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> The image is the beginning of the “human”. Consequences of the idea that without images we would only
be the playthings of “forces” that break through from all sides and bend everything on their way. As a result
of an inevitable logic, things are “images of images” which are always beyond this original and illusory
division. It is, however, through such an illusion that everything starts, at least since the Greeks.
Image - Communication - Greece - Literature
menos desde os gregos. Se dizemos que é “ilusória” é porque nela assenta o “vazio”
essencial em que se funda a liberdade humana. Toda a metafísica, herdeira tardia da
teologia2, se alimenta dessa cisão, mesmo quando, na sua maioria, a desejam abolir3. Uns
para fundir-se com a “natureza”, outros para “concluir” a história, outros para realizar a
“imanência absoluta”, outros ainda para serem “orientais”....
O humano está em causa sempre que esta divisão originária é cancelada4. Dizíamos
que esta divisão era ilusória, diremos agora que é um acrescento necessário. A definição
grega do homem como zoon politikon dá conta desse acrescento, em si mesmo enigmático.
Eis um animal e algo mais. A imagem tem a ver com esse “algo mais”. Percebe-se, assim, a
hipótese do filósofo alemão Hans Blumenberg, que sustenta que o humano só é possível a
partir de uma fragmentação do “absolutismo do real”5, cuja melhor imagem são as longas
noites pré-históricas, sem sol nem lume, e o terror sem fim que originam. A luz do sol é um
dos operadores, e bem importante, dessa divisão, mas porque é retomada por uma outra
“luz”, a do mito, que repete e cria outra maneira de dividir o “contínuo” ameaçador da
natureza, dando-lhe “nomes”, desagregando-a, inventando deuses, tornando conhecido o
desconhecido, ou, pelo menos, tornando-o cognoscível (e controlável). Como diz Jean-
Pierre Vernant, no mito grego da origem do universo “é preciso que advenha alguma coisa
que permita criar o espaço, isto é, um intervalo...”6. A divisão onde se origina a
experiência humana abre, portanto, a “presença” ou a “natureza”, instalando todo um jogo
de forças e possibilidades, cujos efeitos se prolongam até aos nossos dias.
O mito é a primeira forma de registo desta divisão originária, embora a narrativa
mítica procure desde logo anulá-la. Mas enquanto sismógrafo do terror inicial o mito repete
inevitavelmente a divisão em que se origina. Aquém do mito está a imperceptível divisão
operada pela imagem. Oculta no mito de Narciso está a experiência elementar do
espelhismo e dos reflexos, que se desmultiplica nesse mito e em todos os outros. A própria
Razão, que se inicia pela vontade de expurgar as “imagens” em que se fundava o mito, traz
em si as marcas deste processo7, assumindo o seu trabalho de “controle” da existência e,
acima de tudo, da “exterioridade”. A metafísica grega constrói-se por um trabalho
infindável em torno dessa divisão, visando cancelá-la, assumindo o controlo total da
“existência” e, acima de tudo, da “exterioridade”8.
Sem podermos ir muito mais longe na nossa demonstração, diremos apenas que na
separação platónica entre “ideias” e “fenómenos”, que instaura a divisão essencial da
metafísica e o seu processo contra o existente, ecoa ainda a divisão originária com que a
imagem se inicia. Somente nesta perspectiva se percebe inteiramente a crítica de Platão à
“imagem”, como falso eidos, como ontologicamente falsa. Ela é “aspecto”, algo
“incorporal”, mas que pode ganhar corpo. Na interpretação de Nestor-Louis Cordero, “a
imagem pertence ao domínio do não-ser”; “a imagem estava ‘em falta’ de ser”9. Mas isso
não impede que ela possa ser “produzida”, nem que exista uma “técnica” da imagem. Como
se lê na República: “nós definimos o imitador (mimetés) como aquele que produz imagens
(eídola)” (599d3). Portanto, a imagem é duplamente degradada, pois se os fenómenos são
uma degradação do Ser, a imagem é uma imitação dos “fenómenos”, ou seja, uma segunda
degradação. Se a imagem pode ser o efeito de uma techné, a técnica só se autonomiza
quando escapa ao “retard en verre” que toda a imagem implica10. Apesar disto, a divisão
platónica entre efémero e eterno, entre fenómeno e ideia, corresponde a uma “anamorfose”
da divisão originária da “imagem”. Daí que somente a partir de “imagens” como as da
“caverna” possa Platão rarificar as imagens míticas, senão mesmo destruí-las.
