendo estar presente
no grotesco, no desagradável ou, até mesmo, numa
circunstância o mais banal possível.
O gosto surrealista de beleza afina-se com a atividade
fotográfica, que procura o belo onde os olhos menos atentos o
ignoram, debruçando-se sobre a fealdade e revelando o
maravilhoso através da descoberta de imagens de assuntos e
lugares jamais considerados como tal. A beleza fotográfica,
que é eminentemente surrealista, encontra ressonância no
envolvimento emocional, na comoção com a cena fotografada,
transformando-se numa questão interna, que vai depender das
experiências e vivências culturais, sociais e psicológicas de
cada espectador, sem permanecer atrelada a um conceito
externo, absoluto. Esse investimento no surreal fotográfico
nos remete a uma situação de mobilização interna, de
proximidade e envolvimento com a cena fotografada,
arrancando-nos do torpor contemplativo, passivo e distante,
que nos foi dado como modelo para o relacionamento com o
mundo.
As bases do Surrealismo
O Surrealismo surgiu apoiado na filosofia nietzschiana,
no sentido de tirar-nos de tantos séculos de letargia social,
tentando libertar o homem da alienação oriunda de uma
sociedade calcada nos preceitos da razão, da ética, da moral
e dos cânones religiosos erigidos sobre as bases da verdade
absoluta e da inquestionabilidade dos dogmas. André Breton,
no 2º Manifesto Surrealista, chega a radicalizar suas
posições contra a sociedade, ao dizer que “todos os meios
devem ser considerados aceitáveis para torpedear as idéias de
família, pátria e religião”, demonstrando, aí, todo o seu
poder de revolta contra a imobilidade, o enfado e a solidão
impostos por uma civilização decadente.
Aí o Surrealismo bretoniano encontra-se em perfeita
harmonia com o pensamento de Nietzsche, centrado na
embriaguez dionisíaca, que tenta devolver ao homem todo o seu
potencial criativo, sua força e movimentação, em que todas as
correntes opressoras e castradoras não encontram espaço. Em
Assim Falou Zaratustra, Nietzsche nos apresenta uma fala de
Zaratustra que invoca o indivíduo a falar, cantar e dançar,
não importando se ordenada ou desordenadamente. O que vale é
o “embalo que desperta a paixão, o ardor, a flama, a vontade
de viver”. Nietzsche, através de Zaratustra, nada mais
pretende do que nos remeter à nossa criatividade por meio das
manifestações espontâneas.
O Surrealismo, por seu lado, pretende alterar a vida ao
desencadear uma crise moral na sociedade, “desalienando o
homem dos preconceitos, dos formalismos e das convenções, não
apenas pretendendo criar uma escola literária ou uma escola
de pintura”, de acordo com a visão de Breton. A fotografia,
da mesma forma, sobretudo por não ter nenhum compromisso com
a grande arte do passado, ao debruçar-se sobre o anti-
oficial, redimindo e tirando do limbo o kitsch e o promíscuo,
pratica a anti-arte, e, assim, se adentra pelo mundo
surrealista. Sob essa visão, a fotografia questiona o que era
inquestionável, relativiza o que era absoluto, traz à tona
uma nova visão de mundo, mais despojada e leve, embora
crítica, dinâmica e participativa.
A dessacralização do nu
Mesmo ao lidar com temas “sacralizados” pelas belas
artes, como o nu, a fotografia, assim como o Surrealismo de
forma geral, dará a eles um tratamento peculiar, típico de
uma visão niilista da tradição histórica. Se tomarmos, por
exemplo, uma foto de um nu de Weston (1886-1958), “Hand on
Breast” (1923) (figura 3), poderemos fazer algumas
especulações sobre ela. De imediato, observamos que todas as
regras sacrossantas da beleza do nu são colocadas água
abaixo. Na realidade, Weston nos põe frente a um num quase
repugnante, em que o único seio a mostra, já que o close é
bastante fechado, só é reconhecido devido ao mamilo, caso
contrário poderíamos supor tratar de um pedaço de carne
cravado por grandes unhas. Ao mutilar todo o resto do corpo,
arrancando-lhe tudo o que lhe confere equilíbrio e, portanto,
beleza, ao desvincular o nu feminino de toda a carga de
sensualidade que ele traz, constatamos um apelo proposital em
evidenciar o quão grotesco é o ser humano. Aqui, o espaço
virtual, ou seja, o espaço não representado pela imagem, nos
remete a um ser humano decadente, exaurido de todas as suas
qualidades sexuais, em franca desarmonia consigo mesmo. É
difícil imaginarmos por trás dessa foto de Weston uma Vênus
de Botticelli com toda a sua graciosidade, seu nu sensual e,
ao mesmo tempo, harmonioso, no qual impera uma atmosfera de
sedução e idealização.
Antes de Weston, no entanto, Duchamp foi o artista que
mais intensamente criticou a tradição artística, muitas vezes
tendo o num como ponto de partida. Em seu quadro “o Nu
Descendo a Escada”, o que à primeira vista poderia parecer
uma apologia à mecanicidade, como se Duchamp tivesse aderido
aos aspectos da modernidade, ao Futurismo italiano15
reverenciado pela vanguarda da época, é exatamente o inverso.
O manequim com roupas metalizadas é fragmentado pela
repetição dos gestos num movimento descendente, carregando
consigo a idéia de uma fuselagem em franca decadência, o que
revela, aí, o caráter descrente e destruidor de Duchamp
frente à modernidade. Por outro lado, o nu, que em toda a
história da arte sempre representou a beleza, a sensualidade,
como os nus beatificados de Rafael ou as madonas nuas de
Rubens, descaracteriza-se por completo em Duchamp, que leva a
uma espécie de desmistificação do nu feminino, não só porque
efetivamente não há nu, já que o manequim está vestido com
roupas metalizadas, como a atração pelo “nu” se dá através de
uma visualidade negativa, e não pela beleza ou sensualidade.
