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Rev Bras Cresc Desenv Hum 2005;15(2):119-123 RESENHA

BOOK REVIEW

INFÂNCIA E HISTÓRIA
DESTRUIÇÃO DA EXPERIÊNCIA E ORIGEM DA HISTÓRIA

INFANCY AND HISTORY


THE DESTRUCTION OF THE EXPERIENCE AND THE ORIGIN OF HISTORY
Elaine Pedreira Rabinovich*

Agamben, Giorgio. Infância e história: destruição da experiência e origem da história. Belo


Horizonte: Editora UFMG; 2005. 188p. (Trad. de Henrique Burigo. Título original: Infanzia e
storia: distruzione dell´experienza e origine della storia; 1978). ISBN: 85-7041-459-5. R$ 42,00
(editora@ufmg.br)

Giorgio Agamben, filósofo italiano, de lado das notas de rodapé originais, notas de tra-
certa forma está sendo “descoberto” pelos lei- dução que elucidam termos técnicos, neologis-
tores brasileiros a partir da tradução de algu- mos etc. Estes cuidados ajudam a leitura e com-
mas de suas obras, pela Editora Universidade preensão da densa e erudita obra
federal de Minas Gerais, como Homo sacer, o No primeiro texto, alvo da presente re-
poder soberano e a vida nua (Editora UFMG, senha, o autor propõe responder à seguinte
2004) e que agora nos brinda com a tradução pergunta: Seremos nós ainda capazes de ex-
de “Infância e história”. perimentar e de transmitir experiências?
Este livro, escrito em 1978, consta dos O argumento geral é que, desde a Anti-
seguintes capítulos: Experimentum linguae güidade, houve uma junção de dois sujeitos an-
(Prefácio à edição francesa, Payot, 1989); - teriormente separados: o sujeito empírico e o
Infância e história: ensaio sobre a destruição sujeito transcendental ou cognitivo. Esta junção
da experiência; - O país dos brinquedos: refle- foi realizada graças à mística-divinatória, que
xões sobre a história e sobre o jogo; - Tempo e permitiu o surgimento da ciência moderna, pro-
história: crítica do instante e do contínuo; - O tagonizada pelo “eu penso” cartesiano. Esta
príncipe e o sapo: o problema do método em postura expulsou a experiência, baseada na au-
Adorno e Benjamin; - Fábula e história: con- toridade, substituindo-a pela experimentação,
siderações sobre o presépio; - Programa para baseada no controle e na previsão.
uma revista. Partindo desta constatação, propõe pro-
Trata-se de uma edição muito bem cui- curar um novo lugar para a experiência, encon-
dada e traduzida, que conta com um Glossário trando-a no que ele chama “infância”, isto é, na
do Tradutor no final da mesma, referente às fratura que separa o humano e a linguagem, ou
palavras em espanhol, francês, inglês, alemão, seja, no fato de o homem não ser desde o seu
latim e grego, citadas ao longo do texto. O tra- começo um sujeito falante. Medir todas as con-
dutor também teve o cuidado de colocar, ao seqüências desta situação, conceber a “infân-

*
Psicóloga clínica, Mestrado em Psicologia Experimental-IPUSP, Doutorado e Pós-Doutorado em Psicologia Social-
IPUSP, Profa. do Mestrado em Família na Sociedade Contemporânea da Universidade Católica do Salvador, membro
do CDH-FSPUSP e do LAPSI-IPUSP; editora assistente da RBCDH.

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cia” como origem e pátria da história, tal é a A experiência perde todo o valor por ser in-
meta deste livro. A seguir, exporemos os princi- compatível com a certeza pois, se calculável e
pais tópicos abordados no primeiro texto. certa, perde sua autoridade.

