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Tuxped Serviços Editoriais (São Paulo - SP)

B989p Butturi Junior, Atilio et al (orgs.).


Pandemias discursivas / Organizadores: Atilio Butturi Junior, Cristine Gorski Severo,
Rodrigo Acosta Pereira e Sandro Braga.
1. ed. – Campinas, SP : Pontes Editores, 2022; figs.; fotografias.

Inclui bibliografia.
ISBN: 978-65-5637-507-6.

1. Análise do Discurso. 2. COVID-19. 3. Linguística. I. Título. II. Assunto. III. Organizadores.

Bibliotecário Pedro Anizio Gomes CRB-8/8846

Índices para catálogo sistemático:

1. Catástrofes (terremotos, epidemias, pandemias, guerras). 302.2345


2. Análise do Discurso. 401.41
3. Linguística. 410
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2022 - Impresso no Brasil


SUMÁRIO
O DISCURSO COMO PANDEMIA OU O QUE PODEM AS ANÁLISES DOS
DISCURSOS?.................................................................................................................7
Atilio Butturi Junior
Sandro Braga

O ACONTECER DA VOZ: HOMENAGEM A PEDRO DE SOUZA.........................19


Suzy Lagazzi

DA VOZ À ORELHA. MEMÓRIA DA LÍNGUA FALADA NAS CANÇÕES..........23


Pedro de Souza

PRÁTICAS LINGUÍSTICAS AFRO-DIASPÓRICAS E A CONSTRUÇÃO DO COMUM:


O CONTEXTO DAS CASAS RELIGIOSAS DE MATRIZES AFRICANAS.............35
Cristine G. Severo
Ana Cláudia F. Eltermann

QUEM MANDOU CALAR MARIELLE? MARIELLE FRANCO E A LUTA


PELA PALAVRA FEMININA......................................................................................55
Amanda Braga
Carlos Piovezani

“PRA GENTE MULHER, É MUITO DIFÍCIL” OU DAS RESISTÊNCIAS


POSSÍVEIS ÀS VIDAS HIV+.......................................................................................91
Camila de Almeida Lara

A PREP, O PERIGO, O VIAGRA: UMA LEITURA NEOMATERIALISTA DOS


DISCURSOS SOBRE A ANORMALIZAÇÃO DAS SEXUALIDADES....................115
Atilio Butturi Junior

UM CORPO PARA CHAMAR DE EU, MESMO QUE ESTE CORPO SEJA O MEU......137
Sandro Braga

GENEALOGIA DOS CORPOS: DO ESTÁBULO PARA AS RUAS..........................157


Cleudemar Alves Fernandes
ALTERIDADE E RESPONSABILIDADE ÉTICO-DISCURSIVA EM TEMPO
DE PANDEMIA.............................................................................................................181
Rodrigo Acosta Pereira
Fernando Arthur Gregol

NECROPOLÍTICA Y PSIQUIATRIZACIÓN DE LA VIDAEN TIEMPOS


DE PANDEMIA.............................................................................................................201
Sandra Caponi

A PANDEMIA EM FOTOS – UM OLHAR BAKHTINIANO.....................................219


Marilia Amorim

O SUJEITO EM TEMPOS DE PANDEMIA: O NEGACIONISMO DO


CONHECIMENTO CIENTÍFICO.................................................................................249
Maria Bernadete Fernandes de Oliveira

A CIÊNCIA E O DISCURSO CIENTÍFICO.................................................................275


Maurício Eugênio Maliska

DESTRUIÇÃO DO COMUM E CARTOGRAFIA DOS PROCESSOS DE


SUBJETIVAÇÃO EM CURSO.....................................................................................295
Bruno Deusdará

SOBRE OS ORGANIZADORES E A ORGANIZADORA..........................................319

SOBRE OS AUTORES E AS AUTORAS.....................................................................321


pandemias discursivas

QUEM MANDOU CALAR MARIELLE?


MARIELLE FRANCO E A LUTA PELA PALAVRA
FEMININA

Amanda Braga
Carlos Piovezani

não
eu não falo
pelas mulheres
chega de sermos
interrompidas
não
eu não falo
pelas mulheres
quero ouvi-las
(Bell Puã)

INTRODUÇÃO

Comecemos por relembrar três acontecimentos que ocorreram no


Brasil dos últimos anos. Em junho de 2018, a então pré-candidata à
Presidência da República, Manuela D’Ávila (PCdoB), era a entrevis-
tada do programa Roda Viva. No decurso de suas respostas, D’Ávila
seria interrompida em 62 (sessenta e duas) ocasiões; Guilherme Boulos,
concorrente ao mesmo posto, quando entrevistado no mesmo programa,
o fora apenas 9 (nove); Ciro Gomes, ainda menos: 8 (oito) vezes. A

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pandemias discursivas

injustiça sofrida pela política do PCdoB e imputada pela misoginia dos


entrevistadores do Roda Viva não ficaria sem repercussão, sob a forma
de diversos discursos (BRAGA; PIOVEZANI, 2020).
Mais recentemente, em agosto de 2021, durante uma audiência que
apurava ameaças aos Poderes, a partir da reivindicação da volta ao voto
impresso, a deputada Fernanda Melchionna (PSOL) tinha começado a
falar, quando foi interrompida pelo deputado José Medeiros (Podemos):
“Ela tá inscrita agora? É a vez dela?”. Melchionna, então, rebateu:
“Acabaram de me passar a palavra, Zé Medeiros. Tu adora interromper
mulher. Te contenha aí”. A réplica de Medeiros é uma pergunta ofensi-
va, “Você é mulher?”, e Melchionna responde nestes termos: “Eu sou
mulher, mas não me intimido para homem que fala grosso e fica fazendo
ameacinha. Vou falar!”. O parlamentar do Podemos, então, disparou:
“Ah, vai se lascar”; e Melchionna, sem se deixar intimidar, retorquiu:
“Vai tu” (VASQUES, 2021).
Já em fevereiro de 2022, a vereadora Camila Rosa (PSD), de Apa-
recida de Goiânia (GO), fez uma postagem em redes sociais, na qual
defendia a ampliação da participação das mulheres e de outras minorias
na política. Um de seus apoiadores elogiou sua posição e acrescentou
que a Câmara de Aparecida era composta por “um bando de machistas”.
Durante uma sessão ocorrida logo após essas publicações nas redes
sociais, o presidente da Câmara, vereador André Fortaleza (MDB), se
aproveitou dessa sua condição para tentar se defender, monopolizando
a fala naquele contexto: “Eu não sou machista. Sou contra fake news.
Isso aqui para mim é uma fake news. Eu não sou contra classe feminina,
sou contra cotas. Eu sou contra oportunismo, sou contra ilusionismo. E
por mim, não adianta, pode ser mulher, pode ser homem, pode ser ho-
mossexual… Eu só falei que os direitos têm que ser iguais e os deveres,
também”. Em seu direito de resposta, Rosa afirmou: “Não disse isso.
Agora, se o senhor entendeu isso, a carapuça pode ter servido. O senhor
sempre fala de caráter, fala de transparência, mas parece que o senhor
tem algum problema com isso”. A discussão entre ambos seguiu com a
exigência da vereadora de que ela fosse devidamente respeitada e com
a tentativa de intimidação de seu colega, que, em postura autoritária,

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pandemias discursivas

repetia: “Eu sou o presidente!”. Como Rosa não se intimidava, Fortaleza


deu a ordem para que seu microfone fosse desligado: “Corta o microfone
dessa vereadora para mim. Agora!” (RODRIGUES, 2022).
Ainda que possam parecer fatos isolados ou dispersos, esses aconte-
cimentos, de distintos modos e em níveis variados, atestam a regularidade
de uma vontade de calar a fala pública feminina. Eles nos permitem
flagrar a materialização contemporânea de práticas e discursos que, em
um trabalho incessante, buscam detratar, deslegitimar e interditar a fala
das mulheres, sobretudo, no espaço público. Mais do que isso: são acon-
tecimentos que confirmam a hipótese aventada por Courtine e Piovezani
(2015), segundo a qual existiria, mais presente e atuante do que talvez
pudéssemos supor, uma “sexuação” nas práticas e representações da
fala pública. Essa sexuação consistiria, segundo os autores, no fato de a
distribuição das possibilidades e dos efetivos exercícios da fala pública,
bem como de seus poderes, alcances e efeitos, ser atravessada e cons-
tituída por uma histórica e social divisão entre os universos masculino
e feminino. Em práticas e discursos desse processo, cuja emergência e
manutenção alcançariam uma história de longo alcance,

[…] contrapõem-se a força viril do orador que fala e vence


o tumulto dos auditórios e a passividade feminina sob a
forma cômoda do silêncio; contrastam-se a virtude mas-
culina da coragem exigida pela parrêsia e o vício feminino
da bajulação e do eufemismo; demarcam-se, finalmente,
o ideal masculino da voz, que se assentaria na harmonia
firme e viril da fala e que remonta à força dos gritos de
guerra e caça, e a feminidade sedutora do canto, no qual
ecoariam a melodia de ninfas e sereias (COURTINE;
PIOVEZANI, 2015, p. 17).

