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Inclui bibliografia.
ISBN: 978-65-5637-507-6.
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UM CORPO PARA CHAMAR DE EU, MESMO QUE ESTE CORPO SEJA O MEU......137
Sandro Braga
Amanda Braga
Carlos Piovezani
não
eu não falo
pelas mulheres
chega de sermos
interrompidas
não
eu não falo
pelas mulheres
quero ouvi-las
(Bell Puã)
INTRODUÇÃO
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Troia. Telêmaco, por seu turno, interpelando a mãe, não apenas desauto-
riza a solicitação de Penélope, alegando que os aedos não tinham culpa
do destino de Ulisses, como também lhe ordena o retorno aos trabalhos
domésticos – aos “lavores, ao tear e à roca”. Sua mãe até pode falar e
concentrar em sua fala algum poder, desde que se produza em espaço
privado e seja dirigida a outras mulheres, ainda mais desfavorecidas,
porque suas servas. Mas, a fala em público e endereçada a um público
masculino, que pode modificar sua conduta, é uma competência exclu-
sivamente masculina: “falar é aos homens que compete”.
Nessa passagem, Penélope erra pelo excessivo sentimentalismo, pela
demanda endereçada aos aedos, pela ausência de empatia para com outros
que se perderam no retorno de Troia, além de Ulisses, e por ter deixado
seu espaço recluso e seus afazeres domésticos. Mas ela parece errar muito
mais por ter ousado falar num espaço relativamente público, por não ter
reconhecido a autoridade de seu filho e, mais particularmente, por não
ter reconhecido a competência exclusivamente masculina à fala pública.
Com aquilo que formula Telêmaco ao interromper a mãe (“Pois falar é
aos homens/ que compete, a mim sobretudo: sou eu quem manda nesta
casa”), uma primeira unidade discursiva pode ser aqui apontada: aquela
segundo a qual as mulheres, à distinção dos homens, são incompetentes
para a fala pública. Trata-se de uma passagem em que se coadunam, na
mesma medida, a detratação e a interdição da fala feminina.
Mas a materialização de tal discurso não se restringiria ao texto
homérico. Ao longo da Antiguidade assistiremos à emergência de outros
de seus enunciados, sob a forma de uma série de regularidades discursi-
vas. A despeito da passagem do período Arcaico ao Clássico, da entrada
num regime democrático de governo em Atenas e das diferenças entre a
epopeia e a comédia, outra obra concorreria para discriminar e silenciar
a fala feminina. Ekklesiazousai, geralmente traduzida por “A assembleia
das mulheres”, é a décima peça de Aristófanes. Seu enredo consiste na
reunião de um grupo de mulheres que, lideradas por Praxágora, se vestem
com trajes masculinos para ir à assembleia, espaço interditado à presen-
ça feminina. Na assembleia, elas pretendem discursar para o público e
defender a entrega do Estado às mulheres. A comédia narra, então, os
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por isso, podem discursar” e, seu correlato, “as mulheres são frágeis e,
por isso, não podem fazê-lo”, o que ratifica o discurso segundo o qual
as mulheres são incompetentes à fala pública.
Mas há ainda outra unidade discursiva que se materializa na comé-
dia de Aristófanes. Para apreendê-la, basta que atentemos aos distintos
empregos dos verbos λέγειν (lê-se: léguein) e λαλεῖν (lê-se: lalêin). Com
o verbo λέγειν, faz-se referência ao discurso a ser feito em assembleia
e à sua necessidade de ensaio: “[Praxágora] Mas não é esse o intuito
de estarmos aqui reunidas: ensaiar o que devemos discursar lá?”. Na
sequência, por meio do verbo λαλεῖν, alude-se à fala das próprias mu-
lheres ou à fala da qual já haviam se apropriado: “suponho que as outras
já treinaram como falar. [1ª M.] E qual de nós já não é perita em falar,
querida?”. De um lado, o grave e sério pronunciamento na assembleia,
de outro, a frívola e perigosa fala das mulheres. Ainda que os dois verbos
remetam à mesma ação, não são os mesmos os sentidos produzidos por
usos de cada um deles.
