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Opiniães

Entre a poesia
E a prosa:
Drummond E a
Revolução de 30
Between poetry and prose: Drummond and the Revolution of 30

Gabriel Provinzano Gonçalves da Silva* Resumo

O artigo procura desenvolver a hipótese de que o


poema "Outubro 1930", de Carlos Drummond de
Andrade, ocupa uma posição estratégica dentro
da sua obra, porque nele o individualismo
característico do seu primeiro livro, Alguma poesia,
começa a se revelar insuficiente e problemático.
Através da análise do poema, sugere-se que na
mescla de registros que o caracteriza está cifrada
simultaneamente uma crise do poeta com o seu
lirismo e uma tentativa tímida de abrir novos
caminhos poéticos. Para reforçar a hipótese,
*
Mestre em Literatura brasileira com a dissertação "Os anos de aprendizado
modernista de Carlos Drummond de Andrade". O presente trabalho foi
resgata-se um trecho de uma carta de Drummond
realizado com apoio da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível a Mário de Andrade e um trecho de uma crônica
Superior - Brasil (CAPES) - Código de Financiamento 001.
E-mail: gabriel2.silva@usp.br. deste último para mostrar como o poeta mineiro
Artigo recebido em 19/08/2018 e aceito para publicação em 15/10/2018.

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estava àquela altura tomando consciência da position and the need for change. Indirectly, the
precariedade da sua posição e da necessidade de purpose of the article is to situate this process
mudança. Indiretamente, o objetivo do artigo é within the intense ideological movement that
situar o processo de tomada de consciência de agitated our intellectuality in the passage of the
Drummond dentro da intensa movimentação decade of 20 to the one of 30, discussing its
ideológica que agitou nossa intelectualidade na specificity.
passagem dos anos 20 para os anos 30, discutindo
sua especificidade.

Keywords

Palavras-chave Brazilian modernism; Carlos Drummond de


Andrade; Alguma poesia; Brejo das Almas
Modernismo brasileiro; Carlos Drummond de
Andrade; Alguma poesia; Brejo das Almas

"Outubro 1930" foi publicado pela primeira vez no


Estado de Minas em maio de 1931 – no calor da
Abstract hora, portanto – e depois em O Jornal do Rio de
Janeiro em dezembro de 34, antes de ser incluído
The article tries to develop the hypothesis that the na segunda edição de Alguma poesia, de 1942.
poem of Carlos Drummond de Andrade “Outubro Único do livro escrito depois de 1930, o poema é
1930” occupies a strategic position within his work, uma espécie de recriação literária em prosa e
because the characteristic individualism of his first verso da experiência de Drummond na Revolução
book begins to prove insufficient. Through de 30, da qual participou como funcionário das
analysis, it is suggested that in the mixture of Forças Revolucionárias Mineiras, em Barbacena,
records that characterizes the poem is Minas Gerais. Salvo erro, trata-se da primeira
simultaneously encrypted a crisis of the poet with tentativa de fôlego do Autor de cantar o tempo
his lyricism and a timid attempt to open new presente – programa estético-político que
poetic ways. To reinforce the hypothesis, an ocuparia cada vez mais espaço em sua obra e que
extract of a letter from Drummond to Mário de culminaria em A rosa do povo, de 1945. Silviano
Andrade and an excerpt from a chronicle of Mário Santiago (in COELHO (Org.), 2002, p. 30-1) parece
are rescued to show how the poet was at that time ter visto mais semelhanças do que diferenças
becoming aware of the precariousness of his entre o poema e a produção de Drummond da

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década de 40, pois em uma das notas apostas à A abertura do poema surpreende porque, no lugar
correspondência deste com Mário de Andrade, de lances espetaculares, próprios a um
aventou se "Outubro 1930" não teria sido acontecimento histórico importante, focaliza
publicado em Alguma poesia com o sentido de detalhes insignificantes dos bastidores. A escolha
uma autocrítica ao individualismo exacerbado do por retratar suores e roncos sugere um ponto de
livro. E, no prefácio à mesma edição da vista inserido na situação, mas que não tem acesso
correspondência, Santiago (in COELHO (Org., à sua totalidade, ou pelo menos, que não a
2002, p. 30-1) deu um passo além, afirmando que compreende inteiramente. Essa impressão é
o poema teria sido incluído "como a querer provar reforçada pelo emprego de artigos definidos no
o passado de militância tenentista do poeta". Já lugar de indefinidos, opção que especifica os
Iumna Maria Simon (2015, p. 170) viu no poema, elementos da descrição, evitando generalizações.
pelo contrário, "uma colagem mesclada de "Outubro 1930" vai, assim, na contramão das
registros variados, escrita com galhofa, representações históricas oficiais, esquemáticas e
anticivismo e consciência da insignificância da repletas de patriotada. A primeira estrofe do
história local, em clima bem diverso de A rosa do poema é, inversamente, composta pela soma de
povo". Qual a posição, por conseguinte, ocupada descrições fragmentadas que compõem uma cena
por “Outubro 1930” dentro do primeiro lirismo de em que a voz poética está inserida, embora não de
Drummond? Ponto de virada ou, pelo contrário, forma explícita. A perspectiva se constitui nela
prolongamento do individualismo característico junto com a sucessão dos versos, em um processo
do seu livro de estreia? de ajustamento do foco que parte do dado
concreto microscópico no primeiro verso – os
suores – até chegar ao mais abstrato no último – a
Suores misturados morte, pensada pelo soldado. Quanto ao léxico, a
no silêncio noturno.
primeira estrofe se caracteriza pelo predomínio de
O companheiro ronca.
O ruído igual substantivos concretos e prosaicos. Já a
dos tiros e o silêncio pontuação é minguada e consiste em apenas
na sala onde os corpos quatro pontos finais. As orações resultantes não
são coisas escuras. coincidem com os versos, que as fatiam com
O soldado deitado repetidos enjambements, produzindo unidades
pensando na morte curtas e com tamanhos parecidos. O uso desses
cortes também gera expectativas no leitor. Isso
(ANDRADE, 2012, pp. 139-142).
porque o desmembramento das orações
interrompe o fluxo da leitura, sugerindo uma
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quebra, como se antecipasse uma virada repentina perguntavam. Às 3 da madrugada,
que, entretanto, não ocorre. Dito de outro modo, a pontualmente, recomeçava o tiroteio.
cada novo enjambement nos preparamos para
ingressar no conflito propriamente dito, o que é
frustrado pela persistência do distanciamento em No lugar da segunda estrofe e fazendo as vezes
relação aos eventos. A estrofe se mantém, em dela, há um pequeno parágrafo em prosa. Junto
outras palavras, afastada e apenas observa os com "O sobrevivente", "Outubro 1930" é o único
fatos a que se refere o título. "Outubro 1930" poema de Alguma poesia em que prosa e verso se
também joga com as expectativas do leitor combinam. Porém, mesmo só aparecendo nesses
através da sonoridade. Quer dizer, os versos dois poemas, é possível falar em um certo flerte do
armam uma confusão entre, de um lado, os ruídos verso drummondiano desse período com a prosa.
e o silêncio e, de outro, o sono e a morte. Pois, do Isso porque sobretudo nos poemas mais longos de
mesmo modo como o silêncio faz pensar tanto nos Alguma poesia - por exemplo, em "Explicação" - há
que dormem quanto nos mortos, os ruídos – uma tendência a extrapolar a autonomia dos
sugeridos foneticamente pelos sons rascantes – versos em benefício do encadeamento do
podem ser tanto dos tiros quanto dos roncos. A conjunto, como se o movimento poético
estrofe mistura, portanto, a dimensão banal – procurasse extravasar a unidade rígida das suas
roncos e dorminhocos – à dimensão excepcional e partes, o que se explica em boa medida porque
bárbara – tiros e mortos – dos fatos, destituindo- Drummond se formou fora da tradição do verso
os de grandiosidade, o que já aponta para o pé- metrificado e em oposição a ela. Nesse sentido, a
atrás de Drummond diante dos acontecimentos mescla entre prosa e verso em "Outubro 1930" e,
que inspiraram o poema, pondo em xeque, por de modo mais amplo, a experimentação formal de
tabela, a militância tenentista imaginada por Alguma poesia se inserem e dão continuidade à
Silviano Santiago. pesquisa estética empreendida pelo Modernismo
desde o começo da década de 20. No caso
De 5 em 5 minutos um ciclista trazia ao específico de "Outubro 1930", a distensão do verso
Estado-Maior um feixe de telegramas até a prosa poderia levar a pensar em uma
contendo, comprimida, a trepidação dos conversão à épica, que nos acostumamos a
setores. O radiotelegrafista ora triste ora vincular com a prosa e que talvez fosse mais
alegre empunhava um papel que era a afinada com o assunto, mas não é o que ocorre,
vitória ou a derrota. Nós até porque depois do parágrafo há outras estrofes
descansávamos, jogados sobre em verso. Na verdade, essa mescla entre prosa e
poltronas, e abríamos para as notícias
verso embaralha e tensiona os valores comumente
olhos que não viam, olhos que
relacionados com cada um e, indiretamente, com