Considerando esta contraposição entre o que seriam as supostas


aptidões masculinas para falar em público e o que se alega serem as fragi-
lidades e incompetências femininas ao desempenho oratório, este capítulo
trata da longa duração histórica dos discursos hegemônicos e opressores

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pandemias discursivas

que visam ao silenciamento da fala feminina, bem como dos dissidentes


e igualitários que lhes resistem. Mais precisamente, propomos analisar
uma série enunciativa que materializa, da Antiguidade Clássica aos dias
atuais, um conjunto de ideias, crenças e representações a propósito do
desempenho oratório das mulheres no espaço público. O intuito será o
de mostrar que esta série enunciativa encarna uma verdadeira e desigual
batalha em torno da palavra feminina, na medida em que suas lutas com-
preendem tanto a emergência e o funcionamento de um dispositivo que
busca o silenciamento da fala pública das mulheres, quanto a emergência
e o funcionamento de discursos que se contrapõem a este silenciamento,
reivindicando, em condição minoritária, o direito e a legitimidade de se
falar em público em condições de igualdade.
Trata-se aqui de uma luta de proveniências remotíssimas que se
estabelece de tal modo e com tal força que seus ecos se estendem até a
contemporaneidade. Para demonstrar seu funcionamento no Brasil con-
temporâneo, pretendemos analisar enunciados que tematizam o desem-
penho oratório de Marielle Franco, mulher negra, lésbica e periférica, ex-
vereadora do PSOL pela cidade do Rio de Janeiro e assassinada em 2018.
Com tal análise, será possível demonstrar, por um lado, que, a despeito
das consideráveis transformações históricas nas condições de produção
dos discursos e a despeito da diversidade dos tempos, dos espaços, das
instituições, dos campos de saber e dos gêneros discursivos, as discri-
minações da fala feminina atravessaram os séculos e continuaram a se
perpetuar em nossos dias. Por outro lado, será também possível demons-
trar as resistências dos discursos que se opõem a essas discriminações
de longa data, à medida que movimentos, práticas e discursos feministas
se consolidam na contemporaneidade. Assim sendo, poderemos atestar
que, ante um amplo e sólido conjunto de discursos que estigmatizam e
deslegitimam a fala das mulheres, há vozes igualitárias e feministas que
lhe resistem, que o refutam e que se fazem ouvir, atualizando e reorga-
nizando uma viva e histórica disputa pela palavra.
Para tanto, partimos do princípio foucaultiano segundo o qual a
produção do discurso “[…] é ao mesmo tempo controlada, selecionada,
organizada e redistribuída por certo número de procedimentos que têm

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pandemias discursivas

por função conjurar seus poderes e perigos, dominar seu acontecimento


aleatório, esquivar sua pesada e temível materialidade” (FOUCAULT,
2001, p. 8-9). Esses procedimentos fazem com que o discurso seja algo
raro, porque consiste na diferença entre a abundante potência de tudo o
que as regras da lógica e da língua permitiriam dizer e a escassez dos
atos que materializam o que efetivamente se diz. Em larga medida,
essa sua rarefação deriva das relações de poder entre distintos grupos
sociais e entre os sujeitos no interior desses grupos (FOUCAULT,
2010). Assim, não é possível a qualquer um falar de qualquer coisa
em qualquer circunstância. Contudo, se se tratar de uma mulher, em
espaço público, filiada a posições igualitárias e cujas presença, postura
e palavras tenham potencial de transformação social, numa sociedade
profunda e extensivamente desigual, o controle sobre o que ela diz,
sobre suas maneiras de dizer e sobre onde circularão as coisas ditas
será ainda mais intenso.
Instaura-se, com isto, uma repartição desigual entre os sujeitos
e, por conseguinte, entre as condições de dizibilidade, entre o que é
efetivamente dito e entre os modos masculinos e femininos de dizer.
O discurso consiste, portanto, em uma prática de poder pela qual lu-
tamos. Ele é o “poder de que queremos nos apoderar” (FOUCAULT,
2001, p. 10), porque encerra nosso direito de dizer e de nos fazermos
ouvir; ele compreende a validade, a força, a conservação e o alcance
do que dizemos. No discurso se travam lutas pela palavra. É nele que
os lugares de poder e os modos de resistência se opõem permanente,
recíproca e desigualmente em meio às relações sociais desniveladas e
aos sistemas diversos de opressão e dominação. Nosso interesse, aqui,
consiste em cartografar essas lutas táticas e estratégicas pela fala femi-
nina, considerando os discursos que, em uma longa duração histórica,
pretendem constituir detratações, deslegitimações e interdições da fala
pública das mulheres, bem como aqueles que, também em uma longa
duração – antes, com menor, e, hoje, com maior alcance –, lhes fizeram
frente, lhes resistiram e trabalharam em prol de uma desconstrução dos
lugares de poder que pleitearam e continuam a pleitear o silenciamento
das vozes femininas.

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pandemias discursivas

LUTAR PELA PALAVRA: DOS ANTIGOS AOS MODERNOS

Eis uma passagem da Odisseia, de Homero, na qual Penélope des-


ce de seus aposentos e se dirige ao grande salão do palácio, onde seus
pretendentes se amontoam à sua espera e à disposição de sua escolha:

Chorando assim falou ao aedo divino:


“Fémio, conheces muitos outros temas que encantam os homens,
façanhas de homens e deuses, como as celebram os aedos.
Uma delas cantam agora, enquanto estás aí sentado; e que eles
em silêncio bebam o seu vinho. Mas cessa já esse canto tão triste,
que sempre no meu peito o coração me despedaça,
visto que em mim está entranhada uma dor inesquecível.
Pois vem-me sempre à memória a saudade daquele rosto,
do marido a quem toda a Hélade e Argos celebram.”
Tal resposta deu à mãe o prudente Telémaco:
“Minha mãe, por que razão levas a mal que o fiel aedo
nos deleite de acordo com a sua inspiração? Não são
culpados os aedos, mas Zeus: aos homens que por seu pão
trabalham estabeleceu o destino que entendeu.
Não é justo levarmos a mal que ele cante a desgraça dos Dânaos.
Pois os homens apreciam de preferência o canto
que lhes pareça soar mais recente aos ouvidos.
Que o teu espírito e o teu coração ousem ouvir.
Não foi só Ulisses que perdeu o dia do retorno
em Tróia; também pereceram muitos outros.
Agora volta para os teus aposentos e presta atenção
aos teus lavores, ao tear e à roca; e ordena às tuas servas
que façam os seus trabalhos. Pois falar é aos homens
que compete, a mim sobretudo: sou eu quem manda nesta casa.”
(HOMERO, Odisseia 1, v. 325-359, grifos nossos).

Conforme vimos, a cena é a seguinte: “Chorando”, a frágil Penélope


sugere ao aedo, que então cantava aos presentes, uma mudança na temá-
tica do que era então entoado: o “canto tão triste” lhe trazia a memória
de Ulisses, seu marido, de quem ainda esperava o retorno da Guerra de

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pandemias discursivas

Troia. Telêmaco, por seu turno, interpelando a mãe, não apenas desauto-
riza a solicitação de Penélope, alegando que os aedos não tinham culpa
do destino de Ulisses, como também lhe ordena o retorno aos trabalhos
domésticos – aos “lavores, ao tear e à roca”. Sua mãe até pode falar e
concentrar em sua fala algum poder, desde que se produza em espaço
privado e seja dirigida a outras mulheres, ainda mais desfavorecidas,
porque suas servas. Mas, a fala em público e endereçada a um público
masculino, que pode modificar sua conduta, é uma competência exclu-
sivamente masculina: “falar é aos homens que compete”.
Nessa passagem, Penélope erra pelo excessivo sentimentalismo, pela
demanda endereçada aos aedos, pela ausência de empatia para com outros
que se perderam no retorno de Troia, além de Ulisses, e por ter deixado
seu espaço recluso e seus afazeres domésticos. Mas ela parece errar muito
mais por ter ousado falar num espaço relativamente público, por não ter
reconhecido a autoridade de seu filho e, mais particularmente, por não
ter reconhecido a competência exclusivamente masculina à fala pública.
Com aquilo que formula Telêmaco ao interromper a mãe (“Pois falar é
aos homens/ que compete, a mim sobretudo: sou eu quem manda nesta
casa”), uma primeira unidade discursiva pode ser aqui apontada: aquela
segundo a qual as mulheres, à distinção dos homens, são incompetentes
para a fala pública. Trata-se de uma passagem em que se coadunam, na
mesma medida, a detratação e a interdição da fala feminina.
Mas a materialização de tal discurso não se restringiria ao texto
homérico. Ao longo da Antiguidade assistiremos à emergência de outros
de seus enunciados, sob a forma de uma série de regularidades discursi-
vas. A despeito da passagem do período Arcaico ao Clássico, da entrada
num regime democrático de governo em Atenas e das diferenças entre a
epopeia e a comédia, outra obra concorreria para discriminar e silenciar
a fala feminina. Ekklesiazousai, geralmente traduzida por “A assembleia
das mulheres”, é a décima peça de Aristófanes. Seu enredo consiste na
reunião de um grupo de mulheres que, lideradas por Praxágora, se vestem
com trajes masculinos para ir à assembleia, espaço interditado à presen-
ça feminina. Na assembleia, elas pretendem discursar para o público e
defender a entrega do Estado às mulheres. A comédia narra, então, os

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pandemias discursivas

obstáculos encontrados pelo grupo para a realização desse projeto. En-


tre os empecilhos com que se deparam, estaria, não por acaso, a parca
habilidade oratória, o que funciona, no texto, como parte de sua graça.
Vejamos, a seguir, algumas passagens que materializam mais emblema-
ticamente o discurso de menosprezo pela fala feminina:

[1ª Mulher] E como uma associação de mulheres frágeis vai


discursar na assembleia?
[Praxágora] De um modo excelente. Pois dizem dos jovens
que, quanto mais enrabados, mais terríveis são no discursar.
Assim, a coisa começa bem para nós.
[1ª Mulher] Não sei, terrível é a falta de experiência.
[Praxágora] Mas não é esse o intuito de estarmos aqui reu-
nidas: ensaiar o que devemos discursar lá? Você aí, não
se antecipe em prender a barba; suponho que as outras já
treinaram como falar.
[1ª Mulher] E qual de nós já não é perita em falar, querida?
[…]
[Praxágora] Então vai, põe a coroa: vai dar tudo certo. Agora
tente falar bonito como um homem, apoiando a postura na
bengala.
[2ª Mulher] Eu preferia que outro, desses acostumados a dis-
cursar, fizesse o melhor, enquanto eu assistiria calmamente
sentada…
(ARISTOPHANES, Ekklesiazousai, v. 110-120, 148-152).

