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202 SÉRGIO MJLLIET DIÁRIO CRÍTICO 2oi

Corpo, uma luz te atravessa. A praça, a praça é do povo


como o céu é do condor
Janeiro, 24 - Castro Alves permanece o poeta mais lido
do Brasil. Seu romantismo, sua retorica revolucionaria á Castro Alves copia. Mas quando diz:
maneira de Vitor Hugo, sna . generosidade vaga, seu entu- Negras mulheres suspendendo ás tetas
siasmo, suas antiteses brilhantes, seru; ritmos mnemonicoa Magras crianças cujas bocas pretas
agradam o grande publico, mas se me perguntassem qual Rega o sangue das mães:
o maior poeta brasileiro eu responderia, parafraseando Gide:
Castro Alves, "hélas"! ou quando lança este grito de horror e revolta:
Fernando Goes, que procedeu .á escolha dos textos de 'Quem são estes desgraçados
"Poemas Revolucionarios" e .prefaciou o livro já em 2.ª edi- Que não - encontram em vós
mais que o rir calmo da turba . •.
ção, analisa muito hem o exito popular do baiano, que faz
de sua poesia não a•penas uma poesia social mas uma poesia
o poeta já não traduz do francês; cria uma expressão nova.,
de ação social, um apelo á luta. Transcrevo o comentario:
fala uma língua diferente, no tempo e no espaço, a língua
"Estamos vendo, então, que Castro Alves não se contentou
de sua terra, a língua do Brasil.
somente em tomar conhecimento de uma situação errada.
Preocupou-se sobretudo em corrigi-la. Dir-me-ão que a sua Janeiro, 26 - No numero de dezembro 1949, de "La vie
solução é simplista demais. E eu responderei que, em todo
intellectuelle", o conhecido ensaísta Wladimir Weidlé comen·
caso um poeta não é mn sociologo. A outra verdade sobre ta as diferenças ohservaveis entre o inglês e o "norte-ame-
Castro Alves - e que ajuda a fixar sua poesia de ação social
ricano", suficientes a seu ver para que já se fa]e de uma
em nosso entendimento - é que seus versos procuravam
"nova lingua". Para o inglês que viaja pelos Estados Uni·
deliberadamente um objetivo, aquele mesmo objetivo que o
dos, diz W eidlé, a língua que ouve é a um tempo "um
homem Antonio de Castro Alves sempre procurou". enigma e uma surpresa", uma como que caricatura do jn.
Dai a força comunicativa de seus .poemas, expressão sin- glês, familiar e irreal. Entretanto, á proporção que penetra
cera do homem que vive a sua poesia. O que neste poeta o espírito dessa nova língua, percebe o inglês que não pod-3
por certo não se encontra, é essa possível influencia de Marx referir-se com desprezo ao que ouve, que não se trata sim-
a que alude o prefaciador, muito em.hora o manifesto comu- plesmente de deformações mais ou menos expressivas, ou de
nista date ·de 1848. Sua linguagem é a mesma de seu mes- erros, m:as sim de uma lingua difeI1ente com sua sintaxe pro•
tre Hugo, a de um socialista humanitário e utopico, lingua- pria, seü vocabulario, até sua ortografia.
gem em voga com algum atraso no Brasil. Como o poeta Analisando o fenomeno, diz o ensaísta: "Toda língua
francês, Castro Alves peca pela ausencia de uma filoso!ia, viva desenvolve-se e muda sem cessar, mas a múdança pode
pois flutua numa confusão grandiloquente de vagos conceitos ser mais- ou menos rapida. Seu ritmo faz-se mais lento (-pelo
ge1.1ais. E' um sentimental a que apaixonam os problemas menos nas classes cultas de uma sociedade) desde que uma
do momento, que se comove diante do drama da escravidão lingua literaria, tendendo a uma estabilidade relativa, se
e escreve então seus mais belos poemas, aqueles em que o comtitua definitivamente e adquira influencia sobre a língua
poeta abandona a imitação servil dos romanticos e· realiza da conversação polida". Há um periodo de foriIIlação que,
afinal sua personalidade propria, evidentemente romantica para o inglês da Inglaterra, ocorreu no período Elisabetano
tambem, mas original na transposição das soluções poeticas, e para o in&lês dos Estados Unidos se verifica agora. O pro·
tanto de tema como de forma. cesso complexo abarca modificações prosodicas, gramaticais
Enquanto escreve: e semanticas e tem como causas remotas os mesm<>s. fatos

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sociais que levam á constituição de uma nova nacionalidade: No tocante ao português de Portugal e do Brasil, não
economia industrial e agricola, imigração, etc. se dirá 'que essa força de atração seja de ambito universal,
No caso do "norte-americano" as diferenças mais facil- mas dentro do mundo criado pelo português ela se impõe,
mente observadas são semelhantes ás que se podem apontar influindo até nas Universidades estrangeiras, em que já se
entre o :português do Brasil e o de Portugal: acentuação ensina hoje o "brasileiro", ou pelo menos um português ilus-
de vogais, entonação, .pronuncia dos ditongos. J,á as dife- trado com textos de autores nossos, através dos quais nossas
renças gramaticais são mais difíceis de se apreenderem, por- diferenças gramaticais t< semanticas se introduzem, e seruzem.
