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ÍNDICE

I. A Precessão dos Simulacras

II. História: um cenário retrô

III. Holocausto

4. A Síndrome da China

V. Apocalipse Agora

VI. O Efeito Beaubourg: Implosão e Dissuasão

VII. Hipermarcado e Hipercommodity

VIII. A implosão do significado na mídia

IX. Publicidade Absoluta, Publicidade Marco Zero

X. História do clone

XI. Hologramas

XII. Colidir

XIII. Simulacras e Ficção Científica

XIV. Os Animais: Território e Metamorfoses

XV. O restante

XVI. O cadáver em espiral

XVII. O último tango do valor

XVIII. Sobre o niilismo


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A PRECESSÃO DO SIMULACRA

O simulacro nunca é o que esconde a verdade – é a verdade que esconde o fato de que não
existe nenhuma.
O simulacro é verdadeiro.
-Eclesiastes

Se alguma vez pudéssemos ver a fábula de Borges em que os cartógrafos do Império traçam um mapa
tão detalhado que acaba por cobrir exactamente o território (o declínio do Império testemunha o desgaste
deste mapa, pouco a pouco, e a sua cair em ruínas, embora alguns fragmentos ainda sejam discerníveis
nos desertos - a beleza metafísica desta abstração arruinada testemunhando um orgulho igual ao Império
e apodrecendo como uma carcaça, retornando à substância do solo, um pouco como o duplo termina por
sendo confundida com o real através do envelhecimento) - como a mais bela alegoria da simulação,
esta fábula agora completou um círculo para nós e não possui nada além do charme discreto dos simulacros
de segunda ordem.*1

Hoje a abstração não é mais a do mapa, do duplo, do espelho ou do conceito.


A simulação não é mais a de um território, de um ser referencial ou de uma substância. É a geração
por modelos de um real sem origem nem realidade: um hiperreal. O território já não precede o mapa,
nem lhe sobrevive. No entanto, é o mapa que antecede o território - precessão dos simulacros - que
engendra o território, e se for preciso voltar à fábula, hoje é o território cujos fragmentos apodrecem
lentamente pela extensão do mapa. É o real, e não o mapa, cujos vestígios persistem aqui e ali nos
desertos que já não são os do Império, mas os nossos. O próprio deserto do real.

Na verdade, mesmo invertida, a fábula de Borges é inutilizável. Apenas a alegoria do Império,


talvez, permaneça. Porque é com este mesmo imperialismo que os simuladores actuais tentam fazer
coincidir o real, todo o real, com os seus modelos de simulação. Mas já não se trata de mapas nem de
territórios. Algo desapareceu: a diferença soberana, entre um e outro, que constituía o encanto da
abstração. Porque é a diferença que constitui a poesia do mapa e o encanto do território, a
magia do conceito e o encanto do real. Este imaginário de representação, que ao mesmo tempo culmina e
é engolfado pelo projeto louco do cartógrafo de coextensividade ideal entre mapa e território, desaparece
na simulação cuja operação é nuclear e genética, não mais especular ou discursiva. É toda a metafísica
que está perdida. Não há mais espelho do ser e das aparências, do real e do seu conceito. Chega de
coextensividade imaginária: é a miniaturização genética que é a dimensão da simulação. O real é produzido
a partir de células, matrizes e bancos de memória miniaturizados, modelos de controle - e a partir deles
pode ser reproduzido um número indefinido de vezes. Já não precisa de ser racional, porque já não
se compara a uma instância ideal ou negativa. Não é mais nada além de operacional. Na verdade, já
não é realmente o real, porque já não há imaginário que o envolva. É um hiperreal, produzido a partir
de uma síntese radiante de modelos combinatórios num hiperespaço sem atmosfera.

Ao atravessar um espaço cuja curvatura já não é a do real, nem a da verdade, a era da simulação é
inaugurada pela liquidação de todos os referenciais - pior: com os seus
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ressurreição artificial nos sistemas de signos, material mais maleável que o sentido, na medida em que
se presta a todos os sistemas de equivalências, a todas as oposições binárias, a toda álgebra
combinatória. Não se trata mais de imitação, nem de duplicação, nem mesmo de paródia. Trata-se
de substituir os sinais do real pelo real, ou seja, de uma operação de dissuasão de todo processo real
através do seu duplo operacional, uma máquina programática, metaestável, perfeitamente
descritiva, que oferece todos os sinais do real e curto -circuita todas as suas vicissitudes. Nunca
mais o real terá a oportunidade de se produzir - tal é a função vital do modelo num sistema de morte,
ou melhor, de ressurreição antecipada, que já nem sequer dá uma oportunidade ao acontecimento
da morte. Um hiperreal doravante protegido do imaginário e de qualquer distinção entre o real
e o imaginário, deixando espaço apenas para a recorrência orbital de modelos e para a geração
simulada de diferenças.

A IRREFERÊNCIA DIVINA DAS IMAGENS

Dissimular é fingir não ter o que se tem. Simular é fingir ter o que não se tem. Um implica uma
presença, o outro uma ausência. Mas é mais complicado que isso porque simular não é fingir:
“Quem finge uma doença pode simplesmente ficar na cama e fazer todos acreditarem que está
doente. Quem simula uma doença produz em si alguns dos sintomas” (Littré). Portanto, fingir, ou
dissimular, deixa intacto o princípio da realidade: a diferença é sempre clara, é simplesmente
mascarada, enquanto a simulação ameaça a diferença entre o “verdadeiro” e o “falso”, o “real” e o
“imaginário”. " O simulador está doente ou não, visto que produz sintomas "verdadeiros"?
Objetivamente, não se pode tratá-lo como doente ou não.

A psicologia e a medicina param neste ponto, impedidas pela verdade doravante não descoberta
da doença. Pois se qualquer sintoma pode ser “produzido” e não pode mais ser tomado como um fato
da natureza, então toda doença pode ser considerada simulável e simulada, e a medicina perde o sentido,
pois só sabe tratar doenças “reais” de acordo com às suas causas objetivas. A psicossomática evolui
de forma duvidosa nas fronteiras do princípio da doença. Quanto à psicanálise, ela transfere o sintoma
da ordem orgânica para a ordem inconsciente: esta última é nova e tomada por “real” mais real que a
outra – mas por que a simulação estaria às portas do inconsciente? Por que o “trabalho” do inconsciente
não poderia ser “produzido” da mesma forma que qualquer antigo sintoma da medicina clássica?

Os sonhos já existem.

Certamente, o psiquiatra afirma que “para cada forma de alienação mental existe uma ordem
particular na sucessão de sintomas que o simulador ignora e na ausência da qual o psiquiatra não seria
enganado”. Isto (que data de 1865) para salvaguardar a todo o custo o princípio de uma verdade e
escapar à interrogação colocada pela simulação - o conhecimento de que a verdade, a
referência, a causa objectiva deixaram de existir. Agora, o que pode a medicina fazer com o que flutua
em ambos os lados da doença, em ambos os lados da saúde, com a duplicação da doença num
discurso que já não é nem verdadeiro nem falso? O que pode a psicanálise fazer com a duplicação
do discurso do inconsciente no discurso da simulação que nunca mais poderá ser desmascarada,
pois também não é falsa?*2

O que o exército pode fazer em relação aos simuladores? Tradicionalmente, desmascara-os e pune
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eles, de acordo com um princípio claro de identificação. Hoje ele pode descarregar um simulador muito
bom como exatamente equivalente a um homossexual “real”, um paciente cardíaco ou um louco.
Até a psicologia militar se afasta das certezas cartesianas e hesita em fazer a distinção entre o
verdadeiro e o falso, entre o sintoma “produzido” e o autêntico. "Se ele é tão bom em agir
como um louco, é porque ele é." A psicologia militar também não se engana neste aspecto:
neste sentido, todos os loucos simulam, e esta falta de distinção é o pior tipo de subversão. Foi contra
esta falta de distinção que a razão clássica se armou em todas as suas categorias. Mas é o que
hoje os flanqueia novamente, submergindo o princípio da verdade.

Para além da medicina e do exército, terrenos privilegiados de simulação, a questão volta à


religião e ao simulacro da divindade: “Proibi que houvesse qualquer simulacro nos templos porque
a divindade que anima a natureza nunca pode ser representada”. Na verdade, pode ser. Mas o que
acontece com a divindade quando ela se revela em ícones, quando se multiplica em simulacros?
Continua a ser o poder supremo que é simplesmente encarnado em imagens como uma teologia
visível? Ou volatiliza-se nos simulacros que, por si só, exercem o seu poder e pompa de fascínio
- a maquinaria visível dos ícones substituída pela Idéia pura e inteligível de Deus? Isto é precisamente
o que era temido pelos iconoclastas, cuja disputa milenar ainda hoje persiste.*3 Isto é precisamente
porque eles previram esta onipotência dos simulacros, a faculdade que os simulacros têm de apagar
Deus da consciência do homem, e a verdade destrutiva e aniquiladora. que eles permitem
aparecer - que no fundo Deus nunca existiu, que apenas o simulacro existiu, mesmo que o próprio
Deus nunca foi nada além do seu próprio simulacro - daí surgiu o seu desejo de destruir as
imagens. Se pudessem ter acreditado que estas imagens apenas ofuscavam ou mascaravam
a Ideia Platónica de Deus, não haveria razão para destruí-las. Pode-se viver com a ideia de uma
verdade distorcida. Mas o seu desespero metafísico vinha da ideia de que a imagem não escondia
absolutamente nada, e que essas imagens não eram, em essência, imagens, como um modelo
original as teria feito, mas sim simulacros perfeitos, sempre radiantes com o seu próprio fascínio.
Assim, esta morte do referencial divino deve ser exorcizada a todo custo.

Percebe-se que os iconoclastas, acusados de desdenhar e negar as imagens, foram aqueles que
lhes atribuíram o seu verdadeiro valor, em contraste com os iconólatras que só viam reflexos nelas
e se contentavam em venerar um Deus filigranado. Por outro lado, pode-se dizer que os adoradores
de ícones eram as mentes mais modernas, as mais aventureiras, porque, sob o pretexto de ver Deus
tornar-se aparente no espelho das imagens, já estavam encenando a sua morte e o seu
desaparecimento na epifania. das suas representações (que, talvez, já sabiam já não representarem
nada, que eram puramente um jogo, mas que era aí que residia o grande jogo - sabendo também que
é perigoso desmascarar imagens, pois dissimulam o facto de existirem não há nada por trás deles).

Esta foi a abordagem dos Jesuítas, que fundaram a sua política no virtual desaparecimento
de Deus e na manipulação mundana e espectacular das consciências - a evanescência de Deus na
epifania do poder - o fim da transcendência, que agora serve apenas como álibi por uma estratégia
totalmente livre de influências e sinais. Por trás do barroco das imagens esconde-se a eminência
parda da política.

Assim a aposta terá sido sempre o poder assassino das imagens, assassinos de
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os reais, assassinos do seu próprio modelo, como os ícones bizantinos poderiam ser os de identidade
divina. A este poder assassino opõe-se o das representações como poder dialético, a mediação
visível e inteligível do Real. Toda a fé e boa-fé ocidentais envolveram-se nesta aposta na representação:
que um sinal pudesse remeter à profundidade do significado, que um sinal pudesse ser trocado por
significado e que algo pudesse garantir esta troca – Deus, claro. Mas e se o próprio Deus puder ser
simulado, isto é, puder ser reduzido aos sinais que constituem a fé? Então todo o sistema perde
peso, não é mais nada além de um gigantesco simulacro - não irreal, mas um simulacro, isto
é, nunca trocado pelo real, mas trocado por si mesmo, num circuito ininterrupto sem referência nem
circunferência.

Tal é a simulação, na medida em que se opõe à representação. A representação decorre do princípio


da equivalência do signo e do real (mesmo que esta equivalência seja utópica, é um axioma
fundamental). A simulação, pelo contrário, decorre da utopia do princípio da equivalência, da negação
radical do signo como valor, do signo como reversão e sentença de morte de toda referência.
Enquanto a representação tenta absorver a simulação interpretando-a como uma falsa
representação, a simulação envolve todo o edifício da representação como um simulacro.

Tais seriam as fases sucessivas da imagem:

é o reflexo de uma realidade profunda;


mascara e desnatura uma realidade profunda;
mascara a ausência de uma realidade profunda;
não tem qualquer relação com qualquer realidade;
é seu próprio simulacro puro.

No primeiro caso, a imagem é uma boa aparência – a representação é de ordem sacramental. No


segundo, é uma aparência maligna – é da ordem da maleficência. No terceiro, brinca de ser uma
aparência – é da ordem da feitiçaria. Na quarta, já não é da ordem das aparências, mas da simulação.

A passagem de signos que dissimulam algo para signos que dissimulam que não há nada marca uma
viragem decisiva. A primeira reflete uma teologia da verdade e do segredo (à qual ainda pertence a
noção de ideologia). A segunda inaugura a era dos simulacros e da simulação, em que não
há mais um Deus que reconheça o seu, não há mais um Juízo Final para separar o falso do
verdadeiro, o real da sua ressurreição artificial, pois tudo já está morto e ressuscitado
antecipadamente.

Quando o real não é mais o que era, a nostalgia assume todo o seu sentido. Há uma infinidade de
mitos de origem e de sinais de realidade – uma infinidade de verdade, de objetividade secundária
e de autenticidade. Escalada do verdadeiro, da experiência vivida, ressurreição do figurativo onde o
objeto e a substância desapareceram. Produção em pânico do real e do referencial, paralela
e maior que o pânico da produção material: é assim que a simulação aparece na fase que nos
preocupa - uma estratégia do real, do neorreal e do hiperreal que em toda parte é o duplo de
uma estratégia de dissuasão.
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RAMSÉS, OU A RESSURREIÇÃO ROSA

A etnologia esbarrou na sua morte paradoxal em 1971, dia em que o governo filipino decidiu devolver as
poucas dezenas de Tasaday que acabavam de ser descobertas nas profundezas da selva, onde viveram
durante oito séculos sem qualquer contacto com o resto do mundo. espécies, ao seu estado primitivo, fora do
alcance de colonizadores, turistas e etnólogos. Isso por sugestão dos próprios antropólogos, que viam
os indígenas se desintegrarem imediatamente ao contato, como múmias ao ar livre.

Para que a etnologia viva, o seu objecto deve morrer; ao morrer, o objeto vinga-se de ter sido “descoberto”
e com a sua morte desafia a ciência que o quer apreender.

Não vive toda a ciência nesta encosta paradoxal a que está condenada pela evanescência do
seu objecto na sua própria apreensão e pela inversão impiedosa que o objecto morto exerce sobre ela?
Como Orfeu, ele sempre dá meia-volta cedo demais e, como Eurídice, seu objeto cai novamente no
Hades.

É contra este inferno de paradoxo que os etnólogos quiseram proteger-se isolando o Tasaday com floresta
virgem. Ninguém mais pode tocá-los: como numa mina o veio está fechado. A ciência perde aí um capital
precioso, mas o objecto estará seguro, perdido para a ciência, mas intacto na sua “virgindade”. Não se trata
de sacrifício (a ciência nunca se sacrifica, é sempre assassina), mas do sacrifício simulado do seu objecto
para salvar o seu princípio de realidade. Os Tasaday, congelados no seu elemento natural, proporcionarão
um álibi perfeito, uma garantia eterna. Aqui começa uma antietnologia que nunca terá fim e da qual Jaulin,
Castaneda, Clastres são várias testemunhas. Em todo o caso, a evolução lógica de uma ciência consiste em
distanciar-se cada vez mais do seu objecto, até o prescindir totalmente: a sua autonomia só se torna
ainda mais fantástica - ela atinge a sua forma pura.

O índio assim retornado ao gueto, no caixão de vidro da mata virgem, torna-se novamente o modelo
de simulação de todos os índios possíveis anteriores à etnologia. Este modelo dá-se assim ao luxo de
encarnar-se para além de si mesmo na realidade "bruta" destes índios que ele reinventou inteiramente -
Selvagens que devem à etnologia por ainda serem Selvagens: que reviravolta nos acontecimentos, que
triunfo para esta ciência que parecia dedicado à sua destruição!

Claro que estes selvagens são póstumos: congelados, criogenizados, esterilizados, protegidos até à
morte, tornaram-se simulacros referenciais, e a própria ciência tornou-se pura simulação. O mesmo
se aplica a Cruesot, ao nível do museu “aberto”, onde se museificam in situ, como testemunhas “históricas”
do seu período, bairros inteiros da classe trabalhadora, zonas metalúrgicas vivas, toda uma cultura,
homens, mulheres e crianças incluídas - gestos, línguas, costumes fossilizados vivos como num
instantâneo. O museu, em vez de ser circunscrito como um sítio geométrico, está agora em toda parte,
como uma dimensão da vida. Assim, a etnologia, em vez de se circunscrever como ciência objectiva, será
hoje, libertada do seu objecto, aplicada a todos os seres vivos e tornando-se invisível, como uma quarta
dimensão omnipresente, a do simulacro. Somos todos Tasadays, índios que voltaram a ser o que eram -
índios simulacros que finalmente proclamam
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a verdade universal da etnologia.

Todos nos tornamos espécimes vivos à luz espectral da etnologia, ou da antietnologia,


que nada mais é do que a forma pura da etnologia triunfal, sob o signo das diferenças mortas e da
ressurreição das diferenças. É portanto muito ingénuo procurar a etnologia nos Selvagens ou em
algum Terceiro Mundo - ela está aqui, em todo o lado, nas metrópoles, na comunidade
Branca, num mundo completamente catalogado e analisado, depois ressuscitado artificialmente
sob os auspícios do mundo real. , num mundo de simulação, de alucinação da verdade, de chantagem
do real, de assassinato de toda forma simbólica e de sua retrospectiva histérica, histórica -
assassinato do qual os Selvagens, noblesse oblige, foram as primeiras vítimas, mas isso estendeu-
se durante muito tempo a todas as sociedades ocidentais.

Mas ao mesmo tempo a etnologia nos dá a sua única e última lição, o segredo que a mata (e que os
selvagens conheciam melhor do que eles): a vingança dos mortos.

O confinamento do objeto científico equivale ao confinamento dos loucos e dos mortos. E assim
como toda a sociedade está irremediavelmente contaminada por esse espelho da loucura que ela
ergueu para si, a ciência não pode deixar de morrer contaminada pela morte desse objeto que é o
seu espelho inverso. É a ciência que domina os objetos, mas são os objetos que a investem de
profundidade, segundo uma reversão inconsciente, que apenas dá uma resposta morta e circular a
uma interrogação morta e circular.

Nada muda quando a sociedade quebra o espelho da loucura (abole os asilos, devolve a fala
aos loucos, etc.) nem quando a ciência parece quebrar o espelho da sua objetividade (apagando-
se diante do seu objeto, como em Castaneda, etc.) e curvar-se diante das “diferenças”. A forma
produzida pelo confinamento é seguida por um mecanismo inumerável, difratado e
desacelerado. À medida que a etnologia entra em colapso na sua instituição clássica, ela sobrevive
numa antietnologia cuja tarefa é reinjetar a ficção da diferença, a ficção selvagem em todo o
lado, para esconder que é este mundo, o nosso, que se tornou novamente selvagem à sua
maneira, isto é, digamos, que é devastada pela diferença e pela morte.

Da mesma forma, com o pretexto de salvar o original, proibiu-se a entrada dos visitantes nas grutas
de Lascaux, mas dela foi construída uma réplica exacta a quinhentos metros, para que todos
pudessem vê-las (olha-se através de um olho mágico a autêntica gruta , e depois visita-se o todo
reconstituído). É possível que a própria memória das grutas originais esteja gravada na mente das
gerações futuras, mas a partir de agora não há mais diferença: a duplicação basta para tornar
ambas artificiais.

Da mesma forma, a ciência e a tecnologia foram recentemente mobilizadas para salvar a múmia de
Ramsés II, depois de esta ter sido deixada a apodrecer durante várias dezenas de anos nas
profundezas de um museu. O Ocidente entra em pânico diante da ideia de não poder salvar o que a
ordem simbólica conseguiu conservar durante quarenta séculos, mas fora da vista e longe da luz
do dia. Ramsés não significa nada para nós, apenas a múmia tem um valor inestimável porque é o
que garante que a acumulação tenha sentido. Toda a nossa cultura linear e acumulativa entra
em colapso se não conseguirmos armazenar o passado à vista de todos. Para este fim, os faraós
devem ser retirados do seu túmulo e as múmias do seu silêncio. Para
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para este fim, devem ser exumados e receber honras militares. Eles são vítimas tanto da ciência
quanto dos vermes. Somente o sigilo absoluto lhes assegurava esse poder milenar – o domínio
sobre a putrefação que significava o domínio do ciclo completo de trocas com a morte. Só
sabemos colocar a nossa ciência ao serviço da reparação da múmia, ou seja, da restauração
de uma ordem visível, enquanto o embalsamamento era um esforço mítico que se
esforçava por imortalizar uma dimensão oculta.

Exigimos um passado visível, um continuum visível, um mito de origem visível, que nos
tranquilize sobre o nosso fim. Porque finalmente nunca acreditamos neles. Daí esta cena
histórica da recepção da múmia no aeroporto de Orly. Por que? Porque Ramsés foi uma
grande figura despótica e militar? Certamente. Mas sobretudo porque a nossa cultura sonha,
por detrás deste poder extinto que tenta anexar, com uma ordem que nada teria a ver com ela,
e sonha com ela porque a exterminou exumando-a como o seu próprio passado.

Somos fascinados por Ramsés como os cristãos da Renascença ficaram pelos índios
americanos, aqueles seres (humanos?) que nunca conheceram a palavra de Cristo. Assim, no
início da colonização, houve um momento de estupor e perplexidade diante da própria
possibilidade de escapar da lei universal do Evangelho. Havia duas respostas possíveis:
ou admitir que esta Lei não era universal, ou exterminar os índios para apagar as evidências.
Em geral, contentava-se em convertê-los, ou mesmo simplesmente em descobri-los, o que
bastaria para exterminá-los lentamente.

Assim, teria sido suficiente exumar Ramsés para garantir o seu extermínio por museificação.
Porque as múmias não apodrecem por causa dos vermes: elas morrem ao serem
transplantadas de uma ordem lenta do simbólico, dona da putrefação e da morte, para uma
ordem da história, da ciência e dos museus, a nossa ordem, que já não domina nada, que
só sabe condenar o que o precedeu à decadência e à morte e posteriormente
tentar reanimá-lo com a ciência. Violência irreparável contra todos os segredos, a violência de
uma civilização sem segredos, o ódio de toda uma civilização pela sua própria fundação.

E tal como acontece com a etnologia, que tenta libertar-se do seu objecto para melhor se
assegurar na sua forma pura, a desmuseuificação nada mais é do que mais uma
espiral de artificialidade. Veja-se o claustro de São Miguel de Cuxa, que será repatriado com
grande custo dos Claustros de Nova Iorque para o reinstalar no “seu local original”. E
todos deveriam aplaudir esta restituição (como fizeram "a campanha experimental para recuperar
as calçadas" nos Campos Elísios!). Pois bem, se a exportação das cornijas foi na verdade
um acto arbitrário, se os Claustros de Nova Iorque são um mosaico artificial de todas as
culturas (seguindo uma lógica de centralização capitalista do valor), a sua reimportação para
o local original é ainda mais artificial. : é um simulacro total que se liga à “realidade” através de
uma circunvolução completa.

O claustro deveria ter ficado em Nova Iorque no seu ambiente simulado, o que pelo menos não
enganou ninguém. Repatriá-lo nada mais é do que um subterfúgio suplementar, agir como
se nada tivesse acontecido e entregar-se a alucinações retrospectivas.

Da mesma forma, os americanos se gabam de terem trazido a população indígena de volta


aos níveis anteriores à Conquista. Apaga-se tudo e recomeça-se. Eles até
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lisonjeiam-se por fazerem melhor, por excederem o número original. Isto é apresentado como prova da
superioridade da civilização: produzirá mais índios do que eles próprios foram capazes de produzir.
(Com um escárnio sinistro, esta superprodução é novamente um meio de destruí-los: pois a cultura indiana,
como toda cultura tribal, baseia-se na limitação do grupo e na recusa de qualquer aumento “ilimitado”, como
pode ser visto no caso de Ishi. Em desta forma, a sua “promoção” demográfica é apenas mais um passo
em direção ao extermínio simbólico.)

Em todos os lugares vivemos em um universo estranhamente semelhante ao original - as coisas são


duplicadas de acordo com seu próprio cenário. Mas esta duplicação não significa, como acontecia
tradicionalmente, a iminência da sua morte - eles já estão expurgados da sua morte, e melhores do que
quando estavam vivos; mais alegres, mais autênticos, à luz do seu modelo, como os rostos das funerárias.

O HIPERREAL E O IMAGINÁRIO

A Disneylândia é um modelo perfeito de todas as ordens emaranhadas de simulacros. É antes de tudo um


jogo de ilusões e fantasmas: os Piratas, a Fronteira, o Mundo Futuro, etc. Este mundo imaginário
supostamente garantirá o sucesso da operação. Mas o que mais atrai as multidões é sem dúvida o
microcosmo social, o prazer religioso e miniaturizado da América real, dos seus constrangimentos e
alegrias. Um estaciona do lado de fora e faz fila lá dentro, o outro fica totalmente abandonado na saída. A
única fantasmagoria neste mundo imaginário reside na ternura e no calor da multidão e no número
suficiente e excessivo de dispositivos necessários para criar o efeito multitudinário. O contraste com a solidão
absoluta do estacionamento – um verdadeiro campo de concentração – é total. Ou melhor: lá dentro, toda
uma panóplia de gadgets magnetiza a multidão em fluxos direcionados – lá fora, a solidão é dirigida a um único
gadget: o automóvel. Por uma coincidência extraordinária (mas que deriva sem dúvida do encanto
inerente a este universo), este mundo congelado e infantil foi concebido e realizado por um homem
que agora está criogenizado: Walt Disney, que aguarda a sua ressurreição através de um aumento de
180 graus centígrados.

Assim, em toda a Disneylândia é traçado o perfil objetivo da América, até a morfologia dos
indivíduos e da multidão. Todos os seus valores são exaltados pela miniatura e pela história em quadrinhos.
Embalsamado e pacificado. Daí a possibilidade de uma análise ideológica da Disneylândia (L. Marin fê-
lo muito bem em Utopiques, jeux d'espace [Utopias, jogo do espaço]): resumo do modo de vida americano,
panegírico dos valores americanos, transposição idealizada de uma realidade contraditória. Certamente.
Mas isto mascara outra coisa e este cobertor “ideológico” funciona como cobertura para uma
simulação de terceira ordem: a Disneylândia existe para esconder que é o país “real”, todo de “real”

A América que é a Disneylândia (um pouco como as prisões existem para esconder que é o social na sua
totalidade, na sua omnipresença banal, que é carcerário). A Disneylândia é apresentada como imaginária para
nos fazer acreditar que o resto é real, enquanto toda Los Angeles e a América que a rodeia já não
são reais, mas pertencem à ordem hiperreal e à ordem da simulação. Não se trata mais de uma falsa
representação da realidade (ideologia), mas de ocultar o facto de que o real já não é real e, assim,
de salvar o princípio de realidade.

O imaginário da Disneylândia não é verdadeiro nem falso, é uma máquina de dissuasão montada em
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para rejuvenescer a ficção do real no campo oposto. Daí a debilidade deste imaginário, a
sua degeneração infantil. Este mundo quer ser infantil para nos fazer acreditar que os
adultos estão noutro lugar, no mundo "real", e para esconder o facto de que a verdadeira
infantilidade está em todo o lado - que é a dos próprios adultos que vêm aqui para agir como
criança, a fim de alimentar ilusões quanto à sua verdadeira infantilidade.

A Disneylândia não é a única, entretanto. Vila Encantada, Montanha Mágica, Mundo Marinho:
Los Angeles está cercada por essas estações imaginárias que alimentam a realidade, a
energia do real para uma cidade cujo mistério é justamente o de não ser mais nada além de
uma rede de circulação incessante e irreal - uma cidade de proporções incríveis mas
sem espaço, sem dimensão. Tanto quanto as centrais eléctricas e atómicas, como os estúdios
de cinema, esta cidade, que já não é mais do que um imenso cenário e um perpétuo plano
panorâmico, precisa deste velho imaginário como de um sistema nervoso simpático feito de
sinais infantis e de fantasmas falsos .

Disneylândia: um espaço de regeneração do imaginário como são as estações de tratamento


de resíduos noutros lugares, e mesmo aqui. Hoje em dia, em todos os lugares é preciso reciclar
resíduos, e os sonhos, os fantasmas, o imaginário histórico, feérico e lendário de crianças e
adultos são um resíduo, o primeiro grande excremento tóxico de uma civilização hiper-real.
A nível mental, a Disneylândia é o protótipo desta nova função. Mas todos os institutos de
reciclagem sexual, psíquica e somática, que proliferam na Califórnia, pertencem à mesma
ordem. As pessoas não se olham mais, mas existem institutos para isso. Eles não se
tocam mais, mas existe a contactoterapia. Eles não andam mais, mas vão correr, etc.
Em todos os lugares se reciclam faculdades perdidas, ou corpos perdidos, ou sociabilidade
perdida, ou o gosto perdido pela comida. Reinventa-se a penúria, o ascetismo, a naturalidade
selvagem desaparecida: comida natural, comida saudável, yoga. A ideia de Marshall Sahlins de
que é a economia de mercado, e não a da natureza, que segrega a penúria, é verificada,
mas a um nível secundário: aqui, nos confins sofisticados de uma economia de mercado
triunfal, reinventa-se uma penúria/sinal, uma penúria/simulacro, um comportamento simulado
dos subdesenvolvidos (incluindo a adopção de princípios marxistas) que, sob o disfarce
da ecologia, das crises energéticas e da crítica do capital, acrescenta uma auréola esotérica
final ao triunfo de uma cultura esotérica. No entanto, talvez uma catástrofe mental, uma implosão
mental e uma involução sem precedentes estejam à espreita de um sistema deste tipo, cujos
sinais visíveis seriam os desta estranha obesidade, ou a incrível coexistência das teorias e
práticas mais bizarras, que correspondem a a improvável coalizão de luxo, céu e dinheiro, à
improvável materialização luxuosa da vida e a contradições indetectáveis.

INCANTAÇÃO POLÍTICA

Watergate. O mesmo cenário da Disneylândia (efeito do imaginário que oculta que a realidade
não existe mais fora do que dentro dos limites do perímetro artificial): aqui o efeito escândalo
que esconde que não há diferença entre os factos e a sua denúncia (métodos idênticos por
parte da CIA e dos jornalistas do Washington Post). A mesma operação, tendendo a regenerar
através do escândalo um princípio moral e político, através do imaginário, um princípio de
realidade afundante.

A denúncia do escândalo é sempre uma homenagem à lei. E Watergate, em particular, conseguiu


impor a ideia de que Watergate era um escândalo - neste sentido, era um
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operação prodigiosa de intoxicação. Uma grande dose de moralidade política reinjetada em escala
mundial. Poderíamos dizer com Bourdieu: “A essência de toda relação de força é dissimular-se como
tal e adquirir toda a sua força apenas porque se dissimula como tal”, entendida da seguinte forma:
o capital, imoral e sem escrúpulos, só pode funcionar atrás de uma superestrutura moral, e quem
revive esta moralidade pública (através da indignação, da denúncia, etc.) trabalha
espontaneamente para a ordem do capital.
Foi o que fizeram os jornalistas do Washington Post.

Mas isto nada mais seria do que a fórmula da ideologia, e quando Bourdieu o afirma, ele toma a
“relação de força” como a verdade da dominação capitalista, e ele próprio denuncia esta
relação de força como um escândalo – ele está, portanto, no mesmo determinismo e posição
moralista como são os jornalistas do Washington Post. Ele faz o mesmo trabalho de purificar e
reviver a ordem moral, uma ordem de verdade na qual a verdadeira violência simbólica da ordem
social é engendrada, muito além de todas as relações de força, que são apenas a sua configuração
mutável e indiferente na vida moral e política. consciências dos homens.

Tudo o que o capital nos pede é recebê-lo como racional ou combatê-lo em nome da
racionalidade, recebê-lo como moral ou combatê-lo em nome da moralidade. Porque são a mesma
coisa, o que pode ser pensado de outra forma: antigamente trabalhava-se para dissimular
o escândalo - hoje trabalha-se para esconder que não existe.

Watergate não é um escândalo, é isso que deve ser dito a todo custo, porque é o que todos
estão ocupados em esconder, esta dissimulação mascarando um fortalecimento da moralidade, de um
pânico moral à medida que nos aproximamos da (mise en)scène primitiva do capital: a sua crueldade
instantânea, a sua ferocidade incompreensível, a sua imoralidade fundamental - é isso que é
escandaloso, inaceitável para o sistema de equivalência moral e económica que é o axioma do
pensamento de esquerda, desde as teorias do Iluminismo até ao Comunismo. Atribui-se esse
pensamento ao contrato de capital, mas ele não dá a mínima - é um empreendimento
monstruoso e sem princípios, nada mais. É o pensamento “iluminado” que procura controlá-lo, impondo-
lhe regras. E toda a recriminação que hoje substitui o pensamento revolucionário volta a incriminar o
capital por não seguir as regras do jogo.
“O poder é injusto, a sua justiça é uma justiça de classe, o capital nos explora, etc.” - como se o capital
estivesse ligado por um contrato à sociedade que governa. É a esquerda que estende o espelho
da equivalência ao capital na esperança de que ele cumpra, cumpra esta fantasmagoria do contrato
social e cumpra as suas obrigações para com toda a sociedade (da mesma forma, não há
necessidade de revolução: basta que o capital acomoda-se à fórmula racional da troca).

O capital, de facto, nunca esteve ligado por um contrato à sociedade que domina. É uma feitiçaria
das relações sociais, é um desafio para a sociedade e deve ser respondido como tal. Não se trata
de um escândalo a denunciar segundo a racionalidade moral ou económica, mas de um desafio a
enfrentar segundo a lei simbólica.

MÖBIUS – NEGATIVA EM ESPIRAL

Watergate não passou, portanto, de uma isca oferecida pelo sistema para apanhar os seus adversários
– uma simulação de escândalo para fins regenerativos. No filme, isso é incorporado pelo personagem
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de "Garganta Profunda", que se dizia ser a eminência parda dos republicanos,


manipulando os jornalistas de esquerda para se livrar de Nixon - e porque não? Todas as
hipóteses são possíveis, mas esta é supérflua: a própria Esquerda faz um trabalho perfeitamente
bom, e espontaneamente, ao fazer o trabalho da Direita. Além disso, seria ingénuo ver uma boa
consciência amargurada a trabalhar aqui. Porque a manipulação é uma causalidade vacilante
na qual a positividade e a negatividade são engendradas e se sobrepõem, na qual não há mais ativo
nem passivo. É através da cessação arbitrária desta causalidade em espiral que um princípio
de realidade política pode ser salvo. É através da simulação de um campo de perspectiva
estreito e convencional, no qual as premissas e as consequências de um ato ou de um evento
podem ser calculadas, que uma credibilidade política pode ser mantida (e, claro, uma análise
"objetiva", a luta, etc.). Se imaginarmos todo o ciclo de qualquer ato ou evento em um sistema
onde a continuidade linear e a polaridade dialética não existem mais, em um campo
desequilibrado pela simulação, toda determinação evapora, cada ato termina no final do ciclo tendo
beneficiado a todos e tendo foram espalhados em todas as direções.

Qualquer atentado bombista em Itália é obra de extremistas de esquerda, ou provocação de extrema-


direita, ou uma mise-en-scène centrista para desacreditar todos os terroristas extremistas e
para reforçar o seu próprio poder falido, ou, novamente, é um cenário inspirado na polícia? e uma
forma de chantagem à segurança pública? Tudo isto é simultaneamente verdade, e a
procura da prova, ou mesmo da objectividade dos factos, não põe fim a esta vertigem de interpretação.
Ou seja, estamos numa lógica de simulação, que já não tem nada a ver com uma lógica dos factos
e com uma ordem da razão. A simulação caracteriza-se por uma precessão do modelo, de
todos os modelos baseada no mero facto - os modelos vêm primeiro, a sua circulação, orbital como a
da bomba, constitui o verdadeiro campo magnético do acontecimento. Os fatos não têm mais uma
trajetória específica, nascem na intersecção de modelos, um único fato pode ser engendrado
por todos os modelos ao mesmo tempo. Esta antecipação, esta precessão, este curto-circuito, esta
confusão do facto com o seu modelo (não mais divergência de sentido, não mais polaridade
dialética, não mais electricidade negativa, implosão de pólos antagónicos), é o que permite cada vez
todas as interpretações possíveis. , mesmo as mais contraditórias - todas verdadeiras, no sentido de
que a sua verdade se deve trocar, à imagem dos modelos de que derivam, num ciclo generalizado.

Os Comunistas atacam o Partido Socialista como se quisessem destruir a união da Esquerda.


Eles dão crédito à ideia de que estas resistências adviriam de uma necessidade política mais
radical. Na verdade, é porque já não querem o poder. Mas não querem eles o poder nesta
conjuntura, desfavorável à esquerda em geral, ou desfavorável a eles dentro da União da
Esquerda - ou já não o querem, por definição? Quando Berlinguer declara: “Não há necessidade
de ter medo de ver os comunistas tomarem o poder na Itália”, significa simultaneamente:

-: que não há necessidade de ter medo, pois os comunistas, se chegarem ao poder, não mudarão
nada do seu mecanismo capitalista fundamental;
-: que não há risco de chegarem ao poder (porque não querem) - e mesmo que ocupem o assento
do poder, nunca o exercerão, exceto por procuração;
-: que de facto o poder, o poder genuíno já não existe, e portanto não há risco de quem toma o
poder ou o volta a tomar;
-: mas mais: eu, Berlinguer, não tenho medo de ver os comunistas tomarem o poder na Itália - o
que pode parecer evidente, mas não tanto quanto você imagina, porque
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-: poderia significar o contrário (não há necessidade de psicanálise aqui): tenho medo de ver os
comunistas tomarem o poder (e há boas razões para isso, mesmo para um comunista).

Tudo isso é simultaneamente verdade. É o segredo de um discurso


que não é mais simplesmente ambíguo, como podem ser os discursos políticos, mas que transmite
a impossibilidade de uma determinada posição de poder, a impossibilidade de uma
determinada posição discursiva. E esta lógica não é nem de um partido nem de outro. Ela atravessa
todos os discursos sem que eles queiram.

Quem vai desvendar esse imbróglio? O nó górdio pode pelo menos ser cortado. A faixa de Möbius,
se dividida, resulta em uma espiral suplementar sem que a reversibilidade das superfícies seja
resolvida (aqui a continuidade reversível das hipóteses). Inferno de simulação, que já não é de tortura,
mas de subtil, malévola e esquiva distorção do sentido*4 - onde mesmo os condenados em Burgos
continuam a ser um presente de Franco à democracia ocidental, que aproveita a ocasião para
regenerar a sua própria que enfraquece o humanismo e cujo protesto indignado, por sua vez,
consolida o regime de Franco, unindo as massas espanholas contra esta intervenção estrangeira?
Onde está a verdade de tudo isso, quando tais conluios se unem admiravelmente sem o conhecimento
dos seus autores?

Conjunção do sistema e da sua alternativa extrema como os dois lados de um espelho curvo, uma
curvatura “viciosa” de um espaço político que doravante é magnetizado, circularizado,
reversibibilizado da direita para a esquerda, uma torção que é como a do espírito maligno da
comutação, todo o sistema, a infinidade do capital dobrado sobre a sua própria superfície:
transfinito? E não é o mesmo para o desejo e para o espaço libidinal? Conjunção de desejo e valor,
de desejo e capital. Conjunção do desejo e da lei, o prazer final como metamorfose da lei (razão
pela qual está tão amplamente na ordem do dia): só o capital tem prazer, disse Lyotard, antes de
pensar que agora temos prazer no capital. Versatilidade avassaladora do desejo em Deleuze, uma
inversão enigmática que leva o desejo “revolucionário em si, e como que involuntariamente,
querendo o que quer”, a desejar a sua própria repressão e a investir em sistemas paranóicos e
fascistas? Uma torção maligna que devolve esta revolução do desejo à mesma ambiguidade
fundamental que a outra, a revolução histórica.

Todos os referenciais combinam seus discursos numa compulsão circular, möbiana. Não muito
tempo atrás, sexo e trabalho eram termos ferozmente opostos; hoje ambos estão dissolvidos no
mesmo tipo de demanda. Antigamente o discurso da história derivava o seu poder da oposição
violenta ao da natureza, o discurso do desejo ao do poder - hoje eles trocam os seus significados
e os seus cenários.

Levaria muito tempo para percorrer toda a gama da negatividade operacional de todos aqueles
cenários de dissuasão que, como Watergate, tentam regenerar um princípio moribundo
através de escândalos simulados, fantasmas e assassinatos - uma espécie de tratamento hormonal
através da negatividade e da crise . É sempre uma questão de provar o real através do
imaginário, provar a verdade através do escândalo, provar a lei através da transgressão, provar o
trabalho através da greve, provar o sistema através da crise, e o capital através da revolução, como
é em outro lugar (o Tasaday) de provar etnologia através da desapropriação do seu objeto - sem
levar em conta:
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a prova do teatro através do antiteatro;


a prova da arte através da antiarte;
a prova da pedagogia através da antipedagogia;
a prova da psiquiatria através da antipsiquiatria, etc.

