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São Paulo, domingo, 23 de julho de 2000

SUSSEKIND,
Flora.
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Ventríloquos

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Escalas & ventríloquos


Reprodução

Detalhe de
"Couros"
(1993), de
Leda
Catunda

por Flora Süssekind

Talvez se possa observar a literatura brasileira produzida nos


últimos anos não segundo o consenso negativo dos balanços
de fim de década, mas sob a perspectiva tripla de uma crise
de escala, de uma tensão enunciativa e de uma geminação
entre econômico e cultural que, se não exclusivas do período,
por conta de intensificação e disseminação generalizadas, se
converteriam em premissas dominantes da experiência
literária contemporânea. Chama a atenção, nesse sentido,
sobretudo no último decênio, uma espécie de variação
sistemática de escala, manifesta tanto em exercícios, por
vezes paradoxalmente concomitantes, de expansão e
compressão, quanto em movimentos de narrativização da
lírica, de um lado, e de miniaturização narrativa, de outro, ou
quanto na retomada de gêneros como a novela ou o conto
mínimo, no campo da prosa de ficção, ou como o poema em
prosa e a sequência poética, no da lírica. Variações que teriam
contraparte plástica em pinturas que se avolumam, trabalhos
bidimensionais que se projetam em direção ao espectador, ou
em figuras escultóricas transparentes, abertas, corroídas
internamente por fatias, vazios, parecendo fadadas, por seu
turno, à autodestruição, ao despedaçamento. Passagens de
uma dimensão a outra, múltiplas proporcionalidades, relações
variáveis de medição, reduções, ajustes que parecem atribuir
ao referente genérico, à proporção, a função simultânea de
modelos e avessos ativos no interior dos processos de
formalização a que se acham vinculados. E que talvez possam
mediar, ao mesmo tempo, via escalas móveis, um exercício
crítico de correspondências genéricas (entre prosa em redução
e poema em expansão), artísticas (entre produção plástica e
literária) e conjunturais (entre cultura e economia).

