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certa tradução do símbolo imagético oferecido aos olhos de pincel, e de lá, para a superfície da imagem. A
(como é o caso de representações imagéticas como a codificação se processa “na cabeça” do agente hu-
pintura e o desenho): o que o observador vê na imagem mano, e quem se propõe a decifrar a imagem deve
técnica guarda indícios (em duas dimensões) do referen- saber o que se passou em tal “cabeça”. No caso das
te – o que “elevaria” o nível de confiança em relação à imagens técnicas, a situação é menos evidente. Por
função daquela imagem como testemunho (e conseqüen- certo, há também um fator que se interpõe (entre
temente representação) da realidade. elas e seu significado): um aparelho, e um agente
Santaella é peremptória ao afirmar o que comumente humano que o manipula (fotógrafo, cinegrafista)
já está estabelecido: “fotografias são consideradas mais (2002, p.15).
confiáveis do que os desenhos e pinturas” (2007, p.19). É
claro que faz isso como premissa para introduzir deter-
minada confusão em termos de confiabilidade que o
paradigma pós-fotográfico gera na nossa relação com a Poderíamos entender o encontro
imagem3. No que aqui interessa, entretanto, a autora
esclarece a origem da fotografia como algo que “sempre da imagem cinematográfica com
se constituiu em um signo indexical”, explicando que “a
luz refletida do objeto fotografado altera a química do a imagem pictórica, no momento
filme a ser revelado, de modo que o negativo e sua revela-
ção sejam, de fato, um reflexo direto do mundo” (2007, em que a primeira capta a
p.19), para concluir, já referindo o paradigma pós-foto-
gráfico, que “quando a crença nas aparências e na sua segunda, e a segunda aparece na
morfogênese é colocada em crise profunda, toda e qual-
quer imagem fica sob suspeita” (Santaella, 2007,p.30). primeira, como uma medição ou
Mas se é com a “técnica” no âmbito do paradigma
fotográfico (de indicialidade) que nos ocupamos na com- uma junção de forças de
paração com o pictórico, também podemos invocar Ro-
land Barthes. Em A Câmara Clara (1984), o autor reitera modalidades do modo de
a idéia do “isto aconteceu” como constitutiva da foto-
grafia. Para Barthes (1984, p.13-16) representação imagético.
[...] o que a Fotografia reproduz ao infinito só ocor- Evidentemente, o que está posto é que quando mudam
reu uma vez: ela repete mecanicamente o que nunca os instrumentos de produção de uma imagem, as possi-
mais poderá repetir-se existencialmente. [...] Tal foto, bilidades de representação do referente conseqüente-
com efeito, jamais se distingue do seu referente (do mente se apuram em termos de “fidelidade”. As possibi-
que ela representa), ou pelo menos não se distingue lidades técnicas, portanto, passam a oferecer mecanismos
dele de imediato ou para todo o mundo [...] a Foto- para que a produção desta imagem permita que ela seja
grafia tem algo de tautológico: um cachimbo, nela, é o mais próximo possível (em termos de conter indícios
sempre um cachimbo, intransigentemente. [...] Seja do referente) daquilo que quer representar. A evolução
o que for o que ela dê a ver e qualquer que seja a destas possibilidades teve no cinema seu ápice: mais do
maneira, uma foto é sempre invisível: não é ela que que representar indicialmente o referente de maneira
vemos. estática como a fotografia, a cinematografia criou a sen-
sação de movimento para estas imagens colocadas e
Tal constatação, que impede a Fotografia de ter aquilo exibidas em seqüência.
a que Barthes denomina de “dignidade de uma língua” Ainda que autores como Arheim demonstrem toda a
(Barthes, 1984, p.16), delimita o universo de problemáti- impossibilidade de considerarmos o cinema simples-
cas aqui exploradas, por um lado, pela especificidade mente como reprodução da realidade4, não há como
acima referida da fotografia e, por outro, mais desenvol- negar ser o produto que alcançou mais fidelidade, den-
vido por Flusser, pela perspectiva técnica. tre os modos de representação imagética, em termos de
Flusser faz a distinção das duas modalidades – pictó- referência ao representado. Operação que lhe proporcio-
rica e “técnica” – de representação imagética nos se- na, por exemplo, ser um substituto da pintura quando
guintes termos: esta tinha a função, entre outras, de representar em ter-
mos de testemunho uma cena.