Tudo se metamorfoseia no seu oposto para se perpetuar na sua forma expurgada.


Todos os poderes, todas as instituições falam de si através da negação, para tentarem,
através da simulação da morte, escapar aos seus verdadeiros estertores de morte. O poder pode
encenar o seu próprio assassinato para redescobrir um vislumbre de existência e legitimidade.
Foi o caso de alguns presidentes americanos: os Kennedy foram assassinados porque ainda tinham
uma dimensão política. Os outros, Johnson, Nixon, Ford, só tinham direito a tentativas fantasmas, a
simulações de assassinatos. Mas esta aura de ameaça artificial ainda era necessária para
esconder que eles não eram mais nada além de manequins do poder. Anteriormente, o rei (também
o deus) tinha que morrer, aí residia o seu poder. Hoje, ele é miseravelmente forçado a fingir a morte,
a fim de preservar a bênção do poder. Mas está perdido.

Procurar sangue novo na sua própria morte, renovar o ciclo através do espelho da crise, da
negatividade e do antipoder: esta é a única solução - álibi de cada poder, de cada instituição
que tenta quebrar o círculo vicioso da sua irresponsabilidade e da sua inexistência
fundamental, do que já foi visto e do que já está morto.

A ESTRATÉGIA DO REAL

A impossibilidade de redescobrir um nível absoluto do real é da mesma ordem que a impossibilidade


de encenar a ilusão. A ilusão já não é possível, porque o real já não é possível. É todo o
problema político da paródia, da hipersimulação ou da simulação ofensiva que se coloca aqui.

Por exemplo: seria interessante ver se o aparelho repressivo não reagiria mais violentamente a um
assalto simulado do que a um assalto real. Porque este último nada mais faz do que perturbar a
ordem das coisas, o direito à propriedade, enquanto o primeiro ataca o próprio princípio de realidade.
A transgressão e a violência são menos graves porque apenas contestam a distribuição do real. A
simulação é infinitamente mais perigosa porque sempre deixa aberta a suposição de que, acima
e além de seu objeto, a própria lei e a ordem podem não ser nada além de simulação.

Mas a dificuldade é proporcional ao perigo. Como fingir uma violação e testá-la? Simular um assalto
em uma grande loja: como convencer a segurança de que se trata de um assalto simulado? Não
há diferença “objetiva”: os gestos, os sinais são os mesmos de um roubo real, os sinais não se
inclinam para um lado ou para outro. Para a ordem estabelecida são sempre da ordem do real.

Organize um assalto falso. Verifique se suas armas são inofensivas e tome o refém mais
confiável, para que nenhuma vida humana corra perigo (ou caia no criminoso). Exigir resgate,
e fazer com que a operação crie o máximo de comoção possível – enfim, permanecer
próximo da “verdade”, para testar a reação do aparelho a um simulacro perfeito. Você não conseguirá:
a rede de sinais artificiais se confundirá inextricavelmente com elementos reais (um policial
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realmente atire à primeira vista; um cliente do banco desmaiará e morrerá de ataque cardíaco;
pagar-se-á realmente o falso resgate), em suma, você se encontrará imediatamente novamente,
sem querer, no real, cuja função é precisamente devorar qualquer tentativa de simulação, reduzir
tudo ao real - isso é, para a própria ordem estabelecida, muito antes de as instituições e a justiça
entrarem em jogo.

É preciso ver nesta impossibilidade de isolar o processo de simulação o peso de uma ordem que não
consegue ver e conceber nada além do real, porque não pode funcionar em nenhum outro
lugar. A simulação de um delito, se assim for estabelecida, será punida com menor severidade
(porque não tem “consequências”) ou será punida como um delito contra o sistema judicial (por
exemplo, se se desencadear uma operação policial “para nada") - mas nunca como simulação, pois
é precisamente como tal que nenhuma equivalência com o real é possível e, portanto, também
nenhuma repressão. O desafio da simulação nunca é admitido pelo poder. Como a simulação da
virtude pode ser punida? No entanto, como tal, é tão grave como a simulação de um crime. A
paródia equivale à submissão e à transgressão, e esse é o crime mais grave, porque
anula a diferença em que se baseia a lei. A ordem estabelecida nada pode fazer contra ela,
porque a lei é um simulacro de segunda ordem, enquanto a simulação é de terceira ordem, além do
verdadeiro e do falso, além das equivalências, além das distinções racionais das quais dependem
todo o social e o poder. Assim, na falta do real, é aí que devemos visar a ordem.

É certamente por isso que a ordem opta sempre pelo real. Na dúvida, prefere sempre esta hipótese
(como no exército prefere-se tomar o simulador por um verdadeiro louco). Mas isto torna-se cada
vez mais difícil, porque se é praticamente impossível isolar o processo de simulação, através da
força de inércia do real que nos rodeia, o contrário também é verdadeiro (e esta própria
reversibilidade faz parte do aparato de simulação e a impotência do poder): ou seja, agora é impossível
isolar o processo do real, ou provar o real.

É assim que todos os assaltos, sequestros de aviões, etc. são agora, em certo sentido, assaltos
de simulação, na medida em que já estão inscritos nos rituais de descodificação e orquestração dos
meios de comunicação, antecipados na sua apresentação e nas suas possíveis consequências. Em
suma, onde funcionam como um conjunto de signos dedicados exclusivamente à sua recorrência
como signos, e não mais ao seu fim “real”. Mas isso não os torna inofensivos. Pelo contrário,
é como eventos hiper-reais, não mais com um conteúdo ou fim específico, mas
indefinidamente refratados uns pelos outros (assim como os chamados eventos históricos:
greves, manifestações, crises, etc.),*5 é neste sentido de que não podem ser controlados por
uma ordem que só pode exercer-se sobre o real e o racional, sobre causas e fins, uma
ordem referencial que só pode reinar sobre o referencial, um poder determinado que só pode reinar
sobre um mundo determinado, mas que nada pode fazer contra esta recorrência indefinida
da simulação, contra esta nebulosa cujo peso já não obedece às leis da gravitação do real, o próprio
poder acaba por ser desmantelado neste espaço e tornar-se uma simulação de poder (desligado dos
seus fins e dos seus objectivos , e dedicado aos efeitos de simulação de potência e massa).

A única arma do poder, a sua única estratégia contra esta deserção, é reinjetar o real e o referencial
em todo o lado, para nos persuadir da realidade do social, da gravidade do
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a economia e as finalidades da produção. Para isso prefere o discurso da crise, mas também, porque
não? o do desejo. "Tome seus desejos como realidade!" pode ser entendido como o slogan final do
poder, uma vez que num mundo não referencial, mesmo a confusão do princípio da realidade e do
princípio do desejo é menos perigosa do que a hiper-realidade contagiosa. Permanecemos entre os
princípios, e entre eles o poder está sempre certo.

A hiper-realidade e a simulação são impedimentos de todos os princípios e de todos os objectivos,


voltam contra o poder o impedimento que tão bem utilizou durante tanto tempo. Porque no final, ao
longo da sua história, foi o capital quem primeiro se alimentou da desestruturação de todos os
referenciais, de todos os objectivos humanos, que destruiu todas as distinções ideais entre o
verdadeiro e o falso, o bem e o mal, para estabelecer uma lei radical de equivalência e troca, a lei
férrea do seu poder. O capital foi o primeiro a jogar com a dissuasão, a abstracção, a
desconexão, a desterritorialização, etc., e se foi ele quem fomentou a realidade, o princípio de
realidade, foi também o primeiro a liquidá-lo, exterminando todo o valor de uso, toda a
equivalência real de produção e riqueza, no mesmo sentido que temos da irrealidade do que está
em jogo e da onipotência da manipulação. Pois bem, hoje é esta mesma lógica que se volta ainda
mais contra o capital. E assim que deseja combater esta espiral desastrosa, secretando um
último vislumbre de realidade, sobre o qual estabelecer um último vislumbre de poder, nada mais faz
do que multiplicar os sinais e acelerar o jogo da simulação.

Enquanto a ameaça histórica veio do real, o poder jogou na dissuasão e na simulação, desintegrando
todas as contradições à força de produzir sinais equivalentes.
Hoje, quando o perigo da simulação (o de ser dissolvido no jogo dos signos) surge, o poder joga com
o real, joga com a crise, joga com a refabricação de apostas artificiais, sociais, económicas e
políticas. Para o poder, é uma questão de vida ou morte. Mas é tarde de mais.

Daí a histeria característica do nosso tempo: a da produção e reprodução do real. A outra produção,
a dos valores e das mercadorias, a da belle époque da economia política, não teve durante muito
tempo um significado específico. O que toda sociedade procura ao continuar a produzir e a
superproduzir é restaurar o real que lhe escapa. É por isso que hoje esta produção “material” é a do
próprio hiperreal. Mantém todas as características, todo o discurso da produção tradicional, mas já
não é mais do que
sua refração reduzida (assim os hiper-realistas fixam um real do qual todo significado e encanto,
toda profundidade e energia de representação desapareceram numa semelhança
alucinatória). Assim, em toda parte, o hiperrealismo da simulação é traduzido pela semelhança
alucinatória do real consigo mesmo.

O próprio poder, durante muito tempo, não produziu nada além dos sinais de sua semelhança. E, ao
mesmo tempo, entra em jogo outra figura de poder: a de uma exigência colectiva de sinais de poder
– uma união sagrada que se reconstrói em torno do seu desaparecimento. O mundo inteiro adere a
ela mais ou menos com medo do colapso do político. E no final o jogo do poder torna-se apenas a
obsessão crítica pelo poder – obsessão pela sua morte, obsessão pela sua sobrevivência, que
aumenta à medida que desaparece. Quando ele tiver desaparecido totalmente, estaremos
logicamente sob a alucinação total do poder - uma memória assombrosa que já está em
evidência em todos os lugares, expressando de uma só vez a compulsão de nos livrarmos
dele (ninguém mais o quer, todos descarregam em todos os outros ) e a nostalgia em pânico por
sua perda. A melancolia das sociedades sem poder:
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isso já provocou o fascismo, aquela overdose de referencial forte numa sociedade que não consegue
encerrar o seu luto.

Com a atenuação da esfera política, o presidente passa a se assemelhar cada vez mais àquele
fantoche do poder que é o chefe das sociedades primitivas (Clastres).

Todos os presidentes anteriores pagaram e continuam a pagar pelo assassinato de Kennedy como
se tivessem sido eles que o tinham suprimido - o que é verdade fantasmagóricamente, se não de
facto. Eles devem apagar esse defeito e essa cumplicidade com o seu assassinato simulado.
Porque agora só pode ser simulado. Os Presidentes Johnson e Ford foram ambos
objecto de tentativas falhadas de assassinato que, não tendo sido encenadas, foram pelo
menos perpetradas por simulação. Os Kennedy morreram porque encarnaram algo: a substância
política, política, enquanto os novos presidentes não passam de caricaturas e filmes falsos -
curiosamente, Johnson, Nixon, Ford, todos têm esta cara simiesca, os macacos do poder.

A morte nunca é um critério absoluto, mas neste caso é significativa: a era de James Dean, de
Marilyn Monroe e dos Kennedy, daqueles que realmente morreram simplesmente porque tinham uma
dimensão mítica que implica a morte (não por razões românticas, mas por causa do princípio
fundamental de reversão e troca) - esta era já passou. Estamos agora na era do assassinato por
simulação, da estética generalizada da simulação, do álibi do assassinato - a ressurreição alegórica
da morte, que existe apenas para sancionar a instituição do poder, sem a qual já não tem
qualquer substância ou efeito. realidade autônoma.

Estes assassinatos presidenciais encenados são reveladores porque assinalam o estatuto de toda a
negatividade no Ocidente: a oposição política, a "esquerda", o discurso crítico, etc.
irresponsabilidade fundamental, da sua “suspensão”. O poder flutua como o dinheiro, como a
linguagem, como a teoria. A crítica e a negatividade por si só ainda secretam um fantasma da
realidade do poder. Se eles ficarem fracos por uma razão ou outra, o poder não terá outro recurso
senão reanimá-los artificialmente e aluciná-los.

É desta forma que as execuções espanholas ainda servem como estimulante para a democracia
liberal ocidental, para um sistema moribundo de valores democráticos. Sangue fresco, mas por
quanto tempo? A deterioração de todo o poder é perseguida irresistivelmente: não são tanto
as “forças revolucionárias” que aceleram este processo (muitas vezes é exactamente o oposto), é o
próprio sistema que lança contra as suas próprias estruturas esta violência que anula toda a substância
e toda finalidade. Não se deve resistir a este processo tentando confrontar o sistema e destruí-
lo, porque este sistema que está a morrer por ter sido despojado da sua morte não espera nada de
nós senão isto: que devolvamos ao sistema a sua morte, que o reanimemos através da negativo. Fim
da práxis revolucionária, fim da dialética. Curiosamente, Nixon, que nem sequer foi considerado
digno de morrer às mãos da pessoa mais insignificante, casual e desequilibrada (e embora
seja talvez verdade que os presidentes são assassinados por tipos desequilibrados, isso não
muda nada: a propensão esquerdista para detectar um direitista A conspiração por trás disso
traz à tona um falso problema - a função de trazer a morte, ou a profecia, etc., contra o poder sempre
foi cumprida, desde as sociedades primitivas até o presente, por pessoas dementes, loucos ou
neuróticos, que, no entanto, carregam uma função social tão fundamental como a dos presidentes),
foi, no entanto, ritualmente condenado à morte por Watergate. Watergate ainda é um mecanismo
para o assassinato ritual do poder (o
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A instituição americana da presidência é muito mais emocionante neste aspecto do que a


europeia: rodeia-se de toda a violência e vicissitudes dos poderes primitivos, dos rituais selvagens).
Mas o impeachment já não é mais um assassinato: acontece através da Constituição. No entanto,
Nixon chegou ao objectivo com que todo o poder sonha: ser levado suficientemente a sério, constituir
um perigo suficientemente mortal para o grupo para um dia ser dispensado das suas funções,
denunciado e liquidado. Ford nem tem mais essa oportunidade: simulacro de um poder já morto, só
consegue acumular contra si os sinais de reversão através do assassinato - na verdade, está
imunizado por sua impotência, o que o enfurece.

Ao contrário do rito primitivo, que prevê a morte oficial e sacrificial do rei (o rei ou o chefe não é
nada sem a promessa do seu sacrifício), o imaginário político moderno vai cada vez mais no
sentido de protelar, de ocultar por tanto tempo possível, a morte do chefe de Estado. Esta
obsessão acumulou-se desde a era das revoluções e dos líderes carismáticos: Hitler, Franco, Mao,
não tendo herdeiros “legítimos”, nem filiação de poder, vêem-se forçados a perpetuar-
se indefinidamente – o mito popular nunca deseja acreditar que estão mortos. Os faraós já faziam
isso: era sempre a mesma pessoa que encarnava os sucessivos faraós.

Tudo acontece como se Mao ou Franco já tivessem morrido diversas vezes e tivessem sido
substituídos pelo seu sósia. Do ponto de vista político, o facto de um chefe de Estado permanecer
o mesmo ou ser outra pessoa não muda estritamente nada, desde que se pareçam. Há muito tempo
que um chefe de Estado - seja qual for - nada mais é do que o simulacro de si mesmo, e só
isso lhe dá o poder e a qualidade para governar. Ninguém concederia o mínimo consentimento, a
menor devoção a uma pessoa real. É ao seu duplo, estando ele sempre morto, a quem se presta
fidelidade. Este mito nada mais faz do que traduzir a persistência e, ao mesmo tempo, o engano,
da necessidade da morte sacrificial do rei.

Continuamos no mesmo barco: nenhuma sociedade sabe lamentar o real, o poder, o próprio social,
que está implicado na mesma perda. E é através de uma revitalização artificial de tudo isto que
tentamos escapar a este facto. Esta situação acabará sem dúvida por dar origem ao socialismo.
Através de uma reviravolta imprevista e através de uma ironia que já não é a da história, é da morte
do social que emergirá o socialismo, tal como é da morte de Deus que emergem as religiões. Um
advento distorcido, um acontecimento perverso, uma reversão ininteligível à lógica da razão.
Assim como o fato de que o poder, em essência, não está mais presente, exceto para ocultar que
não há mais poder. Uma simulação que pode durar indefinidamente, porque, diferentemente do
"verdadeiro" poder - que é, ou foi, uma estrutura, uma estratégia, uma relação de força, uma aposta -
nada mais é do que o objecto de uma exigência social e, portanto, como objeto da lei da oferta e da
procura, não está mais sujeito à violência e à morte. Completamente expurgado de uma dimensão
política, ele, como qualquer outra mercadoria, depende da produção e do consumo em massa.
A sua centelha desapareceu, restando apenas a ficção de um universo político.

O mesmo vale para o trabalho. A centelha da produção, a violência das suas apostas já não
existem. O mundo inteiro ainda produz, e cada vez mais, mas subtilmente, o trabalho tornou-
se outra coisa: uma necessidade (como idealmente Marx o imaginou, mas não no mesmo sentido), o
objecto de uma “demanda” social, como o lazer, à qual é equivalente. no decorrer das
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vida cotidiana. Uma exigência exactamente proporcional à perda de participação no processo de


trabalho.*6 A mesma mudança na sorte que no poder: o cenário do trabalho existe para esconder que
o real do trabalho, o real da produção, desapareceu. E também o real da greve, que não é mais uma
paralisação do trabalho, mas seu polo alternativo na escansão ritual do calendário social. Tudo
se passa como se cada pessoa tivesse, depois de declarar greve, “ocupado” o seu lugar e posto de
trabalho e recomeçado a produção, como é norma numa ocupação “autogerida”, exactamente nos
mesmos termos de antes, ao mesmo tempo que se declara (e em estar virtualmente)
permanentemente em greve.

Este não é um sonho saído da ficção científica: em todo o lado trata-se de duplicar o processo
de trabalho. E de uma duplicação do processo de greve - greve incorporada tal como a
obsolescência está nos objectos, tal como a crise está na produção. Então, não há mais golpe, nem
trabalho, mas ambos simultaneamente, ou seja, outra coisa: uma magia do trabalho, um
trompel'oeil, um scenodrama (para não dizer um melodrama) de produção, uma
dramaturgia coletiva sobre o palco vazio do social.

Já não se trata da ideologia do trabalho – a ética tradicional que obscureceria o processo


“real” de trabalho e o processo “objetivo” de exploração – mas do cenário do trabalho. Da mesma
forma, não se trata mais de ideologia de poder, mas de cenário de poder. A ideologia só
corresponde a uma corrupção da realidade através de signos; a simulação corresponde a um curto-
circuito da realidade e à sua duplicação através de signos. O objetivo da análise ideológica é
sempre restaurar o processo objetivo; é sempre um falso problema querer restaurar a verdade sob o
simulacro.

É por isso que afinal o poder está tão sintonizado com os discursos ideológicos e os
discursos sobre a ideologia, ou seja, são discursos de verdade - sempre bons para contrariar os
golpes mortais da simulação, mesmo e especialmente se forem revolucionários.

O FIM DO PANOPTICO

É ainda a esta ideologia da experiência vivida - exumação do real na sua banalidade fundamental,
na sua autenticidade radical - que se refere a experiência da TV verité americana tentada com a família
Loud em 1971: sete meses de filmagem ininterrupta, trezentas horas de filmagem ininterrupta
transmitindo, sem roteiro ou roteiro, a odisséia de uma família, seus dramas, suas alegrias, seus
acontecimentos inesperados, sem parar - em suma, um documento histórico "bruto", e a
"maior performance televisiva, comparável, na escala de nossa vida cotidiana, até a filmagem de
nosso pouso na Lua." Torna-se mais complicado porque esta família se desfez durante as
filmagens: eclodiu uma crise, os Louds separaram-se, etc. De onde vem aquela polémica insolúvel:
a própria TV foi responsável? O que teria acontecido se a TV não existisse?

Mais interessante é a ilusão de filmar os Louds como se a TV não existisse. O triunfo do


produtor foi dizer: “Eles viviam como se não estivéssemos ali”. Uma fórmula absurda e
paradoxal – nem verdadeira nem falsa: utópica. O “como se não estivéssemos lá” sendo igual a “como
se você estivesse lá”. Foi esta utopia, este paradoxo que fascinou os vinte milhões de
telespectadores, muito mais do que o prazer “perverso” de violar a privacidade de alguém. Na
experiência “verité” não se trata de segredo ou perversão, mas de uma espécie de frisson do real,
ou de uma estética do hiperreal, um frisson de vertiginoso e
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exatidão falsa, frisson de distanciamento e ampliação simultâneos, de distorção de escala, de


transparência excessiva. O prazer do excesso de sentido, quando a barra do signo cai abaixo da
linha d’água habitual do sentido: o não-significante é exaltado pelo ângulo da câmera. Aí se vê o
que o real nunca foi (mas “como se você estivesse lá”), sem a distância que nos dá espaço
perspectivo e visão de profundidade (mas “mais real que a natureza”). Prazer na simulação
microscópica que permite que o real passe para o hiperreal. (Este também é o caso da pornografia,
que é fascinante mais no nível metafísico do que no nível sexual.)

Além disso, esta família já era hiper-real pela própria natureza da sua selecção: uma típica família
americana ideal, casa californiana, três garagens, cinco filhos, estatuto social e profissional
assegurado, dona de casa decorativa, posição de classe média alta. De certa forma, é esta perfeição
estatística que o condena à morte. Heroína ideal do modo de vida americano, é, como nos antigos
sacrifícios, escolhida para ser glorificada e morrer sob as chamas do médium, um fatum moderno.
Como o fogo celeste não cai mais sobre as cidades corrompidas, é a lente da câmera que, como um
laser, vem perfurar a realidade vivida para matá-la. “The Louds: simplesmente uma família que
concordou em se entregar nas mãos da televisão e morrer por ela”, dirá o diretor. Trata-se, portanto,
de um processo sacrificial, de um espetáculo sacrificial oferecido a vinte milhões de americanos.
O drama litúrgico de uma sociedade de massas.

TV verdade. Termo admirável pela sua ambiguidade, refere-se à verdade desta família ou à verdade
da TV? Na verdade, é a TV que é a verdade dos Louds, é a TV que é verdadeira, é a TV que torna
a verdade. Verdade que já não é a verdade reflexiva do espelho, nem a verdade perspectivista
do sistema panóptico e do olhar, mas a verdade manipuladora do teste que sonda e interroga, do
laser que toca e perfura, dos cartões de computador que retenha suas sequências
preferidas, do código genético que controla suas combinações, de células que informam seu
universo sensorial. É a esta verdade que a família Loud foi submetida pelo meio televisivo e, nesse
sentido, equivale a uma sentença de morte (mas será ainda uma questão de verdade?).

Fim do sistema panóptico. O olho da TV não é mais a fonte de um olhar absoluto, e o ideal de
controle não é mais o da transparência. Isto pressupõe ainda um espaço objectivo (o do
Renascimento) e a omnipotência do olhar despótico. Ainda é, se não um sistema de confinamento,
pelo menos um sistema de mapeamento. De forma mais subtil, mas sempre externamente,
jogando com a oposição entre ver e ser visto, mesmo que o ponto focal panóptico possa ser
cego.

Outra coisa em relação aos Louds. “Você não assiste mais TV, é a TV que te assiste (ao vivo)”, ou
ainda: “Você não está mais ouvindo Don’t Panic, é Don’t Panic que está ouvindo você” – uma
mudança do mecanismo panóptico de vigilância (Vigiar e Punir [Surveiller et punir]) para um sistema
de dissuasão, em que a distinção entre o passivo e o ativo é abolida. Não há mais nenhum
imperativo de submissão ao modelo, nem ao olhar “VOCÊ é o modelo!” "VOCÊS são a maioria!" Tal
é o divisor de águas de uma sociabilidade hiperreal, em que o real se confunde com o modelo,
como na operação estatística, ou com o meio, como na operação de Louds. Tal é a última fase da
relação social, a nossa, que já não é de persuasão (a era clássica da propaganda, da ideologia, da
publicidade, etc.), mas de dissuasão: "VOCÊS são informação,
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você é o social, você é o evento, você está envolvido, você tem a palavra, etc." Uma reviravolta
através da qual se torna impossível localizar uma instância do modelo, do poder, do olhar, do próprio
meio , porque você já está sempre do outro lado. Não há mais sujeito, não há mais ponto focal,
não há mais centro ou periferia: pura flexão ou inflexão circular. Não há mais violência ou vigilância:
apenas "informação", virulência secreta, reação em cadeia, lenta implosão e simulacros de espaços
onde o efeito do real entra novamente em jogo.

Assistimos ao fim do espaço perspectivo e panóptico (que continua a ser uma hipótese moral
ligada a todas as análises clássicas sobre a essência “objectiva” do poder) e, portanto, à própria
abolição do espectacular. A televisão, por exemplo no caso dos Louds, já não é um meio
espetacular. Já não estamos na sociedade do espetáculo, de que falavam os situacionistas,
nem nos tipos específicos de alienação e repressão que ela implicava. O meio em si já não é
identificável como tal, e a confusão do meio e da mensagem (McLuhan)*7 é a primeira grande
fórmula desta nova era. Não existe mais um meio no sentido literal: ele agora é intangível, difuso e
difratado no real, e não se pode mais dizer que o meio é alterado por ele.

Tal mistura, tal presença viral, endêmica, crônica, alarmante do meio, sem possibilidade de
isolar os efeitos - espectralizados, como essas esculturas publicitárias de laser no espaço vazio do
acontecimento filtrado pelo meio - dissolução da TV na vida , dissolução da vida na TV - solução
química indiscernível: somos todos Louds condenados não à invasão, à pressão, à violência e à
chantagem dos meios de comunicação e dos modelos, mas à sua indução, à sua infiltração, à sua
violência ilegível.

Mas é preciso estar atento à viragem negativa que o discurso impõe: não se trata nem de
doença nem de infecção viral. É preciso pensar, em vez dos meios de comunicação, como se eles
fossem, em órbita exterior, uma espécie de código genético que dirige a mutação do real em
hiperreal, tal como o outro código micromolecular controla a passagem de uma esfera
representativa de significado para a esfera genética. um dos sinais programados.

É todo o mundo tradicional da causalidade que está em questão: o modo perspectivista,


determinista, o modo "ativo", crítico, o modo analítico - a distinção entre causa e efeito, entre ativo e
passivo, entre sujeito e objeto, entre o fim e os meios. É neste sentido que se pode dizer: a TV
nos observa, a TV nos aliena, a TV nos manipula, a TV nos informa...
Em tudo isto, permanecemos dependentes da
concepção analítica dos meios de comunicação, de um agente externo activo e eficaz, de
uma informação "perspectiva" com o horizonte do real e do significado como ponto de fuga.

Agora, é preciso conceber a TV nos moldes do DNA como um efeito em que os pólos
opostos de determinação desaparecem, segundo uma contração, retração nuclear, do antigo esquema
polar que sempre manteve uma distância mínima entre causa e efeito, entre sujeito e objeto:
precisamente a distância do sentido, a lacuna, a diferença, a menor lacuna possível
(PPEP!),*8 irredutível sob pena de reabsorção num processo aleatório e indeterminado cujo
discurso não pode mais dar conta dele, porque ele próprio é uma ordem determinada.
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É esta lacuna que desaparece no processo de codificação genética, em que a indeterminação não é
tanto uma questão de aleatoriedade molecular, mas de abolição, pura e simples, da relação. No
processo de controle molecular, que “vai” do núcleo do DNA até a “substância” que ele “informa”,
não há mais a travessia de um efeito, de uma energia, de uma determinação, de uma mensagem.
“Ordem, sinal, impulso, mensagem”: tudo isso tenta tornar a coisa inteligível para nós, mas por
analogia, retranscrever em termos de inscrição, de vetor, de decodificação, uma dimensão da qual
nada sabemos – não é já não é nem mesmo uma "dimensão", ou talvez seja a quarta (que é
definida, contudo, na relatividade einsteiniana pela absorção dos pólos distintos do espaço e
do tempo). Na verdade, todo este processo só pode ser compreendido na sua forma negativa:
nada mais separa um pólo do outro, o início do fim; há uma espécie de contração de um sobre o
outro, uma telescopagem fantástica, um colapso dos dois pólos tradicionais um no outro: implosão
- uma absorção do modo radiante de causalidade, do modo diferencial de determinação, com seu
positivo e negativo carga - uma implosão de significado. É aí que a simulação começa.

Em todo o lado, seja qual for o domínio - político, biológico, psicológico, mediatizado - em que a
distinção entre estes dois pólos já não possa ser mantida, entra-se na simulação e, portanto, na
manipulação absoluta - não na passividade, mas na diferenciação de o ativo e o passivo. O
DNA realiza esta redução aleatória ao nível da matéria viva. A televisão, no caso dos Louds,
também atinge esse limite indefinido em que, face à TV, eles não são nem mais nem menos
activos ou passivos do que uma substância viva perante o seu código molecular. Aqui e ali, uma única
nebulosa cujos elementos simples são indecifráveis, cuja verdade é indecifrável.

O ORBITAL E O NUCLEAR

A apoteose da simulação: o nuclear. No entanto, o equilíbrio do terror nunca é outra coisa


senão a inclinação espectacular de um sistema de dissuasão que se insinuou a partir de dentro
em todas as fendas da vida quotidiana. A suspensão nuclear serve apenas para selar o banalizado
sistema de dissuasão que está no cerne dos meios de comunicação, da violência sem consequências
que reina em todo o mundo, do aparato aleatório de todas as escolhas que são feitas por nós.
O mais insignificante dos nossos comportamentos é regulado por sinais neutralizados,
indiferentes, equivalentes, por sinais de soma zero como aqueles que regulam a "estratégia dos
jogos" (mas a verdadeira equação está em outro lugar, e o desconhecido é precisamente aquela
variável de simulação que faz com que do próprio arsenal atômico uma forma hiper-real, um
simulacro que domina tudo e reduz todos os eventos "de nível básico" a nada mais que cenários
efêmeros, transformando a vida que nos deixou em sobrevivência, em uma aposta sem apostas -
nem mesmo em um seguro de vida política: numa política que já não tem valor).

Não é a ameaça direta de destruição atómica que paralisa as nossas vidas, é a dissuasão que
lhes causa leucemia. E esta dissuasão provém do facto de que mesmo o choque atómico real
está excluído – excluído como a eventualidade do real num sistema de signos.
O mundo inteiro finge acreditar na realidade desta ameaça (isto é compreensível por parte dos
militares, estão em causa a gravidade do seu exercício e o discurso da sua “estratégia”), mas é
precisamente a este nível que existe não há apostas estratégicas. Toda a originalidade da situação
reside na improbabilidade da destruição.
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A dissuasão impede a guerra – a violência arcaica dos sistemas em expansão. A própria dissuasão
é a violência neutra e implosiva de sistemas metaestáveis ou sistemas em involução. Não há mais
tema de dissuasão, nem adversário, nem estratégia - é uma estrutura planetária de aniquilação
de riscos. A guerra atómica, tal como a Guerra de Tróia, não ocorrerá. O risco de aniquilação
nuclear serve apenas de pretexto, através da sofisticação das armas (uma sofisticação que ultrapassa
qualquer objectivo possível a tal ponto que é em si um sintoma de nulidade), para instalar um sistema
de segurança universal, um bloqueio e controlo universal sistema cujo efeito dissuasor não visa
de forma alguma um choque atómico (que nunca esteve em causa, excepto sem dúvida nas fases
iniciais da guerra fria, quando ainda se confundia o aparelho nuclear com a guerra convencional),
mas, antes, a probabilidade muito maior de qualquer acontecimento real, de qualquer coisa que
fosse um acontecimento no sistema geral e perturbasse o seu equilíbrio. O equilíbrio do terror é o
terror do equilíbrio.

A dissuasão não é uma estratégia, ela circula e é trocada entre protagonistas nucleares exactamente
como o é o capital internacional na zona orbital da especulação monetária cujas flutuações são
suficientes para controlar todas as trocas globais. Assim, o dinheiro da destruição (sem
qualquer referência à destruição real, tal como o capital flutuante não tem uma referência real
de produção) que circula na órbita nuclear é suficiente para controlar toda a violência e potenciais
conflitos em todo o mundo.

O que se cria à sombra deste mecanismo, com o pretexto de uma ameaça máxima,
“objectiva”, e graças à espada nuclear de Dâmocles, é a perfeição do melhor sistema de controlo
que alguma vez existiu. E a progressiva satelização de todo o planeta através deste hipermodelo
de segurança.

O mesmo se aplica às centrais nucleares pacíficas. A pacificação não distingue entre o civil e o
militar: em todos os lugares onde são elaborados aparatos de controle irreversíveis, em todos os
lugares onde a noção de segurança se torna onipotente, em todos os lugares onde a
norma substitui o antigo arsenal de leis e de violência (incluindo a guerra), é o sistema de
dissuasão que cresce, e em torno dela cresce o deserto histórico, social e político. Uma involução
gigantesca que faz com que cada conflito, cada finalidade, cada confronto se contraia na proporção
desta chantagem que interrompe, neutraliza, congela a todos. Nenhuma revolta, qualquer história
não pode mais ser desenvolvida de acordo com sua própria lógica porque corre o risco de
aniquilação. Nenhuma estratégia é mais possível e a escalada é apenas um jogo pueril entregue
aos militares. A aposta política está morta, restam apenas simulacros de conflitos e apostas
cuidadosamente circunscritas.

A “corrida espacial” desempenhou exactamente o mesmo papel que a escalada nuclear. É por
isso que o programa espacial foi tão facilmente capaz de substituí-lo na década de 1960 (Kennedy/
Khrushchev), ou de se desenvolver simultaneamente como uma forma de “coexistência pacífica”.
Porque qual é, em última análise, a função do programa espacial, da conquista da Lua, do
lançamento de satélites, senão a instituição de um modelo de gravitação universal, de
satelização de que o módulo lunar é o embrião perfeito? Microcosmo programado, onde nada pode
ser deixado ao acaso. Trajetória, energia, cálculo, fisiologia, psicologia, meio ambiente -
nada pode ser deixado às contingências, este é o universo total da norma - o Direito não existe mais,
é a imanência operacional de cada detalhe que é direito. Um universo expurgado de toda ameaça
de significado, num estado de assepsia e ausência de peso - é
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essa mesma perfeição que é fascinante. A exaltação das multidões não foi uma resposta ao
evento de Rinding na Lua ou de envio de um homem ao espaço (isto seria, antes, a
realização de um sonho anterior), pelo contrário, ficamos pasmos com a perfeição da
programação e a manipulação técnica, pelo deslumbramento imanente do
desenrolar programado dos acontecimentos. Fascínio pela norma máxima e domínio da
probabilidade. Vertigem do modelo, que se une ao modelo da morte, mas sem medo nem
pulsão. Porque se a lei, com sua aura de transgressão, se a ordem, com sua aura de
violência, ainda toca num imaginário perverso, a norma fixa, fascina, entorpece e faz involuir
todo imaginário. Já não se fantasia sobre as minúcias de um programa. Apenas observá-lo
produz vertigem. A vertigem de um mundo sem falhas.

Ora, é o mesmo modelo de infalibilidade programática, de máxima segurança e


dissuasão que hoje controla a propagação do social. Aí reside a verdadeira consequência
nuclear: a operação meticulosa da tecnologia serve de modelo para a operação meticulosa
do social. Também aqui nada será deixado ao acaso, aliás esta é a essência da
socialização, que começou há séculos, mas que agora entrou na sua fase acelerada,
rumo a um limite que se acreditava ser explosivo (revolução), mas que para o momento é
traduzido por um processo inverso, implosivo, irreversível: a dissuasão generalizada
do acaso, do acidente, da transversalidade, da finalidade, da contradição, da ruptura ou
da complexidade numa sociabilidade iluminada pela norma, condenada à
transparência descritiva dos mecanismos de Informação. Na verdade, os modelos espaciais
e nucleares não têm fins próprios: nem a descoberta da Lua, nem a superioridade
militar e estratégica. A sua verdade deverá ser os modelos de simulação, os vectores modelo
de um sistema de controlo planetário (onde mesmo as superpotências deste cenário não
são livres - o mundo inteiro está satelizado).*9

Resista às evidências: na satelização, quem está satelizado não é quem se imagina.


Através da inscrição orbital de um objeto espacial, é o planeta Terra que se torna satélite,
é o princípio terrestre da realidade que se torna excêntrico, hiper-real e insignificante.
Através da instanciação orbital de um sistema de controle como a coexistência
pacífica, todos os microssistemas terrestres são satelizados e perdem sua autonomia.
Toda energia, todos os acontecimentos são absorvidos por esta gravitação excêntrica,
tudo se condensa e implode em direção ao único micromodelo de controle (o satélite
orbital), como inversamente, na outra dimensão, biológica, tudo converge e implode no
micromodelo molecular da genética. código. Entre os dois, nesta bifurcação do nuclear e
do genético, na assunção simultânea dos dois códigos fundamentais de dissuasão,
todo princípio de sentido é absorvido, todo desdobramento do real é impossível.

A simultaneidade de dois acontecimentos no mês de Julho de 1975 ilustrou isto de uma


forma surpreendente: a ligação no espaço dos dois supersatélites americano e soviético,
apoteose da coexistência pacífica - a supressão pelos chineses da escrita ideograma
e a conversão para o alfabeto romano. Este último significa a instanciação “orbital” de
um sistema abstrato e modelizado de signos, em cuja órbita todas as formas outrora
únicas de estilo e escrita serão reabsorvidas. A satelização da linguagem: o meio para
os chineses entrarem no sistema de coexistência pacífica, que está inscrito nos seus céus
precisamente ao mesmo tempo pela ligação dos dois satélites. Voo orbital dos Dois
Grandes, neutralização e homogeneização de todos os outros habitantes da Terra.
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No entanto, apesar desta dissuasão do poder orbital – o código nuclear ou molecular – os acontecimentos
continuam ao nível do solo, os infortúnios são ainda mais numerosos, dado o processo global de
contiguidade e simultaneidade de dados. Mas, subtilmente, já não têm sentido, já não são mais que o efeito
duplex da simulação no cume. O melhor exemplo só pode ser o da guerra do Vietname, porque ocorreu
na intersecção de uma aposta histórica e “revolucionária” máxima e da instalação desta autoridade
dissuasora. Que significado teve esta guerra e o seu desenrolar não foi um meio de selar o fim da
história no acontecimento histórico decisivo e culminante da nossa era?

Por que esta guerra, tão dura, tão longa, tão feroz, desapareceu de um dia para o outro como num passe de
mágica?

Por que esta derrota americana (o maior revés na história dos EUA) não teve repercussões internas na
América? Se tivesse realmente significado o fracasso da estratégia planetária dos Estados Unidos, teria
necessariamente perturbado completamente o seu equilíbrio interno e o sistema político americano. Nada
disso ocorreu.

Outra coisa, então, aconteceu. Esta guerra, no fundo, não foi senão um episódio crucial de coexistência
pacífica. Marcou a chegada da China à coexistência pacífica. A não-intervenção da China obtida e
assegurada após muitos anos, a aprendizagem da China para um modus vivendi global, a mudança de
uma estratégia global de revolução para uma estratégia de forças e impérios partilhados, a transição de
uma alternativa radical para a alternância política num sistema agora essencialmente regulamentado (a
normalização das relações Pequim - Washington): era isso que estava em jogo na guerra do Vietname e,
neste sentido, os EUA saíram do Vietname mas venceram a guerra.

E a guerra terminou “espontaneamente” quando este objectivo foi alcançado. Por isso foi desescalada,
desmobilizada tão facilmente.

Essa mesma redução de forças pode ser observada em campo. A guerra durou enquanto elementos
irredutíveis a uma política saudável e a uma disciplina de poder, mesmo comunista, permaneceram
não liquidados. Quando finalmente a guerra passou para as mãos das tropas regulares no Norte e escapou
às da resistência, a guerra poderia parar: tinha alcançado o seu objectivo. O que está em jogo é,
portanto, o de um revezamento político. Assim que os vietnamitas provassem que já não eram
portadores de uma subversão imprevisível, poderíamos deixá-los assumir o controlo. Que a ordem deles seja
comunista, no final das contas não é algo sério: ela provou seu valor, era confiável. É ainda mais eficaz do
que o capitalismo na liquidação de estruturas pré-capitalistas “selvagens” e arcaicas.

O mesmo cenário na guerra da Argélia.

O outro aspecto desta guerra e de todas as guerras actuais: por detrás da violência armada, o
antagonismo assassino dos adversários - que parece uma questão de vida ou morte, que se desenrola como
tal (ou então nunca se poderia enviar pessoas para se mortos neste tipo de coisas), por detrás deste
simulacro de luta até à morte e de implacáveis apostas globais, os dois adversários estão
fundamentalmente solidários contra outra coisa, sem nome, nunca falada, mas cujo resultado
objectivo na guerra, com a igual cumplicidade de entre os dois adversários, é a liquidação total. Estruturas
tribais, comunitárias, pré-capitalistas,
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toda forma de troca, de linguagem, de organização simbólica, é isso que deve ser abolido, que
é o objeto do assassinato na guerra - e a própria guerra, em seu imenso e espetacular aparato de
morte, nada mais é do que o meio desse processo de racionalização terrorista do social - o
assassinato sobre o qual a sociabilidade será fundada, qualquer que seja a sua lealdade,
comunista ou capitalista. Cumplicidade total, ou divisão de trabalho entre dois adversários (que
podem até consentir em enormes sacrifícios por isso) para o fim de remodelar e domesticar as
relações sociais.