Pelos excertos, é possível afirmar que o absurdo narrado pela co-


média está assentado numa oposição fundamental: a força e a aptidão
para falar em público, de um lado, e a fragilidade e sua inaptidão à fala
pública, de outro, tal como nessa passagem: “E como uma associação
de mulheres frágeis vai discursar na assembleia?”. Nessa oposição, há
o discurso que naturaliza a ideia de que a força é um pré-requisito para
a fala. Uma vez que a força seria um atributo viril, a habilidade da fala
se torna apanágio masculino. Paráfrases possíveis do que se enuncia na
comédia de Aristófanes seriam as seguintes: “os homens são fortes e,

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pandemias discursivas

por isso, podem discursar” e, seu correlato, “as mulheres são frágeis e,
por isso, não podem fazê-lo”, o que ratifica o discurso segundo o qual
as mulheres são incompetentes à fala pública.
Mas há ainda outra unidade discursiva que se materializa na comé-
dia de Aristófanes. Para apreendê-la, basta que atentemos aos distintos
empregos dos verbos λέγειν (lê-se: léguein) e λαλεῖν (lê-se: lalêin). Com
o verbo λέγειν, faz-se referência ao discurso a ser feito em assembleia
e à sua necessidade de ensaio: “[Praxágora] Mas não é esse o intuito
de estarmos aqui reunidas: ensaiar o que devemos discursar lá?”. Na
sequência, por meio do verbo λαλεῖν, alude-se à fala das próprias mu-
lheres ou à fala da qual já haviam se apropriado: “suponho que as outras
já treinaram como falar. [1ª M.] E qual de nós já não é perita em falar,
querida?”. De um lado, o grave e sério pronunciamento na assembleia,
de outro, a frívola e perigosa fala das mulheres. Ainda que os dois verbos
remetam à mesma ação, não são os mesmos os sentidos produzidos por
usos de cada um deles.
Para o ato de discursar em assembleia, lugar restrito à fala mascu-
lina, emprega-se λέγειν, cuja definição seria: “ler em voz alta; recitar;
cantar; dizer; ordenar; dizer com insistência ou com autoridade; falar
como orador” (MALHADAS; DEZOTTI; NEVES, 2006-2010). Já a fala
das mulheres, por sua vez, é referida pelo verbo λαλεῖν, cuja definição
é: “[…] emitir sons inarticulados; tagarelar; assunto objeto de falatório”
(MALHADAS; DEZOTTI; NEVES, 2006-2010). É especificamente no
exercício de fala proposto pelo verbo λαλεῖν que Aristófanes enquadra
a fala feminina: é nele que as mulheres são “peritas”. Assim, em con-
sonância com o discurso de que as mulheres são incompetentes à fala
pública, na comédia de Aristófanes está também materializado aquele
de que não há legitimidade naquilo que elas enunciam, em razão dos
excessos, perigos e frivolidades de suas falas.
Na sequência, ainda na Grécia antiga, mas já em outro tempo e
em outro campo do saber, são produzidos outros textos que continuam
a materializar a discriminação da voz e da fala femininas. No período
Helenístico, Aristóteles empreende um estudo sobre a história natural,

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pandemias discursivas

que se assenta no princípio de que haveria um paralelo entre as espécies


e suas vozes. A descrição dessas correspondências entre espécies e vozes
compreendia atribuições de valores e estabelecimento de hierarquias.
No bojo desse princípio, ressalta-se uma distinção entre as tonalidades
vocais masculinas, de um lado, e femininas, de outro. Nessas tonalidades
se subsomem respectivamente as vozes dos homens e das mulheres: “De
um modo geral, a fêmea, na maioria dos animais, tem uma voz mais agu-
da”; “[…] a voz dos machos difere da das fêmeas, sendo que os machos
emitem uma voz mais grave do que elas, em todos os animais cuja voz
se prolonga” (ARISTÓTELES, História dos animais V, Cap. Época e
características da puberdade, § 3-4).
Em Fisiognomía, Aristóteles reitera e estende as caracterizações
da voz grave e da voz aguda, atribuindo-lhes valores bastante distintos:
“Quanto à voz, a grave e intensa indica coragem, e a aguda e fraca, co-
vardia”; “[…] uma voz poderosa é própria do homem corajoso e uma
frouxa, efeminada e fraca do inseguro”; “Quanto aos que falam com voz
aguda, doce e oscilante são afeminados: compara-se às mulheres e ao
conjunto desse aspecto” (ARISTÓTELES, Fisiognomía, § 11, 16, 80).
Paráfrases possíveis do que se enuncia em ambas as obras seriam: “Os
homens têm uma voz grave e intensa, o que significa coragem e poder”
e “As mulheres têm uma voz aguda, fraca e oscilante, o que significa
covardia e insegurança”. Trata-se, assim, de outra forma de detratação
da fala feminina, deixando entrever a ideia segundo a qual não basta
interditar e detratar o exercício de fala pública das mulheres ou mesmo
invalidar seu conteúdo, é preciso ainda subtrair o valor de sua voz, numa
clivagem que a distingue e a inferioriza relativamente à voz masculina.
É esta clivagem que nos permite flagrar, aqui, a materialização de uma
terceira unidade discursiva: aquela que sugere a inadequação da voz
feminina ao exercício oratório.
Mas, qual seria a razão para menosprezar a voz das mulheres nas
detratações, deslegitimações e tentativas de interdição da fala pública
feminina? Linguistas e filósofos nos ensinam que a voz humana, mesmo
quando ainda não articulada sob a forma da fala, já não é mais mero ru-
ído da natureza nem mais rumor bestial. Sua presença é imediatamente

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pandemias discursivas

o sinal de que quem a produz é um corpo falante, um ente que pensa,


sente e tem algo a dizer (AGAMBEN, 2006). A emissão vocal humana
consiste em signo ontológico de um ser semelhante, de um outro como
o eu, porque esse outro não é somente um corpo, mas, um ser humano,
cuja voz indica seu poder e sua vontade de dizer algo. Esse outro é ao
mesmo tempo um corpo e um espírito, matéria e linguagem constituti-
vas de uma mesma entidade. Isso, por sua vez, compromete a divisão
metafísica entre natureza e cultura, entre a materialidade carnal e a in-
tangibilidade anímica. Essa divisão é fundamental para a possibilidade
de reduzir o outro humano a elemento da natureza, a um simples pedaço
de carne ou, ao menos, a um ser situado em posição inferior de uma
hierarquia em cujo topo se situam aqueles que falam com a força viril
distintiva, porque conjuga a virtude e a razão. Disso deriva a obsessão
dos poderes opressores pela depreciação e/ou pela interdição dos atos
de fala de oprimidos, perseguidos e marginalizados. Detratar a voz das
mulheres é passo importante no propósito de não lhes reconhecer devida
e integralmente essa sua própria condição humana.
É assim que, conforme o vimos, em Homero, Aristófanes e Aris-
tóteles, há registros de três unidades discursivas que, conjunta ou se-
paradamente, detratam, deslegitimam e tentam interditar a fala pública
feminina. É constante, aliás, naquilo que concerne ao mundo antigo, a
regularidade dos discursos de que as mulheres deveriam resguardar sua
voz do cenário público: “[…] na maioria das circunstâncias, uma mulher
que falasse em público não era, por definição, uma mulher” (BEARD,
2018, p. 29). Discursos e práticas dessa estigmatização da fala pública
feminina somente seriam atenuados ou mais ou menos modificados em
duas ocasiões: primeiramente, naquelas em que as mulheres se manifes-
tassem na condição de vítimas ou de mártires, ou seja, em circunstâncias
nas quais estivessem desinvestidas de quase qualquer autoridade. Para
além de tal condição, havia também uma possibilidade de suspensão
do silenciamento nas situações em que o assunto tratado permitisse às
mulheres a atuação como porta-vozes: por um lado, poderiam falar em
defesa de seus lares, de seus filhos e maridos; por outro, não lhes era
permitido falar pela comunidade, irrestritamente, ou desde que a classe

65
pandemias discursivas

masculina estivesse concernida, mas apenas e tão somente em defesa


dos interesses femininos.
A Antígona, de Sófocles, tragédia que data do século V a.C., é uma
das comprovações desse fenômeno. Considerada ícone da revolta, a
jovem encarna a contestação quando se vê diante da morte dos irmãos:
Etéocles e Polinices espalham sangue pela cidade de Tebas e se matam
em um confronto pelo trono. Ao primeiro, o novo rei, Creonte, concederá
todos os ritos fúnebres, assim como os que foram consagrados aos demais
cidadãos ilustres. Ao segundo, Polinices, acusado de trair e incendiar a
terra pátria, outorga-se a interdição do sepultamento, de modo a fazer
com que seu corpo permaneça exposto, à mercê dos animais que pode-
riam consumi-lo. O desejo de Antígona não é outro senão o de enterrar o
irmão morto, bem como o exigem os ritos familiares e as leis dos deuses
– superiores, segundo ela, ao poder dos homens. Flagrada em seu intento,
ela será levada até Creonte e, frente a frente, eles protagonizarão um dos
grandes diálogos da narrativa.
Já de início, Creonte a interpelará: “E tu, quero que fales, com
poucas palavras,/ se sabias que isso havia sido proibido por mim” (SÓ-
FOCLES, v. 446-447). Desta concessão impositiva – “quero que fales”
–, decorre a primeira vez em que Antígona tomará a palavra diante do
soberano: trata-se do momento em que, justamente como vítima do
sofrimento pela perda dos irmãos e como mártir para quem a punição
não tardaria, Antígona será instada a falar. Mas não se trata, como bem
se pode observar, de uma permissão irrestrita: se, por um lado, Creonte
a interpela, ordenando que ela fale e que confesse sua transgressão ou
sucumba à covardia, sob a forma da negação ou do silêncio, por outro
lado, é “com poucas palavras” que ele lhe dita o modo como deve fazê-
lo. Sem demora e sinteticamente, Antígona responderá: “Sabia! Como
não saberia? Todos sabiam” (SÓFOCLES, v. 448).
Na sequência, em uma fala que ocupará 20 versos, ela dará ainda
mais provas de sua coragem: reivindicará a legitimidade de seu ato
acostando-se às “imutáveis” leis divinas; anunciará seu destemor diante
da punição decorrente da violação que cometera; afirmará as vantagens

