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oletivo Zagaia (CZ): Pensamos em iniciar nossa entrevista, Vladimir,

perguntando sobre sua trajetória, como você chegou, desde a formação em


publicidade e filosofia e agora, ocupando espaço na mídia. Assim, um primeiro
ponto interessante seria: como se deu a sua passagem da publicidade para a
filosofia?
Vladimir Safatle (VS): Não teve passagem. Eu fui fazer publicidade para
esconder que ia fazer filosofia. É um pouco como acontecia no começo do
século XX: todo mundo ia fazer direito, quando queria fazer outra coisa.
Quando eu entrei na faculdade, Collor havia ganhado, o muro de Berlim tinha
caído e lembro-me da impressão de não ter muito por onde escapar. Então,
como a minha família é de imigrantes, quando eu falei que eu ia fazer filosofia,
todo mundo levou um susto. Diziam: “Não é possível! Vou ter que dar dinheiro
para você a vida inteira!” Daí, inventei um outro curso. Na verdade eu escondi
que fazia filosofia.
CZ: Então você cursava os dois?
VS: Os dois ao mesmo tempo. Eu só fui falar que fazia filosofia na hora de
terminar o curso. Até lá, ninguém sabia. Eu cheguei a tentar trabalhar com
publicidade, mas isso foi catastrófico. Não gostava, nunca gostei, nunca vi
muito interesse. Mas tinha uma coisa interessante que era poder entender
melhor o funcionamento da mídia em geral. Isso acabou servindo de alguma
coisa. E também entender um pouco melhor todo esse processo de formação
da sociedade de consumo, porque você tá lá dentro, sabendo como funciona.
Isso depois me ajudou a certas reflexões, mas eu nunca pensei de fato em
trabalhar na área de propaganda.
CZ: Vários dos seus primeiros textos têm a influencia dessas pesquisas, por
exemplo, de consumo…
VS: Porque era tudo muito próximo. Eu fui fazer publicidade na Escola Superior
de Propaganda e Marketing (ESPM), que é uma instituição muito vinculada ao
mercado. Todo estudante lá faz estágio, então tive condições de ver mais
claramente como a coisa funciona mais por dentro. Isso foi me despertando o
interesse, mas, como era um interesse crítico, o futuro na publicidade já estava
selado, não tinha muito segredo. Sem contar que as festas de publicidade e
propaganda eram as piores do mundo, o que já era uma boa razão para passar
ao largo de coisas desta natureza (risos).
CZ: Daí você já estava na filosofia…
VS: Eu entrei em Publicidade em agosto e na Filosofia em fevereiro, porque a
Faculdade de Filosofia (FFLCH-USP) não tinha vestibular no meio do ano. Mas
eu já tinha isso na cabeça, uma espécie de “esconder uma coisa atrás da
outra”. Isso ainda é necessário hoje em dia.
CZ: E na filosofia você teve influências fortes na estética (o que falaremos
depois). Mas uma outra influência frequente é a psicanálise. Como foi essa
entrada? Foi por conta do prof. Bento Prado Júnior?
VS: Era uma das duas alternativas que tinha: ou fazer filosofia ou fazer
psicologia. Porque, desde o inicio, a psicanálise me interessava. Eu diria duas
coisas: eu nunca me vi como historiador da filosofia, nem em potencial. Não
era exatamente isso que eu queria desde o inicio. Isso pra mim era muito claro.
Tanto que me interessava muito mais por duas coisas: por filósofos que tinham
uma interface profunda com as ciências humanas – como Adorno, Foucault e
vários outros – ou por teóricos das ciências humanas cujas reflexões tinham
forte impacto na filosofia. Aí entrava Lacan, Freud, Weber. Essa interface
parecia a coisa mais interessante para se fazer.
Hoje é muito claro que a filosofia, para mim, é um discurso vazio. Mas ela é
vazia não porque não tenha nada a dizer, ela é vazia porque não tem um
objeto próprio: todos seus objetos vêm de fora. Você não consegue fazer
filosofia política sem ter uma reflexão muito clara sobre aquilo que chamam de
ciência política; você não consegue fazer estética sem uma reflexão demorada
sobre as obras de arte, sem conhecer críticas de arte; você não consegue fazer
epistemologia sem conhecer bem o funcionamento de, ao menos, uma ciência
específica; você não consegue fazer ontologia sem conhecer lógica. Assim,
todas as áreas da filosofia tem seu objeto construído na interface com algum
saber empírico, e a psicanálise entrava pra mim, nessa categoria. Ela era o
saber empírico que eu procurava.
Por que a psicanálise? Porque ela tem uma peculiaridade, inclusive em relação
a outras correntes da psicologia em geral. Ela não parte de uma definição
normativa sobre o dever ser do comportamento humano, sobre o que deve ser
uma vida bem sucedida, Ela não organiza seu horizonte de cura a partir de
uma normatividade positiva posta que me levaria a pensar o patológico como
desvio, déficit ou excesso. Ela parte do patológico. Freud tem uma bela
metáfora sobre isto : o sujeito é como uma espécie de cristal, você joga o
cristal no chão e ele vai se romper a partir de certos sulcos que não estavam
visíveis, mas estavam presentes. O patológico é essa espécie de cristal
quebrado, de lente de aumento que me permite entender melhor como
funciona a estrutura do cristal completo. Só a partir do cristal quebrado posso
começar a pensar o que são normatividades.
