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O LABIRINTO

UTÓPICO

Manuel Rubio Godinho


1
ÍNDICE
PRÓLOGO .................................................................................... 4

Capítulo I - O MINOTAURO ........................................................ 9


1.1. A mediação entre a realidade e a utopia ........................ 9
1.2. Ideal…, mas não escravo ............................................. 12
1.3. Pré-conceitos em conceitos .......................................... 16

Capítulo II - O LABIRINTO ....................................................... 23


2.1. A insuficiência da dialética .......................................... 23
2.2. A sinalética como proposta .......................................... 28
2.3. O labirinto como prisão e habitat do minotauro ......... 32
2.4. A mediação entre a unidade e a individualidade......... 34

Capítulo III - O REI .................................................................... 41


3.1. Uma autoridade dis(u)tópica ........................................ 41
3.2. A sujeição ao erro ......................................................... 45
3.3. O agir e a utilidade ....................................................... 48

Capítulo IV - DÉDALO E ÍCARO .............................................. 53


4.1. O primeiro senhor do labirinto .................................... 53
4.2. Ação e relação: um problema antropológico............... 57
4.3. A opinião como alimento do ego .................................. 60

EPÍLOGO .................................................................................... 64

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3
PRÓLOGO

Desde os primórdios da elaboração do


pensamento filosófico (ou mais acertadamente
mitológico), o ser humano viu-se obrigado a
responder às interrogantes levantadas pelo limite
entre a realidade e a metafísica como um labirinto
lógico ou como uma procura constante de razões reais
que dessem provas a posteriori da existência de
realidades metafísicas ou imanentes ao próprio
homem.
Com certeza é do conhecimento do leitor
algumas dessas formulações como o mito do
minotauro ou o desenlace de Dédalo e Ícaro. De
ambos os mitos tiram-se conclusões racionais a partir
da analogia ou comparação empírica das realidades
que representam (ainda que fantasiosas): Nem
encerrar o híbrido homem-touro num labirinto, nem
escapar do próprio a partir de uma gambiarra voadora

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são solução para um problema maior: o labirinto em
si mesmo. Esconder atrás de encruzilhadas retórico-
sofísticas, paralelas e perpendiculares entre si uma
monstruosidade qualquer, não a vai fazer cair no
esquecimento nem aplacá-la. E muito menos alienar-
se da sua existência a partir de formulações
metafísicas em cadeia que permitem à razão ganhar
asas e voar num tão elevado conceito de si própria que
– tarde ou cedo – vê-se arrasada e pronta a cair do
precipício do “eu”. Ambas as tentativas são, sui
generis, suicidas.
O centro do labirinto é a certeza. É aquilo que
nos aponta o caminho para sair do labirinto sãos e
salvos do minotauro. Mas para encontrar o centro que
nos direciona é necessário, obviamente, a direção e o
sentido em si mesmos, isto é, a verdade. A
problemática central do pensamento e da gnoseologia
é exatamente este: a finalidade do mesmo. Quando o
objetivo é salvar-se do minotauro, a tentativa é
encontrar a saída do labirinto. Mas quando o objetivo

5
é deparar-se de frente com tal besta feroz não há saída
possível a não ser – em caso hipotético – que numa
batalha com o monstro este saia derrotado ou morto.
Porém, novamente o problema principal impõe-se
sem solução aparente. Numa formulação
praticamente oposta, a ideia de Dédalo e Ícaro parece,
a priori, a mais razoável ainda que arriscada: sair do
labirinto de forma antitética ao seu princípio e função.
Novamente, o problema que o labirinto é em si
mesmo continua presente.
No fundo, parece que a única solução que resta
é a de destruir o labirinto. Mas será que, arrasando-o,
vemo-nos livres da sua função prisional para com a
besta que o habita? Ou melhor, vê-se o minotauro
sepultado debaixo dos destroços e escombros do
labirinto? Não irá antes fugir e retomar a guerra contra
aqueles que o aprisionaram e do qual se serviam para
punir aqueles que sabiam da sua existência, bem como
os que tinham pleno conhecimento das entradas e
saídas do labirinto por terem sido os seus

6
construtores? Mas claro, caríssimo leitor, tudo isto
não passa da análise de um simples mito, não é
verdade?

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8
Capítulo I
O MINOTAURO
“O poeta é um fingidor.
Finge tão completamente,
Que chega a fingir que é dor,
A dor que deveras sente.”
(Fernando Pessoa, Autopsicografia)

1.1. A mediação entre a realidade e a


utopia
Antes de adentrar-nos no tema sobre a figura
mitológica em questão, gostaria de propor duas
questões basilares ao leitor: o que é a realidade? E o
que é a utopia? Parecem, a priori, conceitos
antagónicos, onde o primeiro baseia-se numa
conceptualização da objetividade empírica e real da
res (ainda que essa objetividade seja o conjunto das
perspetivas subjetivas dos diferentes ramos ou áreas
do saber) e, por sua vez, o segundo manifesta um ideal
do que deveria ser o objeto do conhecimento em si

9
mesmo. Tem-se, portanto, um conceito (que parte da
realidade) e um conceito prévio à realidade ainda por
atingir, isto é, um pré-conceito (que surge do ideal
utópico) sobre o objeto gnoseológico.
Assim, enquanto o conceito é a abstração
linguística que serve para remeter o sujeito para
determinada realidade, o pré-conceito remete o
mesmo não para a realidade (seja ela presente,
passada ou futura) mas sim para a abstração da
mesma, isto é, para um conceito prévio ao pré-
conceito inicial. No fundo, trata-se de uma
gnoseologia quiástica, em espelho, onde a realidade
especifica-se em conceitos e a utopia alarga-se em
pré-conceitos. Porém, ambos dão a ideia de
especificidade e discriminação de determinado
objeto; o problema é que uma perspetiva é real e a
outra é virtual.
Neste sentido, onde se encontra o ponto de união
entre a utopia e a realidade? No justo meio
aristotélico? Na cointidentia opositorum de Nicolau

10
de Cusa? Talvez… Dependendo do que se entende
por justo meio ou cointidentia opositorum, pois a
forma como estes conceitos se entendem dependem
da forma como a eles se chega, ou seja, dependem da
perspetiva de análise. Ora, para evitar mal-entendidos
acerca da realidade em relação à utopia surgem duas
vias de possível mediação entre ambas: a verdade ou
uma personificação que a suplante e que seja, ao
mesmo tempo, idílica e real (minotauro). Aliás, a via
do encontro da verdade começa e percorre todo o
caminho da realidade, enquanto o culminar do
minotauro só é possível pelas sinuosas encruzilhadas
da utopia.
Agora, pelo facto de ter como ponto de partida o
pré-conceito e por critério basilar o pensamento
utópico, o minotauro apresenta-se como o ideal de
mediação. Intransponível e amedrontador, parece ser
a arma ideal de qualquer rei para derrotar os seus
inimigos. Confunde-se facilmente com a verdade e
promete tornar a utopia em realidade com uma

11
metodologia que é a priori concreta e bem definida:
tornar os pré-conceitos em conceitos.
Noutra perspetiva, a verdade como mediação tem
por base a realidade. Parte de razões concretas e tem
como objetivo realizar em plenitude a utopia. Não
como o minotauro, mas sim ao dar um significado e
um sentido aos conceitos sem se preocupar em
esmiuçar a utopia. Sabe que a plenitude do conceito é,
in se, uma já utopia realizada. Contudo, não é tão
intransponível e amedrontadora como o minotauro e,
claro está, é mais difícil de entender e encontrar. O
minotauro, por seu lado, deixa-se encontrar com
facilidade e, nas mãos certas, é a arma perfeita para
tentar realizar a utopia subjetiva.