66
pandemias discursivas

da morte que então se anuncia; e atribuirá insanidade àquele que de


insanidade a acusa e que ocupa lugar de grande poder (SÓFOCLES, v.
450-470). Se Antígona fala em defesa de si mesma, ela fala mais ainda
em defesa das determinações dos deuses, da dignidade de sua família e
do sangue de seu irmão: o sangue derramado do corpo de Polinices, cuja
exposição seria, para ela, a verdadeira desgraça. Com isto, uma dupla
desobediência desponta e desencadeia, em definitivo, a cólera de Creon-
te: não só a tentativa de sepultar Polinices, a despeito de sua proibição,
mas também a ousadia de estender sua fala para além dos limites que lhe
foram concedidos. O que a Antígona representa, embora inscrita no lugar
de vítima e de mártir a quem se permite falar pontualmente, porque, em
tese, vai fazê-lo sem força para produzir uma ruptura com os discursos
que a silenciavam, é uma reivindicação da fala pública feminina, tanto
de sua possibilidade quanto de sua legitimidade.
Com a sexuação da fala pública em Homero, Aristófanes e Aristó-
teles, por meio da qual se detratam, se deslegitimam e se buscam inter-
ditar a fala e a voz das mulheres, mas também com a reivindicação de
Antígona do que ela diz e de seus modos de dizer, desnuda-se uma luta
pela palavra feminina no mundo antigo. Os enunciados que a materiali-
zam não se esgotam nem na formulação linguística nem na produção de
certo sentido. Ao contrário, são enunciados produzidos em determinadas
condições históricas e sociais de emergência, que funcionam em rede,
que se abrem a um campo de memória e que permanecem abertos “à
repetição, à transformação, à reativação” (FOUCAULT, 2010, p. 32).
Essas condições históricas e sociais de emergência e suas relações com
os enunciados que já os precediam e com aqueles que ainda os sucede-
rão lhes dão contornos específicos nesse processo muito consolidado de
tentar rebaixar o outro semelhante, isto é, de buscar não reconhecer em
todas aquelas e em todos aqueles com quem os poderes se defrontam a
condição de corpos falantes, de seres que pensam, sentem e falam igual
ao e diferentemente do eu.
Em que pesem as profundas transformações que se processaram
entre a Antiguidade e a Idade Média, os discursos que discriminam a fala
das mulheres e prescrevem seu silenciamento, bem como aqueles que os

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pandemias discursivas

contestam, em condição desigual e desfavorecida, continuam a emergir,


ainda que novamente sem equidade em sua força e em seu alcance. No
medievo, também há grande temor da palavra feminina, que decorre dos
poderes e perigos que lhe são conferidos, tanto no mundo físico como no
mundo espiritual. Exegetas, pregadores e moralistas compartilham suas
inquietações em relação à fala feminina e pregam a necessidade de sua
tutela e mesmo de sua interdição. O mito religioso judaico da criação e da
queda dos humanos, que condena Adão e Eva, mas, ainda mais a última
do que o primeiro, é onipresente no pensamento medieval e dá lastro aos
processos de “caça às bruxas”. Aqui, a fala feminina desempenha um
papel fundamental: “A feitiçaria é, antes de tudo, uma rede de represen-
tações e de palavras”. A terrível e famosa obra dos dominicanos, Malleus
maleficarum, de 1486, não disfarça “[…] sua misoginia, explícita já no
título; é a mulher que é visada, com exceção de uma única, a Virgem
Maria” (LE GOFF; SCHMITT, 2002, p. 424-434). Além do relato da
criação e da queda no Gênesis, na qual Eva usa da palavra para conduzir
Adão ao pecado, boa parte da Idade Média concebeu a diferença hierar-
quizada entre os sexos com base em passagens como estas de São Paulo:

As mulheres estejam caladas nas igrejas; porque não


lhes é permitido falar; mas estejam sujeitas, como tam-
bém ordena a lei. E, se querem aprender alguma coisa,
interroguem em casa a seus próprios maridos; porque é
indecente que as mulheres falem na igreja (1 Coríntios
14: 34, 35).

A mulher aprenda em silêncio, com toda a sujeição.


Não permito, porém, que a mulher ensine, nem use de
autoridade sobre o marido, mas que esteja em silêncio (1
Timóteo 2: 11, 12).

Em tais enunciados, duas interdições estão expressas: tanto aquela


que proíbe o exercício da fala feminina durante as assembleias religiosas,
ou seja, no campo institucional mais importante da era medieval, quanto
aquela que exclui as mulheres da possibilidade de exercer a função docen-

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pandemias discursivas

te. Entre as duas interdições, o que paira como denominador comum não
é apenas a custódia da fala feminina simplesmente, mas a sua dimensão
pública, em especial. Com isso, mais do que uma problemática concernen-
te a espaços físicos, a interdição da fala feminina também na Idade Média
é fenômeno que compreende disputas por lugares de poder: no domínio
público, o exercício oratório tem uma dimensão política constitutiva e
representa a possibilidade de intervenção social. De maneira singular,
também no medievo se repete que “falar é aos homens que compete”.
Estão-lhes reservadas as prerrogativas de falar nos tribunais, de discusar
à comunidade, de exercer o magistério e o sacerdócio. A palavra legítima
do juízo, do governo, da cultura e da salvação continua a ser masculina.
É, pois, num contexto de profunda misoginia que a Baixa Idade
Média assistirá à emergência de um movimento que se oporá aos dis-
cursos e às práticas que detratam e desautorizam a fala das mulheres.
Referimo-nos, aqui, ao movimento das chamadas Beguinas: grupos de
mulheres auto-organizadas que tinham uma vida de oração e de trabalho
social. À frente das Beguinarias, que se alastraram pela Europa a partir
do século XIII, as Beguinas oravam, trabalhavam, educavam as crianças
e cuidavam dos necessitados. Unindo fé cristã e disposição cidadã, ambas
em perspectiva, digamos, libertária, questionavam a estrutura religiosa
e o privilégio concedido à palavra masculina, desvencilhando-se, assim,
da hierarquia eclesiástica e das limitações e proibições aí imputadas às
mulheres. Faziam valer uma espiritualidade leiga e afirmavam bastarem
a si mesmas: discutiam as Escrituras e confessavam-se entre si, recla-
mavam o pleno e livre exercício de uma vocação religiosa que lhes fora
negada pelo poder clerical.
Junto a esta espiritualidade feminina, nasce uma palavra cuja legi-
timidade será reivindicada e afirmada. À frente do rebanho de crianças,
pobres e enfermos que conduziam, empenharam-se na relação pedagógica
e na pregação pública da palavra divina: falavam não apenas entre si nas
Beguinarias, mas também nas praças, nas pontes, entre outros espaços
públicos. Ignoravam os limites dos conventos e propunham equiparar ou
mesmo substituir a mediação masculina. Falavam ativamente e em voz
alta para todos, com autoridade e fascínio. Mais do que isso: ensinavam

69
pandemias discursivas

e pregavam na “língua do povo”, num momento em que os sermões


eram proferidos unicamente em latim. Reside aí a transgressão que
cometeram: elas se fizeram ouvir. Se havia perversão em sua palavra,
havia ainda mais no fato de se colocarem publicamente e de se fazerem
ouvir com legitimidade outorgada às suas falas (GARI; WOLFF, 1995).
Transgrediam por terem encontrado ouvidos atentos em sua vontade de
democratizar a religião; insistiam em uma relação direta com Deus, bem
como na possibilidade de uma expressão religiosa em voz própria, alheia
à interpretação eclesiástica.
Não por acaso, será implacável a perseguição à qual as Beguinas
foram submetidas pela vigilância inquisitorial. No início do século XIV,
no Concílio de Viena, foram condenadas por heresia. O temor eclesiástico
derivava da consolidação de um movimento que validava abertamente a
palavra feminina: falas insubordinadas ao poder masculino (na família, na
Igreja, na estrutura política). Foi assim que a Santa Inquisição perseguiu,
julgou e matou muitas Beguinas, numa resposta direta e violenta a uma
tentativa de falar, de ter legitimidade naquilo que diziam e, mais do que
isso, de serem ouvidas publicamente.
Na Modernidade não assistiremos ao fim dessas lutas em torno da
fala pública das mulheres, cujas batalhas remontam, ao menos, até os
antigos, atravessam a era medieval e chegam ao chamado mundo moder-
no, mediante a continuação mais ou menos modificada da sexuação de
suas práticas e de suas representações. O advento da Revolução Francesa
vai perturbar práticas, discursos e tradições do Antigo Regime. Novos
atores e desempenhos surgem no palco da história da fala pública, sem
que necessariamente essas transformações carreassem a completa elimi-
nação de velhos hábitos, de imaginários persistentes e de discriminações
ancestrais. No bojo da Revolução, porta-vozes das classes populares
conquistaram algum direito de fala, porque a ideia de soberania popular
concorria para incluir no campo da fala pública certos oradores que não
provinham nem da nobreza nem da burguesia. A despeito dessas con-
quistas mais ou menos democráticas, os deputados eram praticamente os
únicos que atendiam a critérios legais e condições efetivas para o acesso
à palavra e para o desempenho da fala pública considerada legítima na

