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Lumina - Facom/UFJF - v.4, n.1, p. 11-28, jan./jun. 2001 - www.facom.ufjf.

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“AS IMAGENS NO INÍCIO”


José A. Bragança de Miranda*
> A imagem é o começo do “humano”. Conseqüências da idéia de que sem as imagens somos meros joguetes
de “forças” que por todo o lado irrompem, dobrando tudo à sua passagem. As próprias coisas são, por uma
lógica inapelável, “imagens de imagens” que estão sempre para além dessa divisão originária, que é ilusória.
Mas é por tal ilusão que tudo começa, pelo menos desde os gregos.
Imagem - Comunicação - Grécia – Literatura

> The image is the beginning of the “human”. Consequences of the idea that without images we would only
be the playthings of “forces” that break through from all sides and bend everything on their way. As a result
of an inevitable logic, things are “images of images” which are always beyond this original and illusory
division. It is, however, through such an illusion that everything starts, at least since the Greeks.
Image - Communication - Greece - Literature

Estávamos atentos às matérias e sopros do


mundo expressos em imagens e vozes autónomas.
Herberto Helder

1. Retiro uma infinidade de consequências da ideia de que sem as imagens somos os


meros joguetes de “forças” que por todo o lado irrompem, dobrando tudo à sua passagem.
Quem não sentiu a violência verde das raízes que dobram o alcatrão das estradas, ou os
musgos que vão destruindo as cantarias de pedra? E se as pedras se liquefazem ao som das
bacantes é, como disse Nietzsche, porque desde que haja uma pedra haverá uma imagem.
Forças contra forças, todas comungando de uma primitividade que incessantemente retorna;
que, por exemplo, alimenta a ficção de James Ballard, nomeadamente em The Drowned
World 1, autor de uma escrita obcecada por essa experiência arcaica e o seu retorno
inevitável. Em suma, a “vida” é um vórtice de forças que tudo nivelam, tal como uma
camada de neve com todas as diferenças com uma imensa película branca. A “imagem”
existe para se poder conviver com a violência de tais forças; ela é a forma em que a vida se
singulariza, se torna vivível e “humana”.
Afirmar que a imagem é o começo do “humano” pode parecer bizarro. A estranheza
provirá talvez de mal podermos reconhecer o que é uma “imagem”, apesar de todo
palavreado que a envolve. A imagem antes de ser uma “cópia” é uma divisão, e um efeito
de divisão. A imagem é, assim, uma lesão primordial da opacidade das “coisas”. A
opacidade é dissipada pela divisão que extrai imagens leves da “densidade” da matéria.
Acrescenta-se a ela, desmultiplicando-a. Somente nesta perspectiva se pode entender Fichte
quando afirmava que
só existem as imagens: elas são a única coisa que existe, e têm
conhecimento de si mesmas à maneira das imagens - imagens que
passam, flutuantes, sem que haja nada diante de quem passar; que se
relacionam umas às outras através de imagens de imagens.
Aliás, as próprias coisas são, por uma lógica inapelável, “imagens de imagens” que
estão sempre para além dessa divisão originária. É com a imagem que, secretamente, se
origina a história, ao introduzir-se no estado de coisas, que se consumiria indefinidamente
no esforço inglório contra a entropia universal, se não fosse propulsado pela “imagem”.
De um ponto de vista rigorosamente “materialista” esta divisão é ilusória. Mas é por
tal ilusão que tudo começa, caracterizando para o melhor ou o pior cultura ocidental, pelo
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menos desde os gregos. Se dizemos que é “ilusória” é porque nela assenta o “vazio”
essencial em que se funda a liberdade humana. Toda a metafísica, herdeira tardia da
teologia2, se alimenta dessa cisão, mesmo quando, na sua maioria, a desejam abolir3. Uns
para fundir-se com a “natureza”, outros para “concluir” a história, outros para realizar a
“imanência absoluta”, outros ainda para serem “orientais”....
O humano está em causa sempre que esta divisão originária é cancelada4. Dizíamos
que esta divisão era ilusória, diremos agora que é um acrescento necessário. A definição
grega do homem como zoon politikon dá conta desse acrescento, em si mesmo enigmático.
Eis um animal e algo mais. A imagem tem a ver com esse “algo mais”. Percebe-se, assim, a
hipótese do filósofo alemão Hans Blumenberg, que sustenta que o humano só é possível a
partir de uma fragmentação do “absolutismo do real”5, cuja melhor imagem são as longas
noites pré-históricas, sem sol nem lume, e o terror sem fim que originam. A luz do sol é um
dos operadores, e bem importante, dessa divisão, mas porque é retomada por uma outra
“luz”, a do mito, que repete e cria outra maneira de dividir o “contínuo” ameaçador da
natureza, dando-lhe “nomes”, desagregando-a, inventando deuses, tornando conhecido o
desconhecido, ou, pelo menos, tornando-o cognoscível (e controlável). Como diz Jean-
Pierre Vernant, no mito grego da origem do universo “é preciso que advenha alguma coisa
que permita criar o espaço, isto é, um intervalo...”6. A divisão onde se origina a
experiência humana abre, portanto, a “presença” ou a “natureza”, instalando todo um jogo
de forças e possibilidades, cujos efeitos se prolongam até aos nossos dias.
O mito é a primeira forma de registo desta divisão originária, embora a narrativa
mítica procure desde logo anulá-la. Mas enquanto sismógrafo do terror inicial o mito repete
inevitavelmente a divisão em que se origina. Aquém do mito está a imperceptível divisão
operada pela imagem. Oculta no mito de Narciso está a experiência elementar do
espelhismo e dos reflexos, que se desmultiplica nesse mito e em todos os outros. A própria
Razão, que se inicia pela vontade de expurgar as “imagens” em que se fundava o mito, traz
em si as marcas deste processo7, assumindo o seu trabalho de “controle” da existência e,
acima de tudo, da “exterioridade”. A metafísica grega constrói-se por um trabalho
infindável em torno dessa divisão, visando cancelá-la, assumindo o controlo total da
“existência” e, acima de tudo, da “exterioridade”8.
Sem podermos ir muito mais longe na nossa demonstração, diremos apenas que na
separação platónica entre “ideias” e “fenómenos”, que instaura a divisão essencial da
metafísica e o seu processo contra o existente, ecoa ainda a divisão originária com que a
imagem se inicia. Somente nesta perspectiva se percebe inteiramente a crítica de Platão à
“imagem”, como falso eidos, como ontologicamente falsa. Ela é “aspecto”, algo
“incorporal”, mas que pode ganhar corpo. Na interpretação de Nestor-Louis Cordero, “a
imagem pertence ao domínio do não-ser”; “a imagem estava ‘em falta’ de ser”9. Mas isso
não impede que ela possa ser “produzida”, nem que exista uma “técnica” da imagem. Como
se lê na República: “nós definimos o imitador (mimetés) como aquele que produz imagens
(eídola)” (599d3). Portanto, a imagem é duplamente degradada, pois se os fenómenos são
uma degradação do Ser, a imagem é uma imitação dos “fenómenos”, ou seja, uma segunda
degradação. Se a imagem pode ser o efeito de uma techné, a técnica só se autonomiza
quando escapa ao “retard en verre” que toda a imagem implica10. Apesar disto, a divisão
platónica entre efémero e eterno, entre fenómeno e ideia, corresponde a uma “anamorfose”
da divisão originária da “imagem”. Daí que somente a partir de “imagens” como as da
“caverna” possa Platão rarificar as imagens míticas, senão mesmo destruí-las.
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De maneira perversa, querendo abolir as “imagens” míticas, Platão abre caminho à


