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Taymara Sayuri Sakamoto

FOTOGRAFIA E CONFLITO: REPRESENTAÇÕES DO GENOCÍDIO DE RUANDA


SOB UM OLHAR COLONIZADOR

Curso de Relações Internacionais

Faculdade de Ciências Sociais

PUC-SP

São Paulo, 2019


Taymara Sayuri Skamoto

Trabalho de Conclusão de Curso apresentado como


exigência parcial para obtenção de título de
Bacharel em Relações Internacionais, sob a
orientação da Rita de Cássia Alves Oliveira.

Curso de Relações Internacionais

Faculdade de Ciências Sociais

Pontifícia Universidade Católica de São Paulo

São Paulo, 2019


RESUMO

Este trabalho tem como objetivo analisar de que forma a fotografia corrobora para a narrativa
ocidental sobre o “outro”. Através da contextualização sobre a fotografia, desde seu
surgimento até a forma moderna de representação sobre os conflitos, questionando seu papel
de reprodutor da verdade e a influência que o sujeito-fotógrafo exerce sobre suas imagens.
Isso colocado, foi analisado através de uma abordagem comparativa com as produções
coloniais, de que forma as fotografias fortemente veiculadas pelo mundo ocidental
corroboram com a narrativa colonizadora e ocidentalizada sobre os povos africanos e seus
conflitos, tendo o genocídio de 1994 como objeto de análise.

Palavras-chave: Ruanda; genocídio; fotografia de guerra; colonização.


SUMÁRIO

INTRODUÇÃO..............................................................................................................5
1. CONTEXTUALIZAÇÃO HISTÓRICA DA FOTOGRAFIA.......................................7
1.1. FOTOGRAFIA E VERDADE............................................................................7
1.2. FOTOGRAFIA DE GUERRA............................................................................9
2. A FOTOGRAFIA EM RUANDA................................................................................12
2.1. COLONIALISMO EM RUANDA..................................................................14
2.2. ANÁLISE SOBRE AS REPRESENTAÇÕES FOTOGRÁFICAS DO
GENOCÍDIO DE RUANDA............................................................................26
CONSIDERAÇOES FINAIS........................................................................................45
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS..........................................................................47
ANEXO I......................................................................................................................49
INTRODUÇÃO

O tema conflito sempre esteve presente em fotografias documentais antes mesmo do


fotojornalismo de guerra se consolidar nos anos de 1930. A guerra da Crimeia (1853-1856)
foi o primeiro conflito registrado na história da fotografia desde 1855. O fotógrafo Roger
Fenton (1819-1869), a serviço do governo britânico, teve o objetivo de transmitir imagens
positivas de uma ação cada vez mais impopular. Daí em diante tornou-se constantes outras
documentações fotográficas de conflitos. Embora as fotografias mostrassem os massacres que
ocorriam nos campos de batalha, os fotógrafos sempre estiveram sob a aprovação de críticos
que questionavam a possibilidade de manipulação das imagens.
As fotografias da guerra do Vietnã (1959- 1975) foram de extrema importância, pois
se observa a não interferência ou manipulação do acontecido, o fato estava ali registrado.
Atualmente, percebe-se um fluxo constante de fotografias de guerras nas mais diversas
mídias. Lombardi (2011) lembra que essas imagens são importantes não por retratarem a
realidade, mas sim por serem fundamentais para ajudar a re(construir) aquilo que aconteceu e
evitar que nos esqueçamos que o fato existiu. “O que está em jogo não é a materialidade da
imagem, mas aquilo que ela vai nos remeter.” (LOMBARDI, 2011, p. 24).
Sobre a “avalanche” de imagens veiculadas pelos meios de comunicação de massa,
Sontag (2003) assegura que, comparada às demais mídias, a fotografia tem maior capacidade
de compactar memórias e por meio delas o indivíduo pode resgatar o referente. A autora
denominou de iconografia do sofrimento à abordagem midiática das fotografias de conflito.
“De fato, há muitos usos para as inúmeras oportunidades oferecidas pela vida moderna de ver
– à distância, por meio da fotografia – a dor de outras pessoas.” (SONTAG, 2003, p. 16).
Influenciados pelos trabalhos da década de 1950, fotógrafos atuais acrescentam em
suas produções fotodocumentais características próprias de suas ordens simbólicas sem
deixarem de apresentar um sinal de realidade. Lombardi argumenta que o
fotodocumentarismo está inserido numa linha tênue entre o documento e a arte, cabendo ao
fotógrafo escolher dentro do seu imaginário a maneira de configurar uma nova fotografia.
Diante disso, este trabalho propõe, a partir das fotografias documentais tiradas
majoritariamente após o genocídio em Ruanda e seus arredores, discutir a influência, sendo
proposital ou não, do sujeito (fotógrafo) na composição imagética do objeto e de que forma as
produções sobre o genocídio carregam uma visão colonizadora sobre os povos africanos.

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Para tanto, no primeiro capítulo vamos discutir sobre a fotografia em si. A fotografia
desde seu surgimento até os dias atuais é associada de forma recorrente como uma
representação pura do real, onde ela apenas seria a prova concreta do que retrata. Ao longo do
capítulo discutiremos a falácia em que essa colocação pode se encaixar e como considerar a
fotografia como produto do que o sujeito-fotógrafo trás em seu olhar. Na mesma linha de
argumentação, vamos inserir essa ideia no contexto do fotojornalismo, ou fotografia de
guerra.
Dada essas proposições poderemos seguir no segundo capitulo explorando a tese no
contexto do conflito étnico-politico de Ruanda. Num primeiro momento entenderemos como
as produções imagéticas se dão no contexto colonial e assim faremos uma análise comparativa
das imagens mais significativas, do ponto de vista da formação histórico-político-social que
desempenham, do genocídio que repercutem até os dias atuais. Por fim, a principal questão
que pretendemos levantar durante o trabalho é de que forma as produções fotográficas do
genocídio de Ruanda corroboram para uma narrativa ocidental sobre o que de fato aconteceu
e suas causas.
É importante ressaltar que abordagem comparativa com as imagens coloniais foi
escolhida uma vez que se mostrou inacessível, apesar de esforços em contatar universidades e
institutos de fotografia de Ruanda durante a pesquisa, materiais de produções locais. Ainda
que houvesse fotógrafos ruandeses presentes, fica evidente que as fotografias não foram
circuladas da mesma maneira em que as fotografias ocidentais foram. Essa é uma informação
expressiva que corrobora sobre a questão principal de toda a tese em que esse trabalho se
estrutura: sobre quem constrói a narrativa dominante.
Analisar essas imagens em busca de um olhar colonizador sobre elas não foi uma
tarefa que se mostrou fácil, pois pertencemos a uma posição muito privilegiada e, de forma
semelhante aos fotógrafos ocidentais, carregada de concepções equivocadas. Apesar disso, o
objetivo do esforço em diluir as imagens em pequenos desenhos e a partir das falácias que
deles surgem foi de trazer a tona uma verdade pouco representada.

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1. CONTEXTUALIZAÇÃO HISTÓRICA DA FOTOGRAFIA

1.1. FOTOGRAFIA E VERDADE

A visão de mundo da sociedade é mediada por imagens. O conhecimento de tempo e


espaço se limita nelas, ou melhor, o mundo hoje é mais palpável ao homem por meio de
imagens. Fica mais fácil entender essa premissa quando se reconhece que indivíduos ao
observarem às fotografias acreditam gozar da realidade. O fato está ali ou parece estar naquele
pedaço de papel. Segundo Flusser (1985) é a imaginação que determina o plano da imagem.
Imaginar é fazer e interpretar imagens. O autor afirma que é possível encontrar significado em
imagens devido à sua magicização. “Imagens são códigos que traduzem eventos em situações,
processos em cenas [...] elas substituem eventos por cenas. E tal poder mágico [...] domina a
dialética interna da imagem, própria a toda mediação, e nela se manifesta de forma
incomparável”. (FLUSSER, p. 7)
A fotografia, imagem técnica produzida por meio de aparelhos, foi incessantemente
buscada e aperfeiçoada por cientistas desde o final do século XVIII até a atualidade com as
técnicas de obtenção da imagem digital. Em diversos países, simultaneamente, pesquisou-se
maneiras e materiais distintos a fim de se obter a imagem técnica, ou sua fixação. Segundo
Tacca, embora as direções fossem opostas, as perspectivas eram similares: encontrar “uma
imagem que poderia ser guardada, uma memória definitiva de pessoas, paisagens e coisas;
uma memória aparelhística especular, programada por tecnologia aplicada, aparentemente
limpa das imperfeições humanas”. (TACCA, p. 10).
A fotografia, em toda sua história, sempre esteve conectada inserida no meio artístico,
adaptando características próprias da pintura e readquirindo outros valores estéticos. Segundo
Fatorelli, “a fotografia inscreveu um sujeito e um modelo de subjetivação singular, irredutível
ao modelo renascentista e ao modelo clássico, e como, prospectivamente, redefiniu-se a partir
da presença de novos suportes”. (FATORELLI, p.17).
Então, é importante pensar que significados esses suportes produzem. “As fotografias
criam realidade ao tempo que se instituem em referência a rede de relações culturais, sociais e
institucionais mais complexas.” (FATORELLI, p. 11). A imagem fotográfica se apropria de
uma situação, assimilando o seu tempo e o seu espaço, para representar o real. Guran
desenvolve essa ideia ao conceituar que a fotografia, em relação à memória e à escrita,
compreende “inventariar cenários, eventos e circunstâncias com muito mais precisão e
7
abrangência [...]. E ao fixar o imprevisto e o inusitado, abre novas perspectivas de absorção e
compreensão de um fato.” (GURAN, p. 6-7).
De acordo com Martins, à medida que a fotografia se inseriu na sociedade como meio
popular de expressão visual, ela passou a classificar aquilo que se vê no cotidiano. O autor
acrescenta ainda que, a imagem fotográfica “criou seletividade de focos ao transformar os
cenários da vida de todo dia em imagem fotográfica. Hierarquizou o que é visto. Criou
desprezos visuais na glamorização daquilo que se vale a pena ver na vida de todo dia”.
(MARTINS, p. 40).
Ao representar um tema, a fotografia o consagra, pois a imagem tanto se conecta a ele
quanto o expande. Além de interpretar o real, a fotografia, segundo Sontag, é um vestígio
material do tema fotografado. Então, a fotografia jamais poderá ser entendida como “espelho”
da natureza, como se acreditava quando esta surgiu. Entende-se, aqui, vestígio como um sinal
de um acontecimento real ou de algo que de fato existe. Deste modo, nossa pesquisa aponta a
teoria dos signos, proposta por Pierce, para certificar que a fotografia possui um caráter
denunciante, já que por adjacência física mantem-se ligada ao seu objeto referencial.