70
pandemias discursivas

Assembleia nacional. Era com base nesses critérios e condições que se


excluía a maioria da população, em particular os pobres e as mulheres,
da efetiva participação nos debates públicos e nas ações políticas.
A resistência feminina e sua busca por reconhecimento e por
espaço na sociedade e na política revolucionárias foram intensas. Muitas
mulheres lutaram para ter direito de fala no desenrolar daquela convulsão
social. Eis um exemplo dessas lutas e de suas complexidades e ambivalên-
cias: pouco depois da queda da Bastilha e da publicação da Déclaration
des droits de l’homme et du citoyen, surgiria em 1791 a Déclaration des
droits de la femme et de la citoyenne, de autoria de Olympe de Gouges.
Em seu preâmbulo e em seus primeiros artigos, podemos ler algo que
era mesmo revolucionário:

As mães, as filhas, as irmãs, representantes da nação, soli-


citam ser integradas à Assembleia nacional. […] para que
as reclamações das cidadãs, fundamentadas desde então
em princípios simples e incontestáveis, se convertam em
benefício da Constituição, dos bons costumes e da feli-
cidade de todos. Por conseguinte, o sexo superior, tanto
em beleza quanto em coragem, nos sofrimentos maternos,
reconhece e declara, na presença e sob os auspícios do
Ser supremo, os seguintes Direitos da Mulher e da Cidadã
(GOUGES, 1791).

Os artigos 7, 8 e 9 afirmam manifesta e reiteradamente a vontade de


igualdade, de modo a dificultar os argumentos contrários que sustenta-
riam a ideia de que as mulheres estariam reivindicando privilégios e não
equidade de direitos e deveres em relação aos homens. Esse é o ensejo
para o que se lerá nos artigos 10 e 11:

Ninguém deve ser perturbado por suas opiniões funda-


mentais. A mulher tem o direito de ser condenada ao
cadafalso, ela deve ter igualmente o direito de subir à
Tribuna, desde que suas manifestações não perturbem a
ordem pública estabelecida pela lei.

71
pandemias discursivas

A livre comunicação de seus pensamentos e opiniões é um


dos direitos mais preciosos da mulher, uma vez que essa
liberdade garante a legitimidade dos pais em relação aos
seus filhos. Toda cidadã pode, portanto, dizer livremente
“Eu sou a mãe de uma criança que lhe pertence”, sem
que qualquer bárbaro preconceito a force a dissimular a
verdade, com exceção somente das circunstâncias em que
ela terá de responder pelo abuso dessa liberdade conforme
os casos determinados pela Lei (GOUGES, 1791).

A participação das mulheres na Revolução foi decisiva e não se


limitou à Declaração de 1791. Antes e depois de sua publicação, a
atuação feminina foi fundamental para a emergência e para certos des-
dobramentos revolucionários. Entre agosto e setembro de 1789, houve
dezenas de protestos femininos pelas ruas e praças de Paris. No dia 05 de
outubro, por volta de sete mil mulheres, principalmente vendedoras de
peixe da capital francesa, marcharam até Versalhes para protestar contra
a escassez de alimentos e contra os altos preços do pão. As pressões
dessas manifestantes culminaram na condução de Luís XVI para Paris,
onde o rei passava a ficar mais exposto às reivindicações populares,
menos sujeito às influências de membros da corte e com menor margem
para vetar as propostas de reformas. Não obstante essas lutas femininas,
emerge essa ambivalente, mas relativamente compreensível, associação
entre liberdade de expressão e designação legítima da paternidade de uma
criança por sua mãe, como vimos na Declaração, assim como esse seu
excessivo apego à ordem pública e à legalidade. Mas, há ainda outras e
mais profundas ambivalências e mesmo muitos preconceitos contra as
mulheres em formulações de Olympe de Gouges, tal como na seguinte:

As mulheres fizeram mais mal do que bem. Constrangi-


mento e dissimulação têm sido seu destino. A força que
lhes foi roubada, elas recuperam com seus ardis. Elas
podiam se valer de todos os recursos de seus encantos
e, assim, a pessoa mais irrepreensível não lhes resistiria.
O veneno e a espada se sujeitavam a elas… O governo

72
pandemias discursivas

francês, em especial, dependeu, durante séculos, da


administração noturna das mulheres. O gabinete não
escondeu nenhum segrego da indiscrição feminina.
Qualquer coisa que caracterizasse a insensatez dos
homens, profana ou sagrada, tudo isso esteve sujeito
à cupidez e à ambição do sexo feminino… (GOUGES
apud OUTRAM, 1997, p. 156).

Nossa abordagem dessas e de outras afirmações não deve ser per-


sonalista. Não se trata de uma posição exclusiva de Gouges, mas de um
pensamento hegemônico no meio revolucionário. Grassava ali a “sín-
drome de Maria Antonieta”, que produzia uma correspondência entre a
frivolidade e a nocividade do Antigo Regime e o universo feminino. As
conversas privadas e as relações pessoais da corte deveriam sucumbir
aos debates públicos viris e virtuosos. É por essa razão que a arte oratória
empregada na Revolução será uma desforra ostentatória da eloquência
masculina sobre a efeminação das conversas de salão e das relações de
alcova. A retórica que triunfa juntamente com a ala majoritária da Re-
volução é viril, tem argumentos veementes e formulações enfáticas, voz
enérgica e tonalidade declamatória, gestos largos e arrebatadores. Essa
dramaturgia oratória está nas antípodas da expressão feminina e se con-
juga com o fato de que as mulheres estarão proibidas de falar em tribunas
públicas, tais como as das cátedras e do parlamento (PERROT, 1998).
Dito isto, remontando aos antigos e avançando até os modernos,
podemos dizer que os discursos de detratação, deslegitimação e inter-
dição da fala feminina, bem como aqueles que, apesar de suas menores
frequência, força e extensão, se opuseram a esses discursos e lutaram
pelo direito e pela legitimidade da expressão pública das mulheres, não
só atravessaram longos séculos e distantes espaços, mas também ul-
trapassaram as fronteiras entre instituições, campos de saber e gêneros
discursivos. Trata-se de uma longa história dessas lutas travadas em
torno da palavra feminina.
Nessas lutas há, por um lado: emergências, consolidações e pleno
funcionamento de um dispositivo de silenciamento das mulheres, particu-

73
pandemias discursivas

larmente no cenário público. Os discursos de detratação, deslegitimação


e interdição da fala feminina são componentes fundamentais desse dis-
positivo (FOUCAULT, 1979), uma vez que enunciam a incompetência
das mulheres para a fala pública, a inadequação da voz feminina ao exer-
cício oratório e os excessos e frivolidades do que é dito pelas mulheres.
Assim, se constituem e se consolidam ideias, ações, comportamentos e
ainda funcionamentos institucionais. Esse dispositivo estrategicamente
tem se apoiado e difundido esses discursos que buscam e muitas vezes
alcançam o silenciamento feminino.
Por outro lado também há, entre antigos e modernos, conforme o
demonstramos, os enfrentamentos que taticamente emergiram e resistiram
a este silenciamento, a despeito da parca legitimidade que lhes foi atri-
buída e da violenta repressão de que foram alvo: são discursos e práticas
que almejaram a possibilidade de as mulheres falarem publicamente, de
romperem com os limites temáticos e com fronteiras temporais impu-
tados a seu exercício oratório, de terem suas falas validadas e de serem
reconhecidas neste lugar de poder que é o campo da fala pública. Essas
lutas, portanto, buscaram combater a hegemonia desses discursos que
inviabilizaram, excluíram ou discriminaram a fala feminina.
Não há, portanto, um equilíbrio de frequência e constância, nem
equivalência de força e de alcance entre tais posições. O que ocorre nessas
batalhas é uma cruel, profunda e extensa desigualdade: os preconceitos e
discriminações contra as mulheres, suas falas e suas atuações no espaço
público foram muito mais consistentes do que os discursos e práticas
que se lhe opuseram. Esse desequilíbrio torna ainda mais notável cada
gesto de resistência que se levantou contra essa misoginia discursiva.
Daí deriva a necessidade de apontarmos para o fato de que, principal-
mente, em sociedades injustas e desiguais, os discursos opressivos, que
aberta ou dissimuladamente beneficiaram poderosos e que direta ou
indiretamente depreciaram despossuídos, estiveram e continuam a estar
muito mais arraigados e a ser muito mais difundidos do que os discur-
sos igualitários e emancipatórios (PIOVEZANI, 2020). Justamente por
esta razão, em que pesem as modificações ocorridas em discursos e em
modos de atuação do dispositivo de silenciamento, sua presença e seus

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pandemias discursivas

efeitos são ainda em nossos dias decisivos nas configurações de práticas


e representações sobre as possibilidades e os exercícios da fala pública.
No próximo tópico, concentrando-nos, particularmente, no cenário bra-
sileiro, o intuito será o de demonstrar tanto seu funcionamento, quanto
as crescentes consistências e visibilidades conquistadas pelos discursos
que atualmente o denunciam e lutam para sua desconstrução.