1.2. Ideal…, mas não escravo


Porém, pode ser domesticada uma besta criada
com o intuito de destruir tudo aquilo que se oponha
aos seus princípios? Como pode o minotauro sujeitar-
se à realidade que ele não representa? Não pode. Por
12
isso, além de destruir os inimigos do rei que o
procurou domesticar, acabará por atacar o seu próprio
amo. Como diz um ditado popular espanhol “crea
cuervos y te sacarán los ojos” (cria corvos e sacar-te-
ão os olhos). No fundo, a passagem do subjetivo
utópico ao objetivo real não pode ser controlada pelo
sujeito a partir do momento em que se concretiza.
Torna-se uma reação em cadeia desenfreada ora de
ações desoladoras do minotauro, ora de justificações
do sujeito que o criou. O primeiro destrói; e o segundo
em, vão, procura a todo o custo justificar a desolação
que o primeiro realiza.
Os problemas advêm quando o sujeito utópico vê-
se pressionado pelos outros sujeitos que o rodeiam em
relação à criação da besta. É nesse sentido que o
sujeito (rei) vê-se obrigado a enclausurar a sua
criatura num labirinto retórico-sofístico. Labirinto
que serve tanto para o sujeito se vangloriar de ser o
detentor do monstro como para usufruir a seu bel-
prazer dele, como uma espécie de refúgio com o qual

13
ameaça aqueles que não aderem às suas causas e,
como é óbvio, para controlar, conter e esconder a
besta da vista de todos.
Por conseguinte, o sujeito é convidado a discernir;
antes de mais a distinguir a verdade do minotauro.
Sabendo as consequências que a besta traz consigo,
optar pela verdade. Nesse caso, não há sequer
necessidade de erguer um labirinto em torno do ponto
de encontro entre a realidade e a utopia, pois não há
necessariamente nada a esconder. A realidade é o que
é. Tal elação permite-nos perceber que a verdade
impõe-se de forma externa ao sujeito. E, por sua vez,
o sujeito é livre de optar pela verdade ou não (chama-
se a isso livre-arbítrio).
Mas o minotauro impõe-se interiormente ao
sujeito, visto que não tem qualquer concretização real
e objetiva (no que concerne ao conhecimento, não à
praxis). Ora, por ser uma imposição interna e
subjetiva, o minotauro não é matéria de estudo, mas
sim de crença. Porém, é uma crença completamente

14
infundada sem qualquer tipo de justificação
verossímil ou plausível, exterior à interioridade do
sujeito que prove a sua necessidade real.
Claro está, o minotauro não é estúpido. Saber
utilizar as suas qualidades para dar o golpe perfeito e
certeiro. Muitos são os sujeitos que aderem à causa do
minotauro, ora pela vã esperança na sua força e
mediação, ora por se achar possível a existência de
diálogo entre este e a verdade. Acaso pode haver
convergência de ideias entre a proposição e a
imposição? Pode um ser humano “fundir-se” com o
seu reflexo num espelho? Ao aproximar-se não
esbarrará o rosto no vidro que os separa? E mais:
quem é dono de quem? O reflexo manda no homem
ou é o homem que manda no seu reflexo? Lamento
dizer-lhe, caro leitor, que se achar que a verdade é o
conjunto das opiniões de todos os sujeitos somadas e
metidas dentro de uma peneira ou filtro lógico está
completamente enganado. A verdade é a
imparcialidade em relação às opiniões, incluindo a

15
nossa própria. Caso contrário, incorreríamos no lapso
de transformar a verdade num novo minotauro.
Em suma, pode-se perceber que encerrar a besta no
labirinto não vai resolver o problema. Por mais bonito
ou atraente que seja o labirinto, qualquer um sabe que
no seu interior encontra-se uma monstruosidade
violenta. A verdade, por seu lado, não se impõe pela
força ou pressão. Impõe-se sim pelo que é: o encontro
da realidade em plenitude; é o conjunto dos factos e
não das opiniões.

1.3. Pré-conceitos em conceitos


A constante insistência do minotauro é, como
vimos, fazer os sujeitos pensarem que os pré-
conceitos da utopia de que ele é filho são os conceitos
reais e objetivos, transformando assim a utopia numa
hipotética realidade. Contudo, em que é que tal ação
altera a realidade e a verdade? Dando um simples
exemplo: o minotauro impõe aos sujeitos a

16
substituição do conceito “canetas” por “garrafas”.
Mas acaso as novas “garrafas” e antigas “canetas” vão
deixar de servir para escrever? Ou deixarão de ter um
tubo com tinta no seu interior? Muda-se o conceito em
pré-conceito, mas não a realidade. O que muda, isso
sim, é a forma como os sujeitos vão entender a
realidade.
É aqui que nasce o problema central das
formulações utópicas. Ainda que a realidade não se
altere, o entendimento do sujeito sobre ela sim.
Quando esse outro tipo de entendimento da realidade
não se coaduna com a verdade só resta uma
alternativa: acreditar que a ilusão é que nos oferece a
resposta. Mas pode alguém dizer eu acredito que isto
é a realidade, quando os factos reais são outros? Se o
fizer volta ao início da questão, pois está a ir contra o
factum objetivo para dar lugar a um fieri subjetivo.
Tal não é possível e, em si mesmo, é volátil, visto que
basta outro fieri subjetivo entrar em confronto com o

17
primeiro para ambos se anularem, perdendo assim
toda a sua credibilidade.
Mas o sujeito necessita de um fieri; o
conhecimento não é estanque, vai-se alterando por ser
um caminho constante para alcançar a verdade. Logo,
o fieri é necessário sim, mas objetivo. Por isso, só o
conjunto dos fieri objetivos nos dá o factum. Ora, para
encontrar o fieri objetivo – ou vários – a sua origem
não pode partir da perspetiva do sujeito, ou seja, não
é interno. É, antes, externo ao sujeito. Contudo, tal
solução não conduziria o sujeito à incerteza? Sim se
tivermos em consideração o sujeito como único
detentor da verdade. Porém, é de mencionar o que
havia afirmado o grande físico N. Bohr acerca da
forma de estudar o comportamento da energia
eletromagnética que ficou conhecido como Princípio
da Complementaridade.1 O mesmo pode-se afirmar
para o factum e o fieri: são dois princípios

1
“Onda e partícula são dois aspetos complementários da
realidade, dos quais um desaparece quando o outro é necessário” (Niels
Bohr).