instalação do “dispositivo óptico” ocidental que, trabalhando internamente todas as divisões
e binarismos, se expressa “cinematicamente”. A divisão metafísica que, contrariamente à
pluralidade do mito, é dual, hierarquiza uma série de outras divisões, complexamente
articuladas: presença e ausência, visível e invisível, original e cópia, possível e actual, etc.
Enquanto a teologia católica privilegiava a divisão entre visível e invisível, que sobredeter-
minava todas as outras, os modernos irão acentuar a lógica pura dos possíveis, procurando
reger as passagens entre “real” e “possível”11. Nas suas diversas formas estamos perante
uma estrutura de longa duração que atravessa toda a história. Aliás, mesmo o anti-
platonismo de Marx, Stirner e Nietzsche é ainda determinado pelo platonismo, que nas suas
anamorfoses é sempre o fundamento de todas as “inversões” ou deslocações12.
Em suma, no espaço aberto pela divisão metafísica actuam estratégias de controlo,
que Lacoue-Labarthe descreveu como uma “mimetologia generalizada”13, estratégias essas
que procuram cancelar a divisão em que tal espaço se funda. A “metafísica” baseia-se numa
divisão que, de imediato, procura cancelar. Alias, só é enunciável através desse
cancelamento, cuja realização metafísica se esgota imediatamente, mas só é realizável no
“mundo” através de um trabalho contra a divisão, que o divide. A queda cristã, ao mesmo
tempo que lança a história no caminho da redenção, de uma unidade perfeita, instala uma
divisão do mundo para melhor poder realizar o seu projecto. Ou seja, tem de “inventar”
uma divisão para acabar com todas as divisões. Neste entramado de ambiguidades o que
está em acto, de facto, é um esquema de controlo, modelo de toda a técnica ocidental, que
se acha, assim, constituído desde a metafísica grega14. Daí que detectemos desde sempre,
na nossa cultura, um desejo de imediaticidade, que é o fundamento de toda a mística, sendo
ele que alimenta todo o desejo de “fusão”, todo o redentismo teológico e boa parte das
utopias políticas. O cruzamento da técnica com este desejo constitui a ameaça que desde
sempre impende sobre nós.