Lumina - Facom/UFJF - v.4, n.1, p. 11-28, jan./jun. 2001 - www.facom.ufjf.br
cela veuille dire quelque chose - pour vous apercevoir du contenu d’un
champ ou d’une pièce, que vous obtenez le même résultat en en manoe-
uvrant un tout petit morceau, de même n’importe quel petit morceau de
l’area striata sert au même usage, et se comporte comme un miroir.
Toutes sortes de choses à l’intérieur du monde se comportent comme
miroirs16.
Apesar de longa trata-se de uma passagem instrutiva. De facto, do ponto de vista da
divisão originária que as imagens iniciam não há diferença essencial entre “natureza” e
“consciência”, entre “interior” e “exterior”, todos imersos num espaço único, que só a
imagem pode abrir.
As imagens no início são a “conversa” da matéria consigo mesma, e por etéreas que
apareçam as imagens, elas são “sublimações” dos estados pulverizados da matéria, eflúvios
desta, não apenas da vista, mas do olfacto, etc. Todo o mistério está em romper a conti-
nuidade e opacidade do “real” ou da “matéria”, com a própria matéria. No soneto de
Baudelaire sobre as “correspondências” isso é claro: “os perfumes, as cores e os sons
conversam”, “tendo a expansão das coisas infinitas,/como o âmbar, o almíscar, o benjoim
e o incenso/que cantam os transportes do espírito e dos sentidos”17. Ao mesmo tempo,
ruptura e continuidade, continuidade da ruptura, que tem de ser permanentemente redivi-
dida. Não é isso mesmo que a obra de Helena Almeida nos incita a ver? Que o incenso
signifique hoje algo de teológico é porque é possível construir mundos sobre estas imagens,
mas também porque é possível recuperá-las na sua “inocência” primeira. Matérias como
reflexos, espelhismos, ecos e miragens. Só numa ontologia idealista se trata de “cópias” ou
“imagens”. Como se verifica com Baudelaire, as idealidades são outros estados da matéria,
a matéria em todos os seus estados.
O espelhamento, os ecos, os perfumes e sublimações, tudo espelhismos de uma
matéria sem espelhos, mas que são facialmente extraíveis de dentro dela. O espelho é a
máquina arcaica por excelência, contendo todas as máquinas “futuras”. Mas o primeiro
efeito é de um multiplicação infindável. Imaginemos uma coisa objecto A que ao espelhar-
se cria um objecto virtual A’, que é ao mesmo tempo A e à (não-A), sem por isso ser uma
simples privação ou mera parte de A. Trata-se de uma “coisa”, eventualmente, um
“objecto”, pois a sua presença, mesmo que efémera, apesar de ter permanecido uma
infimidade, tem a fatalidade de alguma vez “ter sido”. Daí à sua fixação pela linguagem (o
“mito”, por exemplo) ou outra máquina qualquer, como a pictórica ou a fotográfica, vai um
passo, e nem o mais decisivo. A fixação humana varia entre ser testemunho ou ser
mnemotécnica, tendo ambas a mesma raiz. Depois de aparecer no mundo, nem que seja
virtualmente, surge ao mesmo tempo a possibilidade de o fixar, criando novos “objectos”,
que se separam e destacam do continuum da Physis18.
Percebe-se, assim, apesar da enorme evidência do espelho, que este é sempre
segundo, é uma mecânica para produzir artificialmente o reflexo. Mas antes dele temos de
pensar a linguagem, o mito e, em geral, a poesia. O conflito entre a poesia e o óptico é sinal
de uma catástrofe. Quase se poderia dizer que miragens, ecos, cheiros, como a famosa
Madeleine de Proust, testemunham essa uma primeira mnemotécnica, de importância
crucial. Mas na mnemotécnica está à espera a técnica. Daí que o grande salto técnico acabe
por ser a fixação, a permanência dos reflexos. Temos nessa capacidade para fixar, para
produzir a permanência, a origem da “técnica”, mas também todo o pensamento
especulativo. A máquina elementar é, então, o espelho, e no fundo toda a superfície
espelhante. Mas a sua capacidade para “reproduzir” depressa será capturada pela técnica do
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iniciação, de começo, onde “são sólidas. Espaçosas”. De onde lhes provém a solidez e
extensão? Das próprias coisas que elas “recobrem” imperceptivelmente. As imagens no
início são as próprias coisas a que elas se colam imperceptivelmente, mas que alteram. A
poesia é essa máquina de alterar, que cria outros espaços e extensões, impossíveis mas
necessários. Müller não se detém neste aspecto, atendendo mais à entrada em crise, em
descontrolo, das grandes imagens da história. Mas só pode haver descontrolo porque as
imagens podem “precipitar-se”, “coagular-se”, tornar-se em “forma e desilusão”, perdendo