Miniaturização, narrativização
Quanto à miniaturização na ficção brasileira contemporânea,
ela é perceptível desde a redução cada vez maior das
"ministórias" de Dalton Trevisan à opção formal pela
"novela", por exemplo, por Silviano Santiago em "Uma
História de Família" e "De Cócoras", por Jean-Claude
Bernadet em "Aquele Rapaz", Modesto Carone em "Resumo
de Ana" e "Ciro", Zulmira Ribeiro Tavares, em "Jóias de
Família", Vítor Ramil, em "Pequod", Valêncio Xavier em
"Menino Mentido" e "Minha Mãe Morrendo"; desde as
fábulas de Carlos Felipe Saldanha às mínimas prosas
incluídas por Zulmira Ribeiro Tavares ou Vilma Arêas nas
suas coletâneas ou às microficções de João Gilberto Noll
divulgadas regularmente na Folha. Desde a experimentação
rítmica empreendida por Rubem Fonseca no seu retorno ao
conto em "Romance Negro" e "O Buraco na Parede" à
rarefação das palavras, que "vão indo" e "não voltam", no
último texto de "Cortejo de Abril", de Zulmira Ribeiro
Tavares, numa espécie de problematização direta, mas em
escala reduzida, do seu próprio processo narrativo.
Exemplar, em termos de um emprego crítico das mudanças de
escala e da autonomização de pequenos blocos narrativos, é a
prosa de Modesto Carone. No seu caso, ainda nos livros de
contos dos anos 70-80 -"As Marcas do Real", "Aos Pés de
Matilda" e "Dias Melhores"-, variados exercícios de
aproximação e afastamento, oscilações entre o gigantesco e o
minúsculo, funcionavam como exposição indireta do
processo narratorial.
Pupilas, pêlos, rugas, crânios, pés que adquirem proporções
desmedidas, de um lado; miniaturas, restrições de
perspectiva, um mínimo jardim de inverno, de outro lado,
apontando para o explícito trabalho de mensuração e
regulação de distâncias que funciona simultaneamente como
recurso de autofiguração para o narrador-protagonista e de
conscientização -via instabilização- do processo ficcional em
curso. O que, no seu livro "Resumo de Ana", de 1998, díptico
novelesco composto de duas breves histórias de vida, se
converteria em princípio de estruturação interna. Pautado,
nesse caso, pela rejeição da forma romanesca mais vasta,
contínua, em prol de "resumos", de quadros autônomos, mas
interligados por uma mesma voz narrativa, a do neto que fala
da avó Ana e do tio Ciro. A redução de escala própria ao
novelesco, a estruturação descontínua, contrastada,
intensificando, a partir de um foco narrativo aparentemente
coeso (o do narrador-memorialista), a visualização, ao
contrário, no seu método de composição, exatamente das
heterogeneidades, das variações de distância e de tom, das
desestabilizações de perspectiva e enquadramento temporal,
que o orientam e acentuam o tensionamento particularmente
crítico que o define.
Movimento inverso, de expansão, marcaria a expressão lírica.
O que já se ensaiava desde os anos 80, em parte como
resposta à dominância dos brevíssimos poemas-minuto e
como desdobramento narrativo de uma produção de caráter
eminentemente expressivo como a do decênio anterior.
Lembre-se, nesse sentido, trecho da carta enviada por Ana
Cristina Cesar a Caio Fernando Abreu em 17 de novembro de
1982: "Sabe que eu também acalento a sombra de um poema
inteiro interminável, tipo William Carlos Williams? Às vezes
acrescento um mote. Charles, até Chacal andam alongando
seus versos. Waly Salomão, na homenagem a Torquato, leu
um belo poema longo bem beat". Indícios de um alongamento
trabalhado sob formas bastante diferenciadas na poesia da
década seguinte. Passando das séries poéticas -de Sebastião
Uchoa Leite (como a dos dez poemas-de-hospital que abrem
"A Ficção Vida"), Paulo Henriques Britto (como os "Sete
Estudos para a Mão Esquerda" ou os "Dez Exercícios para os
Cinco Dedos") ou Carlito Azevedo (como a sua sequência de
banhistas, o tríptico "Vieira da Silva" ou as "Variações
Cabralinas")- à retomada do poema longo por Haroldo de
Campos em "Finismundo" ou por Bernardo de Mendonça nas
suas refigurações de formas características da poética popular
(a peleja, o recitativo, o abc). Ou à reconceituação do poema
em prosa, cuja presença naprodução brasileira recente passa
por disseminação singular. Manifesta ora em textos isolados
no interior de alguns livros (como nos de Angela Melim,
Duda Machado, Rodrigo Garcia Lopes, Augusto Massi,
Carlito Azevedo, João Moura Jr.), ora como registro
preferencial (vide Josely Vianna Baptista e Leonardo Fróes),
ora como notação auto-reflexiva, com funções distintas, no