A psicanálise é uma perspectiva que parte da situação patológica. Tal situação
permite entender melhor o que é a fragilidade do comportamento do sujeito dito
normal, quais são os pontos nos quais ele está prestes a se quebrar. Essa
perspectiva parece muito interessante do ponto de vista filosófico, porque nos
permite compreender como singularidades precisam construir normatividades
levando em conta a experiência do patológico, a experiência da fragilidade de
nossas construções. Esta é uma maneira de nos liberar do peso de tentar
legislar sobre o dever ser das coisas. Desta forma, a psicanálise parecia uma
prática capaz de obrigar modificações em conceitos filosóficos tradicionais.
CZ: Sujeito, desejo…
VS: Sujeito, desejo, a ação racional, deliberação, vontade, dever – todas são
categorias que se modificam radicalmente se você aproxima estas temáticas
de uma clínica tão especifica como a psicanálise.
CZ: É bem interessante ver como você vai articulando todas essas influências,
como a teoria social, a psicanálise e a filosofia. Mas, voltando-nos um pouco
mais para o campo da estética, podemos pensar o seguinte: se lermos Cinismo
e a falência da crítica, ou Paixão do Negativo, ou mesmo sua tese de livre-
docência (Grande Hotel Abgrund), é interessante ver o caminho que você faz, o
qual sempre culmina em um último capítulo na estética. Isso é por que você
quer dar maior relevância ao tema da estética? Por que há esta tendência?
CZ: Dá impressão de que a estética pode dar respostas que já não estão no
campo da política, ou pode levar pra outro campo…
VS: Mas, de fato, eu acredito nisso. E acredito com muita clareza, em duas
coisas: primeiro, há uma desconsideração da estética por certas correntes da
filosofia. Isso é um equívoco brutal, porque esquecem que as manifestações
artísticas são setores da história da razão. Problemas ligados à constituição da
forma estética são ligados de maneira direta às estruturas da racionalidade.
Devemos nos livrar de um certo preconceito filosófico que vê a arte como um
campo da intuição, da expressão, da autenticidade, ou seja, de tudo aquilo que
não alcança o estatuto da prosa do conceito – o que é totalmente falso, porque
a arte produz conceito e toda a questão da filosofia é compreender como essa
produção de conceito pode servir de campo indutor para problemáticas em
outras esferas da ação humana.
Por exemplo, uma das coisas que sempre me incomodaram em relação a
certos comentadores de um autor como Adorno era não compreender isso.
Parte-se da ideia de que Adorno representa um momento da história do
pensamento do marxismo ocidental onde, devido à descrença em relação ao
potencial emancipador do proletariado, a descrença de que haveria algum
agente social capaz de realizar as modificações profundas nas formas de vida,
dá-se um passo pra trás em direção a estética. Essa leitura é totalmente
equivocada, porque ela se esquece de perguntar até que ponto a estética, na
verdade, é um setor fundamental de reforma social, é um setor fundamental de
reconstituição dos nossos modos de ordenamento e de nossas formas de vida.
Pois tal esforço de pensar a estética, no fundo, é o esforço de pensar como
modos de ordenamento presentes nas obras de arte podem ter forte
capacidade indutora em outras áreas da ação humana. Então, quando, em
meus livros, os últimos capítulos sempre acabam tratando da estética, na
verdade, é uma forma de dizer que esses problemas todos podem se resolver,
se nós tivermos um cuidado maior sobre a verdadeira força de emancipação do
campo da estética. É um pouco fazer a seguinte pergunta: por que os nazistas
não ouviam Schöenberg? Porque se trata de uma música que fornece a
imagem de uma nova ordem, de um novo modo de ordenamento, é um novo
modo de estabelecer o que é uma diferença, identidade, unidade, síntese – é
uma outra forma de pensar. E se há algo que a filosofia nos ensina é que o
mais profundo nos processos de transformação social ocorre quando uma nova
forma de pensar entra em cena. O que a arte faz é simplesmente nos ensinar a
pensar de outra forma.
CZ: Daí a importância da música diante de todas as artes. Porque na maior
parte de seus textos, você apresenta não apenas a estética, mas também a
música.
VS: Há três razões para isto. A primeira é que, de todas as artes, é a que
particularmente eu sou mais próximo. Tive formação em um conservatório
sendo, pois, o que eu consigo discutir melhor. Em segundo, existe na filosofia
brasileira um desconhecimento muito grande sobre as reflexões filosóficas
feitas em torno da música, o que é algo estranho para um país que se diz tão
musical. Trata-se então de lembrar como a música foi um setor fundamental na
estética filosófica. Por fim, (acredito que aí é algo interno da história da música
no século XX), eu tenderia a afirmar que, de fato, de todas as artes, a música
foi a que mais conseguiu problematizar a sua forma, por uma série de razões,
dentre elas o fato da autonomia ter encontrado na música seu vetor de
desenvolvimento.