Os índices podem distinguir-se de outros signos, ou representações, por três


traços característicos: primeiro, não têm nenhuma semelhança significante com seus
objetos; segundo, referem-se a individuais, unidades singulares, coleções singulares
de unidades ou a contínuos singulares; terceiro, dirigem a atenção para seus objetos
através de uma compulsão cega [...]. Psicologicamente, a ação dos índices depende
de uma associação por contiguidade, e não de uma associação por semelhança ou
operações intelectuais. (PEIRCE, p. 75-76).

Machado expande o entendimento de signo ao introduzi-lo no campo ideológico. A


partir deste, os indivíduos (no caso, os fotógrafos) tornam-se capazes de criar sistemas
simbólicos de representação o mundo. “A ideologia é vista como expressão do mundo das
ideias e não como expressão de relações sociais concretizadas em instituições e práticas”.
(MACHADO, p. 18). Os signos estão sob a influência da hierarquia e conflitos dos grupos
sociais e sua produção acaba sendo dependente das necessidades, interesses e estratégias de
cada estrato social. (Ibid, p. 22).
Então, a interpretação de uma imagem fotográfica dependerá do conjunto de elementos
assimiladores (códigos) do referente com os diversos aspectos socioculturais e ideológicos, do
próprio objeto e do fotógrafo. “Assim, as fotografias vão formando círculo mágico em torno

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da sociedade, o universo da fotografia.” (FLUSSER, p. 33). A representação fotográfica estará
sujeita a um jogo de poderes entre aparelho, homem e mundo. O resultado desse jogo é,
enfim, o efeito magicizador da realidade.
O ponto chave aqui é como compreender essa discussão que foi levantada em
fotografias documentais de guerra. Para Sontag (p. 11-13) “as fotos das vítimas de guerra são,
elas mesmas, uma modalidade de retórica. Elas reiteram. Simplificam. Agitam. Criam a ilusão
do consenso [...]. Olhem, dizem as fotos, é assim. É isto o que a guerra faz.”.

1.2. FOTOGRAFIA DE GUERRA

Antes da invenção da fotografia, no início do século XIX, eram utilizadas ilustrações


com o objetivo de retratar o real. Segundo, Buitinoni, os ilustradores iam até os locais a fim
de produzir gravuras que acompanhariam os textos nos jornais. Dessa forma, a fotografia
surge para romper com o a relação da mão do homem com a produção de imagens cotidianas,
fato importante, já que a máquina agora passaria a exercer funções anteriormente atribuídas a
uma pessoa e, portanto, diminuía a questão da temporalidade do registro que agora passava a
ser capturado de uma só vez pela câmara escura.
Outro fator relevante que contribuiu para a inserção da fotografia na sociedade é a
crise pela qual a credibilidade das produções manuais estava passando por serem consideradas
humanas demais, onde o artista poderia “ser acometido por uma espécie de cegueira, em razão
dos próprios limites do desenhista: os de suas capacidades perceptivas, o das duas ideias
preconcebidas, os de suas escolhas e vontades” (ROUILLE, p. 41).
A partir de então tudo passou a ser fotografado como que para criar um arquivo do
mundo (Sontag). Desde então a fotografia carrega um lugar de credibilidade, que testemunha
a verdade, onde as gravuras nunca mais poderiam alcançar. Dessa forma, tudo que era
representado pela fotografia era o que de fato teria acontecido, chegando a ser considerada um
“espelho do real” (Dubois). Assim, a fotografia sendo cada vez mais difundida na sociedade
passa a gozar não só de um conceito barthesiano de representação do acontecido, “foi isso”,
mas também de um grau de autonomia em que elas por si só passam a ser o mundo em si.
Ao mesmo tempo em que a sociedade, com a fotografia, passa a ver mais e também
menos, já que ela necessariamente é produzida a partir dos olhos do outro, ou seja, do
fotógrafo. A sociedade passa a produzir um instrumento de consciência visual próprio e
moderno, já que ela “racionaliza e tecnifica a produção da imagem, amplia a possibilidade de
9
consciência fantasiosa e, ao mesmo tempo, libertadora dos cerceamentos do mundo da razão e
da técnica” (MARTINS, p. 67).
A Guerra da Crimeia é um clássico exemplo da dualidade em se “ver mais e também
menos”, pois apesar das fotografias de Fenton retratarem os campos de batalha de forma
heroica e harmônica com os soldados bem vestidos e alegres, deixava de mostrar a realidade
do que acontecia a sua frente. Esse exemplo comprova de forma clara como, desde seu
surgimento, a fotografia não é uma representação completamente fiel do real, mas sim um
recorte definido por quem fez a fotografia.
Na obra Em defesa da sociedade (1976), Michel Foucault debate sobre a sociedade, a
lei e o Estado e como estes conceitos se estruturam através de um discurso histórico-político
de formação das nações pelas normas e pelas conquistas, ora travadas por disputas, em
oposição e na criação aos períodos de pacificação. A guerra é que é o motor das instituições e
da ordem: a paz, na menor de suas engrenagens, faz surdamente a guerra. Ou seja, cumpre
traduzir a guerra sob a paz: a guerra é a cifra mesma da paz.
Portanto, “estamos em guerra uns contra os outros; uma frente de batalha perpassa a
sociedade inteira, contínua e permanentemente, e é essa frente de batalha que coloca cada um
de nós num campo ou no outro. Não há sujeito neutro. Somos forçosamente adversários de
alguém” (FOUCAULT, 1976, p. 59). Assim, podemos abrir uma reflexão sobre as imagens
das guerras, a partir do século XIX em que, a partir deste momento, se tem a tecnologia de
obtenção de imagens que é a fotografia.
Para o pesquisador português Jorge Pedro Sousa (2004, p. 40), “depois da fotografia, a
guerra nunca mais seria a mesma” e muitos acontecimentos comprovam tal afirmação. Antes
de tratar sobre os conflitos do século XX faz-se necessário observar como a fotografia foi
utilizada no século XIX como potencial elemento de divulgação de batalhas, gerando
significados e discursos diversos aos diferentes públicos a cada época.
Após a Guerra da Crimeia, todos os conflitos passaram a serem cobertos por
fotojornalistas, mas devido às limitações tecnológicas dos equipamentos, as imagens eram
mais focadas nos campos de batalha do que na guerra em si. A Guerra de Secessão seria a
primeira a de fato evidenciar a “estética do horror” (Sousa 2000), sendo fundamental para a
evolução da fotografia de guerra, pois a partir dai se observou um interesse por parte da
sociedade em serem observadores visuais, fazendo com que caísse por terra o caráter heroico
que a guerra possuía.

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Apesar disso, a reprodução das imagens através das impressões em halftone tinha um
custo muito elevado, sendo então produzidas gravuras a partir das fotografias, tornando a
intervenção humana presente até então. Houve durante muito tempo a possibilidade de
manipulação da fotografia e esse cenário só mudou, segundo Sontag (2003), depois da Guerra
do Vietnã (1975), onde era possível atestar a veracidade das imagens produzidas sem que
houvesse algum tipo de encenação.
Ainda que o cenário em relação à distribuição das imagens de guerra houvesse
mudado, as fotografias da Primeira Guerra Mundial ainda passaram por uma censura militar
que tinham o objetivo de evitar que a população fosse abatida pela realidade dos campos de
batalha. Nessa época, a fotografia não tinha a função de apenas retratar a realidade, mas
serviu como um instrumento importante de manipulação e propaganda, a fim de controlar a
opinião pública estimulando ou direcionando seus ódios e afetos. Diante disso, os fotógrafos
tinham que lidar não só com os governos dos países, mas também com os editores que
constantemente ajustavam e manipulavam as imagens a fim de evitar que a população se
chocasse com o conteúdo das mesmas.
Mesmo assim, Sousa (2000) julga ser nesse período em que ocorre a primeira
revolução do fotojornalismo, ou seja, as imagens passam a serem consideradas mais do que os
próprios textos provocando um aumento na demanda de produção e distribuição de imagens
de guerra, mesmo que não representassem o horror dela. Esse aumento significativo das
imagens se dá a partir do momento em que é percebido pelos veículos de comunicação que a
dor e o sofrimento alheio envolvem a população, tornando-as extremamente lucrativas do
ponto de vista do mercado.
Já na segunda metade do século XX, segundo Sousa (2000), o fotojornalismo passa
pela sua segunda revolução, onde o sensacionalismo passa a predominar privilegiando a
espetacularização e a dramatização da informação e, consequentemente, a fotografia passa a
adquirir essas mesmas características. A imprensa passa a valorizar matérias de cunho social,
focando suas fotorreportagens na miséria, no conflito, na fome. Nesse cenário, a cobertura da
Guerra do Vietnã se encaixa perfeitamente.
O conflito armado que aconteceu no sudeste asiático representou para a história do
fotojornalismo a recuperação da credibilidade da fotografia verdadeiramente denunciante face
ao seu desgaste provocado pela grande veiculação de imagens das Grandes Guerras, junto ao
surgimento da televisão. Contrariamente às coberturas anteriores, esse novo período apresenta
uma nova forma de retratar a realidade por mais de um ponto de vista, com o objetivo de ser o
11
mais transparente possível, sem que houvesse nenhum tipo de intervenção sobre a percepção
do público e censura sobre as publicações como eram feitas anteriormente. Dessa forma,
aliada a televisão, formou-se então uma opinião contrária à guerra no Ocidente (Sousa 2000).
A cobertura fotojornalista no Vietnã foi de extrema importância, pois através de uma
produção que mostra a realidade da guerra em seu sentido mais cru, sem a fantasia da
heroicidade do conflito, conseguiu promover questionamentos relevantes acerca da
“insanidade e insensatez da devastação” (Sousa 2000). Passou-se, então, a explorar mais os
caminhos da sensibilidade e a se utilizar mais da foto-choque. Isso ocorre, pois, segundo
Sontag (2003), “as fotos das vitimas de guerra são, elas mesmas, uma modalidade de retórica.
Elas reiteram. Simplificam. Agitam. Criam a ilusão do consenso” (p. 11).
Após a Guerra do Vietnã, houve uma preocupação maior por parte dos militares,
havendo inclusive certo tipo de censura, a partir do momento em que perceberam como esse
tipo de produção pode afetar a percepção do público provocando, através da sensibilização,
um posicionamento contrário aos conflitos armados (Sousa 2000).
Se durante os anos 60 e 70, as imagens que mais chocavam causavam comoção no
público eram as mais publicadas, hoje há certo tipo de cautela em relação a essas imagens na
mídia impressa, televisão e, principalmente, na internet. Conforme Sontag (2003), muitas
vezes os meios de comunicação optam por não mostrarem imagens que poderiam causar
“engulhos” nos leitores e, portanto, acabam optando por selecionar imagens mais amenas, de
acordo com seu “bom gosto”.