Nesses dois rápidos exemplos, tanto a foto de Weston
quanto o quadro de Duchamp nos fazem pensar sobre toda uma
conceituação arraigada da beleza idealizada que a sociedade
ocidental nos impôs como referencial inquestionável, como é o
caso típico da referida Vênus, de Botticelli, em que as
proporções dos ombros e do pescoço da deusa foram alteradas
para que se atingisse uma beleza máxima, idealizada.
Esse modelo, de certa forma, passou a ter um outro
equilíbrio, um outro peso na sociedade muito em função da
fotografia, que, ao produzir imagens aleatórias do mundo,
desierarquizou os temas e se alastrou de forma rápida por
15
Futurismo: Movimento artístico italiano iniciado em 1909
por Filippo Tommaso Marinetti, afirmando a primazia da
velocidade. Reagindo contra o Cubismo, julgado estático
demais, os futuristas buscavam “a sensação dinâmica
eternizada enquanto tal”.
todos os lugares. É muito recorrente em fotografia a beleza
de uma imagem vir do acidente, do acaso. Muitas vezes, é
exatamente o que foge ao programado, a tudo aquilo que nos
predeterminamos realizar, que faz de uma foto uma grande
foto. Não estamos aqui falando do instantâneo programado
quando estamos prontos ao que pode vir a acontecer, do
momento exato de captarmos uma cena, típico da escola
bressoniana,16 mas sim do acidente momentâneo inconsciente,
característica que fez da fotografia a linguagem mais afinada
com os ideais do Movimento Surrealista.
A fotografia e o 1º Manifesto Surrealista
O acaso, inerente à própria linguagem fotográfica,
funciona através de espasmos que, por vezes, deixamos escapar
da armadura racional que nos impomos, é a nossa passagem a
uma outra realidade diferente daquela que estamos acostumados
a vivenciar, bloqueada e permeada por regras. Se por um lado
a fotografia é a forma mais próxima da representação da
realidade, por outro é ela quem desvenda o que há de mais
desconhecido e surpreendente no ser humano.
Através do acidente fotográfico, exercemos a nossa
instância inconsciente, reveladora de nós mesmos, de toda
nossa vaidade escamoteada, face oculta manifesta. Como
desdobramento, a foto será um tanto mais arrebatadora quanto
mais profundamente conseguir atingir esse universo do
espectador, já que a ele se abrirá o lúdico, o maravilhoso, o
desconhecido, enfim, tudo o que há de mais primário dentro de
si e que o remeterá a sua própria existência.
Esse encontro com o inconsciente irá reger a primeira
investida do Movimento Surrealista, que, através do seu
“Primeiro Manifesto”, começa por fazer uma distinção bastante
clara entro o que pertence à racionalidade e o que pertence
ao mundo do inconsciente. Para tal, os surrealistas irão se
afastar da realidade, mergulhando em um mundo até então
totalmente desconhecido para o homem, no qual o fantástico e
o maravilhoso se fazem presentes. Desse modo, a razão humana
perde todo o seu controle, abrindo espaço para que a
imaginação, sem qualquer tipo de freios ou críticas,
manifeste-se forma plena. De acordo com o teatrólogo Pierre-
Albert Birot, “o maravilhosos, cada vez mais livre de
entraves, toma o caráter de surpreendente realidade em si, de
Surrealismo...” e Louis Aragon17 escreve:
“Além do real, há outras relações que o espírito pode
apresentar e que são tão primárias quanto o acaso, a ilusão,
o fantástico e o sonho. Essas diferentes espécies reúnem-se e
conciliam-se num gênero que é a supra-realidade.”
16
Escola bressoniana : Estilo criado pelo fotógrafo francês
Henri Cartier-Bresson (1908-2004) de captar o momento ideal,
o instante exato para se tirar uma fotografia.
17
Louis Aragon : Poeta e romancista francês (1897-1982), um
dos fundadores do Surrealismo.
Além de Birot, um autor teatral que trabalhou com a
idéia do afastamento da realidade cotidiana para mergulhar
numa realidade onde o ser humano é remetido aos seus
instintos mais primitivos foi Antonin Artaud,18 para quem o
verdadeiro objetivo do teatro é
“traduzir a vida sob um aspecto universal, intenso, dela
extraindo imagens com que gostaríamos de nos encontrar. O
teatro deve ser considerado a cópia, não desta realidade
cotidiana e direta da qual vai-se reduzindo pouco a pouco a
ser apenas uma inerte reprodução, tão inútil como
inexpressiva, mas sim de uma outra realidade, perigosa e
típica, em face da qual os princípios se apressam a voltar à
obscuridade como os golfinhos quando vêm à tona d’água. Ora,
esta realidade não é humano mas inumano e o homem com seus
costumes ou seu caráter, é preciso dizer, quase nada
contribui para ela.”
E acrescenta:
“O teatro deve reconduzir o espectador ao mundo dos sonhos e
dos instintos, que é sanguinário e inumano. Exprimindo as
forças recalcadas do homem, uma obra o liberta; igualmente,
encontrando os espectadores pelos meios plásticos, a
encenação deverá, por assim dizer, fazê-lo entrar em transe.”
18
Antonin Artaud: Escritor, poeta e dramaturgo francês (1896-
1948). Distiguiu-se sobretudo pelos seus ensaios dramáticos.
de forma automática, com o pintor tendo de lançar mão de
diversos materiais e, conseqüentemente, realizar seu trabalho
em vários estágios?
Há um filme sobre Matisse no qual o artista é flagrado
desenhando um retrato com gestos aparentemente irrefletidos e
inconscientes, mas que, na seqüência seguinte, a câmera
lenta, ao mostrar a mesma cena, nos faz ver a sua permanente
escolha sobre que caminho seguir, a mão, pouco a pouco,
encadeando todo um processo, uma seqüência de observações do
mundo.
Pintura (Roma) x Fotografia (Pompéia)
Das inúmeras analogias metafóricas que até então já se
fizeram utilizando-se Roma e Pompéia, inclusive no âmbito
fotográfico (vide O Ato Fotográfico de Philippe Dubois),
cabe-nos, aqui, pensar as linguagens fotográfica e pictórica
nessas circunstâncias. Poderíamos dizer que a pintura está
para Roma assim como a fotografia está para Pompéia.
