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Luís Guilherme Holl

Algumas notas sobre o texto: A imagem queima, de Didi Huberman

“A imagem queima: ela se inflama e, por sua vez, nos consome.” é logo a
primeira linha que o autor nos escreve sobre. Me fez pensar: se a imagem queima,
ela queima algo. Se ao queimar ela nos consome, então ela nos queima?
Citando Kant, Huberman afirma que “nos é difícil hoje pensar sem termos que
‘nos orientar na imagem’” (p. 26). Que nos dá uma importante pista do que é essa
imagem queimando e nos consumindo. Citando Jean-Luc Nancy: “que o
pensamento filosófico terá conhecido sua virada mais decisiva quando "a imagem
como mentira" da tradição platônica tiver sofrido uma inversão capaz de promover
‘“a verdade como imagem’”. (p.26).
A imagem “Nunca mostrou verdades tão cruas; nunca, contudo, nos mentiu
tanto ao apelar para nossa credulidade;”. A imagem já não é mais a representação
do real, mas sim o real tomado pela imagem? Ou o real em função da produção
dessa imagem?
Como uma ‘imagem’ o autor nos fala sobre a mariposa. De que a mariposa é
mais uma ação, um acidente, que uma substância, uma coisa em algumas
interpretações. “Muitas pessoas acreditam que aquilo que não dura é menos
verdadeiro do que o que dura ou do que é duro”. Seria considerada desprezível por
sua curta vida e sua “insignificancia”?
A mariposa como imagem, como acidente, nos dá um exemplo do fluir da sua
existência, seu devir, seu movimento. Do deslocamento na unidimensionalidade
temporal e na tridimensionalidade espacial que somos capazes de interpretar. Nos
mostra uma possibilidade de interpretação da mariposa: “se o acidente não
manifestaria a verdade com tanta exatidão - [...] ambas as coisas vão juntas - como
a própria substância" (p. 30). Há também a imagem da mariposa morta numa
coleção de insetos estudados. Interessante para um estudo de anatomia ou
morfologia. Mas desconexo da vida da mariposa. A imagem é feita da posse da
substância mariposa. Uma mariposa incompleta. Morta.
Como uma metáfora ao movimento final dessa mariposa-imagem, por
desorientação ela vai em direção a chama da vela. Se queima. Vira cinzas. Nem
substância, nem acidente. Apenas cinza.
O fogo transforma. No caso tende a transformar tudo em cinza. Na sua
função de apagar, esterilizar, derreter, deformar e também de ser o fogo. O fogo
como apagamento de textos, pessoas e seus saberes ancestrais, livros “proibidos”...
Tudo virando a (ou ‘o’) inerte cinza.
"Teríamos talvez que reservar alguns segundos para refletir sobre as
condições que tornaram possível o simples milagre de que esse texto esteja aqui,
diante de nós, que tenha chegado até nós” (p.34) me fez pensar nas revoluções
sociais que a multiplicação da informação nos trouxe: Antes da prensa de
Gutenberg os livros eram copiados manualmente. Havia menos “backups” dos
escritos. Maior o risco de perdê-las. Menor também a circulação e o acesso a esses
saberes. Assim também com a invenção do fonógrafo, rádio, televisão e internet.
Mesmo que algumas imagens virem cinzas, a possibilidade de salvação da
informação ali contida é maior. Não se colocam todos os ovos na mesma cesta.
Outro meio de se perder a imagem, ou a informação, é no excesso. Numa
enxurrada de informação não se consegue aquilo que se procura. O autor nos dá
um exemplo da “arqueologia da cultura” onde se tenta montar uma imagem de uma
época com base nas produções que chegaram até nós. Reconstrução de uma
imagem com base em fragmentos. É possível, também, uma criação artística com
base nesses fragmentos. Uma montagem. Como o exemplo da imagem formada de
imagens históricas onde a barbárie e o sacro estão expostos lado a lado.
A pesquisa histórica é também, em muitos casos, uma montagem com
fragmentos. A “história a contra pelo” de Benjamim que busca compreender o fluir
da história nas entrelinhas das informações que nos chegaram.
“Saber olhar uma imagem seria, de certo modo, tornar-se capaz de discernir
onde ela queima, onde sua eventual beleza reserva o lugar de um "signo secreto",
de uma crise inquieta, de um sintoma” (P. 47). Perceber que pistas essa parte que
queima nos dá. Onde ela ainda arde, onde ainda está viva. “"O real", escreve ele,
"provocou um buraco na imagem ao queimá-la"” (P. 52)
“Alem disso, é bastante fácil tornar invisível o fogo em que se queima uma
imagem: os dois meios mais notáveis consistem ou em afogar a imagem em um
fogo mais forte, em um auto-da-fé de imagens, ou em "asfixiar" a imagem em um
fogo muito maior dos clichês em circulação. Destruir e desmultiplicar são as duas
maneiras de tornar uma imagem invisível: pelo nada, pelo excesso. (p. 53 - 53) O
que também me faz pensar na atualidade. Desde meados do século XIX temos
registros fotográficos cada vez mais abundantes. Temos dados cada vez mais
precisos e específicos. Nessa inundação de informações acabamos não
percebendo a existência de algumas, talvez estejam propositalmente ofuscadas.
“Hoje, as imagens de violência e de barbárie organizadas são legião. A informação
televisual manipula com perfeição as duas técnicas do nada e do excesso - censura
ou destruição, por um lado, asfixia por desmultiplicação, por outro - para obter os
melhores resultados de cegueira.” (p. 54)
“Vivemos na era da imaginação desgarrada. A informação nos dá excesso
através da desmultiplicação das imagens, somos incitados a não crer em nada do
que vemos, e, finalmente, a não querer olhar nada que está debaixo de nossos
olhos.” (p. 57). Uma característica dos fanatismos, incluindo o fascismo. O Brasil
atual está exatamente assim. A imagem queimando a nós mesmos.
O fogo da imagem é sua possível vida em quem a observa. A imagem do
menino sírio de 3 anos morto na areia da praia multiplicou-se em todo o mundo.
Estampou a crise “dos refugiados” que a Europa vivia, que na verdade se mostrou
mais com uma crise de racismo e barbárie. A imagem do menino virou desenhos, foi
multiplicada, virou um símbolo. O menino desapareceu, assim como a mariposa na
chama, mas a imagem dele ainda queima e se transforma. Volta e meia ela
ressurge para lembrar. Se retorce, se transforma, assim como uma chama.
A imagem “queima pelo desejo que a anima, pela intencionalidade que a estrutura,
pela enunciação, até mesmo pela urgència que manifesta.” (p. 67)

Referência: DIDI-HUBERMAN, Georges. A imagem queima. Trad. Helano Ribeiro.


Curitiba: Medusa, 2018.

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