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A dialética do amor: uma leitura de Destruição, de Carlos Drummond de Andrade

A dialética do amor: uma leitura


de Destruição, de Carlos Drummond de Andrade
Edson Santos de Oliveira

Resumo
Este artigo pretende fazer uma leitura do soneto Destruição, de Carlos Drummond de Andrade.
Partindo de categorias como amor e ódio, pulsão de vida e pulsão de morte, tentaremos mostrar que
há uma relação dialética entre esses polos, que são recriados poeticamente pelo escritor mineiro,
tanto no plano da macro como da microestrutura do soneto. As camadas fônicas e morfossin-
táticas do texto mimetizam o movimento de fusão e destruição dos amantes. Nesse movimento,
Drummond nos leva a perceber que o amor tem algo de perda e que esta dialoga com a falta e
com a pulsão de morte, apontando para a negação (traço fundamental da linguagem) e para a
constituição do sujeito.

Palavras-chave
Destruição, Drummond, Pulsão, Amor, Ódio.

O soneto a ser lido traz como título Des- lizado pela tradição literária desde a poesia
truição – uma palavra que, à primeira vista, lírica de Camões, com o seu conhecido
parece não ter ligação com o sentimento “Amor é fogo que arde sem se ver”, até po-
amoroso. Trata-se de um poema que per- etas do Modernismo brasileiro como Viní-
tence a Lição de Coisas, publicado em 1962. cius de Moraes e outros. Leiamos o poema.
Nessa obra, Drummond quer construir o
texto poético como “objeto de palavras”, Destruição
explorando elementos como o aspecto vi- Os amantes se amam cruelmente
sual, a fragmentação sintática, montando e e com se amarem tanto não se veem.
desmontando vocábulos, tentando produzir Um se beija no outro, refletido.
uma linguagem subtrativa, enfim, criando Dois amantes que são? Dois inimigos.
uma poética que, no entender de Haroldo
de Campos, valoriza mais a palavra e o es- Amantes são meninos estragados
paço em branco do que o verso (CAMPOS, pelo mimo de amar: e não percebem
1970, p.43), o que confirmaria as propostas quanto se pulverizam no enlaçar-se,
do Plano Piloto para Poesia Concreta, assina- e como o que era mundo volve a nada.
do pelos irmãos Campos e Décio Pignatari
(CAMPOS, Augusto et allii, 1965). Nada, ninguém. Amor, puro fantasma
Indo na contramão do programa esté- que os passeia de leve, assim a cobra
tico criado por Décio Pignatari, Haroldo e se imprime na lembrança de seu trilho.
Augusto de Campos, o poema Destruição
não traz uma fragmentação da forma no E eles quedam mordidos para sempre.
plano visual. Drummond opta por uma Deixaram de existir, mas o existido
espécie literária, o soneto, fartamente uti- continua a doer eternamente.
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Edson Santos de Oliveira