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a épica e com a lírica, já que nos habituamos a companheiros que aguardam o desdobramento
associar o gênero ao emprego de uma ou outra dos fatos. A opção pelo plural "nós" ao invés do
forma. Tratava-se, assim, de redefinir a divisão singular "eu" sugere uma espécie de
estrita entre os gêneros, o que foi um dos anseios pertencimento coletivo, como se a escala
dos modernistas, em geral (basta lembrar de ampliada dos acontecimentos anulasse as
Macunaíma, de Mário de Andrade, ou de Serafim diferenças entre os participantes, igualando-os.
Ponte Grande, de Oswald de Andrade), e de Essa desdiferenciação é, no entanto,
Drummond, em particular, haja vista o cunho contrabalanceada pela especificação espacial da
prosaico do seu verso desse período. Essa cena. Ao situar a ação no Estado-Maior, o
tentativa de redefinir e borrar os limites entre os parágrafo localiza e determina a extração dos
gêneros condensa uma das tensões essenciais de aglutinados em torno do pronome "nós". Com
"Outubro 1930", qual seja: a que diz respeito às isso, ele estabelece uma diferença interna entre os
dificuldades de abordar um tema de proporções envolvidos, que se dividem entre soldados e
épicas através de uma perspectiva subjetiva e funcionários. A voz poética se particulariza,
parcial. O poema explora, desse modo, não as portanto, como a de um funcionário, que está e
diferenças e rupturas entre os gêneros, mas a não está dentro da situação, porque, se por um
articulação inesperada entre eles. lado está inserido, por outro é apenas um
espectador - aliás, entediado - que acompanha as
Esse esforço de alinhavar prosa e verso é novidades via telégrafo. Salvo engano, em
perceptível na passagem da primeira estrofe para "Outubro 1930" é a primeira vez que um ponto de
o parágrafo em prosa, pois este mantém o caráter vista interno e participante surge na obra de
descritivo daquela. Nele, a rotina no Estado-Maior Drummond, o que não deixa de ser um sinal de
é descrita. Longe de serem confusos, os eventos que nosso Autor estava dando continuidade à
narrados obedecem surpreendentemente a uma experimentação instituída pelo Modernismo
organização rigorosa, com horários e intervalos quando da redação do poema e, mais ainda, de
bem definidos. Ou seja, mesmo em meio ao caos que estava tentando abrir novos rumos poéticos,
do conflito, os eventos se sucedem de maneira como também veremos a partir da análise das
monótona e repetida. Daí o tédio que atravessa a cartas que enviou nesse período a Mário de
estrofe e que nem mesmo a notícia mais Andrade. Por sua vez, a oscilação intrínseca à
importante – a vitória ou a derrota – é capaz de condição de funcionário entre participar e só
quebrar. A voz poética também aparece pela observar – atitude esta recorrente em Alguma
primeira vez no parágrafo. Na forma do pronome poesia – é sinal das dificuldades enfrentadas pelo
de primeira pessoa do plural, ela figura a si e aos poeta mineiro para trilhar novos caminhos. Essa
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oscilação pode ser interpretada, enfim, no sentido verso seguinte pela negativa "não pensa na
tanto de uma tentativa de renovação (que era morte". Ou seja, o enjambement do primeiro verso
também, e sobretudo, um princípio modernista, a cria expectativas para logo em seguida
que o poema atualizava desse modo), quanto de desmanchá-las. Já a opção pelo artigo definido
uma insatisfação do poeta com o lirismo do seu aproxima da voz poética tanto o soldado quanto o
primeiro livro, o que vai ficar mais claro na funcionário. Na verdade, o funcionário em questão
segunda parte, quando discutirmos a parece ser a própria voz poética se referindo a si
correspondência de Drummond do período. mesma. A referência a si na terceira pessoa é
razoavelmente comum ao longo da obra de
O funcionário deitado Drummond e está presente em Alguma poesia no
não pensa na morte. “Poema de sete faces” e em “Nota social”. No caso
Pensa no amor de “Outubro 1930”, a confusão entre a primeira e a
tornado impossível
terceira pessoa permite uma mudança brusca do
no minuto guerreiro.
foco, que logra acessar desde o que se passa na
E fecha os olhos
para ver bem cabeça dos participantes até as notícias das
o amor com sua espada cidades mais remotas do país, como veremos a
de fogo sobre a cabeça propósito da última estrofe. O poema pode correr
de todos os homens, assim em dois planos distintos – o subjetivo e o
legalistas, rebeldes. objetivo – sem quebra do registro, o qual oscila
livremente entre verso e prosa, épica e lírica,
primeira e terceira pessoas etc. Essa dubiedade do
A estrofe se organiza a partir das diferenças entre ponto de vista como que antecipa o recurso
o soldado e o funcionário, pois, enquanto o chamado por José Guilherme Merquior (1976, p.
primeiro pensa na morte, o segundo pensa no 35) de "personificação do eu", que é recorrente no
amor. Essa diferença se explica pela função e, mais segundo livro de Drummond, Brejo das Almas, de
especificamente, pela posição de cada um em 1934, e que consiste na cisão efetiva da
relação ao front. A salvo dos tiros (que na primeira subjetividade e na projeção da interioridade como
estrofe confundia com roncos), o funcionário não alteridade. A presença desse recurso em “Outubro
precisa se preocupar com a morte, como o 1930” pode ser lida como uma espécie de elo entre
soldado, e pode pensar no amor, frustrado pelos os dois primeiros livros do poeta mineiro. Nesse
acontecimentos. Formalmente, a diferença entre sentido, o poema constitui algo como uma ponte
eles é construída a partir de uma semelhança. A entre os dois, já que nele os temas e
repetição do verbo "deitado" sugere a procedimentos mais típicos de Alguma poesia
identificação entre ambos, porém é desfeita no convivem com o caráter problemático dos poemas
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de Brejo das Almas. Ou por outra, nas polaridades ao terror dos tiroteios, ela vê o amor com sua
que sustentam e entre as quais oscila "Outubro espada de fogo pairar acima de legalistas e
1930" se anuncia a indecisão que caracteriza o livro rebeldes. O devaneio - o amor como algo mais
de 1934. poderoso e terrível do que o conflito - atesta o
egoísmo e a ausência de solidariedade,
Essa polaridade é encarnada, no poema, pelo contrariando a sugestão de coletividade expressa
ponto de vista. Ao aderir à perspectiva do no pronome "nós" do parágrafo anterior. Portanto,
funcionário, a voz poética ocupa uma posição a estrofe contradiz o parágrafo que a sucedeu e
dupla de participante e de espectador, o que, além arma uma tensão entre indivíduo e coletivo, com o
de um dado autobiográfico, é um achado estético. qual o eu lírico ora se identifica ora repele. Nessa
Porque, se é interno aos acontecimentos, aos quais medida, "Outubro 1930" se distingue
descreve de dentro, o ponto de vista do funcionário profundamente de A rosa do povo, como bem viu
é externo em comparação com o do soldado, que Iumna Maria Simon (2015) no ensaio “O mundo
está colado, e em relação ao combate em chamas e o país inconcluso”. No livro de 1945,
propriamente dito, ao qual apenas assiste. A a saturação sintática e rítmica do verso de
distinção entre funcionário e soldado esmiuçada elementos da prosa impulsionava - como
na estrofe especifica, assim, o foco do poema. O demonstrou Iumna - um programa politizado e
resultado é uma voz poética dúplice, que mistura coletivista que pretendia romper com a literatice
um Eu lírico tradicional, cuja subjetividade se da poesia1. Tratava-se, desse modo, de
confunde com a objetividade, com um Narrador internalizar na construção do verso seus limites e
prototípico que dispõe epicamente do seu insuficiências, questionando-o pela raiz. Já em
assunto. Essas categorias são, no entanto, "Outubro 1930", pelo contrário, a permeabilidade
redimensionadas e rebaixadas pelo cunho banal e entre prosa e verso trai a posição ambígua da voz
desimportante atribuído pelo próprio poema aos poética em relação a Revolução de 30, da qual
eventos abordados, o que gera um efeito desconfiava.
derrisório. Quer dizer, a mescla entre épica e lírica
em "Outubro 1930" ressalta o comezinho da
situação, espelhando sua falta de sentido com o O inimigo resistia sempre e foi preciso
anti-heroísmo do indivíduo. Isso fica claro na cortar a água do quartel. Como resistisse
terceira estrofe, onde a voz poética figura a si na ainda, a água circulou de novo, desta vez
azul, de metileno. A torneira aberta
terceira pessoa devaneando sobre o obstáculo
escorre desinfetante. O canhão
representado pelos fatos para a concretização do
fabricado em Minas - suave
amor. Protegida dentro do Estado-Maior e alheia temperamento local - não disparou.
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O foco sofre uma mudança abrupta na passagem poemas de Alguma poesia para dentro da situação;
da estrofe para o parágrafo. Ao invés de se deter por outro, porém, ela não deixa de ser limitada,
na imaginação do funcionário, ele se volta para um porque, apesar de estar inserida, a voz poética não
episódio mais amplo. A mudança súbita dos se engaja e, ao invés, representa os
devaneios para a narração da manobra militar não acontecimentos com circunspecção e ironia, em
acarreta, porém, quebra ou ruptura no andamento um espírito muito semelhante ao de outros
do poema, porque a voz poética fantasiosa poemas do livro de 1930, como por exemplo "A rua
também está presente no parágrafo, ainda que diferente" e, sobretudo, "Moça e Soldado". O
não de forma explícita, e deixa sua marca nele, poema ocupa, por isso, uma posição intermediária
mais especificamente na caracterização do e, como tal, estratégica dentro do percurso
canhão, "suave temperamento local". Essa poético do poeta mineiro, pois nele vislumbramos
caracterização rompe com o caráter objetivo do simultaneamente uma tentativa de mudança e
parágrafo e o vira de ponta-cabeça uma conservação dos tópicos do seu primeiro
retroativamente, pois explicita o teor absurdo do livro. O arranjo dessas disposições contraditórias
que é narrado. A seriedade do parágrafo é, em entre si gera uma espécie de solução de
outras palavras, deslocada pelo prisma irônico que compromisso, dentro da qual os procedimentos e,
desponta na última oração e que desvela o especialmente, o ímpeto de atualização da
disparate da narração. A caracterização fantasiosa produção de Drummond da década de 20
do final também revela o distanciamento da voz convivem com as inovações que amadureceriam
poética em relação aos eventos narrados, aos em seus livros publicados a partir de 1930 e, em
quais não adere e, pelo contrário, ridiculariza especial, de 1940. De modo mais amplo, esse
através da ironia. Como na estrofe anterior, esforço para conciliar posições antagônicas está
portanto, o grão de fantasia do parágrafo no âmago da poética e do desdobramento da sua
configura o retraimento de um indivíduo que faz obra, que se deu pelo embate e pela superação
parte dos fatos, mas que não se identifica com imanente, de onde aliás a coerência exemplar da
eles. Ou por outra, a predominância de detalhes e sua trajetória lírica.
aspectos sem importância, somada à tendência a
devanear, possibilitam a estruturação de um
prisma que mensura a Revolução de 30 a partir da Olha a negra, olha a negra,
própria subjetividade. Logo, a inovação a negra fugindo
com a trouxa de roupa,
representada por "Outubro 1930" dentro do
olha a bala na negra,
primeiro lirismo de Drummond é, por um lado, olha a negra no chão
significativa, pois desloca o indivíduo do ponto e o cadáver com os seios enormes,
externo em que ele se postava na maioria dos expostos, inúteis.
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A repetição do verbo "olhar" evidencia a condição poema, cujo princípio de construção é justamente
de mera observadora da voz poética na estrofe. Já essa variação de foco e de registros diversos. No
a escolha da forma do imperativo sugere a caso específico da estrofe, a opção pelo registro
presença de um interlocutor (que, por enquanto, literal parece corresponder a um certo
não sabemos quem é), como se se dirigisse a ele aturdimento da voz poética, como se esta não
para convocá-lo a observar a cena. Ou seja, entendesse muito bem a violência à sua volta.
separado por uma distância segura dos eventos Quer dizer, o aspecto tosco dos versos - cujo
que narra, a voz poética impele o seu leitor a vocabulário é pobre, além de repetitivo, e onde
encarar a morte inútil e, por isso, muito mais não há conjunções ou subordinação entre as
trágica da negra. A estrofe pode ser lida, portanto, orações - configura literariamente a atonia e a
como uma espécie de denúncia enviesada da impotência da voz poética diante de fatos que não
violência dos acontecimentos. Esse caráter de consegue compreender muito bem por estar
denúncia é potencializado pelo uso de pronomes inserido neles, o que impede que tenha uma visão
definidos para especificar os substantivos, o que global do todo. O ponto de vista parcial e
particulariza a vítima, ressaltando sua humanidade fragmentário acaba formulando, assim, uma visão
e impedindo que ela se transforme em um número profundamente negativa que está muito distante
ou abstração. Por meio da narração de um fato de qualquer tipo de idealização.
concreto, a estrofe investe contra a grandiosidade
do evento, dentro do qual o indivíduo perde sua
individualidade e se dissolve. Desse modo, ela O general, com seus bigodes
repõe e reconfigura a tensão estrutural do poema tumultuosos, era o mais doce dos seres,
e destilava uma ternura vaporosa em seu
entre o particular e o universal. Além disso, a
costume de usar culotte sem perneiras.
estrofe rompe com o teor irônico do parágrafo A um canto do salão atulhado de mapas
anterior, porque explora a dimensão trágica e e em que telefones esticados retiniam
violenta, a qual só aparecera até então de relance trazendo fatos, levando ordens, eu fazia,
e em chave irônica na confusão armada na exercício fácil, a caricatura do seu
primeira estrofe entre tiros e roncos. Essa imenso nariz. Que todos achavam ótima
mudança também se expressa na variação de tom e reprovavam com indignação.
em relação ao resto do poema, porque,
diferentemente das outras partes, a estrofe é
trágica e destituída de ironia. A ruptura promovida O parágrafo rompe com o caráter trágico da
na estrofe é importante dentro do conjunto, na estrofe anterior e instaura um novo tom,
medida em que explicita a fragmentação do engraçado e galhofeiro. Como nas primeiras

