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A Câmara Clara de Roland Barthes — Resenha

Camilla Marçal · Follow


6 min read · Aug 30, 2017

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Photo by Jakob Owens on Unsplash

Fotografia nunca foi um campo de estudo cujo objeto me interessou. Barthes


reverteu isso em 175 páginas intituladas de A Câmara Clara. O livro tem uma leitura
facilmente fluida através dos conceitos e suas correlações com exemplos práticos. A
linguagem é coloquial e em segunda pessoa, o que me aproximou do autor e gerou
uma relação de pessoalidade entre mim e a narrativa da obra.

Os primeiros pontos de vista que Barthes apresentam são basicamentes pontos


técnicos relacionados à prática da captura de imagem através da câmera fotográfica.
O autor separa essa primeira parte do livro em três aspectos específicos: o do ponto
de vista do objeto fotografado, do observador (da fotografia capturada) e do
fotógrafo.

Photo by Bruno Martins on Unsplash

Ao ponto de vista do objeto fotografado, Barthes associa o sentimento de


inautenticidade assim como Walter Benjamin associa a reprodutibilidade técnica à
perda da aura da obra de arte. Entretanto, tais associações (de Barthes e de
Benjamin) estão relacionadas a visões diferentes de autenticidade. Enquanto
Benjamin critica a transformação do evento único da obra em comunicação de
massa através da reprodutibilidade, Barthes critica a perda da identidade do ser
fotografado:

Ora, a partir do momento que me sinto olhado pela objetiva tudo muda: ponho-me a
“posar”, fabrico-me instantaneamente em outro corpo, metamorfoseio-me
antecipadamente em imagem. Essa transformação é ativa: sinto que a Fotografia cria meu
corpo ou o mortifica a seu bel-prazer. (BARTHES, 1980, p. 22)

Com relação ao ponto de vista do espectador, a observação do autor que mais me


chamou atenção é a de que as fotografias podem ser utilizadas como formas de
aprendizagem no que diz respeito à cultura e costumes das civilizações. Por conta
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disso, Barthes refere-se às fotografias como biografemas (resgatando, através desse
termo, o conceito de biografia):
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“era certo que isso existira: não se travava de
exatidão, mas de realidade: […] o fato estava estabelecido sem método” (BARTHES,
1980, p. 120).

As ideias que dizem respeito ao fotógrafo, e seus objetivos com a captura das
imagens através da câmera fotográfica, não foram muito bem exploradas pelo autor.
Ele mesmo deixa claro que não tem experiência no papel de fotógrafo e, por isso,
não tem precisão no que diz respeito ao olhar do mesmo.

Photo by Jake Hills on Unsplash

Barthes compara a fotografia com a sétima arte e ressalta a diferença entre o


consumo pós-expositório da fotografia, que é contínuo e possível, e o consumo
instantâneo de uma cena no cinema: ela não permite pausas, como na fotografia,
para alguma interpretação além daquela que ocorre no momento exato do contato
do espectador com a obra. Além disso, na página oitenta e seis do livro, o autor
relaciona fotografia com morte pela primeira vez — relação que se mantém
presente até o fim da obra.

Enquanto obra “viva” (e por viva entende-se uma obra em movimento, não estática
como a fotografia, por exemplo), o cinema retém fora do enquadramento de sua tela
uma continuidade da vida dos personagens, porém em um “campo cego”, como
Barthes classifica esse espaço ilusório. Já na fotografia, tudo o que acontece com
seu objeto, morre dentro do enquadramento fotográfico. Não existe uma
continuidade na cena fotografada, ela é-o-que-é e isso implica em ela não ser
absolutamente mais nada além disso. O imaginário formado pela interpretação de
uma obra fotográfica está, como comentado anteriormente, na questão da
aprendizagem através da fotografia (biografemas), ou seja, como a obra é-o-que-é,
dela só podem ser gerados pensamentos como “quem foi esse cidadão fotografado”,
“a que tempo pertenceu”, “onde viveu” etc. Percebe-se ainda que as reflexões acerca
da obra dizem respeito ao passado, fortalecendo o argumento da morte como
consequência da prática fotográfica.

[…] A imobilidade da foto é como o resultado de uma confusão perversa entre dois
conceitos: o Real e o Vivo: ao atestar que o objeto foi real, ela induz
dub-repticiamente a acreditar que ele está vivo, por causa de logro que nos faz retribuir ao
Real um valor absolutamente superior, como que eterno; mas ao deportar esse real para o
passado (“isso foi”), ela sugere que ele já está morto. (BARTHES, 1980, p.118)
Photo by Kelly Sikkema on Unsplash

Ao início do segundo capítulo, Barthes traz a tona a relação sentimental com uma
fotografia de sua falecida mãe enquanto criança. Junto ao apelo sentimental com o
qual a fotografia pode ser percebida pelo espectador — o que não diz respeito à
fotografia como biografema e sim como lembrança do ser amado –, o autor retoma
a questão da inautenticidade do objeto da fotografia. A relação amorosa entre
Barthes e a fotografia de sua mãe é dilacerada pela incompletude da certeza com
relação à imagem da mãe, em outras palavras, como a pessoa fotografada posa para
a objetiva e, sendo assim, ela veste uma imagem irreal de sua identidade, ao
observar sua mãe — já falecida — em um fotografia, o autor vê algo que sua mãe não
era, mas que foi tão somente no momento da captura da imagem pela câmera.

Acredito que fotografias de pessoas que já faleceram ou com as quais não


convivemos mais tornam-se suplementos para a lembrança, contrariando o que
Barthes afirma (sobre a inautenticidade). A banalização da fotografia com o
surgimento dos smartphones e câmeras digitais e/ou amadoras fez com que não
fosse mais obrigatoriamente necessário que os objetos da fotografia posassem para
a objetiva. Ao capturar o cotidiano e espontaneidades, a fotografia agora traz cada
vez mais a identidade real de seus protagonistas.
Entretanto, ao mesmo tempo que o avanço tecnológico permite a captura da
imagem da personalidade real de alguém, sua banalização e o avanço de técnicas de
manipulação permitem também que imagens completamente deturpadas sejam
interpretadas pelos espectadores. Redes sociais como o Facebook, são “telas em
branco” nas quais se pode “pintar” quem você quer ser e como você deseja ser
percebido por seus “amigos” através de fotografias digitais.

Photo by Les Anderson on Unsplash

Ainda sobre a relação sentimental do espectador com a fotografia do ser amado, é


interessante perceber que Barthes classificava a fotografia como descartável.
Enquanto civilizações antigas erguiam monumentos feitos para perpetuarem, o
papel fotográfico se decompõe e a lembrança (por mais paradoxal que seja chamá-la
ainda de lembrança) é jogada fora. Hoje uma imagem colocada na internet, em
teoria, ficará lá eternamente.

É interessante como a tecnologia resinifica fenômenos como os descritos acima (e


no livro de Barthes). Em um outro texto meu aqui no Medium eu comento um pouco
sobre a Percepção de Valor em Experiências Artísticas Multissensoriais e o potencial
que a tecnologia tem para modificar a forma como interagimos com a arte.
O olhar sobre o mundo é relativo e é graças a essa inconstância que livros como A
Câmara Clara surgem.

Photography Philosophy

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