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O Asno Podre1

[L’Âne pourri]

A Gala Eluard

Uma atividade de tendência moral poderia ser provocada pela vontade violentamente
paranóica de sistematizar a confusão.
O fato mesmo da paranóia, e especialmente a consideração de seu mecanismo como força
e poder, nos conduzir às possibilidades de uma crise mental de ordem talvez equivalente, mas em
todo caso aos antípodas da crise, na qual nos submetemos ao fato da alucinação.
Eu creio que está próximo o momento onde, por um processo de caráter paranóico e ativo
do pensamento, será possível (simultaneamente ao automatismo dos outros estados passivos)
sistematizar a confusão e contribuir ao discrédito total do mundo da realidade.

Os novos simulacros, que o pensamento paranóico pode subitamente fazer aparecer, não
somente terão sua origem no inconsciente, mas também a força de poder paranóica será colocada
a serviço do mesmo.
Esses novos simulacros ameaçadores agirão hábil e corrosivamente com a claridade das
aparências físicas e diurnas, fazendo-nos sonhar através de seu especial auto-pudor com o velho
mecanismo metafísico, com alguma coisa que de bom grado nos confundirá com a essência mesma
da natureza que, segundo Heráclito, ama se ocultar.

O mais longe possível da influência dos fenômenos sensoriais, aos quais a alucinação pode
ser considerada relacionada, a atividade paranóica se serve sempre de materiais controláveis e
reconhecíveis. É suficiente que o delírio da interpretação seja atingido ao se reassociar o sentido

1
Tradução de Michael Gartrell.
das imagens de quadros heterogêneos que cobrem um muro, a fim de que ninguém possa negar a
existência real dessa associação. A paranóia se serve do mundo exterior para fazer valer a idéia
obsessiva, com a problemática particularidade de tornar válida a realidade dessa idéia para os
outros. A realidade do mundo exterior serve como ilustração e prova, e é colocada ao serviço da
realidade de nosso espírito.
Todos os médicos estão de acordo ao reconhecer a velocidade e a inconcebível sutilidade
frequentes de um paranóico, o qual, prevalecendo os motivos e fatos que escapam às pessoas
normais, alcançado as conclusões muitas vezes impossíveis de contradizer ou rejeitar, e que em
todo caso desafiam quase sempre as análises psicológicas.

É por um processo distintamente paranóico que foi possível obter uma imagem dupla: quer
dizer, a representação de um objeto que, sem a menor modificação figurativa ou anatômica, seja
ao mesmo tempo a representação de outro objeto absolutamente diferente, desprovida ela também
de todo tipo de deformação ou anormalidade que poderia revelar alguma disposição.2
A obtençao de uma tal imagem dupla foi possível graças à violência do pensamento
paranóico que utilizou, com esperteza e habilidade, a quantidade necessária de pretextos,
coincidências, etc., aproveitando para fazer aparecer a segunda imagem que, nesse caso, assume o
lugar de idéia obsessiva.
A imagem dupla (cujo exemplo pode ser aquele da imagem de um cavalo que ao mesmo
tempo é a imagem de uma mulher) pode se prolongar, continuando o processo paranóico, a
existência de outra idéia obsessiva sendo então suficiente para que uma terceira imagem apareça
(a imagem de um leão, por exemplo), e, assim por diante até à concorrência de um número de
imagens que é limitado unicamente pelo grau da capacidade paranóica do pensamento.
Eu submeto ao exame materialista o gênero de crise mental que uma tal imagem pode
provocar; eu lhe submeto o problema, mais complexo ainda, de saber qual daquelas imagens tem
mais possibilidades de existência se admitimos a intervenção do desejo; e, também, apresento o
problema de ordem mais grave e geral, de saber se a série dessas representações permite um limite

2
No artigo original, arrangement: arranjo, distribuição espacial ou visual. (N. do T.)
ou se, como nós temos toda razão de crer, um tal limite não existe ou existe unicamente em função
da capacidade paranóica de cada indivíduo.
Tudo isso (supondo que outras razões gerais não intervenham) me permite pelo menos
propor que as imagens mesmas da realidade dependem do grau de nossa faculdade paranóica, e
que, portanto, teoricamente, um indivíduo que possui um grau suficiente da dita faculdade poderia
de acordo com seu desejo modificar sucessivamente a forma de um objeto apanhado na realidade,
como no caso da alucinação voluntária, mas com a particularidade de ordem mais grave, no sentido
destrutivo, que as diversas formas que podem agarrar o objeto em questão serão controláveis e
reconhecíveis em todo o mundo, assim que o paranóico os tenha simplesmente indicado.