2. Para haver desejo de “reunião” ou de “fusão” foi necessária primeiramente uma


divisão mais originária que nenhuma “imagem” esgota. De facto, só há imagens no plural, e
nem todas dependem da visão ou do olhar. É preciso um outro ponto de partida, que a
imagem permite perceber, porque também é afectado por ele e é um efeito dele.
Comecemos apesar de tudo por ela, pois a sua análise permitirá compreender o que está em
causa. Isto implica um afastamento radical relativamente às actuais tendências que
privilegiam a visão ou “olhar” (“gaze”) e, em geral, a percepção15.
Originária, dissemo-lo já, é somente a divisão, sendo dela que tudo depende. E a
divisão originária, materialmente considerada, é a da matéria ela mesma quando se reflecte
ou desdobra. É a divisão da Physis por reflexo, ainda antes de haver qualquer “sujeito” ou
“consciência”. O que faz a superioridade de Lacan sobre a infinidade de conversa sobre a
imagem é ter-se dado conta disso mesmo. Como ele diz:
Une image, ça veut dire que les effets énergétiques partant d’un point
donné du réel - imaginez-les de l’ordre de la lumière, puisque c’est ce qui
fait le plus manifestement image dans notre esprit - viennent se réfléchir
en quelque point d’une surface, viennent frapper au même point
correspondant de l’espace. La surface d’un lac peut aussi bien être
remplacée par l’area striata du lobe occipital, car l’area striata avec ses
couches fibrillaires est tout à fait semblable à un miroir. De même que
vous n’avez pas besoin de toute la surface d’un miroir - si tant est que
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cela veuille dire quelque chose - pour vous apercevoir du contenu d’un
champ ou d’une pièce, que vous obtenez le même résultat en en manoe-
uvrant un tout petit morceau, de même n’importe quel petit morceau de
l’area striata sert au même usage, et se comporte comme un miroir.
Toutes sortes de choses à l’intérieur du monde se comportent comme
miroirs16.
Apesar de longa trata-se de uma passagem instrutiva. De facto, do ponto de vista da
divisão originária que as imagens iniciam não há diferença essencial entre “natureza” e
“consciência”, entre “interior” e “exterior”, todos imersos num espaço único, que só a
imagem pode abrir.
As imagens no início são a “conversa” da matéria consigo mesma, e por etéreas que
apareçam as imagens, elas são “sublimações” dos estados pulverizados da matéria, eflúvios
desta, não apenas da vista, mas do olfacto, etc. Todo o mistério está em romper a conti-
nuidade e opacidade do “real” ou da “matéria”, com a própria matéria. No soneto de
Baudelaire sobre as “correspondências” isso é claro: “os perfumes, as cores e os sons
conversam”, “tendo a expansão das coisas infinitas,/como o âmbar, o almíscar, o benjoim
e o incenso/que cantam os transportes do espírito e dos sentidos”17. Ao mesmo tempo,
ruptura e continuidade, continuidade da ruptura, que tem de ser permanentemente redivi-
dida. Não é isso mesmo que a obra de Helena Almeida nos incita a ver? Que o incenso
signifique hoje algo de teológico é porque é possível construir mundos sobre estas imagens,
mas também porque é possível recuperá-las na sua “inocência” primeira. Matérias como
reflexos, espelhismos, ecos e miragens. Só numa ontologia idealista se trata de “cópias” ou
“imagens”. Como se verifica com Baudelaire, as idealidades são outros estados da matéria,
a matéria em todos os seus estados.
O espelhamento, os ecos, os perfumes e sublimações, tudo espelhismos de uma
matéria sem espelhos, mas que são facialmente extraíveis de dentro dela. O espelho é a
máquina arcaica por excelência, contendo todas as máquinas “futuras”. Mas o primeiro
efeito é de um multiplicação infindável. Imaginemos uma coisa objecto A que ao espelhar-
se cria um objecto virtual A’, que é ao mesmo tempo A e à (não-A), sem por isso ser uma
simples privação ou mera parte de A. Trata-se de uma “coisa”, eventualmente, um
“objecto”, pois a sua presença, mesmo que efémera, apesar de ter permanecido uma
infimidade, tem a fatalidade de alguma vez “ter sido”. Daí à sua fixação pela linguagem (o
“mito”, por exemplo) ou outra máquina qualquer, como a pictórica ou a fotográfica, vai um
passo, e nem o mais decisivo. A fixação humana varia entre ser testemunho ou ser
mnemotécnica, tendo ambas a mesma raiz. Depois de aparecer no mundo, nem que seja
virtualmente, surge ao mesmo tempo a possibilidade de o fixar, criando novos “objectos”,
que se separam e destacam do continuum da Physis18.
Percebe-se, assim, apesar da enorme evidência do espelho, que este é sempre
segundo, é uma mecânica para produzir artificialmente o reflexo. Mas antes dele temos de
pensar a linguagem, o mito e, em geral, a poesia. O conflito entre a poesia e o óptico é sinal
de uma catástrofe. Quase se poderia dizer que miragens, ecos, cheiros, como a famosa
Madeleine de Proust, testemunham essa uma primeira mnemotécnica, de importância
crucial. Mas na mnemotécnica está à espera a técnica. Daí que o grande salto técnico acabe
por ser a fixação, a permanência dos reflexos. Temos nessa capacidade para fixar, para
produzir a permanência, a origem da “técnica”, mas também todo o pensamento
especulativo. A máquina elementar é, então, o espelho, e no fundo toda a superfície
espelhante. Mas a sua capacidade para “reproduzir” depressa será capturada pela técnica do
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“produzir”. Do espelho arcaico, ao espelho da Branca de neve que é activo, ao espelho de


Alice que entra dentro dele, até à perda do reflexo no espelho do Erasmo de E. T.
Hoffmann, vai todo um percurso que se funda na elementaridade da imagem iniciante19