Ao se tirar uma fotografia, tudo é escuridão, a imagem
impregnada na película permanecerá em latente escuridão e só
será reconhecida, só virá à tona após a sua revelação, assim
como Pompéia, que após a catástrofe ficou em estado de
latência, de escuridão, até que as pás viessem revelar o que
o Vesúvio imortalizou/ mortalizou em um único instante; aí se
completa a outra metáfora, a da instantaneidade, do momento
decisivo e único, em que tudo se passa de uma única vez.
Apertado o obturador, tudo se dá; o presente de imediato
torna-se passado e o futuro, expectativa. A imagem é captada
de forma totalizante e única, a luz/ larva varre e paralisa o
que vê pela frente de forma instantânea, sem chances para
qualquer tipo de arranjo ou racionalização. A pintura, por
outro lado, perfaz um outro caminho; o fazer de um quadro
compreende um processo, um tempo, há sobreposição das camadas
de tinta, é Roma com seu acúmulo de histórias, as camadas do
tempo agindo sobre ela de forma fragmentária, porém contínua.
Percebemos aí que a foto-Pompéia é mais próxima do
Surrealismo que a pintura-Roma.
Por melhor que seja a composição de uma foto, por mais
perfeita que seja a técnica empregada, a força motriz,
geradora de sua grande mobilização entre as pessoas está no
detalhe (o que para Barthes é o “Punctum”), principalmente se
ele provier do acidente, do acaso, pois o fascínio que a
fotografia suscita vem muito de sua condição enigmática, de
apreender em uma fração mínima do tempo o incidental, sobre o
qual nem mesmo o fotógrafo tem controle.
No exato momento do ato fotográfico, tudo é
inconsciente, por maior que seja seu controle racional sobre
o assunto a ser fotografado, até porque o ato fotográfico se
dá no escuro, é o único momento em que o fotógrafo nada vê
sobre o que está fotografando, já que o obturador, ao ser
acionado, faz levantar o espelho, tornando o fotógrafo cego
diante da imagem a ser fotografada.
A síntese do ato fotográfico compreende, pois,
exatamente essa fração mínima do tempo em que tudo se dá de
forma inconsciente, totalizante e de uma única vez, sem
hesitação.
19
Stéphane Mallarmé : poeta francês (1842-1898). Sua obra,
embora breve, foi determinante para a evolução da literatura
no século XX.
EXISTIRIA
senão como a alucinação dispersa da agonia
COMEÇARIA E CESSARIA
brotando qual negado e fechado quando surgido enfim
por alguma profusão espargida em raridade
CIFRAR-SE-IA
evidência da soma por pouco fosse uma
ILUMINARIA
O ACASO
Cai
a pluma
rítmica pausa do sinistro
sepultar-se
nas escumas originais
donde há pouco sobressaltara seu delírio até um
cinco esmaecido pela neutralidade idêntica do
abismo
21
Tristan Tzara : (Romênia 1896 – França 1963). Um dos
fundadores do Movimento Dada, que teve início em 1916 em
Zurique, insurgindo-se contra os absurdos de sua época e
contestando radicalmente todos os meios de expressão
tradicionais.
22
Man Ray : pintor e fotógrafo americano (1890-1976). Foi um
dos criadores do Movimento Dadaísta em 1917, em Nova York, e
juntou-se ao Surrealismo em 1920. Criou as “raiografias” e
realizou diversos filmes surrealistas.
23
Max Ernst: pintor francês de origem alemã (1891-1976). Foi
um dos fundadores do Dadaísmo, participou do Surrealismo,
criou as fotomontagens surrealistas e a frottage (processo
com base na ação de esfregar a matéria). Repeliu
sistematicamente qualquer disciplina, utilizando inúmeras
técnicas e temas.
vasos comunicantes, cujas descobertas fluirão pelos mesmos
canais, principalmente se pensarmos no Surrealismo.
Não seria arriscado afirmar que o Surrealismo encontrou
as suas maiores transgressões através das colagens/
montagens, exatamente por elas permitirem uma infinidade de
combinações de imagens e elementos dentro das propostas do
movimento. As colagens surrealistas têm seu fundamento no
confronto de imagens díspares, que nos colocam frente a
situações absurdas, paradoxais, violentas, nos remetendo a
uma realidade que não apresenta qualquer nexo com a realidade
cotidiana, liberando o espírito para um mundo novo, supra-
real, caotizado pelos imprevistos choques de imagens.
Max Ernst e a colagem/ montagem surrealista
A colagem/ montagem surrealista iniciou-se,
efetivamente, com Max Ernst, que, ao beber nas fontes
cubistas de Braque e Picasso, deu um novo rumo à técnica por
eles utilizada.
É interessante reproduzir pelas próprias palavras de Max
Ernst a maneira pela qual surgiu a colagem surrealista, para
que possamos fazer uma ponte entre o seu nascimento e o seu
desdobramento futuro:
“Num dia chuvoso, em Colônia, o catálogo de uma casa que
vende material escolar desperta-me a atenção. Vejo ali
exemplares de todos os gêneros, manuais de matemática, de
geometria, antropologia, zoologia, botânica, anatomia,
mineralogia, paleontologia, etc., elementos de natureza tão
diversas que a absurdidade do seu reagrupamento me perturba a
vista e os sentidos, desencadeando em mim alucinações e
conferindo aos sujeitos representados uma sucessão de
significados novos e mutantes. A minha atividade visual ficou
de repente tão agudizada que consegui ver os objetos que se
formavam imediatamente sobre um fundo novo. Para o fixar
bastava um pouco de tinta, algumas linhas, um horizonte, um
deserto, um céu, uma divisória ou coisas idênticas. Assim se
fixou a minha alucinação.” (ERNST, Max – Taschen, p.18)
24
Laszlo Moholy-Nagy : escultor e fotógrafo húngaro (1895-
1946). Realizou esculturas construtivistas, foi professor da
Bauhaus e fundador da Nova Bauhaus em Chicago (1938).