No caso das imagens tradicionais, é fácil verificar Bernadet, como que para justificar a frase de Godard
que se trata de símbolos: há um agente humano por ele mesmo citada – “A fotografia é verdade. O cine-
(pintor, desenhista) que se coloca entre elas e seu ma é verdade 24 vezes por segundo” – invoca um mo-
significado. Este agente humano elabora símbolos mento pouco anterior ao cinema, demonstrando o con-
“em sua cabeça”, transfere-os para a mão munida texto em que a possibilidade de reprodução da realidade
estariam implicitamente explícitas. As considerações do promovendo um elogio das duas modalidades extremas
diretor sobre imagem, e sobre da Vinci, indicariam esta do modo de representação imagético. Quando corta o
direção. quadro pintado por da Vinci e coloca os créditos sobre
Para Tarkovski “é difícil que um conceito de imagem os fotogramas que representam a parte escolhida da
artística possa ser expresso através de uma tese precisa, pintura (figura 2), “obedece” (no sentido de utilizar) às
fácil de formular e de compreender” (2002, p.122). A possibilidades técnicas que o cinema oferece (a delimita-
imagem artística, para ele (pois é nesta característica que ção do campo, por exemplo); e ao permanecer mais de
usa o termo imagem, ainda que esteja falando do modo quatro minutos com a lente parada sobre o mesmo objeto
de representação imagético indicial, e não de uma ima- – que não por acaso é um quadro de um ícone da pintura
gem abstrata artística, por exemplo) é uma impressão de – “desobedece” (ou simplesmente não utiliza) às possi-
verdade: está nela a possibilidade de expressão da pró- bilidades de promover a idéia de movimento que a apre-
pria vida – “[...] a imagem não é certo significado expres- sentação de fotogramas em seqüência (cinética) permiti-
sado pelo diretor, mas um mundo inteiro refletido como ria. Ao não se valer desta possibilidade técnica mecânica
que numa gota d’água” (2002, p.130), ou seja, “ela não que caracteriza essencialmente o cinema, o cineasta, atra-
designa nem simboliza a vida, mas a corporifica, expri- vés dele – cinema –, refere explicitamente (ao mesmo
mindo-lhe o caráter único” (ibidem, p.131). tempo em que presta reverência a) a pintura. O que deixa
o ato mais evidente é a pintura ser de Leonardo, depois
Figura 2: Fotograma do trecho onde ocorre o de saber das considerações de Tarkovski a seu respeito:
“encontro de imagens”, no filme O Sacrifício, de pelas possibilidades que a técnica do cinema permite de
Andrei Tarkovski, 1986, Suécia, 142min. (pedaço da captar “de fora” uma realidade (na medida em que a
pintura de da Vinci filmada pelo cinema de testemunha, sobretudo), Tarkovski filma, estaticamente,
Tarkovski) parte da obra de um pintor ao qual ele confere justamen-
te esta característica: portador de um olhar que paira
sobre o mundo.
Se Tarkovski faz isso, o faz através de seu suporte –
cinema –, sobre o qual teria plena consciência das possi-
bilidades. E se isso é verdade, há peculiaridades do
suporte que inescapavelmente determinam a expressão
do conteúdo que por ele é veiculado – ou Tarkovski não
teria feito o que se acabou de se considerar que tenho
feito, nem poderia ter percebido na pintura de da Vinci o
que percebeu. Nesse sentido, é que deveríamos exami-
nar até que ponto a técnica (ou o suporte) “influenciam”
na imagem que comportam.
Cézanne explorou sua reação ao Monte Saint-Vic- estética só pode acontecer empiricamente: os sentidos
toire – de fato, sua obsessão por ele – pintando-o são condições sine qua non para que ela ocorra. Logo, não
repetidas vezes. Ele explorou sua obsessão valen- há, logicamente, possibilidade da técnica empregada na
do-se de sua pintura; mas explorou, igualmente, materialização do objeto originário da experiência esté-
sua pintura, valendo-se de sua obsessão (1999, p.39). tica (o próprio objeto estético) não determiná-lo.