Eis um ponto pacifico, não só para musicólogos, mas também para críticos de
arte, como Clement Greenberg. A ideia estética de autonomia nasceu a partir
da ideia de autonomia da forma musical. Não é por outra razão que, quando
Weber fala da autonomização das esferas sociais de valores e desenvolve o
caso da arte, ele fala da música. No entanto, essa experiência interna ao
campo musical fez com que a música se transformasse, dentre as artes
contemporâneas, na mais problemática. Não é por outra razão que é a arte que
tem mais problemas em relação à constituição de público. Isso não é um dado
externo de sociologia da arte, isso é um dado interno de constituição da
estrutura da forma musical. E isso acontece porque é como se ela tivesse ido
longe demais. Então, nesse sentido, eu tenderia a dizer que a música fornece
para nós a imagem mais avançada do que pode ser a arte no futuro. Por isso,
eu acabo sempre discutindo a música.
CZ: Eu gostaria de te perguntar uma coisa, no capítulo do livro Cinismo: a
falência da crítica, você coloca um epigrafe que é muito interessante: “o
carteiro nunca assobiará Schöenberg”. Do que se trata? Essa é quase uma
provocação. Qual a localização desse carteiro? Por que ele não assobiará
Schöenberg?
VS: Essa é uma frase, que Steve Reich pronunciou, pensando na seguinte
questão: a música contemporânea se equivoca ao acreditar poder haver
música sem pulsação regular e centro tonal. Para Reich, tais elementos
musicais são quase um dado da natureza. É por isso que o carteiro nunca vai
conseguir assobiar Schöenberg – porque, em última instância, a forma crítica
se voltou contra aquilo que não deveria ser criticado, que é um certo
enraizamento da nossa maneira de pensar em algum dado da natureza, como
se a natureza fornecesse uma espécie de polo positivo de doação de sentido.
Eu acho interessante levantar isso porque existe uma maneira de inverter essa
preposição, que é mais ou menos a seguinte: existe toda uma discussão no
interior da história da música sobre qual é a relação entre natureza e cultura.
Por exemplo, quando se constitui a ideia moderna de harmonia através de uma
teoria fisicalista do som, aparece toda uma teoria sobre a relação de
dependência da cultura em relação à natureza, na medida em que a natureza
produz sistemas de ressonância (você toca um dó, a próxima frequência vai ser
uma oitava acima, depois uma quinta acima, uma terceira); ou seja, esses
dados são fornecidos pela natureza e não tem muito que discutir. Isso nos
permite construir um sistema que é calcado como um fato natural. Quer dizer, o
que é interessante no interior no debate musical do século XX, é como a crítica
se volta não só contra uma realidade social reificada, mas também contra uma
visão reificada do que é a natureza. Ninguém vai negar que exista um sistema
de ressonância, ninguém vai negar que o primeiro intervalo consonante é uma
oitava, ninguém delira a ponto de fazer esse tipo de negação. Mas, trata-se um
pouco de dizer que esses elementos não produzem um sistema. Transformar
esses fenômenos em sistema, isso é um outro processo muito distinto. Então, o
que é interessante no interior desse debate é um pouco dizer que nós podemos
ter uma visão da natureza que nos fornece regras insuficientes. Não é que a
natureza inexista, mas suas regras são insuficientes, elas precisam de uma
certa suplementaridade fornecida pela cultura. Nesse sentido, a arte fornece o
suplemento para uma normatividade insuficiente da natureza. Por isso, a
primeira coisa a fazer é ensinar ao carteiro que a maneira que ele assobia está
longe de ser natural, que seus gestos estão longe de ser naturais. Enfim, retirar
um pouco de suas certezas imanentes. Certamente, ele não será mais um bom
carteiro, mas ele assobiará melhor.
CZ: Eu tive uma impressão, talvez equivocada, de que, em alguns de seus
textos, de certa forma, você não trabalha com um conceito de arte enquanto
construção social, como representação de uma classe. Parece que esse
conceito pra você não funciona pra arte, está em outro lugar. A minha dúvida é:
você não tenderia a um certo idealismo na arte?
VS: Não, porque eu acho essa leitura equivocada. Se nós devemos nos
perguntar sobre como a sociedade intervém na arte, eu acho que nós devemos
partir de uma questão formal. A forma estética é uma maneira de responder a
uma série de questões – como: o que é a unidade? O que é a diferença? O que
é identidade? O que é a ordem? Como eu me relaciono com o não-idêntico? –
ou seja, todas essas questões têm forte cunho político; no fundo são questões
políticas que a arte responde através da sua forma.