Sobre a experiência e a autoridade** Sobre a experiência, a ciência e os dois


sujeitos
Anteriormente, a matéria prima da expe-
riência era o cotidiano que cada geração trans- Até a ciência moderna, ciência e experi-
mitia à seguinte. Atualmente, a experiência en- ência dependiam de sujeitos diferentes. O su-
contra o seu correlato no conhecimento mais jeito da experiência era o sentido comum (di-
do que na autoridade, i.e., na palavra e no rela- ferente do bom senso) e o sujeito da ciência era
to (como o do conto, da lenda, da fábula do o nôus, ou o intelecto agente, separado da ex-
mito), e nada parece deter suficiente autorida- periência, “impassível”, “divino”.
de para garantir uma experiência. Ao contrário, O conhecimento não tinha sujeito, ou
o que caracteriza o tempo presente é que toda “ego”: o indivíduo singular era o sub-jectum no
autoridade se funda sobre o que não pode ser qual o intelecto agente, único e separado, atua-
experimentado: a uma experiência legitimada por lizava a experiência. O problema central na an-
uma autoridade, ninguém daria o menor crédi- tigüidade não era a relação sujeito-objeto mas
to. O slogan – que substitui a máxima e o pro- a relação entre o um e o múltiplo. Donde não
vérbio – é o provérbio de uma humanidade que haver o problema da experiência como tal mas
perdeu a experiência. o da relação entre o intelecto separado e os
indivíduos singulares, entre o intelectual e o sen-
Sobre a experiência e a ciência moderna sível, entre o humano e o divino. A experiência
tradicional é a experiência do limite que separa
Em um certo sentido, a expropriação da a esfera do humano e a do divino, ou seja, a
experiência se achava implicada no projeto fun- morte.
damental da ciência moderna. “A experiência A ciência moderna, na procura da certe-
comum é acaso, e a experimentação é o que se za, aboliu esta separação: fez da experiência o
procura expressamente” (Francis Bacon). Logo lugar – o método, o caminho – do conhecimen-
após, a distinção entre verdade de fato e ver- to. Fez uma re-fundação (da experiência e da
dade da razão completou a condenação. As- inteligência) expulsando os dois sujeitos para
sim, a ciência moderna nasce de uma desconfi- substituí-los por um sujeito único e novo – um
ança sem precedentes quanto à experiência ponto arquimédico abstrato – o ego cogito car-
conforme a concebe a tradição. tesiano, a consciência.
A experimentação – que permite a pas- Foi a astrologia quem ligou céu e terra,
sagem lógica das impressões sensíveis a exatas divino e humano em um único sujeito, pela mís-
determinações quantitativas e, por conseguinte, tica neoplatônica e hermética. Devido a este
à previsão de futuras impressões – responde a enraizamento em uma mística, toda explicitação
esta perda de certeza transportando a experi- da relação entre experiência e conhecimento,
ência, tanto quanto possível, para fora do ho- na ciência moderna, está condenada a dificul-
mem: para os instrumentos e para os números. dades quase intransponíveis. Essa implicação

**
Itens de autoria da resenhista

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recíproca de ciência e mística funda a oposição um “eu” (Benveniste, 1972). O eu se refere ao