“Os norte-vietnamitas foram aconselhados a aceitar um cenário de liquidação da presença


americana, durante o qual, é claro, é preciso salvar a face.”

Este cenário: os bombardeamentos extremamente duros de Hanói. O seu carácter insustentável


não deve esconder o facto de que não passavam de um simulacro para permitir que os
vietnamitas parecessem aceitar um compromisso e para que Nixon obrigasse os americanos a
engolir a retirada das suas tropas. O jogo já estava ganho, nada estava objetivamente em
jogo a não ser a verossimilhança da montagem final.

Os moralistas da guerra, os detentores de elevados valores de guerra, não devem desanimar: a


guerra não é menos atroz por ser apenas um simulacro - a carne sofre da mesma forma, e os
mortos e ex-combatentes valem o mesmo que em outras guerras . Este objectivo é sempre
cumprido, tal como o da cartografia dos territórios e da sociabilidade disciplinar.
O que já não existe é a adversidade dos adversários, a realidade das causas antagónicas, a
seriedade ideológica da guerra. E também a realidade da vitória ou da derrota, sendo a guerra um
processo que triunfa muito além destas aparências.

Em qualquer caso, a pacificação (ou a dissuasão) que hoje nos domina está além da guerra e
da paz, é que a cada momento a guerra e a paz se equivalem. “Guerra é paz”, disse Orwell.
Também aí os dois pólos diferenciais implodem um no outro, ou reciclam-se um no outro –
uma simultaneidade de contradições que é ao mesmo tempo a paródia e o fim de toda dialética.
Assim, pode-se ignorar completamente a verdade de uma guerra: nomeadamente, que esta
terminou muito antes de começar, que houve um fim para a guerra no centro da própria guerra, e
que talvez nunca tenha começado. Muitos outros acontecimentos (a crise do petróleo, etc.)
nunca começaram, nunca existiram, excepto como ocorrências artificiais - abstractas, ersatz,
e como artefactos da história, catástrofes e crises destinadas a manter um investimento histórico
sob hipnose. Os meios de comunicação social e o serviço noticioso oficial existem apenas para
manter a ilusão de uma realidade, da realidade do que está em jogo, da objectividade dos
factos. Todos os acontecimentos devem ser lidos de trás para frente, ou tomaremos consciência
(como aconteceu com os comunistas "no poder" na Itália, da redescoberta retro e póstuma dos
gulags e dos dissidentes soviéticos, como a descoberta quase contemporânea, por uma
etnologia moribunda, dos "perdidos" diferença" dos Selvagens) que todas estas coisas
chegaram tarde demais, com uma história de atraso, uma espiral de atraso, que há muito
esgotaram o seu sentido e só vivem de uma efervescência artificial de sinais, que todos
estes acontecimentos se sucedem sem lógica , na mais contraditória e completa equivalência,
numa profunda indiferença às suas consequências (mas isto porque não há nenhuma:
esgotam-se na sua promoção espectacular) - todas as filmagens de "jornais" dão assim a impressão
sinistra de kitsch, de retro e pornografia ao mesmo tempo - sem dúvida todos sabem disso, e
ninguém realmente aceita isso. A realidade da simulação é insuportável - mais cruel que o Teatro
da Crueldade de Artaud, que ainda era uma tentativa de criar uma dramaturgia da vida, o último suspiro de uma idealidade
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sistema que já o estava levando embora, em direção a uma reabsorção de todas as apostas sem
deixar vestígios de sangue. Para nós, o truque foi pregado. Toda dramaturgia e até mesmo toda
escrita real sobre crueldade desapareceram. A simulação é o mestre, e só temos direito ao retro, ao
fantasma, à reabilitação paródica de todos os referenciais perdidos. Tudo ainda se desenrola à
nossa volta, à luz fria da dissuasão (incluindo Artaud, que tem direito como tudo ao seu
renascimento, a uma segunda existência como referencial da crueldade).

É por isso que a proliferação nuclear não aumenta o risco de um choque atómico ou de um acidente -
excepto no intervalo em que as "jovens" potências poderiam ser tentadas a fazer um uso "real"
e não dissuasor dela (como fizeram os americanos em Hiroshima). - mas precisamente só eles tinham
direito a este “valor de uso” da bomba, todos aqueles que a adquiriram desde então serão dissuadidos
de a utilizar pelo próprio facto de a possuírem). A entrada no clube atômico, tão bem chamado,
apaga muito rapidamente (como faz a sindicalização no mundo do trabalho) qualquer inclinação
para a intervenção violenta. A responsabilidade, o controlo, a censura, a auto-dissuasão crescem
sempre mais rapidamente do que as forças ou as armas à nossa disposição: este é o segredo da
ordem social. Assim, a própria possibilidade de paralisar um país inteiro apertando um interruptor
faz com que os engenheiros eléctricos nunca utilizem esta arma: todo o mito da greve total e
revolucionária desmorona no preciso momento em que os meios estão disponíveis - mas,
infelizmente, precisamente porque esses meios estão disponíveis. É aí que reside todo o
processo de dissuasão.

É portanto perfeitamente provável que um dia veremos potências nucleares exportarem


reactores atómicos, armas e bombas para todas as latitudes. O controlo pela ameaça será substituído
pela estratégia mais eficaz de pacificação através da bomba e da posse da bomba. As “pequenas”
potências, acreditando que estão a comprar a sua força de ataque independente, comprarão o vírus
da dissuasão, da sua própria dissuasão. O mesmo vale para os reatores atômicos que já lhes
enviamos: tantas bombas de nêutrons eliminando toda a virulência histórica, todo risco de explosão.
Neste sentido, a energia nuclear inaugura em toda parte um processo acelerado de
implosão, congela tudo ao seu redor, absorve toda a energia viva.

A energia nuclear é ao mesmo tempo o ponto culminante da energia disponível e a maximização dos
sistemas de controle de energia. O confinamento e o controlo aumentam em proporção directa
(e sem dúvida ainda mais rápido do que) as potencialidades libertadoras. Esta já era a aporia da
revolução moderna. Ainda é o paradoxo absoluto da energia nuclear. As energias congelam em seu
próprio fogo, elas se detêm. Já não se pode imaginar que projecto, que poder, que estratégia, que
sujeito poderia existir por detrás deste enclausuramento, desta vasta saturação de um sistema
pelas suas próprias forças, agora neutralizado, inutilizável, ininteligível, não explosivo - excepto
pela possibilidade de uma explosão em direcção a o centro, de uma implosão onde todas essas
energias seriam abolidas num processo catastrófico (no sentido literal, isto é, no sentido de uma
reversão de todo o ciclo para um ponto mínimo, de uma reversão de energias para um ponto mínimo
limite).

* NOTAS *

1. Cf. J. Baudrillard, "L'ordre des simulacres" (A ordem dos simulacros), em L'echange symbolique
et la mort (Troca simbólica e morte) (Paris: Gallimard, 1976).
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2. Um discurso que em si não é suscetível de ser resolvido na transferência. É o entrelaçamento


desses dois discursos que torna a psicanálise interminável.

3. Cf. M. Perniola, Icônes, visões, simulacros (Ícones, visões, simulacros), 39.

4. Isto não resulta necessariamente na desesperança do significado, mas também na


improvisação do significado, do não-significado, de muitos significados simultâneos que se destroem
uns aos outros.

5. Tomadas em conjunto, a crise energética e a mise-en-scène ecológica são elas próprias um


filme-catástrofe, no mesmo estilo (e com o mesmo valor) daqueles que constituem actualmente
os tempos dourados de Hollywood. É inútil interpretar laboriosamente estes filmes em termos da sua
relação com uma crise social “objetiva” ou mesmo com um fantasma “objetivo” de desastre. É num
outro sentido que se deve dizer que é o próprio social que, no discurso contemporâneo, é
organizado segundo as linhas de um guião de filme-catástrofe. (Cf. M.
Makarius, La stratégic de la catastrophe [A estratégia do desastre], 115.)

6. A esta diminuição do investimento no trabalho corresponde uma diminuição paralela do investimento


no consumo. Adeus ao valor de uso ou ao prestígio do automóvel, adeus aos discursos
amorosos que opunham nitidamente o objeto de gozo ao objeto de trabalho.
Instala-se outro discurso que é um discurso de trabalho sobre o objeto de consumo visando um
reinvestimento ativo, constrangedor, puritano (use menos gasolina, cuide da sua segurança,
ultrapassou o limite de velocidade, etc.) ao qual o características dos automóveis pretendem se
adaptar. Redescobrir uma aposta através da transposição destes dois pólos.
O trabalho passa a ser objeto de uma necessidade, o carro passa a ser objeto de trabalho. Não
há melhor prova da falta de diferenciação entre todas as apostas. É através do mesmo deslize
entre o “direito” de voto e o “dever” eleitoral que se sinaliza o desinvestimento da esfera
política.

7. A confusão meio/mensagem é certamente um corolário daquela entre o emissor e o receptor,


selando assim o desaparecimento de todas as estruturas duais e polares que formavam a
organização discursiva da linguagem, de toda articulação determinada de significado que reflecte a
famosa grelha de funções de Jakobson. . Esse discurso “circula” deve ser entendido literalmente:
isto é, não vai mais de um ponto a outro, mas percorre um ciclo que inclui indistintamente as
posições de transmissor e receptor, agora inlocalizáveis como tais.
Assim, não há instância de poder, nem instância de transmissão - o poder é algo que circula e cuja
fonte não pode mais ser localizada, um ciclo em que as posições do dominador e do dominado são
trocadas numa reversão sem fim que é também o fim de poder em sua definição clássica. A
circularização do poder, do conhecimento, do discurso põe fim a qualquer localização de instâncias
e pólos. Na própria interpretação psicanalítica, o “poder” do intérprete não vem de nenhuma
instância externa, mas do próprio interpretado. Isto muda tudo, porque sempre se pode
perguntar aos detentores tradicionais do poder de onde eles tiram o seu poder. Quem fez você
duque? O rei. Quem fez de você rei? Deus. Só Deus não responde mais. Mas vamos à pergunta:
quem fez de você psicanalista? o analista pode muito bem responder: Você. Assim se expressa, por
uma simulação inversa, a passagem do “analisado” ao “analisado”, do passivo ao ativo, que
simplesmente descreve o efeito espiral da mudança de pólos, o efeito da circularidade em que o
poder é perdido, é dissolvido, é resolvido em perfeita
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manipulação (já não é da ordem do poder diretivo e do olhar, mas da ordem da tatilidade e da
comutação). Ver também a circularidade Estado/família assegurada pela flutuação e regulação
metastática das imagens do social e do privado (J.
Donzelot, La policial des/amilles [O policiamento das famílias]).

Impossível agora fazer a famosa pergunta: “De que posição você fala?” - "Como você sabe?"
"De onde você tira seu poder?" sem ouvir a resposta imediata: “Mas é de você (de você)
que eu falo” - ou seja, é você quem fala, você quem sabe, você quem é o poder. Gigantesca
circunvolução, circunlocução da palavra falada, que equivale a uma chantagem sem fim,
a uma dissuasão inapelável do sujeito que se presume falar, deixando-o sem resposta, porque
à questão que coloca responde-se inelutávelmente: mas você é a resposta, ou: sua pergunta já é uma
resposta, etc. - toda a sofisticação estrangulante da interceptação do discurso, da confissão
forçada sob o pretexto da liberdade de expressão, de aprisionar o sujeito em seu próprio
interrogatório, da precessão da resposta à pergunta (aí reside toda a violência da interpretação, bem
como a da gestão consciente ou inconsciente da “palavra falada” [parole]).

Este simulacro de inversão ou involução de pólos, este subterfúgio inteligente, que é o segredo de
todo o discurso da manipulação e, portanto, hoje, em todos os domínios, o segredo de qualquer novo
poder no apagamento da cena do poder, na a assunção de todas as palavras da qual resultou
esta fantástica maioria silenciosa característica do nosso tempo - tudo isto começou sem dúvida na
esfera política com o simulacro democrático, que hoje é a substituição do poder de Deus pelo
poder do povo como fonte de poder, e do poder como emanação com o poder como representação.
Revolução anticopernicana: nenhuma instância transcendental, nem do sol, nem das
fontes luminosas de poder e conhecimento – tudo vem do povo e tudo retorna para ele. É com
esta magnífica reciclagem que o simulacro universal da manipulação, desde o cenário do
sufrágio em massa até aos actuais fantasmas das sondagens de opinião, começa a ser
implementado.

8. PPEP é um acrônimo para menor lacuna possível, ou "mais petit écart possível."-TRANS.

9. Paradoxo: todas as bombas são limpas: a sua única poluição é o sistema de segurança e de
controlo que irradiam, desde que não explodam.
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HISTÓRIA: UM CENÁRIO RETRO

Num período violento e contemporâneo da história (digamos entre as duas guerras mundiais e a guerra fria), é
o mito que invade o cinema como conteúdo imaginário. É a idade de ouro das ressurreições despóticas e
lendárias. O mito, afastado do real pela violência da história, encontra refúgio no cinema.

Hoje, é a própria história que invade o cinema segundo o mesmo cenário - a aposta histórica expulsa
das nossas vidas por esta espécie de neutralização imensa, que se chama coexistência pacífica a nível
global, e monotonia pacificada a nível quotidiano - esta história exorcizado por uma sociedade que se
solidifica lenta ou brutalmente celebra sua ressurreição em vigor na tela, segundo o mesmo processo
que fazia reviver mitos perdidos.

A história é o nosso referencial perdido, ou seja, o nosso mito. É por isso que ocupa o lugar dos mitos
na tela. A ilusão seria felicitar-se por esta “consciência da história por parte do cinema”, como se felicitava
pela “entrada da política na universidade”. O mesmo mal-entendido, a mesma mistificação.

As políticas que entram na universidade são aquelas que vêm da história, uma retropolítica, esvaziada
de substância e legalizada no seu exercício superficial, com ares de jogo e de campo de aventura, esse
tipo de política é como a sexualidade ou a educação permanente ( ou como a segurança social no seu
tempo), isto é, a liberalização póstuma.

O grande acontecimento deste período, o grande trauma, é este declínio de referenciais fortes, estas dores de
morte do real e do racional que se abrem para uma era de simulação. Enquanto tantas gerações, e
sobretudo a última, viveram na marcha da história, na expectativa eufórica ou catastrófica de uma
revolução - hoje tem-se a impressão de que a história recuou, deixando atrás de si uma nebulosa indiferente,
atravessada pelas correntes, mas esvaziada de referências. É neste vazio que recuam os fantasmas de
uma história passada, a panóplia de acontecimentos, ideologias, modas retro - já não tanto porque as
pessoas acreditam neles ou ainda depositam alguma esperança neles, mas simplesmente para ressuscitar o
período em que pelo menos houve história, pelo menos houve violência (embora fascista), quando pelo
menos a vida e a morte estavam em jogo. Qualquer coisa serve para escapar a este vazio, a esta leucemia
da história e da política, a esta hemorragia de valores - é na proporção desta angústia que todo o
conteúdo pode ser evocado desordenadamente, que toda a história anterior é ressuscitada em massa - uma
ideia controladora, não já não selecciona, só a nostalgia se acumula incessantemente: a guerra, o fascismo,
a pompa da belle époque, ou as lutas revolucionárias, tudo se equivale e se mistura indiscriminadamente
na mesma exaltação sombria e fúnebre, no mesmo fascínio retro. Há, no entanto, um privilégio da
época imediatamente anterior (o fascismo, a guerra, o período imediatamente a seguir à guerra
- os inúmeros filmes que abordam estes temas têm para nós uma essência mais próxima, mais perversa,
mais densa, mais confusa). Pode-se explicar isso evocando a teoria freudiana do fetichismo (talvez também
uma hipótese retro).

Este trauma (perda de referenciais) é semelhante à descoberta da diferença entre os sexos nas crianças, tão
grave, tão profunda, tão irreversível: a fetichização de um objeto intervém para obscurecer esta descoberta
insuportável, mas precisamente, diz Freud, este objeto não é qualquer objeto, muitas vezes é o último
objeto percebido antes da descoberta traumática.
Assim, a história fetichizada será preferencialmente aquela imediatamente anterior à nossa
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era "irreferencial". Daí a omnipresença do fascismo e da guerra em retro - uma coincidência,


uma afinidade que nada tem de política; é ingénuo concluir que a evocação do fascismo
assinala uma actual renovação do fascismo (é precisamente porque já não se está lá, porque se está
noutra coisa, o que é ainda menos divertido, é por esta razão que o fascismo pode novamente tornar-se
fascinante em sua crueldade filtrada, estetizada pelo retro).*1

A história fez assim a sua entrada triunfal no cinema, postumamente (o termo histórico teve o mesmo
destino: um momento “histórico”, um monumento, um congresso, uma figura são assim designados
como fósseis). Sua reinjeção não tem valor como consciência, mas apenas como nostalgia de um
referencial perdido.

Isto não significa que a história nunca tenha aparecido no cinema como um momento poderoso, como um
processo contemporâneo, como insurreição e não como ressurreição. No “real”, como no cinema,
houve história mas já não existe. Hoje, a história que nos é “devolvida” (precisamente porque nos foi
tirada) não tem mais relação com um “real histórico” do que a neofiguração na pintura tem com a
figuração clássica do real.
A neofiguração é uma invocação da semelhança, mas ao mesmo tempo a prova flagrante do
desaparecimento dos objetos na sua própria representação: hiperreal. Aí os objetos brilham numa espécie
de hipersemelhança (como a história no cinema contemporâneo) que faz com que fundamentalmente não
se assemelhem mais a nada, exceto à figura vazia da semelhança, à forma vazia da representação. É uma
questão de vida ou morte: estes objectos já não são vivos nem mortais. Por isso são tão exatos, tão
diminutos, congelados no estado em que uma perda brutal do real os teria acometido. Todos, mas não só,
aqueles filmes históricos cuja perfeição é inquietante: Chinatown, Três Dias do Condor, Barry
Lyndon, 1900, Todos os Homens do Presidente, etc. montagens que emergem mais de uma cultura
combinatória (ou mosaico McLuhanesco), de grandes máquinas fotográficas, cinematográficas, de
historicossíntese, etc., do que de verdadeiros filmes. Vamos nos entender: a qualidade deles não está em
questão. O problema é que, em certo sentido, ficamos completamente indiferentes.
Veja The Last Picture Show: como eu, você teria que estar suficientemente distraído para pensar que se
tratava de uma produção original da década de 1950: um filme muito bom sobre os costumes e a atmosfera
da pequena cidade americana. Só uma leve suspeita: era um pouco bom demais, mais afinado, melhor
que os outros, sem as manchas psicológicas, morais e sentimentais dos filmes daquela época.
Estupefação quando se descobre que se trata de um filme dos anos 1970, retro perfeito, purgado, puro, a
restituição hiperrealista do cinema dos anos 1950. Fala-se em refazer filmes mudos, que também serão
sem dúvida melhores que os da época. Está surgindo toda uma geração de filmes que serão para quem
sabe o que o andróide é para o homem: artefatos maravilhosos, sem fraquezas, simulacros
agradáveis que carecem apenas do imaginário e da alucinação inerente ao cinema. A maior
parte do que vemos hoje (o melhor) já é desta ordem. Barry Lyndon é o melhor exemplo: nunca se fez
melhor, nunca se fará melhor em evocar, nem mesmo em evocar, em simular. Toda a radiação tóxica
foi filtrada, todos os ingredientes estão aí, em doses precisas, sem nenhum erro.

... em quê? Não em

Prazer fresco, frio, nem mesmo estético em sentido estrito: prazer funcional, prazer equacional, prazer de
maquinação. Basta sonhar com Visconti (Guepard, Senso, etc., que em certos aspectos nos fazem
pensar em Barry Lyndon) para perceber a diferença,
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não só no estilo, mas no ato cinematográfico. Em Visconti há sentido, história, uma retórica sensual,
tempo morto, um jogo apaixonante, não só no conteúdo histórico, mas na mise-en-scène. Nada
disso em Kubrick, que manipula seu filme como um jogador de xadrez, que faz um cenário operacional
da história. E isto não regressa à velha oposição entre o espírito da delicadeza e o espírito
da geometria: essa oposição ainda provém do jogo e das apostas do sentido, enquanto estamos
a entrar numa era de filmes que em si já não têm sentido propriamente dito. , uma era de grandes
máquinas de síntese de geometria variada.

Já existe algo disso nos faroestes de Leone? Talvez. Todos os registros deslizam nessa direção.
Chinatown: é o filme policial renomeado por laser. Não se trata propriamente de uma questão de
perfeição: a perfeição técnica pode fazer parte do sentido e, nesse caso, não é retro nem
hiperrealista, é um efeito de arte. Aqui, a perfeição técnica é um efeito do modelo: é um dos valores
táticos referenciais. Na ausência de uma sintaxe real de significado, nada temos senão os valores
táticos de um grupo em que se combinam admiravelmente, por exemplo, a CIA como máquina
mitológica que faz tudo, Robert Redford como estrela polivalente, as relações sociais como referência
necessária à história, o virtuosismo técnico como referência necessária ao cinema.

O cinema e sua trajetória: do mais fantástico ou mítico ao realista e ao hiperrealista.

O cinema, nos seus esforços actuais, aproxima-se cada vez mais, e com maior e maior perfeição, do
real absoluto, na sua banalidade, na sua veracidade, na sua evidente obviedade, no seu tédio, e ao
mesmo tempo na sua presunção, na sua a sua pretensão de ser o real, o imediato, o insignificado,
que é a mais louca das empresas (da mesma forma, a pretensão do funcionalismo de
designar - design - o maior grau de correspondência entre o objecto e a sua função, e o seu valor de
uso, é um verdadeiro absurdo empreendimento); nenhuma cultura jamais teve em seus signos
esta visão ingênua e paranóica, puritana e terrorista.

O terrorismo é sempre o do real.

Simultaneamente a este esforço de correspondência absoluta com o real, o cinema aproxima-se


também de uma correspondência absoluta consigo mesmo - e isso não é contraditório: é a própria
definição do hiperreal. Hipotipose e especularidade. O cinema plagia-se, recopia-se, refaz os seus
clássicos, retroactiva os seus mitos originais, refaz o filme mudo mais perfeitamente que o original,
etc.: tudo isto é lógico, o cinema é fascinado por si mesmo como objecto perdido tanto quanto
ele ( e nós) somos fascinados pelo real como referente perdido. O cinema e o imaginário (o
romanesco, o mítico, a irrealidade, incluindo o uso delirante da sua própria técnica) mantinham
uma relação viva, dialética, plena, dramática. A relação que se forma hoje entre o cinema e o real
é uma relação inversa, negativa: resulta da perda de especificidade de um e de outro. A colagem
fria, a promiscuidade fria, as núpcias assexuadas de dois meios frios que evoluem numa linha
assintótica entre si: o cinema tentando abolir-se no hiper-real cinematográfico (ou televisivo).

A história é um mito forte, talvez, junto com o inconsciente, o último grande mito. É um mito que
subentende ao mesmo tempo a possibilidade de um encadeamento “objetivo” de eventos e
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causas e a possibilidade de um encadeamento narrativo do discurso. A era da história, se é que


podemos chamá-la assim, é também a era do romance. É esta personagem fabulosa, a energia mítica
de um acontecimento ou de uma narrativa, que hoje parece estar cada vez mais perdida. Por trás de
uma lógica performativa e demonstrativa: a obsessão pela fidelidade histórica, por uma
representação perfeita (como em outros lugares a obsessão pelo tempo real ou pela
quotidiana minuciosa de Jeanne Hilmann lavando a louça), esta fidelidade negativa e implacável à
materialidade do passado, a uma determinada cena do passado ou do presente, à restituição de
um simulacro absoluto do passado ou do presente, que substituiu todos os outros valores - somos todos
cúmplices nisso, e isso é irreversível. Porque o próprio cinema contribuiu para o desaparecimento da
história e para o advento do arquivo.
A fotografia e o cinema contribuíram em grande parte para a secularização da história, para a fixar
na sua forma visível e “objectiva” à custa dos mitos que outrora a atravessaram.
Hoje o cinema pode colocar todo o seu talento, toda a sua tecnologia ao serviço da reanimação daquilo
que ele próprio contribuiu para liquidar. Ele apenas ressuscita fantasmas e ele próprio se perde neles.

* OBSERVAÇÃO *

1. O próprio fascismo, o mistério do seu aparecimento e da sua energia colectiva, com o qual nenhuma
interpretação conseguiu enfrentar (nem a marxista da manipulação política pelas classes
dominantes, nem a reichiana da repressão sexual das massas , nem o deleuziano da paranóia
despótica), já pode ser interpretado como o excesso “irracional” de referenciais míticos e políticos, a
intensificação louca do valor coletivo (sangue, raça, povo, etc.), a reinjeção da morte, de uma
“estética política da morte” num momento em que o processo de desencanto do valor e dos
valores colectivos, da secularização racional e da unidimensionalização de toda a vida, da
operacionalização de toda a vida social e individual já se faz sentir fortemente no Ocidente. Mais uma
vez, tudo parece escapar a esta catástrofe de valores, a esta neutralização e pacificação da vida. O
fascismo é uma resistência a isto, mesmo que seja uma resistência profunda, irracional e
demente, não teria explorado esta energia massiva se não tivesse sido uma resistência a algo
muito pior. A crueldade do fascismo, o seu terror está ao nível deste outro terror que é a confusão
do real e do racional, que se aprofundou no Ocidente, e é uma resposta a isso.
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HOLOCAUSTO

Esquecer o extermínio faz parte do extermínio, porque é também o extermínio da memória, da


história, do social, etc. Este esquecimento é tão essencial quanto o acontecimento, em qualquer
caso, inlocalizável por nós, inacessível para nós na sua verdade. Este esquecimento é
ainda demasiado perigoso, deve ser apagado por uma memória artificial (hoje, em todo o lado,
são as memórias artificiais que apagam a memória do homem, que apagam o homem na sua
própria memória). Esta memória artificial será a reencenação do extermínio - mas tarde,
demasiado tarde para que seja capaz de criar verdadeiras ondas e perturbar profundamente
alguma coisa, e especialmente, especialmente através de um meio que é ele próprio
frio, irradiando esquecimento, dissuasão e extermínio em de uma forma ainda mais
sistemática, se isso for possível, do que os próprios campos. Já não se faz os judeus
passarem pelo crematório ou pela câmara de gás, mas pela trilha sonora e pela trilha de imagem,
pela tela universal e pelo microprocessador. O esquecimento, a aniquilação, atinge finalmente a
sua dimensão estética desta forma - é alcançado no retro, finalmente elevado aqui ao nível de massa.

Mesmo aquele tipo de dimensão sócio-histórica que ainda permanecia esquecida na forma de
culpa, de latência vergonhosa, de não dito, não existe mais, porque agora “todo mundo
sabe”, todo mundo tremeu e gritou diante do extermínio - uma certeza sinal de que "aquilo"
nunca mais ocorrerá. Mas o que se exorciza desta forma, a pouco custo e ao preço de algumas
lágrimas, nunca será efetivamente reproduzido, porque sempre esteve em vias de se reproduzir
atualmente, e precisamente na própria forma em que se pretende denunciá-lo, no próprio meio
deste suposto exorcismo: a televisão. O mesmo processo de esquecimento, de liquidação, de
extermínio, a mesma aniquilação das memórias e da história, a mesma radiação inversa, implosiva,
a mesma absorção sem eco, o mesmo buraco negro de Auschwitz. E gostaríamos que
acreditássemos que a televisão aliviará o peso de Auschwitz ao fazer irradiar uma consciência
colectiva, enquanto a televisão é a sua perpetuação sob outra forma, desta vez já não sob os
auspícios de um local de aniquilação, mas de um meio de comunicação. dissuasão.

O que ninguém quer compreender é que o Holocausto é primeiramente (e exclusivamente)


um acontecimento, ou melhor, um objecto televisivo (regra fundamental de McLuhan, que não
deve ser esquecida), ou seja, que se tenta reacender um frio acontecimento histórico, trágico
mas frio, o primeiro grande acontecimento dos sistemas frios, dos sistemas de refrigeração, dos
sistemas de dissuasão e de extermínio que serão então utilizados de outras formas (incluindo a
guerra fria, etc.) e em relação às massas frias (o Os judeus já nem sequer se preocupam com
a sua própria morte, e as massas eventualmente autogeridas já nem sequer estão em revolta:
dissuadidos até à morte, dissuadidos da sua própria morte) para reacender este evento frio
através de um meio frio, a televisão, e para as massas que são eles próprios frios, que
só terão oportunidade de uma emoção táctil e de uma emoção póstuma, uma emoção também
dissuasora, que “os fará cair no esquecimento com uma espécie de boa consciência estética
da catástrofe.

Para reacender tudo isso, toda a orquestração política e pedagógica que veio de todas as
direções para tentar dar sentido ao acontecimento (desta vez o acontecimento televisivo) não
foi de todo excessiva. Chantagem em pânico em torno das possíveis consequências desta
transmissão na imaginação das crianças e de outras pessoas. Todos os pedagogos e sociais
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trabalhadores mobilizados para filtrar a coisa, como se houvesse algum perigo de


infecção nesta ressurreição artificial! O perigo era realmente o oposto: do frio ao frio, a
inércia social dos sistemas frios, da TV em particular. Foi necessário, portanto, que o mundo
inteiro se mobilizasse para refazer o social, um social quente, uma discussão acalorada
e, portanto, uma comunicação, a partir do monstro frio do extermínio. Faltam apostas,
investimento, história, discurso. Esse é o problema fundamental. O objetivo é assim produzi-
los a todo custo, e esta emissão serviu para esse propósito: captar o calor artificial de um
acontecimento morto para aquecer o cadáver do social. Daí a adição do meio
suplementar para ampliar o efeito através do feedback: pesquisas imediatas
sancionando o efeito massivo da transmissão, o impacto coletivo da mensagem - embora
seja bem entendido que as pesquisas apenas verificam o sucesso televisual do próprio
meio. Mas esta confusão nunca será eliminada. A partir daí é preciso falar da luz fria da
televisão, porque ela é inofensiva para a imaginação (inclusive das crianças) porque não
carrega mais nenhum imaginário e isso pela simples razão de não ser mais uma imagem.
Em contraste com o cinema, que ainda é abençoado (mas cada vez menos porque cada
vez mais contaminado pela TV) com um imaginário intenso - porque o cinema é uma imagem.
Isto é, não apenas uma tela e uma forma visual, mas um mito, algo que ainda guarda algo
do duplo, do fantasma, do espelho, do sonho, etc. Nada disso na “TV” imagem, que não
sugere nada, que hipnotiza, que em si nada mais é do que uma tela, nem isso: um
terminal miniaturizado que, na verdade, está imediatamente localizado na sua cabeça -
você é a tela, e a TV te observa - ela transistoriza tudo os neurônios e passa como uma
fita magnética - uma fita, não uma imagem.
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A SÍNDROME DA CHINA

A aposta fundamental está ao nível da televisão e da informação. Assim como o extermínio dos
judeus desapareceu por trás do evento televisivo Holocausto - o meio frio da televisão foi simplesmente
substituído pelo sistema frio de extermínio que se acreditava estar exorcizando através dele - também a
Síndrome da China é um grande exemplo da supremacia do evento televisionado sobre o evento nuclear
que, em si, permanece improvável e, em certo sentido, imaginário.

Além disso, o filme mostra que é assim (sem querer): que a TV esteja presente precisamente onde
isso acontece não é coincidência, é a intrusão da TV no reator que parece dar origem ao incidente nuclear
- porque a TV é como a sua antecipação e o seu modelo no universo quotidiano: a telefissão do real e do
mundo real; porque a TV e a informação em geral são uma forma de catástrofe no sentido formal e topológico
que René Thorn dá à palavra: uma mudança qualitativa radical de todo um sistema. Ou melhor, a televisão
e a energia nuclear são da mesma natureza: por detrás dos conceitos “quentes” e negentrópicos de
energia e informação, têm o mesmo poder de dissuasão que os sistemas frios. A própria TV também é um
processo nuclear de reação em cadeia, mas implosivo: ela esfria e neutraliza o significado e a energia dos
acontecimentos. Assim, a energia nuclear, por trás do suposto risco de explosão, isto é, de catástrofe
quente, esconde uma catástrofe longa e fria, a universalização de um sistema de dissuasão.

No final do filme surge novamente a segunda intrusão massiva da imprensa e da TV que instiga o drama -
o assassinato do diretor técnico pelas Forças Especiais, drama que substitui a catástrofe nuclear que não
ocorrerá.

A homologia do nuclear e da televisão pode ser lida diretamente nas imagens: nada se parece mais com a
sede de controle e telecomando da central nuclear do que os estúdios de TV, e os consoles nucleares são
combinados com os dos estúdios de gravação e transmissão no mesmo imaginário. Assim, tudo se passa
entre estes dois pólos: do outro “centro”, o do reator, em princípio o verdadeiro cerne da questão, nada
saberemos; ele, como o real, desapareceu e tornou-se ilegível, e no fundo não tem importância no filme
(quando se tenta sugerir-nos isso, em sua catástrofe iminente, não funciona no plano imaginário: o drama
se desenrola nas telas e em nenhum outro lugar).

Harrisburg,*1 Watergate, e Network: assim é a trilogia da Síndrome da China - uma trilogia indissolúvel em
que não se sabe mais qual é o efeito e qual é o sintoma: o argumento ideológico (efeito Watergate), não é
nada mas o sintoma do modelo nuclear (efeito Harrisburg) ou do modelo informático (efeito Rede) - o real
(Harrisburg), não é senão o sintoma do imaginário (Síndrome da Rede e da China) ou o contrário? Maravilhosa
indiferenciação, constelação ideal de simulação. Título maravilhoso, então, esta Síndrome da China, porque
a reversibilidade dos sintomas e sua convergência no mesmo processo constituem justamente o
que chamamos de síndrome - ao fato de ser chinês acrescenta a qualidade poética e intelectual de um
enigma ou súplica.
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Conjunção obsessiva da Síndrome da China e Harrisburg. Mas será que tudo isso é
tão involuntário? Sem propor ligações mágicas entre o simulacro e o real, fica claro que a
Síndrome não é estranha ao acidente "real" de Harrisburg, não segundo uma lógica
causal, mas segundo as relações de contágio e de analogia silenciosa que ligam o real para
modelos e simulacros: à indução televisiva do nuclear no filme corresponde, com uma
obviedade preocupante, a indução do incidente nuclear em Harrisburg pelo filme. Estranha
precessão de um filme sobre o real, o mais surpreendente que nos foi dado testemunhar: o real
correspondia ponto a ponto ao simulacro, incluindo o carácter suspenso, incompleto
da catástrofe, que é essencial do ponto de vista da dissuasão: o real se dispôs, à imagem do
filme, para produzir uma simulação de catástrofe.

A partir daí, para inverter a nossa lógica e ver na Síndrome da China o verdadeiro acontecimento
e em Harrisburg o seu simulacro, há apenas um passo que deve ser dado com alegria.
Porque é pela mesma lógica que, no filme, a realidade nuclear surge do efeito televisivo, e que
na “realidade” Harrisburg surge do efeito cinematográfico da Síndrome da China.

Mas a Síndrome da China também não é o protótipo original de Harrisburg, um não é o


simulacro do qual o outro seria o real: existem apenas simulacros, e Harrisburg é
uma espécie de simulação de segunda ordem. Há certamente uma reacção em cadeia
algures, e talvez morramos dela, mas esta reacção em cadeia nunca é a do nuclear, é a
dos simulacros e da simulação onde toda a energia do real é efectivamente engolida, já não
em uma explosão nuclear espetacular, mas numa implosão secreta e contínua, e que hoje
talvez tome um rumo mais mortal do que todas as explosões que nos abalam.

Porque uma explosão é sempre uma promessa, é a nossa esperança: vejam o quanto, no
filme como em Harrisburg, o mundo inteiro espera que algo exploda, que a destruição
se anuncie e nos tire deste pânico inominável, deste pânico de dissuasão que exerce na forma
invisível da energia nuclear. Que o “coração” do reator revele finalmente o seu poder quente de
destruição, que nos tranquilize sobre a presença de energia, ainda que catastrófica, e nos
dê o seu espetáculo. Porque a infelicidade é quando não há espectáculo nuclear, não há
espectáculo da energia nuclear em si (Hiroshima acabou), e é por isso que é rejeitada - seria
perfeitamente aceite se se prestasse ao espectáculo como formas anteriores de
energia fez. Parousia da catástrofe: alimento substancial para a nossa libido messiânica.

Mas é precisamente isso que nunca acontecerá. O que acontecerá nunca mais será a
explosão, mas sim a implosão. Não mais a energia na sua forma espetacular e patética -
todo o romantismo da explosão, que tanto encanto teve, sendo ao mesmo tempo o da revolução
- mas a energia fria do simulacro e da sua destilação em doses homeopáticas nos
sistemas frios de informação.

O que mais a mídia sonha além de criar o evento simplesmente com sua presença?
Todos o condenam, mas todos estão secretamente fascinados por esta eventualidade. Tal é
a lógica dos simulacros, já não é a da predestinação divina, é a da precessão dos modelos,
mas é igualmente inexorável. E é por isso que os acontecimentos já não têm sentido: não é que
sejam insignificantes em si mesmos, é que foram precedidos
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pelo modelo, com o qual seus processos apenas coincidiram. Assim, teria sido maravilhoso
repetir o roteiro de A Síndrome da China em Fessenheim, durante a visita oferecida aos jornalistas
pela EDF (Companhia Elétrica Francesa), para repetir nesta ocasião o acidente ligado ao olho
mágico, à presença provocadora da mídia.
Infelizmente, nada aconteceu. E por outro lado sim! tão poderosa é a lógica dos simulacros:
uma semana depois, os sindicatos descobriram fissuras nos reatores. Milagre dos contágios,
milagre das reações em cadeia analógicas.

Assim, a essência do filme não é de forma alguma o efeito Watergate na pessoa de Jane Fonda,
nem de forma alguma a televisão como meio de expor vícios nucleares, mas, pelo contrário, a
televisão como órbita gémea e reacção em cadeia gémea do nuclear. Além disso, logo no final - e aí
o filme é implacável no que diz respeito ao seu próprio argumento - quando Jane Fonda faz
explodir a verdade diretamente (efeito Watergate máximo), a sua imagem é justaposta com o
que inexoravelmente a seguirá e apagará na tela. : algum tipo de comercial. O efeito de rede vai muito
além do efeito Watergate e espalha-se misteriosamente no efeito Harrisburg, ou seja, não na
ameaça nuclear, mas na simulação de uma catástrofe nuclear.

Portanto, é a simulação que é eficaz, nunca o real. A simulação de uma catástrofe nuclear é o resultado
estratégico deste empreendimento genérico e universal de dissuasão: habituar
o povo à ideologia e à disciplina da segurança absoluta - à metafísica da fissão e da fissura. Para este
fim, a fissura deve ser uma ficção. Uma verdadeira catástrofe atrasaria as coisas, constituiria um
incidente retrógrado, do tipo explosivo (sem mudar o curso das coisas: Hiroshima atrasou,
dissuadiu sensivelmente o processo universal de dissuasão?).

No filme, também, a fusão real seria um mau argumento: o filme regrediria ao nível de um filme-
catástrofe - fraco por definição, porque significa devolver as coisas ao seu puro acontecimento. A
própria Síndrome da China encontra a sua força na filtragem da catástrofe, na destilação do
espectro nuclear através dos omnipresentes relés hertzianos de informação.
Ensina-nos (mais uma vez sem querer) que a catástrofe nuclear não ocorre, nem está destinada a
acontecer, na realidade, tal como o choque atómico não o foi no início da guerra fria. O
equilíbrio do terror repousa no adiamento eterno do choque atômico. O átomo e o nuclear são
feitos para serem disseminados com fins dissuasivos, o poder da catástrofe deve, em vez de explodir
estupidamente, ser disseminado em doses homeopáticas, moleculares, nos reservatórios
contínuos de informação. É aí que reside a verdadeira contaminação: nunca biológica e radioativa,
mas sim uma desestruturação mental através de uma estratégia mental de catástrofe.

Se olharmos com atenção, o filme apresenta-nos esta estratégia mental e, indo mais longe, dá-nos
mesmo uma lição diametralmente oposta à de Watergate: se toda a estratégia hoje é a do terror
mental e da dissuasão ligada à suspensão e ao eterno simulação de catástrofe, então o único
meio de mitigar este cenário seria fazer chegar a catástrofe, produzir ou reproduzir uma catástrofe
real. Ao qual a Natureza às vezes é dada: nos seus momentos inspirados, é Deus quem através
dos seus cataclismos desata o equilíbrio de terror em que os humanos estão aprisionados. Mais
perto de nós, é também com isto que o terrorismo se ocupa: fazer emergir a violência real e palpável
em oposição à violência invisível da segurança. Além disso, é aí que reside o terrorismo
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ambiguidade.