interior de coletâneas dominadas por poemas em versos,
como as de Sebastião Uchoa Leite, Rubens Rodrigues Torres
Filho, Régis Bonvicino, Júlio Castañon Guimarães. E, se um
recurso como esse servia a José Paulo Paes em "Prosas", por
exemplo, sobretudo para exercitar um memorialismo a meia
distância, Sebastião Uchoa Leite, por sua vez, aproxima-se,
por meio das suas prosas, tanto de uma perspectiva descritiva,
como nos "Informes" de "A Ficção Vida", quanto do
exercício com uma primeira pessoa a tal ponto autodescritiva
e "informe" que parece, por fim, ausentar-se de um texto
como "Worm Hole".
Por vezes, porém, o que está em pauta é a tensão entre o
emprego de uma estrutura sintática linear, compacta, e de
formas particulares de supressão, de que é exemplar o
exercício de interrupção empregado pelo próprio Sebastião
Uchoa Leite em "Memória das Sensações 1 e 2". Ou a
retirada de acentos e nomes (vide "Apesar do Cheiro" e
"Tirando o" em "Regis Hotel"), o apagamento do nexo causal
(vide as enumerações de "Nesta Noite", em "33 Poemas"),
trabalhados por Régis Bonvicino. Já em "Corpografia", de
Josely Vianna Baptista, vocabulário e sinais de pontuação
correntes se deixam invadir por brancos e pausas que, num
diálogo constante com fotos de corpos e vistas, ao mesmo
tempo, figuram e desfiguram, de dentro, cada texto, num
duplo movimento de auto-engendramento e destruição da
forma, característico a um gênero marcado simultaneamente
pela desconfiança de leis formais prévias e por um formato
ditado por sua própria lógica interna. E funcionando de modo
verdadeiramente exemplar, nesse sentido, o caráter
autodefinitório pelo avesso, ao longo de dez mínimas páginas,
de um texto como "NÃO", de Augusto de Campos.
Variação de escala que não se limitaria, porém, ao terreno
literário. Adotando-se uma perspectiva panorâmica, seria o
caso de assinalar, nessa linha, então, a título de amostragem,
tanto os exercícios em formato reduzido, expostos no Rio de
Janeiro em 1999, por um artista como Eduardo Sued, em
geral voltado para telas de maiores dimensões, quanto o
movimento, em direção oposta, de José Bechara, passando de
seus trabalhos com telas relativamente pequenas, conhecido
como "Anjos", ao emprego, como suporte, de imensas lonas
usadas de caminhão, sobre as quais aplica camadas
ferruginosas de diferentes espessuras. Tanto as formas
expansivas, a escala monumental das esculturas com toras de
madeira, expostas na Pinacoteca do Estado de São Paulo em
1998 e 1999, e realizadas por Elisa Bracher, quanto as séries
de pinturas em telas de cerca de três metros de largura,
exibidas em março de 2000 no Paço Imperial (Rio de Janeiro)
por Afonso Tostes. Ou, ainda, tanto o desdobramento, por
parte de Monica Barki, das suas pinturas em acrílico,
mimetizando padronagens têxteis, numa sucessão de trouxas
independentes de roupa; quanto o adensamento, operado por
Leda Catunda, na década de 90, da superfície pictórica, por
meio de sistemáticas sobreposições de vestidos, toalhas,
camisetas, meias e tecidos almofadados e costurados uns aos
outros. Tensões entre expansão e redução, superfície e
volume, bi e tridimensionalidade, que seriam trabalhadas de
modo particularmente consequente, mas distinto, nos métodos
artísticos de Nuno Ramos e Angelo Venosa. Na produção do
primeiro, o transbordamento de materiais e relevos de todo
tipo, as crostas, os encaixes, resíduos, o espessamento, o
desfocamento do quadro, que cresce em direção ao
espectador; na do segundo, o diálogo com o pictórico, a
frontalidade, o vazamento interno -fatias, pontos,
transparências-, como se, nas esculturas de Venosa, seu
princípio serial convertesse o espaço, os vazios,
simultaneamente em fator de dinâmica construtiva e de uma
auto-rarefação potencial. Regiões limítrofes, entre o pictórico
e o escultórico, nas quais, não parecendo haver lugar para
linguagens exclusivas, não à toa referências à escrita (no
trabalho de Venosa, peças de cera e dente, dispostas em linha,
sobre a parede, com pequenos intervalos regulares; no caso de
Nuno Ramos, o emprego de letras ampliadas, de palavras em
parafina sobre placas de vidro, de textos em braile)
funcionariam, nos dois casos, como contraparte reflexiva,
noutro registro, das tensões características à própria prática
artística. E como indicadoras, ainda, dessas miniaturizações e
expansões que se afiguram dominantes noutro território, o da
escrita literária propriamente dita.