2. A FOTOGRAFIA EM RUANDA

Os colonizadores belgas usaram a frenologia 1 para criar uma divisão irredutível entre
os dois maiores grupos populacionais vivendo há séculos em Ruanda-Urundi. Isso criou as
bases para a implementação de esforços sistemáticos para subjugar a grande população Hutu.
Tanto os Hutus quanto o grupo menor e inicialmente privilegiado dos Tutsis logo
incorporaram o discurso racista, que foi crucial no aumento gradual da violência antes e após
a independência de Ruanda em 1962. O genocídio de 1994 constituiu o terrível ápice deste
processo envolvendo massacres repetidos.

1
Frenologia é uma pseudociência que alega que a forma e protuberâncias do crânio são indicativas das
faculdades e aptidões mentais de uma pessoa. A frenologia baseia-se no conceito de que o cérebro é o órgão da
mente e se encontra dividido em regiões com funções específicas denominadas “módulos”.
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Neste capítulo observaremos como se deu esse processo e como a fotografia serviu de
base para evidenciá-lo, principalmente pelo fato do qual a massificação da imagem contribui,
no contexto da propaganda colonial, para apresentar o progresso introduzido pelo europeu nos
territórios coloniais, designadamente ao nível da construção de infraestruturas, educação,
saneamento, etc.; e popularizar paisagens, povos e costumes remotos, vulgarmente sob a
forma de estereótipos rácicos e culturais.

Não seria de estranhar, então, que o alargamento de conceitos como ‘raça’, ‘tribo’,
‘cultura’, etc., nas sociedades ocidentais, tenha sido mediado pela imagem fotográfica, que
descreve, primeiro, as particularidades físicas, e, posteriormente, o ecossistema, os costumes,
a economia, a habitação, a religião ou a arte de um ‘outro’ tornado objeto de estudo e
curiosidade exótica.

Foi precisamente através da fotografia que o grande público europeu se convenceu das
distinções pseudocientíficas entre as várias ‘raças’ e culturas, e respetivas hierarquizações.
Aqui, a representação estereotipada e a informação adicional, remetendo para categorias e
tipologias gerais, contribui para uma coisificação e desindividualização do sujeito, cuja
identidade é reenviada para qualidades genéricas de ‘raça’, ‘género’, ‘etnia’, estatuto social ou
ocupação.

É importante nos atentarmos ao fato de nada sabermos sobre o modo como as pessoas
aqui fotografadas viam as suas fotografias. Ser fotografado podia ser interessante para as
pessoas que se deixavam fotografar, nomeadamente para os “nativos” cuja diferença as
fotografias sublinhavam. Se neste caso o ponto de vista de quem fotografava apontava para
certa inferioridade de quem era fotografado, o ponto de vista de quem era fotografado podia
ser exatamente o oposto. Ser fotografado podia ser subjetivamente interpretado como um sinal
de sucesso. Por outro lado, a aparência muitas vezes “híbrida” dos nativos retratados,
negativamente avaliada por quem fotografava, podia ser um sinal objetivo da capacidade de
quem era fotografado para se integrar nas relações de poder criadas pela situação colonial e,
simultaneamente, preservar aspectos importantes dos seus gostos ou das suas formas de vida2.

2
COOPER, Frederick. Colonialism in question: theory, knowledge, history, p.201
13
2.1. COLONIALISMO EM RUANDA

O lugar que hoje conhecemos como Ruanda, foi um dos últimos países africanos a
terem contato com o mundo europeu. Enquanto diversas regiões e povos africanos já haviam
firmado relações com os povos da Europa, onde já se estabeleciam relações politicas e
econômicas mais enraizadas e complexas, a sociedade que vivia em Ruanda apenas teve
contato com o homem ocidental branco somente no século XIX, quando o colonialismo e
imperialismo europeu já se estabeleciam de forma mais significativa pelo mundo
(MAMDANI, 2002, p. 78).

Com a Conferência de Berlim, Ruanda foi determinada como colônia alemã; porém, a
Alemanha não conseguiu promover grandes feitos, dado sua difícil aproximação e a demanda
de investimentos em regiões mais “lucrativas”. Com a derrota da Alemanha na Primeira
Guerra Mundial (1914-1918), Ruanda foi transferida para a posse da Bélgica que, por sua vez,
foi mais ativa na região. O modo como se constituiu o colonialismo belga em Ruanda, as
relações entre o poder colonial e a monarquia ruandesa, somados ao modo como a população
encarou tal processo marcou profundamente a formação do país.

É extremamente importante neste processo a racialização da sociedade ruandesa, já


que a sua sociedade passa a ser entendida e a adotar aos poucos uma dinâmica social
parcialmente pautada em questões de caráter hereditário e fenotípico, pois, hipoteticamente,
tais aspectos estariam vinculados de forma direta às posições sociais da sociedade
Banyarwanda. Uma abordagem racialista e racista do mundo foram reproduzidas e tinham
como base estudos antropométricos e eugênicos do final do século XIX e início do XX a
partir de médicos e antropólogos europeus que saíram pelo mundo medindo crânios e outras
partes do corpo com o intuito de autodeclarar cientificamente (de acordo com a concepção
científica da época) o europeu superior em termos biológicos frente aos homens de outras
regiões, com o objetivo de legitimar o imperialismo e o colonialismo, como podemos
observar nas fotografias abaixo:

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Figura 1 – Homem ruandês é examinado, claramente por um homem branco, com o objetivo de medir
características como tamanho do nariz e cor dos olhos. Autoria e data desconhecidas.

Figura 2 – Usa-se um aparelho típico da frenologia para medir as dimensões do crânio e, consequentemente,
avaliar a aptidão do cérebro em questão. Autoria e data desconhecidas.

Além da propagação de uma sociedade racializada que fragmenta a sociedade


ruandesa, o colonialismo também contribui com a inserção da religiosidade católica dentro de
Ruanda; tanto que a região se torna o segundo país com a maior proporção populacional de
católicos (RICART, 1998, p. 25). Essa introdução do catolicismo também se constitui de
modo a conceber uma percepção de superioridade religiosa e cultural por parte do europeu,

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aproximando também as elites locais do período colonial do modo de vida e da religiosidade
ocidental.

É interessante observar como em Ruanda ocorreu um colonialismo com uma


dominação e determinação de valores a partir de destas duas dimensões: a de uma sociedade
racializada – e, portanto, dividida - e dominada pela doutrina católica. No caso ruandês, tanto
a dominação religiosa, como a biológica se fez amplamente presente e foram determinantes
na consolidação de novas identidades e dinâmicas sociais da população ruandesa, sendo que
estas duas formas de dominação estavam intimamente atreladas e traziam, inclusive,
sustentação entre si, proclamando uma superioridade do tutsi frente ao hutu.

Na imagem abaixo é possível observar o registro da missão colonizadora e católica, a fim de


provar seu progresso. É importante ressaltar que os padres foram as primeiras pessoas brancas
a aparecerem nas fotografias coloniais, o que era muito incomum, já que o objetivo era
sempre de retratar o “outro” em seu habitat mais puro possível, devido ao seu caráter
“exótico”.

Figura 3 – As “Irmãs Brancas” chegando à Ruanda em 1909.

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A formação de uma dominação católica em Ruanda é manifestada nas inúmeras
missões criadas por alemães e, principalmente, belgas. Mais importante ainda é afixação que
tais missões conseguem no interior da sociedade ruandesa, ainda mais pelo fato de que essas
missões criaram diversas escolas e hospitais onde eram feitas a conversões e catequização dos
locais. (RICART, 1998, p. 71).

O ensino religioso e a catequização tinham também o objetivo de reforçar uma suposta


superioridade europeia e também aproximar essa superioridade com a população tutsi; assim,
os padres e bispos que estavam em missão em Ruanda propagavam que a população tutsi era
superior e melhor estimada por Deus. Tal discurso agrada a monarquia ruandesa que se
direciona cada vez mais para um catolicismo (MAMDANI, 2002, p. 80).

A criação dessa concepção baseava-se na metáfora construída entre a população


ruandesa e o mito hamítico da bíblia, a partir de uma analogia entre tutsis e hutus e os irmãos
Caim e Abel. Tal entendimento colocava os hutus como herdeiros de Caim e os tutsis
herdeiros de Abel. Essa analogia encontra seu argumento no fato de que a grande maioria dos
tutsis eram pecuaristas como Abel e a grande maioria dos hutus eram agricultores como Caim
e, dado a dominação tutsi na sociedade Banyarwanda, este foi considerado como uma espécie
de benção divina, pois Abel era preferido por Deus, enquanto que Caim era preterido, o que,
no mito hamítico, faz com que Caim assassinasse Abel3 (GOUREVITCH, 2006, p. 56). Com
base na visão do mito hamítico, as missões católicas divulgavam esta percepção para os
ruandeses, proclamando a superioridade e a legitimidade da dominação dos tutsis.

Porém, este entendimento de superioridade por parte da população tutsi também se


dava a partir de apontamentos biológicos, de modo também a corroborar com o próprio
colonialismo belga em Ruanda, que propagou de forma intensa a ideia de que tutsis e hutus
constituíam diferentes raças e que os tutsis seriam superiores aos hutus, o que atraiu parte da
monarquia ruandesa tutsi apesar das resistências do Mwami Yuri IV4. Podemos refletir acerca
dessa percepção a partir do seguinte trecho de um documento oficial de 1925 produzido pela
colonização belga:

3
Essa comparação é inclusive reforçada após o genocídio, já que, assim como Caim mata Abel, alguns grupos
de hutus mais radicais buscam assassinar tutsis.
4
Mwami é o título monárquico do líder político na sociedade Banyarwanda. Pode ser traduzido como “rei”.
17
Os tutsis são outra gente. Fisicamente, eles não têm uma semelhança com
os hutus, exceto, evidentemente, alguns 'declassés' (desclassificados) cujo sangue
não é mais puro. Mas, os tutsis de boa raça possuem, além da cor, nada de um negro.
As características físicas recordam numa maneira inquietante o perfil da múmia de
Ramsés II. Os tutsis foram destinados a governar [...]. De onde estes conquistadores
vieram? Eles não são Banto, isso é muito certo. Mas a sua linguagem é a do país,
claramente banto, sem qualquer vestígio de infiltração em relação à sua origem
(MAMDANI, 2002, p. 302).