18
complementários da mesma realidade; a sua
necessidade depende da perspetiva de análise do real.
Contudo, isto não significa que o minotauro
possua certeza e veracidade. Caso contrário, já teria
encontrado a direção para sair do labirinto. A
incerteza acaba quando estiverem reunidas as
condições de criam o factum. Mas é o factum eterno?
Não. Como vimos, a verdade não é estanque, logo, o
factum torna-se sempre fieri cada vez que se
levantarem dúvidas acerca da sua veracidade.2 Mas as
questões sobre a veracidade do factum levantadas
pelo minotauro não são, em nada, construtivas. Ou

2
Rancière defende a igualdade das inteligências a partir do factum
e não da ideia. O problema surge quando se tem o factum ora como meta,
ora como princípio. Com efeito, a atenção única e exclusiva pelo factum
acaba por negar o devir do fieri da realidade. Mas relativizar ou ocultar os
facta é também pôr em causa o próprio valor da realidade e, em
consequência, também o fieri. No fundo, a posição de Rancière não entende
factum e fieri como dois princípios complementários que não podem
entender-se por separado, mas que devem ser entendidos em conjunto (Cf.
Princípio da Complementaridade de Bohr). Neste sentido, a igualdade das
inteligências não existe tal como nos é apresentada por Rancière (que mais
é uma adaptação e deturpação da dialética do senhor e do escravo hegeliana
aplicada à teoria do conhecimento), mas sim no sentido em que todos os
seres humanos a possuem e da qual se servem consoante as circunstâncias
que lhe são apresentadas (aquilo que um sujeito conhece pode ser
desconhecido por outro e vice-versa), daí a necessidade de
interdisciplinaridade no saber.

19
melhor, não procuram fazer um esclarecimento sobre
a realidade, mas – isso sim – pô-la tão excessivamente
em causa que acaba por conduzir os sujeitos não ao
encontro de propostas, mas sim ao seu confronto. Não
à unidade, mas sim à individualidade.
Tais conclusões permitem-nos agora entender a
diferença entre hipóteses e ideias. A hipótese de
realidade é a proposta subjetiva sobre o que é ou não
verdade que, por ser proposta, está sujeita ou ao
aceitamento ou à negação. Porém, não tem como
objetivo principal impor-se às outras hipóteses
existentes – que é o que faz a ideia. A própria hipótese
em si não é detentora da verdade. Aliás, a verdade não
se deixa aprisionar, e só quem tem consciência disso
procura conhecê-la não a partir de si próprio, mas sim
das hipóteses lançadas pelos outros sujeitos do
conhecimento. Mas é a hipótese o ponto de partida
para alcançar a meta da verdade. Chega-se a alcançar
tal meta? Quem sabe… Talvez sim, ou talvez não.

20
Mas esse problema parte da disponibilidade do sujeito
para a encontrar.

21
22
Capítulo II
O LABIRINTO

“Vivemos num tempo de fins concretos e meios confusos.”


(Albert Einstein)

2.1. A insuficiência da dialética

A formulação racional que, num primeiro âmbito,


parece ser mais simples e, ao mesmo tempo, capaz de
abarcar em si a densidade dos conceitos que articulam
o raciocínio é a dialética. Este esquema platónico de
chegar a uma determinada conclusão pretende que a
conclusão do raciocínio (síntese) seja o consenso
entre a tese e a antítese, ou seja, entre um parâmetro e
a sua radical oposição. Só pelo confronto de tese e
antítese é que se alcança a síntese.
O problema da dialética pode dividir-se em duas
raízes fundamentais: primeiro, por partir do confronto

23
entre a realidade (tese) e a ideia utópica sobre o que
deveria ser o real (antítese), isto é, centra-se no debate
aceso entre o conceito e o seu pré-conceito
correspondente na procura do meio termo entre a
realidade e a utopia; segundo, pelo facto de ser bellum
opositorum – e não cointidentia opositorum – o meio
termo acaba por ser mais uma justificação subjetiva
do próprio confronto do que propriamente a
objetividade procurada. No fundo, a dialética como
esquema racional diz ao sujeito aquilo que ele quer
ouvir e, nesse caso, torna-se novamente pré-conceito
(ou ideia se quisermos). Então, como pode a síntese
de um primeiro esquema dialético servir de tese para
um segundo? Não pode, visto que estaríamos a
confrontar dois pré-conceitos, pelo que a nova síntese
seria única e exclusivamente de âmbito utópico, não
podendo verificar-se na realidade.
Servindo-nos de um exemplo dialético aplicado ao
esquema categórico de silogismo aristotélico: se a
tese for universal e afirmativa, a antítese deve ser,

24
obrigatoriamente, particular e negativa. A primeira
tendência do sujeito é afirmar que existem duas
soluções possíveis: a primeira universal e negativa e a
segunda particular e afirmativa. Nesse caso, teríamos
duas sínteses e não uma, o que iria contra o esquema
lógico donde se depreende que de uma premissa
universal afirmativa e de outra particular negativa
conclui-se uma formulação também particular e
negativa. No fundo, o raciocínio estaria errado e é, em
última instância, falacioso. Porém, tendo por síntese
uma conclusão particular e negativa dá-se primazia à
antítese e não à tese, isto é, à ideia utópica e não à
proposta real. Poder-se-ia, então, encontrar uma tese
particular e negativa e uma antítese universal e
afirmativa, tendo, efetivamente, uma síntese
particular e negativa, não em ordem utópica, mas sim
em ordem real. Nesse caso, o raciocínio dialético está
correto em ordem lógica, dando também primazia à
realidade da tese. Contudo, a síntese é fruto do
confronto dos opostos e não da sua coincidência.