Questões de escala e de valor


Há, pois, a reiterada exposição de uma situação de
"desmedida". O que, se enfatiza, em áreas diversas, o caráter
problemático da forma e da própria prática cultural, nessa
situação histórica específica, parece dialogar, de perto,
igualmente, com a experiência contemporânea da
financeirização da economia, da dessolidarização nacional, do
esvaziamento estatal, da inserção brasileira num mercado
global marcado por uma instabilidade sistêmica. Lançando-
se, assim, para o primeiro plano, no panorama cultural atual,
por meio da ênfase na dificuldade de determinar a própria
dimensão, a discussão das simbologias do valor e a
reconceitualização da forma a partir exatamente de seus
fatores de instabilização, de suas relações de escala, de suas
equivalências com alguns dos mecanismos dominantes do
mercado financeiro.
Se, de 1964 a 1984, pois, durante as duas décadas de
autoritarismo militar, os traços mais característicos da práxis
de resistência cultural brasileira pareciam ser a solidariedade
interna antitotalitária, a inserção obrigatória na esfera política,
com o propósito de fortalecimento da sociedade civil e das
instituições democráticas; desde o restabelecimento de
eleições e de um regime liberal-democrático no país e,
sobretudo depois da aplicação sistemática de programas de
estabilização econômica, sustentados pelo continuísmo
político (patente na reeleição de Fernando Henrique
Cardoso), pela busca de consensos partidários (tornando
praticamente simbióticos PSDB, PFL e PMDB) e pela
globalização passiva da economia, passa-se a viver, mesmo
entre os setores mais críticos da sociedade brasileira, sob uma
despolitização generalizada e diretamente proporcional à
disseminação de uma financeirização todo-poderosa -a
invocação recorrente das leis do mercado e de uma espécie de
"livro mercantil do mundo", apontando para a sua
onipresença autoritária, acoplada à experiência neoliberal. E a
problematização do valor, da idéia mesma de estabilização,
presente nessa sucessão de escalas móveis da prática artística
dos últimos anos, parecendo evidenciar, exatamente, esse
traço autoritário embutido, de modo aparentemente menos
cruento do que no período militar, mas acentuado, dominante,
no quadro brasileiro atual.
O enlace crítico com o paradigma econômico-financeiro não
é, no entanto, por si só, explicação suficiente para essas
reduções e ampliações, para esses problemas estruturais de
dimensionamento e formalização na cultura brasileira recente.
Pois, em certo sentido, essa instabilização da medida, da
escala, a rigor, se conjugaria até melhor à situação
inflacionária explícita anterior ao Plano Real, no Brasil, na
qual o valor, mesmo dos alimentos e objetos mais
corriqueiros, parecia alterar-se quase cotidianamente. E, sob
outro ponto de vista, essa dificuldade de formalização, como
analisa Rodrigo Naves, em "A Forma Difícil" (livro não à toa
divulgado nesse período), não seria também exclusiva do
momento atual, mostrando-se necessária a especificação dos
nexos próprios às questões de escala contemporâneas.

Moeda sem substância


A passagem de uma moeda de difícil conversão, porém, para
outra mais maleável à conversão universal, mas sem qualquer
substância, e cujo câmbio passaria a se apoiar artificialmente
numa perda acelerada de reservas, parece hiperpotencializar,
a seu modo, não só a sensação de desmaterialização do
dinheiro, já característica à situação inflacionária, mas
também a convivência com a ausência de garantias e medidas
ideais de valor e a dependência crescente de mercados
financeiros desregulados e de uma economia baseada em
maleabilidades estruturais. Não sendo de estranhar, nesse
sentido, por um lado, esforços de estabilização diretamente
proporcionais a tais desmaterializações e instabilidades
estruturais. Daí uma espécie de nostalgia igualmente
estrutural, manifesta na vida literária recente pela reafirmação
dos cânones, do valor de culto dos "grandes nomes e obras",
expresso exemplarmente no nome de publicações como
"Cult" ou "Bravo!", ou no caráter comemorativo (de eventos,
centenários, mortes) dos suplementos de cultura dos jornais
de maior distribuição do país, pelo retorno estratégico a uma
poética baseada em valores artesanais cultos (vide Bruno
Tolentino) ou populares-arcaizantes (vide Ariano Suassuna)
supostamente meta-históricos, a um exercício crítico pautado
numa espécie de liberdade individual sem outras fronteiras
(éticas, acadêmicas ou ideológicas) além das do mercado, das
impostas pelo movimento editorial, exemplarmente manifesta
em artigo publicado na revista "Veja" de 25 de junho deste
ano, em defesa do impressionismo, do comentário opiniático,
de um modelo de interferência intelectual pautado, a rigor, no
jornalismo literário brasileiro dos anos 40, mas, de fato, na
transformação, em curso, das páginas de cultura em simples
"guias de consumo".