* OBSERVAÇÃO *

1. O incidente no reator nuclear de Three Mile Island, que ocorrerá em breve após o lançamento do filme.
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APOCALIPSE AGORA

Coppola faz o seu filme como os americanos fizeram a guerra - neste sentido, é o melhor
testemunho possível - com a mesma falta de moderação, o mesmo excesso de meios, a mesma
franqueza monstruosa. . . e o mesmo sucesso. A guerra como entrincheiramento, como fantasia
tecnológica e psicodélica, a guerra como sucessão de efeitos especiais, a guerra virou filme
antes mesmo de ser filmada. A guerra anula-se no seu teste tecnológico, e para os
americanos era principalmente isso: um local de teste, um território gigantesco onde podiam testar
as suas armas, os seus métodos, o seu poder. Coppola não faz nada além disso: testar o
poder de intervenção do cinema, testar o impacto de um cinema que se tornou uma máquina
incomensurável de efeitos especiais. Neste sentido, o seu filme é realmente a extensão da
guerra através de outros meios, o auge desta guerra fracassada e a sua apoteose. A guerra
tornou-se filme, o filme tornou-se guerra, os dois estão unidos pela sua hemorragia comum na tecnologia.

A verdadeira guerra é travada por Coppola tal como por Westmoreland: sem contar a
inspirada ironia de ter florestas e aldeias filipinas atacadas com napalm para reconstituir o
inferno do Vietname do Sul. Revisitamos tudo através do cinema e recomeçamos: a
alegria molochiana de filmar, a alegria sacrificial de tantos milhões gastos, de tamanho
holocausto de meios, de tantas desventuras, e a notável paranóia que desde o início concebeu
este filme como um acontecimento histórico, global, no qual, na mente do criador, a guerra do
Vietname não teria sido outra coisa senão o que é, não teria existido fundamentalmente - e é
necessário que acreditemos nisto: a guerra no O Vietname "em si" talvez nunca tenha
acontecido, é um sonho, um sonho barroco do napalm e dos trópicos, um sonho psicotrópico
que não tinha como objectivo nem a vitória nem a política em jogo, mas sim o sacrifício , o
desdobramento excessivo de um poder que já se filma à medida que se desenrola, esperando
talvez apenas a consagração por um superfilme, que completa o efeito de espetáculo de massa
desta guerra.

Nenhuma distância real, nenhum sentido crítico, nenhum desejo de “aumentar a consciência” em
relação à guerra: e em certo sentido esta é a qualidade brutal deste filme – não estar podre com
a psicologia moral da guerra. Coppola pode certamente enfeitar o seu capitão de helicóptero
com um chapéu ridículo da cavalaria ligeira e fazê-lo esmagar a aldeia vietnamita ao som
da música de Wagner - estes não são sinais críticos e distantes, estão imersos na maquinaria,
fazem parte da o efeito especial, e ele próprio faz filmes da mesma maneira, com a mesma
megalomania retrô, e o mesmo furor insignificante, com o mesmo efeito palhaço em overdrive.
Mas aí está, ele nos atinge com isso, está aí, é desconcertante, e podemos dizer a nós
mesmos: como é possível tal horror (não o da guerra, mas o do filme propriamente dito)? Mas
não há resposta, não há veredicto possível, e podemos até alegrar-nos com este truque
monstruoso (exatamente como no caso de Wagner) - mas podemos sempre recuperar
uma pequena ideia que não seja desagradável, que não seja um juízo de valor, mas isso lhe diz
que a guerra no Vietnã e este filme são feitos do mesmo tecido, que nada os separa, que este
filme faz parte da guerra - se os americanos (aparentemente) perderam o outro, eles
certamente ganharam este. Apocalypse Now é uma vitória global. Poder cinematográfico
igual e superior ao dos complexos industriais e militares, igual ou superior ao do Pentágono e
dos governos.

E, de repente, o filme não deixa de ter interesse: ilumina retrospectivamente (não


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mesmo retrospectivamente, porque o filme é uma fase desta guerra sem fim) o
que já era uma loucura nesta guerra, irracional em termos políticos: os
americanos e os vietnamitas já estão reconciliados, logo após o fim das hostilidades
os americanos ofereceram ajuda económica, exatamente como se tivessem aniquilado
a selva e as cidades, exatamente como estão fazendo o filme hoje. Não se
compreende nada, nem da guerra, nem do cinema (pelo menos deste último), se não
se compreender esta falta de distinção que já não é ideológica nem moral, do
bem e do mal, mas da reversibilidade da destruição e da produção, da imanência de
uma coisa na sua própria revolução, do metabolismo orgânico de todas as tecnologias,
. . . na tira de filme
do tapete de bombas
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O EFEITO BEAUBOURG: IMPLOSÃO E DETERRÊNCIA

O efeito Beaubourg, a máquina Beaubourg, a coisa Beaubourg – como dar um nome a isso? Enigma
desta carcaça de fluxos e signos, de redes e circuitos - o impulso final para traduzir uma estrutura que
já não tem nome, a estrutura das relações sociais entregue à ventilação superficial (animação, autogestão,
informação, media) e a uma implosão irreversivelmente profunda. Monumento aos jogos de simulação em
massa, o Centro Pompidou funciona como um incinerador absorvendo toda a energia cultural e devorando-
a - um pouco como o monólito negro de 2001: convecção insana de todos os conteúdos que ali
vinham para serem materializados, para serem absorvidos, e ser aniquilado. Em redor, o bairro não passa
de uma zona de protecção – remodelação, desinfecção, um design esnobe e higiénico – mas sobretudo em
sentido figurado: é uma máquina de fazer vazio. É um pouco como o perigo real que as centrais nucleares
representam: não falta de segurança, poluição, explosão, mas um sistema de segurança máxima
que irradia à sua volta, a zona protectora de controlo e dissuasão que se estende, lenta mas seguramente,
sobre o território - um glacis técnico, ecológico, económico e geopolítico. O que importa o nuclear? A
estação é uma matriz na qual se elabora um modelo absoluto de segurança, que abrangerá todo o
campo social, e que é fundamentalmente um modelo de dissuasão (é o mesmo que nos controla
globalmente, sob o signo da coexistência pacífica e da a simulação do perigo atômico).

O mesmo modelo, com as mesmas proporções, é elaborado no Centro: fissão cultural, dissuasão política.

Dito isto, a circulação de fluidos é desigual. Ventilação, refrigeração, redes elétricas - os fluidos “tradicionais”
circulam muito bem por lá. Já a circulação do fluxo humano é menos assegurada (solução arcaica de
escadas rolantes em mangas plásticas, deveria ser aspirado, impulsionado, ou algo assim, mas com uma
mobilidade que estaria à altura dessa teatralidade barroca de fluidos que é a fonte de a originalidade da
carcaça). Quanto ao material das obras, dos objetos, dos livros e do chamado espaço interior
polivalente, estes já não circulam de todo. É o oposto de Roissy, onde de um centro futurista de design
“espacial” irradiando em direção a “satélites”, etc., acabamos completamente planos diante de . . . aviões
tradicionais. Mas a incoerência é a mesma. (O que aconteceu ao dinheiro, a este outro fluido, o que aconteceu
ao seu modo de circulação, de emulsão, de precipitação em Beaubourg?)

Mesma contradição até no comportamento do pessoal, atribuído ao espaço “polivalente” e sem espaço de
trabalho privado. De pé e móveis, as pessoas apresentam um comportamento cool, mais flexível, muito
contemporâneo, adaptado à “estrutura” de um espaço “moderno”. Sentados no seu canto, que justamente
não é um, esgotam-se secretando uma solidão artificial, refazendo a sua “bolha”. Aí está também
uma grande tática de dissuasão: condena-se-os a usar toda a sua energia nesta defesa individual.

Curiosamente, encontra-se assim a mesma contradição que caracteriza a coisa de Beaubourg: um exterior
móvel, pendular, fresco e moderno – um interior enrugado pelos mesmos velhos valores.

Este espaço de dissuasão, articulado na ideologia da visibilidade, da transparência, da


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a polivalência, do consenso e do contacto, e sancionada pela chantagem à segurança, é hoje,


virtualmente, a de todas as relações sociais. Todo o discurso social está lá, e neste nível, bem
como no tratamento da cultura, Beaubourg contradiz flagrantemente os seus objectivos explícitos,
um belo monumento à nossa modernidade. É bom pensar que a ideia não chegou a algum espírito
revolucionário, mas aos lógicos da ordem estabelecida, desprovidos de toda inteligência crítica
e, portanto, mais próximos da verdade, capazes, na sua obstinação, de pôr em
funcionamento uma máquina que é fundamentalmente incontrolável, que pelo seu próprio sucesso
lhes escapa e que é o reflexo mais exacto, mesmo nas suas contradições, do estado
actual das coisas.

Certamente, todos os conteúdos culturais de Beaubourg são anacrónicos, porque só um interior


vazio poderia corresponder a esta envolvente arquitectónica. A impressão geral é que tudo aqui
saiu do coma, que tudo quer ser animação e é apenas reanimação, e que isso é bom porque a cultura
está morta, uma condição que Beaubourg refaz admiravelmente, mas de forma desonesta,
enquanto se deveria ter aceitado triunfantemente esta morte e erguido um monumento ou um
anti-monumento equivalente à fálica fálica da Torre Eiffel no seu tempo. Monumento à
desconexão total, à hiperrealidade e à implosão da cultura – hoje alcançada para nós no
efeito de circuitos transistorizados sempre ameaçados por um curto-circuito gigantesco.

Beaubourg já é uma compressão imperial – figura de uma cultura já esmagada pelo seu próprio peso
– como automóveis em movimento subitamente congelados num sólido geométrico. Como os carros
de César, sobreviventes de um acidente ideal, não mais externo, mas interno à estrutura metálica
e mecânica, e que teria produzido toneladas de sucata cúbica, onde o caos de tubos, alavancas,
molduras, de metal e humano a carne interior é adaptada ao tamanho geométrico do menor
espaço possível - assim a cultura de Beaubourg é triturada, torcida, cortada e comprimida em
seus menores elementos simples - um feixe de transmissões e metabolismos extintos,
congelados como um mecanóide de ficção científica .

Mas em vez de quebrar e comprimir toda a cultura aqui nesta carcaça que em todo caso tem a
aparência de uma compressão, em vez disso, exibe-se César ali. Um deles expõe Dubuffet e a
contracultura, cuja simulação inversa funciona como referencial para a cultura extinta. Nesta
carcaça que poderia ter servido de mausoléu à inútil operacionalidade dos signos, reexibem-se
as máquinas efémeras e autodestrutivas de Tinguely sob o signo da eternidade da cultura. Assim
se neutraliza tudo junto: Tinguely é embalsamado na instituição museal, Beaubourg recorre
aos seus supostos conteúdos artísticos.

Felizmente, todo este simulacro de valores culturais é aniquilado antecipadamente pela


arquitectura exterior.*1 Porque esta arquitectura, com as suas redes de tubos e o aspecto que tem de
ser um edifício de exposição ou feira mundial, com a sua (calculada?) fragilidade dissuasora
qualquer mentalidade ou monumentalidade tradicional proclama abertamente que o nosso tempo
nunca mais será o da duração, que a nossa única temporalidade é a do ciclo acelerado e da
reciclagem, a do circuito e do trânsito dos fluidos. No final das contas, a nossa única cultura é a dos
hidrocarbonetos, a do refino, do cracking, da quebra de moléculas culturais e da sua
recombinação em produtos sintetizados. Isto o Museu Beaubourg deseja esconder, mas o
cadáver de Beaubourg proclama. E é isso que está na base da beleza do cadáver e do fracasso
dos espaços interiores. De qualquer forma, a própria ideologia
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A "produção cultural" é antitética a toda cultura, assim como a da visibilidade e do espaço


polivalente: a cultura é um local do segredo, da sedução, da iniciação, de uma troca simbólica contida
e altamente ritualizada. Nada pode ser feito sobre isso. Uma pena para as massas, uma pena para
Beaubourg.

O que deveria então ter sido colocado em Beaubourg?

Nada. O vazio que teria significado o desaparecimento de qualquer cultura de significado e sentimento
estético. Mas isto ainda é demasiado romântico e destrutivo, este vazio ainda teria valor como uma
obra-prima da anticultura.

Talvez luzes estroboscópicas giratórias e luzes giroscópicas, estriando o espaço, para as quais a
multidão teria fornecido o elemento base móvel?

Na verdade, Beaubourg ilustra muito bem que uma ordem de simulacros só se estabelece a partir do
álibi da ordem anterior. Aqui, um cadáver todo em fluxo e conexões superficiais dá-se como
conteúdo uma cultura tradicional de profundidade. Uma ordem de simulacros anteriores (a do sentido)
fornece a substância vazia de uma ordem posterior, que já nem sequer conhece a distinção entre
significante e significado, nem entre forma e
contente.

A pergunta: “O que deveria ter sido colocado em Beaubourg?” é portanto absurdo. Não pode ser
respondida porque a distinção tópica entre interior e exterior não deveria mais ser colocada. Aí reside
a nossa verdade, a verdade de Mobius – sem dúvida uma utopia irrealizável, mas que Beaubourg
ainda aponta como certa, na medida em que qualquer um dos seus conteúdos é um contra-sentido
e aniquilado antecipadamente pela forma.

combinatório,se fosse necessário ter algo em Beaubourg - deveria ser um labirinto, um Ainda-ainda...
uma biblioteca infinita, uma redistribuição aleatória dos destinos através de jogos ou loterias - em
suma, o universo de Borges - ou mesmo o circular Ruínas: o encadeamento lento de indivíduos
sonhados uns pelos outros (não uma Disneylândia do mundo dos sonhos, um laboratório de ficção
prática). Uma experimentação com todos os diferentes processos de representação: defracção,
implosão, câmara lenta, ligação aleatória e dissociação - um pouco como no Exploratorium de São
Francisco ou nos romances de Philip K. Dick - em suma, uma cultura de simulação e de fascínio , e
nem sempre de produção e de sentido: é isso que se poderia propor que não fosse uma anticultura
miserável. É possível?
Aqui não, evidentemente. Mas esta cultura ocorre noutro lugar, em todo o lado, em lado nenhum. A
partir de hoje, a única prática cultural real, a das massas, a nossa (já não há diferença), é uma
prática manipuladora, aleatória, uma prática labiríntica de signos, e que já não tem sentido.

Por outro lado, porém, não é verdade que não haja coerência entre forma e conteúdo em
Beaubourg. É verdade se dermos algum crédito ao projeto cultural oficial.
Mas ali ocorre exatamente o oposto. Beaubourg nada mais é do que um enorme esforço
para transmutar esta famosa cultura tradicional do significado na ordem aleatória dos signos, numa
ordem de simulacros (o terceiro) completamente homogénea com o fluxo e os tubos da fachada. E é
para preparar as massas para esta nova ordem semiúrgica que as reunimos aqui - com o pretexto
oposto de acultura-las para
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significado e profundidade.

Devemos, portanto, começar com este axioma: Beaubourg é um monumento de dissuasão cultural.
Num cenário museal que serve apenas para manter a ficção humanista da cultura, o que ocorre é uma
verdadeira modelagem da morte da cultura, e é um verdadeiro luto cultural para o qual as massas se
reúnem alegremente.

E eles se jogam nisso. Aí reside a suprema ironia de Beaubourg: as massas lançam-se nisto não
porque salivem por aquela cultura que lhes foi negada durante séculos, mas porque têm pela
primeira vez a oportunidade de participar massivamente neste grande luto de uma cultura que , no final
das contas, eles sempre detestaram.

O mal-entendido é, portanto, completo quando se denuncia Beaubourg como uma mistificação cultural
das massas. As próprias massas correm para lá para desfrutar desta execução, deste
desmembramento, desta prostituição operacional de uma cultura finalmente verdadeiramente
liquidada, incluindo toda a contracultura que nada mais é do que a sua apoteose. As massas
correm em direção a Beaubourg como correm em direção aos locais de desastre, com o mesmo
entusiasmo irresistível. Melhor: são o desastre de Beaubourg. O seu número, a sua debandada, o
seu fascínio, a sua vontade de ver tudo é objectivamente um comportamento mortal e
catastrófico para todo o empreendimento. Não só o seu peso põe em perigo o edifício, mas a sua
adesão, a sua curiosidade aniquila o próprio conteúdo desta cultura de animação. Esta pressa já não
pode ser medida em relação ao que foi proposto como objectivo cultural, é a sua negação radical,
tanto no seu excesso como no seu sucesso. São assim as massas que assumem o papel de
agente catastrófico nesta estrutura de catástrofe, são as próprias massas que põem fim à cultura de
massas.

Circulando no espaço da transparência, as massas convertem-se certamente em fluxo, mas ao mesmo


tempo, através da sua opacidade e da sua inércia, põem fim a este espaço “polivalente”. Convida-
se as massas a participar, a simular, a brincar com os modelos - vão ainda mais longe: participam e
manipulam tão bem que apagam todo o sentido que se quer dar à operação e colocam em perigo
a própria infra-estrutura do edifício .
Assim, sempre uma espécie de paródia, uma hipersimulação em resposta à simulação cultural,
transforma as massas, que deveriam ser apenas o gado da cultura, nos agentes da execução desta
cultura, da qual Beaubourg era apenas a encarnação vergonhosa.

Devemos aplaudir este sucesso da dissuasão cultural. Todos os antiartistas, esquerdistas e aqueles
que desprezam a cultura nunca sequer chegaram perto de se aproximar da eficácia
dissuasora deste buraco negro monumental que é Beaubourg. É uma operação
verdadeiramente revolucionária, precisamente porque é involuntária, insana e descontrolada,
enquanto qualquer operação destinada a pôr fim à cultura apenas serve, como se sabe, para
ressuscitá-la.

Para dizer a verdade, o único conteúdo de Beaubourg são as próprias massas, a quem o edifício
trata como um conversor, como uma caixa negra, ou, em termos de insumo-produto, tal como uma
refinaria trata produtos petrolíferos ou uma enxurrada de material não processado. .

Nunca foi tão claro que o conteúdo - aqui, a cultura, em outro lugar, a informação ou as
mercadorias - nada mais é do que o suporte fantasma para a operação do próprio meio,
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cuja função é sempre induzir massa, produzir um fluxo humano e mental homogêneo. Um imenso
movimento de vaivém semelhante ao dos passageiros suburbanos, absorvidos e expulsos em
horários fixos pelo seu local de trabalho. E é precisamente o trabalho que está aqui em causa - um
trabalho de teste, de sondagem e de interrogatório dirigido: as pessoas vêm aqui para seleccionar
objectos - respostas a todas as perguntas que possam colocar a si próprias, ou melhor, elas
próprias vêm em resposta às questões funcionais. e pergunta dirigida que os objetos constituem.
Mais do que uma cadeia de trabalho, trata-se, portanto, de uma disciplina programática cujas
restrições foram apagadas por trás de um verniz de tolerância. Muito além das instituições
tradicionais do capital, o hipermercado, ou o "hipermercado da cultura" de Beaubourg, já é o
modelo de todas as formas futuras de socialização controlada: a retotalização num espaço-
tempo homogêneo de todas as funções dispersas do corpo e da vida social (trabalho, lazer,
cultura mediática), retranscrição de todas as correntes contraditórias em termos de circuitos integrados.
Espaço-tempo de toda uma simulação operacional da vida social.

Para isso, a massa de consumidores deve ser equivalente ou homóloga à massa de produtos.
É o confronto e a fusão destas duas massas que ocorre no hipermercado como acontece em
Beaubourg, e que faz deles algo muito diferente dos locais tradicionais de cultura (monumentos,
museus, galerias, bibliotecas, centros artísticos comunitários, etc. .). Aqui se elabora uma
massa crítica além da qual a mercadoria se torna hipermercadoria e a cultura hipercultura - isto é, não
mais ligada a trocas distintas ou necessidades determinadas, mas a uma espécie de universo
descritivo total, ou circuito integrado que a implosão atravessa por completo - circulação incessante
de escolhas, leituras, referências, marcas, decodificações. Aqui os objetos culturais, como em outros
lugares os objetos de consumo, não têm outro fim senão mantê-los num estado de integração de
massa, de fluxo transistorizado, de uma molécula magnetizada. É o que se aprende

num hipermercado: a hiper-realidade da mercadoria - é o que se aprende em Beaubourg: a


hiper-realidade da cultura.

Já com o museu tradicional começa este recorte, este reagrupamento, esta interferência de todas as
culturas, esta estetização incondicional que constitui a hiperrealidade da cultura, mas o museu
continua a ser uma memória. Nunca, como aconteceu aqui, a cultura perdeu a sua memória
ao serviço da acumulação e da redistribuição funcional. E isto traduz um facto mais geral: que em
todo o mundo “civilizado” a construção de stocks de objectos trouxe consigo o processo complementar
de stocks de pessoas – a fila, a espera, os engarrafamentos, a concentração, o acampamento. Isto
é “produção em massa”, não no sentido de produção massiva ou para utilização pelas massas, mas
a produção das massas. As massas como produto final de toda a sociabilidade e, ao mesmo tempo,
como pondo fim à sociabilidade, porque estas massas que se quer que acreditemos serem o
social, são, pelo contrário, o local da implosão do social. As massas são a esfera cada vez mais
densa na qual todo o social vem a ser implodido e a ser devorado num processo ininterrupto de
simulação.

Daí este espelho côncavo: é vendo as massas no interior que as massas serão tentadas a entrar.
Método típico de marketing: toda a ideologia da transparência aqui ganha o seu
significado. Ou ainda: é na encenação de um modelo ideal reduzido que se espera uma gravitação
acelerada, uma aglutinação automática da cultura como aglomeração automática de massas. Mesmo
processo: operação nuclear de reação em cadeia, ou operação especular de magia branca.
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Assim, pela primeira vez, Beaubourg é ao nível da cultura o que o hipermercado é ao nível da
mercadoria: o operador circulatório perfeito, a demonstração de qualquer coisa (mercadoria, cultura,
multidão, ar comprimido) através da sua própria circulação acelerada.

Mas se a oferta de objectos traz consigo a acumulação de homens, a violência latente na


oferta de objectos traz consigo a violência inversa dos homens.

Cada grupo é violento, e existe também uma violência específica em qualquer massa de homens,
pelo facto de implodir - uma violência própria à sua gravitação, à sua densificação em torno
do seu próprio locus de inércia. As massas são um locus de inércia e, através disso, um locus de uma
violência completamente nova e inexplicável, diferente da violência explosiva.

Massa crítica, massa implosiva. Acima de trinta mil representa o risco de “dobrar” a estrutura de
Beaubourg. Se as massas magnetizadas pela estrutura se tornam uma variável destrutiva da própria
estrutura - se aqueles que conceberam o projecto o quiseram (mas como esperar isso?), se assim
programaram a oportunidade de acabar com um golpe em ambos arquitetura e cultura - então
Beaubourg constitui o objeto mais audacioso e o acontecimento de maior sucesso do século!

Faça Beaubourg dobrar! Novo lema de uma ordem revolucionária. Inútil atear fogo nele, inútil
contestá-lo. Faça isso! É a melhor maneira de destruí-lo. O sucesso de Beaubourg já não é um mistério:
as pessoas vão lá para isso, lançam-se sobre este edifício, cuja fragilidade já respira catástrofe, com
o único objectivo de o fazer dobrar.

Certamente obedecem ao imperativo da dissuasão: dá-se-lhes um objecto para consumir, uma cultura
para devorar, um edifício para manipular. Mas ao mesmo tempo visam expressamente, e sem o
saberem, esta aniquilação. A investida é o único acto que as massas podem produzir como tal -
uma massa projéctil que desafia o edifício da cultura de massas, que responde espirituosamente com
o seu peso (isto é, com a característica mais desprovida de sentido, a mais estúpida, a menos
cultural). possuem) ao desafio da culturalidade lançado por Beaubourg. Ao desafio da aculturação
em massa a uma cultura esterilizada, as massas respondem com uma irrupção destrutiva, que se
prolonga numa manipulação brutal. À dissuasão mental as massas respondem com uma
dissuasão física direta. É o seu próprio desafio. O seu ardil, que é responder nos próprios termos
pelos quais são solicitados, mas, além disso, responder à simulação em que os aprisiona com um
processo social entusiástico que ultrapassa os objectivos dos primeiros e funciona como uma
hipersimulação destrutiva. *2

As pessoas têm vontade de pegar tudo, de pilhar tudo, de engolir tudo, de manipular tudo. Ver, decifrar,
aprender não os toca. O único efeito massivo é o da manipulação. Os organizadores (e os
artistas e intelectuais) assustam-se com esta vigilância incontrolável, porque só contam com a
aprendizagem das massas ao espectáculo da cultura. Nunca contam com este fascínio activo e
destrutivo, uma resposta brutal e original ao dom de uma cultura incompreensível, uma atracção que
tem todas as características do arrombamento e da violação de um santuário.
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Beaubourg poderia ou deveria ter desaparecido no dia seguinte à inauguração, desmantelado


e sequestrado pela multidão, o que teria sido a única resposta possível ao desafio absurdo da
transparência e da democracia da cultura - cada pessoa retirando um parafuso fetichizado desta
cultura ela mesma fetichizada.

As pessoas chegam para tocar, parecem que estão tocando, seu olhar é apenas um aspecto da
manipulação tátil. Trata-se certamente de um universo tátil, não mais visual ou discursivo, e as
pessoas estão diretamente implicadas num processo: manipular/ser manipulado, ventilar/ser ventilado,
circular/fazer circular, que não é mais da ordem da representação, nem da distância, nem da
reflexão. É algo que faz parte do pânico e de um mundo em pânico.

Pânico em câmera lenta, sem variável externa. É a violência interna a um conjunto saturado.
Implosão.

Beaubourg não pode nem queimar, está tudo previsto. Incêndio, explosão, destruição já não são a
alternativa imaginária a este tipo de construção. É a implosão a forma de abolir o mundo “quaternário”,
tanto cibernético como combinatório.

Subversão, destruição violenta é o que corresponde a um modo de produção. A um universo


de redes, de teoria combinatória e de fluxo correspondem reversão e implosão.

O mesmo se aplica às instituições, ao Estado, ao poder, etc. O sonho de ver tudo isso explodir à
força de contradições não é senão um sonho. O que se produz na realidade é que as instituições
implodem por si mesmas, à força de ramificações, de feedback, de circuitos de controle
superdesenvolvidos. O poder implode, este é o seu atual modo de desaparecimento.

É o caso da cidade. Incêndios, guerra, peste, revoluções, marginalidade criminosa,


catástrofes: toda a problemática da anticidade, da negatividade interna ou externa à cidade, tem
alguma relação arcaica com o seu verdadeiro modo de aniquilação.

Até o cenário da cidade subterrânea – a versão chinesa do enterro de estruturas – é ingênuo. A cidade
já não se repete segundo um esquema de reprodução ainda dependente do esquema
geral de produção, ou segundo um esquema de semelhança ainda dependente de um esquema
de representação. (É assim que ainda se restaurou depois da Segunda Guerra Mundial.) A cidade
já não revive, mesmo no fundo - ela se refaz a partir de uma espécie de código genético que permite
repeti-la indefinidamente a partir de uma memória cibernética acumulada. Foi-se até a utopia
borgesiana, do mapa coextensivo ao território e duplicando-o na sua totalidade: hoje o simulacro já
não passa pela via do duplo e da duplicação, mas pela via da miniaturização genética. Fim da
representação e da implosão, aí também, de todo o espaço numa memória infinitesimal, que
nada esquece e que não pertence a ninguém.

Simulação de uma ordem imanente, cada vez mais densa, irreversível, potencialmente saturada e
que nunca mais testemunhará a explosão libertadora.

Éramos uma cultura de violência libertadora (racionalidade). Quer se trate do capital, da libertação
das forças produtivas, da extensão irreversível do campo da razão e da
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no campo do valor, do espaço conquistado e colonizado incluindo o universal - seja o da revolução,


que antecipa as formas futuras do social e da energia do social - o esquema é o mesmo: o de
uma esfera em expansão , seja por fases lentas ou violentas, a de uma energia liberada – o
imaginário da radiação.

A violência que a acompanha é a de um mundo mais amplo: é a da produção. Essa violência é


dialética, energética, catártica. É aquele que aprendemos a analisar e que nos é familiar: aquele
que traça os caminhos do social e que leva à saturação de todo o campo do social. É uma
violência determinada, analítica, libertadora.

Aparece hoje toda uma outra violência, que já não sabemos analisar, porque foge ao
esquema tradicional da violência explosiva: uma violência implosiva que já não resulta da extensão
de um sistema, mas da sua saturação e da sua retracção, como é o caso para sistemas estelares
físicos. Uma violência que se segue a uma densificação desordenada do social, ao estado
de um sistema excessivamente regulamentado, a uma rede (de conhecimento, informação, poder)
sobrecarregada e de um controlo hipertrófico que investe todas as vias intersticiais.

Esta violência nos é ininteligível porque todo o nosso imaginário tem como eixo a lógica dos sistemas
em expansão. É indecifrável porque indeterminado. Talvez já nem venha do esquema da
indeterminação. Porque os modelos aleatórios que substituíram os modelos clássicos de
determinação e causalidade não são fundamentalmente diferentes. Traduzem a passagem de
sistemas definidos de expansão para sistemas de produção e expansão em todos os níveis -
numa estrela ou num rizoma, não importa - todas as filosofias de libertação de energia, de
irradiação de intensidades e de a molecularização do desejo vai na mesma direção, a de uma
saturação até o intersticial e a infinidade das redes. A diferença do molar para o molecular é
apenas uma modulação, talvez a última, no processo energético fundamental da expansão dos
sistemas.

Outra coisa se passarmos de uma fase milenar de libertação e desconexão de energias para uma fase
de implosão, depois de uma espécie de radiação máxima (ver os conceitos de perda e gasto
de Bataille neste sentido, e o mito solar de uma radiação inesgotável, em onde funda a sua
antropologia suntuária: é o último mito explosivo e radiante da nossa filosofia, o último fogo do
artifício de uma economia fundamentalmente geral, mas isto já não tem sentido para nós), para
uma fase de reversão da situação social - reversão gigantesca de um campo quando atingido o
ponto de saturação. Os sistemas estelares também não deixam de existir uma vez dissipada a
sua energia radiante: implodem segundo um processo que é inicialmente lento e depois acelera
progressivamente - contraem-se a uma velocidade fabulosa e tornam-se sistemas involutivos,
que absorvem toda a envolvente. energias, para que se tornem buracos negros onde o
mundo como o conhecemos, como radiação e potencial energético indefinido, é abolido.

Talvez as grandes metrópoles - certamente estas, se esta hipótese tiver algum sentido - tenham se
tornado locais de implosão neste sentido, locais de absorção e reabsorção do próprio social cuja
idade de ouro, contemporânea do duplo conceito de capital e revolução, é sem dúvida passada. . O
social involui lenta ou brutalmente, num campo de inércia,
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que já envolve o político. (A energia oposta?) É preciso evitar tomar a implosão por um processo
negativo -inerte, regressivo - como aquele que a linguagem nos impõe ao exaltar os termos opostos
da evolução, da revolução. A implosão é um processo específico de consequências incalculáveis.
Maio de 1968 foi sem dúvida o primeiro episódio implosivo, isto é, contrário à sua reescrita em termos
de prosopopeia revolucionária, uma primeira reacção violenta à saturação do social, uma retracção,
um desafio à hegemonia do social, em contradição , aliás, à ideologia dos próprios
participantes, que pensavam ir mais longe no social - tal é o imaginário que ainda nos domina - e
aliás boa parte dos acontecimentos de 1968 ainda puderam provir dessa dinâmica revolucionária e
violência explosiva, mas outra coisa começou ali ao mesmo tempo: a involução violenta do social,
determinada nesse sentido, e a implosão consecutiva e repentina do poder, num breve momento de
tempo, mas que nunca parou depois - fundamentalmente é aquilo que continua, a implosão do social,
das instituições, do poder - e de forma alguma uma dinâmica revolucionária inlocalizável. Pelo
contrário, a própria revolução, a ideia de revolução também implode, e esta implosão acarreta
consequências mais pesadas do que a própria revolução.

Certamente, desde 1968, e graças a 1968, o social, como o deserto, cresce - participação, gestão,
autogestão generalizada, etc. - mas ao mesmo tempo aproxima-se em múltiplos lugares, mais
numerosos do que em 1968, de ao seu descontentamento e à sua reversão total.
Sismo lento, inteligível à razão histórica.

* NOTAS *

1. Ainda há algo mais que aniquila o projecto cultural de Beaubourg: as próprias massas
também inundam-no para se deleitarem com ele (voltaremos a isto mais tarde).

2. Em relação a esta massa crítica e à sua compreensão radical de Beaubourg, quão irrisória
parece a manifestação dos estudantes de Vincennes na noite da sua inauguração!
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HIPERMERCADO E HIPERCOMMODIDADE

A trinta quilómetros de distância, as setas apontam para estes grandes centros de triagem que são
os hipermercados, para este hiperespaço da mercadoria onde, em muitos aspectos, se elabora
toda uma nova sociabilidade. Resta saber como o hipermercado centraliza e redistribui toda uma
região e população, como concentra e racionaliza tempo, trajetórias, práticas - criando um
imenso movimento de vaivém totalmente semelhante ao dos passageiros suburbanos,
absorvidos e expulsos em horários fixos. vezes por seus
ambiente de trabalho.

No nível mais profundo, está aqui em causa outro tipo de trabalho, o trabalho de aculturação, de
confronto, de exame, de código social, e de veredicto: as pessoas vão lá para encontrar e
seleccionar objectos - respostas a todas as questões eles podem se perguntar; ou melhor, eles
próprios surgem em resposta à questão funcional e dirigida que os objetos constituem. Os objetos já
não são mercadorias: já não são sequer signos cujo significado e mensagem se pudesse decifrar e
apropriar, são testes, são eles que nos interrogam, e somos convocados a respondê-los, e a
resposta está incluída na pergunta. Assim, todas as mensagens nos meios de comunicação funcionam
de forma semelhante: nem informação nem comunicação, mas referendo, teste perpétuo,
resposta circular, verificação do código.

Nenhum relevo, nenhuma perspectiva, nenhum ponto de fuga onde o olhar possa arriscar-se a perder-
se, mas um ecrã total onde, na sua exibição ininterrupta, os outdoors e os próprios produtos
funcionam como signos equivalentes e sucessivos. Há funcionários que se ocupam apenas
em refazer a frente do palco, o display de superfície, onde um apagamento prévio por parte do
consumidor pode ter deixado algum tipo de buraco. O autosserviço também contribui para esta
ausência de profundidade: um mesmo espaço homogêneo, sem mediação, reúne homens e coisas
– um espaço de manipulação direta. Mas quem manipula quem?

Até a repressão se integra como signo neste universo de simulação. A repressão transformada em
dissuasão nada mais é do que um sinal a mais no universo da persuasão. Os circuitos das
câmeras de vigilância fazem parte da decoração dos simulacros. Uma vigilância perfeita em todas as
frentes exigiria um mecanismo de controle mais pesado e sofisticado do que o da própria loja. Não
seria lucrativo. É, portanto, uma alusão à repressão, um “sinal” desta ordem, que é posto em
prática; este sinal pode assim coexistir com todos os outros, e mesmo com o imperativo oposto,
por exemplo aqueles que os enormes outdoors exprimem, convidando-o a relaxar e a escolher com
total serenidade. Esses outdoors, na verdade, observam e vigiam você tão bem, ou tão mal,
quanto a televisão “policial”. Este último olha para você, você se olha nele, misturado com os outros,
é o espelho sem prateamento (mancha) na atividade de consumo, um jogo de divisão em dois e
duplicação que fecha este mundo sobre si mesmo.

O hipermercado não pode ser separado das rodovias que o circundam e alimentam, dos
estacionamentos cobertos de automóveis, do terminal de computador - mais ainda, em círculos
concêntricos - de toda a cidade como tela funcional total de atividades. O hipermercado assemelha-
se a uma gigantesca fábrica de montagens, porque, em vez de estarem ligados à cadeia de trabalho
por um constrangimento racional contínuo, os agentes (ou os pacientes), móveis e
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descentrados, dão a impressão de passar por circuitos aleatórios de um ponto a outro da cadeia. Os
horários, a seleção, as compras também são aleatórios, em contraste com as práticas de trabalho.
Mas ainda se trata de uma cadeia, de uma disciplina programática, cujos tabus são apagados sob
um verniz de tolerância, facilidade e hiperrealidade. O hipermercado já é, para além das instituições
fabris e tradicionais do capital, o modelo de todas as formas futuras de socialização controlada: a
retotalização num espaço-tempo homogéneo de todas as funções dispersas do corpo e da vida
social (trabalho, lazer, alimentação , higiene, transporte, mídia, cultura); retranscrição dos
fluxos contraditórios em termos de circuitos integrados; espaço-tempo de toda uma simulação
operacional da vida social, de toda uma estrutura de vida e de trânsito.

Modelo de antecipação dirigida, o hipermercado (especialmente nos Estados Unidos) preexiste


à área metropolitana; é o que dá origem às áreas metropolitanas, enquanto o mercado
tradicional estava no coração de uma cidade, um lugar onde a cidade e o campo se encontravam. O
hipermercado é a expressão de todo um estilo de vida em que não só o campo mas também a
cidade desapareceram para dar lugar à "área metropolitana" - um zoneamento urbano funcional
completamente delimitado, do qual o hipermercado é o equivalente, o micromodelo, sobre
o nível de consumo. Mas o papel do hipermercado vai muito além do “consumo”, e os objetos já não
têm ali uma realidade específica: o que é primário é a sua disposição serial, circular, espetacular –
o futuro modelo das relações sociais.

O hipermercado da “forma” pode assim ajudar-nos a compreender o que se entende por fim
da modernidade. As grandes cidades testemunharam o nascimento, em cerca de um século
(1850-1950), de uma geração de grandes lojas “modernas” (muitas levaram este nome de uma forma
ou de outra), mas esta modernização fundamental, ligada à dos transportes , não derrubou a
estrutura urbana. As cidades permaneceram cidades, enquanto as novas cidades são satélites do
hipermercado ou do centro comercial, servidas por uma rede de tráfego programada, e deixam de ser
cidades para se tornarem áreas metropolitanas. Surgiu uma nova morfogénese, que vem do tipo
cibernético (isto é, reproduzindo ao nível do território, da casa, do trânsito, os cenários de controlo
molecular que são os do código genético), e cuja forma é nuclear e satélite. O hipermercado como
núcleo. A cidade, mesmo moderna, já não a absorve. É o hipermercado que estabelece uma órbita
ao longo da qual se move a suburbanização. Funciona como um implante para os novos
agregados, como às vezes também faz a universidade ou mesmo a fábrica - não mais a fábrica do
século XIX, nem a fábrica descentralizada que, sem romper a órbita da cidade, se instala nos
subúrbios, mas a fábrica de montagem, automatizada por controles eletrônicos, ou seja,
correspondendo a uma função e modo de trabalho totalmente desterritorializados. Com esta fábrica,
como com o hipermercado ou com a nova universidade, já não se trata de funções (comércio,
trabalho, conhecimento, lazer) autonomizadas e deslocadas (o que ainda caracteriza o
desenvolvimento "moderno" da cidade), mas com um modelo da desintegração das funções, da
indeterminação das funções e da desintegração da própria cidade, que é transplantada para fora
da cidade e tratada como um modelo hiperreal, como o núcleo de uma área metropolitana baseada
numa síntese que já não tem qualquer coisa que tenha a ver com uma cidade. Satélites negativos
da cidade que traduzem o fim da cidade, mesmo da cidade moderna, como espaço determinado,
qualitativo, como síntese original de uma sociedade.

Poderíamos acreditar que esta implantação corresponde à racionalização de diversas


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funções. Mas, de facto, a partir do momento em que uma função se torna hiperespecializada
até ao ponto de ser capaz de ser projectada a partir de todos os elementos do terreno
"chaves na mão", ela perde a finalidade que lhe é própria e torna-se algo completamente
diferente: um núcleo polifuncional, um conjunto de “caixas pretas” com múltiplas
entradas-saídas, local de convecção e de desestruturação. Estas fábricas e estas
universidades já não são fábricas nem universidades, e os hipermercados já não têm a qualidade de mercado.
Estranhos novos objectos dos quais a central nuclear é sem dúvida o modelo absoluto e
dos quais irradia uma espécie de neutralização do território, um poder de dissuasão
que, por trás da aparente função destes objectos, constitui sem dúvida a sua função
fundamental: a hiperrealidade de núcleos funcionais que não são mais funcionais. Estes
novos objectos são os pólos de simulação em torno dos quais se elabora, em contraste com
as antigas estações ferroviárias, fábricas ou redes de transporte tradicionais, algo diferente
de uma "modernidade": uma hiper-realidade, uma simultaneidade de todas as funções,
sem passado, sem um futuro, uma operacionalidade em todos os níveis. E sem dúvida
também crises, ou mesmo novas catástrofes: Maio de 1968 começa em Nanterre, e não na
Sorbonne, isto é, num lugar onde, pela primeira vez em França, a hiperfuncionalização "extra
muros" de um lugar de aprendizagem é equivale à desterritorialização, ao
descontentamento, à perda da função e da finalidade do conhecimento num todo neofuncional
programado. Ali nasceu uma violência nova e original em resposta à satelização
orbital de um modelo (conhecimento, cultura) cujo referencial se perde.
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A IMPLOSÃO DE SIGNIFICADO NA MÍDIA

Vivemos num mundo onde há cada vez mais informação e cada vez menos significado.