25
Parece um tanto difícil ao sujeito descobrir uma
síntese que vá de encontro à realidade e que, ao
mesmo tempo, justifique a utopia. Se encontrar uma
síntese um tanto válida, esta acaba por justificar a
utopia apenas no âmbito lógico. Escusado é de referir
que se a dialética não estiver determinada pela lógica
é toda ela inválida e fora da realidade e verdade. Neste
sentido, a síntese não é propriamente sín-tese
(conjunto da tese) mas sim hipó-tese (por baixo da
tese), pois não está somente determinada pela
realidade da tese, mas também por algo utópico que
se procura verificar na ordem do real, ou seja, o pré-
conceito associado à antí-tese (contra a tese). Mesmo
assim, esta síntese primária ou hipótese dá-nos, ao
menos, uma premissa válida para um posterior
desenvolvimento gnoseológico. Porém já não
dialético, o que prova o limite desta forma de
raciocínio.
Na nossa perspetiva, a forma mais correta e com
menor margem de erro para encontrar uma hipótese

26
válida é a observação da realidade e a imparcialidade
primária em relação a uma pré-conceptualização
filosófica. A simples observação imparcial, comunica
ao sujeito, num primeiro momento, os facta da
realidade bruta. É, porém, tarefa do sujeito tornar
esses facta em matéria cognoscível – racional – a
partir do fieri que compõe toda a realidade.
No fundo, a noção de que a realidade altera-se
consoante a perspetiva de análise é o axioma objetivo
que se impõe ao sujeito antes de realizar qualquer
formulação gnoseológica. Isso conduz o sujeito a
lançar as suas hipóteses junto das hipóteses dos outros
sujeitos que também retiraram os mesmos facta e que
os analisaram numa perspetiva diferente. Trata-se, em
última instância, da interdisciplinaridade do
conhecimento científico e deste com os outros ramos
do saber humano. Utilizar o conhecimento científico
como justificação de um método filosófico – ou partir
de um desses métodos filosóficos para elaborar um
pensamento científico – é desprovê-lo de toda a sua

27
veracidade. O correto é desenvolver uma gnoseologia
científica e verificar se ela se coaduna com um
pensamento filosófico existente. Se não houver
pontes de encontro, não há necessidade de forçar essas
analogias inexistentes: o método filosófico em
questão é inverificável na realidade.

2.2. A sinalética como proposta

Com certeza o leitor sabe o que é a sinalética.


Basta pensar, por exemplo, no código da estrada; na
sinalização rodoviária. Para que servem os sinais?
Principalmente para comunicar ao condutor como
deve adequar o seu modo de condução à situação que
lhe é apresentada.
Se o semáforo está vermelho, o condutor deve
parar o veículo e se estiver verde deve seguir a
trajetória. Neste sentido, o sinal em si mesmo não
obriga o condutor a avançar, ou seja, não interfere
diretamente nem no condutor nem no veículo. São

28
apenas luzes que dão indicações. Se quisermos,
poderíamos imaginar um semáforo composto por
outras luzes e cores, ou seja, em vez de verde e
vermelho, poderia ser púrpura e azul, por exemplo.
Mas não deixaria de ter a função de dar indicação ora
para avançar, ora para parar. Daí a irrelevância da cor,
e a primazia da função que desempenha. O que faz
então com que o condutor pare no vermelho e avance
no verde? Não as cores, nem o facto de ser um sinal
luminoso, mas sim as consequências de não obedecer
à indicação dada: um condutor que avance no sinal
vermelho está a arriscar a própria vida e a dos demais
condutores num possível acidente rodoviário e o
condutor que pare no sinal verde arrisca-se a criar um
congestionamento no trânsito. Daqui depreende-se a
noção de sinal: é todo o objeto que comunica ao
sujeito algo para além de si próprio.
Da mesma forma funciona a hipótese. Ela não é
um sinal, mas é sim o seu constituinte. No fundo, o
sinal é o composto das várias hipóteses. Dando um

29
novo exemplo: imaginemos um sinal de STOP; uma
hipótese seria a forma octogonal, outra hipótese ser
vermelho, outra hipótese a inscrição STOP no centro,
etc. Assim, o conjunto (sin) das hipóteses (lética) dá-
nos o sinal real e objetivo (tese).
Porém, é o sinal imagem da verdade absoluta?
Não. Relembro ao leitor que a tese (factum) como
constituinte da realidade sempre está sujeita ao
questionamento sobre a sua veracidade – pertence ao
fieri objetivo de ordem real. Ao mesmo tempo, as
hipóteses de que o sinal é formado são do âmbito
subjetivo e, portanto, dependentes de uma
determinada perspetiva de análise. O conjunto das
perspetivas subjetivas, linguisticamente traduzidas
por hipóteses, transmitem ao sujeito a tese que, por
sua vez, nada mais faz que dar-nos a direção ou
sentido para encontrar a verdade: é a certeza de
estarmos no rumo certo de encontro com a verdade
objetiva da realidade. É pelo facto de indicar um
sentido; um caminho para o encontro da verdade que

30
a tese se torna sinal. O sinal enquanto tal, como
vimos, é o que é. Não tem, a nível empírico, uma
descrição ou relatório completo sobre a verdade que
transmite ou representa. Mas dele retira-se o seu
sentido (verde – avançar; vermelho – parar).
Contudo, o leitor pode pensar que, nesse caso, a
existência da sinalética como teoria gnoseológica
implicaria necessariamente a sua concretização e
verificação a partir do sinólogo e não do diálogo. O
problema em questão é que o sinólogo depende da
conclusão, isto é, as hipóteses estão remetidas para
uma tese já premeditada; uma pré-conclusão. Como
tal, torna-se de ordem utópica e não de ordem real. Ao
mesmo tempo, a diálogo pode revestir-se de
insuficiência quando não se chega a uma nova
conclusão gnoseológica, ou seja, a algo
necessariamente novo. E, no pior dos sentidos, é
completamente perverso apresentar o sinólogo como
diálogo: e esta última afirmação, nada mais é que a
natureza do labirinto.

31
Porém, o grande facto curioso é que se da dialética
surgem como provas de verificação empírica as
construções sinológicas (ainda que erroneamente
designadas de dialógicas e científicas, quando, na
realidade, partem do pré-conceito de bellum
opositorum), da sinalética surge necessariamente a
verificação a partir do diálogo e não do sinólogo: esta
é a grande cointidentia opositorum.

2.3. O labirinto como prisão e habitat


do minotauro

Se a natureza do labirinto parte de uma distorção


linguística entre sinólogo e diálogo há,
necessariamente, insuficiência tanto na formulação
utópica que representa como no método gnoseológico
de que se serve. No fundo, se o minotauro impõe os
pré-conceitos como conceitos, o labirinto justifica a
existência do minotauro não só apoiando a sua
imposição gnoseológica como também transforma os

32
verdadeiros conceitos em pré-conceitos. Por outras
palavras, o minotauro impõe a utopia como realidade
necessária e o labirinto transforma a verdadeira
realidade em utopia.
Por conseguinte, o labirinto retórico-sofístico ora
serve de prisão para o minotauro – pois não o deixa
atuar consoante a sua natureza desoladora – como
também permite a sua subsistência e sobrevivência.
Assim, para além de se manter vivo, o minotauro vê-
se condicionado pelo labirinto; atua apenas contra
aqueles que o seu amo e senhor lhe dá como tributo e
não contra todos, mas, ao mesmo tempo, de nada lhe
adianta revindicar-se visto que a proteção que o
labirinto lhe oferece é-lhe também útil para não ser
destruído de vez.
É este o processo simbiótico entre o labirinto e o
minotauro. Esta relação de amor-ódio entre ambos,
ainda que útil ao minotauro, acaba por ser de maior
utilidade ao rei para manter o híbrido homem-touro
ocupado para este não se revoltar contra o seu senhor;

33
ao mantê-lo vivo e aprisionado serve de vanglória
para o rei e de instrumento necessário para punir os
que não aceitam nem o rei nem a existência do
minotauro e do seu covil de encruzilhadas.