Dedicou-se à fotografia, onde marcou sua obra por fotografias
com ângulos oblíquos.
objetos compreenderão realidades diferentes, adquirindo,
assim, identidades diferentes. Desse modo, quando Man Ray
fotografa um guarda-chuva na presença de uma máquina de
costura em cima de uma mesa de dissecação, estabelece uma
realidade nova e instigante entre esses três objetos que,
anteriormente, sozinhos ou em outras montagens, possuiriam
realidades diferentes.
A surrealidade em Picasso
A circunstancialidade da montagem é extremamente
renovadora exatamente pela dinâmica e pelo caráter
transformador que ela impõe à realidade de cada objeto.
Imbuído desse espírito, Picasso, no começo do século,
revolucionou a linguagem escultórica quando, ao criar “A
Guitarra”,25 retirou a escultura do monólito, do pedestal, do
seu caráter absoluto, fixo e imutável de representação,
dando-lhe uma característica de mobilidade, de realidade
relativa, em que os objetos usados na construção de sua
“Guitarra”, em outras circunstâncias, comporiam outra
escultura e, portanto, compreenderiam outra realidade.
Assim como Picasso, que, utilizando-se dos princípios da
circunstancialidade, revolucionou de forma radical a
escultura ocidental através da sua “Guitarra”, a
fotomontagem, a partir dos surrealistas, inaugurou uma nova
concepção na linguagem fotográfica, dando-lhe autonomia,
retirando-a do pesado fardo de desempenhar o papel da fiel
representadora do mundo, do seu caráter mimético. A
unicidade, a integridade da fotografia se esvai não apenas em
função da provisoriedade da montagem, que a retira da
temporalidade, mas por ela tornar a imagem representativa
bidimensional em tridimensional, dessacralizando-a,
submetendo-a à condição de objeto manipulável, compreendendo
tantas realidades quanto possibilidades de suas montagens.
A visão fotográfica habitual do mundo é infringida pela
montagem, uma vez que ela é construída em função do que se
faz no espaço, dos choques entre as imagens sobrepostas,
evidenciando que cada imagem assim construída vive uma
experiência própria, única, não guardando mais o conceito de
espaço pronto, preconcebido por leis matemáticas dentro da
teoria euclidiana de comprimento, largura e altura.
A montagem, na realidade, vem a ser um desdobramento
natural da concepção filosófica do nosso século. Enquanto o
século XIX carregava o sentido de tempo aristotélico, linear,
no qual tudo tinha seqüencialmente um início, um meio e um
fim com desfechos lógicos, o século XX vivencia a concepção
25
Desde a Grécia que a escultura tinha o seu conceito de
unicidade, nos dando a individualidade das formas. A
“Guitarra” de Picasso, ao contrário, é construída a partir da
junção de elementos planos curvados, não sendo mais a
imitação do objeto guitarra, mas a construção de um objeto,
sem a integridade, a característica monolítica da escultura
convencional.
do todo, da simultaneidade, simbolizada pela linha de
montagem automobilística, em que o automóvel é concebido como
um todo, sendo montado parte por parte num processo de pré-
fabricação. Esse é o sentido de tempo contemporâneo, em que
os elementos se justapõem, nada mais sendo do que a colagem e
a montagem das artes plásticas.
Sem dúvida, toda essa nova potencialidade emanada pelas
colagens e montagens nas artes plásticas em geral incluindo,
aí, a linguagem fotográfica, que viria ratificar a força do
movimento surrealista foi fruto de um longo processo de
experiências antecedentes.
De Chirico
Nas artes plásticas, um dos primeiros sinais de
manifestação apontando diretamente para uma realidade adversa
à nossa veio com a fase metafísica de Giorgio De Chirico
(1888-1978). Numa época em que o Futurismo realizava
experiências com composições dinâmicas e tumultuadas e o
Cubismo chegava ao plano total com Braque e Picasso levando
às telas a funcionalidade, a mecanicidade do mundo através
das fragmentações e multiplicidades dos pontos de vista,
características da modernidade, De Chirico apontava para uma
vertente diametralmente oposta a toda essa racionalidade
ocidental, o que, posteriormente, viria a ser a pedra de
toque do Surrealismo. Seus trabalhos, nesse período, foram
marcados pela total descontextualização dos objetos, com o
confronto entre imagens díspares num mesmo espaço, remetendo-
nos a uma nova realidade, sendo o potencial revelador dessa
nova imagem tanto maior quanto mais antagônicas fossem essas
imagens e mais distantes da nossa realidade nos remetesse.
Essa descontextualização dá-se de forma extremamente
enigmática, estranha, em cenários e ambientes da mesma forma
estranhos, silenciosos, fantasmagóricos, potencializando
ainda mais a descontextualização. Essas características fazem
do mundo de De Chirico um mundo à parte, que nada tem a ver
com a realidade existente.
A tônica da fase metafísica de De Chirico apresenta
estreita relação com a montagem surrealista, que se estrutura
não em função da comparação, mas do confronto entre imagens
antagônicas.
Duchamp e os ready-mades
Paralelo a De Chirico, correm as especulações de Marcel
Duchamp (1887-1968), cujas obras apontariam para um direto
desdobramento no Surrealismo, tendo Man Ray como um de seus
principais interlocutores.
Dentre as diversas transgressões praticadas por Duchamp,
nosso interesse, no momento, se atém mais a uma investigação
sobre seus ready-mades,26 não quanto ao seu caráter indiciário
ou de traço, mas no que eles podem nos ajudar na compreensão
de suas relações com a filosofia do Surrealismo, sobretudo
com as montagens/ colagens surrealistas de que estamos
tratando.
Duchamp constata que o mundo moderno rejeita, repele
qualquer gesto individual, que é inútil e inócua qualquer
ação individual do ser humano frente à massificação e a
standardização imposta pela sociedade. Assim, parte para a
realização dos seus ready-mades , em que, na realidade, ele
nada fez além de selecionar objetos já prontos,
industrializados, entregando-os ao mundo como sendo obras de
arte, já que o mundo considera arte sempre o objeto final,
acabado, e não o gesto artístico que o gerou, o potencial
intelectual existente no fazer da obra de arte. Por isso,
Duchamp vai salvaguardar o seu gesto, não fazendo, por
perceber que iria se perder e conseqüentemente ser ignorado,
o que acaba por colocar em cheque toda uma tradição que
sempre esteve presente na história da arte: o f a z e r
artístico.