Várias pessoas pensam a relação entre arte e sociedade através de uma
leitura semântica das obras de arte, ou seja, querem saber qual seria o
conteúdo que se discute ali. Eles acham que se você faz uma canção de
protesto pedindo a reforma agrária, então você faria algum tipo de obra de arte
fiel a uma certa visão política. Eu diria o contrário: que neste caso você faz o
que há de mais reacionário, porque você esquece que a questão fundamental
de todos aqueles que de fato se comprometeram com transformações políticas
efetivas era a capacidade de permitir aos sujeitos pensar de outra forma, ter
uma outra estrutura do pensamento. Se você não conseguir pensar de outra
forma, as questões políticas desaparecem completamente, porque elas viram
meras questões de redistribuição: se você tem problemas de redistribuição na
vida social, então o campo da arte pode servir como um panfleto de
manifestação, para ver se as pessoas ganham consciência de que esses
problemas de distribuição são problemas muito importantes. Mas isto a
propaganda faz melhor. Tudo bem, pode ser importante, mas isso não tem
nada a ver com arte. Assim, é muito interessante como alguns setores da
esquerda são, do ponto de vista artístico, os mais conservadores – desde a
querela de Maiakóvski com os escritores do partido comunista, que já faz aí
algum tempo, esta é a questão: vocês não estão entendendo o que
simplesmente a arte é, o que significa obra de arte, qual tipo de questão uma
sociedade procura resolver quando ela produz uma obra de arte; vocês estão
reduzindo a noção de estética a sua dimensão mais propagandística. Para
evitar esse tipo de equívoco, acho que devemos entender que, através do
caráter radical da sua forma, a arte é capaz de produzir um impacto político. Só
há a arte de forte teor político quando é autônoma. E aí tem uma segunda
questão interessante: normalmente quando se fala sobre a autonomia da arte
isso parece um pouco retomar um discurso da arte pela arte, onde a relação
entre arte e sociedade desaparece. Eu insistiria no contrário: só quando é
radicalmente autônoma, quando a arte fala dela mesma, ela é política; só
quando ela deixa de falar da sociedade e fala dela mesma que ela é política.
Por quê? Jacques Rancière tem uma ideia boa a esse respeito, que é mais ou
menos a seguinte: aqueles que criticaram a importância da discussão sobre a
autonomia no modernismo estético, esqueceram que a autonomia é uma
maneira que a arte tinha de fazer apelo a uma comunidade por vir; ou seja,
uma maneira de dizer que a obra de arte não reconhece mais a ordem reificada
na realidade social. Ela não conhece mais o modo de visibilidade naturalizado
na realidade social, não conhece mais o modo de narrativa reificado na
realidade social. A arte procura constituir uma comunidade possível a partir de
uma outra visibilidade, ou de uma outra narrativa, de um outro modo de
ordenamento; e isso só ocorre quando ela é radicalmente autônoma. Neste
sentido, não há escritor mais político do que Mallarmé, não há músico mais
político do que Schöenberg, não há pintor mais político do que Kandinsky.
Acho que é por aí que essa discussão entre arte, política e sociedade deve ser
organizada.
CZ: Mas, com a ideia de que existem formas privilegiadas dessa arte, formas
que são mais autônomas, você, falando do Brasil, por exemplo, poderia dizer
que o samba poderia alcançar esse modelo de autonomia? Como você vê essa
critica? Porque parece que você acaba privilegiando Schöenberg em
detrimento de outros modelos mais próximos de nossa realidade.
VS: Bem, quem se preocupa com raiz é agricultor. Os agricultores da cultura
crêem na existência da autenticidade natural de camadas da população que
ainda não foram colonizadas pela indústria cultural, ou não foram colonizadas
pelo fetichismo da mercadoria. Essa expressividade natural deveria pois ser
resgatada como você resgataria arqueologicamente um objeto: você vai e
escava, procura recuperá-lo… Acho esse tipo de leitura equivocada por duas
razões.
Primeiro, porque não há uma esfera da vida cultural que seja livre do fetichismo
da mercadoria. Não existe o registro de uma reserva natural de cultura em
algum canto perdido no meio da floresta Amazônica, ou no meio da
comunidade dos caiçaras. Essa discussão me parece equivocada no seguinte
sentido: você hipostasia o tradicional, esquecendo muitas vezes que o
tradicional é o espaço dos comportamentos mais reacionários possíveis, os
mais refratários ao movimento, à temporalidade, à ruptura. Por outro lado,
trata-se de lembrar que a verdadeira pergunta é: qual a função social desta
música para nós, que tipo de fantasia ela alimenta para nós.
De toda forma, eu lembraria que várias produções estéticas relevantes que se
basearam na tentativa de recuperação desses materiais – vejam Béla Bartók e
todo o trabalho cuidadoso que ele fazia de levantar todos os materiais típicos
dos países do Leste Europeu, (como Romênia, Bulgária, Hungria) – era um
trabalho que tinha em vista revelar estruturas formais avançadas em relação
aquilo que era a estrutura musical de então era capaz de suportar. Assim, a
ideia era procurar, por exemplo, na complexidade rítmica das músicas búlgaras
e romenas uma maneira de complexificar a regularidade do tempo. Por isto,
tais elementos folclóricos apareciam no interior da obra de arte como princípios
de desestabilização da forma e das maneiras tradicionais de escuta. Algo muito
diferente, por exemplo, daquilo que nós vemos em Villa-Lobos. O elemento da
tradição folclórica, quando ele entra em Villa-Lobos, entra como instrumento
pacificador; ou seja, ele perde o estranhamento, ele traz a familiaridade do que
garante uma escuta pacificada. Mas, para a arte, não há nada mais terrorista
do que a ideia de familiar. Isto é justamente aquilo contra o qual se bate.