2.4. A mediação entre a unidade e a


individualidade

Se o minotauro estabelece – erroneamente – a


mediação entre a realidade e a utopia (acabando por
dar primazia a esta última), o labirinto estabelece,
necessariamente, uma mediação entre a unidade dos
sujeitos e as suas respetivas consciências individuais.
Novamente, e à semelhança do minotauro, o labirinto
dá primazia à individualidade em relação à unidade.
Mas o facto curioso é que, em nome da consciência
individual, o labirinto apela à unidade. Porém, a
consciência individual a que o labirinto se refere nada
tem que ver com a consciência, mas sim com a

34
opinião subjetiva. Neste sentido, parece necessário
estabelecer a diferença entre opinião e consciência.
Como vimos anteriormente3, a verdade não se
depreende do conjunto das opiniões subjetivas.
Impõe-se externamente aos sujeitos porque não é sua
propriedade, mas sim da realidade objetiva. No fundo,
a opinião é o critério basilar para reunir as condições
e circunstâncias da bellum opositorum. Ora, se o
nosso objetivo é encontrar a cointidentia opositorum
entre a unidade e a individualidade (tal como
mencionámos para a mediação entre a realidade e a
utopia), não nos é possível ter como ponto de partida
a opinião. Primeiramente, porque a opinião é
subjetiva. Logo, o encontro entre duas opiniões acaba
por não conduzir o pensamento a uma meta visível,
perdendo-se num nevoeiro de (passo o pleonasmo)
certezas incertas. Em segundo lugar, por partir da
utopia, a opinião é do domínio da crença e não da
verdade.

3
Cf. 1.2 Ideal…, mas não escravo, p. 11.

35
A problemática que sucede à opinião é a perceção
subjetiva sobre si própria, isto é, sobre a consciência.
Com efeito, a consciência individual não se limita a
formular as opiniões subjetivas; também estabelece
hipóteses. Em última instância, a consciência
sobrepõe-se à opinião pelo facto de ser o núcleo desta
última e, como tal, irredutível apenas a uma das suas
formas de expressão. Contudo, a consciência
individual nunca é individual quando formula teses a
partir dos pré-conceitos sinológicos estabelecidos de
antemão por outros sujeitos. Aliás, acaba por tornar-
se a fonte de todas as ignorâncias.
Por conseguinte, é de referir que verdade,
consciência, autoridade e liberdade, são conceitos que
não se conseguem dissociar entre si.4 Sem o mínimo
de equilíbrio entre estas noções, acabar-se-á preso na

4
Foi a reflexão sobre estes quatro conceitos que estabeleceu a
passagem entre a era moderna e a era contemporânea da história ocidental.
De facto, a reflexão que antecede esta última (mais propriamente nos anos
que antecedem o Concílio de Trento, ainda na era moderna) tinha em vista
a noção de realidade. Neste sentido, o estudo da realidade acaba por
especificar-se nas indagações sobre a verdade, a consciência, a liberdade e
a autoridade e em como estas noções dão, na sua indissociabilidade, as
bases para a reflexão sobre a realidade objetiva.

36
crença, na libertinagem, na anarquia e/ou na
ignorância. Ora, se a função principal do labirinto é
justificar a interpretação do minotauro sobre os pré-
conceitos a partir da distorção linguística entre
sinólogo e diálogo, acabará por tornar crença,
libertinagem, ignorância e anarquia em verdade,
liberdade, consciência e autoridade respetivamente.
Então, é necessária uma autoridade que forme a
consciência individual a partir da verdade e da
liberdade e que, ao mesmo tempo, conduza a mesma
consciência para estas. No mesmo sentido e em pé de
igualdade, a verdade e a liberdade limitam a
autoridade sobre a consciência individual, permitindo
que esta não se veja subjugada ou escravizada pela
autoridade e vice-versa.
São estas relações que criam o que chamamos
unidade que, ao mesmo tempo, permitem ora que a
tensão entre estes conceitos, ora que as suas fusões
não se tornem demasiado excessivas. Caso contrário,
ter-se-ia ou um individualismo marcado pelo

37
relativismo, ou então um coletivismo subjetivista que
se orienta sempre segundo o mesmo esquema de
pensamento.5 Se quisermos, ambos desembocam em
totalitarismo gnoseológico ainda que de matizes
diferentes ou opostas.
Então, a questão que se coloca agora é: quem ou o
quê se encarrega de manter esse equilíbrio
harmonioso entre os conceitos analisados? Ao longo
da história muitas foram as respostas para esta
pergunta desde a religião, o Estado, a humanidade
toda, o “eu”, etc. Mas todas elas fracassaram quando
uma procurava vencer a outra em matéria de
abrangência no saber humano. Por isso, parece mais
acertada a resposta de que é a própria história a
grande mediadora, visto que os facta históricos do
passado foram fieri e possibilitam que se construa, no

5
Sem procurar entrar em debates sobre religião (pois não é esse o
objetivo da obra), devo referir que a imagem mais concreta e fácil para
entender a harmonia entre individualidade e unidade foi a figura do poliedro
lançada pelo Papa Francisco. De facto, a esfera seria o coletivismo
exacerbado e uma nuvem de pontos aleatórios será a imagem perfeita do
individualismo. Porém, a figura do poliedro exprime com muita clareza a
necessidade e urgência de unidade na pluralidade. O mesmo se pode aplicar
para o exemplo gnoseológico que analisamos.

38
presente, um novo fieri objetivo a partir dos facta já
encontrados com vista ao futuro. Em última instância,
como disse o grande filósofo oriental Confúcio,
“queres conhecer o futuro? Estuda [hoje] o
passado”.

39
40
Capítulo III
O REI

“Dá a tua máxima de forma que ela se torne lei universal e


necessária.”
(Kant)

3.1. Uma autoridade dis(u)tópica


No seguimento do que foi referido no parágrafo
2.4 acerca da autoridade e das suas relações com a
verdade, liberdade e consciência, parece agora
necessário debruçar-nos na autoridade que o rei tem
sobre o labirinto e sobre o minotauro.
Para o rei, o minotauro não passa de um
instrumento nas suas mãos para afirmar a sua
autoridade sobre a mediação entre a realidade e a
utopia. Ao soberano não lhe interessam os efeitos
desoladores da besta, apenas a sua utilidade. Quando
deixar de ser útil, será descartado. Então, porquê

41
encerrar o híbrido num labirinto? Para usufruir da sua
utilidade o máximo de tempo possível. O labirinto,
acaba por ser a última oportunidade que o rei tem de
manter a existência do minotauro.
Contudo, é o rei a favor da mediação entre a
realidade e a utopia estabelecida pelo minotauro?
Não. É então a favor da verdade? Infelizmente,
também não. Ao rei simplesmente interessa ser ele
mesmo o grande mediador, daí a constante
necessidade de ser superior à utopia da besta. Para
concretizar esse seu desejo, o rei instrumentaliza o
minotauro, fazendo-se passar por seu aliado. Mas, na
realidade, o objetivo do rei é fazer vingar a sua própria
utopia. Neste sentido, o que mais interessa ao
soberano é discordar do minotauro quanto à sua
mediação (o que está correto porque não é o
minotauro o verdadeiro mediador) e, ao mesmo
tempo, impor-se ele mesmo como mediação (daí
necessitar do minotauro e do labirinto onde este está
encarcerado).

