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UNIVERSIDADE FEDERAL DE SANTA CATARINA – UFSC

José Danilo Debacker Damian

A venda da “experiência” e a educação da “aceitação”


Uma análise das técnicas capitalistas e suas aplicações na educação

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Florianópolis
2023
José Danilo Debacker Damian

A venda da “experiência” e a educação da “aceitação”

Resumo: Este ensaio tem por intenção demonstrar


como tanto a educação e a experiência, dentro do
sistema capitalista, são sucateadas e substituídas
por métodos cruéis de alienação que efetivam a
construção e solidificação de uma sociedade
fundada através de conflitos internos e externos.
Metamorfoseando tanto as concepções subjetivas
sobre o espaço, tempo e o ambiente social quanto
a relação objetiva que possuímos com os mesmos
enquanto indivíduos que são, estão e dotados da
capacidade de experienciar.

1
Florianópolis
2023
Walter Benjamin, em seu texto “A Obra de Arte na Era de sua Reprodutibilidade Técnica”,
aponta o método pelo qual o capitalismo, estabelecendo-se sobre os alicerces de valorização da
técnica, transforma aquilo que chamamos de obra de arte. Se, outrora, como diria Baumgarten,
Kant ou até mesmo Rosseau, considerávamos uma obra de arte através de conceitos como
harmonia, para determinar se era bela, ou magnanimidade, para determinar sua sublimidade; agora,
esses conceitos foram ultrapassados com a chegada da fotografia e do cinema. Esses dois elementos
fazem com que as obras de artes, que possuíam unicidade e presencialidade, a saber, elementos que
à garantiam a característica que o autor chama de aura, desaparecem, visto que através da
fotografia, eles podem ser reproduzidos ad infinitum e, portanto, não são mais únicos e
remanescentes de alguma localidade, tornando-se, simplesmente, uma reprodução. Uma
reprodução da técnica.
Assim sendo, os maquinários capitalistas utilizam dessa transformação para promover,
através da fotografia e da “nova arte”, aquilo que eles chamam de “vida feliz”, que, em verdade,
trata-se de “vida consumidora”. Essa maneira de observar a vida leva em consideração que, para
sermos felizes, havemos de ter itens ou posses que nos façam felizes, por exemplo: uma propaganda
de chuveiro no vidro de trás de um ônibus que diz “Seja feliz com um banho de Lorenzetti”; o que
aquela propaganda está realizando, ou tentando realizar, não é a venda do chuveiro Lorenzetti em
si, mas a venda da felicidade que está imbuída na compra daquele chuveiro.
Essa estética faz com que a própria raiz etimológica da palavra ‘felicidade’ seja perdida, a
saber, “felicitas” em latim, que indica fecundação e/ou produção, que nada tem a ver com a relação
de obtenção. Muito pelo contrário, é antagônico. Na compra, não produzimos nada, o produto
aparece para nós autofabricado, diretamente colocado na prateleira do mercado, ou onde quer que
seja, sem nenhuma explicitação do processo de produção do mesmo, e, portanto, sem qualquer
vínculo com qualquer coisa, mas, especialmente, com o proletariado. Dessa maneira, sem essa
demonstração, acabamos por perder a noção da existência desse vínculo que é essencial, visto que
não só somos dependentes dele, mas somos parte dele nós mesmos, os proletariados – mesmo que
não sejamos nós especificamente (eu e você que está lendo) que produzimos os itens do mercado,
visto que estamos envolvidos em outros processos de produção e venda, inclusive de nós mesmos
em algumas situações, mas chegarei nesse ponto -.
Mas que isso tem a ver com a educação e com o resto da vida? Para explicitar essa relação,
tenho que citar mais uma obra de Walter Benjamin, a saber, “O Narrador”. Nessa exposição, Walter
reflete sobre como, com o surgimento da prensa, e, por conseguinte, da imprensa, perde-se a
sensibilidade e a experiência como um todo. Através da formulação dos jornais, as histórias que
outrora eram repassadas verbalmente e, por definição, de pessoa a pessoa, agora são repassadas
através duma maneira homogênea: os jornais; que, adaptando-se ao sistema (e sendo uma das suas
ferramentas principais), procura generalizá-las de modo a cativar o maior contingente possível de
pessoas, ou seja, de modo a vender mais.