No notável poema de Camões, do qual tinha como programa estético conciliar


foi retirado o primeiro verso destacado emoção com razão. De outro lado, vamos
anteriormente, o poeta português é pródi- perceber que a “racionalidade”, inerente a
go no uso de paradoxos, recurso utilizado esse processo de construção equilibrado
por vários artistas da palavra para definir que caracteriza o soneto, recebe um toque
sentimentos enigmáticos como o amor. de corrosão3 por parte do poeta mineiro
Drummond, ao optar pelo soneto e ao ex- na medida em que o amor, companheiro
plorar elementos paradoxais nesse poema, inseparável da emoção, é enfocado como
está, pois, sintonizado com uma tradição sentimento de destruição. É exatamente aí
literária portuguesa que vem de longe, que está a riqueza do poema.
passando por Camões, vários outros poetas Com relação ainda à opção pelo soneto
e chegando a Fernando Pessoa, com seus em Lição de Coisas, convém assinalar que
famosos oxímoros1. No entanto, o poeta não se trata de uma “esporádica recaída” do
mineiro traz uma inovação ao mostrar poeta itabirano no modelo clássico, como
um outro ângulo do amor, a destruição. afirma Haroldo de Campos (CAMPOS,
Como veremos, o processo de construção 1970, p.43)4. Essa “recaída” a que o crítico
desse soneto (ritmo, métrica, uso do verso paulista se refere não deve ser entendida
branco, presença do enjambements2, pausas, como um defeito. Pelo contrário, insistimos,
marcações fônicas ou morfossintáticas, a construção do soneto (uma espécie literá-
além de outros recursos) acompanha, no ria que tende a uma construção racional),
plano da linguagem, a integração e de- conjugada com a temática da destruição,
sintegração dos amantes no ato amoroso. no sentimento amoroso, enriquece esse
Assim, a camada significante do texto poema drummondiano ao mostrar de modo
drummondiano é plasmada num movimen- magistral a tensão entre amor e ódio que
to de sístole e diástole, fazendo eco ao tema perpassa por todos os quatorze versos do
do soneto, a saber, a tensão entre amor e texto.
morte. Pode-se dizer que, juntamente com O jogo de oposições explorado por
a camada fônica e morfológica, o estrato Drummond não se prende à relação de
sintático do poema segue esse movimento
de oscilações entre versos curtos, fechados
e longos. Sintaticamente, o processo de su-
3. Essa ideia de corrosão foi proposta por Luiz Costa Lima
bordinação se manifesta principalmente na ao estudar a obra de Drummond. (LIMA, Luiz Costa. “O
frequência de enjambements, como veremos princípio-Corrosão em Carlos Drummond de Andrade”.
In: Lira e antilira: Mário, Drummond, Cabral. 2. ed. Rio
posteriormente. de Janeiro: Topbooks, 1995, p. 174.) Esse princípio de
No poema de Drummond, o amor é corrosão, em nosso entender, parece ter relação com a
ironia na medida em que Drummond cria em seus versos
tematizado em uma espécie literária que um distanciamento em relação ao que escreve. No soneto
tende ao “racional”, o soneto, que apresenta em questão, não há essa ironia, mas a corrosão pode ser
percebida, de modo mais amplo, na apresentação do
certa coerência na apresentação do assunto: amor num processo de construção/destruição. Assim, no
a primeira estrofe funcionando como uma plano da macroestrutura, a construção do soneto tende à
introdução, a segunda e a terceira corres- racionalidade e, no plano do conteúdo, a apresentação
do amor como fusão dos amante é corroída pelo tema
pondendo ao desenvolvimento e a última, do amor como sentimento de destruição.
como conclusão, arrematando o texto. Essa 4. A expressão “recaída no soneto” está no seguinte
trecho: “(...) Várias coisas não contam e podem ser
espécie foi muito cara à poesia clássica, que descartadas: certa poesia comemorativa e/ou memorial
(inclusive uma esporádica recaída no soneto); certos poemas
“padrescos” que se salvam pelo fio fino do humor; alguma
1. Oxímoro: Figura que consiste na reunião de palavras insistência no “discurso maior”. Mas o que conta,
aparentemente contraditórias. além de numeroso, é, principalmente, fundamental.
2. Enjambements ou cavalgamento: Processo que consiste In. CAMPOS, Haroldo de. Metalinguagem: ensaios de
em colocar no verso seguinte uma ou mais palavras que teoria e crítica Literária. Petrópolis/Rio: Vozes, 1970.
completam o sentido do verso anterior. (Grifo nosso).