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partes, sobretudo nos parágrafos anteriores, a análise um fundo dramático por causa da
verve satírica se revela a propósito das situações dificuldade de individuação que expressa, o
vividas, como se os dados concretos e, de modo distanciamento resultante desse desejo se reveste
mais amplo, o curso absurdo dos fatos na maior parte dos poemas de Alguma poesia de
acendessem e estimulassem a imaginação fértil da um aspecto divertido, à maneira da descrição meio
voz poética. No parágrafo, o elemento fantasioso banal meio fantástica de “Jardim da Praça da
irrompe na forma de adjetivos inusitados Liberdade” e dos parágrafos em prosa de
(“tumultuosos”, “doce”, “vaporosa”) que destoam “Outubro 1930”, onde é ainda mais surpreendente
da situação banal por eles predicada. Como em porque empregado a propósito de um conhecido
outros poemas de Alguma poesia (por exemplo, episódio da história nacional, que poderia parecer
em “Jardim da Praça da Liberdade”), a imaginação infenso ao tratamento humorístico.
reponta de maneira inesperada e sugere
obliquamente o distanciamento do eu lírico em Mário de Andrade notou um distanciamento
relação ao que descreve. No caso de “Outubro semelhante dentro do conjunto de Alguma poesia.
1930”, a aparição desses adjetivos está ligada ao Em “A poesia em 1930”, Mário identificou o
tédio e à reserva da voz poética diante dos eventos “sequestro da vida besta”, isto é, a “vontade
de que participa. Já o efeito dessa aparição é íntima de aniquilar, de se esconder” oriunda da
cômico, porque esses elementos estabelecem um inadequação de Drummond diante da vida. Ou
abismo inesperado entre a realidade prosaica e seja, reverberando a intensa agitação ideológica
burocrática e a representação escarninha. O que caracterizaria o debate intelectual da década
poema se assemelha, por isso, à caricatura do de 30, Mário problematizava o individualismo do
nariz do general, pois resulta como esta em uma poeta mineiro por estar em desacordo com as
distorção do dado imediato cujo resultado é
engraçado, além de anticívico. Porém, é preciso exigências da vida social contemporânea
frisar que, tanto em “Jardim da Praça da que já vai atingindo o Brasil das capitais,
Liberdade” quanto em “Outubro 1930”, o abismo o ser socializado, de ação muita, eficaz
pra sociedade, mais público que íntimo,
existente entre a representação e a realidade não
com maior raio de ação que o
decorre de um prisma exógeno, mas, pelo
cumprimento do dever na família e no
contrário, de um endógeno, que cria uma inserção empreguinho (ANDRADE, 1974, p. 33).
tensa. E de fato, nos dois poemas a perspectiva
está como que dentro, mas deseja se diferenciar E concluía: “o poeta adquiriu uma consciência
do meio que a entedia e do qual escarnece como penosa da sua inutilidade pessoal e da inutilidade
uma espécie de compensação imaginária. E, ainda social e humana da “vida besta”” – como
que o desejo de se diferenciar possua em última
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Opiniães
procuraremos mostrar mais à frente, essas amplitude épica a partir de sua experiência
palavras calaram fundo no poeta mineiro e foram pessoal.
decisivas para disparar o processo de renovação
em que “Outubro 1930” se inscreve. Por agora, A esta hora no Recife,
importa reter que Mário associava, em linhas em Guaxupé, Turvo, Jaguara,
gerais, essa vontade íntima de se esconder ao uso, Itararé,
Baixo Guandu,
de um lado, da metrificação e, de outro, de
Igarapava,
“movimentos ostensivamente cancioneiros e
Chiador,
aparentemente alegres e cômicos”. Quer dizer, o homens estão se matando
autor de Macunaíma interpretava o emprego com as necessárias cautelas.
desses recursos como uma reação (ou sublimação, Pelo Brasil inteiro há tiros, granadas,
como também designava) de Drummond contra literatura explosiva de boletins,
sua inenarrável capacidade para viver. Esse mulheres carinhosas cosendo fardas
processo é exemplificado com “A balada do amor com bolsos onde estudantes guardarão
através das idades”, que para Mário era o “clímax [retratos
das respectivas, longínquas namoradas,
do sequestro” pois nele
homens preparando discursos,
outros, solertes, captando rádios,
o poeta se vinga da vida besta, botando
minando pontes,
miríficos suicídios e martírios
outros (são governadores) dando o fora,
estrondosos em casos de amor de
pedidos de comissionamento
diferentes épocas passadas. Menos na
por atos de bravura,
contemporânea, em que faz o amor dar
ordens do dia,
em casamento, em burguesice, em...
"o inimigo (?) retirou-se em fuga
vida besta: é ele (ANDRADE, 1976, p.
[precipitada,
36).
deixando abundante material bélico,
cinco mortos e vinte feridos..."
Ou seja, o presente em que o eu lírico está inserido Um novo, claro Brasil
é representado de um ângulo inferiorizado em surge, indeciso, da pólvora.
relação às demais épocas retratadas no poema. Meu Deus, tomai conta de nós.
Guardadas as diferenças, em “Outubro 1930”
ocorre algo semelhante. Pois nele a voz poética se Deus vela o sono dos brasileiros.
compraz outrossim em avacalhar os sucessos Anjos alvíssimos espreitam
a hora de apagar a luz de teu quarto
vividos, como se lastreasse liricamente os fatos de
para abrirem sobre ti as asas