É possível perceber na citação acima que a percepção colonialista belga apontou para
uma suposta diferenciação fenotípica entre tutsis e hutus, em que os tutsis são colocados como
“outro povo” que não possuem semelhanças com os hutus. No entanto, o trecho também
assume a existência de uma miscigenação entre as diferentes raças ruandesas, dado a presença
daqueles considerados “declassés”, “cujo sangue não era mais puro”. A ideia de uma pureza
de sangue carrega uma típica noção racialista da sociedade, em que os sujeitos herdam
hereditariamente as características de seu grupo racial, e, em caso de miscigenação, este
sangue ficaria supostamente contaminado.

Porém, um dos trechos mais curiosos da citação é que o “tutsi de boa raça”, ou seja, o
tutsi de sangue puro, aquele que não possui nenhum tipo de miscigenação em sua família, é
dado pelos colonizadores quase como se fosse um branco, pois, se não fosse a cor negra de
sua pele, poderia ser classificado como um branco, o que é ainda reforçado pela ideia
hipotética de que suas feições teriam certa aproximação com a da múmia de Ramsés II5,
como na comparação abaixo:

5
Neste momento, Ramsés II era entendido como um branco, assim como a civilização egípcia, que dada a sua
magnitude era erroneamente mais associada aos europeus e não aos africanos.
18
Figura 3 - Mwami Mutara III (Google) Figura 4- Estátua do Faraó Ramses II (Google)

Essa associação da etnia tutsi com o branco europeu tinha como principal objetivo, de
acordo com a proposta de uma sociedade colonialista, legitimar a dominação colonial e a
dominação tutsi, além de estreitar de forma sólida as relações entre a monarquia tutsi e o
poder colonial. Essa questão fica ainda mais evidente quando a racialidade da população tutsi
é estendida a questões políticas, já que a partir de sua suposta superioridade os tutsis seriam
“conquistadores” que “foram destinados a governar”, ou seja, o tutsi se aproxima da
percepção do “fardo do homem branco”.

É importante destacar que dentro de uma visão de mundo racializada da primeira


metade do século XX, as raças não se limitavam apenas às diferenças físicas entre diferentes
grupos humanos, mas também carregavam em si uma distinção de habilidades e capacidades
que refletiam no intelecto dos indivíduos, assim como na sua própria ação social e política, o
que levaria também as pessoas a ocuparem diferentes locais na sociedade dada suas
capacidades raciais.

Diante dessa abordagem de uma concepção racialista, tutsis e hutus não seriam
diferentes apenas por questões de aparência, mas da mesma forma, por suas destoantes
capacidades. Tais questões são perceptíveis na obra Monografia agrícola de Ruanda-Urundi,
do belga E. Everaerts (1947, p. 36-38), na qual o autor classifica os tutsis como sendo
naturalmente “[...] inteligentes, ambiciosos, diplomatas [...]”, enquanto que os hutus seriam
“[...] tímidos, obedientes, brutos”.

19
Uma divisão racialista entre as duas etnias, implicando também em suas capacidades,
reforçou de forma significativa o poder da monarquia tutsi, já que estes eram compreendidos
como naturalmente diplomáticos e mais inteligentes, levando-os ao governo e a sua
articulação com o colonialismo belga. Já os hutus, dada a sua rusticidade e brutalidade, lhes
cabiam apenas o trabalho braçal e a brutal exploração em que o modo de produção do sistema
colonial se sustentava.

Podemos considerar então que por trás desse entendimento está a consolidação de um
mundo dividido, como aquele apontado por Fanon. Porém, diante da impossibilidade de
estabelecer um domínio mais direto por parte dos europeus em Ruanda, os belgas
proclamaram como líderes locais o grupo que supostamente seria “mais branco”. Tal postura
inseriu na sociedade Banyarwanda uma divisão ainda maior entre as etnias, separando seus
espaços de convivência, suas religiões, seus modos de vida, o que sustentou um grande
distanciamento entre os governantes e os governos, e quanto mais os tutsis se aproximavam
dos belgas, mais eles eram entendidos como estrangeiros que invadiram a região para explorar
os hutus.

Essa separação entre tutsis e hutus, com a monarquia tutsi se aproximando cada vez
mais do poder colonial fica mais evidente a partir da década de 1930, quando o novo Mwami
Mutara III protagoniza diversas mudanças nas áreas políticas, econômicas e sociais. O próprio
Mwami muda consideravelmente a sua própria imagem representativa, pois se converte ao
catolicismo e muda diversos comportamentos, abandonando as suas antigas vestimentas
oficiais tradicionais para adotar um traje militar de gala com adereços tradicionais, conforme
podemos ver nas imagens abaixo:

20
Figura 5 – À direita, Mwami Yuhi V Musinga, que governou entre 1896 e 1930.

21
Figura 6 - Foto do Mwami Mutara III, que governou entre 1931 e 1959.

Na mesma medida, o Mwami abandona a sua antiga choupana para construir e se


mudar para um novo palacete, conforme podemos observar na imagem abaixo:

22
Figura 7 - Tradicional casa do Mwami (1928)

Figura 8 - Nova casa do Mwami em Nyanza (1935)

Estas transformações assumidas pelo Mwami representam o quanto este estava se


distanciando dos valores tradicionais dos Banyarwandas para adotar pautas e posturas
ocidentais, tornando-se quase que a figura principal que protagonizaria a “modernização” (ou
23
destradicionalização) de sua sociedade, ficando mais próximo dos colonos do que dos
colonizados. Esse afastamento entre o poder local da própria população faz com que aos
poucos cada vez mais os tutsis passem a ser entendidos como estrangeiros usurpadores do
país, ou seja, começam a ser vistos quase como os próprios colonizadores, dada a sua
proximidade com o poder colonial belga.

É também a partir da década de 1930 que Ruanda passa a ter uma nova direção
econômica, focando-se na produção em larga escala de bens agrícolas, principalmente o café,
para a metrópole belga. Em meados da década de 1930, a produção de café em Ruanda passa
por um amplo crescimento, indo de 450 toneladas para a impressionante marca de 10.000
toneladas de café por ano em 1943, ou seja, a produção cresce mais de vinte vezes em um
período de sete anos (EVERAERTS, 1947, p. 82).

Esta grande produção agrícola só é possível a partir de um sistema colonial de


exploração, em que a mão de obra e a terra ficam quase que exclusivamente destinados à
produção de bens para a metrópole. Porém, isso só é possível a partir de uma mudança
significativa do modo que a terra e o trabalho eram compreendidos e essa mudança não pode
ser apenas vista como uma imposição colonial, mas também a partir da própria experiência
histórica dos ruandeses. A imposição de um trabalho obrigatório e a reserva das melhores
terras para a produção de bens para exportação só foi possível a partir de uma ressignificação
de práticas tradicionais dos Banyarwandas.

A aliança entre o poder monárquico ruandês e o colonialismo belga fez com que os
aristocratas de Ruanda aumentassem o número de terras destinadas aos tutsis com o intuito de
plantarem mais café, mas também de manter o seu precioso gado. No entanto, o aumento
dessas terras levou a uma queda das terras destinadas ao restante da população na qual era
plantada boa parte dos alimentos, o que quebrou o tênue e secular equilíbrio na relação entre
essas duas formas de se utilizar a terra. O aumento progressivo das terras exclusivas aos
aristocratas tutsis próximos do Mwami fez também com que estes precisassem de mais mão
de obra hutu, o que resultou em um grande aumento do trabalho agrícola que os hutus faziam
nas terras de seu senhor, deixando de lado outras relações tradicionais.

A questão do trabalho no período colonial é de enorme importância, já que os belgas,


em comunhão com as elites locais ruandesas precisavam, para desenvolver seus projetos de
exportação de café de uma extensa utilização do trabalho, levando, consequentemente a um
24
trabalho compulsório e obrigatório e, mais do que isso, a uma mudança exemplar acerca do
que era o trabalho e qual seria a sua posição e papel na sociedade, já que um trabalho com
características do modo de produção capitalista, ou seja, voltado para uma crescente obtenção
de produtos excedentes para a comercialização era algo novo para tais sociedades. Esse modo
de produção suscita na sociedade ruandesa, um projeto para modernização e desenvolvimento
do trabalho, aproximando-os cada vez mais de um modo de vida europeu.

Nesse período, as fotografias procuravam demonstrar a força da implantação dos


europeus, e em especial nesse caso, dos belgas na África. Elas se destinavam aos potenciais
colonos, nacionais ou estrangeiros, a quem se procurava mostrar as possibilidades de vida
segura e “civilizada” e as perspectivas de enriquecimento na sociedade colonial belga em
Ruanda. De acordo com ambos os objetivos, a “realidade” que as fotografias descrevem é, em
termos gerais, a de um território ocupado, pacificado e disciplinado na sua paisagem natural e
na sua paisagem humana. Uma “realidade” que omitia as fragilidades e descontinuidades da
implantação do Estado colonial belga nos seus territórios africanos. 6 Uma realidade que
omitia também aspectos mais violentos da colonização, eventualmente valorizados em outras
imagens, suportando outros discursos, nomeadamente aqueles que punham em causa a
legitimidade da empresa colonizadora ou, pelo menos, algumas das suas dimensões.

A partir da década de 1950, o colonialismo belga em Ruanda muda drasticamente,


entrando em uma fase que podemos classificar como um colonialismo de valorização, ou seja,
a colônia deveria ser valorizada a partir de uma reivindicação da própria elite local que tinha
como objetivo principal ampliar os seus ganhos, afirmando que a “tutela belga já havia sido
suficiente”.