3. Na divisão originária têm início todas as imagens que, em contra-golpe, a fixam.


É no início da “imagem” que podemos apreender a origem das “máquinas”. Como diz o
grande poeta cubano Lezama Lima: “No hay nada más que el cuerpo de la imagen, y la
imagen del cuerpo. La imagen al fin crea nuestro cuerpo y el cuerpo segrega imagen... Y lo
único que puede captarlo es la poesía...”20. Lezama refere algo de essencial: o humano está
na encruzilhada da sua invenção pela “imagem” e prolifera numa infinidade de imagens,
com que “abre a história”21. Mas não dá suficientemente conta de que a “captação” não é
apenas operada pela poesia, mas que “entre” reflexo e coisa se instaura um espaço, onde se
podem introduzir e extrair “máquinas”22. As máquinas não esgotam a técnica, embora
sejam um efeito desta. A técnica é o controle das passagens, entre “imagens” e “coisas”,
“real” e “potencial”. Techné e Poiesis estão em conflito e têm afinidades. Diria que a
techné tende a ser uma poiesis que controla as “ligações”, as passagens, instaurando
trajectórias conhecidas e repetitivas, enquanto a poiesis é uma techné que desconhece os
caminhos, e é única, singular23.
Deste ponto de vista as “imagens” fixadas por aparelhos ópticos não se diferenciam
de qualquer outra forma de fixação. Em última instância, “espelhar” imagens, sons ou
cheiros não é essencialmente distinto. Só a nossa metafísica opticamente orientada impediu
de reconhecer este facto. E a própria “imaginação” romântica está ainda na sua
continuidade. Por exemplo, no Prelúdio de Wordsworth lê-se:
Mas não raro ele fica perplexo e nem sempre pode separar a sombra da
substancia, distinguir as rochas e o céu, os montes e as nuvens, reflectidos
nas profundezas da água clara, das coisas que habitam ali e têm ali sua
verdadeira morada. Ora ele é atravessado pelo reflexo de sua própria
imagem, ora por um raio de sol, e pelas ondulações vindas não sabe de
onde…
E é por isso que no que vê, nas imagens, ele “imagina muitas outras” (ib.). O
privilégio dado à imaginação tem a ver com a possibilidade de se criarem “imagens” que
nunca existiram, ou então com o “invisível”. Porém, as novas “imagens”, como o revelam
hoje as gráficas dos computadores, se nunca existiram, são produzidas por um aparelho
que, esse, existe desde os princípios e que hoje se formaliza crescentemente. Não se trata de
“símbolos” ou “metáforas” apenas, apesar de o serem também, mas de algo que é
“produzido” pela máquina que a superfície da água contém ocultamente. A superfície da
água é uma extractora de imagens, de “fora” de nós e de “dentro” de nós, que irrompem,
rompem mesmo, com as imagens extraídas, fazendo delas outra coisa. Não são “símbolos”
nem metáforas, são afloramentos do “espelhável” ou “registável”. E desde que aflorem são
sempre realizáveis.
Ao produzir novos seres, mas agora isolados, e extraídos da grande cadeia da
physis, que vagueiam nomadicamente por todo o lado, deduz-se de imediato o problema da
“ligação”, a “erótica” que constitui o “humano” em torno de um enigmático projecto
erótico. Ligações dos corpos, das propriedades, dos objectos, e, em geral, das “imagens”,
eis o que gere essa “erótica”. O mundo que permite as imagens está obcecado pelo
proliferar das imagens naturais, que a sua primeira “nomeação” pagânica “controla”
minimamente, mas também de outras imagens que derivam destas. Inventados os “deuses”
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para fragmentarem o continuum da natureza, produz-se anarmorficamente “Deus” e todas