Para o ato de discursar em assembleia, lugar restrito à fala mascu-
lina, emprega-se λέγειν, cuja definição seria: “ler em voz alta; recitar;
cantar; dizer; ordenar; dizer com insistência ou com autoridade; falar
como orador” (MALHADAS; DEZOTTI; NEVES, 2006-2010). Já a fala
das mulheres, por sua vez, é referida pelo verbo λαλεῖν, cuja definição
é: “[…] emitir sons inarticulados; tagarelar; assunto objeto de falatório”
(MALHADAS; DEZOTTI; NEVES, 2006-2010). É especificamente no
exercício de fala proposto pelo verbo λαλεῖν que Aristófanes enquadra
a fala feminina: é nele que as mulheres são “peritas”. Assim, em con-
sonância com o discurso de que as mulheres são incompetentes à fala
pública, na comédia de Aristófanes está também materializado aquele
de que não há legitimidade naquilo que elas enunciam, em razão dos
excessos, perigos e frivolidades de suas falas.
Na sequência, ainda na Grécia antiga, mas já em outro tempo e
em outro campo do saber, são produzidos outros textos que continuam
a materializar a discriminação da voz e da fala femininas. No período
Helenístico, Aristóteles empreende um estudo sobre a história natural,
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te. Entre as duas interdições, o que paira como denominador comum não
é apenas a custódia da fala feminina simplesmente, mas a sua dimensão
pública, em especial. Com isso, mais do que uma problemática concernen-
te a espaços físicos, a interdição da fala feminina também na Idade Média
é fenômeno que compreende disputas por lugares de poder: no domínio
público, o exercício oratório tem uma dimensão política constitutiva e
representa a possibilidade de intervenção social. De maneira singular,
também no medievo se repete que “falar é aos homens que compete”.
Estão-lhes reservadas as prerrogativas de falar nos tribunais, de discusar
à comunidade, de exercer o magistério e o sacerdócio. A palavra legítima
do juízo, do governo, da cultura e da salvação continua a ser masculina.
É, pois, num contexto de profunda misoginia que a Baixa Idade
Média assistirá à emergência de um movimento que se oporá aos dis-
cursos e às práticas que detratam e desautorizam a fala das mulheres.
Referimo-nos, aqui, ao movimento das chamadas Beguinas: grupos de
mulheres auto-organizadas que tinham uma vida de oração e de trabalho
social. À frente das Beguinarias, que se alastraram pela Europa a partir
do século XIII, as Beguinas oravam, trabalhavam, educavam as crianças
e cuidavam dos necessitados. Unindo fé cristã e disposição cidadã, ambas
em perspectiva, digamos, libertária, questionavam a estrutura religiosa
e o privilégio concedido à palavra masculina, desvencilhando-se, assim,
da hierarquia eclesiástica e das limitações e proibições aí imputadas às
mulheres. Faziam valer uma espiritualidade leiga e afirmavam bastarem
a si mesmas: discutiam as Escrituras e confessavam-se entre si, recla-
mavam o pleno e livre exercício de uma vocação religiosa que lhes fora
negada pelo poder clerical.
Junto a esta espiritualidade feminina, nasce uma palavra cuja legi-
timidade será reivindicada e afirmada. À frente do rebanho de crianças,
pobres e enfermos que conduziam, empenharam-se na relação pedagógica
e na pregação pública da palavra divina: falavam não apenas entre si nas
Beguinarias, mas também nas praças, nas pontes, entre outros espaços
públicos. Ignoravam os limites dos conventos e propunham equiparar ou
mesmo substituir a mediação masculina. Falavam ativamente e em voz
alta para todos, com autoridade e fascínio. Mais do que isso: ensinavam
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dupla” em que lutam as mulheres. Uma trincheira que faz com que não
lhes seja suficiente se apresentarem ao debate sobre um determinado
tópico, porque às mulheres é ainda necessário que reivindiquem o direito
de falar, de fazerem propostas, de serem reconhecidas como pessoas que
têm conhecimento sobre aquilo de que falam, que estão em condições de
contribuir com o debate, que têm ideias coerentes e recursos retóricos
para veiculá-las e torná-las dignas de crédito.