Porém, essa pauta não seria ganha facilmente, já que a população campesina e das
germinais cidades ruandesas também passam a reivindicar mais direitos e ganhos frente ao
sistema colonial. Diferentemente de outras regiões africanas em que os protestos passam a ser
cada vez mais direcionados contra o poder colonial e os colonos, no caso de Ruanda a crítica
focava-se cada vez mais na elite local tutsi atrelada ao Mwami, e não é por menos, já que esta
fazia boa parte do trabalho que seriam dos colonos.

6
Nessa omissão a fotografia constituía-se numa forma de apropriação do território da colónia, num meio
privilegiado para sugerir uma sua ocupação mais “efetiva”.
25
As reivindicações dos protestos e manifestações feitas por maiores direitos sobre a
supremacia tutsi foi sintetizada no Manifesto Hutu de 1957 e a sua própria materialização
com a Revolução Hutu de 1959, em que a população ruandesa sai às ruas para pôr fim à
monarquia do Mwami e o sistema colonial que o sustentava, utilizando para isso da violência,
invadindo residências e propriedades da elite, se apropriando de suas posses e gado, além de
agredir e até assassinar aqueles que comandavam o país (KAPUSCINSKI, 2006, p.189).
Porém, neste momento, o poder colonial belga busca apoiar as manifestações populares que
possuíam uma maioria hutu, dando apoio inclusive ao próprio processo de independência de
Ruanda.

Esse apoio belga à independência de Ruanda pode ser entendido, a partir da


perspectiva de Frantz Fanon, como um empenho por parte dos colonizadores em conduzir ou
influenciar o processo de libertação com o objetivo de garantir que mesmo com uma
independência política da Colônia, Ruanda continuasse a depender do poder belga,
principalmente no que diz respeito ao desenvolvimento econômico. Essa independência
conquistada apenas no âmbito político caracteriza aquilo que Fanon denominou como uma
falsa descolonização, já que em boa medida o país continuaria subjugado à antiga metrópole.

De certa forma, o posicionamento posto por Fanon foi enfrentado pelos ruandeses, já
que mesmo sendo independente, Ruanda permaneceu como um exportador de produtos
primários (principalmente o café) para a Bélgica, ocupando assim uma posição muito similar
o qual ocupava em seus tempos de Colônia.

Esse apoio belga à independência de Ruanda pode ser visto, a partir da perspectiva de
Frantz Fanon, como um esforço por parte dos colonizadores de conduzir ou influenciar o
processo de libertação de modo a garantir que mesmo com uma independência. Posição típica
dos países colonizadores durante os processos de independência.

2.2. ANÁLISE SOBRE AS REPRESENTAÇÕES FOTOGRÁFICAS DO


GENOCÍDIO DE RUANDA

Analisar a imagem fotográfica enquanto discurso descontínuo conduz-nos a


desconstruir os desenhos dos elementos por ela constituídos, implica rachar as pequenas

26
imagens, “para extrair delas os enunciados”, nunca totalmente ocultos, não diretamente
visíveis, sequer dizíveis, conforme a leitura que Deleuze faz de Foucault (DELEUZE, 2006,
p. 61). Seria como fazer emergir as várias posições de sujeito, dentre elas as posições do
locutor e do receptor, a formação discursiva à qual estão inscritos enunciados ali mobilizados,
a exterioridade constitutivas destes, em suma, as condições de visibilidade que determina os
“complexos de ações e de paixões, de ações e de reações, de complexos multissensoriais que
vêm à luz” (DELEUZE, 2006, p. 68).
A fotografia apresenta linguagens, institui relações, poderes, lugares, produz uma
gramática cuja leitura demanda um olhar que circule tanto entre elementos para nós
preferenciais, portadores de significações, como outros periféricos. Nessa direção, o
cruzamento desta fonte visual com outros tipos de fontes implicaria “organizar, recortar,
distribuir, ordenar e repartir em níveis, estabelecer séries, distinguir o que é pertinente do que
não é, identificar elementos, definir unidades, descrever relações” (FOUCAULT, 2000, p.
07). Seria fazer uma interpretação que nos permitisse tomar a fotografia como “monumento”,
como indício, portador de suas referências e valores inscritos nas diversas dimensões do
social. Ou seja, a fotografia não é menos do que condição de possibilidade da experiência do
conflito.
Como “monumento”, a fotografia é, portanto, um “acontecimento discursivo”, no qual as
várias leituras admissíveis sobre a fonte nos apontam para uma história possível dos indícios e
não uma história impossível das evidências.
Com base nessa perspectiva de análise da imagem fotográfica, nunca mais teríamos o
passado que realmente teria acontecido, a não ser a construção discursiva desse passado, por
mais que buscássemos interpretar, compreender ou desvendar (COSTA, 1994, p. 189).
Retomando o próprio Foucault,

“por mais que se diga o que se vê, o que se vê não se aloja jamais no que se
diz, e por mais que se faça ver o que se está dizendo por imagens, metáforas,
comparações, o lugar onde estas resplandecem não é aquele que os olhos
descortinam, mas o que as sucessões da sintaxe definem”; “é preciso admitir, entre a
figura e o texto, toda uma série de entrecruzamentos, ou antes ataques lançados de
um ao outro, flechas dirigidas contra o alvo adversário, operações de solapamento e
de destruição, golpes de lança e os ferimentos, uma batalha” (FOUCAULT apud
DELEUZE, 2006, p. 74-75)

27
As representações que temos atualmente dos genocídios do século XX são
significativamente insuficientes: algumas produções fotográficas pouco claras e desfocadas
quando tiradas pelas vítimas, mais nítidas quando surgem como troféu nas mãos de seus
algozes; filmes e reportagens produzidas nos campos de concentração nazistas libertados, ou
seja, produzidos depois do acontecimento. Esse tipo de imagem pouco significa, pois só
remete ao genocídio pela interpretação que se faz dela ao mesmo tempo em que mais parece
um certo tipo de metonímia de uma imagem inexistente. Essas imagens por si só, expressam
ações violentas, execuções em curso, mas se de fato remetem ao genocídio, isso só se dá
devido a uma contextualização, um comentário, por terem passado por um processo de
análise, pois se dependêssemos delas isoladas como comprovação da realidade do genocídio,
elas pouco corroborariam para tal.
Em 1994, Ruanda passou por um dos maiores genocídios do século XX. Milhares de
ruandeses que se entendiam e eram denominados como hutus pegaram o seu principal
instrumento de trabalho, o facão, e em pouco mais de cem dias assassinaram algo em torno de
um milhão de ruandeses entendidos e denominados como tutsis e hutus moderados.
Em Ruanda, o único país africano que apresentava um povo homogêneo, foi possível
um dos piores massacres da década de 1990 porque, durante a colonização belga, as etnias
tutsis e hutus foram construídas pelo dominador. Após o fim da colonização belga, os
franceses chegaram a Ruanda e tiraram o poder das mãos dos tutsis, passando-o aos hutus,
que foram educados para serem, naquele momento, os mais adequados para os altos cargos
políticos e econômicos. Lutas periódicas tiveram início e os anos de subjugação dessas etnias
manipuladas pelos ocidentais resultaram no genocídio.
Além disso, dentre uma série de fatores que corroboraram com o processo histórico
que levou ao genocídio, se encontra a comumente apontada influência dos meios de
comunicação ruandeses, que teria ajudado a fortalecer as diferenças entre tutsis e hutus, além
de coordenar as ações dos grupos de extermínio no decorrer do genocídio. Porém, a
participação dos meios de comunicação é muitas vezes entendida de modo simplista e
excessivamente objetivo frente às contradições e pluralidades destes agentes históricos.
Conflitos em regiões da Ásia ou da África já fazem parte da prática habitual da
atividade fotojornalística. Consoante Sontag (2003), as imagens desses lugares trazem em seu
bojo duas mensagens: o sofrimento do outro que deveria ser evitado e o reforço do estereótipo
dessas locais como ordinariamente conflituosos. Ambas as visões substanciam,
inevitavelmente, que os horrores e as tragédias de guerra acontecem em regiões pobres e com
28
pessoas ignorantes do mundo. Geralmente, as fotografias publicadas na imprensa, que exibem
corpos feridos, são de africanos ou asiáticos.
Isso na verdade, é uma prática secular dos colonizadores ocidentais de exporem o
outro como um ser humano exótico. Povos desses continentes, desde o século XVI até o
início do século XX, eram apresentados como animais de zoológico em exposições
etnológicas em capitais da Europa. (Ibid., p. 62). A autora acrescenta ainda que:
A exibição, em fotos, de crueldades infligidas a pessoas de pele mais
escura, em países exóticos, continua a promover o mesmo espetáculo, esquecida das
ponderações que impedem essa exposição quando se trata de nossas próprias vítimas
da violência; pois o outro, mesmo quando não se trata do inimigo, só é visto, e não
como alguém (como nós) que também vê. (Ibid., p. 63).

As imagens mais circuladas nas mídias sobre o genocídio em Ruanda têm, justamente,
esse aspecto da representação da violência e do exótico, como podemos observar na fotografia
abaixo:

Figura 9 – Menina observa o fotógrafo em meio aos corpos. (1994) Pascal Guyot (AFP)

29
Essa fotografia carrega diversos elementos característicos da fotografia colonial.
Como discutido na parte anterior, o objetivo das fotografias coloniais, que retratavam
propositalmente o “outro” subjugado e de forma pura em seu território, era de causar uma
relação de poder, de superioridade e de controle de quem observa. Ao colocar a menina, que
está em completo destaque pela profundidade em que o contraste entre seu vestido cor de rosa
forte e o fundo monocromático, no mesmo plano em que o fotógrafo e, consequentemente o
observador, somos tomados por um sentimento de tristeza, de piedade e, principalmente, de
horror.
Ao mesmo tempo, a encaramos como uma sobrevivente que tem um semblante de
vitalidade, ao contrário do que o fundo em tons marrom escuro que confundem o chão e os
corpos e remetem a um sentimento de morte. Talvez a intenção do fotógrafo tenha sido
retratar um pedido de ajuda, já que também nos chama a atenção sobre a posição juntas sobre
o peito em que as mãos da menina se colocam, mas mesmo que assim seja não deixa de
posicionar a pessoa branca ocidental que recebe essas imagens como a única passível de
salvar os povos africanos de sua própria selvageria, revelando um caráter colonizador.