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Opiniães
que afugentam os maus espíritos tematiza o ritmo mecânico da fabricação de
e purificam os sonhos. notícias (a assim chamada "doce música
Deus vela o sono e o sonho dos mecânica"), e na "Anedota búlgara", que glosa
[brasileiros.
uma curiosa notícia da época. Como nos dois
Mas eles acordam e brigam de novo.
poemas, em "Outubro 1930" o aproveitamento do
estilo jornalístico é irônico, porque a aparência de
Diversamente do resto do poema, as últimas notícia dos seus versos é transformada na
estrofes ensaiam abandonar a perspectiva parcial sequência. Quer dizer, a primeira parte das
para dar conta do episódio em sua totalidade. Isto orações – seccionada pelos enjambements, que
é feito por meio de uma troca no ponto de vista. O preparam a surpresa - é alterada pela continuação.
foco parcial é substituído na estrofe por um mais Assim, por exemplo: nos versos: "homens estão se
amplo. Com a mudança, os fatos são matando/com a necessária cautela", a escolha do
reescalonados e assumem uma nova dimensão - substantivo "cautela" depois da matança sugerida
nacional, por assim dizer - que ao mesmo tempo pelo plural "estão se matando" cria uma espécie de
contém e supera o ponto de vista parcial. Essa curto-circuito semântico, por causa da
mudança é antecipada pelo sobrevoo enumerativo desproporcionalidade dos termos, deslocando a
dos primeiros versos, nos quais o noticiário das ênfase do terror das mortes para o absurdo
cidades e dos rincões mais remotos é incorporado. cômico da situação. Trata-se de uma estratégia –
Os versos adquirem, por isso, a aparência de por sinal, recorrente em toda a obra de
manchetes: "a esta hora no Recife", "homens Drummond – por meio da qual o tema
estão se matando" e "pelo Brasil inteiro há tiros, apresentado no começo é retrabalhado por outros
granadas". É sabido que o despojamento da ângulos ao longo do poema, o que lhe dá um teor
linguagem jornalística exerceu forte atração sobre prismático. Como estamos vendo, em "Outubro
os modernistas, em geral (sem dúvida, o exemplo 1930" essa variação está ligada à troca da
mais emblemático é o arquifamoso "Poema tirado objetividade inicial por uma visão mediada e
de uma notícia de jornal", de Manuel Bandeira), e pessoalíssima dos fatos. O efeito lírico do poema
sobre Drummond, em particular. No caso do poeta como que depende dessa intromissão da
mineiro, a relação com o jornalismo foi bastante subjetividade, que imanta sua matéria com uma
estreita, até porque ele trabalhou na imprensa carga nova e inesperada.
belorizontina ao longo das décadas de 20 e 30,
além de ter colaborado praticamente a vida inteira Essa tensão entre subjetividade e objetividade
em jornais e periódicos. Essa vivência se reflete em atravessa e estrutura as últimas estrofes. Ela está
seu livro de estreia no "Poema do jornal", que cifrada, por exemplo, no emprego do pronome
pessoal "nós" para representar a voz poética. Isso
202
Opiniães
porque, como em outros momentos do poema, o cômico da barafunda resultante, e não sobre o
pronome no plural sugere uma coletividade entre lado trágico. As tensões exploradas nas últimas
os participantes que é desmentida pelos estrofes em torno da individualidade e da sua
acontecimentos narrados, em que cada um cuida irredutibilidade em relação ao coletivo podem ser
dos seus próprios interesses. Trata-se, assim, de interpretadas em mais de um sentido. Por um
um uso irônico que ressalta a ausência de lado, elas entroncam e traduzem o individualismo
solidariedade entre funcionários, soldados e característico da produção poética de Drummond
governadores. As estrofes finais armam por meio da década de 20 (mas que nem nos momentos de
disso uma espécie de jogo entre identificação e maior engajamento foi abandonado). Por outro
estranhamento, como se a dimensão monumental lado, todavia, a exploração dessas tensões conflui
dos fatos ameaçasse apagar a identidade dos com a trajetória lírica posterior do poeta mineiro e,
participantes. Esse jogo se exprime no verso "o em especial, com o progressivo escrutínio a que o
inimigo (?) retirou-se em fuga precipitada", pois o seu próprio individualismo foi submetido
ponto de interrogação entre parêntesis questiona sobretudo a partir de Brejo das almas, de 1934.
a identificação imposta pelos fatos, insinuando "Outubro 1930" pode ser lido, então, como um
que ela é incapaz de definir os envolvidos prenúncio tímido da reavaliação problemática e
individualmente. Esse jogo também está presente angustiada por que passou o egotismo profundo
no emprego do plural "brasileiros" como uma do Autor em seus escritos das décadas de 30 e,
categoria capaz de subsumir os envolvidos. A principalmente, de 40.
sequência da estrofe indica, inversamente, que,
apesar de terem nascido no mesmo país, os Na última estrofe do poema, destaca-se a
envolvidos não se identificam sob nenhum outro quantidade de termos religiosos. Com efeito, em
aspecto, tanto que só estão preocupados em apenas oito versos se concentram expressões
salvar a própria pele. A generalidade abstrata de como "Deus vela", "anjos alvíssimos", "asas",
categorias como "nós", "inimigo" e "brasileiros" é, "maus espíritos", "purificam" e novamente "Deus
por conseguinte, tensionada ao máximo e vela". A presença dessas expressões surpreende
esfacelada nas estrofes finais, nos quais os porque são invocadas a propósito de uma situação
interesses envolvidos se revelam completamente que o restante do poema já desqualificara como
divorciados uns dos outros e vigora um clima de banal e ridícula, atrelada aos interesses mais
salve-se quem puder. Ao contrário do que se díspares e da mais completa imanência. Mas é
poderia imaginar, porém, o tom dessas estrofes interessante notar que, contrariando as
não é dramático ou sombrio, mas mordaz e expectativas, a existência de termos oriundos do
satírico, pois nelas o acento recai sobre o lado universo religioso é relativamente comum ao
203
Opiniães
longo de Alguma poesia, onde estão espalhados do poeta mineiro tem esse sentido popular e
em pouco menos de um quinto dos poemas do informal, como uma espécie de lugar comum,
conjunto, entre eles o de abertura, o célebre prosaico e corriqueiro, do português falado no
"Poema de sete faces”, e o de fechamento, Brasil. A articulação entre a busca de uma língua
"Poema da purificação". Em geral, a ocorrência nacional (e, por metonímia, da própria nação) e o
desses termos é inesperada, porque eles vocabulário religioso é, aliás, explicitamente
despontam em contextos insólitos. No “Poema de tematizada em outro poema de Drummond da
sete faces”, por exemplo, a abundância de mesma época, "Explicação", no qual uma das
referências religiosas, as quais estão inscritas no funções do verso do eu lírico é justamente "louvar
mais íntimo da estrutura do poema (por sinal, a Deus". De certo modo, portanto, o emprego
publicado pela primeira vez em pleno natal, no dia desses termos estabelece um vínculo entre o
25 de dezembro de 1928), resulta em uma indivíduo e os demais brasileiros, os quais se põem
combinação inusitada e original, pois nele os destarte em uma posição de menoridade que se
elementos sagrados (o auto natalino, as citações satisfaz - para citar de novo "Explicação" – em
bíblicas) convivem com os blasfêmicos ("anjo meter a língua no governo e em acreditar que no