CZ: Eu consegui acompanhar a ideia da relação entre a arte e a razão. Mas me
lembrei que li, em algum lugar, um comentário seu sobre David Lynch. E fiquei
pensando: trata-se ali do mesmo problema ou ali existe uma certa maneira de
se fazer a imagem, de fazer cinema, que não é pensada somente através dos
preceitos racionais, quer dizer o campo do sonho, o campo de outra ordem?
VS: O que me interessava em Lynch eram duas coisas. Primeiro, o fato dele
conseguir colocar de uma maneira muito peculiar a tendência contemporânea
de trabalhar com uma linguagem arruinada. A linguagem cinematográfica de
Lynch é uma linguagem arruinada, pois composta por antigos clichês
cinematográficos. Clichês de filmes noir, de filmes de terror, mesmos os efeitos
especiais de terror são os mais simplórios que se pode imaginar. Toda essa
gramática arruinada do cinema está lá. Mas está presente de uma maneira tal,
que todos os elementos estão deslocados, todos estão fora do lugar. O
resultado é extremamente rico. Este deslocamento faz com que, de uma certa
forma, a sua obra se transforme numa obra de forte teor descritivo de alguns
impasses da subjetividade contemporânea: é uma obra onde você não
consegue abrir mão, recusar nada que do ponto de vista do estado atual da
linguagem está gasto. Veja como do ponto de vista de estética é interessante:
nós conhecemos a ideia modernista da grande ruptura, da autonomia enquanto
ruptura. Lynch faz o inverso, não rompe com nada, todos os elementos da
realidade social reificada estão lá presentes, como se eu não conseguisse me
dessolidarizar, de não deixar de investir libidinalmente meu interesse em algo
que eu sei que está na situação de ruínas. No entanto, esse tipo de vínculo, ao
ser colocado numa espécie de quadro narrativo totalmente remodelado, ganha
um novo sentido. Então, aquilo que parece muito gasto e muito visto consegue
desvelar uma experiência de estranhamento.
CZ: Uma coisa que eu fico pensando nesse sentido: eu acho que uma das
coisas mais decepcionantes é a auto-biografia de Lynch: A Meditação
Transcendental. Mas, de certa forma, não é sintomático que talvez o autor mais
inquietante na contemporaneidade, seja pessoalmente conservador. E, digo,
sendo politicamente uma nulidade no que ele tem a propor. Enfim, isso não é
sintomático? E até essas ruínas não seriam muito mais talvez um sentimento
de conservação do que um apontamento para outra coisa?
VS: Eu diria o seguinte: primeiro, que suas entrevistas são melhores que o
livro. Por outro lado, existe uma questão interessante que você coloca que é a
seguinte: em que condições alguém pode expor as contradições do seu
tempo? Parece-me que, muitas vezes, só aqueles que vivenciam na sua vida
tais contradições, conseguem expô-las de maneira fiel. Isso faz com que boa
parte dos artistas traga na sua vida as contradições do seu tempo. Isso dá a
impressão, por exemplo, de que quando ele fala do que faz, parece não ter
consciência do que faz, porque de certa maneira está imerso nas contradições
que expressa. Muitas vezes você precisa fazer parte do problema para
conseguir atravessar o problema. Assim, se alguém como David Lynch não
fosse um sujeito que mora em Los Angeles, perto do universo de Hollywood –
se não estivesse lá, muito próximo, participando das festas, das bobagens de
meditação transcendental que todo ator de Hollywood acredita – talvez ele
fosse incapaz de expressar o nível da contradição que é próprio da maneira
com que nossa época se relaciona com esse universo da fantasia que é o
cinema. Por isto, ele está perdoado.
CZ: Isso explica um pouco sua relação com a mídia: o fato de você se colocar
como interlocutor nos jornais, na mídia impressa. Você quer vivenciar a
contradição de perto?
VS: Não. Acho que nesse caso, eu me justificaria pela seguinte forma: existe
uma tendência – que não é só brasileira, mas mundial – de transformar a
universidade num gueto. Veja a área de ciências humanas, eles querem
empurrar a gente para o gueto, porque depois vai ser mais fácil se livrar de
nós.
Veja o que aconteceu no caso da França. Ela sempre teve uma tradição de
intelectuais públicos como Sartre, Foucault, mesmo Deleuze. Você pega a
quantidade de textos para jornal que Foucault escreveu. É uma coisa enorme.
No caso de Deleuze também, não é muito diferente. Isto significava que você
estava discutindo com a opinião pública (porque a opinião pública existe, não é
uma abstração) questões que dizem respeito não apenas ao seu universo de
intelectual, ou de seu universo profissional, o universo acadêmico. Isto é
importante porque quando o Estado procurar cortar suas verbas, fechar seu
departamento você fala e a opinião pública te ouve. Afinal, ela já te conhece,
sabe que você não está simplesmente falando em interesse próprio (porque
alguém mal intencionado poderia dizer : a universidade é o lugar onde você
trabalha, vão cortar dinheiro da sua verba, você não vai mais poder viajar pra
fazer seu colóquio e todo esse tipo de coisa). Então, o que aconteceu na
França? Teve um momento em que essa figura do intelectual público saiu um
pouco de cena, e ai tivemos essas figuras da universidade que transformaram
a área de ciências humanas como espaço de especialistas. Durante 20 anos foi
um pouco assim: salvo raras exceções, a universidade saiu do debate,
desapareceu da imprensa, da televisão, de tudo. Quando chega um governo
direitista e diz que vai cortar a verba de todas as áreas de ciências humanas,
param-se a universidade, meses de greve, publicam-se defesas em jornais.