Figura 10 – Uma mulher ruandesa leva ao colo o filho de uma família suíça, enquanto tentam passar a fronteira

30
do Ruanda com o Burundi, para onde vários estrangeiros fugiram durante os confrontos. (1994) Pascal Gouyot
(AFP)

Assim como nas fotografias coloniais, onde refletiam o papel político e social
justificado pela missão colonizadora de salvar os povos nativos de seu próprio caráter
negativamente primitivo, no contexto do genocídio elas também refletem um caráter
semelhante. Na foto acima podemos observar uma mulher branca que desenvolve um papel
fundamental para compreender as relações de poder que se perpetuam desde o período
colonial.
O que mais chama a atenção na foto num primeiro momento é a expressão das
mulheres ruandesas em comparação com a mulher suíça. Há uma composição interessante no
olhar das mulheres ruandesas: a que segura a criança branca certamente é a figura central e
com maior expressividade, ao retruir o olhar ao fotografo, o encara, se deixa fotografar, mas
não imprime um olhar passivo; de forma semelhante, a mulher que está posicionada logo a
direita da cabeça da criança também imprime um caráter quase agressivo ao observador;
diferentemente, a mulher imediatamente a direita, que ocupa um espaço maior na fotografia,
que apesar de também retribuir o olhar, o traz de forma muito mais passiva; já a mulher ao
fundo, também observa o fotógrafo, mas é a única que parece não se deixar fotografar e ao
mesmo tempo não deixa de querer observar quem a fotografa. É incrivelmente contrastante a
expressão das mulheres ruandesas lado a da mulher suíça, que sem tirar os olhos do filho nos
braços da mulher ruandesa, carrega um meio sorriso, imprimindo um ar de satifação sobre a
ação que desempenha na situação; além do ar de tranquilidade que recai sobre o fato de não
ser alvo direto de todo o sofrimento causado pela violência do genocídio.
Outro fato curioso sobre a composição fotografica é a profundidade que a posição das
mullheres cria. Apesar de não estar em primeiro plano como as outras, a mulher branca ao
fundo, que recebe um destaque diferente, no sentido de ser uma figura valorizada e não
representada com um caráter exótico, parece exercer algum tipo de influência sobre as outras.
A situação dos refugiados não era muito simples e a mulher parece ter deixado que a ruandesa
carregasse seu filho num gesto de confiança não só sobre ela, mas para que o controle das
fronteiras pudesse facilitar o processo de travessia. O gesto pode ser visto de forma positiva,
mas é extremamente questionável, do ponto de vista crítico sobre raça, a criança branca ter
um valor simbólico muito maior do que quatro mulheres negras juntas, a ponto de servir como
um facilitador para a posição de vulnerabilidade delas.

31
A exemplo do que ocorreu com a primeira-ministra Agathe Uwilingiyimana, cuja casa
foi cercada por soldados belgas da UNAMIR. No entanto, o contingente contava somente com
dez soldados, que em menor número e inferiormente armados, acabaram sendo sequestrados,
torturados e mortos pelo exército ruandês. Este fato foi decisivo para que a ONU diminuísse
ainda mais sua intervenção em Ruanda, pois passou a retirar seus soldados do país e a apoiar
os estrangeiros a deixar o Estado. Retiravam os “brancos” dos hospitais, igreja, maternidade,
convento e os levavam de carro até o aeroporto, onde seguiam para seus países ou para
qualquer outro lugar fora dali, que fosse seguro.

Valérie Nyirarudodo, enfermeira e parteira na maternidade Sainte-Marthe,


lembra-se: ‘Eles pararam defronte do portão. Pediram às três irmãs brancas que
aprontassem a bagagem de mão, imediatamente. Disseram: ‘Não adianta nada perder
tempo com despedidas, é pra já’. Essas suíças pediram para ser acompanhadas por
suas colegas tutsis de capuz branco. Os militares responderam: ’Não, elas são
ruandesas, o lugar delas é aqui, é preferível deixa-las com seus irmãos e irmãs’. O
comboio partiu, seguido por uma caminhonete de interahamwe cantando. É claro
que pouco depois as freiras tutsis foram decepadas, como os outros’. (HATZFELD,
2005, p. 104)

Durante os meses seguintes ao estopim do genocídio, o movimento de refugiados nas


fronteiras era expressivamente grande, além disso, muitos milicanos de etnia hutu se
infiltravam aos fluxos de refugiados para, nos acampamentos, tanto realizar incursões
militares nas fronteiras quanto para aterrorizar a população refugiada a fim de evitar seu
repatriamento voluntário. Inicialmente, os governos vizinhos adotaram medidas mais duras
como triagem de ruandeses requerentes de asilo e milhares deles fugiram para Uganda. Em
seguida, não só desarmou os refugiados como aumentos as forças de segurança do país.
Só entre os dias 28 e 29 de abril, quando a FPR lançou uma nova ofensiva contra as
forcas governamentais, fez com que cerca de 250 mil ruandeses se direcionassem à Tanzânia,
ainda assim, esse movimento parece pequeno quando comparado àquele que tomou lugar em
meados de julho de 1994 onde apenas em alguns dias cerca de 800 mil pessoas (na sua
maioria hutu) fugiram para o Zaire por temerem represalias por parte da FPR que avançava
seu poder sobre o país. Além disso, esse movimento não se caracterizava apenas pelo fluxo
espontaneo de refugiados, na verdade, o êxodo era insistentemente encorajado pelo governo.
Dessa forma, com o massacre de grande parte da população tutsi, a vitoriosa FPR chegou ao

32
poder num país cuja população havia sido drásticamente reduzida e com um contigente de
exilados hostis, incluindo membros do exercito e milicias derrotados, agrupados nas
fronteiras. Reforçando a natureza estratégica do movimento, alguns membros do governo
deposto conseguiram rapidamente assumir controle dos campos de refugiados e assumiram
um papel determinante na distribuição de assistência.
Em 1973, o presidente foi afastado por um golpe militar liderado por Juvenal
Habyarimana. Dando continuidade à opressão dos tutsis e também de alguns hutus do sul, que
não faziam parte de sua base política, além de criar em Ruanda bolsões de fome, o presidente
foi pressionado, após a queda do Muro de Berlim, a estabelecer um sistema multipartidário,
anunciado em 1990. A medida exaltou os ânimos dos hutus no noroeste, para os quais o
presidente se voltou durante seu governo, e, ao que parecia, não seria fácil fazer com que eles
dividissem o poder adquirido com seus inimigos tutsis.

A adoção de reformas por Habyarimana era visivelmente insincera, uma


capitulação às coerções internacionais e, em vez de alívio e entusiasmo, a
perspectiva de uma disputa aberta pelo poder espalhou o temor em Ruanda. Todo
mundo percebia que o grupo do noroeste, que dependia cada vez mais do poder de
Habyarimana, e do qual esse poder dependia cada vez mais, não estava disposto a
abrir mão de sua posição. Ao mesmo tempo que Habyarimana falava publicamente
em abertura política, a akazu apertava seu controle sobre a máquina estatal. À
medida que a repressão se intensificava, na proporção direta da ameaça de mudança,
muitos dos principais defensores das reformas fugiam para o exílio
(GOUREVITCH, 2006, p. 80).

Nesse contexto, o grupo oposicionista que ganhou maior destaque foi a Frente
Patriótica Ruandesa (FPR), Porém, num primeiro momento não é fácil identificar a postura da
FPR. Numa análise mais apressada, que denota um processo meramente dicotomizado entre
tutsis e hutus, o grupo oposicionista seria apenas uma organização tutsi, contra um governo
que favorece os hutus, porém, conforme indicam Mamdani e Gourevitch, dentre os membros
da FPR existia uma quantidade significativa de hutus. A FPR surge a partir dos oposicionistas
ao governo de Habyarimana, que estavam exilados em Uganda, e que encontram um suporte
estratégico militar com o Exército de Resistência Nacional (ERN).

A partir de outubro de 1990 a FPR passa a fazer incursões ao território ruandês através
de Uganda com o propósito de desarticular o governo ditatorial, já desgastado pelos

33
descontentamentos internos. Sua precária estrutura inicial, com apenas quatro mil membros,
impede que a organização oposicionista obtenha vitórias num primeiro momento, porém no
ápice do confronto entre a FPR e o exército do governo ruandês em 1993, a Frente Patriótica
Ruandesa contava com um número estimado de membros que ultrapassava novecentas mil
pessoas (MANDANI, 2002).
Nesta época Ruanda contava com um pouco mais de um milhão de indivíduos
reconhecidos como tutsis e algo em torno de sete milhões de hutus. A enorme quantidade de
membros que a FPR obteve pode nos parecer proveniente de seus discursos voltado para a
libertação nacional, porém, parte da população manteve reservas acerca das intencionalidades
deste grupo. E essas suspeitas logo se manifestaram procedentes, pois, apesar do discurso
libertador, a oposição armada passou a utilizar meios coercitivos para obrigar os campesinos a
aderirem à sua causa, ou simplesmente ajudarem na luta a seu favor. Podemos refletir acerca
da ação da FPR a partir de relatórios publicados pela Human Rights Watch sobre os abusos
humanos cometidos pela oposição armada.
Nestes relatórios, como o Beyond the rhetoric: continuing Human Rights Abuse in
Rwanda de junho de 1993, entrevistas com líderes desta organização oposicionista, mostram o
seu menosprezo pelos campesinos, o tratamento desqualificador a que eram submetidos,
considerados como ignorantes de menor importância. Também as denúncias dos assassinatos
aleatórios de civis e políticos, pilhagens e queima de propriedades, além do recrutamento
forçado, executados pela FPR, demonstram o quanto, para os camponeses, a reinserção destas
pessoas os remetia a um passado ainda recente, quando Ruanda era dividida em grandes
propriedades, sem espaço para os pequenos camponeses que compunham grande parte da
população.
Neste contexto de conflito acende dentre parte da população ruandesa o espectro do
poder monarquista anterior a Revolução Hutu de 1959, em que a população hutu de Ruanda
era marginalizada frente aos antigos monarcas do período colonial que detinham a posse da
terra e o poder para explorar a população, um período de pobreza e de difícil acesso à terra,
algo que a população havia lutado contra.