torto", sombra) para compor uma certidão do fim dá tudo certo. No caso de "Outubro 1930",
Poeta e de sua personalidade poética gauche. Já esse vínculo é mais delicado e problemático,
em "Outubro 1930", essas referências são porque diz respeito à relação conflituosa entre a
motivadas pelos acontecimentos e estão voz poética e o coletivo, do qual o indivíduo faz
intrinsecamente ligadas ao contexto, na medida parte mesmo não podendo ser reduzido a uma
em que traduzem a impotência e a condição de categoria abstrata. É por isso que o anúncio, na
mera espectadora da voz poética. Trata-se, em penúltima estrofe, do surgimento de uma
outras palavras, de um apelo desesperançado, entidade abstrata como o “novo, claro Brasil” se
fruto da incredulidade de os envolvidos acharem reveste de um caráter irônico, pois o que as
uma solução. E, com esses apelos, a voz poética invocações religiosas, em particular, e o poema
acaba se colocando em uma posição de como um todo sugerem é, pelo contrário, a
impotência e passividade em relação aos fatos, conservação do desajuste do país no interior dos
dos quais participa sem poder transformá-los. As acontecimentos de 1930.
invocações da estrofe lembram, por isso, as
interjeições meio mecânicas meio resignadas da Na última estrofe, surgem dois pronomes da
religiosidade popular, porquanto não formam segunda pessoa do singular: o possessivo "teu" e o
sistema entre si e se assemelham a uma forma de oblíquo "ti". O interlocutor pressuposto por eles
pensamento mágico. Na verdade, boa parte das não é, contudo, definido na estrofe ou antes dela,
ocorrências de termos religiosos no primeiro livro de sorte que só podemos conjecturar a respeito.
204
Opiniães
Seja como for, penso que esses pronomes se "Outubro 1930" se contrapõe ao tratamento
dirigem à namorada distante da voz poética, por estático e plano do realismo tradicional para
causa das diversas referências ao amor lançadas formular um modo pessoal de recriar os eventos.
ao longo do poema - o que, a se confirmar, De fato, o poema configura uma espécie de
esclarece o mistério acerca da identidade do transrealismo², em que a visão da realidade é
interlocutor da terceira estrofe. Em abono a essa construída a partir da síntese de detalhes e
hipótese, vale lembrar que na segunda estrofe em pormenores vividos (sobretudo, assistidos) pela
versos o funcionário deitado (que, segundo nossa voz poética e acumulados ao longo do poema,
interpretação, é a própria voz poética figurando a compondo ao cabo um quadro bastante vivo dos
si mesma na terceira pessoa) pensa no "amor/ fatos representados.
tornado impossível/ no minuto guerreiro"; que na
terceira o verbo "olhar" na forma do imperativo Em janeiro de 1931, em um momento muito
implica a presença de um interlocutor; e, por fim, próximo ao da redação de "Outubro 1930",
que na penúltima as "mulheres carinhosas Drummond escreve em carta a Mário:
cosendo fardas" e as "longínquas namoradas"
podem incluir a namorada do funcionário. Já a eu confesso que não consigo evadir-me
impressão de separação existente entre a voz do meu individualismo para vogar nessas
poética e sua amada está contida nessas paragens largas e povoadas para as quais
me solicitam as tendências intelectuais
referências, sobretudo no adjetivo "longínquas".
do meu tempo, e por outro lado ainda
Segundo nossa hipótese, portanto, a voz poética
não cheguei (e chegarei algum dia?) à
se encontra no Estado Maior, servindo como maturação necessária para tentar a
funcionário e separado da sua namorada, na qual solução supra-realista, única que me
pensa em meio aos acontecimentos e para a qual parece aceitável para o meu caso, como
escreve. A ser assim, o poema ganha uma de resto para todos os casos. E confesso
dimensão insuspeita: a de uma carta de guerra, de mais, não sem tristeza, que a minha
um balanço escrito à noite (haja vista as prisão individualista é tanto mais
referências ao sono, à "hora de apagar a luz" e ao lamentável quanto me força
eternamente aos mesmos exercícios
sonho) para dar notícias e relatar os episódios
poéticos, à eterna repetição de temas
vividos por ela, voz poética. Portanto, o mosaico
morais que constituem o tecido
composto pela mescla de registros distintos inalterável de minha vida, e que por fim
representa uma tentativa de dar forma literária à devem aporrinhar o leitor, que diabo!
sua experiência e participação na Revolução de 30. Tanto mais que me aporrinham a mim
Através desse enfoque dinâmico e poliédrico, próprio como você sabe perfeitamente.
205
Opiniães
E isso é tão exato que os versos que porque decorria do seu alheamento em relação às
venho compondo depois da publicação tendências intelectuais do seu tempo que o
do meu livro (sempre entendi que um solicitavam. Tratava-se, assim, de uma crise que se
livro deve marcar uma fase encerrada na
expressava na incapacidade para criar, mas cuja
vida de um cidadão) não me parecem
origem era outra, de raiz ideológica. O âmbito
dizer nada de novo, o essencial já
estando dito no livro. Preciso, pois, de estético se cruzava naquele momento com o
abrir o meu caminho, e você sabe como ideológico e gerava uma situação aporética, que
isso representa uma tentativa difícil para obrigava o poeta mineiro a girar em círculo, isto é,
mim (COELHO (Org.), 2002, pp. 401- a repetir os mesmos velhos “temas morais”.
402).
Na verdade, a carta do poeta mineiro era uma
resposta franca e direta a uma crônica de Mário de
O poeta mineiro confessa na carta o desânimo que Andrade publicada em junho de 1930 no Diário
se abatera sobre ele depois da publicação de seu Nacional. Em "Puro, sem mistura", Mário
primeiro livro, Alguma poesia, de 1930. Já pela comentava a publicação de Alguma poesia, de
escolha das palavras ("tristeza", "prisão", Drummond, e de Libertinagem, de Manuel
"lamentável"), fica claro que não se tratava de um Bandeira, e assinalava a pureza psicológica deles,
mero bloqueio artístico ou de algo do gênero, mas os quais, a despeito da "impressionante exposição
de uma crise de espectro bem mais largo e de alma humana", eram a seu ver eminentemente
profundo. Na verdade, o sentimento descrito era individualistas. E advertia:
tanto mais angustiante na medida em que,
quando escreveu a carta, Drummond atinara com minha impressão é que isso é um beco
sua razão - a incapacidade para evadir-se da prisão sem saída. Está claro que a gente pode
individualista -, mas ainda não vislumbrara uma morar no beco a vida inteira porém será
solução, ou melhor, a única solução enxergada - o concebível o beco na civilização
assim chamado "supra-realismo" - não estava ao urbanista Le Corbusier? Sempre é certo
seu alcance, por não ter ele atingido ainda a que há dois jeitos da gente sair do beco.
Um é simples como beber água: sair por
"maturação necessária". Esse sentimento era
onde se entrou, trair-se. E trair o
complexo porque possuía uma dimensão dupla: do conceito metafórico que todos nós
lado mais superficial, era poético e artístico, temos de beco sem saída. O outro meio
porque dizia respeito às dificuldades do Autor para será talvez mais propício a essas duas
produzir algo distinto do individualismo almas livres: botar dinamite nas casas e
característico dos poemas do seu livro de estreia; se evadir do indivíduo pra mais puros
no fundo, porém, ele era moral e ideológico, longes ainda - o automatismo psíquico