as “imagens” da totalidade, encarregadas de um bom ordenamento dos “reflexos”, das
“especulações”, dos ecos, etc. As imagens da “totalidade” são, evidentemente, imagens
particulares que se absolutizaram, na vontade de abolir a divisão24. Não admira, portanto,
que a divisão seja a origem de toda a crise. Não por acaso o Padre António Vieira descrevia
o espelho como “diabo mudo”. Seria possível distinguir entre máquinas divinas e máquinas
diabólicas? No fundo todas elas são um efeito da divisão, sendo todas “diabólicas” no
sentido de Vieira. Ora, Deus é um efeito da mesma divisão de onde saíram as máquinas.
Como disse Lacan: “Certains sont forts inquiets de me voir me référer à Dieu. C’est
pourtant un Dieu que nous saisissons ex machina, à moins que nous n’extrayons machina
ex Deo”25. A passagem do Deo ex machina para a machina ex Deo corresponde à crise dos
processos de “framing”, que constituíam os espaços do “aparecer” aceitável. Estamos, hoje,
a assistir à crise dos framings históricos...
Se durante toda a história as imagens da totalidade conseguiram controlar a
eflorescência do “imaginário”, apesar de ameaçadas por duplos, fantasmas, e demónios de
todo o tipo, é porque se conseguiu estabilizar, ordenar, classificar os “reflexos”,
primeiramente como “imagens”, seguidamente como escrita, depois como registo do som
que o gramofone revolucionou. A oposição metafísica ao movimento, ao devir dos
fenómenos, é decisiva neste aspecto. Com efeito, qual é a origem do “movimento”, quando
não se quer usar uma teoria do “desejo” como “falta”? Este é historicamente comprovável,
mas como surge e de onde? Ou melhor, como pode ser activado? Todo o desafio é
encontrar uma resposta lógica. O movimento é o da Physis que faz com que o permanecer
ou desaparecer seja algo intensamente dramatizável. A mudança dos dias e das noites é
sinal disso. Mas também a finitude, o envelhecimento, a morte. Neste quadro entende-se
que na metafísica ocidental o problema não seja o movimento, mas a “paragem”26. E não é
daqui que o desejo provém, como vontade de deixar de desejar e acabar assim o
movimento?
No fundo são estas “imagens” de imagens (as “ideias” platónicas, Deus, etc..) que
estiveram encarregadas de controlar a “cornucópia” aberta pela fixação e produção de
novos seres, como imagens, objectos e corpos, bem como a sua mobilização. Desde sempre
que as imagens tiveram de ser controladas, porque enquanto fragmentação do continuum do
“real” elas descontrolam os nossos sistemas de enquadramento, de framing. Trata-se de um
fenómeno bem descrito por Maine de Biran, de maior alcance que o meramente
psicológico:
Dans le sommeil de la pensée, lorsque toute faculté active de combinaison
est suspendue, diverses images ou fantômes viennent assiéger le sens
intérieur, s’y succèdent, s’y remplacent et s’y agrègent de toutes les
manières et forment des tableaux mobiles, irréguliers, disparates dans
toutes leurs parties, sans plan, ni liaison, sans unité de sujet ni d’objet.
As instâncias de controlo proliferaram historicamente, pluralizando a tentativa
“ontoteológica” para controlar esses novos entes. A domesticação das imagens alimentou
boa parte de outras domesticações e interdições. Censura, pornografia, critérios estéticos,
todos colaboram neste trabalho de controlo.
O “desejo” de parar, de impedir a deriva dos espelhismos, é ambivalente, pois
metafisicamente ou teologicamente só se pode parar numa “imagem” absoluta. A abertura
do existente às possibilidades místicas da unidade absoluta e da reconciliação exige um
movimento, sempre entendido como provisório, uma espécie de cinemática generalizada27.
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A função do “desejo” como imagética da propulsão é historicamente evidente, mas


demasiado parcial. O poder seria, talvez, a melhor explicação pela sua capacidade de fazer
“repetir” uma dada “imagem” ou “fotografia” do real. Daí a mobilização generalizada dos
corpos, das máquinas e das formas, que trabalham a paragem para melhor acelerar tudo.
Parece no entanto mais correcto considerar o cinematismo como o efeito da imagem
teológica (e metafísica), que faz de todo o existente um “veículo” para a salvação ou além.
Estranha história, a nossa, propulsada por uma imagem à frente que se origina bem atrás.
Nos nossos dias as imagens atingiram sua coisidade absoluta, e são controladas
como gifs, tiffs, bmps, etc. E, em contrapartida, as coisas ficaram elas próprias
enfraquecidas. Como diz Francis Ponge: “Quelle étonante servilité!! Les choses sont sages
comme des images. À la lettre: comme des images!”28. Infelizmente as imagens estão a
tornar-se tão dóceis como as “coisas”. Com o que se perdem umas e outras.

4. Falhada a teologia, abalada a metafísica, ultrapassada a história, o cinematismo


actual é alimentado pelo automatismo da técnica. Muito depende da maneira de lhe
responder. Recordemos aqui uma recomendação de de Francis Ponge:
Vous l’avez compris, chers architectes, c’est à sa demeure, Dieu merci, et
non à lui-même, que doivent être attachés les appareils que l’homme sait
s’inventer. Or ces appareils sont devenus électriques. Concluez.
A tristeza de Ponge com a perda de força das “coisas” só é compreensível porque
compartilhamos ainda a memória de figuras essenciais, nas quais se reflecte a
afirmatividade com que a divisão originária incita o humano. No cinematismo actual está
em causa uma “fusão” sinteticamente produzida, uma imediaticidade dentro do analítico,
que tem de ser contrariada.
É esta a lição de Heiner Müller no esplêndido poema intitulado “imagens”.

As imagens significam tudo a princípio. São sólidas. Espaçosas.


Mas os sonhos coagulam, fazem-se forma e desencanto.
Já o céu não há imagem que o fixe. A nuvem vista do
Avião: um vapor que nos tira a vista. O grou, um pássaro, mais
Nada.
Até o comunismo, a imagem final, sempre refrescada
Porque lavada com sangue tantas vezes, o dia-a-dia
Paga-lhe um salário modesto, sem brilho, cego de suor,
Escombros os grandes poemas, como corpos muito tempo
Amados e
Postos de lado agora, no caminho da espécie exigente e finita
Nas entrelinhas lamentos

Sobre ossos feliz carregador de pedra

Porque o belo significa o fim provável dos terrores29.