No entanto, ao suspendermos esta idéia da evidente
Da afirmação de Ridley, podemos observar três pon- dependência, ao invés de a negarmos, a desconstruire-
tos. O primeiro é o de que, assim como Machado, sua mos, invertendo os pólos binários, a fim de tornar possí-
perspectiva em relação ao que nomeia expressão é a da vel perceber a questão da representação (ou expressão)
materialidade: “se a expressão é necessariamente materia- via imagens também de outro ponto de vista. Se obser-
lizada” são suas palavras. Ambos os autores, portanto, varmos que o próprio Machado menciona uma “essên-
não estão, a princípio, interessados no problema concei- cia” da imagem, podemos ter uma entrada para este
tual, seja de imagem, seja de expressão (e conseqüente- ponto de vista concorrente.
mente, no de expressão – ou representação – imagética). Sua menção aparece quando faz as aproximações das
O segundo é que, posicionando-se desde este ponto de produções de imagens renascentistas com as produções
vista – empírico – nem haveria como a materialidade das imagens técnicas (fotográficas), ao dizer que o “em-
não “influir” na expressão imagética. De modo que o penho na direção de uma imagem cientificamente veros-
terceiro ponto, assim sendo, é o de que a discussão já se símil” por parte dos renascentistas seria a “própria es-
inicia resolvida: a expressão (pela imagem) ou o modo sência do que agora estamos chamando de imagem técnica”
de representação imagético, visto a partir de uma pers- (1997, p.225). Se essência é aquilo pelo que uma coisa
pectiva da materialidade, natural, evidente, e necessari- ontologicamente se define, ficaria difícil negar que tería-
amente tem o resultado de sua expressão (ou de sua mos aí uma “ideia” de imagem, transcendente (ou ulteri-
representação) dependente da técnica utilizada para tal. or) à técnica empregada para que ela se materialize.
Todavia, ainda que Machado seja definitivo ao afir- Desta identidade essencial (ainda que seja de função:
mar que reproduzir objetivamente o real) que surge ao Machado
aproximar as modalidades de representações imagéti-
[...] jamais se pode ignorar o papel determinante cas pictóricas renascentistas e técnicas modernas (foto-
jogado pelas técnicas de produção na realização gráficas, logo cinematográficas) é que também se torna
dos fenômenos estéticos sob pena de reduzir qual- possível pensar a imagem não apenas necessariamente
quer discussão estética a um delírio intelectualista associada irremediavelmente ao suporte em que se faz
completamente ignorante da realidade da experi- aparecer.
ência produtiva” (1997, p. 223). Deste modo, de maneira clara, declinamos simultane-
amente tanto da perspectiva empírica, que leva em con-
sideração o fenômeno estético – cuja natureza do meio
técnico é princípio imprescindível –, quanto da perspec-
A diferença, em relação ao tiva metafísica, na qual a natureza conceitual solicita
primazia. Na irredutibilidade de uma imagem poder
pictórico e ao técnico, é que de existir sem um suporte material, podemos querer tentar
entender o que é “a imagem” que ocorre neste (por este)
certa forma características como suporte, para além do meio técnico, ou seja, na semiose
(Peirce, 1990). Isto implica reconhecer que o significado
estas estão postas no uso da de uma imagem está, desde certo aspecto, em outra ima-
gem que a representa e que se torna, por sua vez, uma
pintura como representação imagem a ser ao infinito por outra representada.
No caso do encontro de imagens aqui referido, a semi-
imagética. ose expressa rigorosamente um caminho diferente da-
quele trilhado por empiristas ou metafísicos: o de com-
Poderíamos não negar, mas suspender o que nos é preender o sentido da imagem – e de seus encontros –
apresentado como evidente: a determinância da técnica nos múltiplos movimentos que as constituem. Assim,
sobre a expressão ou representação. Um dos dados a se tanto O Sacrifício pode ser, em dada circunstância, o
levar em conta para isso é a observação de que Machado significado de Adoração dos Magos, quanto Adoração dos
menciona o termo “estética” duas vezes ao referir-se a Magos – definitivamente transformada em termos de sig-
esta dependência do que chama de fenômeno estético nificado depois do seu encontro com o filme de Tarko-
em relação à técnica. No caso de Ridley, como recém vski – pode, invertendo a flecha do tempo, configurar-se
assinalado em relação à necessidade material de uma como o significado do Sacrifício. O que está entre, antes e
expressão, o caso é o mesmo. Sabe-se que a experiência depois do encontro – a imagem propriamente dita, tal
qual a definimos neste artigo – constitui-se no objeto por ele operado – explorar duas modalidades do modo
privilegiado de uma teoria da comunicação. imagético de representação: uma através da outra – que
poderíamos inferir da sua produção uma tentativa de
decifração da imagem ela própria. Ao fazer valerem-se
Então, as características de um do outro – imagem pictórica e imagem cinematográ-
fica – para expressar essa força, exporia suas vísceras:
incompletude e indefinição aquilo por onde (ou por que) sua força de representação
acontece. A força no ato de representar a realidade que
seriam da técnica (pintura, ela tem seria o que Tarkovski estaria tentando fazer
emergir.