206
Opiniães
do sobre-realismo (ANDRADE, 1976, p. questionamentos e tomada de consciência,
213). repleto de tateios e dúvidas, como estamos vendo,
e que se traduziu nesse momento na consciência
da precariedade dos temas do seu lirismo –
Além de apontar o impasse - "o beco na civilização desacompanhado, todavia, da superação
urbanista Le Corbusier" -, Mário sugeria saídas: ou correspondente, no caso a opção por uma das
trair-se, isto é, abandonar o individualismo contra tendências intelectuais que o solicitavam.
a própria natureza, ou aprofundá-lo através do
automatismo psíquico do sobre-realismo, opção De modo mais amplo, o processo descrito na carta
que considerava mais propícia e que Drummond se inseria na intensa movimentação ideológica do
aceitou, embora confessasse na carta sua pós-Revolução de 30. No ensaio "A revolução de
incapacidade para colocá-la em prática. Portanto, 30 e a cultura", Antonio Candido identificou o
a crônica (mas não só: o ensaio "A poesia em 1930" fenômeno da
também foi importantíssimo, pois batia na mesma
tecla, como vimos) foi ao encontro do surpreendente tomada de consciência
descontentamento difuso do poeta mineiro, que ideológica de intelectuais e artistas,
até então não sabia formular a origem desse numa radicalização que antes era quase
sentimento, precipitando o tom crítico e até inexistente. Os anos de 1930 foram de
culpado com que Drummond passa a encarar a engajamento político, religioso e social
própria posição a partir deste momento. É no campo da cultura. Mesmo os que não
provavelmente a esse processo que nosso Autor se definiam explicitamente, e até os que
não tinham consciência clara do fato,
iria se referir em um depoimento de 1938 (e depois
manifestaram na sua obra esse tipo de
incluído em Confissões de Minas) como a inserção ideológica, que dá contorno
"consciência crescente da sua precariedade e uma especial à fisionomia do período
desaprovação tácita da conduta (ou falta de (CANDIDO, 2011, p. 220).
conduta) espiritual do autor" (ANDRADE, 2011, p.
68). A advertência de Mário contribuiu, em
resumo, para catalisar o exame crítico do lirismo A carta pode ser lida como uma espécie de
de Alguma poesia que nosso Autor já vinha testemunho de que Drummond absorveu e
ruminando – inclusive poeticamente, como o repercutiu a intensa movimentação ideológica que
demonstra "Outubro 1930" –, mas com cujas agitou nossa intelectualidade ao longo da década
razões não atinara até digamos o começo de 1931. de 30. É claro, por outro lado, que a despeito dessa
Iniciava-se, assim, um movimento íntimo de afinidade, falar em engajamento ou militância a