racionalismo / irracionalismo de nossa cultura e ato do discurso individual onde ele se pronun-
apenas um retorno a uma bipartição da ciência cia, e designa o locutor. A realidade à qual en-
e da experiência permitiria ultrapassar esta opo- via é a realidade do discurso.
sição. A representação da esfera transcenden-
No sujeito da ciência, a coincidência ex- tal como subjetividade, como “eu penso”, fun-
periência/conhecimento aparece como o que da-se sobre uma permuta entre o transcenden-
sempre já foi dito - não um pathma mas um tal e o lingüístico. O sujeito transcendental
máthema - algo que é sempre um imediato nada mais é do que o locutor, enquanto o
conhecimento em todo ato cognitivo, tanto o pensamento moderno foi construído sobre a
fundamento quanto o sujeito de todo pensamen- idéia não explicitada de que o sujeito da lin-
to. Do eu verbo, Descartes passa para o eu guagem é o fundamento tanto da experiên-
substantivo no qual se realiza a união do noûs e cia quanto do conhecimento.
da psyché, da experiência / conhecimento, e que Foi a permuta entre linguagem e sujeito
depois forma a consciência psíquica. transcendental que permitiu à psicologia pós-
A experiência tradicional permitia ao ho- kantiana atribuir à consciência transcendental
mem amadurecer, i.e., antecipar uma morte uma substância psicológica, pois ela se apre-
concebida como acabamento e totalização da sentava a mesmo título que a consciência empí-
experiência: algo que se podia fazer e ter, mas rica, como um “eu”, como um “sujeito”. O
que, depois, só se podia ou fazer (Don Qui- transcendental não pode ser o subjetivo a não
xote) ou ter (Sancho Pança). Kant foi o último ser que signifique simplesmente : lingüístico.
pensador a distinguir o eu penso – sujeito
transcendental não substantivado nem psico- Linguagem e in-fância
logizado – da consciência psicológica ou eu
empírico. Após ele, todos os filósofos reuni- A linguagem é a base para a colocação,
ram os dois sujeitos. em termos não equívocos, do problema da ex-
periência. Pois se o sujeito não passa do locu-
Relação experiência-linguagem tor, nunca atingiremos no sujeito o status origi-
nal da experiência, “a experiência pura, e por
Agamben chega, agora, ao centro de sua assim dizer, ainda muda”. A constituição do su-
temática, dizendo que colocar rigorosamente jeito na e pela linguagem é a própria expulsão
o problema da experiência é encontrar o pro- desta experiência “muda”; dito de outro modo,
blema da linguagem. a experiência é sempre “palavra”.
Apontar que, se renunciarmos ao mode- Longe de ser subjetiva, uma experiência
lo de uma evidência matemática transcendental original só pode ser o que, no homem, encon-
(como a de Kant e de Husserl e que desde a tra-se antes do sujeito, quer dizer, antes da lin-
Antigüidade se enraíza na metafísica ocidental), guagem: uma experiência “muda” no sentido li-
a linguagem dá ao sujeito tanto a sua origem teral do termo, uma in-fância do homem, cuja
quanto o seu lugar próprio: apenas na lingua- linguagem deve precisamente marcar o limite.
gem é possível representar a apercepção trans- Uma teoria da experiência só poderia,
cendental como um “eu penso”. neste sentido, ser uma teoria da in-fancia, e seu
Na linguagem e pela linguagem, o homem problema central deveria assim ser formulado:
se constitui como sujeito. A subjetividade é a existe algo como uma in-fância do homem?
capacidade do locutor de se posicionar como Como é possível a in-fância enquanto fato

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humano? E, se possível, qual é o seu lugar? de experiência, libertado do condicionamento


subjetivo -, é preciso apenas abandonar o con-
In-fância e história ceito de origem definido como um ponto em
uma cronologia, como uma causa inicial sepa-
Infância e história dão origem uma à ou- rando no tempo um antes e um depois.
tra. Se o homem é um ser histórico, é apenas Tal conceito de origem não pode ser uti-
porque há uma infância do homem. O que quer lizado nas ciências humanas quando se pressu-
dizer infância do homem? - quer dizer que, para põe ser ele mesmo constitutivo do humano. A
falar, ele tem necessidade de se expropriar da origem de um tal “ente” não pode ser historici-
infância – o que não fala – para se constituir zada porque ela própria é historizante; é ela
como sujeito na linguagem. A conseqüência des- que funda a possibilidade de algo como uma
ta infância é que, por causa dela, o homem que- “história”.
bra o “mundo fechado” do signo e transforma a A origem da linguagem deve ser situada
pura língua em discurso humano (segundo Ben- em um ponto de ruptura na contínua oposição
veniste, transforma o semiótico em semântico). entre diacrônico e sincrônico, entre histórico e
Na medida em que tem uma infância, na estrutural, e onde se pode apreender a unida-
medida em que não nasce falando, o homem de-diferença da invenção e do dom, do huma-
não pode entrar na língua como sistema de si- no e do não-humano, da palavra e da infância.
nais sem transformá-la radicalmente, sem a Por exemplo: a raiz indo-européia nunca
constituir em discurso (ou fala). foi falada mas está presente e operante nas lín-
A semiótica – sistema de sinais -, e a guas históricas. Uma tal origem nunca será in-
semântica – sistema de significados -, não são teiramente redutível a “fatos” que poderíamos
duas realidades substanciais, mas sim dois li- supor historicamente ocorridos; há algo que ain-
mites transcendentais que definem a infância da não parou de vir-a-ser. Esta dimensão seria
do homem, sendo por ela definidos. A semió- a história transcendental, consistindo no limi-
tica é apenas a língua pré-Babel da natureza, te e na estrutura a priori de todo conhecimento
da qual o homem participa para falar, mas da histórico.
qual ele está sempre a ponto de sair na Babel
da infância. Experiência pura e transcendental
Quanto ao semântico, ele só existe em
uma emergência momentânea, fora do semióti- Eis o modelo de experiência pura e trans-
co, na instância do discurso – cujos elementos, cendental que, enquanto infância do homem,
assim que proferidos, caem na língua, que os está liberada tanto do sujeito quanto de qual-
recolhe no seu dicionário mudo de signos. Ape- quer substrato psicológico. Ela não é um sim-
nas durante um instante, a linguagem humana ples fato que se poderia isolar, o lugar cronoló-
emerge das águas semióticas da natureza. Mas gico que uma psicologia infantil (no plano da
o humano é, justamente, esta passagem da pura palavra) ou uma paleoantropologia (no plano
língua para o discurso: este trânsito, este instan- da língua) poderiam construi como fato inde-
te, é a história. pendente da palavra.
Enquanto infância do homem, a experi-
Temporalidade ência é simplesmente a diferença entre o huma-
no e o lingüístico. Que o homem não seja sem-
Para encontrar esta infância - pois ape- pre já falante, que ele tenha sido e seja ainda in-
nas ela permitiria estabelecer um novo conceito fante, eis o que constitui a experiência.