Considere três hipóteses.

Ou a informação produz significado (um factor neguentrópico), mas não pode compensar a perda brutal de
significado em todos os domínios. Apesar dos esforços para reinjetar mensagem e conteúdo, o
significado é perdido e devorado mais rapidamente do que pode ser reinjetado. Neste caso, deve-se
apelar para uma produtividade básica para substituir meios com falha. Esta é toda a ideologia da liberdade de
expressão, da mídia dividida em inúmeras células individuais de transmissão, isto é, em “antimídia” (rádio
pirata, etc.).

Ou a informação não tem nada a ver com significado. É outra coisa, um modelo operacional de outra
ordem, fora do sentido e da circulação do sentido propriamente dito. Esta é a hipótese de Shannon:
uma esfera de informação que é puramente funcional, um meio técnico que não implica qualquer finalidade
de significado e, portanto, também não deve estar implicado num juízo de valor. Uma espécie de código,
como o código genético: é o que é, funciona como funciona, o significado é outra coisa que, em certo sentido,
vem depois do fato, como acontece com Monod em Chance e Necessidade. Neste caso, simplesmente não
haveria nenhuma relação significativa entre a inflação da informação e a deflação do significado.

Ou, muito pelo contrário, existe uma correlação rigorosa e necessária entre os dois, na medida em que a
informação é directamente destrutiva do sentido e da significação, ou que os neutraliza. A perda de sentido
está diretamente ligada à ação dissolvente e dissuasora da informação, da mídia e dos meios de
comunicação de massa.

A terceira hipótese é a mais interessante, mas vai contra todas as opiniões comuns. Em todos os lugares, a
socialização é medida pela exposição às mensagens da mídia.
Quem está subexposto à mídia é dessocializado ou virtualmente associal. Em todo o lado, pensa-se que a
informação produz uma circulação acelerada de significado, um valor positivo de significado homólogo ao
económico que resulta da rotação acelerada do capital. Pensa-se que a informação cria comunicação, e
mesmo que o desperdício seja enorme, um consenso geral seria de que, no entanto, como um
todo, há um excesso de significado, que é redistribuído em todos os interstícios do social - tal como o
consenso faria temos que a produção material, apesar das suas disfunções e irracionalidades, abre-
se para um excesso de riqueza e propósito social. Somos todos cúmplices deste mito. É o alfa
e o ómega da nossa modernidade, sem os quais a credibilidade da nossa organização social
entraria em colapso. Pois bem, o fato é que ela está entrando em colapso, e por isso mesmo: porque onde
pensamos que a informação produz sentido, ocorre o contrário.

A informação devora seu próprio conteúdo. Devora a comunicação e o social. E para


duas razões.

1. Em vez de criar comunicação, esgota-se no ato de encenar a comunicação. Mais do que


produzir sentido, esgota-se na encenação de
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significado. Um gigantesco processo de simulação que é muito familiar. A entrevista não-


diretiva, o discurso, os ouvintes que ligam, a participação em todos os níveis, a chantagem através
do discurso: "Você está preocupado, você é o acontecimento, etc." Cada vez mais a informação
é invadida por esse tipo de conteúdo fantasma, esse enxerto homeopático, esse sonho
despertador de comunicação. Um arranjo circular através do qual se encena o desejo do público, o
antiteatro da comunicação, que, como se sabe, nunca é senão a reciclagem no negativo da
instituição tradicional, o circuito integrado do negativo. Imensas energias são mobilizadas para manter
este simulacro sob controle, para evitar a simulação brutal que nos confrontaria diante da realidade
óbvia de uma perda radical de sentido.

É inútil perguntar se é a perda de comunicação que produz esta escalada no simulacro, ou se é o


simulacro que está lá primeiro para fins dissuasivos, para curto-circuitar antecipadamente
qualquer possibilidade de comunicação (precessão do modelo que chama o fim do real). Inútil
perguntar qual é o primeiro termo, não existe, é um processo circular - o da simulação, o do
hiperreal. A hiperrealidade da comunicação e do significado. Mais real que o real, é assim
que o real é abolido.

Assim, não só a comunicação, mas o social funciona num circuito fechado, como uma isca – à
qual está ligada a força do mito. A crença, a fé na informação ligam-se a esta prova tautológica que o
sistema dá de si mesmo ao duplicar os sinais de uma realidade inlocalizável.

Mas pode-se acreditar que esta crença é tão ambígua quanto aquela que estava ligada aos mitos
nas sociedades antigas. Um acredita e não acredita. Ninguém se pergunta: “Eu sei muito bem,
mas ainda assim”. Uma espécie de simulação inversa nas massas, em cada um de nós,
corresponde a esta simulação de sentido e de comunicação em que este sistema nos encerra. A
esta tautologia do sistema as massas respondem com ambivalência, à dissuasão respondem
com descontentamento, ou com uma crença sempre enigmática. O mito existe, mas é preciso
evitar pensar que as pessoas acreditam nele: esta é a armadilha do pensamento crítico que só
pode ser exercida se pressupor a ingenuidade e a estupidez das massas.

2. Por trás desta exacerbada mise-en-scène da comunicação, dos meios de comunicação de


massa, a pressão da informação persegue uma desestruturação irresistível do social.

Assim, a informação dissolve o significado e dissolve o social, numa espécie de estado nebuloso
dedicado não a um excedente de inovação, mas, pelo contrário, à entropia total.*1

Assim, os meios de comunicação social são produtores não de socialização, mas exactamente
do contrário, da implosão do social nas massas. E esta é apenas a extensão macroscópica da
implosão de significado no nível microscópico do signo. Esta implosão deve ser analisada
segundo a fórmula de McLuhan, o meio é a mensagem, cujas consequências ainda não foram
esgotadas.

Isso significa que todos os conteúdos de significado são absorvidos na única forma dominante do
meio. Só o meio pode realizar um acontecimento – quaisquer que sejam os conteúdos, sejam eles
conformistas ou subversivos. Um problema sério para toda contrainformação, rádios piratas,
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antimídia, etc. Mas há algo ainda mais sério, que o próprio McLuhan não percebeu. Porque para
além desta neutralização de todo o conteúdo, ainda se poderia esperar manipular o meio na
sua forma e transformar o real utilizando o impacto do meio como forma. Se todo o conteúdo for
eliminado, talvez ainda exista um valor de uso subversivo e revolucionário do meio como tal.
Ou seja - e é aí que leva a fórmula de McLuhan, levada ao limite - não há apenas uma implosão
da mensagem no meio, há, no mesmo movimento, a implosão do próprio meio no real, a implosão
do o meio e o real numa espécie de nebulosa hiperreal, na qual mesmo a definição e a ação distinta
do meio não podem mais ser determinadas.

Até o estatuto “tradicional” dos próprios meios de comunicação, característico da modernidade, é


questionado. Fórmula de McLuhan, o meio é a mensagem, que é a fórmula chave da era da simulação
(o meio é a mensagem - o emissor é o receptor - a circularidade de todos os pólos - o fim do
espaço panóptico e perspectivo - tal é o alfa e ómega da nossa modernidade), esta mesma fórmula
deve ser imaginada no seu limite onde, depois de todos os conteúdos e mensagens terem sido
volatilizados no meio, é o próprio meio que se volatiliza como tal. Fundamentalmente, ainda é a
mensagem que confere credibilidade ao meio, que confere ao meio o seu estatuto determinado e
distinto como intermediário da comunicação. Sem mensagem, o meio também cai no estado
indefinido característico de todos os nossos grandes sistemas de julgamento e valor. Um
modelo único, cuja eficácia é imediata, gera simultaneamente a mensagem, o meio e o “real”.

Finalmente, o meio é a mensagem não significa apenas o fim da mensagem, mas também o fim do
meio. Não existem mais meios de comunicação no sentido literal da palavra (falo
particularmente dos meios de comunicação eletrônicos de massa) - isto é, de um poder mediador
entre uma realidade e outra, entre um estado do real e outro. Nem no conteúdo, nem na forma.
Estritamente, é isso que significa implosão. A absorção de um pólo por outro, o curto-circuito entre
pólos de todo sistema diferencial de significado, o apagamento de termos e oposições distintas,
incluindo a do meio e do real - daí a impossibilidade de qualquer mediação, de qualquer
intervenção dialética entre os dois ou de um para o outro. Circularidade de todos os efeitos da
mídia. Daí a impossibilidade de significar no sentido literal um vetor unilateral que vai de um pólo a
outro. É preciso encarar esta situação crítica mas original no seu limite: é a única que nos
resta. É inútil sonhar com a revolução através do conteúdo, inútil sonhar com uma revelação através
da forma, porque o meio e o real estão agora numa única nebulosa cuja verdade é indecifrável.

O facto desta implosão dos conteúdos, da absorção do sentido, da evanescência do próprio meio,
da reabsorção de toda a dialética da comunicação numa total circularidade do modelo, da implosão
do social nas massas, pode parecer catastrófico e desesperado. Mas este é apenas o
caso à luz do idealismo que domina toda a nossa visão da informação. Todos vivemos por
um idealismo apaixonado do significado e da comunicação, por um idealismo da comunicação
através do significado e, nesta perspectiva, é verdadeiramente a catástrofe do significado que nos
espera.

Mas é preciso compreender que “catástrofe” tem este significado “catastrófico” de fim e
aniquilação apenas em relação a uma visão linear de acumulação, de finalidade produtiva, que
nos é imposta pelo sistema. Etimologicamente, o próprio termo significa apenas a curvatura,
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a descida até o fundo de um ciclo que leva ao que se poderia chamar de “horizonte do acontecimento”,
a um horizonte intransponível de sentido: além dele não acontece nada que tenha sentido para nós
- mas é suficiente para sair desta ultimato de sentido para que a própria catástrofe não pareça
mais um dia de ajuste de contas final e niilista, tal como funciona no nosso imaginário contemporâneo.

Além do sentido, existe o fascínio que resulta da neutralização e da implosão do sentido. Para
além do horizonte do social, estão as massas, que resultam da neutralização e da implosão do
social.

O que é essencial hoje é avaliar este duplo desafio – o desafio das massas ao sentido e ao seu
silêncio (que não é de forma alguma uma resistência passiva) – o desafio ao sentido que vem
dos meios de comunicação e do seu fascínio. Todos os esforços marginais e alternativos para
reavivar o significado são secundários em relação a esse desafio.

Evidentemente, há um paradoxo nesta conjunção inextricável das massas e dos meios de comunicação:
será que os meios de comunicação neutralizam o sentido e produzem massas informes ou informadas,
ou são as massas que resistem vitoriosamente aos meios de comunicação, dirigindo ou absorvendo
todos os meios de comunicação social? as mensagens que a mídia produz sem responder a
elas? Há algum tempo, em “Requiem for the Media”, analisei e condenei a mídia como a instituição
de um modelo irreversível de comunicação sem resposta. Mas hoje? Esta ausência de resposta já
não pode ser entendida como uma estratégia de poder, mas como uma contra-
estratégia das próprias massas quando se deparam com o poder. E então?

Os meios de comunicação de massa estão do lado do poder na manipulação das massas, ou estão
do lado das massas na liquidação do significado, na violência perpetrada sobre o significado e no
fascínio? São os meios de comunicação que induzem o fascínio nas massas, ou são as massas que
direcionam os meios de comunicação para o espetáculo? Mogadíscio-Stammheim: os meios de
comunicação social tornam-se veículos da condenação moral do terrorismo e da exploração do
medo para fins políticos, mas ao mesmo tempo, na mais completa ambiguidade, propagam
o encanto brutal do acto terrorista, são eles próprios terroristas , na medida em que eles
próprios marcham ao som da sedução (cf. Umberto Eco sobre este eterno dilema moral: como não
falar de terrorismo, como encontrar um bom uso dos meios de comunicação - não há). Os meios de
comunicação carregam sentido e contra-sentido, manipulam em todas as direções ao mesmo
tempo, nada pode controlar esse processo, são o veículo da simulação interna ao sistema e da
simulação que destrói o sistema, segundo uma lógica absolutamente mobiana e circular - e é
exatamente assim. Não há alternativa para isso, nenhuma resolução lógica. Apenas uma exacerbação
lógica e uma resolução catastrófica.

Com um cuidado. Estamos face a face com este sistema numa situação dupla e num duplo vínculo
insolúvel - exactamente como as crianças que enfrentam as exigências do mundo adulto. As
crianças são simultaneamente obrigadas a constituir-se como sujeitos autónomos,
responsáveis, livres e conscientes, e a constituir-se como objetos submissos, inertes,
obedientes e conformados. A criança resiste em todos os níveis e, a uma exigência
contraditória, responde com uma estratégia dupla. À exigência de ser objeto, ele opõe todas
as práticas de desobediência, de revolta, de emancipação; em suma, uma reivindicação total à
subjetividade. À exigência de ser sujeito ele se opõe, com a mesma obstinação
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e eficazmente, a resistência de um objeto, ou seja, exatamente o contrário: infantilidade,


hiperconformismo, dependência total, passividade, idiotice. Nenhuma estratégia tem mais
valor objetivo do que a outra. A resistência do sujeito é hoje valorizada unilateralmente e vista como
positiva - assim como na esfera política apenas as práticas de liberdade, emancipação,
expressão e constituição de um sujeito político são vistas como valiosas e subversivas. Mas isto é
ignorar o impacto igual, e sem dúvida superior, de todas as práticas objetais, da renúncia à posição
de sujeito e ao sentido - precisamente as práticas das massas - que enterramos sob os termos
irrisórios da alienação e da passividade. . As práticas libertadoras respondem a um dos aspectos
do sistema, ao ultimato constante que nos são dados para nos constituirmos como objetos
puros, mas não respondem de forma alguma à outra exigência, a de nos constituirmos como
sujeitos, de nos libertarmos, expressar-nos a qualquer custo, votar, produzir, decidir, falar, participar,
jogar o jogo - uma forma de chantagem e ultimato tão grave quanto a outra, hoje ainda mais
grave. Para um sistema cujo argumento é a opressão e a repressão, a resistência estratégica é
a reivindicação libertadora da subjetividade. Mas esta estratégia reflecte mais a fase anterior do
sistema e, mesmo que ainda sejamos confrontados com ela, já não é o terreno estratégico: o
argumento actual do sistema é maximizar o discurso, a produção máxima de significado. Assim,
a resistência estratégica é a da recusa do sentido e da palavra falada - ou da simulação
hiperconformista dos próprios mecanismos do sistema, que é uma forma de recusa e de
não recepção. É a estratégia das massas: equivale a devolver ao sistema a sua própria
lógica, duplicando-a, a reflectir o sentido, como um espelho, sem o absorver. Esta estratégia (se
é que ainda se pode falar de estratégia) prevalece hoje, porque foi introduzida pela fase do sistema
que prevalece.

Escolher a estratégia errada é um assunto sério. Todos os movimentos que apenas jogam com a
libertação, com a emancipação, com a ressurreição de um sujeito da história, do grupo, da palavra
a partir de uma “elevação da consciência”, na verdade uma “elevação do inconsciente” dos sujeitos e
das massas, não não percebem que caminham na direção do sistema, cujo imperativo hoje é
justamente a superprodução e a regeneração do sentido e do discurso.

* OBSERVAÇÃO *

1. Aqui não falamos de informação senão no registo social da comunicação. Mas


seria fascinante considerar esta hipótese mesmo dentro dos parâmetros da teoria da informação
cibernética. Aí também, a tese fundamental preconiza que esta informação seja sinónimo de
negentropia, de resistência à entropia, de excesso de sentido e de organização. Mas seria útil propor
a hipótese oposta: INFORMAÇÃO = ENTROPIA. Por exemplo: a informação ou conhecimento
que pode ser obtido sobre um sistema ou um evento já é uma forma de neutralização e entropia
desse sistema (a ser estendido à ciência em geral, e às ciências sociais e humanas em particular). A
informação na qual um evento é refletido ou transmitido já é uma forma degradada desse evento.
Não hesite em analisar a intervenção mediática em Maio de 1968 nestes termos. A extensão da
acção estudantil permitiu a greve geral, mas esta foi precisamente uma caixa negra que neutralizou
a virulência original do movimento. A amplificação era em si uma armadilha mortal e não uma
extensão positiva. Deve-se ter cuidado com a universalização das lutas através da informação. Um
deveria ser
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cautelosos com as campanhas de solidariedade a todos os níveis, com esta solidariedade


simultaneamente electrónica e mundial. Toda estratégia de universalização das diferenças é uma
estratégia entrópica do sistema.
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PUBLICIDADE ABSOLUTA, PUBLICIDADE DO MARCO ZERO


Hoje o que estamos vivenciando é a absorção de todos os modos de expressão virtuais pelos da
publicidade. Todas as formas culturais originais, todas as linguagens determinadas são
absorvidas na publicidade porque não tem profundidade, é instantânea e instantaneamente esquecida.
Triunfo da forma superficial, do menor denominador comum de toda significação, grau zero de
sentido, triunfo da entropia sobre todos os tropos possíveis. A forma mais baixa de energia do
signo. Esta forma desarticulada, instantânea, sem passado, sem futuro, sem possibilidade
de metamorfose, tem poder sobre todas as outras. Todas as formas atuais de atividade tendem
para a publicidade e a maioria se esgota nela. Não necessariamente a publicidade em si,
aquela que se produz como tal - mas a forma da publicidade, a de um modo operacional
simplificado, vagamente sedutor, vagamente consensual (todas as modalidades se confundem
nela, mas de modo atenuado, agitado). Mais genericamente, a forma de publicidade é
aquela em que todos os conteúdos particulares são anulados no momento em que podem ser
transcritos uns nos outros, enquanto o que é inerente às enunciações “de peso”, às formas
articuladas de sentido (ou de estilo) é que eles não podem ser traduzidos um no outro,
assim como as regras de um jogo não podem.

Este longo movimento rumo à traduzibilidade e, portanto, rumo a uma combinatória completa,
que é a da transparência superficial de tudo, da sua publicidade absoluta (da qual a publicidade
profissional é, mais uma vez, apenas uma forma episódica), pode ser lida nas vicissitudes da
propaganda .

Todo o âmbito da publicidade e da propaganda vem da Revolução de Outubro e da quebra do


mercado de 1929. Ambas as linguagens das massas, resultantes da produção em
massa de ideias, ou mercadorias, os seus registos, inicialmente separados, convergem
progressivamente. A propaganda torna-se o marketing e o merchandising de forças de
ideias, de homens políticos e de partidos com a sua “imagem de marca”. A propaganda
aborda a publicidade como se fosse o modelo veicular da única grande e verdadeira força-ideia
desta sociedade concorrente, a mercadoria e a marca. Esta convergência define uma sociedade
– a nossa – em que já não há diferença entre o económico e o político, porque em ambos reina
a mesma linguagem, de um extremo ao outro; uma sociedade, portanto, onde a economia
política, literalmente falando, é finalmente plenamente realizada. Isto é, dissolvido como poder
específico (como modo histórico de contradição social), resoluto, absorvido numa linguagem
sem contradições, como um sonho, porque atravessado por intensidades puramente superficiais.

Uma etapa subsequente é atravessada quando a própria linguagem do social, depois da


do político, se confunde com esta fascinante solicitação de uma linguagem agitada, quando o
social se transforma em publicidade, se entrega ao voto popular tentando impor a sua imagem de
marca registrada. Do destino histórico que foi, o próprio social caiu ao nível de uma “empresa
colectiva” assegurando a sua publicidade a todos os níveis. Veja que mais-valia do social
cada anúncio tenta produzir: werben werben (anúncio publicitário) - a solicitação do social em
todos os lugares, presente nas paredes, nas vozes quentes e exangues das locutoras de
rádio, nos sotaques da trilha sonora e nas múltiplas tonalidades da trilha da imagem que se
reproduz por toda parte diante de nossos olhos. Uma sociabilidade presente em toda parte,
uma sociabilidade absoluta finalmente realizada em publicidade absoluta - isto é, também
totalmente dissolvida, um vestígio de sociabilidade alucinado em todas as paredes da
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a forma simplificada de uma demanda do social que é imediatamente atendida pelo eco da
publicidade. O social como roteiro, cujo público desnorteado somos.

Assim, a forma de publicidade impôs-se e desenvolveu-se à custa de todas as outras linguagens


como uma retórica cada vez mais neutra, equivalente, sem afetos, como uma "nebulosa
assintática", diria Yves Stourdze, que nos envolve por todos os lados (e que nos envolve por todos
os lados). ao mesmo tempo, elimina o problema altamente controverso da “crença” e da
eficácia: não oferece significados nos quais investir, oferece uma equivalência simplificada de todos
os sinais anteriormente distintivos e os dissuade com esta mesma equivalência). Isto define os
limites do poder atual da publicidade e as condições do seu desaparecimento, pois hoje a publicidade
já não é uma aposta, ela ao mesmo tempo “entrou nos nossos costumes” e ao mesmo tempo escapou
à dramaturgia social e moral que ainda representava há vinte anos. atrás.

Não é que as pessoas não acreditem mais nisso ou que o tenham aceitado como rotina. É que se
outrora o seu fascínio residia no seu poder de simplificar todas as linguagens, hoje esse poder lhe
é roubado por outro tipo de linguagem que é ainda mais simplificada e, portanto, mais funcional:
as linguagens da ciência da computação. O modelo de sequência, a trilha sonora e a trilha de imagens
que a publicidade, junto com os demais grandes meios de comunicação, nos oferece - o modelo da
distribuição combinatória e igualitária de todos os discursos que ela propõe - esse continuum ainda
retórico de sons, signos, sinais , os slogans que erige como ambiente total são largamente
ultrapassados, precisamente na sua função de simulação, pela fita magnética, pelo continuum
electrónico que está em vias de se recortar no horizonte do final deste século. O microprocessamento,
a digitalidade, as linguagens cibernéticas vão muito mais longe na direção da simplificação
absoluta dos processos do que a publicidade fez no seu nível humilde – ainda imaginário e
espetacular. E é porque estes sistemas vão mais longe que hoje polarizam o fascínio que
outrora recaía sobre a publicidade. É a informação, no sentido do tratamento de dados,
que vai pôr fim, que já está a pôr fim ao reinado da publicidade. É isso que inspira medo e é
emocionante. A “emoção” da publicidade foi deslocada para os computadores e para a
miniaturização da vida quotidiana pela ciência da computação.

A ilustração antecipada desta transformação foi a pápula de Philip K. Dick – aquele implante
publicitário transistorizado, uma espécie de sanguessuga radiodifusora, um parasita electrónico que
se fixa ao corpo e do qual é muito difícil livrar-se. Mas a pápula ainda é uma forma intermediária:
já é uma espécie de prótese incorporada, mas ainda repete incessantemente mensagens
publicitárias. Um híbrido, então, mas uma prefiguração das redes psicotrópicas e de processamento
de dados da pilotagem automática dos indivíduos, junto às quais o “condicionamento” pela
publicidade parece uma deliciosa mudança de sorte.

Atualmente, o aspecto mais interessante da publicidade é o seu desaparecimento, a sua diluição


como forma específica, ou mesmo como meio. A publicidade já não é (já foi?) um meio de
comunicação ou de informação. Ou então é ultrapassado pela loucura própria dos sistemas
superdesenvolvidos, a de votar em si mesmo a cada momento e, portanto, de parodiar-se. Se num
dado momento a mercadoria era a sua própria publicidade (não havia outra), hoje a publicidade
tornou-se a sua própria mercadoria. Confunde-se consigo mesmo (e o erotismo com que se
disfarça ridiculamente não é senão o índice auto-erótico de um sistema que nada mais faz do que
se designar - daí o absurdo de ver nele uma
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"alienação" do corpo feminino).

À medida que um meio se torna a sua própria mensagem (o que faz com que agora haja uma procura
de publicidade em si e que, portanto, a questão de “acreditar” nela ou não já não seja sequer
colocada), a publicidade é completamente em uníssono. com o social, cuja necessidade histórica se
viu absorvida pela demanda pura e simples do social: uma demanda de que o social funcione
como um negócio, um grupo de serviços, um modo de vida ou de sobrevivência (o social deve ser
salvo apenas como a natureza deve ser preservada: o social é o nosso nicho) - enquanto
anteriormente era uma espécie de revolução no seu próprio projecto. Isto está certamente perdido:
o social perdeu precisamente este poder de ilusão, caiu no registo da oferta e da procura, tal como
o trabalho passou de força antagónica ao capital para o simples estatuto de emprego, isto é, de
emprego. bens (eventualmente raros) e serviços como os outros. Pode-se assim criar publicidade
para o trabalho, a alegria de encontrar trabalho, tal como se poderá criar publicidade para o social. E,
hoje, a verdadeira publicidade reside nisso: na concepção do social, na exaltação do social em
todas as suas formas, na lembrança feroz e obstinada de um social, cuja necessidade se faz sentir
rudemente.

Danças folclóricas no metrô, inúmeras campanhas de segurança, o slogan “amanhã eu trabalho”


acompanhado de um sorriso antes reservado aos momentos de lazer, e a sequência publicitária da
eleição para o Prud-hommes (tribunal industrial): “Eu não não deixe ninguém escolher por mim" - um
slogan ubuense, que soava tão espetacularmente falso, com uma liberdade zombeteira, a de
provar o social e ao mesmo tempo negá-lo. Não é por acaso que a publicidade, depois de ter,
durante muito tempo, carregado um ultimato implícito de ordem económica, fundamentalmente
dizendo e repetindo incessantemente: "compro, consumo, tenho prazer", hoje repete de
outras formas, " Voto, participo, estou presente, estou preocupado" - espelho de uma
zombaria paradoxal, espelho da indiferença de toda significação pública.

O pânico oposto: sabe-se que o social pode ser dissolvido numa reação de pânico, numa reação
em cadeia incontrolável. Mas também pode ser dissolvido na reação oposta, uma reação em
cadeia de inércia, cada microuniverso saturado, autorregulado, computadorizado, isolado em
piloto automático. A publicidade é a prefiguração disso: a primeira manifestação de um fio ininterrupto
de signos, como uma fita adesiva - cada um isolado na sua inércia.
Insatisfeito, mas saturado. Insensibilizado, mas pronto para quebrar. É neste universo que ganha
força aquilo que Virilio chama de estética do desaparecimento, que aparecem os seguintes seres:
objetos fractais, formas fractais, zonas de falha que seguem a saturação e, portanto, um
processo de rejeição massiva, de ab-reação ou estupor de uma sociedade puramente transparente
consigo mesma. Tal como os signos na publicidade, um é engrenado, torna-se transparente ou
incontável, torna-se diáfano ou rizómico para escapar ao ponto de inércia - um é colocado em órbita,
um é ligado, um é satelizado, um é arquivado - os caminhos cruzam-se : existe a trilha sonora, a
trilha da imagem, assim como na vida existe a trilha do trabalho, a trilha do lazer, a trilha do
transporte, etc., todas envoltas na trilha publicitária. Em todos os lugares há três ou quatro caminhos,
e você está numa encruzilhada. Saturação superficial e fascínio.

Porque o fascínio permanece. Basta olhar para Las Vegas, a cidade publicitária absoluta (dos anos
50, dos anos loucos da publicidade, que manteve o encanto daquela época, hoje retro em certo
sentido, porque a publicidade é secretamente condenada pela lógica programática que irá
dão origem a cidades muito diferentes). Quando alguém vê Las Vegas
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erguer-se inteiro do deserto no esplendor da publicidade ao entardecer, e retornar ao deserto ao


amanhecer, vê-se que a publicidade não é o que ilumina ou decora as paredes, é o que apaga as
paredes, apaga as ruas, as fachadas, e toda a arquitectura, apaga qualquer suporte e
qualquer profundidade, e que é esta liquidação, esta reabsorção de tudo na superfície
(quaisquer que sejam os sinais que aí circulem) que nos mergulha nesta euforia estupefacta
e hiperreal que não trocaríamos por mais nada, e essa é a forma vazia e inevitável de sedução.

A linguagem deixa-se arrastar pelo seu duplo e junta o melhor ao pior num fantasma da
racionalidade cuja fórmula é “Todos devem acreditar nela”. Essa é a mensagem daquilo que nos
une.
- JL Bouttes, Le destructeur d'intensites (O Destruidor de Intensidades)

A publicidade, portanto, é como informação: destruidora de intensidades, aceleradora de inércia.


Veja como nele se repetem com lassidão todos os artifícios do sentido e do não sentido, como
todos os procedimentos, todos os mecanismos da linguagem da comunicação (função do
contato: você me entende? Você está me olhando? Ele vai falar! - a função referencial, a
função poética mesmo, a alusão, a ironia, o jogo de palavras, o inconsciente), como tudo isso é
encenado exatamente como o sexo na pornografia, ou seja, sem nenhuma fé, com a mesma
obscenidade cansada . Por isso, agora, é inútil analisar a publicidade como linguagem, porque aí
está acontecendo outra coisa: uma duplicação da linguagem (e também das imagens), à
qual nem a linguística nem a semiologia correspondem, porque funcionam na verdadeira
operação de sentido , sem a menor suspeita desta exorbitância caricatural de todas as
funções da linguagem, desta abertura para um imenso campo de zombaria dos signos,
“consumidos” como se diz em sua zombaria, por sua zombaria e pelo espetáculo coletivo de seu
jogo sem apostas - assim como a pornografia é uma ficção hipertrofiada do sexo consumido na sua
zombaria, pela sua zombaria, um espetáculo colectivo da inanidade do sexo no seu pressuposto
barroco (foi o barroco que inventou esta zombaria triunfal do estuque, fixando o desaparecimento do
religioso no orgasmo das estátuas).

Onde está a era de ouro do projeto publicitário? A exaltação de um objeto por uma imagem, a
exaltação da compra e do consumo através do gasto suntuário da publicidade? Qualquer que seja
a subjugação da publicidade à gestão do capital (mas este aspecto da questão - o do impacto social
e económico da publicidade - permanece sempre por resolver e fundamentalmente insolúvel),
ela sempre teve mais do que uma função subjugada, foi um espelho mantido para o universo da
economia política e da mercadoria, foi por um momento o seu imaginário glorioso, o de
um mundo dilacerado, mas em expansão. Mas o universo da mercadoria já não é este: é um mundo
ao mesmo tempo saturado e em involução. De um só golpe, perdeu tanto o seu imaginário triunfal
como, do estágio do espelho, passou, em certo sentido, ao estágio do luto.

Não há mais encenação da mercadoria: há apenas a sua forma obscena e vazia.


E a publicidade é a ilustração desta forma saturada e vazia.

É por isso que a publicidade não tem mais território. Suas formas recuperáveis não têm mais
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qualquer significado. O Forum des Halles, por exemplo, é uma gigantesca unidade publicitária
– uma operação de publicidade. Não é a publicidade de uma pessoa específica, de uma empresa
qualquer, o Fórum também não tem o estatuto de um verdadeiro centro comercial ou de um
conjunto arquitetónico, assim como Beaubourg não é, afinal, um centro cultural: estes objetos
estranhos, estes supergadgets simplesmente demonstrar que a nossa monumentalidade
social se tornou publicidade. E é algo como o Fórum que melhor ilustra o que a publicidade se
tornou, o que o domínio público se tornou.

A mercadoria está enterrada, como a informação está nos arquivos, como os arquivos estão nos bunkers,
como os mísseis estão nos silos atômicos.

Foi-se a mercadoria feliz e exibida, agora que foge do sol, e de repente é como um homem que
perdeu a sombra. Assim, o Forum des Halles assemelha-se muito a uma casa funerária – o
luxo fúnebre de uma mercadoria enterrada, transparente, sob um sol negro.
Sarcófago da mercadoria.

Tudo lá é sepulcral - mármore branco, preto, salmão. Um bunker em um espaço subterrâneo


profundo, esnobe e monótono de minerais negros. Ausência total de líquidos; já não existe
sequer um dispositivo líquido como o véu de água no Parly 2,*1 que pelo menos enganava os
olhos - aqui nem mesmo um subterfúgio divertido, apenas um luto pretensioso é encenado. (A
única ideia divertida em tudo isso é justamente o humano e sua sombra que caminham em trompe
l'oeil sobre o estrado vertical de concreto: uma gigantesca e bela tela cinza ao ar livre, servindo
de moldura ao trompe l' oeil, esta parede vive sem querer, em contraste com a abóbada
familiar de alta costura e pret-a-porter que constitui o Fórum.
Esta sombra é bela porque é uma alusão em contraste com o mundo inferior que perdeu a sua
sombra.)

Tudo o que se poderia esperar, uma vez aberto ao público este espaço sagrado, e por receio de
que a poluição, como nas grutas de Lascaux, provocasse a sua deterioração irremediável (pense
nas ondas de gente do RER),*2 era que seja imediatamente fechado à circulação e coberto com
um sudário definitivo para manter intacto este testemunho de uma civilização que chegou, depois
de ter passado a fase do apogeu, à fase do hipogeu, da mercadoria. Há aqui um afresco que
traça o longo percurso percorrido, começando pelo homem de Tautavel passando por Marx e
Einstein até chegar a Dorothee Bis. .
.Por que não salvar este afresco da decomposição? Mais tarde os espeleólogos irão redescobri-lo,
ao mesmo tempo que descobrem uma cultura que escolheu enterrar-se para escapar
definitivamente à sua própria sombra, enterrar as suas seduções e os seus artifícios como se
já os consagrasse a outro mundo.

* NOTAS *

1. Parly 2 é um shopping construído na década de 1970 nos arredores de Paris.-TRANS.

2. O RER é um trem subterrâneo de alta velocidade.-TRANS.


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HISTÓRIA DE CLONE

De todas as próteses que marcam a história do corpo, a dupla é sem dúvida a mais antiga.
Mas o duplo não é precisamente uma prótese: é uma figura imaginária, que, tal como a alma, a sombra, a
imagem espelhada, assombra o sujeito como o seu outro, o que faz com que o sujeito seja simultaneamente
ele mesmo e nunca se pareça consigo mesmo. novamente, que assombra o sujeito como uma morte sutil e
sempre evitada. Mas nem sempre é assim: quando o duplo se materializa, quando se torna visível,
significa morte iminente.

Em outras palavras, o poder imaginário e a riqueza do duplo - aquele em que se joga a estranheza e ao
mesmo tempo a intimidade do sujeito consigo mesmo (heimlich/ unheimlich) - repousa na sua
imaterialidade, no fato de que ele é e continua sendo um fantasma. Todos podem sonhar, e devem ter
sonhado durante toda a vida, com uma duplicação ou multiplicação perfeita de seu ser, mas tais cópias
só têm o poder dos sonhos e são destruídas quando se tenta forçar o sonho a se tornar real. O mesmo se aplica
à cena (primária) da sedução: ela só funciona quando é fantasmagórica, lembrada novamente, nunca real.
Pertenceu à nossa época querer exorcizar este fantasma como os outros, ou seja, querer realizá-lo,
materializá-lo em carne e osso e, de forma completamente contrária, mudar o jogo do duplo de uma troca sutil
de morte com o Outro na eternidade do Mesmo.

Clones. Clonagem. Recortes humanos ad infinitum, cada célula individual de um organismo capaz de
se tornar novamente a matriz de um indivíduo idêntico. Nos Estados Unidos, uma criança nasceu há alguns
meses como um gerânio: de mudas. O primeiro filho clone (linhagem de um indivíduo via multiplicação vegetal).
O primogênito nasce de uma única célula de um único indivíduo, seu “pai”, único progenitor, do qual seria a
réplica exata, o gêmeo perfeito, o duplo.*1

Sonho com uma entrelaçamento eterno em substituição à procriação sexual que está ligada à morte.
Sonho celular de cissiparidade, a forma mais pura de filiação, porque permite finalmente prescindir do outro,
passar do mesmo ao mesmo (ainda é preciso usar o útero de uma mulher, e um óvulo sem caroço, mas este
suporte é efémero e, em todo o caso, anónimo: uma prótese feminina poderia substituí-lo). Utopia Monocelular
que, por meio da genética, permite que seres complexos alcancem o destino dos protozoários.

O que, senão uma pulsão de morte, levaria os seres sexuados a regredir a uma forma de reprodução anterior
à sexuação (além disso, não é esta forma de cissiparidade, esta reprodução e proliferação por pura
contiguidade que é para nós, nas profundezas da nosso imaginário, a morte e a pulsão de morte - o que nega
a sexualidade e quer aniquilá-la, sendo a sexualidade portadora da vida, isto é, de uma forma crítica e mortal
de reprodução?) e que, ao mesmo tempo, os empurraria negar metafisicamente toda alteridade, toda alteração
do Mesmo para visar apenas a perpetuação de uma identidade, uma transparência da inscrição genética que
já não está sequer sujeita às vicissitudes da procriação?

Deixemos de lado a pulsão de morte. É uma questão do fantasma da autogênese? Não, porque tal fantasia
ainda passa pelas figuras da mãe e do pai, figuras parentais sexuadas que o sujeito pode sonhar apagar
substituindo-as,
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mas sem negar em nada a estrutura simbólica da procriação: tornar-se filho de alguém ainda é
ser filho de alguém. Enquanto a clonagem abole radicalmente a Mãe, mas também o Pai, o
entrelaçamento dos seus genes, a imbricação das suas diferenças, mas sobretudo o acto conjunto
que é a procriação. O clonador não se gera: brota de cada um de seus segmentos. Pode-se
especular sobre a riqueza de cada uma dessas ramificações vegetais que, de fato, resolvem
toda a sexualidade edipiana a serviço do sexo “não-humano”, do sexo por contiguidade e redução
imediatas – ainda é verdade que não se trata mais de uma questão de fantasia de autogênese. O
Pai e a Mãe desapareceram, não a serviço de uma liberdade aleatória do sujeito, mas a serviço de
uma matriz chamada código. Chega de mãe, chega de pai: uma matriz. E é a matriz, a do código
genético, que agora “dá à luz” infinitamente a partir de um modo funcional expurgado de toda
sexualidade aleatória.

O sujeito também desaparece, pois a duplicação idêntica põe fim à sua divisão. O estágio do
espelho é abolido na clonagem, ou melhor, é parodiado de forma monstruosa. A clonagem
também nada retém, e pelo mesmo motivo, do sonho imemorial e narcísico da projeção do sujeito
em seu alter ego ideal, pois essa projeção passa ainda por uma imagem: aquela do espelho, em que
o sujeito é alienado para reencontrar-se, ou aquele, sedutor e mortal, em que o sujeito se vê para
ali morrer. Nada disso ocorre na clonagem. Não há mais meio, não há mais imagem - assim como
um objeto industrial não é o espelho daquele idêntico que o sucede na série. Um nunca é a miragem
ideal ou mortal do outro, eles só podem ser somados um ao outro, e se só podem ser somados,
significa que não foram engendrados sexualmente e nada sabem sobre a morte.

Já nem se trata de ser gêmeos, pois Gêmeos ou Gêmeos possuem uma propriedade específica,
um fascínio particular e sagrado do Dois, do que é dois juntos, e nunca foi um. Enquanto a
clonagem consagra a reiteração do mesmo: I + I + I + I, etc.

Nem criança, nem gêmeo, nem reflexão narcísica, o clone é a materialização do duplo por meios
genéticos, ou seja, a abolição de toda alteridade e de qualquer imaginário.
O que se combina com a economia da sexualidade. Apoteose delirante de uma tecnologia produtiva.

Um segmento não precisa de mediação imaginária para se reproduzir, assim como a minhoca
não precisa da terra: cada segmento do verme é diretamente reproduzido como um verme inteiro,
assim como cada célula do CEO americano pode produzir um novo CEO. Tal como cada
fragmento de um holograma pode tornar-se novamente a matriz do holograma completo: a informação
permanece inteira, talvez com um pouco menos de definição, em cada um dos fragmentos
dispersos do holograma.

É assim que se põe fim à totalidade. Se todas as informações puderem ser encontradas em cada uma
de suas partes, o todo perde o sentido. É também o fim do corpo, desta singularidade chamada corpo,
cujo segredo é precisamente que não pode ser segmentado em células adicionais, que é uma
configuração indivisível, da qual é testemunha a sua sexuação (paradoxo: a clonagem
fabricará seres sexuados em perpetuidade, pois são semelhantes ao seu modelo, ao passo
que com isso o sexo se torna inútil - mas precisamente o sexo não é uma função, é o que faz de um
corpo um corpo, é o que excede todas as partes, todas as diversas funções deste corpo). Sexo (ou
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morte: neste sentido é a mesma coisa) é o que excede todas as informações que podem ser
coletadas sobre um corpo. Bem, onde todas essas informações são coletadas? Na fórmula genética.
É por isso que deve necessariamente querer traçar um caminho de reprodução autónoma,
independente da sexualidade e da morte.

A ciência biofisioanatômica já, ao dissecar o corpo em órgãos e funções, inicia o processo de


decomposição analítica do corpo, e a genética micromolecular nada mais é do que a
consequência lógica, embora em um nível muito mais elevado de abstração e simulação -
no nível nuclear. da célula de comando, ao nível direto do código genético, em torno do qual se
organiza toda esta fantasmagoria.