LUTAR PELA PALAVRA HOJE: A FALA PÚBLICA DE MARIELLE


FRANCO

A sociedade brasileira é profundamente injusta e desigual. Aqui,


com mais forte razão, apesar de todas as inflexões, modificações e rup-
turas históricas e sociais a que assistimos ao longo do século XX, mo-
tivadas, sobretudo, pelas lutas e conquistas do movimento feminista, os
preconceitos contra a fala e a voz femininas estão ainda bastante presentes
e atuantes em nossos dias, numa demonstração de que o dispositivo de
silenciamento das mulheres, cuja emergência remonta pelo menos até a
Antiguidade, continua em pleno funcionamento. No Brasil contemporâ-
neo, em textos de gêneros discursivos diversos e em diferentes esferas
sociais, se materializam separada ou combinadamente e de modo mais
ou menos modificado as três unidades discursivas que identificamos no
tópico anterior.
A despeito dessa força, é também verdade que as batalhas igualitárias
e os êxitos inclusivos, afirmativos e feministas, ainda que não tenham
sido suficientes para confrontar em pé de igualdade os valores misógi-
nos e patriarcais mais do que arraigados, trabalharam e contribuíram
incessantemente para problematizar as implicações políticas, sociais e
comportamentais e ainda os padrões estéticos das práticas e das repre-
sentações da fala pública. Neste sentido, não é sem razão a afirmação
de Perrot (2005, p. 323) segundo a qual “O feminismo, desde a origem,
é tomada de palavra e vontade de representação das mulheres”. Em seu
intento de desconstruir o dispositivo de silenciamento da fala feminina,
tão ardilosa e violentamente construído há tantos séculos, o feminismo
reconhecerá que esse enfrentamento se dá numa espécie de “trincheira

75
pandemias discursivas

dupla” em que lutam as mulheres. Uma trincheira que faz com que não
lhes seja suficiente se apresentarem ao debate sobre um determinado
tópico, porque às mulheres é ainda necessário que reivindiquem o direito
de falar, de fazerem propostas, de serem reconhecidas como pessoas que
têm conhecimento sobre aquilo de que falam, que estão em condições de
contribuir com o debate, que têm ideias coerentes e recursos retóricos
para veiculá-las e torná-las dignas de crédito.
O feminismo não apenas reclama o direito ao pleno exercício da
fala feminina, mas também a sua legitimidade e sua credibilidade. Por
um lado, isso pode ser comprovado com a luta travada pelo movimento,
desde os anos setenta do século XX, para atribuir status legal de crime a
eventos atrozes como o estupro, a violência doméstica, o assédio sexual.
Nessa luta, a escuta e a palavra são fundamentais. Na sequência desses
episódios brutais, há a necessidade básica de ouvir as vítimas, bem
como de legitimar aquilo que dizem, de suspender a ideia tão arraigada
de que a fala feminina não é confiável, porque intrinsecamente exagera-
da, confusa, leviana, mentirosa e maldosa. Nesse caso, a confiança em
sua palavra é um instrumento necessário à própria sobrevivência das
mulheres, uma vez que “[…] a violência é uma maneira de silenciar as
pessoas, de negar-lhes a voz e a credibilidade, de afirmar que o direito
de alguém de controlar vale mais do que o direito delas de existir, de
viver” (SOLNIT, 2017b, p. 17).
Por outro lado, esse fato também se comprova com o esforço feito
pelo feminismo para nomear certos fenômenos do dispositivo de silen-
ciamento feminino. Há, em boa parte das batalhas feministas, o postu-
lado de que o discurso cria o objeto de que fala ou ao menos de que ele
concorre para sua criação. É assim que foram cunhadas estas expressões:
manterrupting – a prática masculina de interrupção da fala feminina e,
portanto, de interdição à conclusão de um raciocínio; mansplaining –
comportamento masculino que assalta a fala feminina, porque subestima
a capacidade de compreensão das mulheres, fazendo com que o homem
se sinta instado a explicar-lhes didaticamente questões muito óbvias ou
questões nas quais a interlocutora tem mais conhecimento; e gaslighting
– uma forma de abuso psicológico a partir do qual os homens reduzem

76
pandemias discursivas

as mulheres à instabilidade emocional, fazendo com que se coloque


em xeque a legitimidade e a credibilidade daquilo que enunciam. São
expressões que atualizam a luta pela palavra feminina, na medida em
que constroem, como fenômenos a serem conhecidos e reconhecidos, as
práticas que buscam sua interdição. Do mesmo modo, são expressões que
desestabilizam o dispositivo de silenciamento das mulheres, na medida
em que desnudam seu funcionamento sistemático e seus modos de atua-
ção, de sua naturalização e de seus efeitos deletérios. Assim, quanto mais
claras se tornam as práticas de opressão e de exclusão, maiores passam
a ser as possibilidades de seu enfrentamento e a eficácia das operações
de sua desconstrução.
O feminismo, portanto, “[…] sempre lutou e continua lutando para
nomear e definir, para falar e ser ouvido” (SOLNIT, 2017b, p. 157). É na
esteira desses lugares e dessas batalhas contemporâneas de resistência que
nos propomos a examinar aqui uma série de discursos sobre a fala pública
de Marielle Franco. Vereadora eleita em 2017 pelo Partido Socialismo
e Liberdade (PSOL), ela foi assassinada em março de 2018, quando se
tornou mundialmente conhecida por sua atuação parlamentar tanto em
defesa de grupos minoritários, fragilizados e marginalizados quanto nas
denúncias da violência policial contra os moradores das favelas cariocas.
São raras as menções à Marielle Franco na grande mídia antes de
seu assassinato. Em jornais e revistas do establishment como Folha de
São Paulo, Estado de São Paulo e a revista Veja, e mesmo em veículos
de perfil progressista como a revista Carta Capital, elas são praticamente
inexistentes. Há, por exemplo, apenas uma rápida referência à Marielle
nesta última, em dezembro de 2017, quando da publicação de um livro
de que ela participara (MULHERES…, 2017). Esta invisibilidade e
esse silêncio, que podem ter sido produzidos por muitos fatores – entre
os quais seu cargo restrito ao âmbito municipal, mas, sobretudo, pela
falta de interesse da grande mídia em repercutir suas ideias igualitárias
e emancipatórias –, seriam quebrados somente após sua morte. A partir
de então, uma série de enunciados serão produzidos e veiculados a seu
respeito. Mais importante do que isto: também um conjunto de vídeos
– outrora restritos a uma circulação partidária ou local, possivelmente

77
pandemias discursivas

entre seus eleitores e admiradores –, ganhará as redes sociais e permitirá


conhecer a Marielle parlamentar, sua atuação combativa e sua resistência
aos discursos hegemônicos, às práticas de injustiça e discriminação, mas
também as recorrentes tentativas de silenciamento de que foi vítima.
Dois desses vídeos nos interessam aqui. Primeiramente aquele
publicado pela própria Marielle em 17 de agosto de 2017 e bastante
difundido após seu assassinato. Nele é reproduzido um pronunciamento
na Câmara Municipal do Rio de Janeiro, no qual a vereadora repreende
o colega parlamentar Marcello Siciliano (à época, filiado ao PHS)1, que
debochava dentro e fora do plenário do “PL da visibilidade lésbica”. Ao
fazê-lo, Marielle ressalta o valor de sua própria fala:

E aí, Marcello, como eu tenho bom diálogo com você,


queria registrar só uma coisa na sua fala para além da ques-
tão com o Messina e com o governo: a minha palavra
é a palavra de mulher, mas vale, não é só palavra de
homem que vale não. E outra coisa: vale mais, inclusive,
de que meia dúzia aqui que desce falando gracinha no
elevador pra assessoria com relação às questões do PL
da visibilidade lésbica ontem. Então eu tô dispondo os
microfones – claro que com a anuência da presidência,
que cada um se inscreva pra falar no microfone… Nem
fazer piada no elevador, e nem muito menos achar que a
palavra que vai valer aqui é só palavra de homem, que a
palavra de mulher aqui vai valer também (FRANCO,
2017, grifos nossos).

Eis aí um caso emblemático de uma metalinguagem da emancipação.


Marielle fala de sua própria fala e da fala alheia, contemplando vários de
seus aspectos (quem fala, de quem, com quem e onde se fala…), para bem
travar essa luta pela palavra das mulheres e para reivindicar, particular-
mente, o valor da fala feminina. A vereadora ressalta a legitimidade de sua
palavra, indicando que a possibilidade de sua intervenção é insuficiente,
1 Em maio de 2018, o vereador Marcello Siciliano foi apontado como um dos envolvidos na
morte da vereadora Marielle Franco (TESTEMUNHA…, 2018).

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pandemias discursivas

quando se menospreza aquilo que ela diz. Um modo relativamente fre-


quente de tentar deslegitimar a fala de alguém é o menosprezo pelo que
ela tematiza, por meio do deboche do que é dito ou proposto. Assim, não
só se busca produzir o efeito de que se trata de algo sem relevância, mas
também o de que a coisa dita ou proposta é fora de propósito, ridícula
e risível. Vimos aqui que discursos antigos e modernos, com materiali-
zações mais ou menos variadas de misoginia, afirmam que as mulheres
são frívolas e descontroladas e, por isso, dizem coisas banais e falam de
modo histérico de coisas irrelevantes.
No enunciado “a minha palavra é a palavra de mulher, mas vale”,
Marielle demonstra reconhecer os discursos que pretenderiam silenciá-la
ou, ao menos, depreciar sua fala, e se lhes antecipa. Ou seja, antes que
se dissesse qualquer coisa, justamente porque muita coisa já foi dita e
repetida há tantos séculos, a vereadora ocupa um lugar de resistência,
declara e reitera corajosamente a legitimidade da fala feminina. A ne-
cessidade de fazê-lo já aponta para todo desvalor presente e atuante nos
julgamentos e condenações dessa fala. Com isso, o enunciado atualiza
e desloca a memória de uma ilegitimidade que parece intrínseca; uma
memória que remonta aos antigos, passa pelos medievais, atinge moder-
nos e nos alcança na contemporaneidade, tornando-se, não por acaso,
um dos fatores nos quais incide decisivamente a luta feminista. É assim
que o enunciado torna visível o funcionamento do dispositivo de silen-
ciamento da fala feminina e emerge como uma resposta a seus efeitos.
O reconhecimento de toda a rede discursiva que reduz a fala feminina à
futilidade e à vulgaridade é condição para que ela possa ser confrontada
e desconstruída.
Esse confronto está particularmente marcado no modo como esse
enunciado foi formulado por Marielle. O fato de que nele se afirme
primeiramente que se trata de uma “palavra de mulher”, para sobrede-
terminar essa afirmação por meio da oração seguinte, que se introduz
com a conjunção adversativa (“mas vale”), na qual se afirma o valor da
fala feminina, faz o foco e a ênfase recaírem sobre esta última. Assim,
a afirmação de que a fala feminina “vale” se sobrepõe àquela segundo a
qual se trata de uma “palavra de mulher”. Caso fosse construído inversa-