O feminismo não apenas reclama o direito ao pleno exercício da
fala feminina, mas também a sua legitimidade e sua credibilidade. Por
um lado, isso pode ser comprovado com a luta travada pelo movimento,
desde os anos setenta do século XX, para atribuir status legal de crime a
eventos atrozes como o estupro, a violência doméstica, o assédio sexual.
Nessa luta, a escuta e a palavra são fundamentais. Na sequência desses
episódios brutais, há a necessidade básica de ouvir as vítimas, bem
como de legitimar aquilo que dizem, de suspender a ideia tão arraigada
de que a fala feminina não é confiável, porque intrinsecamente exagera-
da, confusa, leviana, mentirosa e maldosa. Nesse caso, a confiança em
sua palavra é um instrumento necessário à própria sobrevivência das
mulheres, uma vez que “[…] a violência é uma maneira de silenciar as
pessoas, de negar-lhes a voz e a credibilidade, de afirmar que o direito
de alguém de controlar vale mais do que o direito delas de existir, de
viver” (SOLNIT, 2017b, p. 17).
Por outro lado, esse fato também se comprova com o esforço feito
pelo feminismo para nomear certos fenômenos do dispositivo de silen-
ciamento feminino. Há, em boa parte das batalhas feministas, o postu-
lado de que o discurso cria o objeto de que fala ou ao menos de que ele
concorre para sua criação. É assim que foram cunhadas estas expressões:
manterrupting – a prática masculina de interrupção da fala feminina e,
portanto, de interdição à conclusão de um raciocínio; mansplaining –
comportamento masculino que assalta a fala feminina, porque subestima
a capacidade de compreensão das mulheres, fazendo com que o homem
se sinta instado a explicar-lhes didaticamente questões muito óbvias ou
questões nas quais a interlocutora tem mais conhecimento; e gaslighting
– uma forma de abuso psicológico a partir do qual os homens reduzem
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rísticas da classe masculina: são “homices”. Mas o que poderia ter sido
mais uma circunstância de interrupção masculina da fala feminina se
tornou ensejo para a presença de espírito e para o devido aproveitamento
do kairós, por meio dos quais Marielle identificou, recusou, confrontou
e denunciou o manterrupting.
A rosa ofertada é a tentativa supostamente lisonjeira de calar uma
mulher que fala num lugar de poder, sob o pretexto de que se lhe rende
uma homenagem. Nesse tipo de ocasião, reside um ardil: ou a mulher
corresponde ao papel da afabilidade submissa que lhe é frequentemente
imputado e se mostra grata ao outro que a “homenageia”, ou identifica,
questiona e rompe com esse papel e dá margem para a reprodução de
dizeres que afirmam seu descontrole e sua histeria. A despeito dessa arma-
dilha e da imposição da luta na “trincheira dupla”, em que não basta que
as mulheres se apresentem ao debate público, porque é preciso que elas
reivindiquem o direito de falar, de se fazerem ouvir e de serem ouvidas
com legitimidade e crédito, Marielle enfrenta a situação com coragem
e astúcia. Ao receber a rosa e reconhecer na oferta a reatualização de
práticas e discursos sexistas, ela opera rapidamente um deslocamento
de seu sentido: “As rosas da resistência nascem do asfalto”, adverte a
vereadora, lembrando Drummond, para quem a flor, ao nascer na rua,
“fura o asfalto, o tédio, o nojo e o ódio” (ANDRADE, 2010, p. 37). Nas
mãos de Marielle, a rosa deixa de ser uma memória para ser ato e anún-
cio: performance e promessa de resistência às práticas de coerção e de
silenciamento de que foi constantemente alvo.
Referimo-nos a uma resistência que significa plena atuação no
interior desta “trincheira dupla”, com vistas a uma reorganização das
relações políticas e sociais em torno da fala pública. Referimo-nos, do
mesmo modo, a uma performance e a uma promessa marcadas no que
diz e no modo de dizer da vereadora: “Nós recebemos rosas, mas tam-
bém estaremos com os punhos cerrados, falando do nosso lugar de vida
e resistência”. Uma vez mais, a conjunção adversativa insere o ponto
sobre a qual recai a ênfase: a despeito da rosa ofertada, da memória que
ela faz emergir e mesmo da serenidade para recebê-la, são os “punhos
cerrados” que prevalecem no pronunciamento de Marielle, no gesto e
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