a sua capacidade de maravilhamento. Tudo recai na mudez da fisicalidade, coisas e
“imagens”. Eis o motivo para que seja possível separar coisas e imagens. A crise que
inquieta Müller é repetida. De facto, esvaziado o “céu”, já sem deuses, fica sozinho, “sem
nenhuma imagem que o fixe”, as próprias nuvens vistas de um avião são um obstáculo,
“um vapor que nos tira a vista”. A ascensão torna-se técnica, o olhar do céu é impedido
pelas nuvens nas quais já se pôde caminhar um dia. Müller tem razão, ecoando a lição de
Mallarmé sobre o estranho empobrecimento do “azul”, mas o poeta francês ainda está hanté
pelo azul30. Nele a ausência ainda fala, o “azul” assedia porque ausente continua a acenar
no simulacro que foi, e cuja memória perdura, mesmo na sua inanidade. No fundo Müller
dá-se conta do processo nihilista, que afecta a capacidade originária das imagens, cujo
modelo é o “céu”. Contrariamente a Mallarmé, para quem nenhuma “imagem” pode abolir
o acaso, não se prende a nenhuma. O desespero de Müller tem a ver com o facto de que o
mesmo processo afecta a imagem do “comunismo”, a “imagem final”, aquela em que os
humanos se lançaram ao assalto dos céus31, com algo mais do que “aviões”, para o fazer
voltar à terra. Todo o problema é que na “imagem final” se acaba por destruir o início das
imagens.
No entanto este processo era inevitável. Precipitada sobre a terra a grande imagem,
seja a de Deus seja a do humano, ela fragmenta-se numa infinidade de pedaços. Como
conviver com tal fracturação? Trata-se de redescobrir a força de iniciar, no seio dos
fragmentos que estão esparzidos pelo “real”, perdidos entre muitos outros. Tudo se deve
iniciar, uma e outra vez, apesar desta fragmentação. A violência não assusta
excessivamente Müller, apesar da “imagem final” ser “sempre fresca” porque “lavada com
sangue”, o que perturba é ser em vão. Mas mesmo se perde o “brilho” a imagem ainda lá
está, mesmo se fragmentada pela moeda em que se trocou. Sobrevive como uma afecção do
“comum”? Brusca mudança a de Müller, com o “ideal” trocado em “miúdos”, perdido na
imensidade de fragmentos, de poemas e de corpos, que foram longamente amados, e são
agora desnecessários ou inúteis, mas que constituíram o caminho do humano, na sua indi-
gência, precisão, e finitude.
A imagem no início é a poesia, e tal como as imagens da história também os poemas
são fracturados. Não era isso necessário, quando a inteireza das imagens se volta contra o
gesto que as cria e as fixa? Se calhar é mesmo a única maneira de, por entre as linhas, se
continuarem a ouvir os “lamentos”, e a exigência de alegria que eles impõem. No fundo
cada “corpo”, cada “fragmento” carrega o peso das imagens tornadas pedra, que forçam a
continuar. O grande poema é fracturado para que o maravilhamento que é possa encontrar
outras vias. A imagem que se inicia como resposta ao terror, acaba por contê-lo dentro de
si. Entrado em crise esse terror dissemina-se por todo o lado, não havendo sangue que o
possa justificar. Se, como diz Müller, “o Belo significa o possível fim do Horror”, é porque
as imagens “espaçosas e sólidas” não são abolíveis no fim da história, mas porque
prometem a história ao “belo como fim do terror”. Para isso era preciso pulverizar as
“imagens” tornadas pedras, e na pedra encontrar a beleza. O nihilismo é necessário para
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abalar o arco que vai da imagem inicial à imagem final. A sua refracção em cada um dos
pontos. A beleza não vem da recomposição da “imagem final”, nem do seu ocultamento
nos fragmentos, onde apesar de tudo ainda brilharia. Onde afinal concorreria com outras
imagens, grandes e pequenas. Em última instância é a poesia que recolhe a fracturação do
“azul” e do “comum”. Mas a beleza está não no poema, nem no azul, nem no comum, mas
na poesia. A poesia está por todo o lado, onde menos se pode reconhecê-la. É ela que salva
todos os possuídos pela falta da imagem ou os embriagados pelo excesso delas. A poesia é,
assim, política, porque afecta o “comum”, cria as formas do “comum”. É nestas que o
humano tem lugar.
Claro que quando se fala de “poesia” estamos menos a referir-nos à escrita que ao
gesto livre que a “imagem” ilumina, que divide as imagens contra si próprias, respondendo
a um terror que agora é humano, demasiado humano. É a poesia que anima os esforços de
artistas como Tony Oursler, Artur Omar, Jimmie Durham ou Salvator Puglia..., mas
também os de todos nós, que não temos mais alternativa de que viver poeticamente ou viver
mal.