Como restituir principialidade às imagens, elas que se esgotaram na “história” e que


são infindavelmente recicladas pelo cinema ou a televisão? Tudo se passa como se
tivéssemos de continuar a redividir a divisão já feita. Para isso será preciso ir contra a
fixação que a história lhes deu. Eis a crise: perderam as imagens o seu estatuto inicial, de
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iniciação, de começo, onde “são sólidas. Espaçosas”. De onde lhes provém a solidez e
extensão? Das próprias coisas que elas “recobrem” imperceptivelmente. As imagens no
início são as próprias coisas a que elas se colam imperceptivelmente, mas que alteram. A
poesia é essa máquina de alterar, que cria outros espaços e extensões, impossíveis mas
necessários. Müller não se detém neste aspecto, atendendo mais à entrada em crise, em
descontrolo, das grandes imagens da história. Mas só pode haver descontrolo porque as
imagens podem “precipitar-se”, “coagular-se”, tornar-se em “forma e desilusão”, perdendo
a sua capacidade de maravilhamento. Tudo recai na mudez da fisicalidade, coisas e
“imagens”. Eis o motivo para que seja possível separar coisas e imagens. A crise que
inquieta Müller é repetida. De facto, esvaziado o “céu”, já sem deuses, fica sozinho, “sem
nenhuma imagem que o fixe”, as próprias nuvens vistas de um avião são um obstáculo,
“um vapor que nos tira a vista”. A ascensão torna-se técnica, o olhar do céu é impedido
pelas nuvens nas quais já se pôde caminhar um dia. Müller tem razão, ecoando a lição de
Mallarmé sobre o estranho empobrecimento do “azul”, mas o poeta francês ainda está hanté
pelo azul30. Nele a ausência ainda fala, o “azul” assedia porque ausente continua a acenar
no simulacro que foi, e cuja memória perdura, mesmo na sua inanidade. No fundo Müller
dá-se conta do processo nihilista, que afecta a capacidade originária das imagens, cujo
modelo é o “céu”. Contrariamente a Mallarmé, para quem nenhuma “imagem” pode abolir
o acaso, não se prende a nenhuma. O desespero de Müller tem a ver com o facto de que o
mesmo processo afecta a imagem do “comunismo”, a “imagem final”, aquela em que os
humanos se lançaram ao assalto dos céus31, com algo mais do que “aviões”, para o fazer
voltar à terra. Todo o problema é que na “imagem final” se acaba por destruir o início das
imagens.
No entanto este processo era inevitável. Precipitada sobre a terra a grande imagem,
seja a de Deus seja a do humano, ela fragmenta-se numa infinidade de pedaços. Como
conviver com tal fracturação? Trata-se de redescobrir a força de iniciar, no seio dos
fragmentos que estão esparzidos pelo “real”, perdidos entre muitos outros. Tudo se deve
iniciar, uma e outra vez, apesar desta fragmentação. A violência não assusta
excessivamente Müller, apesar da “imagem final” ser “sempre fresca” porque “lavada com
sangue”, o que perturba é ser em vão. Mas mesmo se perde o “brilho” a imagem ainda lá
está, mesmo se fragmentada pela moeda em que se trocou. Sobrevive como uma afecção do
“comum”? Brusca mudança a de Müller, com o “ideal” trocado em “miúdos”, perdido na
imensidade de fragmentos, de poemas e de corpos, que foram longamente amados, e são
agora desnecessários ou inúteis, mas que constituíram o caminho do humano, na sua indi-
gência, precisão, e finitude.
A imagem no início é a poesia, e tal como as imagens da história também os poemas
são fracturados. Não era isso necessário, quando a inteireza das imagens se volta contra o
gesto que as cria e as fixa? Se calhar é mesmo a única maneira de, por entre as linhas, se
continuarem a ouvir os “lamentos”, e a exigência de alegria que eles impõem. No fundo
cada “corpo”, cada “fragmento” carrega o peso das imagens tornadas pedra, que forçam a
continuar. O grande poema é fracturado para que o maravilhamento que é possa encontrar
outras vias. A imagem que se inicia como resposta ao terror, acaba por contê-lo dentro de
si. Entrado em crise esse terror dissemina-se por todo o lado, não havendo sangue que o
possa justificar. Se, como diz Müller, “o Belo significa o possível fim do Horror”, é porque
as imagens “espaçosas e sólidas” não são abolíveis no fim da história, mas porque
prometem a história ao “belo como fim do terror”. Para isso era preciso pulverizar as
“imagens” tornadas pedras, e na pedra encontrar a beleza. O nihilismo é necessário para
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abalar o arco que vai da imagem inicial à imagem final. A sua refracção em cada um dos
pontos. A beleza não vem da recomposição da “imagem final”, nem do seu ocultamento
nos fragmentos, onde apesar de tudo ainda brilharia. Onde afinal concorreria com outras
imagens, grandes e pequenas. Em última instância é a poesia que recolhe a fracturação do
“azul” e do “comum”. Mas a beleza está não no poema, nem no azul, nem no comum, mas
na poesia. A poesia está por todo o lado, onde menos se pode reconhecê-la. É ela que salva
todos os possuídos pela falta da imagem ou os embriagados pelo excesso delas. A poesia é,
assim, política, porque afecta o “comum”, cria as formas do “comum”. É nestas que o
humano tem lugar.
Claro que quando se fala de “poesia” estamos menos a referir-nos à escrita que ao
gesto livre que a “imagem” ilumina, que divide as imagens contra si próprias, respondendo
a um terror que agora é humano, demasiado humano. É a poesia que anima os esforços de
artistas como Tony Oursler, Artur Omar, Jimmie Durham ou Salvator Puglia..., mas
também os de todos nós, que não temos mais alternativa de que viver poeticamente ou viver
mal.
As fotografias de Inês Gonçalves, aqueles pobres objectos de museu, as imagens
arquivadas, os corpos modelados e como que torturados, as máquinas de ver, fazem apelo à
primitividade de um olhar, que no começo dos tempos se deixou abismar por ténues
reflexos, por espelhismos de todo o género. Na sua pálida beleza lutam contra a
ingenuidade de uma mão que mergulha na água para agarrar a flor-narciso que aí está,
fazendo-a desaparecer. Toda a história foi o desenvolvimento deste gesto, tornado
maquinal. Trata-se de abrir a mão...