O mecanismo paranóico, pela qual surge a imagem de múltiplas figurações, dá à


compreensão a chave do nascimento e origem da natureza dos simulacros, cuja fúria domina o
aspecto sob o qual se ocultam as múltiplas aparências do concreto. É justamente da fúria e natureza
traumática dos simulacros em relação à realidade e à ausência da mais leve osmose entre esta e os
simulacros, que nós concluímos a impossibilidade (poética) de todo tipo de comparação. Somente
há possibilidade de comparar duas coisas se for possível a não-existência de algum gênero de
reassociação entre elas, consciente ou inconsciente. Uma tal comparação torna palpável ilustrar
para nós, com clareza, a idéia de que somos feitos do gratuito.
É por sua falta de coerência com a realidade e por aquilo que pode haver de gratuito na sua
presença que os simulacros podem facilmente adquirir a forma da realidade e esta, por sua vez,
consegue se adaptar às violências dos simulacros, que um pensamento materialista confunde
cretinamente com as violências do real.
Nada pode me impedir de reconhecer a múltipla presença dos simulacros no exemplo das
imagens múltiplas, mesmo se um de seus estados adotar a aparência de um asno podre, coberto
por milhares de moscas e formigas; e, como nesse caso não podemos supor a significação a partir
dela mesma dos estados distintos da imagem independente da noção de tempo, nada pode me
convencer que essa cruel putrefação do asno seja outra coisa que o reflexo ofuscante e duro de
novas pedras preciosas.
E nós não sabemos se atrás dos três grandes simulacros, a merda, o sangue e a putrefação,
não se ocultam justamente a desejada “terra dos tesouros”.
Conhecedores de simulacros, nós temos aprendido há muito tempo à reconhecer a imagem
do desejo por trás dos simulacros do terror, e mesmo o despertar das “épocas de ouro” atrás dos
desonrosos simulacros escatológicos.
*

A aceitação dos simulacros, a aparência da qual a realidade se esforça penosamente a


imitar, nos conduz ao desejo das coisas ideais.
Talvez nenhum simulacro tenha criado conjuntos aos quais a palavra ideal corresponde
com mais precisão do que o grande simulacro constituinte da comovente arquitetura ornamental
do Estilo Moderno. Nenhum esforço coletivo chegou a criar um mundo de sonho tão puro e tão
problemático quanto esses edifícios do estilo moderno, os quais, à margem da arquitetura,
constituem por si sós as verdadeiras realizações dos desejos solidificados, onde o mais violento e
cruel automatismo trai dolorosamente o ódio da realidade e a necessidade de refúgio em um mundo
ideal, à maneira daquele que passa por uma neurose de infância.
Eis o que nós podemos amar ainda, o bloco impositivo desses edifícios delirantes e frios
espalhados por toda Europa, desprezados e negligenciados por todas as antologias e estudos. Aqui
está o que basta para opor os porcos dos estetas contemporâneos, defensores da execrável “arte
moderna”; e, além disso, eis o suficiente para opor toda a história da arte.

Convém dizer, de uma vez por todas, aos críticos de arte, artistas, etc., que eles não têm
esperado das novas imagens surrealistas nada a não ser a decepção, a maldosa impressão e a
repulsa. Totalmente à margem das investigações plásticas e outras “besteiras”, as novas imagens
do surrealismo irão tomar cada vez mais as formas e cores da desmoralização e confusão. Não está
longe o dia onde o quadro possuirá valor, apenas o valor único de um simples ato moral e, no
entanto, aquele de um simples ato gratuito.
As novas imagens, como forma funcional do pensamento, vão adquirir a livre tendência do
desejo, mesmo estando violentamente reprimidas. A atividade mortal dessas novas imagens pode
ainda, paralelamente às outras atividades surrealistas, contribuir à ruína da realidade, ao proveito
de tudo aquilo que, através dos infames e abomináveis ideais de toda espécie, estéticos,
humanitários, filosóficos, etc., nos traz às fontes claras da masturbação, do exibicionismo, crime e
amor.
Idealistas sem participar de nenhum ideal, as imagens ideais do surrealismo a serviço da
iminente crise da consciência, a serviço da Revolução.

Salvador Dali.3

3
Artigo publicado no periódico Surrealisme au Service de la Révolution, em julho de 1930.

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