42
Por conseguinte, o rei é – ao mesmo tempo – uma
autoridade distópica e utópica. Distópica para
aqueles que são contra a existência do minotauro e
utópica para aqueles que o adoram. O grande
problema levantado é o labirinto: sem ele, nem o rei
nem o minotauro conseguiriam sobreviver. Mas
destruir o labirinto é soltar a besta que instaurará a
desolação ao entrar em confronto direto com o rei. No
fundo, voltaríamos à bellum opositorum da dialética.
Então, como destruir o labirinto sem que utopia e
distopia se confrontem numa tentativa de imposições
de si mesmas?
Novamente, advém o conceito de autoridade. Para
que serve e como deve ser usada. Quais os seus limites
e quais os seus alcances. De facto, qual é o rei que
quer deixar o poder nas mãos de outra dinastia?
Simplesmente quer reinar consoante a sua forma de
entender a realidade, a liberdade, a verdade e a

43
consciência individual.6 Para isso, necessita de definir
novas áreas de alcance da sua autoridade e acabar com
certos limites que lhe são impostos.
A problemática que se impõe desta contradição da
autoridade com aparência de consensualidade acaba
por ser, em última instância, o método que a mesma
utiliza para mascarar a sua hipocrisia. Para tal efeito,
serve-se da sofística. Com efeito, criar paradoxos
constantes no raciocínio dos sujeitos, mais tarde ou
mais cedo, acabará por adquirir destes últimos a
aceitação e o consentimento. Percebe-se assim a
dependência tanto do rei como do minotauro ao
labirinto sofístico.

6
Daí existirem constituições e leis fundamentais que regem tanto
os cidadãos como todas as outras leis propostas pelos governos e
parlamentos democráticos, por exemplo. A autoridade que não respeitar,
minimamente, a constitucionalidade democrática, põe em causa aquilo que
essa mesma constituição representa, isto é, a identidade do povo e do país
a que se refere. O mesmo poder-se-ia definir para a Constituição dos
Direitos Humanos, etc.

44
3.2. A sujeição ao erro
Depois do analisado no parágrafo anterior,
podemos agora fazer a pergunta: o que é a
autoridade? Parece, num primeiro nível, possuir uma
resposta simples: é quem manda. Mas isso nada tem
de simples, mas sim de simplório. A autoridade é uma
dimensão puramente antropológica; é, se quisermos,
uma necessidade que o ser humano tem para se
organizar e viver em sociedade. Assim, a autoridade,
por ser uma formulação humana, está, tal como tudo
o que depende da consciência humana, sujeita ao erro.
Contudo, tal elação não significa que todas as
propostas da autoridade sejam erróneas ou indutivas
do erro. Mas também não significa que dele esteja
isento.
Por conseguinte, quando é que a autoridade está
errada? Precisamente quando algo na dimensão social
dos sujeitos adquire o caráter de conflitualidade. Não
necessariamente uma conflitualidade física ou de
violência, mas conflitualidade no sentido de debate;

45
de dúvida sobre a sua eficácia. Porém, o grave
problema que se impõe é a actuação da autoridade em
matéria que não é da sua competência.
Onde pode actuar a autoridade? Depende do tipo
de autoridade. Se falamos de uma autoridade de
matriz política, por exemplo, no fazer leis que vão de
encontro ao bem-estar da sociedade e de acordo com
o que se designa por “opinião” pública (termo que, na
nossa perspetiva, é redutor da consciência e do livre-
arbítrio da maioria social). Quando a autoridade
política ultrapassa o limite da sua área de actuação, ao
não fazer leis de acordo com a consciência da
sociedade em geral, ou ao facto de impregnar outras
áreas de actuação (como a cultura, a ciência, a justiça,
etc.) com uma determinada visão ideológica, não está
a cumprir o seu dever.
Mas a gravidade do mencionado problema
aumenta com o facto de a autoridade não querer
reconhecer a sua sujeição ao erro como qualquer outra
instância humana e social. No fundo, o rei encontra o

46
minotauro, domestica-o, os seus súbditos não
concordam com o agir do rei, o rei tenta disfarçar o
seu erro construindo um labirinto para encerrar o
híbrido. Moral da história: o rei continua a governar
como quer, o minotauro continua a existir e os
súbditos do rei continuam descontentes com o
acontecido.
Manifestam-se, assim, dois novos paradigmas: a
transição da actuação da autoridade dos limites do
agir social para os limites do conhecimento subjetivo
e, em consequência, a relativização dos conceitos
objetivos o que conduzirá os sujeitos sociais a
interpretarem a realidade de acordo com a visão da
autoridade e a agirem todos da mesma forma. No
fundo, trata-se de um pensamento uniforme, unilateral
e redutor da realidade e, como tal, da liberdade, da
consciência e da verdade.
Por isso, caro leitor, aconselho-o: tudo o que
manifestar ou representar um mundo onde a res é
apresentada como realidade a preto e branco, está

47
errada. O mundo e a realidade objetiva são bem
policromados.

3.3. O agir e a utilidade


Como vimos, o rei tem necessidade de preservar o
minotauro vivo num labirinto para usufruir da
utilidade bélica do mesmo. Com efeito, o minotauro
exerce uma autoridade por si só, em paralelo com a do
rei. Neste sentido, percebe-se o conflito entre os dois:
qual a autoridade que deve dominar sobre a outra.
Para o rei, dominar sobre o minotauro não se trata
apenas de impor a sua autoridade, mas sim de
demostrar que o seu agir é o mais correto. Para isso,
não pode simplesmente abrir combate contra a utopia
do minotauro. Precisa convencer. Persuadir os seus
súbditos de que encerrar o minotauro no labirinto é o
melhor para todos. Contudo, o agir do rei não se torna
positivo pelo simples facto de encarcerar a besta no

48
meio de encruzilhadas. Porém, não deixa de ser útil
ao rei essa forma de agir.
Encontramos assim a problemática entre a
utilidade e o agir. Para o minotauro, o agir resume-se
à desolação. Para o rei, em servir de exemplo para os
seus súbditos. Porém, cabe a questão: Que é a
utilidade? Ou melhor, o que é útil? Se pensarmos no
contexto da autoridade, percebe-se facilmente que a
utilidade de alguma coisa ou de alguém depende
diretamente da sua ação que pode ser favorável (útil)
à autoridade a que está subordinada ou desfavorável
(inútil) à mesma. Recordo o leitor de que nem o rei,
nem o minotauro têm a seu favor uma autoridade
válida (o minotauro pela sua própria essência utópica
e o rei pela subjugação do mesmo minotauro ao
labirinto sofístico), visto que aquilo que ambos
consideram útil ou inútil em ações concomitantes
impele-os a agir de determinada forma que
normalmente desemboca em bellum opositorum por
serem radicalmente opostos.