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Opiniães
propósito da produção de Drummond do começo artísticos, portanto, essas ambivalências formais
da década de 30 não deixa de ser descabido – e traduzem a crise ideológica mais ampla por que
"Outubro 1930" o prova –, pois, como vimos, nosso então passava o poeta e que ainda se estenderia
Autor estava às voltas com impasses e por alguns anos, até pelo menos a publicação de
dificuldades, mas não ainda com um caminho a seu segundo livro, Brejo das almas, no qual a
seguir – o qual só se manifestaria com mais clareza indecisão prefigurada em "Outubro 1930" se
em sua produção poética da década de 40, como converte no fracassismo difuso pelos poemas do
hoje sabemos. Seja como for, o processo do qual livro de 1934. Dito de outro modo, influenciado
resultou "Outubro 1930" é interessante, porque pelo clima da época, o anseio de superar o próprio
revela traços marcantes do seu pensamento individualismo adquiria uma dimensão tanto
poético, em particular o questionamento poética (e artística) quanto ideológica, o que
angustiado sobre o alcance e os limites do seu obrigava nosso Autor a tratá-las em conjunto. O
lirismo – questionamento que, sem prejuízo das poema se insere precisamente nesse processo, e
enormes diferenças existentes, reaparecerá em em sua oscilação condensa questões cabeludas
diversos poemas de A rosa do povo, o que não que - hoje sabemos - ocupariam Drummond por
deixa de ser um ponto em comum entre muito tempo ainda.
momentos de resto tão distintos.