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palavras de sentido contrário. A macroes- Essa imagem de fusão em que o um é o


trutura do poema – construído em forma de outro, conotada pelo vocábulo “refletido”,
soneto, sugerindo a imagem de uma cons- nos remete ao mito de Narciso. De tanto
trução poética equilibrada e proporcional – amar e olhar sua imagem nas águas, o per-
é dissolvida na microestrutura pelo enfoque sonagem da mitologia acaba mergulhando
do sentimento amoroso ligado ao campo na morte. Os amantes do poema, cegos pelo
semântico de destruição através de vocábu- amor, perdem a visão e, como Narciso, de
los que apontam para a negatividade, tais tanto se verem acabam se destruindo. Por
como “fantasma”, “nada”, “ninguém”, e de outro lado, o reflexo no ato de olhar/amar
outros recursos fônicos e morfossintáticos, aponta também para o duplo: na intensi-
como será demonstrado ao longo desta dade do amor e da contemplação mútua,
leitura. Releiamos o poema. os amantes são um outro e um mesmo.
Estamos diante de um soneto cons- Todo reflexo remete a uma identidade
truído em versos decassílabos brancos. confirmada e a uma identidade roubada
Se se trata de amor, por que o vocábulo (GENETTE, 1996, p.24). Os amantes se
“destruição” no título do poema? Se à refletem e se confirmam no reflexo; no
primeira vista o amor tende à construção, entanto, como veremos, essa identidade é
o que leva o poeta de Itabira a vê-lo pelo também neutralizada à medida que avança
ângulo da destruição? Percebe-se assim que o poema. Observemos, no plano morfo-
elementos dialéticos, na camada do signifi- lógico, como algumas imagens do soneto
cante e do significado, vão percorrer todo reafirmam o jogo de roubo e confirmação
o soneto através do processo de integração de identidade. Enquanto vocábulos como
e desintegração. “amantes”, “meninos” e “mundo” confir-
No primeiro verso do poema (“Os mam a integração amorosa, palavras como
amantes se amam cruelmente”), o advér- “inimigos”, “cruelmente” e “nada” rompem
bio “cruelmente” dialoga com o título, com essa tendência à completude.
apontando o amor como um sentimento A palavra “inimigos” do último verso
destruidor. Por outro lado, há uma imagem da primeira estrofe (“Dois amantes que
de reciprocidade desse sentimento, sugerida são? Dois inimigos.”) retoma a imagem
pelo pronome “se”, que antecipa as formas do amor como crueldade, presente no
verbais “amam” e “amarem”, essa última primeiro verso do soneto – “Os amantes
no segundo verso (“e com se amarem tanto se amam cruelmente”. A primeira estrofe
não se veem” – grifo nosso). Juntamente se fecha com a imagem do amor como
com a imagem da reciprocidade, encon- inimizade, dando sequência, na segunda,
tramos no segundo verso outro pronome a uma intensidade do processo amoroso
“se”, antecipando a forma verbal “veem”, que se constrói-desconstruindo, presente
acenando para o narcisismo. Em outros ter- na metáfora “meninos estragados” (“Aman-
mos, a intensidade do amor, marcada pelo tes são meninos estragados”), ampliada no
advérbio “tanto”, é diretamente proporcio- paradoxo do terceiro verso (“quanto se
nal à cegueira desse mesmo sentimento: pulverizam no enlaçar-se”) e na antítese
“não se veem”. Os dois amantes, centrados sugerida pelos vocábulos “mundo” e “nada”
no ato de amar, isolam-se do mundo em sua do quarto verso: “e como o que era mundo
autocontemplação. Dois tentando em vão volve a nada”.
formar o um, magistralmente caracteriza- Ainda na segunda estrofe, a aliteração,
do pela presença do singular no adjetivo presente na repetição do fonema /m/, no
“refletido”, no terceiro verso da primeira primeiro e segundo verso – “Amantes são
estrofe: “Um se beija no outro, refletido” meninos estragados/ pelo mimo de amar e
(Grifo nosso). não percebem” –, reflete, na camada fônica,
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a imagem da fusão narcísica dos amantes, Se observarmos atentamente a pontu-