49
No entanto, a génese do rei e do minotauro é a
mesma. Ambos baseiam-se na utopia, só que a noção
ideal do rei é subjetiva, o que o leva a apresentar-se
como distópico em relação ao minotauro, enquanto a
noção utópica do minotauro é bem objetiva naquilo
que ele mesmo é, ou seja, a sua própria essência (seria
estranho que algo fosse contra a sua própria natureza).
Mesmo assim, são utopias. Não podem dar o passo
ao concreto, pois cada vez que se tenta pôr em prática
os ideais desvanecem como fumo naquilo que
consideramos como facta. Haverá solução para a
eterna problemática de quem é a maior autoridade?
Existe uma solução, ou um ponto de partida, se
quisermos. E é a mesma que os pensadores clássicos
encontraram para responder às interrogações que os
atormentavam: sair do plano mitológico para passar
ao plano lógico; sair do plano dos ideais a alcançar e
passar ao plano da objetividade que se faz presente.
No fundo, e a retomar um pouco a questão da sujeição
ao erro, deixar de “aparentar” um rei perfeito ou uma

50
arma (minotauro) perfeita. Pelo contrário, demonstrar
que a nossa forma de interpretar a realidade, ainda que
única, não é a única. E, como tal, não pode, nunca, ser
totalmente universal e necessária.

51
52
Capítulo IV
DÉDALO E ÍCARO

“Quo usque tandem abutere, Catilina, patientia nostra.”


(Cícero, Catilinárias)

4.1. O primeiro senhor do labirinto


A prisão do híbrido homem-touro teve uma
origem; tal como o rei e o próprio minotauro a
mediação do labirinto teve a sua génese em algo muito
peculiar. A mitologia põe em Dédalo a origem desse
cárcere. Terá sido este a criar o labirinto, a pedido do
rei de Creta, para aí encerrar a besta. Dédalo, um
homem sábio (se quisermos um engenheiro da época),
propõe dar uma solução ao rei quanto à afronta do
minotauro: construir um labirinto megalómano, uma
autêntica maravilha da arquitetura, de tal forma que,
mesmo tendo a entrada para o mesmo aberta, o

53
minotauro nunca conseguiria de lá sair por causa das
numerosas encruzilhadas que não vão dar a lado
nenhum.
Quem é Dédalo? E porque é ele o primeiro senhor
do labirinto? Se o labirinto é a justificação para
manter a utilidade utópica do minotauro como algo
permanente, e se o minotauro é a falsa mediação entre
a utopia e a realidade, Dédalo é o que, por outros
meios – no caso, a sofística – esconde o terror do
minotauro, duma utopia irrealizável atrás de um
esquema racional que, à primeira vista, parece ser
lógico. Dédalo é o formulador da causa do rei. Vê na
sua criação um escape, uma fuga para manter o
minotauro vivo e promete ao rei que isso lhe será útil.
Dédalo manifesta então a origem de um intricado
raciocínio sofístico que esconde em si mesmo uma
desolação.
Escusado será dizer que o labirinto é a joia de
Dédalo, a construção da qual mais se orgulha. Porém,
Dédalo está cego pelo reconhecimento, pelo prestígio,

54
pela bajulação que o rei lhe dá por ter resolvido o
problema. Possivelmente pensa em se tornar um fiel
conselheiro real, ser considerado um dos grandes da
cidade. Contudo, Dédalo encontrará uma situação
bem diferente daquela que, intrincadamente, imagina.
Será que Dédalo concorda com o rei? Em
determinadas coisas sim, noutras, talvez não. Mas, e
só por curiosidade, Dédalo espera, ansiosamente, por
um dia; talvez depois de ele ter passado, mas espera.
Espera ver o dia em que, de alguma forma, só por
curiosidade, os chifres do híbrido aparecem pelos
umbrais da entrada do labirinto. Pensa ele: “será que
é possível?”; “e se conseguir sair?”; “terá inteligência,
paciência e sagacidade suficiente para conseguir
escapar?”
Dédalo nunca esperaria ver-se encerrado na sua
própria criação; nunca imaginara ir com o segredo
para o túmulo, muito menos morrer dentro da sua obra
nas mãos do que tentou esconder; nunca pensou que
o rei lhe fizesse tal coisa, que se servisse dele

55
enquanto lhe foi útil e que, posteriormente, o haveria
de descartar e selar a porta do labirinto com ele e com
o seu filho, Ícaro, no interior daquelas encruzilhadas
infernais.
Novamente pergunto: quem é Dédalo? No fundo,
Dédalo não sabe, mas anseia por ver o minotauro
escapar do labirinto, imagina como seria se tal
acontecesse. Como o minotauro iria destruir a cidade
de Creta, como iria destruir o rei. Dédalo admira o
minotauro, admira a utopia, mas sabe que não é pela
imposição do minotauro que se encontra a sua
aceitação. Dédalo é aquele que “suaviza” a mediação
utópica, é aquele que, sagaz, confunde conceitos com
pré-conceitos, utopia e realidade, verdade e opinião.
Dédalo é, em última instância, o criador da dialética
sinológica, o pai da distorção da realidade objetiva.
Dédalo, Dédalo… Como fostes aceite pelo teu rei
e pelo teu povo! Mas o plano não deu resultado.
Encontraste uma solução para o problema no
momento certo, mas não vistes as consequências. No

56
fundo, Dédalo, sempre soubestes responder e fazer o
bem aos outros, mas esqueceste-te de ti mesmo em
razão de ti mesmo.