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Além disso, essa maneira de se contar o que ocorre mundo afora é revolucionada perante
as guerras mundiais que ocorrem no séc. XX, visto que, ao retornar delas, as pessoas já não traziam
consigo histórias e experiências, mas o silêncio. Não se falava sobre a guerra, não haviam narrações
sobre a guerra por aqueles que a viveram, todos já sabíamos, o jornal já nos havia contado, dizendo
em mais de mil formas aquelas coisas que aconteceram na Europa, trazendo, a cada dia, mais
informações, e amanhã, outras informações, e, depois de amanhã, ainda mais informações.
Não se tratava mais sobre vivenciar, experimentar, expor-se à realidade da guerra. É o
contrário: a realidade da guerra é exposta a você, as imagens da guerra são expostas a você. Você
apenas há de ser um mero observador, ali, parado, pronto para dizer “sim” caso alguém lhe pergunte
se você já ouviu, viu ou conhece a guerra. Não havia mais experiência, apenas vivência. Nós
vivenciamos aquilo que, ao redor do tempo, nos é mostrado ou apresentado ou falado, mas não
experimentamos nada, não nos deixamos afetar por nada.
Aqui, hei de trazer o texto de Jorge Larossa Bondía, “Notas sobre a experiência e o saber
de experiência”, onde Larossa afirma que o saber da experiência não é o mesmo que saber coisas
(estar informado), reforçando as ideias trazidas por Benjamin em “O Narrador”. Bondía diz:
“Se a experiência é o que nos acontece e se o saber da
experiência tem a ver com a elaboração do sentido ou do sem-sentido do
que nos acontece, trata-se de um saber finito, ligado à existência de um
indivíduo ou de uma comunidade humana particular; ou, de um modo
ainda mais explícito, trata-se de um saber que revela ao homem concreto
e singular, entendido individual ou coletivamente, o sentido ou o sem-
sentido de sua própria existência, de sua própria finitude. Por isso, o
saber da experiência é um saber particular, subjetivo, relativo,
contingente, pessoal. Se a experiência não é o que acontece, mas o que
nos acontece, duas pessoas, ainda que enfrentem o mesmo
acontecimento, não fazem a mesma experiência” (Larrosa, 2002 - “Notas
sobre a experiência e o saber de experiência*”, p 27.)

Portanto, experiências não podem ser apresentadas porque, ao serem apresentadas, deixam
de ser experiências. Elas só se dão no interior do indivíduo, na maneira com a qual ele se relaciona
com aquilo ao que se expõe, visto que, para que ele seja capaz de ser perpassado pela mesma, ele
há de se pôr em prontidão para tal. Não há experiência naquilo que não vem e permanece em nós,
que remanesce e subsiste na nossa existência. A experiência há de sempre estar conectada com o
tempo, local e ser que a vive. Larossa explicita essa relação entre passagem e experiência ao
mostrar a origem etimológica da palavra ‘experiência’:
“Vamos agora ao que nos ensina a própria palavra experiência.
A palavra experiência vem do latim experiri, provar (experimentar). A
experiência é em primeiro lugar um encontro ou uma relação com algo
que se experimenta, que se prova. O radical é periri, que se encontra
também em periculum, perigo. A raiz indo-europeia é per, com a qual se
relaciona antes de tudo a ideia de travessia, e secundariamente a ideia
de prova. Em grego há numerosos derivados dessa raiz que marcam a
travessia, o percorrido, a passagem: peirô, atravessar; pera, mais além;
peraô, passar através, perainô, ir até o fim; peras, limite. Em nossas
línguas há uma bela palavra que tem esse per grego de travessia: a
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palavra peiratês, pirata. O sujeito da experiência tem algo desse ser
fascinante que se expõe atravessando um espaço indeterminado e
perigoso, pondo-se nele à prova e buscando nele sua oportunidade, sua
ocasião. A palavra experiência tem o ex de exterior, de estrangeiro, de
exílio, de estranho e também o ex de existência. A experiência é a
passagem da existência, a passagem de um ser que não tem essência ou
razão ou fundamento, mas que simplesmente “ex-iste” de uma forma
sempre singular, finita, imanente, contingente. Em alemão, experiência
é Erfahrung, que contém o fahren de viajar. E do antigo alto-alemão
fara também deriva Gefahr, perigo, e gefährden, pôr em perigo. Tanto
nas línguas germânicas como nas latinas, a palavra experiência contém
inseparavelmente a dimensão de travessia e perigo.” (Larrosa, 2002 -
“Notas sobre a experiência e o saber de experiência*”, p 25.)