34
Figura 11 - Um soldado hutu abriga-se dos tiros dos rebeldes tutsis da Frente Patriótica Ruandesa. (1994)
Alexander Joeafp (Getty Images)

Nessa imagem, parece claro a intenção de representar o caráter primitivo das ações de
violência, que foi um ponto marcante da narrativa ocidental sobre o genocídio: o uso dos
facões, o que seria algo típico da barbárie, como um indício de uma atitude selvagem;
julgamento muito comum sobre as práticas de extermínio terrorista, por exemplo, como as
execuções do Estado Islâmico. Essa representação dá um tom de inferioridade sobre os povos,
onde novamente destaca-se o teor exótico, ou seja, o esquisito, o estrangeiro, o outro.
O olhar do homem fotografado transparece certo tipo de surpresa, como se tivesse sido
descoberto, ao mesmo tempo em que encara a câmera, dando uma sensação de proximidade,
apesar de muito provavelmente o fotógrafo ter usado a função zoom. A forma como a imagem
é construída também corrobora de forma significativa sobre o olhar colonial no que diz
respeito ao enquadramento, o homem se encontra numa posição horizontal, apoiado sobre os
quatro membros e no meio da mata, e apesar de usar um casaco, ele tem um tom fechado e
sujo se misturando com a figura dele como se fosse um animal.

35
Já na foto abaixo, vemos refletida certa inversão de valores sobre a infância, nos choca
ver uma criança na posição de um agente da milícia, segurando uma arma com tanta
propriedade, a serviço de um movimento tão brutal. Faz recair sobre os povos africanos, um
sentimento de julgamento sobre permitir essa conduta onde a inocência deveria prevalecer
sobre a criança, justamente ao contrário do que seu olhar e sua postura demonstram; expressa
um olhar malicioso, que nos faz pensar que ele carrega um entendimento incomum para
alguém de sua idade sobre a situação político-social de seu país. Uma observação importante
é a função que o enquadramento toma, da impressão de que o menino está sozinho, ele
protagoniza não só a foto, mas com tão pouca idade, já é um tomador de decisões.

Figura 12 – Um menino armado patrulha as Kigali num automovel junto aos membros da FRP. (1994)
Abdelhak Senna (AFP)

Um dos pontos de partida sobre a eclosão do genocídio encontra-se no papel da RTLM


– La Radio Television Libre des Mille Collines – a Rádio Mil Colinas – que durante os três
meses que durou o massacre teve o papel de incitar a população a pegar nas armas, perseguir,
delatar, torturar e matar vizinhos, amigos, parentes da etnia Tutsi, chamados pelos Hutus
radicais de “Inyenzi” – baratas, os traidores da pátria e do povo que queriam tomar o poder.
Cabia aos radicais Hutus, barrar os espiões e dar cabo daqueles que pertenciam à etnia

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inimiga. A rádio Mil Colinas, no ar 24 horas por dia, divulgava discursos, músicas racistas,
difundindo a tese “etnista” pró-Hutu dos extremistas partidários do presidente Habyarimana,
tendo uma parte ativa encorajando a matança a golpes de facões, distribuídos à população no
período que antecedeu o genocídio.
Durante anos, os meios de comunicação puseram em ação uma campanha contra a
população Tutsi, que começa em 1990 e vai aos poucos tomando a forma aberta de ódio
racial, até chegar a uma ostensiva batalha de propaganda contra os Tutsis, conclamando
objetivamente a população a pegar nas armas para eliminar seus “inimigos”.
Mas não foi somente a RTLM a responsável pela propaganda racista. A partir de
março de 1991, o jornal Kangura também dá início a uma propaganda racista que insufla a
violência e a intolerância contra os Tutsis, nos anos que se seguem. É dessa revista que saem
os primeiros incitamentos, através de “convites à repressão, de denúncias de cúmplices dos
rebeldes, listas de suspeitos comunicadas por certas autoridades, convites à delação”. O
mesmo tom assume a rádio Kigali.
Também o jornal Kangura, uma das vozes mais ferozes da propagação do ódio racial,
começa a expandir sua mensagem contra a FPR e os Tutsis, em 1990. Foi rapidamente
seguido por outros jornais e publicações que eram sustentados por funcionários e homens de
negócios ligados ao regime. Segundo autores de um estudo aprofundado sobre a mídia e o
genocídio, pelo menos 11 dos 42 jornais fundados em 1991 estavam ligados ao poder. Os
jornais eram publicados e vendidos na capital, mas os empregados nas cidades que voltavam
frequentemente às suas casas no interior nos fins de semana levavam para as colinas os
exemplares das publicações mais conhecidas.

O texto era frequentemente acompanhado por caricaturas, as quais, na maior parte,


eram tão explícitas que dificilmente não se poderia fazer compreender seu sentido (Human
Rights Watch, 1999). Os meios de comunicação eram concessões do governo, que, além de
colocar em postos decisórios parentes e amigos, intervinha em toda a distribuição do material
veiculado. Não é difícil imaginar, dessa forma, como a propaganda de ódio foi facilmente
veiculada, uma vez que toda a mídia ruandesa da época estava nas mãos do governo. A rádio
foi um meio ainda mais eficaz para transmitir diretamente e simultaneamente a mensagem de
ódio a um público maior.

Antes da guerra, Ruanda tinha uma só estação de rádio, a Rádio Ruanda, e ouvir à
rádio era uma diversão muito popular, tanto para os cidadãos mais simples como para os da
37
elite. Em 1991, cerca de 29 por cento dos povoados possuíam uma antena de rádio 7. O
número dos postos de rádio era provavelmente muito mais elevado no começo do genocídio.

Além de distribuir e atribuir postos na mídia, o próprio presidente se servia dela para
propagar suas ideias, transmitir informações oficiais, desde reuniões das prefeituras do país
até nomeações de postos oficiais, além dos próprios discursos do presidente. A rádio nacional
dava por vezes falsas informações, em particular sobre a evolução da guerra, mas a maior
parte das pessoas não tinha acesso às fontes de informação independentes para verificar essas
declarações.
As falsas informações difundidas pelo rádio foram o principal meio para desestabilizar
a situação e fazer com que a população tomasse partido na guerra. Em março de 1992, a
Rádio Ruanda lançou uma propaganda segundo a qual os dirigentes Hutus de Bugesera seriam
assassinados pelos Tutsis, e essa falsa informação incitou o desencadeamento de massacres de
Tutsis pelos Hutus.
Em 1993, o governo de Kigali, capital do país, e a FPR, assinaram em Arusha, na
Tanzânia, um acordo de paz, garantindo o retorno de Paul Kagame, que estava, assim como
seus companheiros revolucionários, exilado em Uganda. Além disso, assegurava um governo
representado pelos dois grupos, um exército unificado e a garantia de uma transição
democrática do governo de Habyarimana, com a realização de eleições. Visando garantir o
cumprimento do pacto entre os dois grupos, a ONU enviou uma força de paz ao país, a
Missão de Assistência das Nações Unidas em Ruanda (UNAMIR), sob o comando de Romeo
Dallaire.
As hostilidades se mantiveram, todavia, e, em janeiro de 1994, um informante de
Dallaire, Jean-Pierre, do Movimento Republicano Nacional pela Democracia e o
Desenvolvimento (MRND), linha dura do partido do presidente, o avisou sobre um plano de
matanças, ressaltando, inclusive, que os hutus já recebiam treinamento do exército e também
armas, como facões e porretes, para assassinar os tutsis. A primeira providência do general foi
informar aos países integrantes da ONU que iria procurar o esconderijo dessas armas, a fim de
minar os planos. Contudo, a resposta de Kofi Annan, que dirigia a Operação de Manutenção
de Paz, transmitia uma mensagem categórica: os capacetes azuis não podiam tomar nenhuma
atitude e deveriam partilhar a informação recebida com o governo ruandês.

7
Recenseamento da população e da habitação a 15 de agosto de 1991. Kigali, Serviço Nacional de
Recenseamento, julho de 1993, p. 31.
38
Outro sinal do desinteresse da ONU por Ruanda ocorreu em maio de 1994. Quando o
extermínio dos tutsis estava no auge, Kofi Annan declarou, numa audiência no Senado, em
Washington:

“As forças de paz da ONU têm o direito de se defender, e essa definição de


autodefesa inclui ação militar preventiva para a remoção dos elementos armados que
estiverem impedindo a realização do trabalho das Nações Unidas. Apesar disso,
nossos comandantes nos campos de conflito, seja na Somália, seja na Bósnia, têm
sido muito reticentes quanto ao uso da força”. Mas Annan em nenhum momento
citou Ruanda (GOUREVITCH, 2006, p. 126).

Em 17 de Maio, uma resolução da ONU considerou terem sido cometidos “atos de


genocídio” e autorizou o envio de 5.500 soldados para Ruanda, no entanto eles só chegariam à
região após a RPF já ter conseguido barrar os assassinatos. Em junho de 1994, a RPF toma
Gitarama e obriga o governo do Poder Hutu a fugir para Gisenyi. Dois dias depois, esta região
também foi tomada. A França apresenta ao Conselho de Segurança da ONU uma proposta de
intervenção humanitária, enviando tropas.
A intervenção da França, conhecida como Operação Turquesa, prolongou por mais um
mês o conflito, pois acabou criando uma zona de proteção para as milícias hutu. No mês
seguinte Paul Kagame (atual presidente de Ruanda), no comando da RPF, e o comandante das
forças francesas chegaram a um acordo de não agressão. Kagame declara cessar-fogo e
anuncia o novo “Governo de Unidade Nacional” (SILVA, 2003, p. 155; FARIAS, 2008, p. 1).
Em novembro de 1994, o Conselho de Segurança adotou a Resolução das Nações Unidas
nº955 sobre a instauração de um Tribunal Penal Internacional para Ruanda (TPIR). A ONU
iniciou o processo de retorno a um milhão e meio de hutus para Ruanda, entre janeiro e agosto
de 1995. Esse contingente de hutus fugiu de Ruanda após a tomada de Kigali pelas forças da
RPF que tentavam impedir a continuação do massacre dos tutsis (CASAS, 2010, p. 6).
Kofi Annan disse que muitas vezes censurou os relatórios do general Dallaire ao
Conselho, porque sabia que certas exigências ou pedidos de mais tropas nunca seriam
atendidos. Annan defendeu-se assim argumentando: “A culpa foi da comunidade
internacional que não agiu a tempo”. Annan deixa claro que houve falta de vontade das
potências em agir contra os massacres, apesar de saberem o que estava acontecendo.
O mais irônico em todo o processo relativo à intervenção da ONU no genocídio de
Ruanda foi apontado por Gourevitch quando, em visita ao país depois de dois anos do
39
massacre dos tutsis, ele notou que não havia quase nenhum cachorro na maior parte das
regiões. Descobriu que, assim que as mortes cessaram, os capacetes-azuis começaram a matar
os cachorros, pois eles estavam devorando os cadáveres, e a ONU considerava isso um
problema de saúde pública. Nota-se que o genocídio dos tutsis foi amplamente tolerado tanto
pela ONU como pelas potências. Contudo, a ação instintiva dos cães de se alimentarem dos
cadáveres dos tutsis expostos nas ruas foi imediatamente tomada como uma situação de
perigo à saúde da população, a qual requeria ação imediata dos soldados da Unamir. Dessa
forma, pela primeira vez os capacetes-azuis usaram suas armas para exterminar os cachorros.
A ironia da situação está exatamente na postura de não proteger os tutsis enquanto estavam
vivos, mas, posteriormente, proteger seus cadáveres.
A foto abaixo é bem expressiva nesse sentido. Assim como nas fotografias coloniais, é
muito raro a presença de outras pessoas não ruandesas nas fotografias sobre o genocídio e
quando aparecem sempre estão numa posição de superioridade em relação às demais. Nssa
foto, porém, a inação dos soldados das grandes potências fica evidente, principalmente pela
forma como a foto é construída.
O fotográfo se coloca no mesmo ângulo em que o menino, que o encara de forma
bastante apelativa; não se coloca numa posição de vítima, mas ao mesmo tempo parece
comunicar um ajuda; talvez tenhamos essa impressão por todo o contexto já sabido sobre o
conflito. A forma como é enquadrado bem no ponto central vertical, além da bacia de
alumínio, que se destaca pelo contraste de cores com o fundo, com um pouco de capim nos
remete a uma percepção de escassez, pobreza, miséria e falta se assitência. A foto se coloca
quase como denúncia, pois de forma contraditória, o menino reflete toda a falta sobre a qual
os militares estadunidenses estavam lá para garantir.