79
pandemias discursivas

mente – “A minha palavra vale, mas é palavra de mulher” –, o enunciado


produziria um efeito bastante distinto e mesmo oposto ao do anterior.
Uma paráfrase possível para a forma como Marielle efetivamente cons-
tituiu seu enunciado seria: “A despeito de todos os discursos que tentam
reduzir a fala feminina à expressão de banalidades e mesquinhez, para
enfraquecer o seu valor, a minha palavra de mulher vale”.
O “valor” de sua fala não é somente afirmado, mas, reiterado. São
três as ocasiões em que Marielle o assevera e ressalta. Primeiramente,
com o enunciado “a minha palavra é a palavra de mulher, mas vale”,
se constrói um valor combativo, apesar dos discursos que intentam seu
silenciamento. Ora, na luta entre posições discursivas que se confrontam,
pode haver ou não referência do discurso que se afirma àquele que é seu
antagonista. Nas circunstâncias em que o enunciador se refere manifesta
e frontalmente à posição com a qual se confronta, para bem rebatê-la,
se produzem os efeitos de franqueza, de coragem e de combatividade.
Em seguida, ao dizer que sua palavra “vale mais, inclusive, de que meia
dúzia aqui que desce falando gracinha no elevador”, sugere-se um valor
superior, dado que a palavra feminina poderia superar o valor atribuído
à masculina, quando esta última consiste em deboche inapropriado e co-
varde, porque feito à revelia da pessoa de quem se debocha, em situação
privada e, portanto, fora do ambiente do debate público.
Por fim, em “a palavra de mulher aqui vai valer também”, se consti-
tui e se projeta um valor equitativo e equiparado entre as falas femininas
e masculinas, porque elas já adquirem e terão o mesmo nível em impor-
tância, de modo que as primeiras passam a ter e encerrarão em si toda a
legitimidade e a autoridade das últimas. O advérbio de lugar e a locução
verbal no futuro produzem os efeitos de que essa equiparação se dá num
lugar de concentração de poder institucional, de que ela ocorre já ali, no
próprio momento e na própria fala e de que essa conquista não se limita
a algo pontual e efêmero, mas que se estenderá às falas femininas que
lá se pronunciarão. Por isso, o enunciado é, ao mesmo tempo, desejo de
igualdade, performatividade política e projeto de emancipação. Assim,
no pronunciamento de Marielle, o abalo no consenso, a oposição ao
discurso hegemônico e o confronto com essa posição, operam no modo

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como ela retoma e desloca, aberta e reiteradamente, a memória de uma


fala ilegítima. Com as expressões “vale”, “vale mais” e “vale também”,
se reconhece essa memória, para se processar sua ressignificação. Esta
última ocorre ora como afirmação de seu contrário, ora como equiparação
entre as falas femininas e masculinas, ora com uma sobrevalorização das
primeiras, quando as segundas se acovardam e se valem de meios escusos.
Um segundo vídeo reproduz o pronunciamento da vereadora rea-
lizado também na Câmara do Rio de Janeiro, em 08 de março de 2018,
dias antes de seu assassinato. Durante sua intervenção, Marielle teria
sua fala interrompida em pelo menos duas ocasiões: primeiramente, sua
exposição é cortada pelo vereador Ítalo Ciba (Avante), que a obstrui para
lhe entregar uma rosa em alusão ao Dia Internacional da Mulher2. Na
sequência, um cidadão que acompanhava a sessão ordinária da galeria da
Câmara Municipal passa a se manifestar em alto volume e a interromper
a fala de Marielle, para defender a Ditadura e se contrapor àquilo que
dizia a parlamentar. As reações da vereadora às duas ocasiões são as
seguintes, respectivamente:

Não vem me interromper agora, não é? Homem fazen-


do “homice”. Meu Deus do céu. Obrigada, Italo. Muito
obrigada! Amém. Obrigada. Obrigada aos vereadores.
Como falei antes, e falava na Fundação Oswaldo Cruz
(Fiocruz) no dia de hoje, as rosas da resistência nascem
do asfalto. Nós recebemos rosas, mas também estare-
mos com os punhos cerrados, falando do nosso lugar
de vida e resistência contra os mandos e desmandos que
afetam nossas vidas (FRANCO, 2018, grifos nossos).

Tem um senhor que está defendendo a ditadura e falando


alguma coisa contrária? É isso? Eu peço que a Presidência
da Casa, no caso de maiores manifestações que venham
a atrapalhar minha fala, proceda como fazemos quando
2 Este episódio foi lembrado pela Folha de São Paulo em 16 de março de 2018, numa das muitas
publicações que fez o jornal sobre Marielle Franco após seu assassinato. Ao referi-lo, na seção
Contraponto, o periódico atribuiu ao texto o seguinte título: As rosas não falam (FOLHA,
2018, p. 4).

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a Galeria interrompe qualquer vereador. Não serei


interrompida, não aturo interrupção dos vereadores
desta Casa, não aturarei de um cidadão que vem aqui
e não sabe ouvir a posição de uma mulher eleita, Pre-
sidente da Comissão da Mulher nesta Casa (FRANCO,
2018, grifos nossos).

Aqui, os enunciados produzidos por Marielle pautam a própria


possibilidade do exercício da fala feminina e os poderes que ele com-
preende. Em tal pronunciamento, Marielle fazia sua exposição quando
foi interrompida pelo vereador do Avante. A previsão da suspensão de
sua fala, sua reação de contrariedade, e aquilo que enuncia – “Não vem
me interromper agora, né?” – nos deixam entrever uma ocorrência que
não era infrequente. Sem atribuir qualquer legitimidade à advertência da
vereadora e por ocasião do Dia Internacional da Mulher, Ítalo Ciba pros-
segue e lhe entrega uma rosa. A oferta de Ítalo à Marielle é a metonímia
de uma memória. Uma memória daquela rosa que, como disse Cartola,
“não fala” ou não deveria falar3. Uma memória dos discursos que opõem,
por um lado, a delicadeza passiva das mulheres (inaptas, portanto, ao
exercício de fala pública e aos lugares de poder) e, por outro, o poder
retórico e viril agenciado pelos homens. A rosa é a metonímia do lugar
que Marielle deveria ocupar e, justamente por estar na tribuna, não ocupa.
A vereadora do PSOL seria objeto de um “gentil” manterrupting. A
regularidade dessa prática e sua execução propriamente masculina estão
marcadas na afirmação de que o gesto seria “homem fazendo ‘homice’”.
O substantivo criado, “homice”, que decorre do substantivo “homem”
acrescido do sufixo “ice”, produz, pejorativamente, um efeito de atributo
ou estado dos homens. Com isso, a parlamentar indica que a oferta de
uma rosa no dia 08 de março e a interrupção de sua fala, ou ainda as
duas coisas conjuntamente (isto é, a interrupção de sua fala sobre o Dia
Internacional da Mulher para oferta de uma rosa em homenagem à mesma
data, como se a oferta fosse mais importante do que seu pronunciamento
a este respeito), são práticas de opressão próprias, regulares e caracte-
3 Referência à música intitulada As rosas não falam, escrita por Cartola em 1975.

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rísticas da classe masculina: são “homices”. Mas o que poderia ter sido
mais uma circunstância de interrupção masculina da fala feminina se
tornou ensejo para a presença de espírito e para o devido aproveitamento
do kairós, por meio dos quais Marielle identificou, recusou, confrontou
e denunciou o manterrupting.
A rosa ofertada é a tentativa supostamente lisonjeira de calar uma
mulher que fala num lugar de poder, sob o pretexto de que se lhe rende
uma homenagem. Nesse tipo de ocasião, reside um ardil: ou a mulher
corresponde ao papel da afabilidade submissa que lhe é frequentemente
imputado e se mostra grata ao outro que a “homenageia”, ou identifica,
questiona e rompe com esse papel e dá margem para a reprodução de
dizeres que afirmam seu descontrole e sua histeria. A despeito dessa arma-
dilha e da imposição da luta na “trincheira dupla”, em que não basta que
as mulheres se apresentem ao debate público, porque é preciso que elas
reivindiquem o direito de falar, de se fazerem ouvir e de serem ouvidas
com legitimidade e crédito, Marielle enfrenta a situação com coragem
e astúcia. Ao receber a rosa e reconhecer na oferta a reatualização de
práticas e discursos sexistas, ela opera rapidamente um deslocamento
de seu sentido: “As rosas da resistência nascem do asfalto”, adverte a
vereadora, lembrando Drummond, para quem a flor, ao nascer na rua,
“fura o asfalto, o tédio, o nojo e o ódio” (ANDRADE, 2010, p. 37). Nas
mãos de Marielle, a rosa deixa de ser uma memória para ser ato e anún-
cio: performance e promessa de resistência às práticas de coerção e de
silenciamento de que foi constantemente alvo.
Referimo-nos a uma resistência que significa plena atuação no
interior desta “trincheira dupla”, com vistas a uma reorganização das
relações políticas e sociais em torno da fala pública. Referimo-nos, do
mesmo modo, a uma performance e a uma promessa marcadas no que
diz e no modo de dizer da vereadora: “Nós recebemos rosas, mas tam-
bém estaremos com os punhos cerrados, falando do nosso lugar de vida
e resistência”. Uma vez mais, a conjunção adversativa insere o ponto
sobre a qual recai a ênfase: a despeito da rosa ofertada, da memória que
ela faz emergir e mesmo da serenidade para recebê-la, são os “punhos
cerrados” que prevalecem no pronunciamento de Marielle, no gesto e