Sintonias perversas
Não sendo de estranhar, por outro lado, ainda no âmbito
literário, sintonias e exposições curiosamente perversas desse
quadro de financeirização generalizada. De que é exemplar a
propositada desmaterialização da trama narrativa, convertida
em jogo amoroso por Bernardo Carvalho, em "Medo de
Sade", em jogo de truco ou xadrez por José Roberto Torero,
no seu relato em torno da Guerra do Paraguai, em truque de
mágica por Valêncio Xavier, em "13 Mistérios + O Mistério
da Porta Aberta", em roleta por Carlos Felipe Saldanha, no
seu "Oraklo do Conde Arpad". Ou a ausência de qualquer
"substância estável" de personagens em sintomática sintonia
com as transformações no conceito de valor, com as práticas
financeiras de representação, processo de que são exemplares
o fluxo de figuras-cliché em "Sexo", de André Sant'Anna, os
personagens-variáveis de "As Iniciais", de Bernardo
Carvalho, o José Maria/Maria José de "Subsolo Infinito", de
Nélson de Oliveira, a Ana C. do "Teatro", de Bernardo
Carvalho, e o irmão que vira mulher, mas sempre mantendo o
cheiro de macho, em "A Céu Aberto", de João Gilberto Noll.
Chegando-se mesmo, por vezes, a explicitar ironicamente um
inviável ponto de fuga desses exercícios de
desmaterialização. "Descoberto e abortado plano de destruir o
sistema financeiro do país", lê-se, a certa altura, em "Medo de
Sade".
Pois, se o quadro inflacionário já forçava a convivência direta
com certa onipresença do dinheiro na vida social -"o dinheiro
está, de modo devastador, no centro de todos os interesses
vitais", "impõe-se em toda conversação", dizia Benjamin
sobre a inflação alemã-, a relativa estabilização monetária -
mesmo quando "relações estabilizadas" são "a miséria
estabilizada", como se lê em "Rua de Mão Única"- parece
envolver igualmente um tipo peculiar de insegurança ligada à
possibilidade de despossessão, mesmo do mínimo obtido.
Daí, de certo modo, o vigor do gênero policial na literatura
brasileira recente. Tratando-se, nesse caso, porém, de
instabilidade de ordem patrimonial bastante distinta da que é
configurada propositadamente pelas variações de escala, com
função auto-reflexiva, da arte e da literatura brasileiras
contemporâneas, expansões e reduções geminadas
criticamente aos próprios princípios de formalização e
organização que as orientam. Daí, por outro lado, o
desconforto narrativo que parece acompanhar por vezes a
prática dessas ficções em torno de uma insegurança
endêmica, de uma criminalização sistemática das questões
sociais, como é o caso de romances policiais de grande
sucesso comercial, como os de Rubem Fonseca e Patrícia
Melo. O que os compele à produção de uma espécie de sub-
relato legitimador (ou capaz de criar um efeito de
cumplicidade junto ao leitor), em meio à trama central, de que
são exemplares os desdobramentos metadiscursivos de "E do
Meio do Mundo Prostituto..." ou "Elogio da Mentira". Ou
que, por vezes, parece sugerir guinadas de ponto de vista,
como a que orienta a fala sem culpa dos protagonistas de
"Monstro", de Sérgio Sant'Anna, e "O Matador", de Patrícia
Melo. O que não invalidaria, porém, que também símbolos
patrimoniais, papel-moeda, operações bancárias tivessem se
convertido em motivos poderosos para o trabalho artístico
desde o período de alta inflação na economia brasileira. Daí
os trabalhos de Meireles, Waltércio Caldas ou Jac Leirner,
voltados, no Brasil dos anos 70 e 80, tanto para as relações
entre produto artístico e a forma financeira moderna da
mercadoria, entre dinheiro, representação e valor, como já foi
assinalado por Marc Shell num dos seus estudos sobre arte e
moeda, quanto para a própria funcionalidade dos sistemas de
medida e dimensionamento que orientam a prática e a
percepção artística. Parecendo exemplar, nessa linha, um
trabalho como "Eppur si Muove" (1991), de Meireles, na
verdade uma série de ações bancárias, envolvendo extrema
perversidade cambial e flutuação de valor, por meio das quais
se tratava de realizar 12 câmbios sucessivos, em moedas
diferentes, tomando como ponto de partida mil dólares
canadenses. Operações ao final das quais a quantia inicial
acabaria se reduzindo a US$ 4 e alguns centavos, guardados
em pequenos cofres transparentes com formato de porquinho.
Fora da referência financeira simulada, porém, são
particularmente significativas, no trabalho de Cildo Meireles,
sobretudo das últimas décadas, a quantidade e a variedade de
materializações de questões de valor, peso, tamanho, medida.
É o que assinalam "Glove Trotter", também de 1991, uma
coleção de bolas de cores e tamanhos variados recoberta pela
mesma vasta malha, ou "Fontes", em que se estabelece um
desdobramento de tensões entre diferentes instrumentos e
medidas -réguas de carpintaria penduradas, relógios nas
paredes, números soltos no chão- e entre conceitos e
referentes diversos -as noções de espaço e de tempo-, por
meio dos quais se parece simultaneamente expor e
desestabilizar os processos de quantificação e
dimensionamento e a própria operação de mensuração postos
em jogo nessa instalação de 1992. Sublinhando-se, desse
modo, tanto uma espécie de "desmedida" semelhante à dos
desdobramentos de orientação e proporcionalidade quanto a
tensão enunciativa (entre exposição e desestabilização) que
caracterizariam a literatura brasileira na virada do século 20.