que . as classes cultas as condenam como erros e policiam a A resistencia dos ingleses ao "norte-americano" levará
nova lingua, a qual só pouco a pouco se impõe, principal- sem duvida á formação de uma lingua nova, mas a falta de
mente em virtude da adesão dos escritores. Mesmo assim a resistencia dos portugueses talvez provoque unicamente o
"confusão no emprego dos pronomes", as regencias e as li- domínio do "brasileiro", a sua divulgação e aceitação no
cenças nos tempos do verbo são comuns em todas as classes proprio Portugal.
da sociedade norte-americana, tanto na língua falada como
'\\T eidlé indaga ao terminar seu comentario: "Que fim
na língua escrita. Onde porem a diferenciação se revela
ter1á a lingua de Shakespeare e de Swift, de Bacon e de
com maior nitidez é no vocabulario, enriquecido C-Om a in-
Keats? Será ainda compreendida pelos que dentro de cem
trodução de palavras originarias ,de outras línguas e com neo-
anos falarem norte-americano? Será ainda a sua língua?"
logismos comodos e expressivos de uma cultura independeu·
Troquem-se os nomes de autores citados e poderíamos fazer
te. Ou ainda com novos sentidos dados a vocabulos antigos,
identicas perguntas. Aliás Paulo Prado já afirmava, há
não raro a,rcaicos, da língua da mãe-patria.
cerca de trinta anos, que mais dia menos dia seria pn~ciso
O problema consiste, para W eidlé, em saber se o inglês verter para o "brasileiro" os livros editados em Portugal.
dos Estados Unidos é apenas um inglês evoluído ou com- O português-português é hoje um idioma usado no Brasil
. porta tendencias diveusas das que influíram no desenvolvi- por uma pequena elite unicamente. . . e que o fala e escreve
mento do inglês .da Inglaterra. Ora, essa língua nova, esse mal. Ao passo que o "brasileiro", lingua de todos, tem seus
idioma falado na America do Norte ".possui qualidades que g11andes escritores, seus futuros dassicos. Já não se fala nos
o inglês começou a perder há dois ou três seculos, mas pos- erros de Lins do Rego ou Jorge Amado mas no seu estilo,
sui tamhem os defeitos provenientes de um desenvolvimento na sua verdade expressiva. E em obras de erudição, como
ra'pido em um meio não homogeneo e desprovido de tradi- a de Antenor Nascentes sobre regencias, encontramos toda
ções". Dir-se-ia que o autor alude ao problema do "brasi- uma exemplificação tirada dos nossos "analfabetos".
leiDo". . . E não são esses os unicos pontos de contacto "A
admiravel uniformidade com que essa língua é falada em Será um hem? Será um mal? Não nos cabe opinar~
todo o imenso territorio dos Estados Unidos, sua faculdade A língua é um fato sccial, cuja formação escapa ao nosso
de absorver element~s estrangeiros, sua carencia de hierar- "controle". Se alguma coisa podemos fazert é apenas tentar
quia interior, de disciplina, de discernimento eritico", tudo introduzir certa disciplina na inevitavel transformação, a
isso reflete a prnpria civilização norte-americana, como re- fim de que não se processe com excessiva e perturbadora
flete a culturai bras:iileira ·a mesma uniformidade, a mesma rapidez. Evita-la não nos será jamais possível e nem creio
indisciplina, a mesma falta de discernimento critico. "Língua que devessemos experimenta-lo, porquanto é pela sua ade-
sadia e barbara", expressiva de um modo de sentir e pensar quação á 1CUltura de uma sociedade que a língua se torna um
. que apenas conserva alguns :pontos em comum com as da instrumento realmente util, capaz de atingir o seu objetivo
velha Europa, tem ela, como a civilização que a produziu, precipuo: a melhor, a mais eficiente, a· mais rica e precisa
"uma possante força de atração". comunicação.