Quando Duchamp fixa uma roda de bicicleta a um banco e
os define como arte, estabelece-se de imediato um
deslocamento conceitual, já que é o próprio Duchamp que, ao
acoplar dois objetos já prontos, diz que o que está ali é uma
obra de arte, não possibilitando a intermediação da
instituição para definir e validar aquele objeto como obra de
arte. Há, portanto, uma subversão à tradição não somente por
lhe ser negado o privilégio de definir o que vai ou não ser
uma obra de arte, mas, sobretudo, por transferir essa
responsabilidade para o artista, potencializando o seu gesto
individual, marcando uma postura singular do ser humano em
oposição à massificação estabelecida.
Essa mobilização interna era acentuada pela maneira como
Duchamp escolhia os objetos para a concepção dos ready-mades,
pois eles deveriam ser isentos de qualquer qualidade
estética, tanto negativa quanto positivamente. Deveriam ser a
não-significação, o supra-sumo da assepsia estética, para que
o seu caráter atrativo e, portanto, interativo se desse,
efetivamente, em função da total descontextualização de suas
realidades próprias, no novo ambiente em que eles agora se
encontravam. De acordo com a visão do próprio Duchamp:
“O grande problema era o ato de escolher. Tinha que escolher
um objeto sem que ele me impressionasse e sem a menor
intervenção, dentro do possível, de qualquer idéia ou
propósito de deleite estético. Era necessário reduzir o meu
gosto pessoal a zero. É dificílimo escolher um objeto que não
nos interessa absolutamente não só no dia em que o elegemos,
mas para sempre, e que, por fim, não tenha a possibilidade de
26
Ready-Made: Criado por Marcel Duchamp, é um objeto já
manufaturado, pronto, promovido ao nível de arte pela simples
escolha do artista.
tornar-se algo belo, agradável ou feio...” (DUCHAMP, Marcel –
O Castelo da Pureza, p.27)
29
Arte bizantina : oriunda da antiguidade helenística e
romana, foi essencialmente religiosa, utilizando-se muito dos
afrescos e dos mosaicos (igrejas de Ravena).
30
Giotto di Bondonne : pintor e arquiteto italiano (1266-
1337). Famoso pelos murais e afrescos, sua arte modificou
radicalmente toda a concepção da pintura ao passar a
representar as cenas sagradas como se elas estivessem
acontecendo diante dos nossos olhos, superando, assim, a
rigidez do espaço unitário da arte bizantina. Foi Giotto quem
redescobriu a arte de criar a ilusão de profundidade numa
superfície plana, relacionando o universo divino ao terreno.
passaram a representar signos, nos quais tempo e espaço
colocavam-se como valores ligados à vida terrena, comum da
sociedade, desligados de sua afeição direta à tradição
evangélica, em que os temas, ainda que vinculados à
religiosidade, aos santos, passavam a ser trazidos para um
nível da vida cotidiana, havendo, portanto, a dessacralização
da imagem, ou seja, a “modernização do sagrado”. O objetivo
da arte agora deixava de ser única e exclusivamente o de
servir aos ensinamentos da igreja, de cultuar só o que vem
das leis divinas, passando a uma preocupação voltada para os
valores do homem na terra.
Por constituir-se como passagem, como intensa transição,
é comum encontrar-se, em uma mesma representação dessa época,
referências a tempos e espaços diferentes. O tempo lendário e
o tempo contemporâneo, muitas vezes, misturaram-se em uma
mesma composição, havendo já aí a introdução de um tempo
relativo à memória, onde o que se vê é diferente do que se
sabe. Uma vez que a representação incorpora elementos da
experiência individual, do acontecimento cotidiano do mundo,
remeterá o espectador a efabulações e articulações ligadas ao
seu arsenal de conhecimento, à sua bagagem cultural,
refletindo, assim, em uma alteração na análise e na absorção
da obra de arte, pois que o tempo, agora, deixa de estar
atrelado exclusivamente a uma referência única, a da
eternidade celeste, para incorporar a experiência individual
do espectador.
Levando-se em conta essas articulações que acabamos de
ver, podemos observar que as representações na Idade Média,
em suas últimas fases, compreendem uma temporalidade mais
próxima da concepção relativista de Einstein do que da
absolutista de Newton, uma vez que o entendimento da obra de
arte passava a ser também função da vivência pessoal de cada
um, isto é, relativa a cada espectador.
Assim, as especulações góticas (plasticamente mais bem
representadas por Giotto) dentro do desenvolvimento de toda
uma mentalidade e cultura sociais da época, servirem de
estofo e de ponte para toda a experimentação renascentista.
Seria leviano pensar que Brunelleschi, dentro do seu gênio,
tenha descoberto uma fórmula matemática mágica capas de
alterar de uma hora para outra todo um sistema figurativo
para criar o que se chamou de Renascimento. Não há como
duvidar: no mundo, qualquer transformação, qualquer
desenvolvimento exige uma temporalidade em seu encalço.
A concepção renascentista, portanto, voltava-se, total e
completamente, para a racionalidade do mundo, em que o homem
passava a se colocar como o centro, “a medida de todas as
coisas”, Brunelleschi, Uccello, Donatello e vários outros
renascentistas aproveitaram-se das teorias da matemática e da
geometria desenvolvidas, principalmente, por Alberti e
Euclides, para formular um novo espaço figurativo, criando
assim um modelo estético que acabaria por revolucionar o
mundo da representação e, por que não dizer, alteraria por
completo as relações do homem com seu meio ambiente. O
sistema por eles idealizado, em oposição ao sistema de blocos
da Idade Média, baseava-se na perspectiva linear euclidiana,
na qual as imagens deveriam estar representadas como s e
estivessem dentro de um cubo aberto de um lado ( a chamada
“janela de Alberti”) e vistas a partir de uma visão
monocular, fixa, em que as leis da física e da ótica
prevaleceriam, de forma que qualquer objeto do universo
pudesse ser medido e localizado no espaço segundo uma mesma
escala, permitindo-lhes reduzir o universo da maneira
desejada. De posse de tão poderoso instrumento para a
representação exata do mundo exterior, em função de tamanho
investimento na representação espacial do mundo, o binômio
espaço-tempo deixa de existir como funções recíprocas,
surgindo, assim, a concepção do espaço unitário, homogêneo e
atemporal.