Tensão enunciativa
Se, do ponto de vista dos processos de formalização,
produziu-se, então, uma desproporcionalidade sistemática,
sua contraparte, do ponto de vista da dicção, parece ter sido
um ventriloquismo acentuado. O que, no terreno da lírica, se
manifestaria por meio de uma utilização recorrente, com
funções distintas, do monólogo dramático, das teatralizações
internas do poema.
É nesse sentido que apontava, ainda em 1990, um poema
como "cançãonoturnadabaleia", de Augusto de Campos, no
qual, em diálogo inequívoco com o albatroz baudelairiano, o
poeta se autofigurava como Moby Dick, e ao próprio poema
como instância dupla, tensão entre negro e branco, voz e
visualidade, voz lírica e voz ficcional, forma poética e
método dramático.

É em direção conservadora que se


pode entender a imposição editorial
do modelo da vasta narrativa
histórica à prosa brasileira recente,
passando do caráter de quase roteiro
de "Agosto", de Rubem Fonseca, ao
anedótico de Jô Soares

É, nesse sentido, igualmente, que se pode compreender o


exercício de escuta, o dar voz ao outro, que caracteriza a
proliferação de vozes heterogêneas, antagônicas, em que se
converte a escrita poética de Francisco Alvim. Ou a tensão
entre expressão lírica e enredo policialesco, entre soneto e
contrabando, em "Até Segunda Ordem", de Paulo Henriques
Britto, ou entre forma convencional e dicção antilírica nos
sonetos recentes de Glauco Mattoso. Ou as composições em
eco, de Lu Menezes, nas quais espelhamentos mútuos,
homofonias, assonâncias, analogias, sublinham não apenas
sucessivas diferenciações a princípio imperceptíveis, mas um
tensionamento simultâneo entre fala e voz, entre sucessivas
figurações e subtrações da voz lírica.