Sabe o que a opinião pública fez? Nada! Absolutamente nada! Porque eles
falaram: “Bem, eu nunca te vi, nem sei quem você é! Minha vida passou muito
bem sem você e vai continuar passando muito bem sem você!” Ou seja: eles
se deixaram, vamos dizer assim, levar por este discurso contra a figura pública
do intelectual, se deixaram colocar dentro do gueto, entraram no gueto. E aí
suas cabeças foram cortadas de uma maneira muito mais fácil. Acabou.
Na Itália aconteceu uma coisa muito parecida. Durante anos, o Partido
Comunista nunca conseguiu formar um governo. Aí se forma um governo com
Massimo D’Alema e eles dão uma ajuda para a universidade. Em que sentido?
Não é que a universidade vai aproveitar o momento e entrar no debate público.
Fala-se então: “Vamos lá! Vou dar um dinheiro pra vocês, vocês querem fazer
seu colóquio sobre Trotsky?” – e a universidade chama todos os especialistas
e faz uma publicação e depois faz circular entre o pessoal deles. E foi isso que
eles fizeram. Mas, quando chega um governo direitista deteriorando as
condições de trabalho e pesquisa, a população sequer se mobilizou, porque os
acadêmicos não estavam mais presentes, porque eles decidiram cortar os
vínculos com a opinião pública.
No Brasil dos últimos anos, chegou-se em um ponto em que todos os
intelectuais presentes na imprensa eram arautos do pensamento conservador.
Então eu pensei : eles controlam uma revista pra trezentas mil pessoas; na
minha sala tem no máximo 150 alunos, e algo me diz que esses trezentos mil
são maiores do que os meus cento e cinquenta. Veja, eles vão constituindo
uma pauta, uma agenda de debates, uma agenda de discussões que não é só
política, é estética. Eu me lembro de um maluco desses que chamava Edward
Said de farsante. Então, o sujeito que está se formando pelo jornal vai ler isso e
vai começar a pensar assim. E se você não consegue responder, estas coisas
vão sendo internalizadas. O outro chamava os modernistas de terroristas, de
gente que só conseguia fazer música porque recebia o dinheiro do Estado. Ou
seja, esse discurso começa a circular… e o nosso não circula! A gente fica
conversando com convertido. Eu fico discutindo com quem pensa exatamente
igual a mim, quem tem os mesmo interesses. Então, se não tivermos
consciência de que uma das funções do intelectual das ciências humanas é
fornecer uma pauta de debate, o próximo estágio será simplesmente fechar o
nosso departamento. É o que está acontecendo na Europa: os departamentos
de filosofia estão fechando. Simplesmente fecharam o departamento de
filosofia de Middlesex (Universidade britânica) e eles vão fazer isso em todos
os lugares onde puderem fazer, a não ser que você seja capaz de demonstrar
que a reflexão que é feita na universidade te possibilita, te dá as condições
necessárias para poder intervir na pauta do debate nacional ou internacional.
Não é que ela tenha uma função social, no sentido dela só ser justificada a
partir de uma função social prática. Mas ela permite que a pauta do debate
sócio-político se abra para o que a universidade produz.
Por isso, acho um equivoco brutal voltarmos às costas para a imprensa.
Ninguém tem ilusões a respeito dos conflitos de interesse na grande imprensa.
Mas a capacidade de negociação com grandes estruturas é um dado presente
no pensamento desde o seu início. Bach tinha que compor a encomenda do
príncipe – você tinha que ter em conta o gosto estúpido da realeza pra
conseguir fazer alguma coisa. Ele sempre negociou e soube negociar. Mas
também, de uma maneira ou outra, sempre conseguiu mostrar a que veio. Se
perdermos isso, será nosso fim.
Posso dar um exemplo sobre o que acontecerá se perdermos isto : tem um
grande amigo que é professor de Paris I, um grande especialista em estética
hegeliana. É um desses alemães que fez um calhamaço de mil páginas sobre a
história do sistema de cores (depois de Goethe, ele ainda se interessa por
isso). E eu lembro que ainda morava na França quando houve a eleição
presidencial de 2002. Foi o início do processo de guinada da agenda política
em direção aos temas da extrema direita. Lembro=me de quando cheguei pra
ele transtornado com isso: “Como uma coisa dessas acontece? As
consequências vão ser dramáticas! Independente do sujeito ganhar ou não, ele
conseguiu o que queria: agora a pauta vai ser ditada por ele!” – o que de fato
aconteceu. Mas num belo momento, ele olha pra mim e fala: “Vladimir, afinal de
contas, isso realmente importa?” Eu parei e pensei: “Com certeza o seu estudo
do sistema de cores é mais importante…”. Ou seja, era uma pessoa tão ligada
ao seu universo de pesquisa, tão formada na ideia de que você tem que ser o
melhor dos especialistas, que não percebia que o futuro dele seria decidido lá!
