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350 SÉRCIO MILLIET DIÁRIO CRÍTICO 351

~fonso. Schmidt assume com a primeira parte de sua Um verso de Charles Guérin fala da "harmoniosa men·
autobwgraha o dever liteHario de continuá-la e publicá-la. tira do corpo". Essa imagem é que nos vem á mente ao
compararmos as antigas soluções de Bruno Giorgi com as
Outubro, 5 - A partir do momento em que o artista atuais. Eram aquelas uma harmoniosa mentira e são as de
se comi;ienetra da insignificancia do assunto e compreendo hoje uma não menos harmoniosa verdade. O que ha de men-
q~e mais. do que a anedota, e mesmo a figura, vale a expres- tiroso no corpo é a solicitação. Enquanto a carne atrai, ha
sao _manrfestada através ::le seus instrumentos proprios, a apenas uma mentira que as linhas e os ritmos tornam har·
par_hr dess~ momento cam,nha ele para a aute abstrata. Ou moniosa. Desde que se suprima o elemento anatomico ficam
aceita, ent~º·. qualquer tema, porquanto nenhum o impedirá os elementos da harmonia, que por serem os mais autenticos,
de se exprimir na sua _verdade intrínseca. os permanentes, fazem da mentira sedutora uma verdade
Foi exatamente o que aconteceu ·com Bruno G"10rg1. · essencial.
A il ., A poesia, na historia da arte, parece ter sido o apanagio
qu ·o que Jª nos levava a admirá-lo em suas estatuas mais
o~ menos ape~ad~s _á interpretação do real, isto é, linha, mo- .da pintura e do desenho. Na escultura, em geval, o que se
vimento, d1s~nbmçao_ har_mon~ca das massas e dos planos, exprime é a sensualidade, ou a nobreza. Em Bruno Giorgi
permanece vivo, e ate mais evidente e sensível em suas ulti- entretanto é a poesia que nos impressiona em primeiro ,lu·
1?ªs obras, as quais, no real, têm somente um ponto de par· .gar. Mas não se veja nesta assertiva qualquer insinuação
tida. . Ressalta-o essa retrospectiva, organizada pelo Museu de fragilidade ou pieguismo. Veja-se antes, a expressão da
de A1te Modern~ e ·que •permite uma comparação entre ,1 vida, da experiencia humana, traduzindo-se em. elementos
obra de anos atras e a de ~oje, em particular entre a figura plasticos dia a dia mais puros. Veja-se antes, nessa poesia,
que ~arca o momento de h~ertação, ainda ligado á tradição, a manifestação •predominante da emoção, que encontra sua
e a Íi~~ atual, puro movimento sem acentuação de traços melhor forma a caminho do abstrato e por isso prescinde,
naturahsticos. Em ambas, como nessa adolescente esguia na sua expressão, do minimo de literatura a· que ainda se
d.e fatura mais ou menos contemporanea à das figuras rea~ apegava anos atrás.
listas, predo~i~a a pesquisa de um ritmo que pela sereni- A liberdade conquistada pelo escultor nada tem entre·
da~e se classifica de classico e pela sensualidade de suas tanto de anarquico. Suas soluções, embora ousadas, man·
sutilezas parece barroco. têm-se dentro da grande tradição escultorica, obedecem áe
Toda ~ evolução de Bruno Giorgi se resume na procura .constantes esteticas comuns a todas as obras primas do pas·
da expressao. Enquanto não si'! libertou do assunto suas fi. 11ado. E' sem duvida graças a essa ligação tradicional que
guras foram u~ pretexto· á apresentação de planos e ritmos; a fase menos eficiente da obra de Bruno Giorgi pode ser
agoria nada mais o perturba na livre expansão de seu tem· apontada nas suas tentativas expressionistas. As deforma·
per~mento. .Suas estatuas, a que inutilmente deu títulos ções tragicas, os temas sociais ou religiosos, não exprimem
(_r01s poderiam chamar-se dança ou primavera, melodia, a verdade poetica desse es~ultor. O artífice consegue, então,
r~tmo, ou qualquer outra coisa vagamente sugestiva) caraicte· impo11 sua habilidade mas o artista não chega a se afirmar.
riz.am•se pelo equi!ihrio assimetrico dos movimentos e pel.i
s~hdez da e~ecuçao. A este proposito ressalte-se 0 amor Outubro, 5 - Em estudo que publicou na "Vie Litte·
a bela matena que revela no artista um artezão de não me- raire", censura Anatole France a La Fontaine, o empregar,
nor valo_r. A pedra sabão de sua mulher sentada assume indiferentemente, "aragne" e "araignée". Endossando a opi·
uma delicadeza que só o bom artífice pode conseguir e a nião cie Littré, observa 1JUe a "nova lingua se empobreceu
transparencia de suás ceras douradas perturba o olhar mais no francês anterior ao seculo XVI "aragne" significava ara·
distraido,
:nha e "araignée" a teia tecida pelo bicho. Esse exemplo

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