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A própria existência de uma tal infância, histórico, é apenas porque há uma infância do
i.e., da experiência enquanto limite transcenden- homem, porque a linguagem não se identifica ao
tal da linguagem, exclui que a linguagem possa humano, porque há uma diferença entre língua e
em si se apresentar como totalidade e verdade. discurso, entre semiótica e semântica.
Sem a experiência, sem a infância do homem, a Ter a experiência significa necessariamen-
língua seria certamente um jogo e sua verdade te encontrar a infância como pátria transcen-
coincidiria com o seu uso correto, seguindo dental da história. De fato, o mistério que resul-
apenas regras lógicas. ta, para o homem, a sua infância só pode se
Mas, desde que uma experiência existe, dissipar na história; igualmente, a experiência,
desde que há uma infância do homem cuja ex- enquanto infância e pátria do homem, é o lugar
propriação é o sujeito da linguagem, a lingua- onde ele está sempre a ponto de cair, para a
gem aparece como o lugar onde a experiência linguagem e para a palavra.
deve se tornar verdade: o instante da infância, Eis porque a história não pode ser o pro-
como “arquilimite” na linguagem, manifesta-se gresso contínuo da humanidade falante, ao lon-
constituindo-a em lugar da verdade. go de um tempo linear: em sua essência, ela é
O inefável é, em realidade, infância. A intervalo, descontinuidade, époché. Aquele que
experiência é o mystérion que institui todo ho- tem a infância como pátria e origem deve pros-
mem pelo fato de que há uma infância. seguir o seu caminho em direção à infância e na
infância.
Língua e discurso
Comentários do resenhista
A infância provoca, na linguagem, uma
cisão entre língua e discurso que caracteriza a O leitor pode, assim, apreciar a comple-
linguagem humana. O fato de que todo homem xidade e alcance do pensamento que afirmam
falante ser o lugar da diferença entre língua e Agamben como um dos principais pensadores
palavra e possa passar de uma a outra, nada atuais.
tem de natural nem de evidente. Recomendamos a leitura deste livro a to-
Não é a língua que caracteriza o ser hu- dos que se interessam por compreender o mys-
mano mas a cisão entre língua e palavra, entre terium humano conforme expresso nas diver-
semiótica e semântica, entre sistema de signos sas disciplinas que o estudam mas, mais impor-
e discurso. Os animais não chegam à língua, tante ainda, como uma das tentativas mais bem
estão nela desde sempre. O homem, ao con- sucedidas de realizar a transdisciplinaridade e
trário, por ter uma infância, por não ser já sem- apontar as pontes entre disciplinas como histó-
pre falante, cinde a unidade desta língua e apa- ria, psicologia, linguística, religião, filosofia, an-
rece como aquele que, para falar, deve se cons- tropologia, entre outras.
tituir em sujeito da linguagem e deve dizer eu. Os textos que o seguem têm o mesmo
Sobre esta diferença, sobre esta descon- escopo, embora com ênfases e temáticas di-
tinuidade, funda-se a historicidade do ser huma- versas deste que é o mais longo e mais comple-
no. Se ele tem uma história, se o homem é um ser xo dos textos incluídos no livro.

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