Notas

* Professor do Departamento de Ciências da Comunicação da Universidade Nova de


Lisboa.
1. The Drowned Word é de 1962, descreve uma catástrofe pela água, integrando-se numa
série “apocalíptica” que incluirá o “ar”, o “fogo” e a “terra”. Recorrendo à velha
partição grega das forças elementares, Ballard dá-lhe novo curso. Cf. por exemplo,
Umberto Rossi - “Images from the disaster area. An apocalyptic reading of urban
landscapes in Ballard’s The Drowned World and Hello America” in SCIENCE-
FICTION STUDIES, VOL. 21, 1994, pp.81-97.
2. Com efeito, a metafísica é indissociável do surgimento de várias “críticas da metafísica”,
que vai de Marx e Nietzsche a Heidegger e seus seguidores. Com o romantismo tornara-
se mesmo uma temática popular, o que explica a profusão de metafísicas do “amor”, da
“moda”, da “arte”, etc., etc.
3. O fundo de verdade da “metafísica” e a insatisfação com a “física” e a necessidade de
dividi-la. São metafísicos aqueles que acham que a divisão já está feita desde sempre,
são críticos da metafísica aqueles que querem cancelar essa divisão. No entanto, com a
“patafísica” de Jarry ou a “physique amusante” de Duchamp, entre outras, a metafísica
ganha a sua figuração terminal. Trata-se, agora, de usar do humor para abalar as
“cristalizações” da metafísica. De facto, o humor é o verdadeiro modelo de toda a
divisão alegre, e não já desesperada.
4. A história que é aberta pelas imagens está inteiramente voltada para cancelá-las,
chegando ao “final”. O que diferencia o nosso tempo dos outros, é que anteriormente as
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imagens eram controladas rigidamente, pela imagem de Deus por exemplo, enquanto
hoje parecem circular “livremente”. Mera ilusão...
5. No livro Arbeit am Mythos, Blumenberg dá plausibilidade à ideia de que tudo começa
pelo “mito” que instaura um âmbito que varia entre a distância, base de toda a
representação, e a proximidade - o “rígido realismo da imediaticidade” (sic) -, no
interior das quais o terror do “real” é “contido”. Num contexto aproximável diz Adorno
que “toda a arte regista o medo primordial como um sismógrafo”, ADORNO, Theodor
W. (1970) - Aesthetic Theory, Londres, Routledge, 1984, p. 185.
6. Continua Vernant: “O que é fundamental no mito do nascimento do Universo é que a um
dado momento se abra o espaço e o tempo se desbloque”. Cf. Jean-Pierre Vernant
(2000) - “Il était une fois la Grèce”, entrevista de François Busnel in Le Magazine
Littéraire, Paris, 383, janvier 2000, pp. 98-103.
7. Talvez isso explique a permanente ameaça do retorno do mito na razão que a torna
maximamente violenta, como o mostra Ernst Cassirer e Walter Benjamin.
8. A noção de “natureza” constitui um operador decisivo deste processo de “abolição” da
exterioridade. A ideia moderna de domínio da natureza, que remonta pelo menos a
Bacon, implica a sua interiorização na cultura.
9. Nestor-Louis Cordero, “Le statut de l’image”, Anexo II de Le Sophiste (Platão), GF-
Flammarion, Paris, 1993, p. 285.
10. Trata-se de uma conhecida e algo enigmática formulação de Duchamp que a propõe
para substituir a palavra “quadro”. Como ele diz: “Tableau sur verre devient retard en
verre - mais retard en verre ne veut pas dire tableau sur verre”. No entanto, se no quadro
a tela é invisível para ficar a apenas a “imagem”, o vidro não é a abolição da matéria
para ficar a “pura” imagem que a tela lesava. Deverá entender-se que no “retard en
verre” matéria e imagem são inextricáveis. Mais uma vez se verifica que algumas
matérias são melhores para fazer pensar do que outras... A técnica emerge da separação
entre imagem e matéria.
11. Não pretendemos dizer que as divisões míticas, teológicas e racionais (e finalmente
técnicas, com o código binário dos computadores) são idênticas. Pretende-se, isso sim,
apreender na sua plausível origem comum a explicação das suas diferenças.
12. E de facto só pode haver “deslocação” ou anamorfose sob pena de desaparecimento do
Ocidente, naquilo que tem de mais próprio.
13. Nomeadamente em LACOUE-LABARTHE, Philippe - L’Imitation des Modernes,
Paris, Galilée, 1986.
14. A relação entre dynamis e energeia, entre actualidade e potencialidade, a que
Aristóteles dará uma primeira configuração essencial, é essencial para a emergência da
técnica, instaurando a lógica do controlo, que é sempre o trabalho entre dois níveis
diferentes. Agamben procura mostrar a complexidade da concepção aristotélica da
potencialidade, salvando-a de uma visão meramente “técnica”. Cf. Giorgio Agamben -
“On Potentiality” in Potentialities, Stanford, Stanford University Press, 1999, pp.117-
184. Do nosso ponto de vista serve pouco querer corrigir o platonismo ou o
aristotelismo históricos, pois o que “fez história” foi a concepção “vulgar”. A
necessidade de reinterpretá-la tem a ver com as urgências do presente, mas temos então
outros platonismos ou aristotelismos...
15. A temática dos visual studies cresceu desmesuradamente nos últimos anos,
nomeadamente na academia norte-americana. Sobre este assunto ver Visual Culture
Reader editado por Nicholas Mirzoeff , New York, Routledge, 1998.
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16. Cf. “Une définition matérialiste du phénomène de conscience” in Jacques Lacan - Le