40
Figura 13 – Um garoto ruandês espera para pegar água frente a um grupo de soldados estadunidenses no campo
de refugiados de Kibumba (Tanzania). (1994) Stringer (Reuters)

41
A insuficiente documentação histórica é realidade em toda a África. Por isso, a atitude
europeia em relação à África era considerá-la um continente sem história. Em 1830-1 Hegel
formulou nas conferências de Jena, o mais famoso exemplo dessa opinião, publicada como
Phylosophy of History.

“Neste ponto deixamos a África, para não mais a mencionarmos. Pois ela
não é parte histórica do Mundo; não tem movimento ou desenvolvimento para
mostrar... O que compreendemos apropriadamente por África é o Espírito Não
Histórico, Subdesenvolvido, ainda envolvido nas condições simples da simples
natureza, que só tem que ser apresentada aqui como situada no limiar do mundo”
(Hegel apud WESSELING. In. BURKE, 1992, p. 109).

O fato de a Europa desconsiderar o continente africano por seu subdesenvolvimento


será retomado no episódio do genocídio. As denúncias da indiferença dos governos
internacionais também partem geralmente dos depoimentos daqueles que estiveram
encurralados em esconderijos fugindo da morte. Durante as viagens de Gourevitch a Ruanda,
o jornalista sente a dificuldade de encontrar provas concretas do genocídio, por isso as
palavras dos entrevistados tornam-se essenciais para o encadeamento dos acontecimentos.

[...] nem mesmo os ossos eventualmente expostos, o número notável de


pessoas amputadas ou deformadas por cicatrizes e a superabundância de orfanatos
lotados poderiam ser tomados como evidência de que o que havia acontecido em
Ruanda era uma tentativa de eliminação de todo um povo. Para isso, só havia as
histórias das pessoas (GOUREVITCH, 2000, p. 26).

É por meio dessas “histórias das pessoas” que se torna possível encontrar os possíveis
responsáveis pela matança. Em uma conversa com o sobrevivente Nkurunziza, Gourevitch
entende como o governo ruandês foi o grande responsável para que o extermínio se
configurasse em genocídio,

Na história de Ruanda, todo mundo obedece à autoridade. As pessoas


reverenciam o poder, e o nível de educação não é suficiente. Você pega uma
população pobre e ignorante, joga uma arma na mão de cada um e diz: “É sua.
Mate.” Eles obedecerão. [...] Portando, as pessoas influentes, ou os grandes homens
de negócio são as grandes figuras do genocídio. [...] E, em Ruanda, uma ordem pode
ser dada muito silenciosamente. (GOUREVITCH, 2000, p. 29)

42
Em 2004, foi construído o Kigali Genocide Memorial, um memorial dedicado ao
genocídio onde cerca de 250 mil vítimas estão enterradas. O objetivo é de dignificar as
vítimas e preservar a memória sobre o que aconteceu de acordo com uma narrativa própria.
De acordo com os objetivos da exposição permanente encontrado no site, o papel da
colonização sobre a divisão racial, que foi uma das principais bases para que o genocídio
acontecesse, é bem claro. Além disso, reforçam o ambiente pacífico e harmonioso entre as
etnias antes da chegada dos colonizadores.
Também focam em diversos relatos de sobreviventes, sobre muitos que atuaram
durante o genocídio para impedir que a matança acontecesse. Fato que nós, observadores
ocidentais, nunca tivemos acesso. Nosso maior meio de informação eram, na época, as mídias
tradicionais que divulgavam a narrativa hegemônica de uma luta entre duas etnias – uma
bárbara, selvagem, cruel; outra passiva, completamente sem voz e autoridade - naturalmente
rivais, onde a única coisa que poderíamos fazer era lamentar e sentir pena daquele povo sem
esperanças.
A foto abaixo é de uma parte da exposição. Nela há algumas fotos onde podemos ter
uma pequena amostra sobre o olhar que têm sobre eles próprios. Pessoas comuns, felizes,
protagonistas; estudantes, profissionais, pessoas que sonham, se casam, celebram. Não
podemos afirmar com propriedade sobre como as fotos que temos acesso são também
utilizadas para ilustrar a memória própria sobre o genocídio, mas percebe-se pela foto abaixo
que a tendência é de valorizar a realidade sobre a qual diversas famílias viveram; muito
diferente da qual acreditamos.
Como Susan Sontag aponta em Diante da dor dos outros, os que precisavam driblar a
morte que abatia a todos, todos os dias, eram os únicos que poderiam compreender como a
guerra é pavorosa, aterradora e normal: “Nós” – esses “nós” é qualquer um que nunca passou
por nada parecido com o que eles [os mortos] sofreram – não compreendemos. Nós não
percebemos. Não podemos, na verdade, imaginar como é isso (SONTAG, 2003, p. 7).

43
Figura 14 - https://www.kgm.rw/wp-content/uploads/2015/08/DSC05943.jpg

44
CONSIDERAÇÕES FINAIS

A fotografia significou para a história da humanidade uma grande mudança em relação


às narrativas e representações sobre a verdade. Num primeiro momento foi revolucionária por
ser considerada como uma prova do real, mas como vimos, ela não está livre das intenções do
sujeito e interpretações sobre o objeto. Apesar disso, ou talvez justamente por isso, as
maneiras de fazer a guerra mudaram. As pessoas tinham acesso infinitamente maior sobre a
realidade dos campos de batalha, fazendo com que pudessem formar uma opinião, muitas
vezes contrárias, sobre os conflitos. Diante disso, tornou-se comum o processo de
manipulação e enquadramento das imagens de batalha para que pudessem, da mesma forma,
manipular a opinião publica sobre os atos que os militares cometiam.
No caso específico de Ruanda, a fotografia desempenhou um papel fundamental para a
consolidação do colonialismo. Eram produzidas fotografias sobre os novos povos
descobertos, fotos com caráter etnográfico que tinham como objetivo evidenciar os povos
primitivos e suas práticas, costumes, religião, vestimentas exóticos, e, portanto, necessários da
intervenção europeia para que o progresso pudesse ser implantado. Esse tipo de fotografia foi
fundamental não só em Ruanda, mas em todas as colônias africanas, para que as metrópoles
pudessem ter uma prova dos avanços e investimentos necessários.
As fotografias corroboraram com a justificativa frenológica sobre a incapacidade dos
nativos de se autogerirem, colocando-os como raças inferiores. Nesse processo, para que
pudessem exercer seu domínio de forma consolidada, dividiram a população em duas etnias
através uma ideologia racial. Essa foi uma questão central sobre as consequências que
inundaram o país de rivalidades e conflitos. Até em último caso, serem responsáveis pelo
genocídio de 1994.
Apesar de ser tornarem independentes, 1962, Ruanda nunca se viu livre do domínio
estrangeiro colonial, já que continuava a depender economicamente do europeu. Situação essa
que nos levou a identificar a narrativa europeia sobre a história do país e do genocídio. Uma
narrativa que concluímos ser racista, ocidental e colonizadora.
As fotografias sobre o genocídio, a que tivemos acesso, foram produzidas em sua
totalidade por fotógrafos ocidentais, que inevitavelmente transpareceram sua visão e narrativa
sobre o que viam. Apesar de não haver fotografias do conflito em si, algo que é comum para
casos de genocídio, as produções posteriores foram bastante esclarecedoras sobre o olhar
colonizador nelas impresso.
45
Como vimos anteriormente, quem possui a máquina fotográfica exerce uma relação de
poder sobre o objeto, fato que também fica evidente nas fotografias. Dessa forma, não só as
vítimas, mas os sobreviventes e os milicianos foram colocados numa posição de inferioridade
diante da lógica ocidental que julgou e ainda julga o conflito como uma guerra civil comum,
apesar das dimensões gigantescas, dos povos tribais africanos, distantes, condenados por sua
alteridade.
Concluímos, então, que a fotografia, apesar de sua imensa capacidade para tal, nem
sempre consegue comunicar a realidade. O sujeito-fotógrafo desempenha um papel
fundamental para denunciar ou servir de cúmplice diante do que vê. Analisando as fotografias
expostas acima e também as anexas abaixo, não conseguimos por si só, sem que houvesse
uma contextualização crítica sobre os fatores e os agentes causadores do genocídio. Por seu
caráter ocidental e colonizar nas fotografias, não há traços denúncia nem responsabilização
das potencias ocidentais que foram fundamentais no processo do conflito. Há apenas um
reforço sobre a visão estereotipada sobre o “Outro”.

46
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

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TACCA, Fernando de. Imagem Fotográfica: aparelho, representação e significação.
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48
ANEXO I

49
50
51
52
53
54
55
56
Fotografias disponíveis em:
https://elpais.com/elpais/2019/04/02/album/1554217272_428255.html#foto_gal_6
57

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