Porque, digamos que o Front Nacional ganhasse, o dinheiro do governo para a
abertura de novos postos da universidade, para o financiamento de pesquisa
na área ia desaparecer assim [Safatle dá um estalo]. Ou seja, mesmo pelos
interesses mais egoístas, ele devia estar preocupado com isso.
Como se não bastasse, há a verdadeira questão : “você não está percebendo
que a vida social vai ser completamente modificada?!?” Então, são pessoas
que não enxergam mais os tipos de riscos que a vida social nos coloca em
situações cotidianas. Isso é o resultado de uma visão totalmente equivocada do
que deve ser um professor universitário. Ninguém vai começar a discutir
problemas do cotidiano dentro da sala de aula, eu não vou usar a sala de aula
pra discutir problemas políticos. Agora, é inegável que a sociedade espera que
intelectuais ligados às ciências humanas sejam capazes de complexificar a
pauta do debate das questões que circulam na nossa vida e, se você não
consegue fazer isso, o preço vai ser muito alto.
CZ: Você poderia falar do que pessoal tem chamado de “nova esquerda”? Algo
que, de certa forma, você acaba sendo visto, por estar circulando, como uma
referencia do que seria essa nova esquerda. O que você vê dessa nova
esquerda? Se ela existe, o que ela representa de fato?
VS: Levantaria três pontos. Primeiro,a respeito do legado histórico do século
XX. Para uma idéia dar certo, muitas vezes ela precisa fracassar. Se você
estivesse no século XIV e falasse que era republicano, as pessoas olhariam
pra você e diriam: “Isso é impossível! Você quer colocar um sistema que já
mostrou que não funciona? Como você pode insistir nisso hoje?” Mas, hoje,
todo mundo é republicano. A ideia precisou tropeçar para conseguir através
dos seus erros se realizar. Eu diria que a esquerda está aprendendo isso; eu
diria que as ideias das esquerdas precisaram fracassar para se realizarem num
segundo momento, de uma maneira mais condizente com seus próprios
conceitos.
Agora, quando entramos nos fracassos da esquerda do século XX, temos duas
tendências: uma que vai contar a histórias das revoluções como a história dos
massacres, história contada a partir de montanhas de cadáveres. Isso
demonstraria que não é possível sair dos esquemas da democracia liberal,
pois, quando se tentou sair, só deu em catástrofe. Agora, tem uma outra
vertente, e acho que é uma nova tarefa da nova esquerda seguir por ai, que
consiste em dizer mais ou menos o seguinte: “reconheço os equívocos que
foram produzidos pelas revoluções, mas não admito em hipótese alguma a
criminalização das revoluções. Entendo que uma coisa é o processo
revolucionário, outra coisa é a gestão da revolução”. Foi um dos grandes
equívocos do pensamento de esquerda não ter compreendido que, realizada
uma revolução, existe uma outra coisa muito mais complexa e muito mais
perigosa, que é a gestão do processo revolucionário. E foi aí que as coisas
deram todas erradas. Foi aí que a revolução russa deu no que deu, que a
revolução cubana deu no que deu, que a revolução chinesa deu no que deu.
Uma revolução a abertura de novas sequências, é uma Estrada muito perto de
um abismo. Vai da astúcia de cada um saber não olhar para baixo.
Mas também não significa imaginar – e este é o segundo ponto da questão –
que o único acontecimento político relevante é uma revolução. Tem também
um outro erro de outra vertente da esquerda que é não compreender, ou ainda,
operar até hoje com uma dicotomia entre reforma e revolução. Quando você
aceita esta dicotomia, você tem dois equívocos complementares: o primeiro é
eliminar toda revolução, o segundo é só compreender o acontecimento como
uma revolução. Destes dois equívocos temos que saber escapar. Primeiro,
porque uma revolução não pode ser objeto de uma ação política. A revolução é
o imprevisível na política, é a abertura da política para o imponderável. Você só
compreende suas causas a posteriori. Quantas situações revolucionárias
pareciam estar no limiar e não ocorreram? E quantas situações que pareciam
improváveis se transformaram em revoluções? Isto porque ela coloca em
circulação uma dimensão da contingência dos acontecimentos que não é
organizada por nenhuma necessidade histórica. A necessidade histórica, nesse
caso, só funciona a posteriori. Então, você não pode valorizar um tipo de
intervenção política baseado em alguma coisa que é da ordem da própria
contingência. Daí porque continuar operando nesta dicotomia é um equívoco.
Um segundo ponto: uma esquerda que não tenha vergonha do seu nome deve
estar disposta a estabelecer também uma crítica dos limites da democracia
liberal e da democracia parlamentar. A Nova Esquerda faz isso porque acredita
na possibilidade de uma democracia realmente efetiva. Quer dizer, não se trata
de defender experiências como o centralismo democrático, o partido único ou o
populismo bonapartista – o qual, insistiria muito, não é um conceito vazio; ele é
um conceito existente, e contra ele a esquerda tem que também saber fazer
alguma coisa. De fato, na tentativa de ultrapassar a democracia liberal
parlamentar, outros erros apareceram. Mas sabemos agora quais são os
problemas. Isso não significa que a criatividade política se esgotou. Existe toda
uma constituição de uma democracia de forte densidade popular, de forte
densidade plebicitária que ainda é uma tarefa por vir. Ela não foi realizada, algo
que só a esquerda pode propor.