O Renascimento, assim, ao contrário do que vimos em
relação à Idade Média, por alijar a temporalidade do seu
sistema figurativo, dando total ênfase à representação
espacial, aproximou-se mais claramente daquilo que viria a
ser a teoria absolutista de Newton do que da relatividade
einsteiniana. O Renascimento criou a noção do espaço
absoluto, completamente mensurável, perspectivado, em
completa oposição à futura noção de relatividade do mundo, em
que tempo e espaço passariam a constituir um todo,
relacionar-se-iam entre si, enfim, o tempo constituindo-se
como a 4ª dimensão do espaço.
Tratar do tempo, em fotografia, é lidar diretamente com
o momento único em que o obturador [e acionado. Ao olharmos
de forma separada e específica o ato fotográfico em si, essa
fração de segundo que o acompanha, podemos dizer que, de
fato, há um corte na continuidade do tempo e que, por se
tratar de um tempo pontual, há separação, há abstração de
algo do mundo, em que, a princípio, pela imobilização de um
momento, toda a temporalidade encerrada parece estagnar-se
imediatamente, de uma vez por todas, como que jogada às
trevas e esquecida. A sensação que se tem diante do exato
momento em que é consumado o ato fotográfico não é, como
veremos adiante, a de ausência por se ter retirado algo de
algum lugar. A idéia de que o tempo da imagem fotografada se
interrompe quando ela é captada e fixada na superfície do
papel não se sustenta, pois a fotografia na pára aí. Muito
pelo contrário, aí tudo começa, todas as especulações e
vivências em torno de uma imagem fotográfica são feitas a
partir desse momento. A fragmentação temporal que a
fotografia instala, a instantaneidade e pontualidade do tempo
que seu processo compreende é, sem dúvida alguma, o traço
característico que a faz distinta de qualquer outra linguagem
artística. Esse “momento” único, entretanto, não seria mágico
se aí permanecesse, se aí se esgotasse.
A temporalidade instantânea, imediata, de que estamos
aqui tratando, foi sem dúvida um dos grandes catalisadores do
pensamento surrealista. Duchamp utilizou-se desse conceito
para conceber as suas obras revolucionárias no mundo das
artes plásticas, o qual se viu questionado em seu mais
profundo pilar, que era o fazer artístico, pois jamais se
conceberia a realização de uma obra de arte sem que houvesse
a intervenção direta, a participação efetiva do autor (que
compreende o tempo do fazer do artista). Duchamp, porém, como
num ato fotográfico, criou seus ready-mades, integrando-se na
concepção da temporalidade imediata. Selecionar um mictório e
elevá-lo imediatamente ao nível de um objeto de arte,
denominando-o “A Fonte” é afastar, por completo, a idéia do
fazer artístico, de toda a concepção processual que sempre
caracterizou uma obra de arte. O tempo de Duchamp, em seus
ready-mades , é muito mais fotográfico (Pompéia) do que
pictórico (Roma), pois através de um simples gesto seu, de
sua própria vontade e desejo, um objeto industrializado, já
pronto, passa imediatamente de um nível utilitário, prático,
ao status de objeto de arte. De modo a ratificar a filosofia
da temporalidade fotográfica de Marcel Duchamp, lembremos que
uma de suas obras mais fantásticas “O Grande Vidro”,
permaneceu em processo de concepção por quase 10 anos e só
foi dada como finalmente terminada quando, durante o seu
transporte, o vidro rachou.
Para Duchamp, o exato momento em que o vidro se quebrou
revestiu a obra de um mistério que ela não possuía, concedeu
à obra desdobramentos ainda não alcançados. Precisou o tempo
imediato (fotográfico), pontual, instantâneo, agir sobre a
obra para eternizá-la no próprio tempo. Assim, “O Grande
Vidro” de Duchamp torna-se a grande metáfora fotográfica,
pois o momento da quebra do vidro (o momento do ato
fotográfico, do acionamento do obturador) não faz com que ela
se esgote nesse instante, não destrói a obra, mas a
transporta para uma outra temporalidade, em que infindáveis
especulações se seguirão, e o tempo imediato, desamarrado,
passa a se articular com o tempo memorial.
Daí surge o grande mistério, a grande complexidade que
envolve a fotografia – o fato de ela compreender de uma só
vez presente, passado e futuro. Através de um corte no
presente, a fotografia perpetua para o futuro o que já se
tornou passado. Toda a perplexidade da fotografia converge
como que por inteiro para esse momento único em que se aperta
o obturador da câmara. Esse instante, particularmente, faz da
fotografia uma linguagem absolutamente diferenciada de todas
as outras, que compreendem um fazer contínuo. A pintura,
conforme vimos anteriormente, por mais que jogue com o fluxo
livre do inconsciente, com o imediatismo, é composta por
diversos momentos (em uma mesma obra), nos quais o autor,
pelo fato de lançar mão do pincel, espátulas, tinta e outros
materiais, já suscita uma temporalidade progressiva. A
fotografia, ao contrário, se dá toda de uma única vez, não há
recuo, não há vacilação, nem tampouco esboços, rascunhos,
retoques, a não ser no produto final. Uma vez apertado o
obturador, a imagem vista está, imediata e irremediavelmente,
inscrita nos grãos de prata da película; nada mais há que
fazer, tudo está inscrito para todo o sempre.
Sem dúvida alguma, nada acontece sem que o obturador
seja acionado, daí esse momento ser o mais crucial e, por
isso mesmo, o mais complexo da fotografia, pois tudo gira a
partir dessa fração de segundo.