As fotografias de Inês Gonçalves, aqueles pobres objectos de museu, as imagens
arquivadas, os corpos modelados e como que torturados, as máquinas de ver, fazem apelo à
primitividade de um olhar, que no começo dos tempos se deixou abismar por ténues
reflexos, por espelhismos de todo o género. Na sua pálida beleza lutam contra a
ingenuidade de uma mão que mergulha na água para agarrar a flor-narciso que aí está,
fazendo-a desaparecer. Toda a história foi o desenvolvimento deste gesto, tornado
maquinal. Trata-se de abrir a mão...
Notas
imagens eram controladas rigidamente, pela imagem de Deus por exemplo, enquanto
hoje parecem circular “livremente”. Mera ilusão...
5. No livro Arbeit am Mythos, Blumenberg dá plausibilidade à ideia de que tudo começa
pelo “mito” que instaura um âmbito que varia entre a distância, base de toda a
representação, e a proximidade - o “rígido realismo da imediaticidade” (sic) -, no
interior das quais o terror do “real” é “contido”. Num contexto aproximável diz Adorno
que “toda a arte regista o medo primordial como um sismógrafo”, ADORNO, Theodor
W. (1970) - Aesthetic Theory, Londres, Routledge, 1984, p. 185.
6. Continua Vernant: “O que é fundamental no mito do nascimento do Universo é que a um
dado momento se abra o espaço e o tempo se desbloque”. Cf. Jean-Pierre Vernant
(2000) - “Il était une fois la Grèce”, entrevista de François Busnel in Le Magazine
Littéraire, Paris, 383, janvier 2000, pp. 98-103.
7. Talvez isso explique a permanente ameaça do retorno do mito na razão que a torna
maximamente violenta, como o mostra Ernst Cassirer e Walter Benjamin.
8. A noção de “natureza” constitui um operador decisivo deste processo de “abolição” da
exterioridade. A ideia moderna de domínio da natureza, que remonta pelo menos a
Bacon, implica a sua interiorização na cultura.
9. Nestor-Louis Cordero, “Le statut de l’image”, Anexo II de Le Sophiste (Platão), GF-
Flammarion, Paris, 1993, p. 285.
10. Trata-se de uma conhecida e algo enigmática formulação de Duchamp que a propõe
para substituir a palavra “quadro”. Como ele diz: “Tableau sur verre devient retard en
verre - mais retard en verre ne veut pas dire tableau sur verre”. No entanto, se no quadro
a tela é invisível para ficar a apenas a “imagem”, o vidro não é a abolição da matéria
para ficar a “pura” imagem que a tela lesava. Deverá entender-se que no “retard en
verre” matéria e imagem são inextricáveis. Mais uma vez se verifica que algumas
matérias são melhores para fazer pensar do que outras... A técnica emerge da separação
entre imagem e matéria.
11. Não pretendemos dizer que as divisões míticas, teológicas e racionais (e finalmente
técnicas, com o código binário dos computadores) são idênticas. Pretende-se, isso sim,
apreender na sua plausível origem comum a explicação das suas diferenças.
12. E de facto só pode haver “deslocação” ou anamorfose sob pena de desaparecimento do
Ocidente, naquilo que tem de mais próprio.
13. Nomeadamente em LACOUE-LABARTHE, Philippe - L’Imitation des Modernes,
Paris, Galilée, 1986.
14. A relação entre dynamis e energeia, entre actualidade e potencialidade, a que
Aristóteles dará uma primeira configuração essencial, é essencial para a emergência da
técnica, instaurando a lógica do controlo, que é sempre o trabalho entre dois níveis
diferentes. Agamben procura mostrar a complexidade da concepção aristotélica da
potencialidade, salvando-a de uma visão meramente “técnica”. Cf. Giorgio Agamben -
“On Potentiality” in Potentialities, Stanford, Stanford University Press, 1999, pp.117-
184. Do nosso ponto de vista serve pouco querer corrigir o platonismo ou o
aristotelismo históricos, pois o que “fez história” foi a concepção “vulgar”. A
necessidade de reinterpretá-la tem a ver com as urgências do presente, mas temos então
outros platonismos ou aristotelismos...
15. A temática dos visual studies cresceu desmesuradamente nos últimos anos,
nomeadamente na academia norte-americana. Sobre este assunto ver Visual Culture
Reader editado por Nicholas Mirzoeff , New York, Routledge, 1998.
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