como se pode constatar na primeira estrofe. ação do poema, poderemos perceber que
Assim, o beijo apaixonado dos amantes é ela dá as coordenadas do ritmo de avanço
mimetizado pelo fonema /m/, conjunção e recuo dos namorados no ato amoroso. Na
bilabial (acenando para o movimento dos primeira estrofe, o narcisismo dos amantes,
lábios no beijo), ampliando a imagem da cegos diante do amor, começa a esboçar-se
união tão intensa dos namorados, que não com ênfase na imagem da paixão, acrescida
percebem o processo de pulverização a que de um toque de agressividade, presente nas
chegam, pulverização que também, fonica- palavras “cruelmente” e “inimigos”: “Os
mente, se insinua no encontro consonantal amantes se amam cruelmente/ e com se
tr, no fonema velar sonoro /g/ (guê) do vo- amarem tanto não se veem.” A cegueira e
cábulo “estragados”, na vogal /u/, prolongada o isolamento narcísico dos apaixonados são
pela consoante líquida L da forma verbal sintaticamente marcados pelos três pontos
pulverizam, juntamente com a consoante finais dessa primeira estrofe. Em outros
labiodental sonora /v/ e a vibrante /r/ da termos, os versos se fecham sintaticamente
mesma palavra. Como podemos notar, a da mesma forma que os amantes se isolam
fusão e a destruição amorosa são projeta- no amor, alheios ao olhar de quem quer
das não só no plano morfossintático, mas que seja.
também na camada fonológica do poema. O amor dos amantes tem um ritmo in-
A desintegração do amor se acentua tensificado na segunda estrofe, com apenas
na terceira estrofe através de vocábulos um ponto final. Na verdade, esse ritmo já
como “nada” e “ninguém”, seguidos da começa a se encorpar nos dois primeiros
palavra “fantasma”, como se pode notar versos da primeira estrofe, através da repe-
na gradação já apontada no primeiro verso: tição das formas verbais “amam/amarem”,
“Nada, ninguém. Amor, puro fantasma”. da presença da aditiva “e”, juntamente
Vale ressaltar que a destruição do amor com o ponto, que surge apenas no final
já é anunciada na estrofe anterior com a do segundo verso: “Os amantes se amam
presença da anadiplose5, através da pa- cruelmente/e com se amarem tanto não se
lavra “nada”, no final da segunda estrofe veem.” O primeiro verso da segunda estrofe
juntamente com o seu retorno no começo se apoia abruptamente no início do segun-
da terceira. do através do enjambement ou cavalgamen-
O vocábulo “fantasma” é ambíguo, to (“Amantes são meninos estragados/pelo
sugerindo não apenas algo irreal, mas mimo de amar: e não percebem”). Entre
também a fantasia criada pelos amantes o final do segundo e o início do terceiro
no ato amoroso, insinuado no vocábulo verso, há novo “cavalgamento”: “e não
“cobra” (que evoca não só a sexualidade, percebem/quanto se pulverizam no enlaçar-
mas também a imagem da serpente tenta- se”. A fusão dos namorados, sugerida pelo
dora do paraíso) e novamente dissolvido na cavalgamento, juntamente com a fusão
expressão “lembrança de seu trilho”. Como de classes gramaticais, presente no verbo
a fantasia que sempre retorna, o desejo substantivado “enlaçar-se”, novamente
também volta pela lembrança, numa cir- são desconstruídas pela expressão “volve a
cularidade paradoxal, na eterna satisfação nada”. A forma verbal “volve” aponta para a
que nunca se satisfaz. circularidade do desejo, sempre se unindo e
se dissociando, lembrando o eterno embate
entre a pulsão de vida e a pulsão de morte.
Assim, a intensidade do amor, tecida pela
5. Anadiplose: Repetição de palavra(s) do fim de um
período, oração ou verso no princípio do período, oração
pontuação agalopante nos três primeiros
ou verso seguinte. versos da segunda estrofe, recebe uma leve
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pausa na vírgula do terceiro verso (“Quanto “doer”. O último vocábulo do soneto, o