Do ponto de vista funcional e mecanicista, cada órgão ainda é apenas uma prótese parcial e
diferenciada: já simulação, mas “tradicional”. Do ponto de vista da cibernética e da informática, é o
menor elemento indiferenciado, cada célula de um corpo torna-se uma prótese “embrionária” desse
corpo. É a fórmula genética inscrita em cada célula que se torna a verdadeira prótese
moderna de todos os corpos. Se a prótese é normalmente um artefacto que complementa um
órgão deficiente, ou a extensão instrumental de um corpo, então a molécula de ADN, que contém
toda a informação relativa a um corpo, é a prótese por excelência, aquela que permitirá a evolução
indefinida. extensão deste corpo pelo próprio corpo – sendo este próprio corpo apenas a série
indefinida de suas próteses.

Uma prótese cibernética infinitamente mais sutil e ainda mais artificial que qualquer
prótese mecânica. Porque o código genético não é “natural”: assim como cada parte abstrata e
autonomizada de um todo se torna uma prótese artificial que altera esse todo substituindo-o (prótese:
este é o sentido etimológico), pode-se dizer que o o código genético, onde a totalidade de um ser está
supostamente condensada porque toda a “informação” desse ser estaria ali aprisionada (aí
reside a incrível violência da simulação genética) é um artefato, uma prótese operacional, uma matriz
abstrata, a partir da qual será poder emergir, não mais através da reprodução, mas através da
renovação pura e simples, seres idênticos atribuídos aos mesmos controles.

Meu patrimônio genético foi fixado de uma vez por todas quando um certo espermatozóide
encontrou um certo óvulo. Esta herança contém a receita de todos os processos bioquímicos
que me realizaram e garantem o meu funcionamento. Uma cópia desta receita está inscrita em cada
uma das dezenas de milhões de células que hoje me constituem. Cada uma dessas células sabe
me fabricar; antes de ser uma célula do meu fígado ou do meu sangue, é uma célula de mim. É
portanto teoricamente possível fabricar um indivíduo idêntico a mim começando por uma
destas células. (Professor A. Jacquard)

A clonagem é, portanto, a última etapa da história e da modelagem do corpo, aquela em que,


reduzido à sua fórmula abstrata e genética, o indivíduo é destinado à propagação em
série. É necessário revisitar o que Walter Benjamin disse da obra de arte na era da sua reprodutibilidade
mecânica. O que se perde na obra que se reproduz serialmente é a sua aura, a sua qualidade singular
do aqui e agora, a sua forma estética (já havia perdido a sua forma ritual, na sua qualidade estética),
e, segundo Benjamin, leva em, em seu
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destino inelutável da reprodução, uma forma política. O que se perde é o original, que só uma história
nostálgica e retrospectiva pode reconstituir como “autêntica”. A forma mais avançada, mais moderna
deste desenvolvimento, que Benjamin descreveu no cinema, na fotografia e nos meios de
comunicação de massa contemporâneos, é aquela em que o original já nem sequer existe, uma
vez que as coisas são concebidas desde o início em função da sua reprodução ilimitada. .

É o que nos acontece com a clonagem, já não apenas ao nível das mensagens, mas ao nível dos
indivíduos. Na verdade, é isso que acontece com o corpo quando ele deixa de ser concebido como
algo que não seja uma mensagem, como um estoque de informações e de mensagens, como alimento
para o processamento de dados. Assim, nada se opõe à reprodução seriada do corpo da mesma forma
que Benjamin descreve a reprodução dos objetos industriais e das imagens dos meios de comunicação
de massa. Há uma precessão da reprodução sobre a produção, uma precessão do modelo genético sobre
todos os corpos possíveis. É a irrupção da tecnologia que controla esta inversão, de uma tecnologia
que Benjamin já descrevia, nas suas consequências totais, como um meio total, mas ainda
da era industrial - uma prótese gigantesca que controlava a geração de objectos e imagens idênticas. ,
em que nada mais poderia ser diferenciado de qualquer outra coisa - mas ainda sem imaginar a
sofisticação atual dessa tecnologia, que possibilita a geração de seres idênticos, embora não haja
possibilidade de retorno a um ser original. As próteses da era industrial ainda são externas,
exotécnicas, aquelas que sabemos foram subdivididas e internalizadas: esotécnicas. Estamos na era
das tecnologias leves – software genético e mental.

Enquanto as próteses da antiga era de ouro industrial foram mecânicas, ainda regressavam ao
corpo para modificar a sua imagem - pelo contrário, elas próprias eram metabolizadas no imaginário
e esse metabolismo tecnológico também fazia parte da imagem do corpo. Mas quando se chega a
um ponto sem retorno (beco sem saída) na simulação, ou seja, quando a prótese se aprofunda, se
interioriza, se infiltra no coração anônimo e micromolecular do corpo, assim que se impõe ao corpo ele
mesmo como modelo “original”, queimando todos os circuitos simbólicos anteriores, único corpo
possível a repetição imutável da prótese, então é o fim do corpo, de sua história e de suas vicissitudes.
O indivíduo não passa de uma metástase cancerosa de sua fórmula básica. Todos os indivíduos
produzidos através da clonagem do indivíduo X serão outra coisa senão uma metástase cancerosa
– a proliferação da mesma célula, tal como ocorre com o câncer? Existe uma estreita relação
entre o conceito-chave do código genético e a patologia do cancro: o código designa o menor
elemento simples, a fórmula mínima à qual um indivíduo inteiro pode ser reduzido, e de tal forma que
ele só pode reproduzir-se a si mesmo. de forma idêntica a si mesmo. Câncer designa uma proliferação
ad infinitum de uma célula base sem levar em consideração as leis orgânicas do todo. O mesmo
acontece com a clonagem: nada mais se opõe à renovação do Mesmo, à proliferação desenfreada de
uma matriz única. Antigamente a reprodução sexuada ainda se opunha a isso, hoje pode-se finalmente
isolar a matriz genética da identidade e será possível eliminar todas as vicissitudes diferenciais que
outrora constituíam o encanto aleatório dos indivíduos.

Se todas as células são concebidas principalmente como receptáculos da mesma fórmula genética - não
apenas todos os indivíduos idênticos, mas todas as células do mesmo indivíduo - o que são elas senão o
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extensão cancerosa desta fórmula base? A metástase que começou com objetos industriais termina
com a organização celular. É inútil perguntar-se se o cancro é uma doença da era capitalista. É com efeito
a doença que controla toda a patologia contemporânea, porque é a própria forma da virulência do código:
uma redundância exacerbada dos mesmos sinais, uma redundância exacerbada das mesmas células.

A fase do corpo muda no decurso de uma "progressão" tecnológica irreversível: do


bronzeamento ao sol, que já corresponde a uma utilização artificial do meio natural, ou seja, a torná-lo uma
prótese do corpo (tornando-se ele próprio um corpo simulado, mas onde está a verdade do corpo?) - ao
bronzeamento doméstico com lâmpada de iodo (mais uma boa e velha técnica mecânica) - ao
bronzeamento com pílulas e hormônios (próteses químicas e ingeridas) - e finalmente ao bronzeamento
interventivo na fórmula genética (estágio incomparavelmente mais avançado, mas ainda assim uma
prótese, isto é, simplesmente integrada definitivamente, já não passa nem pela superfície nem pelos orifícios
do corpo), passa-se por corpos diferentes. É o esquema do todo que se metamorfoseia. A prótese
tradicional, que serve para reparar um órgão falido, não altera em nada o modelo geral do corpo. Os
transplantes de órgãos ainda são desta ordem. Mas o que dizer da modelagem mental por meio de agentes
psicotrópicos e drogas? É o estágio do corpo que é alterado por eles. O corpo psicotrópico é um corpo
modelado “por dentro”, não mais passando pelo espaço perspectivo da representação, do espelho e
do discurso. Um corpo silencioso, mental, já molecular (e não mais especular), um corpo metabolizado
diretamente, sem a mediação do ato ou do olhar, um corpo imanente, sem alteridade sem mise en scéne,
sem transcendência, um corpo consagrado ao metabolismo implosivo dos fluxos cerebrais, endócrinos, um
corpo sensorial, mas não sensível, porque está ligado apenas aos seus terminais internos, e não aos objetos
da percepção (razão pela qual se pode encerrá-lo numa sensorialidade "branca", vazia -
desconectando das suas próprias extremidades sensoriais, sem tocar no mundo que o rodeia, basta), um
corpo já homogéneo, nesta fase de tactilidade plástica, de maleabilidade mental, de psicotropismo
a todos os níveis, já próximo da manipulação nuclear e genética, isto é dizer à perda absoluta da
imagem, corpos que não podem ser representados, nem para os outros nem para si próprios, corpos
enucleados do seu ser e do seu significado pela transfiguração numa fórmula genética ou pela instabilidade
bioquímica: ponto sem retorno, apoteose de uma tecnologia que se tornou intersticial e molecular.

* NOTAS *

É preciso ter em conta que a proliferação cancerosa é também uma desobediência silenciosa às injunções
do código genético. O cancro, se se enquadra na lógica de uma visão nuclear/informática do ser humano, é
também a sua monstruosa excrescência e negação, porque conduz à desinformação total e à desagregação.
Patologia “revolucionária” do abandono orgânico, diria Richard Pinhas, em Ficções (“Notes synoptiques
a propos d'un mal mysterieux” [Notas sinópticas sobre uma doença misteriosa]). Delírio entrópico dos
organismos, resistindo à neguentropia dos sistemas de informação. (É a mesma conjunção das massas face
às formações sociais estruturadas: as massas são também metástases cancerosas fora de
qualquer organicidade social.)

A mesma ambiguidade opera na clonagem: é ao mesmo tempo o triunfo de uma entidade controladora.
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hipótese, a do código e da informação genética, e uma distorção excêntrica que destrói a sua
coerência. Além disso, é provável (mas isso fica para uma história futura) que mesmo o "gêmeo
clônico" nunca será idêntico ao seu progenitor, nunca será o mesmo, mesmo porque terá tido
outro antes dele. Nunca será “exatamente como o próprio código genético o teria mudado”.
Milhões de interferências farão dele, apesar de tudo, um ser diferente, que terá os mesmos
olhos azuis de seu pai, o que não é novidade. E a experiência de clonagem terá pelo menos a
vantagem de demonstrar a impossibilidade radical de dominar um processo simplesmente
dominando a informação e o código. Nota: Uma versão deste ensaio com um final diferente
apareceu sob o título "O Inferno do Mesmo" em The Transparency of Evil: Essays on Extreme
Phenomena, de Baudrillard, trad. James Benedict (Londres e Nova York: Verso, 1993).-
TRANS.

Eu. Cf. D. Rorvik, A son image: La copie d'un homme (Em sua imagem: A cópia de um homem)
(Paris: Grasset, 1978).
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HOLOGRAMAS

É a fantasia de apreender a realidade ao vivo que continua - desde que Narciso se debruçou sobre
a sua mola. Surpreender o real para imobilizá-lo, suspender o real no vencimento do seu duplo. Você
se inclina sobre o holograma como Deus sobre sua criatura: só Deus tem esse poder de atravessar
paredes, de pessoas, e encontrar-se imaterialmente no além. Sonhamos em passar por nós mesmos
e nos encontrar no além: no dia em que o seu duplo holográfico estiver lá no espaço, eventualmente
se movendo e conversando, você terá realizado esse milagre. Claro que não será mais um
sonho, então seu encanto se perderá.

O estúdio de TV transforma você em personagens holográficos: tem-se a impressão de ser


materializado no espaço pela luz dos projetores, como personagens translúcidos que passam pelas
massas (a de milhões de telespectadores) exatamente como sua mão real passa pelo holograma
irreal sem encontrar qualquer resistência - mas não sem consequências: ter passado pelo
holograma também tornou a sua mão irreal.

A alucinação é total e verdadeiramente fascinante uma vez que o holograma é projetado em frente à
placa, de modo que nada o separa dela (ou então o efeito permanece fotográfico ou
cinematográfico). Isso também é característico do trompe l'oeil, em contraste com a pintura: em
vez de um campo como ponto de fuga para o olho, você está em uma profundidade invertida,
que o transforma em um ponto de fuga. . . O alívio deve saltar sobre você da mesma forma
que um bonde e um jogo de xadrez fariam. Dito isto, resta saber que tipo de objetos ou
formas serão "hologênicos", uma vez que o holograma não está destinado a produzir cinema
tridimensional, assim como o cinema não estava destinado a reproduzir o teatro, ou a fotografia estava
destinada a absorver o conteúdo da pintura.

No holograma, é a aura imaginária do duplo que é impiedosamente rastreada, tal como acontece na
história dos clones. A similitude é um sonho e deve continuar sendo, para que exista um mínimo
de ilusão e um estágio do imaginário. Nunca se deve passar para o lado do real, para o lado da
semelhança exata do mundo consigo mesmo, do sujeito consigo mesmo. Porque então a imagem
desaparece. Nunca se deve passar para o lado do duplo, porque então desaparece a relação dual e
com ela toda a sedução. Pois bem, com o holograma, como com o clone, é a tentação oposta, e o
fascínio oposto, do fim da ilusão, do palco, do segredo através da projeção materializada de toda a
informação disponível sobre o assunto, através da transparência materializada.

Depois da fantasia de se ver (o espelho, a fotografia) vem a de poder circular em torno de si,
finalmente e sobretudo de se percorrer, de passar pelo próprio corpo espectral - e qualquer objeto
holografado é inicialmente o ectoplasma luminoso do seu próprio corpo. Mas isto é, em certo sentido,
o fim da estética e o triunfo do meio, exactamente como na estereofonia, que, nos seus limites
mais sofisticados, põe nitidamente um fim ao encanto e à inteligência da música.

O holograma simplesmente não tem a inteligência do trompe l'oeil, que é a da sedução, de


proceder sempre, segundo as regras das aparências, através da alusão.
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para e elipse de presença. Desvia-se, pelo contrário, para o fascínio, que é o de passar para o lado
do duplo. Se, segundo Mach, o universo é aquele em que não há duplo, nem equivalente no espelho,
então com o holograma já estamos virtualmente noutro universo: que nada mais é do que o equivalente
espelhado deste.
Mas que universo é este?

O holograma, aquele com que sempre sonhamos (mas são apenas pobres bricolagens dele) dá-nos
a sensação, a vertigem de passar para o outro lado do nosso próprio corpo, para o lado do clone duplo
e luminoso, ou gêmeo morto que nunca nasceu em nosso lugar e zela por nós com antecipação.

O holograma, imagem perfeita e fim do imaginário. Ou melhor, não é mais uma imagem – o verdadeiro
meio é o laser, luz concentrada, quintessencializada, que não é mais uma luz visível ou reflexiva, mas
uma luz abstrata de simulação. Laser/bisturi. Uma cirurgia luminosa cuja função aqui é a do duplo:
opera-se para retirar o duplo como se opera para retirar um tumor. O duplo que se escondeu nas
profundezas de você (do seu corpo, do seu inconsciente?) e cuja forma secreta alimentou justamente
o seu imaginário, na condição de permanecer secreto, é extraído a laser, é sintetizado e materializado
diante de você, assim como é possível que você passe por ele e além dele. Um momento histórico: o
holograma passa a fazer parte deste “conforto subliminar” que é o nosso destino, desta felicidade agora
consagrada ao simulacro mental e à fábula ambiental dos efeitos especiais. (O social, a fantasmagoria
social, não passa agora de um efeito especial, obtido pelo desenho de redes participantes
convergindo no vazio sob a imagem espectral da felicidade colectiva.)

Tridimensionalidade do simulacro – por que o simulacro com três dimensões estaria mais
próximo do real do que o com duas dimensões? Afirma sê-lo, mas, paradoxalmente, tem o efeito
oposto: tornar-nos sensíveis à quarta dimensão como uma verdade oculta, uma dimensão secreta de
tudo, que de repente assume toda a força da evidência. Quanto mais nos aproximamos da perfeição do
simulacro (e isto é verdade para os objetos, mas também para as figuras de arte ou para os modelos
de relações sociais ou psicológicas), mais evidente ele se torna (ou melhor, para o espírito maligno de
incredulidade que habita nós, mais malvado ainda que o espírito maligno da simulação) como tudo
escapa à representação, escapa ao seu próprio duplo e à sua semelhança. Em suma, não existe real: a
terceira dimensão é apenas o imaginário de um mundo bidimensional, a quarta o de um universo
tridimensional. . . Escalada na produção de um real cada vez mais real através da adição de dimensões
sucessivas. Mas, por outro lado, exaltação do movimento contrário: só é verdadeiro o que joga com uma
dimensão a menos, é verdadeiramente sedutor.

Em todo caso, não há como escapar desta corrida ao real e à alucinação realista, pois, quando um
objeto é exatamente igual a outro, não é exatamente igual a ele, é um pouco mais exato.
Nunca há semelhança, assim como não há exatidão. O que é exato já é exato demais, o que é exato é
apenas o que se aproxima da verdade sem tentar. É algo da mesma ordem paradoxal da fórmula que
diz que assim que duas bolas de bilhar rolam uma em direção à outra, a primeira toca a outra antes da
segunda, ou melhor, uma toca a outra antes de ser tocada. O que indica que não há sequer possibilidade
de simultaneidade na ordem do tempo, e da mesma forma não há semelhança possível na ordem das
figuras. Nada se assemelha a si mesmo, e a reprodução holográfica, como todas as fantasias de
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a síntese ou ressurreição exata do real (isto também vale para a


experimentação científica), já não é mais real, já é hiperreal. Portanto, nunca tem valor
reprodutivo (verdade), mas sempre valor de simulação. Não é uma verdade exata, mas
transgressora, ou seja, já do outro lado da verdade. O que acontece do outro lado da verdade,
não naquilo que seria falso, mas naquilo que é mais verdadeiro que o verdadeiro, mais real
que o real? Efeitos bizarros, certamente, e sacrilégios, muito mais destrutivos da ordem
da verdade do que a sua pura negação. Poder singular e assassino da potencialização da
verdade, da potencialização do real. Talvez seja por isso que os gêmeos foram divinizados
e sacrificados, numa cultura mais selvagem: a hipersemelhança equivalia ao
assassinato do original e, portanto, a um puro não-sentido. Qualquer classificação
ou significação, qualquer modalidade de significado pode assim ser destruída simplesmente
por ser elevada logicamente à enésima potência - levada ao seu limite, é como se
toda a verdade engolisse os seus próprios critérios de verdade como alguém “engole a sua
certidão de nascimento” e perdesse todo o seu significado. Assim, o peso do mundo, ou do
universo, pode eventualmente ser calculado em termos exatos, mas inicialmente parece
absurdo, porque não tem mais uma referência, ou um espelho no qual possa vir a ser
refletido - esta totalização, que é praticamente equivalente à de todas as dimensões do real no
seu duplo hiperreal, ou à de toda a informação sobre um indivíduo no seu duplo genético
(clone), torna-o imediatamente patafísico. O próprio universo, tomado globalmente, é o que
não pode ser representado, o que não tem complemento possível no espelho, o que não tem
equivalência de sentido (é tão absurdo dar-lhe um sentido, um peso de sentido, como dar-lhe peso em tudo).
O sentido, a verdade, o real não podem aparecer senão localmente, num horizonte restrito,
são objetos parciais, efeitos parciais do espelho e de equivalência. Toda duplicação,
toda generalização, toda passagem ao limite, toda extensão holográfica (a fantasia
de dar conta exaustivamente deste universo) os faz vir à tona em sua zombaria.

Vistas deste ângulo, mesmo as ciências exatas chegam perigosamente perto da patafísica.
Porque dependem de alguma forma do holograma e do capricho objectivista da
desconstrução e reconstrução exacta do mundo (nos seus mais pequenos termos) fundada
numa fé tenaz e ingénua num pacto de semelhança das coisas consigo mesmas. O real, o
objeto real deve ser igual a si mesmo, deve assemelhar-se a si mesmo como um rosto num
espelho - e esta semelhança virtual é, na verdade, a única definição do real - e qualquer
tentativa, incluindo a holográfica, que repousa sobre ele, inevitavelmente perderá o seu
objeto, porque não leva em conta a sua sombra (precisamente a razão pela qual não se
assemelha a si mesmo) - essa face escondida onde o objeto se esfarela, o seu segredo. A
tentativa holográfica salta literalmente sobre a sua sombra e mergulha na transparência, para aí se perder.
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COLIDIR

De uma perspectiva clássica (até mesmo cibernética), a tecnologia é uma extensão do corpo. É a
sofisticação funcional de um organismo humano que lhe permite ser igual à natureza e investir
triunfalmente na natureza. De Marx a McLuhan, a mesma visão funcionalista das máquinas e
da linguagem: são retransmissores, extensões, mediadores mediáticos da natureza, idealmente
destinados a tornar-se o corpo orgânico do homem. Nesta perspectiva “racional”, o próprio corpo
nada mais é do que um meio.

Por outro lado, na versão apocalíptica e barroca da tecnologia Crash*1 está a desconstrução mortal
do corpo - não mais um meio funcional, mas a extensão da morte - o desmembramento e o corte em
pedaços, não na ilusão pejorativa de um unidade perdida do sujeito (que ainda é o horizonte da
psicanálise), mas na visão explosiva de um corpo entregue às "feridas simbólicas", de um corpo
confundido com a tecnologia na sua dimensão violadora e violenta, na cirurgia selvagem e contínua
que exercícios de violência: incisões, excisões, escarificações, os abismos do corpo, dos quais
as feridas sexuais e os prazeres do corpo são apenas um caso particular (e a servidão mecânica no
trabalho, sua caricatura pacificada) - um corpo sem órgãos e sem prazer do órgãos, inteiramente
submetidos à marca, ao corte, à cicatriz técnica - sob o signo luminoso de uma sexualidade sem
referencial e sem limites.

Sua mutilação e morte tornaram-se uma coroação de sua imagem nas mãos de uma tecnologia
em colisão, uma celebração de seus membros individuais e planos faciais, gestos e tons de pele.
Cada um dos espectadores do local do acidente levaria consigo uma imagem da transformação
violenta desta mulher, do complexo de feridas que fundia a sua própria sexualidade e a dura
tecnologia do automóvel. Cada um deles uniria sua própria imaginação, as membranas sensíveis
de suas superfícies mucosas, seus sulcos de tecido erétil, às feridas dessas atrizes menores por
meio de seu próprio automóvel, tocando-as enquanto dirigia em uma mistura de posturas
estilizadas. Cada um colocava os lábios naquelas aberturas sangrentas, encostava o próprio septo
nasal nas lesões da mão esquerda dela, pressionava as pálpebras contra o tendão exposto do
dedo indicador, a superfície dorsal do pênis ereto contra as paredes laterais rompidas da vagina
dela. O acidente automobilístico possibilitou a união final e desejada entre a atriz e seu público.
(Págs. 189-90)

A tecnologia nunca é apreendida exceto no acidente (automobilístico), isto é, na violência feita à


própria tecnologia e na violência feita ao corpo. É a mesma coisa: qualquer choque, qualquer
golpe, qualquer impacto, toda a metalurgia do acidente pode ser lida na semiurgia do corpo - nem
uma anatomia nem uma fisiologia, mas uma semiurgia de contusões, cicatrizes, mutilações,
feridas que são tantos novos órgãos sexuais se abriram no corpo. Dessa forma, a reunião do corpo
como trabalho na ordem de produção se opõe à dispersão do corpo como anagrama na ordem da
mutilação. Adeus “zonas erógenas”: tudo vira buraco para se oferecer ao reflexo de descarga.
Mas sobretudo (como nas torturas de iniciação primitiva, que não são as nossas), todo o corpo torna-
se sinal para se oferecer à troca de sinais corporais. Corpo e tecnologia difratando sua
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sinais confusos um através do outro. Abstração e design carnal.

Nenhum afeto por trás de tudo isso, nenhuma psicologia, nenhum fluxo ou desejo, nenhuma libido ou pulsão de morte.
Naturalmente, a morte está implicada numa exploração ilimitada da possível violência cometida ao
corpo, mas esta nunca é, como no sadismo ou no masoquismo, com um objectivo expresso e
perverso de violência, uma distorção do sentido e do sexo (em relação ao que ?). Nenhum
inconsciente reprimido (afetos ou representações), exceto numa segunda leitura que ainda
reinjetaria um sentido forçado, baseado no modelo psicanalítico. O não sentido, a selvageria,
desta mistura do corpo e da tecnologia é imanente, é a reversão imediata de um ao outro, e daí
resulta uma sexualidade sem precedentes - uma espécie de vertigem potencial ligada à pura
inscrição dos signos vazios deste corpo.
Ritual simbólico de incisão e marcas, como os grafites do metrô de Nova York.

Outro ponto em comum: não se trata mais, no Crash, de sinais acidentais que só apareceriam nas
margens do sistema. O Acidente não é mais essa bricolagem intersticial que ainda é no acidente
rodoviário - a bricolagem residual da pulsão de morte para as novas classes de lazer. O automóvel
não é o apêndice de um universo doméstico, imóvel, já não existe um universo privado e doméstico,
há apenas figuras incessantes de circulação, e o Acidente está em todo o lado, a figura elementar,
irreversível, a banalidade da anomalia da morte . Já não está na margem, está no coração. Já
não é a excepção de uma racionalidade triunfal, tornou-se a Regra, devorou a Regra. Já não é
sequer a “parte maldita”, aquela concedida ao destino pelo próprio sistema e incluída no seu
cálculo geral. Tudo está invertido. É o Acidente que dá forma à vida, é o Acidente, o louco, que é
o sexo da vida. E o automóvel, a esfera magnética do automóvel, que acaba por investir todo o

universo com seus túneis, rodovias, tobogãs, trocadores, sua habitação móvel como protótipo
universal, nada mais é do que a imensa metáfora da vida.

A disfunção não é mais possível num universo de acidente – portanto, nenhuma perversão também
o é. O Acidente, como a morte, não é mais da ordem do neurótico, do reprimido, do residual ou do
transgressor, é o instigador de um novo modo de prazer não perverso (ao contrário do próprio
autor, que fala na introdução de um nova lógica perversa, é preciso resistir à tentação moral de ler
Crash como perversão), de uma organização estratégica da vida que parte da morte. Morte, feridas,
mutilações não são mais metáforas de castração, exatamente o contrário – nem mesmo o
contrário. Só a metáfora fetichista é perversa, a sedução através do modelo, através do fetiche
interposto, ou através do meio da linguagem. Aqui a morte e o sexo são lidos no mesmo nível
do corpo, sem fantasmas, sem metáforas, sem sentenças - diferentemente da Máquina da Colônia
Penal, onde o corpo em suas feridas ainda é apenas o suporte de uma inscrição textual. Assim,
uma delas, a máquina de Kafka, ainda é puritana, repressiva, “uma máquina significante”,
diria Deleuze, enquanto a tecnologia em Crash é brilhante, sedutora ou monótona e
inocente. Sedutor porque desprovido de sentido e porque é o simples espelho de corpos dilacerados.
E o corpo de Vaughan é, por sua vez, o espelho do cromo torto, dos para-lamas amassados, da
chapa de ferro manchada de esperma. Corpos e tecnologia combinados, seduzidos, inextricáveis.

Enquanto Vaughan dirigia o carro para o pátio de um posto de gasolina, a luz escarlate do neon
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uma placa acima do pórtico brilhava nessas fotografias granuladas de ferimentos terríveis: os
seios de adolescentes deformados pelas bitáculas dos instrumentos, as mamoplastias parciais. . .
bicos seccionados por medalhões no painel dos fabricantes; lesões na genitália masculina e
feminina causadas por coberturas de volante e pára-brisas durante a ejeção. . . Uma sucessão
de fotografias de pênis mutilados, vulvas seccionadas e testículos esmagados passou pela
luz brilhante enquanto Vaughan estava ao lado da atendente do posto de gasolina na parte traseira
do carro, conversando jocosamente com ela sobre seu corpo. Em várias das fotografias, a
origem do ferimento era indicada por um detalhe da parte do carro que causou o ferimento: ao lado
de uma fotografia de um pênis bifurcado na enfermaria, havia uma inserção de um freio de mão;
acima de um close-up de uma vulva com hematomas enormes estava o chefe do volante e o medalhão
do fabricante. Essas uniões de órgãos genitais rasgados e seções da carroceria e do painel de
instrumentos formavam uma série de módulos perturbadores, unidades em uma nova moeda de
dor e desejo. (Pág. 134)

Cada marca, cada traço, cada cicatriz deixada no corpo é como uma invaginação artificial, como as
escarificações dos selvagens, que são sempre uma resposta veemente à ausência do corpo. Só
o corpo ferido existe simbolicamente - para si e para os outros - o “desejo sexual” nunca é outra
coisa senão a possibilidade que os corpos têm de combinar e trocar os seus signos. Ora, os
poucos orifícios naturais aos quais normalmente se liga o sexo e as atividades sexuais não são
nada perto de todas as feridas possíveis, de todos os orifícios artificiais (mas por que "artificiais"?),
de todas as brechas através das quais o corpo é reversível e, como certas espaços topológicos,
não conhece mais interior nem exterior. O sexo tal como o conhecemos nada mais é do que uma
definição minuciosa e especializada de todas as práticas simbólicas e sacrificiais às quais
um corpo pode se abrir, não mais através da natureza, mas através do artifício, através do
simulacro, através do acidente. O sexo nada mais é do que essa rarefação de uma pulsão
chamada desejo em zonas previamente preparadas. É largamente ultrapassado pelo leque de
feridas simbólicas, que é, em certo sentido, a anagramatização do sexo em todo o comprimento
do corpo - mas agora precisamente, já não é sexo, é outra coisa, o próprio sexo é nada além da
inscrição de um significante privilegiado e de algumas marcas secundárias – nada próximo
da troca de todos os sinais e feridas de que o corpo é capaz.
Os selvagens souberam utilizar todo o corpo para esse fim, na tatuagem, na tortura, na iniciação - a
sexualidade era apenas uma das metáforas possíveis da troca simbólica, nem a mais significativa,
nem a mais prestigiada, como se tornou para nós na sua referência obsessiva e realista,
graças ao seu caráter orgânico e funcional (inclusive no orgasmo).

Quando o carro viajou pela primeira vez a trinta quilômetros por hora, Vaughan tirou os dedos da
vulva e do ânus da garota, girou os quadris e inseriu o pênis na vagina dela.
Faróis brilhavam acima de nós enquanto o fluxo de carros subia a encosta do viaduto. No espelho
retrovisor eu ainda via Vaughan e a garota, seus corpos iluminados pelo carro atrás, refletidos
no porta-malas preto do Lincoln e em cem pontos do acabamento interno. No cinzeiro cromado vi
o seio esquerdo da menina e o mamilo ereto. Na calha da janela de vinil vi seções deformadas
das coxas e do abdômen de Vaughan formando uma junção anatômica bizarra. Vaughan levantou a
jovem para montá-lo, seu pênis entrando novamente em sua vagina. Num tríptico de imagens
reflectidas no velocímetro, no relógio e no conta-rotações, o acto sexual entre Vaughan e esta jovem
teve lugar nas grutas encapuzadas destes mostradores luminescentes, moderado pela oscilação
da agulha do velocímetro. A carapaça saliente do painel de instrumentos e o estilo
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a escultura da cobertura da coluna de direção refletia uma dúzia de imagens de suas nádegas subindo e descendo.
Enquanto eu impulsionava o carro a oitenta quilômetros por hora ao longo do convés aberto do viaduto, Vaughan
arqueou as costas e levantou a jovem para o brilho total dos faróis atrás de nós. Seus seios pontiagudos brilhavam
dentro da jaula de cromo e vidro do carro em alta velocidade. Os fortes espasmos pélvicos de Vaughan coincidiam
com a passagem estrondosa dos postes de luz ancorados no viaduto em intervalos de cem metros. À medida
que cada um se aproximava, seus quadris chutavam a garota, enfiando seu pênis em sua vagina, suas mãos abrindo
suas nádegas para revelar seu ânus enquanto a luz amarela enchia o carro. (R 143)

Aqui, todos os termos eróticos são técnicos. Sem bunda, sem pau, sem boceta, mas: o ânus, o reto, a vulva, o
pênis, o coito. Nenhuma gíria, ou seja, nenhuma intimidade de violência sexual, mas uma linguagem funcional: a
adequação do cromo e do muco de uma forma a outra.
O mesmo se aplica à correspondência entre morte e sexo: é mais como se estivessem revestidos de uma espécie
de superdesign técnico do que articulados de acordo com o prazer. Além disso, não se trata de orgasmo, mas de
descarga pura e simples. E o coito e o esperma que atravessam o livro não têm mais valor sensual do que a filigrana
das feridas tem um significado violento, mesmo metaforicamente falando. Eles nada mais são do que assinaturas -
na cena final, X imprime seu esperma nos acidentes de carro.

O prazer (perverso ou não) sempre foi mediado por um aparato técnico, por um mecanismo de objetos reais,
mas mais frequentemente de fantasmas - implica sempre uma manipulação intermediária de cenas
ou dispositivos. Aqui o prazer é apenas orgasmo, isto é, confundido no mesmo comprimento de onda com a
violência do aparato técnico, e homogeneizado pela única técnica, resumida em um único objeto: o automóvel.

Havíamos entrado em um imenso engarrafamento. Desde o cruzamento da auto-estrada com a Western Avenue
até à rampa de subida do viaduto, as faixas de trânsito estavam repletas de veículos, os pára-brisas
descolorindo as cores derretidas do pôr-do-sol sobre os subúrbios a oeste de Londres. Luzes de freio
brilhavam no ar noturno, brilhando na enorme poça de corpos celulósicos. Vaughan estava sentado com um
braço para fora da janela do passageiro. Ele bateu na porta com impaciência, batendo no painel com o punho.
À nossa direita, o muro alto de um ônibus de dois andares formava um penhasco de rostos. Os passageiros
nas janelas pareciam fileiras de mortos olhando para nós das galerias de um columbário. A enorme energia
do século XX, suficiente para levar o planeta a uma nova órbita em torno de uma estrela mais feliz, estava a ser
gasta para manter esta imensa pausa imóvel.

(Pág. 151)

Ao meu redor, ao longo de toda a extensão da Avenida Ocidental, ao longo de ambas as rampas do viaduto,
estendia-se um imenso congestionamento de trânsito paralisado pelo acidente. Parado no centro deste furacão
paralisado, senti-me completamente à vontade, como se as minhas obsessões com os veículos que se
multiplicavam incessantemente tivessem finalmente sido aliviadas. (Pág. 156)

Mas em Crash, outra dimensão é inseparável das confusas da tecnologia e do sexo (unidas numa obra de morte
que nunca é uma obra de luto): é a da fotografia e do cinema. A superfície brilhante e saturada do trânsito
e do
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o acidente não tem profundidade, mas é sempre duplicado nas lentes da câmera de Vaughan. A lente
armazena e acumula fotos de acidentes como dossiês. A repetição geral do acontecimento crucial que ele
fomenta (a morte do automóvel e a morte simultânea da estrela numa colisão com Elizabeth Taylor, um
acidente meticulosamente simulado e refinado ao longo de meses) ocorre fora de uma tomada cinematográfica.
Este universo não seria nada sem esta desconexão hiperreal. Somente a duplicação, o desdobramento
do meio visual no segundo grau pode produzir a fusão da tecnologia, do sexo e da morte. Mas na verdade
a fotografia aqui não é um meio nem é da ordem da representação. Não se trata de uma abstração
“suplementar” da imagem, nem de uma compulsão espetacular, e a posição de Vaughan nunca é a do voyeur
ou do pervertido. O filme fotográfico (como a música transistorizada em automóveis e apartamentos)
faz parte da camada universal, hiperreal, metalizada e corpórea de tráfego e fluxos. A fotografia não é
mais um meio do que a tecnologia ou o corpo – todos são simultâneos num universo onde a antecipação do
acontecimento coincide com a sua reprodução, na verdade, com a sua produção “real”. Também não há mais
profundidade temporal - assim como o passado, o futuro, por sua vez, deixa de existir. Na verdade, é o olho da
câmera que substitui o tempo, assim como qualquer outra profundidade, a do afeto, do espaço, da
linguagem. Não é outra dimensão, significa simplesmente que este universo não tem segredos.

O cavaleiro do manequim sentou-se bem atrás, o ar impetuoso levantando seu queixo. Suas mãos estavam
algemadas ao guidão como as de um piloto kamikaze. Seu longo tórax estava coberto de dispositivos de
medição. À sua frente, com expressões igualmente vazias, a família de quatro manequins estava sentada
em seu veículo. Seus rostos estavam marcados com símbolos enigmáticos.

Um barulho áspero de chicotada veio em nossa direção, o som das bobinas de medição deslizando pela
grama ao lado do corrimão. Houve uma violenta explosão metálica quando a motocicleta atingiu a frente do
sedã. Os dois veículos viraram de lado em direção à fila de espectadores assustados. Recuperei o equilíbrio,
segurando involuntariamente o ombro de Vaughan, enquanto a motocicleta e seu motorista passavam
por cima do capô do carro e batiam no para-brisa, depois deslizaram pelo teto numa massa negra de fragmentos.
O carro caiu três metros para trás, apoiado nas amarras. Ele parou montado nos trilhos. O capô, o para-brisa
e o teto foram esmagados pelo impacto. Dentro da cabine, a família desequilibrada cambaleou uma sobre a
outra, o torso decapitado da passageira do banco da frente incrustado no para-brisa fraturado.

. . Lascas de fibra de vidro de seu rosto e ombros salpicavam o vidro ao redor do carro
de teste como neve prateada, um confete mortal. Helen Remington segurou meu braço. Ela sorriu para mim,
balançando a cabeça de forma encorajadora, como se estivesse incentivando uma criança a superar algum
obstáculo mental. "Podemos dar uma olhada novamente no Ampex. Eles estão mostrando em câmera lenta." (Pág. 124-
25)

Em Crash, tudo é hiperfuncional, já que trânsito e acidente, tecnologia e morte, sexo e simulação são como uma
única e grande máquina síncrona. É o mesmo universo do hipermercado, onde a mercadoria se torna
“hipermercadoria”, ou seja, ela mesma sempre já capturada, e com ela toda a atmosfera, nas figuras incessantes
do tráfego. Mas, ao mesmo tempo, o funcionalismo de Crash devora a sua própria racionalidade, porque
não conhece a disfunção. É um funcionalismo radical que atinge os seus limites paradoxais e os queima.
Imediatamente torna-se novamente um indefinível,
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portanto fascinante, objeto. Nem bom nem mau: ambivalente. Tal como a morte ou a moda, torna-se
de repente um objecto numa encruzilhada, enquanto o bom e velho funcionalismo, mesmo
contestado, já não o é - isto é, torna-se um caminho que conduz mais rapidamente do que a estrada
principal, ou que conduz onde a estrada principal não leva ou, melhor ainda, e para parodiar Littre
de um modo patafísico, "um caminho que não leva a lugar nenhum, mas que leva até lá mais
rápido que os outros".

É isso que distingue Crash de toda ou quase toda ficção científica, que na maioria das vezes ainda
gira em torno do velho casal função/disfunção, que projeta no futuro nas mesmas linhas de força
e nas mesmas finalidades que são as do normal. universo. Aí a ficção supera a realidade (ou o
contrário), mas segundo as mesmas regras do jogo. Em Crash, chega de ficção ou realidade, é a
hiperrealidade que abole ambas.
Nem mesmo uma regressão crítica é possível. Este mundo mutante e comutado de simulação
e morte, este mundo violentamente sexuado, mas sem desejo, cheio de corpos violados e violentos,
como que neutralizados, este mundo cromático e intensidade metálica, mas um vazio de
sensualidade, hipertecnologia sem finalidade - será bom ou mal? Nunca saberemos. É
simplesmente fascinante, embora esse fascínio não implique um juízo de valor.
Aí reside o milagre de Crash. Em nenhum lugar surge esse olhar moral – o julgamento crítico
que ainda faz parte da funcionalidade do velho mundo. Crash é hipercrítica (também em contraste
com o seu autor que, na introdução, fala do “alerta contra aquele reino brutal, erótico e
excessivamente iluminado que nos acena cada vez mais persuasivamente a partir das margens da
paisagem tecnológica”*2) . Poucos livros, poucos filmes alcançam esta resolução de toda finalidade
ou negatividade crítica, este esplendor monótono da banalidade ou da violência.
Nashville, Laranja Mecânica.

Depois de Borges, mas noutro registo, Crash é o primeiro grande romance do universo da
simulação, aquele de que todos nos ocuparemos agora - um universo simbólico, mas que, através
de uma espécie de inversão da substância mediatizada (néon, concreto, carro, maquinaria
erótica), aparece como se atravessado por uma intensa força de iniciação.