Ventriloquismo
Esse princípio dramático não ficaria restrito, porém, a essas
divisões líricas da voz. E o ventriloquismo -explicitado no
título "Ventriloquist" de espetáculo recente, em que se
sucedem dublagens, clonagens de figuras reconhecíveis da
mídia, repetição, a três vozes, de trechos da "Valsa nº 6"- se
converteria em elemento estrutural do método cênico de
Gerald Thomas, por exemplo. Tensão enunciativa presente,
mas trabalhada de modo distinto, na dramaturgia de José
Celso Martinez Corrêa, como observa Luiz Fernando Ramos,
na sua análise de "Cacilda", ao sublinhar aí a expansão da
rubrica, o contraste entre indicação cênica e parte dialogada,
por meio do qual se figura, indiretamente, o adensamento do
campo conceitual em que se move o encenador.
Problematização da locução perceptível também no uso de
legendas, interferências e nas alterações estratégicas de
volume adotadas por Bia Lessa na sua versão de "As Três
Irmãs", na passagem de um registro ficcional para o
discursivo no método performático de Denise Stoklos, na
oposição entre relato corrido e ações físicas fragmentárias que
orienta um espetáculo como "Bugiaria", de Moacir Chaves.
Desdobramento vocal que seria estrutural, igualmente, num
filme como "Santo Forte", de Eduardo Coutinho, em que o
que está em questão é o servir-se de voz ou corpo a um outro,
que pode ser a pombagira, uma reencarnação qualquer, uma
figura familiar que volta para dizer alguma coisa, um santo,
um exu. Ou, no ainda no terreno literário, são exemplares
dessas cisões numa só voz, ou desses exercícios de
duplicação problemática, desde os personagens e narradores-
dobradiça de Silviano Santiago (retomados em "Viagem ao
México") ao contraste entre monólogo interior e imagens de
televisão que orienta "Amor", de André Sant'Anna, da
composição em dípticos contrastantes, como em "Teatro" e
"Medo de Sade", de Bernardo Carvalho, ao tensionamento da
própria dicção entre um movimento de expansão serial ("As
Banhistas") e de intensificação rítmico-imagética interna
("Sob a Noite Física") que tem marcado o trabalho poético
recente de Carlito Azevedo, das sucessivas figurações da
morte autoral de Valêncio Xavier ou dos epitáfios de José
Paulo Paes, ao livro enviado num caixão, como foi o caso do
"Decálogo da Classe Média", de Sebastião Nunes, ou à
dissecação da máquina de escrever em "Cortejo de Abril", de
Zulmira Ribeiro Tavares. Desdobramentos ficcionais,
variações de acento, auto-supressões que parecem apontar
para uma espécie de figuração intelectual agônica, de
desconfiança sistemática da própria legitimidade, da
possibilidade de consideração não mercantil da atividade
literária ou da interação crítica com leitores-consumidores.
Figuração pouco complacente, mas particularmente tensa,
passível, portanto, de movimento, de historicização. De
armar, como sugere Beatriz Sarlo, "uma perspectiva para ver"
essa "deriva organizada do mercado". Mas, se esses
desdobramentos da voz, miniaturizações narrativas,
narrativizações do poema e variações plásticas de escala
podem funcionar, portanto, no sentido da intensificação de
uma autoconscientização da própria prática artística, assim
como de suas "inserções em circuitos ideológicos" (para
empregar expressão de Cildo Meireles), de suas relações com
os modelos financeiros, com a instabilidade e a volubilidade
dos mercados econômicos, com o conservadorismo político
mascarado de política de estabilização, esses mesmos
processos podem, no entanto, dar lugar a respostas bastante
distintas, movidas, por vezes, por um pânico de "catástrofe
iminente", semelhante ao do período inflacionário alemão
descrito por Benjamin, solidificando, dessa maneira, no plano
cultural, mecanismos de estabilização conservadora
semelhantes aos que têm justificado a globalização autoritária
e o continuísmo governamental na história latino-americana
recente.

Imposição editorial
É em direção conservadora semelhante que se pode entender,
por exemplo, a imposição editorial do modelo bem-sucedido
da vasta narrativa histórica à prosa brasileira recente,
passando da erudição histórico-epistemológica de Isaias
Pessotti à pesquisa bem documentada de João Silvério
Trevisan, do caráter de quase roteiro de "Agosto", de Rubem
Fonseca, ao anedótico de Jô Soares. Ou certa disseminação
aforística, lapidar, em várias áreas culturais. Das receitas de
bem viver, enunciadas em tom oracular, nos livros de Paulo
Coelho, ao frasismo que tomou conta desde os jornais aos
livros de poemas, como os mais recentes de Manuel de
Barros. Enquadramento histórico e redução ao sentencioso
que funcionam como tentativas de reorientação estabilizadora
para os dimensionamentos problemáticos, instabilizações,
expansões, compressões, e para certa "desmedida" metódica,
convertidos, via variações recorrentes de escala, distância e
processos de mensuração, em fator constitutivo de uma
intensificação autocrítica da prática cultural no panorama
brasileiro contemporâneo.

Flora Süssekind é crítica literária e pesquisadora da Fundação Casa de


Rui Barbosa, autora, entre outros, de "A Voz e a Série" (7 Letras) e
"Cinematógrafo de Letras" (Companhia das Letras).

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