Moi dans la Théorie de Freud et dans la Téchnique de la Psychanalyse, Paris, Seuil,
1978, p. 65.
17. Charles Baudelaire - As Flores do Mal/Les Fleurs du Mal, Lisboa, Relógio d’Água,
3ed, 1996, pp. 56 e 58. Não seguimos inteiramente a excelente tradução de Fernando
Pinto do Amaral, por necessidades do nosso argumento.
18. Podemos pensar em formas de fixação naturais, como as de um fóssil que imprime a
sua “imagem” numa rocha, ou os efeitos de luz sobre algumas matérias (que levou à
descoberta da fotografia), etc. Entre as fixações naturais e as artificiais está mais em
causa a portabilidade que uma distinção radical.
19. Sendo uma experiência arcaica o trabalho sobre os espelhos continua a ter efeitos
pertinentes, como o demonstram os casos de Pistoletto ou de Dan Graham. Sobre este
assunto ver À Travers le Miroir de Bonnard à Buren, catálogo de uma recente
exposição no Museu de Rouen (Musée de Beaux-Arts de Rouen, 2000).
20. José Lezama Lima - Oppiano Licario, México, Ediciones Era , 1997, p.195.
21. Diz Lezama Lima: “La imagen es la causa secreta de la historia. El hombre es siempre
un prodigio, de ahí que la imagen lo penetre y lo impulse. La hipótesis de la imagen es
la posibilidad” in Imagen y Posibilidad, Cuba, Editorial Letras Cubanas, 1981, p. 19.
22. Neste aspecto mesmo a literatura e a poesia têm uma natureza maquínica. A diferença
relativamente às máquinas-máquinas é que a poesia e a literatura, as artes em geral,
avariam a máquina que têm.
23. É esta ambiguidade que explica o mito romântico da “inspiração”, que vem não se sabe
de onde. Mas é um “erro” poético, pois qualquer obra, depois de feita, torna-se modelo,
técnica, uma “máquina” de repetição.
24. A divisão é abolida metafisicamente, mas realizada tecnicamente. Senão como se
explicaria a tendência de sempre para acelerar o “analítico” e o “separado” de modo a
criar algo “sintético”, em última instância, uma “vida sintética”?
25. Lacan, op. ult. Cit., p. 63.
26. De facto paragem e movimento comunicam subterraneamente. Poderíamos dizer que a
vontade de parar anima o imperativo de movimento, que emerge decisivamente a partir
do século XIX. Atente-se, por exemplo, na definição do vanguardismo como
“movimento” (Clemente Greenberg), nas teses de Jünger sobre a modernidade como
“época da mobilização geral”, etc., etc.
27. Walter Benjamin errou ao considerar o cinemático como algo radicalmente novo, como
“cinema”. Pelo contrário, está em curso desde os princípios da cultura. Isso explicar-se-
á pela excessiva atenção às técnicas de registo e reprodução, o que simplifica
excessivamente as coisas. De facto, temos que encarar as máquinas ao mesmo tempo
como fixadora, aspecto a que ele deu atenção quase exclusiva; também como uma
forma de projecção, lançando no espaço uma infinidade de reflexos, imagens, etc.;
finalmente como cinemática, criando o sintético por aceleramento, rapidez, etc.
28. Francis Ponge: “Parti-pris des choses” in Pratiques d’écriture ou L’Inachevement
Perpétuel, Paris, Hermann, 1984, pp. 76-78.
29. Recorremos à tradução de João Barrento in Heiner Müller - O Anjo do Desespero,
Lisboa, Relógio d’Água, 1997.
30. “Je suis hanté. L’Azur! L’Azur! L’Azur! L’Azur!” eis o verso que conclui o poema
“L’Azur” de Mallarmé. Cf. Stéphane Mallarmé, Oeuvres Complètes, Paris, Gallimard,
edição Mondor, 1945, p. 37.
Lumina - Facom/UFJF - v.4, n.1, p. 11-28, jan./jun. 2001 - www.facom.ufjf.br

31. É evidente a alusão à Marx na sua apreciação da Comuna de Paris.

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