A última ambulância partiu, com a sirene tocando. Os espectadores voltavam para seus carros ou
subiam o aterro até o rompimento da cerca de arame. Uma adolescente de terno jeans passou por
nós, seu rapaz com um braço em volta da cintura. Ele segurou o seio direito dela com as costas
da mão, acariciando o mamilo com os nós dos dedos. Eles entraram em um buggy de praia
cortado com flâmulas e tinta amarela e partiram, buzinando excentricamente. Um homem corpulento
com jaqueta de motorista de caminhão ajudou a esposa a subir o barranco, com a mão em
suas nádegas. Esta sexualidade generalizada enchia o ar, como se fôssemos membros de uma
congregação que partisse depois de um sermão que nos exortava a celebrar as nossas sexualidades
com amigos e estranhos, e estivéssemos a conduzir noite adentro para imitar a sangrenta eucaristia
que havíamos observado com os parceiros mais improváveis. (R 157)

* NOTAS *

1. JG Ballard, Crash (Nova York: Farrar, Straus e Giroux, 1973).

2. Esta introdução apareceu pela primeira vez na edição francesa publicada em Paris por Clamann-
Levy em 1974.-TRANS.
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SIMULACRA E FICÇÃO CIENTÍFICA

Três ordens de simulacros:

simulacros naturais, naturalistas, fundados na imagem, na imitação e na falsificação, harmoniosos,


optimistas, e que visam a restituição ou a instituição ideal da natureza feita à imagem de Deus;

simulacros produtivos, produtivistas, fundados na energia, na força, na sua materialização pela


máquina e em todo o sistema de produção - um objectivo prometeico de uma globalização
e expansão contínua, de uma libertação indefinida de energia (o desejo pertence às utopias
relacionadas com esta ordem de simulacros);

simulacros de simulação, fundados na informação, o modelo, o jogo cibernético – operacionalidade


total, hiperrealidade, objetivo de controle total.

À primeira categoria pertence o imaginário da Utopia. Ao segundo corresponde a ficção científica,


a rigor. Ao terceiro corresponde – existe algum imaginário que possa corresponder a esta ordem?
A resposta mais provável é que o bom e velho imaginário da ficção científica está morto e que algo
mais está em processo de emergir (não apenas na ficção, mas também na teoria). O mesmo destino
vacilante e indeterminado põe fim à ficção científica – mas também à teoria, como gêneros
específicos.

Não existe real, não existe imaginário exceto a uma certa distância. O que acontece quando esta
distância, incluindo aquela entre o real e o imaginário, tende a abolir-se, a ser reabsorvida em nome
do modelo? Pois bem, de uma ordem de simulacros para outra, a tendência é certamente para a
reabsorção desta distância, desta lacuna que deixa espaço para uma projeção ideal ou crítica.

Esta projeção é maximizada no Utópico, em que uma esfera transcendente, um universo radicalmente
diferente toma forma (o sonho romântico ainda é a forma individualizada da Utopia, em que a
transcendência se delineia em profundidade, mesmo em estruturas inconscientes, mas em qualquer
caso o a dissociação do mundo real é maximizada, a ilha da Utopia opõe-se ao continente do real).

Esta projeção é bastante reduzida na ficção científica: na maioria das vezes nada mais é do que uma
projeção ilimitada do mundo real da produção, mas não é qualitativamente diferente dele. As
extensões mecânicas ou energéticas, a velocidade e a potência aumentam à enésima potência, mas
os esquemas e os cenários são os da mecânica, da metalurgia, etc. Hipóstase projetada do
robô. (Ao universo limitado da era pré-industrial, a Utopia opôs um universo ideal e alternativo. Ao
universo potencialmente infinito da produção, a ficção científica acrescenta a multiplicação das suas
próprias possibilidades.)

Esta projeção é totalmente reabsorvida na era implosiva dos modelos. Os modelos já não
constituem transcendência nem projeção, já não constituem o imaginário em relação ao real,
são eles próprios uma antecipação do real e, portanto, não deixam espaço para qualquer tipo de
antecipação ficcional - são imanentes e, portanto, deixam não
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espaço para qualquer tipo de transcendência imaginária. O campo que se abre é o da simulação
no sentido cibernético, isto é, da manipulação destes modelos a todos os níveis
(cenários, montagem de situações simuladas, etc.) mas então nada distingue esta operação da
operação em si e da gestação do real: não há mais ficção.

A realidade poderia ir além da ficção: esse era o sinal mais seguro da possibilidade de um
imaginário cada vez maior. Mas o real não pode superar o modelo – nada mais é do que o seu álibi.

O imaginário era o álibi do real, num mundo dominado pelo princípio da realidade.
Hoje, é o real que se tornou o álibi do modelo, num mundo controlado pelo princípio da simulação.
E, paradoxalmente, é o real que se tornou a nossa verdadeira Utopia - mas uma Utopia que já não
está no reino do possível, que só pode ser sonhada como se sonharia com um objecto perdido.

Talvez a ficção científica da era cibernética e hiperreal só possa esgotar-se, na sua ressurreição
artificial de mundos “históricos”, só possa tentar reconstruir in vitro, nos mínimos detalhes, os
perímetros de um mundo anterior, os acontecimentos, as pessoas , as ideologias do
passado, esvaziadas de sentido, de seu processo originário, mas alucinatórias com verdade
retrospectiva. Assim, em Simulacra, de Philip K. Dick, a guerra de Secessão.
Holograma gigantesco em três dimensões, no qual a ficção nunca mais será um espelho voltado
para o futuro, mas uma realucinação desesperada do passado.

Não podemos mais imaginar nenhum outro universo: a graça da transcendência também nos foi
tirada nesse aspecto. A ficção científica clássica era a de um universo em expansão, além disso,
forjou seu caminho nas narrativas de exploração espacial, contrapartidas das formas mais terrestres
de exploração e colonização dos séculos XIX e XX.
Não existe aí qualquer relação de causa e efeito: não é porque o espaço terrestre hoje está
virtualmente codificado, mapeado, registado, saturado, e tenha assim, num certo sentido,
fechado novamente na sua universalização - um mercado universal, não só de mercadorias, mas
de valores, signos, modelos, não deixando espaço para o imaginário – não é exatamente por
isso que o universo exploratório (técnico, mental, cósmico) da ficção científica também deixou
de funcionar. Mas os dois estão estreitamente ligados e são duas versões do mesmo processo
geral de implosão que se segue ao gigantesco processo de explosão e expansão
característico dos séculos passados. Quando um sistema atinge os seus próprios limites e
fica saturado, produz-se uma inversão – algo mais acontece, também no imaginário.

Até agora sempre tivemos uma reserva do imaginário - agora o coeficiente de realidade é
proporcional à reserva do imaginário que lhe confere o seu peso específico. Isto também se aplica
à exploração geográfica e espacial: quando não existe mais nenhum território virgem e, portanto,
disponível ao imaginário, quando o mapa cobre todo o território, algo como o princípio da
realidade desaparece. Dessa forma, a conquista do espaço constitui uma travessia irreversível
rumo à perda do referencial terrestre. Há uma hemorragia da realidade como uma coerência interna
de um universo limitado, uma vez que os limites deste universo recuam para o infinito. A conquista
do espaço que se segue à do planeta equivale a desrealizar (desmaterializar) o espaço humano,
ou a transferi-lo para um hiper-real de simulação. Testemunhe este dois quartos/cozinha/chuveiro
colocado em órbita, elevado a uma potência espacial (pode-se dizer) com o mais recente módulo
lunar. A própria cotidianidade do habitat terrestre elevou-se à categoria de valor cósmico,
hipostasiado no espaço - o
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satelização do real na transcendência do espaço - é o fim da metafísica, o fim do


fantasma, o fim da ficção científica - começa a era da hiper-realidade.

A partir daí algo deve mudar: a projeção, a extrapolação, o tipo de excesso pantográfico
que constituía o encanto da ficção científica são todos impossíveis. Não é mais possível
fabricar o irreal a partir do real, o imaginário a partir dos dados do real. O processo será,
antes, o oposto: consistirá em colocar situações descentradas, modelos de simulação e
conseguir dar-lhes o sentimento do real, do banal, da experiência vivida, reinventar o real
como ficção, precisamente porque desapareceu da nossa vida. Alucinação do real,
da experiência vivida, do quotidiano, mas reconstituído, por vezes até a detalhes
inquietantemente estranhos, reconstituído como reserva animal ou vegetal, trazido à luz
com uma precisão transparente, mas sem substância, desrealizado antecipadamente,
hiperrealizado.

Desta forma, a ficção científica deixaria de ser uma expansão romântica com toda a liberdade
e ingenuidade que o encanto da descoberta lhe proporcionava, mas, pelo contrário,
evoluiria implosivamente à própria imagem da nossa actual concepção do universo,
tentando revitalizar, reatualizar, requotidianizar fragmentos de simulação, fragmentos desta
simulação universal que se tornaram para nós o chamado mundo real.

Onde estariam as obras que atenderiam, aqui e agora, essa inversão situacional, essa
reversão situacional? Obviamente os contos de Philip K. Dick “gravitam” neste espaço,
se é que podemos usar essa palavra (mas é precisamente isso que não se pode mais
fazer, porque este novo universo é “antigravitacional”, ou se ainda gravita, está em torno
do buraco do real, em torno do buraco do imaginário). Não se vê ali um cosmos
alternativo, um folclore ou exotismo cósmico, ou uma proeza galáctica - estamos desde o
início numa simulação total, sem origem, imanente, sem passado, sem futuro, uma
difusão de todas as coordenadas (mental , temporal, espacial, sinalética) - não se
trata de um universo paralelo, de um universo duplo, ou mesmo de um universo
possível - nem possível, impossível, nem real nem irreal: hiperreal - é um universo de
simulação, que é algo completamente diferente . E não porque Dick fale
especificamente de simulacros - a ficção científica sempre o fez, mas jogou com
o duplo, com a duplicação ou reduplicação, artificial ou imaginária, enquanto aqui o duplo
desapareceu, já não há duplo, é-se sempre já no outro mundo, que já não é um outro,
sem um espelho, uma projeção, ou uma utopia que a possa refletir - a simulação é
insuperável, insuperável, monótona e plana, sem exterioridade - já não passaremos
sequer para " o outro lado do espelho", essa ainda era a idade de ouro da transcendência.

Talvez um exemplo ainda mais convincente seja o de Ballard e da sua evolução desde
os primeiros contos muito "fantasmagóricos", poéticos, oníricos, desorientadores, até
Crash, que é sem dúvida (mais que IGH ou Concrete Island) o atual modelo desta ficção
científica que já não o é. Crash é o nosso mundo, nada nele é “inventado”: tudo nele é
hiperfuncional, tanto a circulação como o acidente, a técnica e a morte, o sexo e a lente
fotográfica, tudo nele é como uma máquina gigante, síncrona, simulada: isto é, a aceleração
dos nossos próprios modelos, de todos os modelos que nos rodeiam, misturados e
hiperoperacionais no vazio. Isto é o que distingue Crash de quase toda a ficção científica,
que ainda gira em torno do antigo casal função/disfunção (mecânica e
mecanicista), que projeta para o futuro ao longo do caminho.
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mesmas linhas de força e as mesmas finalidades que são as do universo “normal”. A ficção nesse
universo pode superar a realidade (ou o contrário: isso é mais sutil), mas ainda segue as
mesmas regras. Em Crash, não há mais ficção nem realidade – a hiper-realidade abole ambas.
É lá que existe a nossa ficção científica contemporânea, se é que existe. “Jack Barron or Eternity”,
alguns trechos de “Everyone to Zanzibar”.

Na verdade, a ficção científica neste sentido já não está em lado nenhum, e está em todo o lado,
na circulação dos modelos, aqui e agora, no próprio princípio da simulação envolvente.
Pode emergir no seu estado bruto, da própria inércia do mundo operacional. Que escritor de
ficção científica teria "imaginado" (mas precisamente já não pode ser "imaginado") esta
"realidade" das fábricas da Alemanha Oriental - simulacros, fábricas que reempregam todos os
desempregados para preencher todos os cargos e todos os postos da processo produtivo
tradicional mas que não produz nada, cuja atividade se consome num jogo de encomendas, de
concorrência, de escrita, de escrituração, entre uma fábrica e outra, dentro de uma vasta rede?
Toda a produção material é redobrada no vazio (uma dessas fábricas de simulacros até faliu
“realmente”, deixando os seus próprios desempregados sem trabalho pela segunda vez).
Isso é simulação: não que as fábricas sejam falsas, mas precisamente que sejam reais,
hiper-reais, e que por isso devolvem toda a produção “real”, a das fábricas “sérias”, à mesma
hiper-realidade. O que é fascinante aqui não é a oposição entre fábricas reais e fábricas falsas, mas,
pelo contrário, a falta de distinção entre as duas, o facto de todo o resto da produção não ter
referente maior ou finalidade mais profunda do que estes "simulacros"! negócios. É esta indiferença
hiperreal que constitui a verdadeira qualidade “ficção científica” deste episódio. E percebe-se
que não é preciso inventá-lo: ele está aí, emergindo de um mundo sem segredos, sem
profundidade.

Sem dúvida, o mais difícil hoje, no complexo universo da ficção científica, é desvendar o que
ainda obedece (e grande parte ainda obedece) ao imaginário de segunda ordem, de ordem produtiva/
projetiva, e o que já vem dessa imprecisão do imaginário, dessa incerteza própria da terceira
ordem da simulação.
Assim, pode-se marcar claramente a diferença entre as máquinas robóticas mecânicas,
características de segunda ordem, e as máquinas cibernéticas, computadores, etc., que, no seu
princípio de governo, dependem da terceira ordem. Mas uma ordem pode certamente
contaminar outra, e o computador pode certamente funcionar como uma supermáquina
mecânica, um superrobô, uma máquina superpotente, expondo o gênio produtivo dos simulacros de
segunda ordem: o computador não entra em jogo como um processo de simulação , e ainda
testemunha os reflexos de um universo finalizado (incluindo ambivalência e revolta, como o
computador de 2001 ou Shalmanezer em Everyone to Zanzibar).

Entre o operístico (o estatuto teatral da maquinaria teatral e fantástica, a “grande ópera” da


técnica) que corresponde à primeira ordem, o operativo (o estatuto industrial, produtivo,
produtor de poder e energia) que corresponde à segunda ordem, e o operacional (o estatuto
cibernético, aleatório e incerto da “metatécnica”) que corresponde à terceira ordem, todas
as interferências podem ainda hoje ser produzidas ao nível da ficção científica. Mas só a última
encomenda ainda pode nos interessar verdadeiramente.
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OS ANIMAIS: TERRITÓRIO E METAMORFOSES

O que queriam os torturadores da Inquisição? A admissão do mal, do princípio do mal. Era preciso fazer com
que o acusado dissesse que não era culpado senão por acidente, pela incidência do princípio do Mal na
ordem divina. Assim, a confissão restaurou uma causalidade tranquilizadora, e a tortura e o
extermínio do mal através da tortura nada mais foram do que a coroação triunfal (nem sádica nem expiatória)
do fato de ter produzido o Mal como causa. Caso contrário, a menor heresia teria tornado suspeita toda a
criação divina. Da mesma forma, quando usamos e abusamos de animais em laboratórios, em foguetes,
com ferocidade experimental em nome da ciência, que confissão procuramos extorquir deles por baixo do
bisturi e dos eletrodos?

Precisamente a admissão de um princípio de objetividade do qual a ciência nunca tem certeza, do qual
secretamente se desespera. É preciso fazer com que os animais digam que não são animais, que a
bestialidade, a selvageria - com o que estes termos implicam de ininteligibilidade, de estranheza radical à
razão - não existem, mas, pelo contrário, os comportamentos mais bestiais, os mais singulares, os mais
anormais. são resolvidos na ciência, nos mecanismos fisiológicos, nas conexões cerebrais, etc. A
bestialidade e o seu princípio de incerteza devem ser mortos nos animais.

A experimentação não é, portanto, um meio para atingir um fim, é um desafio e uma tortura contemporâneos.
Não encontra inteligibilidade, extorque uma confissão da ciência como antes se extorquiu uma profissão de
fé. Uma confissão cujas aparentes distâncias – doença, loucura, bestialidade – não passam de uma fissura
provisória na transparência da causalidade. Esta prova, como antes da razão divina, deve ser
continuamente refeita e refeita em todo o lado - neste sentido somos todos animais, e animais de laboratório,
que se testa continuamente para extorquir os seus comportamentos reflexos, que são como tantas confissões
de racionalidade no momento final. Em todo o lado, a bestialidade deve ceder à animalidade reflexa,
exorcizando uma ordem do indecifrável, do selvagem, da qual, precisamente no seu silêncio, os animais
permaneceram para nós a encarnação.

Os animais precederam-nos assim no caminho do extermínio liberal. Todos os aspectos do tratamento


moderno dos animais remontam às vicissitudes da manipulação dos humanos, desde a experimentação até à
pressão industrial na criação.

Reunidos numa convenção em Lyon, os veterinários europeus ficaram preocupados com as doenças e os
problemas psicológicos que se desenvolvem nas explorações de criação industrial.
-Ciência e o Futuro, julho de 1973

Os coelhos desenvolvem uma ansiedade mórbida, tornam-se coprófagos e estéreis. O coelho é “ansioso”,
“desadaptado” desde o nascimento, ao que parece. Maior sensibilidade a infecções, a parasitas. Os
anticorpos perdem a eficácia, as fêmeas tornam-se estéreis. Espontaneamente, se assim podemos dizer, a
mortalidade aumenta.

A histeria das galinhas contagia todo o grupo, uma tensão coletiva “psíquica” que pode atingir um limiar
crítico: todos os animais começam a voar e a gritar em todas as direções. O
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a crise acabou, há um colapso, o terror geral, os animais se refugiam no canto, mudos e como que
paralisados. Ao primeiro choque, a crise recomeça. Pode durar várias semanas.
Alguém tentou dar-lhes tranquilizantes. ..

Canibalismo por parte dos porcos. Os animais se feriram. Os bezerros começam a lamber tudo que
os rodeia, às vezes até a morte.

“É certamente necessário estabelecer que os animais criados sofrem psiquicamente... Uma


zoopsiquiatria torna-se necessária... Uma vida psíquica de frustração representa um obstáculo ao
desenvolvimento normal.”

Escuridão, luz vermelha, aparelhos, tranquilizantes, nada funciona. Nas aves existe uma hierarquia
de acesso aos alimentos - a hierarquia. Nessas condições de superpopulação, o último da ordem
nunca consegue chegar à comida. Pretendia-se, assim, quebrar a hierarquia e democratizar o
acesso aos alimentos através de outro sistema de distribuição. Fracasso: a destruição
desta ordem simbólica traz consigo uma confusão total para as aves e uma instabilidade crónica.
Bom exemplo de absurdo: conhecemos as devastações análogas das boas intenções democráticas
nas sociedades tribais.

Os animais somatizam! Descoberta extraordinária! Cânceres, úlceras gástricas, infarto do


miocárdio em ratos, porcos, galinhas!

Concluindo, diz o autor, certamente parece que o único remédio é o espaço - “um pouco mais de
espaço e muitos dos problemas observados desapareceriam”. De qualquer forma, “o destino destes
animais tornar-se-ia menos miserável”. Ele está, portanto, satisfeito com esta conferência: “A
preocupação atual com o destino dos animais criados é testemunha, mais uma vez, da aliança da
moralidade e do significado de um interesse bem compreendido”. "Não se pode simplesmente fazer
o que quiser com a natureza." Tendo os problemas se tornado suficientemente graves para
prejudicar a rentabilidade do negócio, esta queda na rentabilidade pode levar os criadores a
devolver os animais a condições de vida mais normais. “Para ser criado de maneira saudável,
agora é preciso estar sempre preocupado com o equilíbrio mental dos animais”. E prevê o momento
em que se enviarão animais, tal como pessoas, para o campo, para restaurar o seu equilíbrio
mental.

Nunca se disse melhor o quanto o “humanismo”, a “normalidade”, a “qualidade de vida” nada


mais eram do que as vicissitudes da lucratividade. O paralelo entre esses animais doentes pela mais-
valia e os humanos doentes pela concentração industrial, pela organização científica do
trabalho e pelas fábricas de linha de montagem é esclarecedor. Também neste último caso, os
“criadores” capitalistas foram levados a uma revisão destrutiva do modo de exploração, inovando e
reinventando a “qualidade do trabalho”, o “enriquecimento das tarefas”, descobrindo as ciências
“humanas” e a dimensão “psico-sociológica” da fábrica. Somente a inevitabilidade da morte
torna o exemplo dos animais ainda mais chocante do que o dos homens numa linha de montagem.

Contra a organização industrial da morte, os animais não têm outro recurso, nenhum outro desafio
possível, exceto o suicídio. Todas as anomalias descritas são suicidas. Estas resistências
são um fracasso da razão industrial (queda dos lucros), mas também se sente que vão contra o
raciocínio lógico dos especialistas. Na lógica dos comportamentos reflexos e
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do animal-máquina, na lógica racional, essas anomalias não são qualificáveis. Concede-se,


portanto, aos animais uma vida psíquica, uma vida psíquica irracional e descarrilada, entregue à
terapia liberal e humanista, sem que o objectivo final tenha mudado: a morte.

Com engenhosidade, descobre-se assim, como um campo científico novo e inexplorado, a


vida psíquica do animal assim que se revela desadaptado à morte que se lhe prepara. Da mesma
forma, redescobre-se a psicologia, a sociologia, a sexualidade dos prisioneiros assim que se torna
impossível encarcerá-los pura e simplesmente. os animais precisam de uma certa “qualidade de
vida” para morrer dentro da norma.

E nada sobre isso é contraditório. O trabalhador também precisa de responsabilidade, de


autogestão para melhor responder ao imperativo da produção. Todo mundo precisa de uma vida
psíquica para se adaptar. Não há outra razão para a chegada da vida psíquica, consciente ou
inconsciente. E a sua idade de ouro, que ainda continua, terá coincidido com a impossibilidade
de uma socialização racional em todos os domínios. Nunca teriam existido as humanidades ou a
psicanálise se fosse milagrosamente possível reduzir o homem aos seus comportamentos
“racionais”. Toda a descoberta do psicológico, cuja complexidade pode estender-se ad infinitum,
provém apenas da impossibilidade de explorar até à morte (os trabalhadores), de encarcerar até à
morte (os detidos), de engordar até à morte (os animais), segundo o lei estrita de equivalências:

tanta energia calórica e tempo = tanta força de trabalho tal infração = tal punição equivalente
tanta comida = peso ideal e morte industrial.

Tudo está bloqueado, então nascem a vida psíquica, a mental, a neurose, a psicossocial, etc.,
não para quebrar essa equação delirante, mas para restaurar o princípio das equivalências
mutuamente acordadas.

Bestas de carga, elas tiveram que trabalhar para o homem. Bestas da procura, são convocadas
para responder à interrogação da ciência.*2 Bestas do consumo, tornaram-se a carne da indústria.
Bestas da somatização, agora são obrigados a falar a linguagem “psi”, a responder por sua vida
psíquica e pelos delitos de seu inconsciente. Tudo o que aconteceu conosco aconteceu com
eles. O nosso destino nunca foi separado do deles, e isto é uma espécie de vingança amarga
contra a Razão Humana, que se habituou a defender o privilégio absoluto do Humano sobre o
Bestial.

Além disso, os animais só foram rebaixados ao status de desumanidade à medida que a razão e o
humanismo progrediram. Uma lógica paralela à do racismo. Um “reinado” animal objetivo só
existe desde que o Homem existe. Demoraria muito tempo para refazer a genealogia dos
seus respectivos estatutos, mas o abismo que hoje os separa, aquele que nos permite enviar
feras, em nosso lugar, para responder aos terríveis universos do espaço e dos laboratórios, aquele
que nos permite a liquidação de espécies, mesmo quando são arquivadas como espécimes nas
reservas africanas ou no inferno dos jardins zoológicos - já que não há mais espaço para elas na
nossa cultura do que há para os mortos - tudo isso coberto por um sentimentalismo racista
(bebés focas , Brigitte Bardot), esse abismo que os separa segue a domesticação, assim como o
verdadeiro racismo segue a escravidão.
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Antigamente os animais tinham um caráter mais sagrado e mais divino que os homens. Não
existe sequer um reinado do “humano” nas sociedades primitivas, e durante muito tempo a ordem
animal foi a ordem de referência. Só o animal vale a pena ser sacrificado, como deus, o sacrifício do
homem só vem depois, segundo uma ordem degradada. Os homens se qualificam apenas pela
sua filiação ao animal: os Bororos “são” araras. Isto não é da ordem pré-lógica ou psicanalítica
- nem da ordem mental de classificação, à qual Lévi-Strauss reduziu a efígie animal (mesmo que
seja ainda fabuloso que os animais servissem de linguagem, isso também fazia parte da sua
divindade) - não, isso significa que os Bororos e as araras fazem parte de um ciclo, e que a figura do
ciclo exclui qualquer divisão de espécies, qualquer uma das oposições distintivas em que
vivemos. A oposição estrutural é diabólica, divide e confronta identidades distintas: tal é a
divisão do Humano, que atira as feras no Inumano - o ciclo, em si, é simbólico: abole as posições
num encadeamento reversível - neste sentido, o Os Bororos “são” araras, da mesma forma que
os Canaque dizem que os mortos andam entre os vivos. (Será que Deleuze imagina algo assim em
seu devir-animal e quando diz “Seja a pantera rosa!”?)

Seja como for, os animais sempre tiveram, até a nossa época, uma nobreza divina ou
sacrificial que todas as mitologias contam. Mesmo o assassinato por caça ainda é uma relação
simbólica, em oposição a uma dissecação experimental. Mesmo a domesticação ainda é uma relação
simbólica, em oposição à criação industrial. Basta olhar para a situação dos animais na sociedade
camponesa. E o estatuto de domesticação, que pressupõe uma terra, um clã, um sistema de
filiação do qual os animais fazem parte, não deve ser confundido com o estatuto do animal de
estimação doméstico - o único tipo de animais que nos resta fora das reservas e criadouros - cães,
gatos, pássaros, hamsters, todos embalados no carinho de seu dono.
A trajetória que os animais seguiram, do sacrifício divino aos cemitérios de cães com música
atmosférica, do desafio sagrado ao sentimentalismo ecológico, fala alto o suficiente da
vulgarização do status do próprio homem - descreve mais uma vez uma reciprocidade
inesperada entre os dois.

Em particular, o nosso sentimentalismo para com os animais é um sinal claro do desdém com que
os temos. É proporcional a esse desdém. É na proporção de ser relegado à irresponsabilidade,
ao desumano, que o animal se torna digno do ritual humano de afeto e proteção, assim como a
criança o faz na proporção direta de ser relegado a um status de inocência e infantilidade. O
sentimentalismo nada mais é do que a forma infinitamente degradada de bestialidade, a comiseração
racista, na qual ridiculamente disfarçamos os animais para o
ponto de torná-los eles próprios sentimentais.

Aqueles que costumavam sacrificar animais não os consideravam feras. E mesmo a Idade Média,
que os condenou e puniu na devida forma, esteve assim muito mais próxima deles do que nós, que
estamos horrorizados com esta prática. Eles os consideravam culpados: o que era uma forma de
honrá-los. Nós os aceitamos de graça e é nesta base que somos “humanos” com eles. Já não os
sacrificamos, já não os castigamos, e temos orgulho disso, mas é simplesmente que os
domesticámos, e pior: fizemos deles um mundo racialmente inferior, já nem sequer digno da nossa
justiça, mas apenas do nosso carinho e caridade social, não mais dignos de castigo e de morte, mas
apenas de experimentação e extermínio como a carne do açougue.

É a reabsorção de toda a violência contra eles que constitui hoje a monstruosidade da


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feras. A violência do sacrifício, que é a da “intimidade” (Bataille), foi sucedida


pela violência sentimental ou experimental, que é a da distância.

A monstruosidade mudou de significado. A monstruosidade original da besta, objeto


de terror e fascínio, mas nunca negativa, sempre ambivalente, objeto também de troca
e de metáfora, no sacrifício, na mitologia, no bestiário heráldico, e mesmo nos
nossos sonhos e nos nossos fantasmas - esta monstruosidade , rica em
todas as ameaças e em todas as metamorfoses, que se resolve secretamente na
cultura viva dos homens, e que é uma forma de aliança, foi trocada por uma
monstruosidade espetacular: a de King Kong arrancado de sua selva e transformado
em música -estrela do salão. Antigamente, o herói cultural aniquilou a fera, o dragão, o
monstro - e do sangue derramado nasceram as plantas, os homens, a cultura; hoje,
é a besta King Kong que vem saquear as nossas metrópoles industriais, que vem
libertar-nos da nossa cultura, uma cultura morta por ter se purificado de toda
monstruosidade real e por ter quebrado o pacto com ela (que foi expresso no filme pelo
dom primitivo da mulher). A profunda sedução do filme advém desta inversão de
sentido: toda a desumanidade passou para o lado dos homens, toda a humanidade
passou para o lado da bestialidade cativa, e para a respectiva sedução do homem e da
besta, monstruosa sedução do uma ordem pela outra, o humano e o bestial. Kong
morre por ter renovado, através da sedução, esta possibilidade de metamorfose de um
reinado em outro, esta promiscuidade incestuosa entre bestas e homens (embora nunca realizada, exceto de

Afinal, a progressão que a fera seguiu não é diferente da da loucura e da infância, do


sexo ou da negritude. Uma lógica de exclusão, de reclusão, de discriminação e
necessariamente, em troca, uma lógica de reversão, de violência reversível que faz com
que toda a sociedade finalmente se alinhe nos axiomas da loucura, da infância, da
sexualidade e das raças inferiores (expurgados, diga-se, da interrogação radical à qual,
desde o cerne da sua exclusão, eles emprestaram importância). A convergência dos
processos de civilização é surpreendente. Os animais, como os mortos, e tantos outros,
têm seguido este processo ininterrupto de anexação através do extermínio, que consiste
na liquidação, depois em fazer falar as espécies extintas, em fazê-las apresentar a
confissão do seu desaparecimento. Fazer falar os animais, como se fez falar os
loucos, as crianças, o sexo (Foucault). Isto é até ilusório no que diz respeito
aos animais, cujo princípio de incerteza, que fizeram pesar sobre os homens desde a
ruptura da sua aliança com os homens, reside no facto de não falarem.

O desafio da loucura tem sido historicamente enfrentado pela hipótese do inconsciente.


O Inconsciente é esse mecanismo logístico que nos permite pensar a loucura (e mais
geralmente todas as formações estranhas e anômalas) num sistema de significado
aberto ao não-sentido, que dará lugar aos terrores do absurdo, agora inteligível sob os
auspícios de um certo discurso: vida psíquica, pulsão, repressão, etc. Foram os loucos
que nos obrigaram à hipótese do inconsciente, mas fomos nós que os prendemos ali.
Porque se, inicialmente, o Inconsciente parece voltar-se contra a Razão e trazer-lhe uma
subversão radical, se ainda parece carregado do potencial de ruptura da loucura,
depois volta-se contra a loucura, porque é ele que permite anexá-la. a uma razão
mais universal que a razão clássica.

Os loucos, outrora mudos, hoje são ouvidos por todos; encontrou-se a grade na qual
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coletar suas mensagens antes absurdas e indecifráveis. As crianças falam, para o universo
adulto já não são aqueles seres ao mesmo tempo estranhos e insignificantes - as crianças
significam, tornaram-se significativas - não através de uma espécie de “libertação” da sua fala, mas
porque a razão adulta se dotou dos meios mais subtis para evitar a ameaça do seu silêncio. Os
primitivos também são ouvidos, procuram-se, ouvem-nos, já não são bestas. Lévi-Strauss apontou
que suas estruturas mentais eram iguais às nossas, a psicanálise os reuniu ao Édipo e à libido - todos
os nossos códigos funcionavam bem e eles respondiam a eles. Enterramo-los sob o silêncio,
enterramo-los sob a fala, uma fala “diferente”, certamente, mas sob a palavra do dia, “diferença”,
como antigamente se fazia sob a unidade da Razão; não nos deixemos enganar por isso, é a mesma
ordem que avança. O imperialismo da razão, o neoimperialismo da diferença.

O essencial é que nada escape ao império do sentido, à partilha do sentido.


Certamente, por trás de tudo isso, nada nos fala, nem os loucos, nem os mortos, nem as
crianças, nem os selvagens, e fundamentalmente nada sabemos deles, mas o essencial é que a
Razão salve a face, e que tudo escape do silêncio.

Eles, os animais, não falam. Num universo de discurso crescente, de constrangimento a confessar
e a falar, só eles permanecem mudos e por isso parecem recuar para longe de nós, para trás do
horizonte da verdade. Mas é o que nos torna íntimos deles. Não é o problema ecológico da sua
sobrevivência que é importante, mas ainda e sempre o do seu silêncio. Num mundo determinado a
não fazer nada senão fazer falar, num mundo reunido sob a hegemonia dos signos e do discurso,
o seu silêncio pesa cada vez mais na nossa organização do significado.

Certamente, alguém os faz falar, e com todos os meios, uns mais inocentes que outros.
Eles falavam o discurso moral do homem nas fábulas. Eles apoiaram o discurso estrutural na teoria
do totemismo. Todos os dias eles entregam sua mensagem “objetiva” – anatômica,
fisiológica, genética – em laboratórios. Serviram alternadamente como metáforas da virtude e do
vício, como modelo energético e ecológico, como modelo mecânico e formal na biônica, como registro
fantasmático do inconsciente e, por último, como modelo para a desterritorialização absoluta do
desejo na obra de Deleuze. devir-animal” (paradoxal: tomar o animal como modelo de
desterritorialização quando ele é o ser territorial por excelência).

Em tudo isto – metáfora, cobaia, modelo, alegoria (sem esquecer o seu “valor de uso” alimentar)
– os animais mantêm um discurso obrigatório. Em nenhum lugar eles realmente falam, porque
apenas fornecem as respostas que alguém pede. É a sua forma de devolver o Humano aos
seus códigos circulares, atrás dos quais o seu silêncio nos analisa.

Nunca se escapa da reversão que se segue a qualquer tipo de exclusão. Recusar a razão aos
loucos leva, mais cedo ou mais tarde, ao desmantelamento das bases desta razão – os loucos
vingam-se de alguma forma. Recusar aos animais o inconsciente, a repressão, o simbólico
(confundido com a linguagem) é, espera-se, mais cedo ou mais tarde (numa espécie de
desconexão posterior à da loucura e do inconsciente) colocar mais uma vez em causa a validade
destes conceitos , tal como nos governam e distinguem hoje. Porque, se antigamente o
privilégio do Homem se baseava no monopólio da consciência, hoje é
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fundada no monopólio do inconsciente.

Os animais não têm inconsciente, isso é bem sabido. Sem dúvida sonham, mas isso é uma
conjectura de ordem bioelétrica, e falta-lhes a linguagem, a única que dá sentido ao
sonho ao inscrevê-lo na ordem simbólica. Podemos fantasiar sobre eles, projetar neles
nossas fantasias e pensar que estamos compartilhando essa mise-en-scéne. Mas isto é
confortável para nós - na verdade, os animais não são inteligíveis para nós nem sob o regime
da consciência nem sob o regime do inconsciente. Portanto, não se trata de forçá-los a isso,
mas apenas do contrário de ver de que forma eles questionam essa mesma hipótese do
inconsciente e a que outras hipóteses nos obrigam. Tal é o sentido, ou o não sentido, do
seu silêncio.

Tal foi o silêncio dos loucos que nos obrigou à hipótese do inconsciente - tal é a resistência
dos animais que nos obriga a mudar de hipóteses. Pois se para nós eles são e permanecerão
ininteligíveis, ainda assim vivemos em algum tipo de entendimento com eles.
E se vivermos assim, sob o signo de uma ecologia geral, onde numa espécie de nicho
planetário, que é apenas a dimensão alargada da caverna platónica, os fantasmas dos animais
e dos elementos naturais viriam a esfregar-se na sombra da homens que sobreviveram à
economia política - não, o nosso entendimento profundo com as feras, mesmo em vias de
desaparecimento, é colocado sob o signo conjugado, de aparência oposta, da metamorfose
e do território.

Nada parece mais fixo na perpetuação das espécies do que os animais, mas ainda assim
eles são para nós a imagem da metamorfose, de todas as metamorfoses possíveis. Nada
é mais errante, mais nômade na aparência do que os animais, e ainda assim sua lei é a do território.
*3 Mas é preciso deixar de lado todos os contra-significados desta noção de território. Não se
trata de forma alguma da relação ampliada de um sujeito ou de um grupo com o seu próprio
espaço, uma espécie de direito orgânico à propriedade privada do indivíduo, do clã ou da
espécie - tal é o fantasma da psicologia e da sociologia ampliada a toda a ecologia - nem esta
espécie de função vital, de bolha ambiental onde se resume todo o sistema de
necessidades.*4 Um território também não é um espaço, com o que este termo
implica para nós sobre liberdade e apropriação. Nem instinto, nem necessidade, nem estrutura
(seja "cultural" e "comportamental"), a noção de território também se opõe de alguma
forma à de inconsciente. O inconsciente é uma estrutura “enterrada”, reprimida e subdividida
indefinidamente. O território é aberto e circunscrito. O inconsciente é o local da repetição
indefinida da repressão subjetiva e das fantasias. O território é o lugar de um ciclo
completo de filiação e de trocas - sem sujeito, mas sem exceção: ciclo animal e vegetal, ciclo
de bens e riquezas, ciclo de filiação e da espécie, ciclo de mulheres e ritual - não há sujeito e
tudo é trocado. As obrigações aí são absolutas - reversibilidade total - mas ali ninguém
conhece a morte, pois tudo está metamorfoseado.
Nem sujeito, nem morte, nem inconsciente, nem repressão, pois nada impede o
encadeamento das formas.

Os animais não têm inconsciente, porque possuem um território. Os homens só ficaram


inconscientes desde que perderam um território. Ao mesmo tempo, territórios e metamorfoses
foram-lhes retirados - o inconsciente é a estrutura individual do luto em que esta perda é
repetida incessante e irremediavelmente - os animais são a nostalgia dela. A questão que
nos colocam seria então esta: não vivemos agora e já, para além do
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efeitos da linearidade e da acumulação da razão, para além dos efeitos do consciente e do


inconsciente, segundo este modo bruto e simbólico, de ciclo indefinido e de reversão sobre um espaço
finito? E para além do esquema ideal que é o da nossa cultura, talvez de toda a cultura, da acumulação
de energia e da libertação final, não sonhamos com a implosão em vez da explosão, com a
metamorfose em vez de energia, com a obrigação e desafio ritual em vez de liberdade, do ciclo
territorial em vez de.
. . Mas os animais não fazem perguntas. Eles estão em silêncio.

* NOTAS *

1. Assim, no Texas, quatrocentos homens e cem mulheres experimentam a penitenciária mais


doce do mundo. Uma criança nasceu lá em junho passado e houve apenas três fugas em dois anos.
Os homens e as mulheres fazem as refeições juntos e se reúnem fora das sessões de terapia
de grupo. Cada prisioneiro possui a única chave do seu quarto individual. Os casais podem ficar
sozinhos nos quartos vazios. Até hoje, trinta e cinco prisioneiros escaparam, mas a maior parte deles
regressou por vontade própria.

2. Em francês, betes de somme significa bestas de carga. Baudrillard brinca com a palavra somme
na frase a seguir: “Betes de sommation, elles sont sommees de repondre a l'interrogatoire de la
science”, e no uso da palavra consumação na frase seguinte.-TRANS.

3. Que os animais vagam é um mito, e a representação atual do inconsciente e do desejo como


errático e nômade pertence à mesma "ordem. Os animais nunca vagaram, nunca foram
desterritorializados. Toda uma fantasmagoria libertadora se desenha em oposição aos
constrangimentos". da sociedade moderna, uma representação da natureza e dos animais como
selvageria, como a liberdade de "satisfazer todas as necessidades", hoje "de realizar todos os
seus desejos" - porque o rousseaunismo moderno assumiu a forma da indeterminação da pulsão,
da errância da desejo e do nomadismo da infinitude - mas é a mesma mística de forças
desencadeadas e não codificadas, sem outra finalidade senão a sua própria erupção.

Ora, a natureza livre, virgem, sem limites nem territórios, onde cada um vagueia à vontade, nunca
existiu, exceto no imaginário da ordem dominante, da qual esta natureza é o espelho
equivalente. Projetamos (natureza, desejo, animalidade, rizoma. . . ) o próprio esquema de
desterritorialização que é a do sistema econômico e do capital como selvageria ideal.
A liberdade não está em nenhum outro lugar senão no capital, é o que a produziu, é o que a
aprofunda. Existe, portanto, uma correlação exacta entre a legislação social de valor (urbana,
industrial, repressiva, etc.) e a selvageria imaginária que lhe é colocada em oposição: ambas estão
"desterritorializadas" e à imagem uma da outra. Além disso, a radicalidade do “desejo”, como se
vê nas teorias atuais, aumenta na mesma proporção que a abstração civilizada, não de forma
antagônica, mas absolutamente de acordo com o mesmo movimento, o da mesma forma sempre
mais decodificada, mais descentralizada, “mais livre”, que envolve simultaneamente o nosso real e o
nosso imaginário. A natureza, a liberdade, o desejo, etc., nem sequer expressam um sonho oposto
ao capital, traduzem diretamente o progresso ou a devastação desta cultura, até o antecipam,
porque sonham com uma desterritorialização total onde o sistema nunca impõe nada além de o
que é relativo: a exigência de “liberdade” nunca é outra coisa senão ir além do sistema, mas na
mesma direção.
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Nem as feras nem os selvagens conhecem a “natureza” à nossa maneira: apenas conhecem
territórios, limitados, marcados, que são espaços de reciprocidade intransponível.