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na reivindicação de seu direito a uma fala plena e legítima, porque esses


“punhos” estarão em luta “falando do nosso lugar de vida e resistência”.
Mas as tentativas de interdição ao pronunciamento de Marielle, na-
quele 08 de março, não cessariam com a oferta Ítalo Ciba. Como vimos,
antes de finalizar sua exposição, a parlamentar seria ainda interrompida
por gritos vindos da galeria, cujo teor se contrapunha ao que ela dizia.
Ali, novamente na “trincheira dupla” em que lutam as mulheres, Marielle
teria não apenas de se apresentar ao debate, mas teria de exigir a garantia
de seu turno de fala e o respeito à sua intervenção. É esta reivindicação
que se marca naquilo que diz a vereadora ao presidente da Câmara: “Eu
peço que a Presidência da Casa, no caso de maiores manifestações que
venham a atrapalhar minha fala, proceda como fazemos quando a Galeria
interrompe qualquer vereador”. Dito de outro modo, Marielle reclama a
equiparação do tratamento dispensado aos vereadores, particularmente
naquilo que concerne à salvaguarda da fala pública, que também lhe
deveria ser garantida, assim como aos demais, indistintamente. Trata-
se de uma solicitação cuja necessidade desnuda as desigualdades que
se marcam nos exercícios de fala pública, ontem mais ou menos como
hoje, apesar das transformações que abalam cada vez mais o machismo
e a misoginia.
Na sequência, Marielle produz outro enunciado performativo e
profético: “Não serei interrompida”. Este enunciado é central em seu
pronunciamento, já que ele materializa uma resistência que emerge da
própria prática de coerção, isto é, um enfrentamento que se dá a ver no
momento mesmo em que a vereadora é, por mais de uma vez, inter-
rompida. A negação e o futuro verbal produzem o efeito de um fazer
que se cumpre no próprio dizer e o de uma instituição do devir dessa
conquista. Passado, presente e futuro conjugados num só tempo e gesto:
ao passado de interdições e interrupções da fala feminina, o presente da
performance do ato de resistência e o futuro do direito de igualdade de
voz e de vez. Em seguida, esses tempo e gesto se apresentam novamente,
quando Marielle conjuga negativa e enfaticamente o verbo “aturar” no
presente e no futuro, incluindo em sua recusa tanto sujeitos mais quanto
sujeitos menos investidos de poder institucional. A luta pela palavra é

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aí onipresente: por um lado, as tentativas de silenciamento por parte da-


queles que se colocam no espaço público e não precisam de permissão
para falar, uma vez que podem simplesmente gritar das galerias de uma
Câmara Municipal enquanto a Presidência da Casa aguarda ser acionada
para se posicionar e garantir a fala a quem lhe é de direito. Por outro
lado, as “rosas da resistência” que, nascendo do asfalto, não se curvam
às práticas de poder que intentam sua opressão, mas se erguem, se fazem
ouvir e projetam um horizonte mais igualitário; um horizonte no qual as
mulheres não sejam interrompidas e deslegitimadas em suas falas e em
seus lugares de poder.
Em suma, esses pronunciamentos de Marielle Franco nos mostram,
ao mesmo tempo, a conservação das práticas que detratam, deslegitimam
e tentam interditar a fala pública das mulheres e, ainda mais fortemente,
aquelas que lhes resistem, numa reivindicação tanto do direito feminino à
fala pública, quanto de seu valor. Em direção análoga à dessa resistência,
virão se somar as vozes mais ou menos dissidentes que conseguirão ocu-
par espaços da grande mídia após seu assassinato, esta última e bárbara
investida para silenciar a voz de Marielle. Seus enunciados afirmarão, não
sem atraso, o empoderamento da fala da vereadora. A título de ilustração,
podemos citar alguns trechos de duas publicações feitas pela Folha de
São Paulo, dias após sua morte. A primeira menciona Marielle como
exemplo de firmeza e aponta seu silenciamento como algo intolerável:
“É preciso que Marielle se transforme em um exemplo de representante
que lutava com firmeza por aquilo em que acreditava, em vez de aceitar a
perpetuação de injustiças. Calá-la é inaceitável” (BOGHOSSIAN, 2018,
p. 2). A segunda remete à necessária oposição que representava sua voz,
particularmente em prol dos menos favorecidos: “Foi um crime político,
com o objetivo de calar uma voz que se opunha à crescente militarização
da vida, aos abusos e arbítrios das políticas de segurança e à violência
sofrida especialmente pelas mulheres periféricas” (TRINDADE et al.,
2018, p. 3).
Assim, se durante sua atuação enquanto parlamentar, além de seu
apagamento midiático, é possível também flagrar a conservação de dis-
cursos que interrompem e discriminam suas falas, quando nos atemos ao

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que foi dito quando de seu assassinato e, portanto, quando a vereadora já


não podia exercer sua fala pública, os enunciados atestarão justamente
os atributos positivos dessa voz: sua legitimidade, sua força e sua neces-
sidade. Marielle só pôde falar quando já não mais podia falar. Mais do
que isso: Marielle nunca falou tanto, sua fala nunca foi tão contundente,
nunca teve tamanho alcance e nunca foi tão ouvida quanto o foi depois
que ela foi morta e calada. Prova disso são as expressões que, após o seu
assassinato e justamente mediante a grande circulação dos vídeos aos
quais fizemos aqui referência, emergem como resistência às tentativas
de silenciamento da fala feminina: “Não seremos interrompidas”, “Não
calarão a voz de uma mulher eleita”. A própria tribuna da Câmara de
Vereadores do Rio de Janeiro, na qual Marielle foi tantas vezes interditada
em seus pronunciamentos, passou a se chamar, em dezembro de 2018,
“Tribuna Vereadora Marielle Franco”. Ali há uma placa com a foto de
Marielle e, ao lado, suas frases ecoam o futuro de seu legado: “Não serei
interrompida. Não calarão a minha voz”.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Os exercícios de reflexão e análise que aqui efetuamos demonstram


haver uma força tão sólida e um alcance tão extenso nos discursos que
depreciam a fala feminina, que eles atravessam várias e diversas frontei-
ras, revelando a existência de uma luta árdua e incessantemente travada
na história e no seio das sociedades pelo direito e pela legitimidade do
uso da palavra pelas mulheres no espaço público.
Por um lado, tem-se a emergência e a constituição de um disposi-
tivo de silenciamento das mulheres, que busca sempre e continuamente
a detratação, a deslegitimação e a interdição da fala feminina. Um
dispositivo que, a despeito das profundas transformações históricas nas
condições de produção dos dizeres e na diversidade dos tempos e dos
lugares, das instituições e dos campos de conhecimento, consolidou-se de
tal modo que seu funcionamento se conserva até nossos dias. Por outro
lado, as posições do enfrentamento que lhe fizeram frente, antes com
menor legitimidade, mas atualmente com a força e o alcance que lhes

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conferem os movimentos feministas, têm proporcionado maiores visi-


bilidade, difusão e adesão às suas vozes de resistência e igualdade entre
distintos grupos e sujeitos. Embora isso ainda não tenha sido suficiente
para eliminar os lugares de poder que oprimem a palavra feminina, esse
movimento igualitário já consegue desestabilizar e mesmo desconstruir
várias discriminações e silenciamentos. Um exemplo inconteste, marcante
e admirável dessa tendência foi a vida de Marielle Franco, estendida em
seu legado e em seus pronunciamentos. Estes últimos encarnam toda sua
luta pelo direito de fala das mulheres, pela legitimidade e pelo valor de
que deveria estar devidamente investida a palavra feminina e pela escuta
respeitosa e equitativa que lhe deveria ser consagrada.
Trata-se de uma reivindicação fundamental, haja vista a relação
intrínseca existente entre o ato de falar e o fato de existir, social e politi-
camente: poder falar, ser ouvida, ter legitimidade e credibilidade naquilo
que se diz, ser reconhecida e respeitada neste espaço de poder que é o
campo da fala pública, tudo isto faz parte de um processo de humanização
das mulheres, no interior do qual a produção e a escuta de sua voz são
fundamentais. Não por acaso, Solnit (2017a, p. 30) nos chama atenção
para o fato de que a violência contra as mulheres se dá, muitas vezes,
contra suas vozes e histórias pessoais. “É uma recusa das nossas vozes
e do que significa uma voz: o direito de autodeterminação, de participa-
ção, de concordância ou divergência, de viver e participar, de interpretar
e narrar”. O direito, portanto, de contar nossa própria existência, cuja
negação desumaniza, interdita e exclui.
É assim que podemos dizer que os poderes e perigos da ordem do
discurso não passam ao largo de uma sexuação da fala pública, mas lhe
são intrínsecos. Uma das inquietações produzidas pela ordem do discurso
é a da sua “[…] existência transitória destinada a se apagar sem dúvida,
mas segundo uma duração que não nos pertence” (FOUCAULT, 2001,
p. 8). Se essa propriedade do discurso assim genericamente descrita já
nos perturba, deveríamos muito mais nos afligir com a consistência e
a tenacidade dos discursos que violentam as mulheres na medida em
que reproduzem, ora com maiores, ora com menores modificações, a
percepção misógina e discriminatória de sua fala.

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pandemias discursivas

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