A caça só morrerá após o gatilho da arma ser acionado
pelo caçador, mas, uma vez consumado o ato e uma vez morta, a
caça se desfaz no tempo, desaparece. A surrealidade temporal
fotográfica aparece justamente porque ela desfaz esse
processo, construindo o seu próprio modelo, pois o
acionamento do gatilho (obturador) provê a morte, que será
perpetuada no tempo. Em fotografia, a “caça”, após sua morte
(captada pelo ato fotográfico) pe embalsamada para sempre (no
que se refere ao tempo de sua duração, pois a fotografia não
se constitui como um objeto eterno em si). Ao adquirir o
caráter de permanência, de ser o seu próprio contínuo (por
fazer parte da história), transporta-se do tempo cronológico
a um tempo memorial afetivo.
O exato momento do acionamento do obturador retira o
sujeito do tempo para inseri-lo no seu próprio “tempo”, que
seguirá seu caminho como memória, vivificando a “morte”,
reanimando o que se tornou pedra. Pr isso, o mito da Górgona
Medusa vir sempre atrelada à metáfora da morte fotográfica.
Não é somente o fato de ela transformar em pedra todos os que
cruzam o seu olhar, levando-os à eterna imobilização, que a
faz próxima da fotografia; esse fato se dá, sobretudo, pela
petrificação ocorrer exatamente no momento em que sua cabeça
é decapitada, o que torna os seus poderes eternamente ativos.
Ou seja, a sua morte (por ter sido olhada) não a levou para o
reino das trevas, mas lhe possibilitou conservar os seus
poderes para sempre, perpetuando-os ativamente (aí é que vejo
sua estreita relação com a fotografia, por isso acho que a
câmara é a própria máscara de Gorgó, que petrifica, imobiliza
todos os que a olham, sem jogá-los no limbo do tempo, mas
transportando-os a um continuum memorial).
VIII – A TEMPORALIDADE FOTOGRÁFICA E A MORTE
Tragédia e talismã
Após a morte do meu pai, resolvi escolher uma fotografia
dele para tê-la comigo em meu dia-a-dia. Talvez por não poder
mais desfrutar de sua presença na vida real, tenha tido esse
anseio de carregá-lo perto de mim, ao menos na sua realidade
fotográfica. Dentre as diversas fotos que conheci do meu pai
nas mais diferentes épocas de sua vida, fui acometido
compulsivamente pelo desejo de escolher uma, muito embora ela
apresente todos os defeitos técnicos que uma boa fotografia
não deveria ter. Lá estava o meu pai em pé, em uma estação de
trem, abraçado à sua irmã mais velha, por volta dos seus seis
anos de idade. Por que escolhi especificamente esta foto e
não uma outra qualquer de sua fase mais adulta, que o
representasse melhor e que guardasse uma lembrança mais
próxima da época em que convivemos juntos? Acredito que o
fascínio pela escolha dessa foto esteja relacionado à
implacável condição, inerente à própria fotografia, de se
jogar com o tempo de forma tão incontestável, fato que nos
remete às mais diversas inquietações. Há algo de extremamente
perturbador ao observar o meu pai ali tão novo, com um futuro
tão grande à sua frente, e saber que ele já está morto. Que
tragédia é essa, imposta pela fotografia, se no exato momento
da sua realização condena irremediavelmente o sujeito
fotografado à morte? Que aponta de forma tão cruel
(exatamente porque não está mentindo) para a morte?
Ratificamos mais uma vez essa grande surrealidade
fotográfica, de brincar de vida e morte de uma só vez, de
fazer com que, no instante em que o obturador é acionado,
surja uma imagem natimorta. Se por um lado ela imortaliza o
sujeito naquele tempo, por outro ela declara a sua morte,
condena-o à morte futura. Apesar dessa catástrofe
fotográfica, no entanto, volto todos os dias àquela imagem,
talvez por me sentir redimido desse drama, por perceber que a
fotografia me possibilita alcançar (mesmo que só por uns
instantes) a realidade inatingível da presença daquela pessoa
que tanto amei. Por isso, acho essa capacidade da fotografia
de conviver, a todo momento, com os mais profundos paradoxos,
o seu grande mistério – ser tragédia e talismã, ao mesmo
tempo.
Essa inquietação provocada pela temporalidade
fotográfica é sentida de forma tão surrealista como nas obras
de De Chirico e Tanguy, dois pintores que seguiram caminhos
plásticos bastante distintos, mas que apontaram para a
questão temporal com a mesma dramaticidade que a fotografia.
Aqui, o tempo pictórico e o fotográfico suscitam
surrealidades paralelas.
O tempo fotográfico em De Chirico
A obras de De Chirico apresenta questionamentos
marcantes em relação ao espaço, onde ele experimenta
representações em oposição tanto à perspectiva linear vigente
desde o Renascimento quanto em relação ao plano cubista,
criando, assim, uma espacialidade nova, de nulidade,
aparentemente de total incoerência (conforme já vimos). A sua
obra, porém, questiona sobretudo o tempo, de onde vem a sua
maior aproximação com a fotografia. As obras metafísicas de
De Chirico apresentam, de forma bastante recorrente, uma
falta de unidade temporal muito grande, por apresentarem, em
um mesmo espaço, diversos tempos diferentes (colunas gregas,
arcadas romanas, elementos da Idade Média, da
modernidade...), o que nos traz uma certa sensação de
desconforto pela perda de um referencial coerente, linear, e
por não sabermos, de fato, a que realidade estamos sendo
remetidos.
O que, a princípio, é percebido apenas como um mal-estar
transforma-se num gancho para uma investida mais profunda na
surrealidade temporal instalada. De imediato, o tempo
fotográfico presentifica-se na obra de De Chirico quando
percebemos que o que está representado ali na tela se passa
como um flagrante instantâneo transposto direto para a tela,
como se De Chirico, num passe de mágica, tivesse captado
através de pincéis e tintas um momento único (fotográfico),
embora de uma realidade que, definitivamente, não pertence à
nossa vida. As suas imagens, de fato, nos levam a crer que as
cenas apresentadas pertencem a um tempo congelado de uma
realidade indeterminada, freqüentemente composta com relógios
marcando as horas da tarde, assoladas por um sol causticante
que, ao varrer toda a cena, nos deixa o enigma causado pelas
sombras. De Chirico, aí, nos leva novamente ao mesmo mistério
fotográfico da ausência/ presença da ambigüidade, vivenciada
através das sombras humanas que deixam o rastro desse passado
recente congelado (fotográfico) e que nos faz experimentar o
grande paradoxo fotográfico de vida e morte, ao imortalizar/
mortalizar o sujeito representado (fotografado) como sombra.
