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BOOK REVIEW
INFÂNCIA E HISTÓRIA
DESTRUIÇÃO DA EXPERIÊNCIA E ORIGEM DA HISTÓRIA
Giorgio Agamben, filósofo italiano, de lado das notas de rodapé originais, notas de tra-
certa forma está sendo “descoberto” pelos lei- dução que elucidam termos técnicos, neologis-
tores brasileiros a partir da tradução de algu- mos etc. Estes cuidados ajudam a leitura e com-
mas de suas obras, pela Editora Universidade preensão da densa e erudita obra
federal de Minas Gerais, como Homo sacer, o No primeiro texto, alvo da presente re-
poder soberano e a vida nua (Editora UFMG, senha, o autor propõe responder à seguinte
2004) e que agora nos brinda com a tradução pergunta: Seremos nós ainda capazes de ex-
de “Infância e história”. perimentar e de transmitir experiências?
Este livro, escrito em 1978, consta dos O argumento geral é que, desde a Anti-
seguintes capítulos: Experimentum linguae güidade, houve uma junção de dois sujeitos an-
(Prefácio à edição francesa, Payot, 1989); - teriormente separados: o sujeito empírico e o
Infância e história: ensaio sobre a destruição sujeito transcendental ou cognitivo. Esta junção
da experiência; - O país dos brinquedos: refle- foi realizada graças à mística-divinatória, que
xões sobre a história e sobre o jogo; - Tempo e permitiu o surgimento da ciência moderna, pro-
história: crítica do instante e do contínuo; - O tagonizada pelo “eu penso” cartesiano. Esta
príncipe e o sapo: o problema do método em postura expulsou a experiência, baseada na au-
Adorno e Benjamin; - Fábula e história: con- toridade, substituindo-a pela experimentação,
siderações sobre o presépio; - Programa para baseada no controle e na previsão.
uma revista. Partindo desta constatação, propõe pro-
Trata-se de uma edição muito bem cui- curar um novo lugar para a experiência, encon-
dada e traduzida, que conta com um Glossário trando-a no que ele chama “infância”, isto é, na
do Tradutor no final da mesma, referente às fratura que separa o humano e a linguagem, ou
palavras em espanhol, francês, inglês, alemão, seja, no fato de o homem não ser desde o seu
latim e grego, citadas ao longo do texto. O tra- começo um sujeito falante. Medir todas as con-
dutor também teve o cuidado de colocar, ao seqüências desta situação, conceber a “infân-
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Psicóloga clínica, Mestrado em Psicologia Experimental-IPUSP, Doutorado e Pós-Doutorado em Psicologia Social-
IPUSP, Profa. do Mestrado em Família na Sociedade Contemporânea da Universidade Católica do Salvador, membro
do CDH-FSPUSP e do LAPSI-IPUSP; editora assistente da RBCDH.
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cia” como origem e pátria da história, tal é a A experiência perde todo o valor por ser in-
meta deste livro. A seguir, exporemos os princi- compatível com a certeza pois, se calculável e
pais tópicos abordados no primeiro texto. certa, perde sua autoridade.
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Itens de autoria da resenhista
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A própria existência de uma tal infância, histórico, é apenas porque há uma infância do
i.e., da experiência enquanto limite transcenden- homem, porque a linguagem não se identifica ao
tal da linguagem, exclui que a linguagem possa humano, porque há uma diferença entre língua e
em si se apresentar como totalidade e verdade. discurso, entre semiótica e semântica.
Sem a experiência, sem a infância do homem, a Ter a experiência significa necessariamen-
língua seria certamente um jogo e sua verdade te encontrar a infância como pátria transcen-
coincidiria com o seu uso correto, seguindo dental da história. De fato, o mistério que resul-
apenas regras lógicas. ta, para o homem, a sua infância só pode se
Mas, desde que uma experiência existe, dissipar na história; igualmente, a experiência,
desde que há uma infância do homem cuja ex- enquanto infância e pátria do homem, é o lugar
propriação é o sujeito da linguagem, a lingua- onde ele está sempre a ponto de cair, para a
gem aparece como o lugar onde a experiência linguagem e para a palavra.
deve se tornar verdade: o instante da infância, Eis porque a história não pode ser o pro-
como “arquilimite” na linguagem, manifesta-se gresso contínuo da humanidade falante, ao lon-
constituindo-a em lugar da verdade. go de um tempo linear: em sua essência, ela é
O inefável é, em realidade, infância. A intervalo, descontinuidade, époché. Aquele que
experiência é o mystérion que institui todo ho- tem a infância como pátria e origem deve pros-
mem pelo fato de que há uma infância. seguir o seu caminho em direção à infância e na
infância.
Língua e discurso
Comentários do resenhista
A infância provoca, na linguagem, uma
cisão entre língua e discurso que caracteriza a O leitor pode, assim, apreciar a comple-
linguagem humana. O fato de que todo homem xidade e alcance do pensamento que afirmam
falante ser o lugar da diferença entre língua e Agamben como um dos principais pensadores
palavra e possa passar de uma a outra, nada atuais.
tem de natural nem de evidente. Recomendamos a leitura deste livro a to-
Não é a língua que caracteriza o ser hu- dos que se interessam por compreender o mys-
mano mas a cisão entre língua e palavra, entre terium humano conforme expresso nas diver-
semiótica e semântica, entre sistema de signos sas disciplinas que o estudam mas, mais impor-
e discurso. Os animais não chegam à língua, tante ainda, como uma das tentativas mais bem
estão nela desde sempre. O homem, ao con- sucedidas de realizar a transdisciplinaridade e
trário, por ter uma infância, por não ser já sem- apontar as pontes entre disciplinas como histó-
pre falante, cinde a unidade desta língua e apa- ria, psicologia, linguística, religião, filosofia, an-
rece como aquele que, para falar, deve se cons- tropologia, entre outras.
tituir em sujeito da linguagem e deve dizer eu. Os textos que o seguem têm o mesmo
Sobre esta diferença, sobre esta descon- escopo, embora com ênfases e temáticas di-
tinuidade, funda-se a historicidade do ser huma- versas deste que é o mais longo e mais comple-
no. Se ele tem uma história, se o homem é um ser xo dos textos incluídos no livro.
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