4.2. Ação e relação: um problema


antropológico
Se o problema de Dédalo encerra-se no fazer o
bem no esquecimento de si próprio, o mesmo
personagem é a incongruência entre ação e relação. O
leitor pode pensar que estou a contradizer-me no que
referi nos capítulos anteriores acerca da análise
objetiva da realidade. No caso de Dédalo não se trata
do mesmo. A determinação dos facta como
constituintes do fieri, ainda que brote da análise
objetiva, não desemboca, como no caso de Dédalo, no
ego. A questão gnoseológica parece, à partida, a
mesma. Mas encontra um problema basilar no que
concerne à forma como Dédalo se relaciona com o

57
minotauro, com o rei, com o povo de Creta e com o
seu filho Ícaro.
A problemática adquire em Dédalo uma nova
faceta: a gnoseologia depende do ser relacional e não
do simples facto de agir de forma útil. Para Dédalo
importa construir, dia-a-dia, o labirinto, mas esquece-
se das consequências que essa suma importância tem
na forma como se relaciona com os outros e vice-
versa. Neste sentido, o conhecimento dos facta em
complementaridade objetiva com o fieri real não é um
acto isolado. Depende, em grande medida, das
circunstâncias que rodeiam e compõem essa mesma
realidade. Dédalo põe a sua capacidade à frente da dos
outros, considera-se melhor porque faz; sente-se útil
e, por isso, pensa ser.
Basta pensarmos: Quando Dédalo e Ícaro vêm-se
encarcerados no labirinto, Dédalo vê a utilidade das
asas de cegonha para construir uma gambiarra
voadora, de forma que esta seja útil para sair do
labirinto. Ao mesmo tempo, vê que sempre se

58
esqueceu de dar o devido valor ao seu próprio filho,
que tem tantas capacidades de engenharia como o
próprio pai. Dédalo confiou demasiado no rei de Creta
e no povo da mesma cidade, pensou apenas em si
próprio, observou a realidade apenas a partir da sua
perspetiva sem se pôr no lugar dos outros, projetando-
se num futuro tão irreal e hipotético como a própria
besta cuja criação acabara de encerrar.
Dédalo ignorou a história, e por isso criou o
labirinto. Dédalo viu na sua própria criação a
mediação entre a unidade e a individualidade, e
esqueceu que a história é a grande mediação entre
facta e fieri. No fundo, Dédalo não sabe discernir a
sinalética. Apenas vê a síntese como resposta
objetiva. Procura dar um novo sentido ou paradigma
à dialética, afirmando-a não como bellum opositorum
mas sim como como válida cointidentia. Porém, e
como vimos anteriormente, alterar a noção dos
conceitos (embora não necessariamente em pré-
conceitos) em nada modifica a natureza dos facta,

59
visto que os critérios de objetividade da realidade,
dependem necessariamente da relação dos sujeitos
que a conhecem. Neste sentido, é impossível desligar
ação de relação e relação de conhecimento, visto
serem todas elas diferentes dimensões de uma mesma
coisa, ou seja, do Homem.

4.3. A opinião como alimento do ego


O encarceramento de Dédalo e Ícaro no labirinto
por parte do rei de Creta, é fruto da insuficiência da
utilidade como critério para manter a perspetiva
subjetiva e individual como verdade real. No fundo, o
desejo de Dédalo é que, com a construção do labirinto,
Creta seja uma sociedade perfeita. Porém, vê-se preso
na própria criação, é traído pelo rei que dele se serviu
e, aquilo que era a sua útil opinião, virou-se contra ele.
Como se não bastasse, também o seu filho, Ícaro,
é envolvido na intrincada polémica sobre a
subsistência do minotauro nas encruzilhadas do

60
labirinto. Mas Dédalo vê uma saída possível. Apoia-
se novamente na sua razão para criar um engenho
voador que o leve para fora do labirinto e, assim,
escapar das garras do híbrido. Contudo, ao sair do
labirinto, Ícaro voa demasiado alto, e as asas de
cegonha que serviram ao engenho entram em
combustão por causa do sol. Ícaro cai morto na praia,
onde Dédalo o chora amargamente.
De que adianta pôr a razão, a opinião, o “eu acho
que” à frente da realidade? Dédalo nem se preocupa
com as consequências de o seu próprio filho errar a
manobra e, novamente – ainda que em circunstâncias
diferentes – cair no erro de o feitiço virar-se contra o
feiticeiro. Dédalo contraria a realidade do labirinto,
contraria-se a si próprio e voa, nas asas da sua razão,
numa última tentativa de escapar à realidade. Para
isso, Dédalo cria uma espécie de alimento do ego, mas
não de forma aberta ou óbvia: novamente, é
confrontado com o erro e não aceita que, como sujeito
gnoseológico, a este está sujeito. Para intrincar essa

61
ego-opinião, Dédalo serve-se da razão, serve-se do
pensamento; mas acompanhado de diversas facetas, a
maior parte das vezes por prismas de análise que não
levam a lado nenhum ainda que “objetivos”. Apenas
conduzem Dédalo para o seu ego, nada mais.
Foi essa ambição de Dédalo que levou o seu
próprio filho, isto é, a mesma ambição a desmedir o
controlo da razão. Ícaro é a ambição de Dédalo, a
ambição de ser que, por duas vezes é destronada do
ego de Dédalo. “O peixe morre pela boca”, já diz o
velho ditado popular.
Ícaro morre. Por isso, Dédalo vê-se ao espelho da
gnoseologia quiástica e percebe que, afinal de contas,
o que sempre procurou fazer, foi aprisionar num
labirinto o seu próprio ser. Em última instância,
Dédalo e Ícaro são, in se, o próprio minotauro.

62
63
EPÍLOGO

Se ao analisar as figuras do minotauro, do


labirinto, do rei e de Dédalo e Ícaro, que solução se
nos apresenta aos problemas que cada um representa?
A gnoseologia quiástica entre realidade e utopia
encontra resposta no diálogo sinalético. Mas o mesmo
diálogo não se manifesta como fonte de
conhecimento sem a dimensão relacional do ser
humano. Como encontrar um equilíbrio entre
subjetividade e objetividade a não ser através das
circunstâncias e da interdisciplinaridade do saber?
O background de todas as figuras centra-se no
mesmo: no ego. Cada um, sui generis, procura
afirmar-se como verdade, como exemplo a seguir.
Mas todos estão errados: o minotauro está encerrado
num labirinto; o labirinto não é resposta pela sua
natureza; o rei procura utilidade e Dédalo e Ícaro
apenas a ambição desmedida do ser.

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Mas terá o povo da cidade de Creta uma palavra
a dizer? Talvez sim; ou talvez não. Possivelmente, a
população de Creta só procura panem et circenses, só
se preocupa com assistir a um bom espetáculo, a uma
boa polémica política e com viver cómodo e tranquilo,
deixando os problemas para os que os arranjam.
Porém, será isso uma resposta válida? Se Creta não
arregaçar as mangas, passará o resto da vida a
lamentar-se pelo sucedido.
Como vencer o minotauro? E o rei? E como
ultrapassar a falha de Dédalo? Não será muito mais
fácil, ao partir da sinalética, perceber que quer o
minotauro, quer o labirinto, quer o rei ou Dédalo e
Ícaro, nada mais são do que personagens de um mito
clássico e que, disso não passam? Estaremos a viver
presos numa história? Nesse caso, caríssimo leitor,
volto a perguntar o que perguntei no início do
primeiro capítulo desta obra: o que é a realidade?

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