Tudo isso está envolto pela atmosfera de uma realidade
extremamente inquietante, por ser desconhecida e enigmática,
em oposição à realidade fotográfica (que, por mais abstrata
que seja, é proveniente da realidade existente), mas que, por
isso mesmo, vem acentuar drasticamente a sua temporalidade
misteriosa, como a realidade fotográfica.
O tempo fotográfico em Tanguy
A obra de Tanguy, por seu lado, não encontra a
temporalidade fotográfica através da captação do momento
único, do congelamento instantâneo da realidade. Muito pelo
contrário, os seus quadros nos mostram ambientes silenciosos,
sombrios, abissais, de uma imensa solidão, com total ausência
do ser humano, com referências feitas apenas a alguns tipos
de vidas amorfas, compreendidos em um tempo em suspenso. Tudo
parece estar há muito tempo parado, de uma estática
verdadeiramente incômoda, pairando sobre a cena um grande
mistério pelo fato de o espectador se perceber diante de um
passado ilocalizável, confuso e, por isso mesmo, melancólico.
As suas representações nos causam estranheza, até porque,
normalmente, não sabemos ao certo de que se tratam; ora
parecem formas orgânicas pertencentes ao fundo do mar, ora
lembram cidades arrasadas por uma catástrofe atômica, ou
mesmo um parque industrial abandonado com um amontoado de
sucatas. A força dessas imagens, a excentricidade que as
envolve e que, na realidade, nos arrebata, não está nas
representações plásticas, no sistema figurativo em si, por
mais exótico que nos possa parecer, mas provém da distância
temporal que vivenciamos. Justamente aí é que vejo o gancho
da obra de Tanguy com a fotografia; pos as suas
representações estão de tal forma investidas de um
afastamento no tempo, de uma distância tão brutal da nossa
realidade cotidiana, que somos levados ao mesmo embate que
ocorre quando estamos diante de uma fotografia que nos toca.
O fascínio pelo que se há a descobrir, esse grande
mistério de se desvendar o desconhecido, o que se encontra
por trás da realidade explícita das coisas, surge ao mesmo
temo em que somos tomados exatamente pelo medo dessa
descoberta, pelo devir de uma realidade que não sabemos qual.
A fotografia nos coloca essa questão bem de perto, por lidar
com uma realidade existente e uma outra que se esconde atrás
dela. A obra de Tanguy me parece aprofundar ainda mais essa
discussão por lançar mão de uma realidade a princípio
possível, mas que, jogada em um abismo temporal tão grande,
torna-se total e completamente desconhecida por nós,
marcando, assim, de maneira mais intensa, um afastamento da
nossa realidade, tanto por nos dar esse passado tão longínquo
como por passar uma visão tão aterrorizada e desarticulada do
futuro. A obra de Tanguy, portanto, tal qual a fotografia,
sustenta uma premonição do futuro, mas sempre de maneira
muito negativa. Assim, a distância temporal trabalha aqui,
mais uma vez, apontando para uma descontextualização da visão
que temos das coisas e trazendo consigo a sua própria carga
surrealista.
Na realidade, tanto De Chirico quanto Tanguy instigaram
constantemente os nossos sentidos por jogar com a latência,
com a virtualidade impregnada na distância temporal de suas
imagens.
A obra de Tanguy é permeada pela virtualidade, na medida
em que ele prioriza um tempo em suspenso, parado no ar e nos
joga, irremediavelmente, a um passado desconhecido, sem
qualquer vínculo referencial interno, apontando,
conseqüentemente, para um futuro ameaçador, incerto, sem
garantias. As representações de Tanguy, por flutuarem no
tempo, nos provocam uma instabilidade muito grande em relação
ao que poderá vir adiante. Tudo parece estar por fazer, como
se algo estivesse prestes a acontecer, mas permanecesse ainda
em seu estado de latência, em potencial, gerando muita
angústia e ansiedade por sermos levados a especular e prever
algo a partir do desconhecido.
De Chirico, por sua vez, em meio a uma atmosfera já tão
carregada de mistério, coloca em suas representações sombras
humanas “sangrando” pelos espaços entre as construções. Na
realidade, as únicas possibilidades de movimento (que é o que
nos faz especular sobre o corte fotográfico do momento
instantâneo de suas cenas) frente a representações tão
estagnadas, em que não transparece qualquer tipo de animação,
são as tais sombras humanas. Quantas elucubrações e fantasias
não nos passam pela cabeça ao nos depararmos com aquelas
imagens virtuais de seres humanos que passaram ou passarão
por aquele local? Não há como evitar especulações em torno de
quem seriam essas figuras que estariam transitando em locais
tão estranhos, ou que pessoas conviveriam em lugares tão
misteriosos. A virtualidade imposta por essas sombras provoca
o mesmo tipo de inquietação estabelecida pelas imagens
fotográficas quando ainda não foram reveladas; tudo é
especulação, é fantasia. Embora somente o próprio De Chirico
pudesse nos dar a certeza de suas intenções, creio que,
nesses casos, ele brinca de fotografia, por ela invadir,
literalmente, a pintura, fazendo parte dela, como se uma
linguagem se transpusesse virtualmente, assim como a sombra
para dentro de outra. Tal fato constitui-se em mais um
elemento de desarticulação na obra de De Chirico, pois ele
intensifica a surrealidade da sua pintura através do
pensamento fotográfico.
IX – A TEMPORALIDADE VIRTUAL E A LATÊNCIA NA LINGUAGEM
FOTOGRÁFICA