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do barroco, um valor que pefa sua força expressiva tirada Esta não estava pois na fidelidade da reprodução, que nos
da deformação voluntaria., espelha o temperamento roman- comovia mais um idolo negro ou uma tela de Gnmewald que
tico, impulsivo, rebelde do artista, já contaminado em sua o retrato fiel obtido pela fotografia.
alma pela Espanha das exaltações religiosas. Pode-se falar O duelo fotografia-pintura, comportou ensinamentos pre-
em superioridade dos gregos ·diante dessa obra atormentada? ciosos e repercutiu de modo inesperado nas concepções
Não será mais certo aludir a concepções diferentes de arte, artisticas da atualida·de. Levou os pintores ao desprezo pelo
resultantes da influencia de meios e culturas diversas? assunto e a meditar sobre os elementos invariaveis da obra
de arte. Fê-los penetrar mais fundo os segredos do Renas-
Bem sei que não é tanto a deformação expressiva que cimerito, mais tambem os das civilizações orientais, e perceber
assusta os menos sensiveis á pintura auteritica (muito em- os seus denominadores comuns esteticos. EJevou o fotografo
bora. as pe1mas dos negros de Portinari os irritem). O que a tomar a realidade unicamente corno ponto de partida para
mais os desconcerta na pintura contemporanea é a indife- uma possível obra de arte. Hoje a fotografia tenta o abstra-
rença pelo assunto. Não seria difícil mostrar entre os re- to, a deformação e até o ingenuo, j.á consciente de que a
nascentistas, e até entre os proprios gregos, manifestações reprodução fiel, tal qual habilidade manual do artesão, não
artísticas desprovidas de qualquer intenção tematica, ou in- significa coisa alguma em arte.
te1'pretações de tal maneira ousadas que descambam para o O "efemero acidente humanista" pouco a pouco torna
abstracionismo. Ha vasos gregos assim decorados, como ha ocupar o lugar que de fato merece, o de nma manifestação
tapetes ·do seculo XV qu'e nada ficam a dever ás telas mo· admiravel mas não uni~a, nem exemplar, uma manifestação
dernas. Porque falar então de inabilidade e ignorancia, .como houve muitas na historia do mundo: China, Japão,
quando tais resultados são alcançados pelos contemporaneos, Egito, Grecia, Bizancio, apogeu cristão, tempos modernos.
e justificam sem mais reflexão as heresias do passado?
Janeiro, 31 - Comentei ha tempos a antologia da poesia
Estamos num caminho errado e a causa do erro reside francesa, organizada ·por Gide. Ressaltei e discuti sua con-
na ideia muito seculo XIX de um continuo progresso do cepção de uma poesia puramente emotiva, feita de imagens
espírito humano. As generosas divagações que se agregaram e musicalidade e da qual deviam ser banidos sentimentos
ao de~envolvimento tecnico e industrial do mundo já foram e eloquencia. E mesmo, em boa parte os artifícios da rima
porem destruida!'I através de n:ma serie de guerras imbecis, e da metrica. Tenho agora em mãos outra antologia íran·
que redundaram na criação de regimens policiais, na perda cesa de V alentina Bastos, impressa na Argentina entretanto
da liberdade, na negação do homem. Tudo demonstra que e com um prefacio de Roger Caillois.
não houve progresso nenhum, menos ainda nas artes do que Embora nem sempre eoncorde cçim esse esteta e socio·
na moral. Temos hoje refrigeradores automaticos que nos logo, não posso deixar ·de admirar sua lucidez e sua clareza,
permitP-m tomar coca-cola gelada, mas não demos um só passo aceitando quase sempre sua analise quando não seu julga-
á frente na descoberta de uma nova solução artistica. E os mento. O prefacio que escreve para essa nova e bem cui-
desenhos de um Tintoreto, ou de um Picasso, não são esteti- dada seleção dos melhores poemas franceses do romantismo
camente mais belos do que os dehnxos do homem das caver· ao modernismo, merece, a meu ver a mais ampla divulgação,
nas. A arte se apresenta, desde o primeiro documento co- ponquanto sua exposição do' caminho percorrido pela poesia,
nhecido em um mesmo nivel estetico, variando apenas os neste ultimo seculo, não se encontrará tão nitida, precisa e
temas a que se atem. E a essas soluções que voltam os sutil em nenhum outro autor contemporaneo.
contemporaneos, após a ilusão perigosa da copia da natureza Começa o sr. Roger Caillois por demonstrar que a con-
que durou até o avento da "kodak". Compreendeu-se então cepção em voga da poesia tem suas raizeé no romantismo,
que a maquina fazia melhor e no entanto não fazia arte. cujos poetas "se entregaram somente á inspiração, tida como

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