E o que o capitalismo realiza com a propaganda é a venda da (dis)simulação disso. ‘Dis’


porque o que, em verdade, ele efetiva é a mera venda do prazer instantâneo, que caracterizo aqui
como a alienação do consumidor realizada de tal modo a fazê-lo crer que a experiência de felicidade
ocorre ao consumir, sem se resguardar quanto ao que ocorre em consequência desse processo: a
alocação da palavra felicidade numa realidade homogênea, objetiva e atemporal, que, por
conseguinte, fere a definição de “experiência”.
Assim sendo, o capitalismo desloca toda sociedade em direção a um único objetivo:
capacidade de consumir. Que é, senão outra coisa que ‘a busca infinita do ato de consumir’ sob a
manto ilusório recobrindo seu verdadeiro nome e, assim como os sofistas da época de Sócrates,
determinar que a verdade é aquilo que o povo diz que é (em termos muitíssimos resumidos), dizê-
la como ‘experiência de felicidade’ a bel prazer, omitindo de seu discurso palavra sobre como opera
para que tudo isso aconteça.
O laissez-faire, pensamento liberal. Defende, sobretudo, a razão científica, que opera,
subsidiada pelo capitalismo emergente, tal qual as Igrejas operaram anos antes. Claramente, tenho
que fazer ressalvas quanto essa última afirmação. Não quero dizer que a razão científica seja, assim
como as Igrejas, baseada em mitos, digo em termos elucidados Maquiavel em seus textos pouco
anteriores ao Estado moderno de fato, mas que, com um ato de retrospecção, somos capazes de
afirmar, de determinada maneira, que quando ele dizia que as Igrejas serviriam ao Príncipe como
uma ferramenta para obter seu fim, no caso de Maquiavel, a consolidação da Itália, e no caso do
capitalismo, a consolidação da propriedade dos meios de produção. Que agora não é um fim
restringido por fronteiras, e opera internacionalmente determinando a partir de seu arbítrio o que é
progresso e o que não é, ao mesmo tempo que, como Karnak diria, esquece-se da ancestralidade
que os locais, as culturas, as experiências possuem. Visto que, por serem “do passado”, seria um
ato de regressão sequer considerar a vida daquela maneira, não é o que o sistema moralmente afirma
correto.
Essa realidade é transferida à educação ao notarmos que ela foi germinada
concomitantemente a esse pensamento. Portanto, ela foi pensada sob seus moldes. O indivíduo a
ser gerido pela educação é o indivíduo capitalista, feito para consumir. Tendo isso em vista, os
primeiros moldes de educação, que, de acordo com Saviani, em seu texto “Escola e Democracia”,
enxergam-na como uma ferramenta de equalização da sociedade, já que as mazelas da mesma eram
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causadas por ignorância. Pelo qual todo e qualquer ser humano seriam “nivelados” (pegando um
pouco de Tocqueville, em “Da Democracia na América”), e, então, celebrariam entre si a
funcionalidade do contrato social, apertando as mãos e bebendo um bom whisky enquanto dão
risadas num futuro incrível e igual. Sem pensar, sequer, uma característica crucial dos seres
humanos: a diferença.
Tópico que Skliar delibera em seu texto “A educação e a pergunta pelos Outros: diferença,
alteridade, diversidade e os outros ‘outros’”, onde descreve que maneira com a qual a estético-
política do Estado capitalista - que é uma tentativa minha de “traduzir”, ou ressignificar (para
melhor adequar-se ao meu texto), aquilo que o Skliar chama de “pensamento ocidental” - realiza
sua suposta homogeneização “agradável”, ou seja, aquela que os liberais consideram como
proveitosa, visto que todos serão iguais e, portanto, não poderão exercer poder tirânico uns sobre
os outros (Tocqueville), acaba por reforçar ideologias individualistas, que, por sua vez, reforçam
dualidade entre ser eu e ser outro. A mesmice e a alteridade. O normal e o diferente. Nós e eles.
“O pensamento ocidental continua tomando o outro
pelo próximo, reduzindo o outro ao outro próximo. Reduzir o
outro ao próximo é uma tentação um tanto difícil de evitar, pois
a alteridade radical constitui sempre uma provocação e,
portanto, está destinada à redução e ao esquecimento na
análise da memória, é isso que chamamos de história. Porém,
nesta gestão do próximo, fica sempre um resíduo; no outro se
esconde uma alteridade ingovernável, de ameaça, explosiva.
Aquilo que tem sido normalizado pode acordar em qualquer
momento” (Skliar, 2003 “A educação e a pergunta pelos Outros:
diferença, alteridade, diversidade e os outros “outros”, p 41.)

Mas que, pela natureza do capitalismo, é um obstáculo, pois, como disse anteriormente, sua
natureza não se restringe mais a fronteiras. E, sendo ele um meio de produção, Skliar diz, seu
objetivo é outro:
“Com a modernidade, entramos numa era de
produção do Outro. Não se trata, já, de matá-lo, devorá-lo ou
seduzi-lo, nem de enfrentá-lo ou rivalizar com ele, também não
de amá-lo ou odiá-lo; agora, primeiro, trata-se de produzi-lo.
O outro tem deixado de ser um objeto de paixão para se
converter num objeto de produção. Poderia ser que o outro, na
sua alteridade radical ou na sua singularidade irredutível, haja
se tornado perigoso ou insuportável e, por isso, seja necessário
exorcizar a sua sedução? Ou será, simplesmente, que a
alteridade desaparece progressivamente com o aumento, em
potência, dos valores individuais e a destruição dos valores
simbólicos? Seja como for, o caso é que a alteridade começa a
faltar e que é imperiosamente necessário produzir o outro como
diferença à falta de poder viver a alteridade como destino.