se pulverizam no enlaçar-se”) anunciando advérbio “eternamente”, arremata de modo
que o amor caminha para o nada e para magistral o poema, enfatizando a dialética
a morte: “e como o que era mundo volve do desejo na existência humana: um eterno
a nada”. Os vocábulos “mundo” e “nada” círculo de enlace e desenlace.
desse quarto verso da segunda estrofe re- Com relação à dinâmica pulsão de
tomam a metáfora do primeiro, da mesma vida e pulsão de morte, seria interessante
estrofe (“Amantes são meninos estragados) fazer aqui ligeiras reflexões. Se por um
através do substantivo “meninos”, que co- lado, segundo Freud, as pulsões de vida
nota juventude, vigor, vida e do adjetivo (constituídas de pulsões sexuais e pulsões
“estragados”, que acena para a pulverização de autoconservação) caminham no sentido
e para a morte. da aglutinação, diríamos, da construção,
Na metade do primeiro verso da ter- por outro lado a pulsão destrutiva se di-
ceira estrofe (“Nada, ninguém ...)”, o amor rige à desintegração. Essas duas pulsões,
dos amantes tende a um ritmo lento. No todavia, trabalham dialeticamente num
entanto, na segunda metade desse mesmo processo de fusão e separação. Drummond
primeiro verso (“Amor, puro fantasma...)”, vai assim ilustrando brilhantemente nesse
o ritmo acelerado do amor, via pontuação, soneto a dialética do amor ao descrever os
renasce e continua em toda a estrofe, mas amantes se amando e ao mesmo tempo se
é corroído pelo plano da fantasia e da destruindo. Essa destruição amorosa pode
lembrança. Os versos da terceira estrofe ser vista em dois aspectos. Por um lado,
são cortados pela presença de três vírgu- a pulsão de morte, sendo desintegradora,
las e dois pontos finais, preparando já a acena para o que não se escreve no amor.
serenidade do ato amoroso, que persiste Em outros termos, o enigma do amar não
na quarta estrofe, também marcada por pode ser representado pela palavra e exa-
cortes na pontuação. Todavia, a tensão tamente por isso deságua na morte. Por
entre amor e morte não se resolve no final outro lado, a pulsão de morte não deve
do poema. ser enfocada como mera destruição. Não
Na última estrofe, o ritmo diminui ain- nos esqueçamos de que ela é a pulsão por
da mais, sendo acentuado pela imagem da excelência.
falta, presente no adjetivo “mordidos”, que Em Pulsão e seus destinos, Freud mostra
por sua vez resgata a imagem dos amantes que um dos destinos dela é a “reversão ao
como inimigos, anunciada no quarto verso seu oposto”. O amor pode assim virar ódio,
da primeira estrofe “Dois amantes que são? uma vez que existe uma transformação da
Dois inimigos.” Formas verbais como “que- atividade em passividade. Freud foi mais
dam” “doer” “deixaram de existir” trazem longe ainda ao mostrar que o ódio antecede
ainda uma conotação do amor como uma o amor e é constitutivo do sujeito:
espécie de pequena morte. No entanto, essa
expressão é neutralizada pela conjunção “Não se pode negar que o odiar, original-
adversativa “mas”, marcando o contraste mente, caracterizou a relação entre o eu e
da morte, a vida, novamente reativada no o mundo externo alheio com os estímulos
uso do cavalgamento entre o final do pe- que introduz.(...) Logo no começo, ao que
núltimo e último verso (“... mas o existido/ parece, o mundo externo, os objetos e o
continua a doer eternamente”). A forma que é odiado são idênticos” (FREUD,
verbal “continua” da expressão “continua 1980, v.XIV, p.158).
a doer” remete à persistência do amor,
lembrando-nos a pulsão de vida, fundida à A partir dessas reflexões, pode-se
pulsão de morte, conotada pelo vocábulo deduzir que há sempre uma deficiência no
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Outro ao “completar” a demanda que o há perdas e ganhos, presença e falta, vazios