4. Assim, Henri Laborit recusa a interpretação do território em termos de instinto ou propriedade


privada: “Nunca se apresentou como evidência, nem no hipotálamo nem em outro lugar, nem
um grupo celular nem vias neurais que sejam diferenciadas em relação à noção de território... Parece
não existir nenhum centro territorial... Não é útil apelar a um instinto particular" - mas é útil fazê-lo para
melhor devolvê-lo a uma funcionalidade de necessidades estendida para incluir comportamentos
culturais, que hoje é a vulgata comum à economia, à psicologia, à sociologia, etc.: “O território
torna-se assim o espaço necessário à realização do ato de doar, o espaço vital... A bolha, o território
representa assim o pedaço de espaço em contato imediato com o organismo, aquele em que ele
'abre' suas trocas termodinâmicas para manter sua própria estrutura... Com a crescente
interdependência dos indivíduos humanos, com a promiscuidade que caracteriza as grandes
cidades modernas, a bolha individual tem encolheu consideravelmente..." Concepção espacial,
funcional, homeostática. Como se a aposta de um grupo ou de um homem, mesmo de um
animal, fosse o equilíbrio da sua bolha e a homeostase das suas trocas, internas e externas!
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O RESTANTE

Quando tudo é tirado, nada resta.

Isto é falso.

A equação de tudo e nada, a subtração do resto, é totalmente falsa.

Não é que não haja resto. Mas este resto nunca tem uma realidade autónoma, nem um lugar
próprio: é o que a partição, a circunscrição, a exclusão designam... o que mais? É através da subtração
do resto que a realidade se funda e ganha força... o que mais?

O que é estranho é precisamente que numa oposição binária não há termo oposto: pode-se dizer a
direita/a esquerda, o mesmo/o outro, a maioria/a minoria, o louco/o normal, etc. ? Nada do outro lado
da barra.

“A soma e o resto”, a adição e o resto, a operação e o resto não são oposições distintivas.

E, no entanto, o que está do outro lado do resto existe, é mesmo o termo marcado, o momento
poderoso, o elemento privilegiado nesta oposição estranhamente assimétrica, nesta estrutura que
não é uma só. Mas este termo marcado não tem nome. É anônimo, é instável e sem definição.
Positivo, mas apenas o negativo lhe confere força de realidade. Em sentido estrito, não pode
ser definido exceto como o resto do resto.

Assim, o resto refere-se a muito mais do que uma divisão clara em dois termos localizados, a uma
estrutura giratória e reversível, uma estrutura de reversão sempre iminente, em que nunca se sabe
qual é o resto do outro. Em nenhuma outra estrutura se pode criar esta reversão, ou esta mise-en-
abyme: o masculino não é o feminino do feminino, o normal não é o louco do louco, a direita não é
a esquerda da esquerda, etc. Talvez só no espelho se possa colocar a questão: qual, o real ou a
imagem, é o reflexo do outro? Neste sentido pode-se falar do resto como um espelho, ou do espelho
do resto. É que em ambos os casos a linha de demarcação estrutural, a linha de partilha de sentido,
tornou-se vacilante, é esse sentido (mais literalmente: a possibilidade de ir de um ponto a
outro de acordo com um vetor determinado pelo respectiva posição dos termos) não existe mais.
Não há mais posição respectiva - o real desaparece para dar lugar a uma imagem, mais real que
o real, e inversamente - o resto desaparece do local designado para ressurgir do avesso, naquilo de
que era resto, etc.

O mesmo se aplica ao social. Quem pode dizer se o resto do social é o resíduo do não-socializado, ou
se não é o próprio social que é o resto, o gigantesco produto residual... de que mais? De um
processo que, mesmo que desaparecesse completamente e não tivesse outro nome senão o social,
seria, no entanto, apenas o seu resto. O resíduo pode estar completamente no nível do real. Quando
um sistema absorve tudo, quando se soma tudo, quando nada resta, a soma inteira se transforma no
resto
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e se torna o restante.

Veja-se a coluna “Sociedade” do Le Monde, onde paradoxalmente aparecem apenas imigrantes,


delinquentes, mulheres, etc. – tudo o que não foi socializado, casos “sociais” análogos a casos
patológicos. Bolsões a serem reabsorvidos, segmentos que o “social” isola à medida que cresce.
Designados como “residuais” no horizonte do social, entram assim na sua jurisdição e estão
destinados a encontrar o seu lugar numa sociabilidade alargada. É para esse resto que a máquina
social se recarrega e encontra novas energias. Mas o que acontece quando tudo é esponjoso,
quando tudo é socializado? Depois a máquina para, a dinâmica inverte-se e é todo o sistema
social que se torna resíduo. À medida que o social, em sua progressão, elimina todos os resíduos,
ele próprio se torna residual. Ao designar categorias residuais como “Sociedade”, o social
designa-se como um resto.

A impossibilidade de determinar o que é o resto do outro caracteriza a fase de simulação e a


agonia dos sistemas distintivos, fase em que tudo se torna resto e resíduo. Inversamente, o
desaparecimento da barra fatídica e estrutural que isolava o resto de ??? e que agora permite
que cada termo seja o resto do outro termo caracteriza uma fase de reversibilidade durante a
qual "virtualmente" não há mais resto. As duas proposições são simultaneamente “verdadeiras” e
não são mutuamente exclusivas. Eles próprios são reversíveis.

Outro aspecto tão surpreendente quanto a ausência de termo oposto: o restante faz rir. Qualquer
discussão sobre este tema desencadeia os mesmos jogos de linguagem, a mesma ambiguidade e
a mesma obscenidade que as discussões sobre sexo ou morte. Sexo e morte são os grandes
temas reconhecidos por desencadearem ambivalência e risos. Mas o restante é o terceiro, e talvez o
único, os outros dois equivalendo a isto quanto à própria figura da reversibilidade. Pois por que
alguém ri? Só se ri da reversibilidade das coisas, e o sexo e a morte são figuras eminentemente
reversíveis. É porque a aposta é sempre reversível entre o masculino e o feminino, entre a
vida e a morte, que se ri do sexo e da morte. Quanto mais, então, com o resto, que nem sequer
tem um termo oposto, que por si só percorre todo o ciclo, e corre infinitamente atrás da sua própria
barra, depois do seu próprio duplo, como Peter Schlemihl depois da sua sombra? o resto é obsceno
porque é reversível e é trocado por si mesmo. É obsceno e faz rir, como só a falta de
distinção entre o masculino e o feminino, a falta de distinção entre a vida e a morte faz rir, rir
profundamente.

Hoje, o restante tornou-se o termo de peso. É sobre o resto que se funda uma nova inteligibilidade.
Fim de uma certa lógica de oposições distintivas, em que o termo fraco desempenhava o papel do
termo residual. Hoje, tudo está invertido.
A própria psicanálise é a primeira grande teorização dos resíduos (lapsos, sonhos, etc.). Já não é
uma economia política de produção que nos dirige, mas uma política económica de reprodução, de
reciclagem – ecologia e poluição – uma economia política do restante.
Toda a normalidade se vê hoje à luz da loucura, que nada mais foi do que o seu insignificante
resto. Privilégio de todos os restos, em todos os domínios, do não dito, do feminino, do louco, do
marginal, do excremento e do desperdício na arte, etc. retorno do reprimido como momento
poderoso, do retorno do restante como excedente de significado, como excesso (mas
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o excesso não é formalmente diferente do resto, e o problema do desperdício do excesso em Bataille não
é diferente daquele da reabsorção dos restos numa economia política de cálculo e penúria, apenas
as filosofias são diferentes), de ordem superior de ou seja, começando com o restante. O segredo de
todas as “libertações” que atuam nas energias ocultas do outro lado da barra.

Agora estamos diante de uma situação muito mais original: não a da pura e simples inversão e promoção
de restos, mas a de uma instabilidade em cada estrutura e em cada oposição que faz com que não haja
mais sequer um resto, devido a o fato de que o resto está em toda parte e, ao brincar com a barra, anula-se
como tal.

Não é quando se tira tudo que nada resta, mas nada resta quando as coisas mudam incessantemente e
a própria adição não tem mais sentido.

O nascimento é residual se não for revisitado simbolicamente através da iniciação.

A morte é residual se não for resolvida no luto, na celebração coletiva do luto.

O valor é residual se não for reabsorvido e volitalizado no ciclo de trocas.

A sexualidade é residual uma vez que se torna produção de relações sexuais.

O próprio social é residual uma vez que se torna uma produção de “relações sociais”.

Todo o real é residual, e tudo o que é residual está destinado a repetir-se indefinidamente em
fantasmas.

Toda acumulação nada mais é do que um resto, e a acumulação de restos, no sentido de que é uma
ruptura de aliança, e no infinito linear da acumulação e do cálculo, no infinito linear da produção,
compensa a energia e o valor que utilizou a ser realizado no ciclo da aliança. Ora, o que atravessa um ciclo
realiza-se completamente, enquanto na dimensão do infinito, tudo o que está abaixo da linha do
infinito, abaixo da linha da eternidade (esse estoque de tempo que é também, como qualquer estoque, uma
ruptura de alianças), tudo isso nada mais é do que o resto.

A acumulação nada mais é do que o resto, e a repressão nada mais é do que a sua forma inversa e
assimétrica. É no arsenal de afetos e representações reprimidas que se baseia a nossa nova aliança.

Mas quando tudo está reprimido, nada mais existe. Não estamos longe deste ponto absoluto de repressão
onde os próprios arsenais são desfeitos, onde os arsenais de fantasmas desmoronam. Todo o imaginário
do estoque, da energia e do que dela resta vem até nós da repressão. Quando a repressão atinge
um ponto de saturação crítica onde a sua presença é posta em causa, então a energia já não estará
disponível para ser libertada, gasta, economizada, produzida: é o próprio conceito de energia que será
volatilizado por si próprio.
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Hoje o resto, as energias que nos deixaram, a restituição e a conservação dos restos, é o
problema crucial da humanidade. É insolúvel por si só. Toda nova energia liberada ou gasta deixará
um novo resíduo. Todo desejo, toda energia libidinal produzirá uma nova repressão. O que há de
surpreendente nisso, visto que a própria energia só se concebe no movimento que a armazena
e a liberta, que a reprime e a “produz”, ou seja, na figura do resto e do seu duplo?

É preciso pressionar contra o consumo insano de energia para exterminar o seu conceito.
É preciso pressionar ao máximo a repressão para exterminar o seu conceito. Uma vez consumido o
último litro de energia (pelo último ecologista), uma vez analisado o último indígena (pelo último
etnólogo), uma vez produzida a última mercadoria pela última “força de trabalho”, então
perceberemos que esta gigantesca espiral de energia e de produção, de repressão e de inconsciente,
graças à qual se conseguiu encerrar tudo numa equação entrópica e catastrófica, que tudo isto nada
mais é do que uma metafísica do resto, e que de repente será resolvido em todos os seus
efeitos.

* OBSERVAÇÃO *

1. A alusão a Peter Schlemihl, o Homem que Perdeu a Sombra, não é acidental.


Já que a sombra, tal como a imagem no espelho (em O Estudante de Praga), é um resto por
excelência, algo que pode “cair” do corpo, tal como os cabelos, os excrementos ou as aparas
de unhas com que “é” comparada em toda magia arcaica. Mas são também, sabe-se, “metáforas” da
alma, da respiração, do Ser, da essência, daquilo que profundamente dá sentido ao sujeito.
Sem imagem ou sem sombra, o corpo torna-se um nada transparente, ele próprio nada mais é do
que um resto. É a substância diáfana que permanece quando a sombra desaparece. Não
existe mais realidade: foi a sombra que levou consigo toda a realidade (assim, em O Estudante de
Praga, a imagem quebrada pelo espelho traz consigo a morte imediata do herói - sequência clássica
de contos fantásticos - ver também A Sombra de Hans Christian Andersen). Assim, o corpo não
pode ser nada além do produto residual de seu próprio resíduo, a precipitação de sua própria
precipitação. Só a ordem dita real permite privilegiar o corpo como referência. Mas nada na
ordem simbólica permite apostar na primazia de um ou de outro (do corpo ou da sombra). E é
esta reversão da sombra sobre o corpo, esta precipitação do essencial, pelos termos do essencial,
sob a rubrica do insignificante, esta derrota incessante do sentido perante o que dele resta, sejam
eles recortes de unhas ou os " objet petit a", que cria o encanto, a beleza e a inquietante
estranheza dessas histórias.
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O CADÁVER EM ESPIRAL

A universidade está em ruínas: não funciona nas arenas sociais do mercado e do emprego,
carece de substância cultural ou de um propósito final de conhecimento.

A rigor, já não há poder: também está em ruínas. Daí a impossibilidade do regresso dos fogos de
1968: do regresso da questão do saber versus o próprio poder - a contradição explosiva entre saber
e poder (ou a revelação da sua conivência, que dá no mesmo) na universidade, e, ao mesmo tempo, através
do contágio simbólico (e não político) em toda a ordem institucional e social. Por que sociólogos? marcou esta
mudança: o impasse do conhecimento, a vertigem do não-conhecimento (ou seja, ao mesmo
tempo o absurdo e a impossibilidade de acumular valor na ordem do conhecimento) vira-se como
uma arma absoluta contra o próprio poder, para desmantelá-lo de acordo com o mesmo cenário
vertiginoso de desapropriação. Este é o efeito de maio de 1968. Hoje isso não pode ser alcançado, pois
o próprio poder, depois do conhecimento, decolou, tornou-se inacessível - desapossou-se. Numa instituição
agora incerta, sem conteúdo de conhecimento, sem estrutura de poder (exceto um feudalismo arcaico que se
transforma num simulacro de uma máquina cujo destino lhe escapa e cuja sobrevivência é tão artificial como
a dos quartéis e dos teatros), a irrupção ofensiva é impossível. Só tem sentido o que precipita a
podridão, ao acentuar o lado paródico e simulacro dos moribundos jogos de conhecimento e poder.

Uma greve tem exatamente o efeito oposto. Regenera o ideal de uma universidade possível: a ficção de
uma ascensão de todos a uma cultura que é inlocalizável e que já não tem sentido. Este ideal substitui o
funcionamento da universidade como sua alternativa crítica, como sua terapia. Esta ficção ainda sonha
com a permanência e a democracia do conhecimento. Além disso, hoje em dia, em todo o lado,
a Esquerda desempenha este papel: é a justiça da Esquerda que reinjecta uma ideia de justiça, a
necessidade da lógica e da moral social num aparelho podre que se desfaz, que perde toda a consciência da
sua legitimidade e renuncia funcionando quase por vontade própria. É a Esquerda que esconde e
reproduz desesperadamente o poder, porque quer o poder e, portanto, a Esquerda acredita nele e o revive
precisamente onde o sistema lhe põe fim. O sistema põe fim, um a um, a todos os seus axiomas, a
todas as suas instituições, e realiza, um a um, todos os objectivos da esquerda histórica e revolucionária que
se vê obrigada a reavivar as rodas do capital para as sitiar. hoje: da propriedade privada ao pequeno
negócio, do exército à grandeza nacional, da moral puritana à cultura pequeno-burguesa, da justiça na
universidade - tudo o que está a desaparecer, que o próprio sistema, na sua atrocidade, certamente, mas
também na sua impulso irreversível, foi liquidado, deve ser conservado.

Daí a inversão paradoxal mas necessária de todos os termos da análise política.

O poder (ou o que toma o seu lugar) não acredita mais na universidade. Sabe fundamentalmente
que é apenas uma zona de abrigo e vigilância de toda uma classe de uma certa idade, pelo que só tem de
seleccionar - encontrará a sua elite noutro lugar, ou por outros meios. Os diplomas não valem nada: por
que razão se recusaria a atribuí-los? Em todo o caso, está disposto a concedê-los a todos; por que esta
política provocativa, se não para
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cristalizar energias numa aposta fictícia (seleção, trabalho, diplomas, etc.), num referencial já morto e
apodrecido?

Ao apodrecer, a universidade ainda pode causar muitos danos (apodrecer é um mecanismo simbólico
– não político, mas simbólico, portanto subversivo para nós). Mas para que assim seja é preciso
começar por esta mesma podridão, e não sonhar com a ressurreição. É preciso transformar esse
apodrecimento em processo violento, em morte violenta, através do escárnio e do desafio, através
de uma simulação multiplicada que ofereça o ritual da morte da universidade como modelo de
decomposição para toda a sociedade, um modelo contagioso do descontentamento de toda uma
estrutura social, onde a morte acabaria por fazer os seus estragos, que a greve tenta
desesperadamente evitar, em cumplicidade com o sistema, mas só consegue, ainda por cima,
transformar a universidade numa morte lenta, um atraso que nem sequer é lugar possível de uma
subversão, de uma reversão ofensiva.

Foi isso que produziram os acontecimentos de Maio de 1968. Num ponto menos avançado do
processo de liquefação da universidade e da cultura, os estudantes, longe de quererem salvar os
móveis (reviver o objeto perdido, de forma ideal), retrucaram confrontando o poder com o desafio da
total , morte imediata da instituição, o desafio de uma desterritorialização ainda mais
intensa que a que veio do sistema, e ao convocar o poder para responder a este descarrilamento
total da instituição do conhecimento, a esta total falta de necessidade de reunião dado lugar, esta
morte desejada no final - não a crise da universidade, isso não é um desafio, pelo contrário, é o
jogo do sistema, mas a morte da universidade - a esse desafio, o poder não foi capaz de
responder, exceto pela sua própria dissolução em troca (apenas por um momento, talvez, mas
nós vimos isso).

As barricadas de 10 de Maio pareciam defensivas e defendiam um território: o Quartier Latin,


antiga boutique. Mas isto não é verdade: por detrás desta fachada, estava a universidade morta, a
cultura morta cujo desafio eles lançavam ao poder, e a sua própria morte eventual ao mesmo tempo
- uma transformação em sacrifício imediato, que era apenas o sacrifício a longo prazo.
funcionamento do próprio sistema: a liquidação da cultura e do conhecimento.
Eles não estavam lá para salvar a Sorbonne, mas para brandir o seu cadáver na cara dos outros,
tal como os negros em Watts e em Detroit brandiam as ruínas dos seus bairros aos quais
eles próprios tinham incendiado.

O que alguém pode brandir hoje? Já não são mais as ruínas do conhecimento, da cultura – as
próprias ruínas estão extintas. Nós sabemos disso, estamos de luto por Nanterre há sete anos.
1968 está morto, repetível apenas como um fantasma de luto. O que seria o equivalente em violência
simbólica (isto é, para além da política) seria a mesma operação que fez com que o não-
conhecimento, a podridão do conhecimento, se chocasse contra o poder - não mais descobrindo
esta energia fabulosa no mesmo nível, mas na espiral superior: fazer com que o não-poder, o
apodrecimento do poder, se deparem - contra o quê precisamente? Aí reside o problema.
Talvez seja insolúvel. O poder está sendo perdido, o poder foi perdido. Ao nosso redor não há nada
além de manequins de poder, mas a ilusão mecânica do poder ainda governa a ordem social,
atrás da qual cresce o terror ausente e ilegível do controle, o terror de um código definitivo, do
qual somos os minúsculos terminais.
A representação de ataque também já não tem muito significado. Percebe-se muito claramente,
pela mesma razão, que todos os conflitos estudantis (como é o caso, de forma mais ampla, ao nível da
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sociedade global) em torno da representação, a delegação de poder não passa de vicissitudes


fantasmas que ainda conseguem, no desespero, ocupar a primeira linha do palco. Através do
efeito não sei que Mobius, a própria representação também se voltou sobre si mesma, e todo o
universo lógico do político se dissolve ao mesmo tempo, cedendo seu lugar a um universo
transfinito de simulação, onde desde o início ninguém não é mais representado nem
representativo de nada, onde tudo o que foi acumulado é desacumulado ao mesmo tempo,
onde até mesmo o fantasma axiológico, diretivo e recuperável do poder desapareceu. Um
universo ainda incompreensível, irreconhecível, para nós, um universo com uma
curva maléfica à qual as nossas coordenadas mentais, ortogonais e preparadas para a infinita
linearidade da crítica e da história, resistem violentamente. No entanto, é aí que se deve lutar,
se é que a luta ainda tem algum significado. Somos simuladores, somos simulacros (não no
sentido clássico de “aparência”), somos espelhos côncavos irradiados pelo social, uma
radiação sem fonte de luz, poder sem origem, sem distância, e é neste universo tático de o
simulacro que será necessário combater - sem esperança, a esperança é um valor fraco, mas
no desafio e no fascínio.
Porque não se deve recusar o intenso fascínio que emana desta liquefação de todo o poder, de
todos os eixos de valor, de toda a axiologia, incluindo a política. Este espectáculo, que é ao
mesmo tempo o dos estertores da morte e o apogeu do capital, ultrapassa em muito o da
mercadoria descrito pelos situacionistas. Este espetáculo é a nossa força essencial. Já não
estamos numa relação com o capital de forças incertas ou vitoriosas, mas numa relação política,
que é o fantasma da revolução. Estamos numa relação de desafio, de sedução e de morte em
relação a este universo que não é mais um, justamente por toda axialidade que lhe
escapa. O desafio que o capital nos dirige no seu delírio - liquidar sem vergonha a lei do lucro,
da mais-valia, das finalidades produtivas, das estruturas de poder, e encontrar no final do seu
processo a profunda imoralidade (mas também a sedução) dos rituais primitivos de destruição ,
este mesmo desafio deve ser elevado a um nível insanamente mais alto. O capital, tal como o
valor, é irresponsável, irreversível, inelutável. Só ao valor o capital é capaz de oferecer
um espectáculo fantástico da sua decomposição - só o fantasma do valor ainda flutua sobre o
deserto das estruturas clássicas do capital, tal como o fantasma da religião flutua sobre um
mundo há muito dessacralizado, tal como o fantasma do conhecimento flutua sobre a
universidade. Cabe a nós voltar a ser os nômades deste deserto, mas desvinculados da ilusão
mecânica de valor. Viveremos neste mundo, que para nós tem toda a estranheza
inquietante do deserto e do simulacro, com toda a veracidade dos fantasmas vivos, dos animais
errantes e simulados que o capital, que a morte do capital fez de nós - porque o deserto das
cidades é igual ao deserto de areia - a selva dos signos é igual à das florestas - a vertigem dos
simulacros é igual à da natureza - só resta a sedução vertiginosa de um sistema moribundo, em
que o trabalho enterra o trabalho , em que o valor enterra o valor - deixando um espaço
virgem, sagrado, sem caminhos, contínuo como queria Bataille, onde só o vento levanta a
areia, onde só o vento zela pela areia.

O que se pode fazer com tudo isso na ordem política? Muito pouco.

Mas também temos de lutar contra o profundo fascínio exercido sobre nós pelos estertores
da morte do capital, contra a encenação do capital da sua própria morte, quando somos
realmente nós que estamos nas nossas horas finais. Deixar-lhe a iniciativa da sua própria
morte é deixar-lhe todos os privilégios da revolução. Rodeados pelo simulacro do valor e pelo
fantasma do capital e do poder, estamos muito mais desarmados e impotentes do que quando rodeados de
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a lei do valor e da mercadoria, uma vez que o sistema se revelou capaz de integrar a
sua própria morte e uma vez que estamos isentos da responsabilidade por esta
morte e, portanto, do risco da nossa própria vida. Este ardil supremo do sistema,
o do simulacro da sua morte, através do qual ele nos mantém em vida ao ter
liquidado por absorção toda a negatividade possível, só um ardil superior pode deter.
Desafio ou ciência imaginária, só uma patafísica dos simulacros poderá nos tirar da
estratégia de simulação do sistema e do impasse de morte em que nos aprisiona.
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O ÚLTIMO TANGO DO VALOR

Onde nada está em seu lugar, reside a desordem


Onde no lugar desejado não há nada, está a ordem
-Brecht

Pânico dos dirigentes universitários diante da ideia de que os diplomas serão concedidos sem contrapartida
de trabalho “real”, sem equivalência de conhecimentos. Este pânico não é o da subversão política, é o de
ver o valor dissociar-se do seu conteúdo e começar a funcionar sozinho, de acordo com a sua própria
forma. Os valores da universidade (diplomas, etc.) proliferarão e continuarão a circular, um pouco
como o capital flutuante ou os eurodólares, espiralarão sem critérios referenciais, completamente
desvalorizados no final, mas isso não importa: a sua circulação por si só é suficiente para criar um horizonte
social de valor, e a presença fantasmagórica do valor fantasma só será maior, mesmo quando o seu
ponto de referência (o seu valor de uso, o seu valor de troca, a “força de trabalho” académica que a
universidade recupera) se perder. Terror de valor sem equivalência.

Esta situação apenas parece ser nova. É assim para aqueles que ainda pensam que na universidade se
realiza um verdadeiro processo de trabalho e que investem nisso a sua experiência vivida, as suas
neuroses, a sua razão de ser. A troca de signos (de conhecimento, de cultura) na universidade, entre
“professores” e “ensinados”, há algum tempo não passa de uma duplicação
conluio de amargura e indiferença (a indiferença dos signos que traz consigo o descontentamento das
relações sociais e humanas), um duplo simulacro de um psicodrama (o de uma exigência quente de vergonha,
presença, troca edípica, com incesto pedagógico que se esforça para substituir pela troca perdida de
trabalho e conhecimento). Neste sentido, a universidade continua a ser o local de uma iniciação desesperada
à forma vazia do valor, e aqueles que lá viveram nos últimos anos estão familiarizados com este estranho
trabalho, o verdadeiro desespero do não-trabalho, do não-conhecimento. Porque as gerações atuais ainda
sonham em ler, em aprender, em competir, mas o seu coração não está nisso - no seu conjunto, a
mentalidade cultural ascética administrou o corpo e os bens. É por isso que a greve já não significa
nada.*l

É também por isso que fomos encurralados, encurralámo-nos, depois de 1968, em dar diplomas a toda a
gente. Subversão? De jeito nenhum. Mais uma vez fomos os promotores da forma avançada, da forma
pura do valor: diplomas sem trabalho. O sistema não quer mais diplomas, mas quer isso - valores
operacionais no vazio - e fomos nós que o inauguramos, com a ilusão de fazer o contrário.

A angústia dos alunos por terem diplomas conferidos sem complemento de trabalho é igual à dos
professores. É mais secreto e mais insidioso do que a tradicional angústia do fracasso ou de
receber diplomas sem valor. O seguro sem riscos no diploma – que esvazia as vicissitudes do conhecimento
e da seleção de conteúdos – é difícil de suportar. Também deve ser complicado por um benefício - álibi, um
simulacro de trabalho trocado por um simulacro de diploma, ou por uma forma de agressão (o professor
chamado a ministrar o curso, ou tratado como distribuidor automático) ou por rancor , de modo que pelo
menos ainda aconteça algo que se assemelhe a uma relação “real”. Mas nada funciona.

Mesmo as brigas domésticas entre professores e alunos, que hoje constituem um grande
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parte das suas trocas, nada mais são do que a recordação e uma espécie de nostalgia de uma violência
ou de uma cumplicidade que até então os tornava inimigos ou os unia em torno de uma aposta de
conhecimento ou de uma aposta política.

A “dura lei do valor”, a “lei gravada na pedra” – quando nos abandona, que tristeza, que pânico! É por isso
que ainda restam bons dias para os métodos fascistas e autoritários, porque eles revivem algo da
violência necessária à vida - seja ela sofrida ou infligida. A violência do ritual, a violência do trabalho,
a violência do conhecimento, a violência do sangue, a violência do poder e do político é boa! É clara,
luminosa, as relações de força, as contradições, a exploração, a repressão! Isto está faltando hoje, e a
necessidade disso se faz sentir. O reinvestimento do poder do professor através da “liberdade de
expressão”, da autogestão do grupo e de outras bobagens modernas – ainda é tudo um jogo, por
exemplo, na universidade (mas toda a esfera política é articulada da mesma forma) . Ninguém está
enganado. Simplesmente para escapar à profunda desilusão, para escapar à catástrofe provocada pela
perda de papéis, estatutos, responsabilidades e pela incrível demagogia que através deles se
desenvolve, é necessário recriar o professor quer como um manequim de poder e de conhecimento,
quer como modelo de poder e conhecimento. ou investi-lo de um mínimo de legitimidade derivada da
ultraesquerda - caso contrário, a situação será intolerável para todos. É com base neste
compromisso – figuração artificial do professor, cumplicidade equívoca por parte do aluno – é com base
neste cenário fantasma da pedagogia que as coisas continuam e este tempo pode durar indefinidamente.
Porque existe um fim para o valor e para o trabalho, não existe nenhum para o simulacro do valor e do
trabalho. O universo da simulação é transreal e transfmite: nenhum teste de realidade acabará com ele
- exceto o colapso total e o deslizamento do terreno, que continua a ser a nossa mais tola esperança.

* Observação *

1. Além disso, as greves contemporâneas assumem naturalmente as mesmas qualidades do trabalho: a


mesma suspensão, o mesmo peso, a mesma ausência de objectivos, a mesma alergia às
decisões, a mesma viragem de poder, o mesmo luto de energia, a mesma circularidade indefinida
na greve de hoje como no trabalho de ontem, a mesma situação na contrainstituição e na instituição:
o contágio cresce, o círculo se fecha - depois disso será necessário emergir em outro lugar. Ou melhor, o
contrário: tomar este impasse como situação básica, transformar a indecisão e a ausência de objectivo
numa situação ofensiva, numa estratégia. Ao tentarem a qualquer preço sair desta situação
mortal, desta anorexia mental da universidade, os estudantes nada mais fazem do que insuflar
novamente energia numa instituição há muito em coma; é a sobrevivência forçada, é o remédio do
desespero que hoje se pratica tanto nas instituições como nos indivíduos, e que em toda parte é sinal da
mesma incapacidade de enfrentar a morte. “É preciso empurrar o que está em colapso”, disse Nietzsche.
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SOBRE O NIILISMO

O niilismo não usa mais as cores escuras, wagnerianas, spenglerianas e fuliginosas do final do século. Já não
provém de uma Weltanschauung de decadência nem de uma radicalidade metafísica nascida da morte
de Deus e de todas as consequências que devem ser tiradas desta morte. O niilismo de hoje é o da transparência,
e é em certo sentido mais radical, mais crucial do que nas suas formas anteriores e históricas, porque esta
transparência, esta irresolução é indissoluvelmente a do sistema, e a de toda a teoria que ainda
pretende analisar isto. Quando Deus morreu, ainda havia Nietzsche para dizê-lo – o grande niilista diante do
Eterno e o cadáver do Eterno. Mas antes da transparência simulada de todas as coisas, antes do simulacro
da realização materialista ou idealista do mundo na hiper-realidade (Deus não está morto, tornou-se hiper-
real), não existe mais um Deus teórico ou crítico que reconheça o seu próprio .

O universo, e todos nós, entramos vivos na simulação, na esfera maléfica, nem mesmo maléfica, indiferente,
da dissuasão: de uma forma bizarra, o niilismo foi inteiramente realizado não mais através da destruição, mas
através da simulação e da dissuasão. Do fantasma ativo e violento, do fantasma do mito e do estágio que ele
também foi, historicamente, passou para o funcionamento transparente, falsamente transparente, das coisas.

O que resta então de um possível niilismo na teoria? Que nova cena pode se desenrolar, onde nada e a morte
poderiam ser repetidos como um desafio, como uma aposta?

Estamos numa posição nova e sem dúvida insolúvel em relação às formas anteriores de niilismo:

O Romantismo é a sua primeira grande manifestação: corresponde, juntamente com a Revolução


Iluminista, à destruição da ordem das aparências.

O surrealismo, o dada, o absurdo e o niilismo político são a segunda grande manifestação, que corresponde
à destruição da ordem do sentido.

A primeira ainda é uma forma estética de niilismo (dandismo), a segunda, uma forma política, histórica
e metafísica (terrorismo).

Estas duas formas já não nos dizem respeito senão em parte, ou não nos dizem nada. O niilismo da
transparência já não é nem estético nem político, já não se baseia nem no extermínio das aparências, nem na
extinção das brasas do sentido, nem nas últimas nuances de um apocalipse. Não há mais apocalipse (apenas
o terrorismo aleatório ainda tenta refleti-lo, mas certamente não é mais político, e só lhe resta um modo
de manifestação que é ao mesmo tempo um modo de desaparecimento: a mídia - agora a mídia não são um
palco onde se toca algo, são uma faixa, uma pista, um mapa perfurado do qual já não somos nem espectadores:
receptores). O apocalipse acabou, hoje é a precessão do neutro, das formas do neutro e da indiferença.
Deixo para considerar se pode haver um romantismo, uma estética do neutro nisso. Creio que não - resta
apenas o fascínio pelas formas desérticas e indiferentes, pelo próprio funcionamento do sistema
que nos aniquila.

Ora, o fascínio (em contraste com a sedução, que estava ligada às aparências, e à
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a razão dialética, que estava ligada ao sentido) é uma paixão niilista por excelência, é a paixão própria do
modo de desaparecimento. Somos fascinados por todas as formas de desaparecimento, do nosso
desaparecimento. Melancólica e fascinada, tal é a nossa situação geral numa era de transparência
involuntária.

Eu sou um niilista.

Observo, aceito, assumo o imenso processo de destruição das aparências (e de sedução das aparências) ao
serviço do sentido (representação, história, crítica, etc.) que é o facto fundamental do século XIX. A
verdadeira revolução do século XIX, da modernidade, é a destruição radical das aparências, o desencanto do
mundo e o seu abandono à violência da interpretação e da história.

Observo, aceito, presumo, analiso a segunda revolução, a do século XX, a da pós-modernidade, que é
o imenso processo de destruição do sentido, igual à destruição anterior das aparências. Aquele que
ataca com significado é morto pelo significado.

A fase dialética, a fase crítica, está vazia. Não há mais palco. Não existe terapia do significado ou
terapia através do significado: a própria terapia faz parte do processo generalizado de indiferenciação.

A própria fase da análise tornou-se incerta, aleatória: as teorias flutuam (na verdade, o niilismo é
impossível, porque ainda é uma teoria desesperada mas determinada, um imaginário do fim, uma
weltanschauung da catástrofe).*1

A própria análise é talvez o elemento decisivo do imenso processo de congelamento do significado. O


excedente de sentido que as teorias trazem, a sua competição ao nível do sentido é completamente
secundária em relação à sua coligação na operação glacial e de quatro níveis de dissecação e transparência.
É preciso ter consciência de que, por mais que proceda a análise, ela caminha para o congelamento do
sentido, auxilia na precessão dos simulacros e das formas indiferentes. O deserto cresce.

Implosão de sentido na mídia. Implosão do social nas massas. Crescimento infinito das massas em função da
aceleração do sistema. Impasse energético. Ponto de inércia.

Um destino de inércia para um mundo saturado. Os fenômenos da inércia estão se acelerando (se é que se
pode dizer isso). As formas detidas proliferam e o crescimento fica imobilizado em excrescência.
Tal é também o segredo da hipertelia, daquilo que vai além do seu próprio fim. Seria o nosso próprio modo
de destruir finalidades: ir mais longe, longe demais na mesma direção – destruição do significado através da
simulação, da hipersimulação, da hipertelia.
Negar o seu próprio fim através da hiperfinalidade (o crustáceo, as estátuas da Ilha de Páscoa) – não será este
também o segredo obsceno do cancro? Vingança da excrescência sobre o crescimento, vingança da velocidade
sobre a inércia.

As próprias massas são apanhadas num gigantesco processo de inércia através de


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aceleração. Eles são esse processo excrescente e devorador que aniquila todo crescimento e todo significado
excedente. Eles são este circuito curto-circuitado por uma finalidade monstruosa.

É este ponto de inércia e o que acontece fora deste ponto de inércia que hoje é fascinante,
apaixonante (desapareceu, portanto, o charme discreto da dialética). Se é niilista privilegiar este
ponto de inércia e a análise desta irreversibilidade dos sistemas até ao ponto sem retorno, então sou um
niilista.

Se é niilista ficar obcecado pelo modo de desaparecimento, e não mais pelo modo de produção, então sou
um niilista. Desaparecimento, aphanisis, implosão, Fúria de Verschwindens. A transpolítica é a
esfera eletiva do modo de desaparecimento (do real, do sentido, do palco, da história, do social, do
individual). Para dizer a verdade, já não se trata tanto de niilismo: no desaparecimento, na forma desértica,
aleatória e indiferente, já não existe sequer o pathos, o patético do niilismo - aquela energia mítica
que ainda é a força do niilismo, da radicalidade, da negação mítica, da antecipação dramática. Já nem é
desencanto, com a tonalidade sedutora e nostálgica, ela própria encantada, do desencanto. É
simplesmente desaparecimento.

O traço dessa radicalidade do modo de desaparecimento já se encontra em Adorno e Benjamin,


paralelamente a um exercício nostálgico da dialética. Porque há uma nostalgia da dialética, e sem dúvida a
dialética mais sutil é nostálgica para começar. Mas, mais profundamente, há em Benjamin e Adorno outra
tonalidade, a de uma melancolia ligada ao próprio sistema, que é incurável e está além de qualquer
dialética. É esta melancolia de sistemas que hoje prevalece através das formas ironicamente
transparentes que nos rodeiam. É esta melancolia que se está a tornar a nossa paixão fundamental.

Não é mais o baço ou os vagos anseios da alma do fim do século. Também já não é o niilismo, que em
certo sentido visa normalizar tudo através da destruição, da paixão do ressentimento (ressentimento).*2 Não,
a melancolia é a tonalidade fundamental dos sistemas funcionais, dos actuais sistemas de simulação, de
programação e de informação.
A melancolia é a qualidade inerente ao modo de desaparecimento do sentido, ao modo de volatilização do
sentido nos sistemas operacionais. E somos todos melancólicos.

A melancolia é o descontentamento brutal que caracteriza os nossos sistemas saturados. Uma vez que a
esperança de equilibrar o bem e o mal, o verdadeiro e o falso, na verdade de confrontar alguns valores da
mesma ordem, uma vez que a esperança mais geral de uma relação de forças e de um interesse desapareceu.
Em todo o lado, sempre, o sistema é demasiado forte: hegemónico.

Contra esta hegemonia do sistema, pode-se exaltar as artimanhas do desejo, praticar a micrologia
revolucionária do quotidiano, exaltar a deriva molecular ou mesmo defender a cozinha. Isto não
resolve a necessidade imperiosa de verificar o sistema em plena luz do dia.

Isto só o terrorismo pode fazer.

É o traço de reversão que apaga o restante, assim como um único sorriso irônico apaga todo um discurso,
assim como um único lampejo de negação num escravo apaga todo o poder e poder.
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prazer do mestre.

Quanto mais hegemónico é o sistema, mais a imaginação fica impressionada com a mais pequena
das suas reversões. O desafio, ainda que infinitesimal, é a imagem de uma falha em cadeia. Só
esta reversibilidade sem contrapartida é um acontecimento hoje, no palco niilista e insatisfeito
do político. Só ela mobiliza o imaginário.

Se ser niilista é levar, até ao limite insuportável dos sistemas hegemónicos, este traço radical de
escárnio e de violência, este desafio que o sistema é convocado a responder através da sua
própria morte, então sou um terrorista e niilista em teoria como o outros estão com suas armas. A
violência teórica, e não a verdade, é o único recurso que nos resta.

Mas tal sentimento é utópico. Porque seria bonito ser niilista, se ainda existisse uma radicalidade
- como seria bonito ser terrorista, se a morte, incluindo a do terrorista, ainda tivesse sentido.

Mas é neste ponto que as coisas se tornam insolúveis. Porque a este niilismo activo da
radicalidade o sistema opõe o seu próprio, o niilismo da neutralização. O próprio sistema também é
niilista, no sentido de que tem o poder de transformar tudo, inclusive o que o nega, na indiferença.

Neste sistema, a própria morte brilha em virtude da sua ausência. (A estação ferroviária de Bolonha,
a Oktoberfest de Munique: os mortos são anulados pela indiferença, é aí que o terrorismo é cúmplice
involuntário de todo o sistema, não politicamente, mas na forma acelerada de indiferença que
contribui para impor.) Morte não não tem mais um palco, nem fantasmático nem político, no qual se
representar, se representar, seja cerimonial ou violento. E esta é a vitória do outro niilismo,
do outro terrorismo, do sistema.

Não há mais palco, nem mesmo a ilusão mínima que torna os acontecimentos capazes de adotar
a força da realidade - não há mais palco de solidariedade mental ou política: o que importam o
Chile, o Biafra, os barcos, Bolonha ou a Polónia? Tudo isso acaba sendo aniquilado na tela da
televisão. Estamos na era dos acontecimentos sem consequências (e das teorias sem
consequências).

Não há mais esperança de significado. E sem dúvida isso é bom: o significado é mortal. Mas aquilo a
que impôs o seu reinado efémero, o que esperava liquidar para impor o reinado do Iluminismo, isto é,
as aparências, elas são imortais, invulneráveis ao niilismo do sentido ou do próprio não-sentido.

É aqui que começa a sedução.

* NOTAS *

1. Existem culturas que não têm imaginário senão o da sua origem e não têm imaginário do seu fim.
Há quem seja obcecado por ambos... Outros dois tipos de figuras são possíveis... Não tendo
nenhum imaginário exceto o do fim (nossa cultura, niilista). Não tendo mais nenhum imaginário,
nem da origem nem do fim (aquilo que está por vir,
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aleatório).

2. Cf. O uso da palavra "ressentimento" por Nietzsche em Assim Falou Zaralhustra.-


TRANS.

~ O Fim ~

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