O outro da educação foi sempre um outro que devia


ser anulado, apagado. Mas as atuais reformas pedagógicas
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parecem já não suportar o abandono, a distância, o
descontrole. E se dirigem à captura maciça do outro para que
a escola fique ainda mais satisfeita com a sua missão de possuí-
lo, tudo dentro de seu próprio ventre.” (Skliar, 2003 - “A
educação e a pergunta pelos Outros: diferença, alteridade,
diversidade e os outros “outros”, p 41.)

Que põe a educação numa esfera de existência paradoxal, onde ela pretende englobar e
possuir a todos, mas o faz de maneira a separá-los de sua suposta totalidade, dessa maneira
segregando-a.
Esse comportamento é trazido à tona posteriormente com as Teorias Críticas, que estão,
também, no texto do Saviani citado anteriormente. Teorias essas que assimilam a educação como
ferramenta do Estado capitalista a fim de concretizar suas necessidades, sendo estas: a pobreza, a
marginalidade, o preconceito e a segregação. Estado que já não é mais entendido como aquele
descrito pelos liberais, mas sim compreendido através da análise material de efetivação do mesmo,
ou seja, como ele opera em sua relação com a sociedade em que se encontra.
É descrito por Marx, em sua obra “O Capital”, o seguinte:
“dentro do sistema capitalista, todos os métodos para elevar a
produtividade do trabalho capitalista, todos os métodos para elevar a
produtividade do trabalho coletivo são aplicados às custas do trabalhador
individual; todos os meios para desenvolver a produção redundam em meios de
dominar e explorar o produtor, mutilam o trabalhador, reduzindo-o a um
fragmento de ser humano, degradam-no à categoria de peça de máquina,
destroem o conteúdo de seu trabalho transformado em tormento; tornam-lhe
estranhas as potências intelectuais do processo de trabalho na medida em que a
este se incorpora a ciência como força independente [...] Mas os métodos para
produzir mais-valor são ao mesmo tempo métodos de acumular, e todo aumento
da acumulação torna-se, reciprocamente, meio de desenvolver aqueles métodos.
Infere-se daí que, na medida em que se acumula o capital, tem de piorar a situação
do trabalhador, suba ou desça sua remuneração” (Marx, 1994, l. 1, v. 2, p. 748-
749)

Portanto, a educação é efetivada para sustentar uma classe em detrimento da outra, mas,
assim como “a experiência da felicidade” (que é ‘busca infinita do ato de consumir), está sob o
manto da “educação da aceitação”. Digo ‘aceitação’ porque essa palavra indica conflito entre
aquele que aceita e aquele que é aceito. O homem que “aceitou” a mulher no ambiente de trabalho.
O branco que “aceitou” o preto na sua escola. Os cis-héteros que “aceitaram” que os LGBTQIA+
existem. O da cidade que “aceitou” o indígena. Todos esses conflitos que já existiam preteritamente
ao capitalismo e que passaram a existir conforme o tempo, mas que, irreparavelmente foram
proliferados através do Imperialismo Monopolista do Capital.
E, sendo ela essa “máquina” de “novos outros”, ela produz, finalmente, um ser sem nome,
sem cultura, sem rosto, sem voz, sem destino concreto, somente com ilusões a buscar. Um ser que
não possui nenhum atrelamento ao local que está, às sabedorias geracionais, às experiências, ao
tempo. E que, sendo ninguém, vive para sempre.

1
Formou-se um fantasma da vontade humana sob o manto de ‘população mundial’ e agora
ninguém mais é. Todos estamos.

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Bibliografia
- “As teorias da educação e o problema da marginalidade” - Demerval Saviani, 2002
- “A educação e a pergunta pelos Outros: diferença, alteridade, diversidade e os outros
“outros” - Carlos Skliar, 2003
- “O Príncipe” - Maquiavel, 1532
- “Da Democracia na América” - Tocqueville, 1835
- “Notas sobre a experiência e o saber de experiência*” - Jorge Larrosa Bondía, 2002
- “O Capital. Crítica da Economia Política: livro 1. 12 ed. Rio de Janeiro: Editora Bertrand
Brasil. V. I e II” - Karl Marx, 1994
- “A Obra de Arte na Era de sua Reprodutibilidade Técnica” - Walter Benjamin
- “O Narrador” - Walter Benjamin

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