sujeito lhe propõe. O amor, não comple- e ilusórias completudes.
tando a falta que está no sujeito, possibilita O poema Destruição, como já afirma-
a emergência da destruição. mos no início, pertence a Lição de Coisas.
Flanzer, em seu artigo Sobre o ódio, A palavra “lição” nos leva a pensar no
retomando Freud e Lacan, afirma que o de- ato de aprender e de ensinar. O vocábulo
sejo se compõe de algo destrutivo. Ele surge “coisa” poderia aqui ser substituído pela
de uma defasagem do sujeito em relação palavra real, no sentido lacaniano. O poeta
ao Outro e isso é estrutural (FLANZER, itabirano nos mostra, através deste soneto,
2006, p.220). No Seminário 20, Lacan afir- que as coisas nos ensinam. Elas são opacas
ma que o verdadeiro amor tem uma estreita como o Outro. A lição a aprender é que
relação com o ódio: “É aí que a análise nos podemos olhar para elas sem as certezas
incita a esse lembrete de que não se conhece da racionalidade. O soneto de Drummond
nenhum amor sem ódio” (LACAN, 1985, rompe assim com o lugar comum que se
p.122), criando o vocábulo “amódio”, que tem do amor, mostrando-nos que amar é
ressalta a importância da pulsão de morte também perder: “E eles quedam mordidos
na constituição do amor. para sempre”.
O poema inteiro de Drummond ca- Essa dialética de amor e morte está pre-
minha nesse jogo dialético do amor e do sente não só neste poema, mas em outros
ódio. Na primeira estrofe, o narcisismo dos textos de Drummond. Sant’Anna afirma
amantes solicita a ilusória fusão do um, que a temática amorosa drummondiana
tendendo à integração, mas a crueldade é marcada por antíteses, voltadas para
dissolve essa união. A pulverização e o dualismos como construção/destruição,
entrelaçamento dos apaixonados conti- ganho-perda, instante-eternidade. Se-
nuam na segunda estrofe, mas recebe um gundo o crítico mineiro, a vida é mostrada
arrefecimento na terceira, finalizando, na “como um gesto de amor diante do tempo
quarta, com a fusão entre os opostos: “...mas destruidor” em que Eros luta contra Tâna-
o existido continua a doer eternamente”. tos (SANT’ANNA, 1977, p.139). Assim,
Dessa forma, a macroestrutura do é possível perceber essa dialética amorosa
soneto já é dialética: as duas estrofes do em outros poemas do poeta de Itabira,
centro (segunda e terceira) mostram os como no conhecido Campo de Flores
amantes num ritmo intenso de fusão (“Eis que eu mesmo me torno o mito mais
amorosa e as duas estrofes da extremidade radioso/e talhado em penumbra sou e não
(primeira e quarta) tendem a um ritmo sou mas sou”)(ANDRADE, 2002, p.18) e
menor. Prova disso é que os enjambements em alguns outros. Dessa forma, o amor,
são mais frequentes nas estrofes do centro, se apresentando através do processo de
a segunda e a terceira. construção e destruição, é uma tônica na
No plano da microestrutura, como poesia de Drummond. Se por um lado esse
já apontamos, o jogo dialético do amor é sentimento é marcado pela instabilidade,
também acentuado, sendo marcado por como o tempo que também é destruidor,
pares antitéticos (amigos/inimigos, carinho/ por outro, o poeta o vê como fonte de vida,
crueldade, amor /morte) e oxímoros. O mas num constante estar a morrer. E no
ritmo se acentua com os cavalgamentos amor do “... existido que continua a doer
e as pausas, numa eterna construção/ eternamente” humildemente aprendemos
destruição, fazendo eco à integração e essa lição de coisas. Affonso Romano, no
desintegração amorosa. Assim, esses dois entanto, enfoca a destruição amorosa atra-
opostos que se fundem, na estrutura do vés da categoria do tempo, mas é possível
soneto, parecem nos ensinar que no amor entendê-la em outro ângulo.
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Merquior ressalta em Lição de Coisas a THE DIALECTIC OF LOVE:


importância da linguagem. Ele afirma que A READING OF DESTRUCTION,
nessa obra o tema da natureza fugidia das BY CARLOS DRUMMOND
palavras, já presente em poemas anteriores DE ANDRADE
como “O lutador” e “Procura de poesia”,
volta ao primeiro plano (MERQUIOR, Abstract
1972, p.202 – grifo nosso). The present article aims at presenting
Ao enfocar o amor como algo fugidio, a reading of the Carlos Drummond de
que dialoga com a morte, Drummond nos Andrade’s sonet Destruição. Starting from
aponta para um projeto bem mais amplo de the categories of love and hatred, drive of life
sua poesia. Desse modo, o lirismo filosófico and drive of death, this work will show that
de Lição de Coisas traz, na dialética amo- there is a dialectic relationship among these
rosa, um problema maior, sintonizado com poles, which are poetically recreated by the
a natureza da linguagem que, juntamente mineiro writer, both in the macro and micro
com o desejo, tem na negação a sua marca: structure plans of the sonet. The phonic and
as palavras, como o amor, são fugidias, morphosyntactic layers of the text mimic
constroem e destroem sentidos. A falta está the fusion and destruction movement of the
tanto na palavra quanto no amor. É impos- lovers. In this movement, Drummond leads
sível formar um, como afirma Lacan: us to the understanding that love has some
kind of loss, which dialogs with the lack and
“O gozo – o gozo do corpo do Outro – the drive of death, pointing to the denial, a
resta, ele, uma questão, porque a resposta fundamental language trace.
que ele pode constituir não é necessária.
Isto vai mesmo mais longe. Não é nem Keywords
mesmo uma resposta suficiente, porque Destruction, Drummond, Drive, Love,
o amor demanda o amor. Ele não deixa Hatred.
de demandá-lo. Ele o demanda... mais...
ainda. Mais, ainda, é o nome próprio
dessa falha de onde, no Outro, parte a
demanda do amor” (LACAN, 1985,
p.12-13).

Eis a lição de coisas do poeta itabirano


que poderia ser assinada por Lacan: “Amar
é dar o que não se tem”. Da mesma forma,
fazer poesia, para Drummond, é bordejar
e recriar “o que não cessa de não se inscre-
ver.” ϕ

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Edson Santos de Oliveira

Bibliografia SOBRE O AUTOR

Edson Santos de Oliveira


ANDRADE, Carlos Drummond de. Lição de Doutor em Letras – Estudos literários – pela UFMG. Pós-
Coisas. In: ANDRADE, Carlos Drummond de. Doutor em Linguística pela UNICAMP/IEL. Professor
A paixão medida. 6. ed. Rio de Janeiro: Record, do Centro Pedagógico da UFMG (Coltec). Participante
1998. do Fórum de Psicanálise do Círculo Psicanalítico de
Minas Gerais – CPMG.
ANDRADE, Carlos Drummond de. Campo
de Flores. In: Antologia poética. Rio de Janeiro: Endereço para correspondência:
Record, 2002. Rua Hum, 15/201 – Nova Pampulha
33937-280 – BELO HORIZONTE/MG
CAMPOS, Haroldo de. Metalinguagem: ensaios de Tel.: (31)3496-8318
teoria e crítica Literária. 2. ed. Petrópolis: Vozes, E-mail: edson-so@uol.com.br
1970.

CAMPOS, Augusto et allii. Plano Piloto para po-


esia concreta. Teoria da poesia concreta. São Paulo:
Invenção, 1965.

FREUD, S. Pulsão e seus destinos (1915). In: Obras


completas. Rio de Janeiro: Imago, 1980, v. XIV.

FLANZER, Sandra Niskier. Sobre o ódio. In Inte-


rações, v.XII, n.22, p.215-229, jul.-dez./2006.

GENETTE, Gérard. Figuras. São Paulo: Perspec-


tiva, 1966.

LACAN, Jacques. O seminário, livro 20: mais, ainda


(1972/3). Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1985.

MERQUIOR, José Guilherme. Verso e universo em


Drummond. Rio de Janeiro: José Olympio, 1972.

SANT’ANNA, Affonso Romano de. Carlos Drum-


mond de Andrade: análise da obra. Rio de Janeiro:
Documentário, 1977.

RECEBIDO EM: 04/04/2011


APROVADO EM: 14/07/2011

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