fotografia, cinema) e não do No fim (ou no começo), poderíamos dizer que o diretor
se vale das duas técnicas para, por elas, e a despeito
conceito de representação delas, legitimar a soberania da imagem na semiose. A
arte de Tarkovski (ou a validade do encontro de imagens
imagética. que promove) é que o elogio à representação imagética se
dá a materialidade da técnica e ao conceito de imagem
Assim, poderíamos pensar por duas vias o caso de ao mesmo tempo. Ou seja, ele quer que se acredite na
Tarkovski. A primeira, mais óbvia: de que ao explorar perfeição da imagem justamente pelos defeitos das téc-
sua obsessão por Leonardo, o diretor tenha explorado nicas que lhe transformam no soberano modo de repre-
simultaneamente seu (o) cinema. A segunda, mais pro- sentação nFAMECOS
pícia, talvez: a de que ao explorar uma modalidade de
representação imagética, a pintura (através da arte de NOTAS
Leonardo), com outra, o cinema, mais do que explorá-los 1 Na fase que abrange os diálogos Banquete, Fédon,
ao mesmo tempo (o que de certa forma já estaria eviden- Fedro e República, a filosofia platônica trata ontoló-
te), estaria explorando a natureza de ambos – que não gica e epistemologicamente da teoria das idéias, em
por acaso é comum –: a própria representação imagética, que uma das bases é a oposição entre o mundo sensí-
ou o próprio conceito de imagem. vel e o mundo ideal. Tema que o próprio filósofo
passa a colocar em cheque a partir do diálogo se-
Considerações finais guinte; Parmênides. Na teoria das idéias, a tese bási-
Se o conteúdo de incompletude e indefinição das ima- ca platônica é a de que as coisas do mundo sensível
gens escolhidas para serem representadas por outro são meras cópias imperfeitas dos originais ideais
suporte imagético reforçam a própria característica de que existem no mundo das idéias; assim, os produto-
incompletude e indefinição do uso da imagem como res de imagens, tais pintores e escultores, simboliza-
modo de representação indicial, poderíamos dizer que riam a própria prática desta impostura, ao tentarem
esta incompletude e indefinição só ocorreria justamente reproduzir as coisas através das imagens que produ-
porque é preciso uma técnica para materializá-la. Então, ziam.
as características de incompletude e indefinição seriam
da técnica (pintura, fotografia, cinema) e não do conceito 2 O uso da palavra “técnica” é sempre problemático.
de representação imagética. Em relação à produção das imagens, Machado (1997,
A diferença, em relação ao pictórico e ao técnico, é que p.222) lembra que “Imagem técnica” seria toda a
de certa forma características como estas estão postas no representação plástica enunciada por ou através de
uso da pintura como representação imagética, vide as algum tipo de dispositivo técnico. Mas – e aqui come-
afirmações de Baxandall de que é preciso “entrar no ça a complicação – existirá alguma imagem, exceto
jogo” do pintor – o que afirma baseado já nas concep- aquelas que forjamos dentro de nós mesmos que não
ções do próprio Leonardo. No caso da imagem técnica, decorra da intervenção de um dispositivo técnico?
em função da possibilidade da indicialidade: do “refle- Ao longo da história da arte, já nos defrontamos com
xo direto do mundo”, como afirma Santaella (2007, p.19), técnicas pictóricas semi-artesanais estreitamente as-
e do “efeito de real” que a tecnologia aí empregada sociadas à criação artística, como é o caso da gravu-
possibilita, as características de incompletude e indefi- ra, da litografia, da serigrafia e de outros procedi-
nição advindas da técnica utilizada para a reprodução mentos do gênero. Seria o caso de nos perguntarmos
imagética tenderiam a passar despercebidas. A confiança, também se o gesto em si da pintura dita artesanal
portanto, nestas imagens (técnicas), citada por Flusser, não pressupõe já uma infinidade de mediações téc-
teria origem no momento que em estes “defeitos” oriun- nicas, desde a preparação das tintas e sua combina-
dos da técnica (incompletude e indefinição), fossem es- ção, o tratamento da tela, o recurso a modelos mate-
quecidos. Neste sentido é que as imagens poderiam ser máticos de representação (como é o caso da
vistas ideologicamente como janelas (Flusser). perspectiva renascentista) até a própria técnica de
No caso de Tarkovski, é do simultâneo duplo trabalho pintar, que pressupõe um aprendizado longo e difí-