O terceiro ponto consiste em mostrar que a esquerda tem como uma das suas
tarefas fundamentais realizar uma verdadeira política universalista; primeiro,
porque para esquerda, o problema da desigualdade é um problema político
central. Só que essa desigualdade não é só a desigualdade da redistribuição,
embora ela seja um elemento decisivo. Mas ela é também uma desigualdade
de reconhecimento social, desigualdade que, muitas vezes , aparece como
tendência da vida social contemporânea em se atomizar em núcleos
comunitários cada vez mais isolados uns dos outros. Neste ponto, a esquerda
deve insistir no seu radical igualitarismo. Toda essa presença dos temas de
choque cultural, de choque de civilização, no interior político, demonstra
simplesmente que as nossas sociedades ocidentais não conseguem realizar
ideais igualitários. São sociedades de alta exclusão. O que acontece com os
imigrantes na Europa, demonstra que o universalismo nesse território é
marcado pela exclusão; é um universalismo daqueles que pensam como eu
penso, daqueles que conjugam os valores como eu conjugo; ou seja, é um
falso universalismo.
Neste sentido, o fundamentalismo tem, ao menos um conteúdo de verdade.
Pois ele é uma maneira equivocada de dizer, entre outras coisas é: a
integração nunca ocorreu, porque quando você fala em integração, você fala
em partilha de poder político, em partilha de poder econômico, em partilha de
responsabilidade social. Um exemplo: quantos filhos de imigrantes árabes
existem na Assembléia Nacional francesa? Dois de quinhentos e dezessete,
embora eles sejam uma faixa de 15% da população. Isto simplesmente
demonstra que a esquerda deve insistir muito no seguinte aspecto: existe uma
tendência de colonização do campo político por afetos como medo e
segurança, e cabe a nós rompermos com essa lógica da cultura do medo e da
insegurança. Não simplesmente absorver o discurso, como a social democracia
fez. Eles querem fazer uma espécie de cultura do medo com um rosto humano.
Tudo o que eles conseguem falar é: “Não. Vamos fazer tudo com mais calma!”
Quer dizer: “Vocês não vão acorrentar os imigrante num vôo charter! Vamos
fazer outra coisa: vamos conversar com os caras, se possível colocar um
animador dentro do avião, uma coisa mais humana, com brindes na saída!” Ou
seja, não há diferença alguma a não ser de tom, porque eles absorveram uma
pauta que é a pauta da direita, na qual consiste em afirmar que vivemos em
uma sociedade da perpétua insegurança. Assim, o medo, o afeto, continua
central. Daí, qual seria a função do Estado? É fazer a gestão do medo. Uma
das maneiras de escapar é exatamente insistir no seguinte aspecto: nós não
fomos ainda totalmente igualitários por nos deixarmos fascinar por conceitos
que hoje não tem nenhuma realidade, como identidade e nação. Nós não
conseguimos ser totalmente igualitários… Essa é uma outra pauta importante
do pensamento da Nova Esquerda.
CZ: Pensando sobre a questão da imagem – seja no audiovisual, seja nas
artes plásticas – o que seria uma perspectiva emancipatória no cinema e nas
artes plásticas?
VS: Acho que uma das tarefas da reflexão filosófica sobre as artes é partir das
obras, analisar as obras como quem procura modelos de reflexão. A melhor
maneira de responder a sua pergunta seria ditando quais obras nos fornecem
um modelo pra algum tipo de reflexão. Falamos do cinema de David Lynch. Eu
falaria da fotografia de Hilla e Bernd Bescher. Acho que são obras
extremamente relevantes pra um tipo de reflexão sobre a natureza da imagem.
CZ: Você acha que a arte vive hoje, não diria um retrocesso, mas um momento
de indeterminação?
VS: Eu acho que é fácil dizer: “Nesse momento, nossa produção estética não
oferece nenhuma experiência de alta voltagem”. Nunca acreditei nesta atitude.
Não acreditei porque normalmente as pessoas que falam esse tipo de coisas,
conhecem muito pouco do que é produzido na contemporaneidade. Ao invés
de falar coisas desta natureza, ganhariam mais se tivessem mais paciência e
mais desejo de procura. É claro que personalidades como Duchamp,
Kandinsky e Maiakoviski só aparecem uma vez a cada cinquenta anos. Não é
toda hora que você vai encontrar obras com essa força. No entanto, a
desqualificação do presente é feita muitas vezes como uma espécie de
discurso genérico. Seria mais interessante insistir nas potencialidades abertas
para o presente. Eu poderia citar aqui dez ou quinze artistas que são artistas
da mais alta relevância e que mostram como a produção contemporânea da
arte é uma produção rica. A música de Gyorg Kurtag, apenas para ficar em um,
Parece-me que um pouco mais de humildade seria ótimo. A arte sempre
surpreendeu e ela vai continuar sempre nos surpreendendo. Nos momentos
em que acreditarmos que a porta estava fechava, a arte abrirá outra porta.
Cabe a nós identificarmos estas portas que estão sendo abertas, ao invés de
repetir o discurso de que não há mais portas a serem abertas.

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