Em "Outubro 1930", a crise resultante do Referências bibliográficas


cruzamento das preocupações ideológicas e
estéticas se expressa no esforço para abrir novos ANDRADE, Carlos Drummond de. “Autobiografia para
caminhos. E de fato, o princípio de construção do uma revista”. In: Confissões de Minas. São Paulo: Cosac
poema é justamente a oscilação entre registros Naify, 2011. pp. 66-71.
distintos, como se o Autor não conseguisse se
decidir entre verso e prosa, épica e lírica, ponto de ______. Poesia 1930/62. Organização Júlio Castañon
Guimarães, São Paulo: Cosac Naify, 2012.
vista interno e externo, primeira e terceira
pessoas, e os mesclasse em um movimento
ANDRADE, Mário de. “A poesia em 1930”. In: Aspectos
incessante que os tensiona reciprocamente. Essa da Literatura Brasileira. São Paulo: Martins, 1974. pp. 28-
oscilação pode ser lida como a expressão da 53.
inexistência de uma solução para os dilemas que
inquietavam o poeta mineiro naquele momento ______. “Puro, sem mistura”. In: Táxi e crônicas no Diário
porque, se está por trás da tentativa de trilhar Nacional. Estabelecimento de texto, introdução e notas
novos rumos, também atesta o fracasso em se Telê Porto Ancona, São Paulo: Livraria Duas Cidades,
decidir por algum deles. Mais do que recursos 1976, pp. 211-213.

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Opiniães
reconhecimento de certo arcaísmo da literatura e
CANDIDO, Antonio. “A revolução de 30 e a cultura”. In: da poesia, como se então precisasse buscar fora
A educação pela noite. Rio de Janeiro: Ouro sobre Azul, das duas o que é mais necessário e urgente para
2011. pp. 201-238.
atualizar a experiência da poesia. É sob a
perspectiva angustiada e autocrítica do processo
COELHO, Lélia (Org.). Carlos & Mário: correspondência
entre Carlos Drummond de Andrade - inédita - e Mário comunicativo que A rosa do povo apresenta eu,
de Andrade: 1924-1945. Rio de Janeiro: Bem-Te-Vi, amor e poesia como instâncias históricas,
2002. desfiguradas pela sociedade burguesa e brasileira,
suscetíveis no entanto de reforma e
MERQUIOR, José Guilherme. Verso universo em transformação” (SIMON, 2015, p. 176).
Drummond. Rio de Janeiro: José Olympio, 1976.

SIMON, Iumna Maria. "O mundo em chamas e o país


2 O termo é de Antonio Candido e é usado
inconcluso". Novos Estudos. São Paulo: CEBRAP, n. 103,
para caracterizar o singular realismo configurado
nov. 2015. pp. 169-191.
na obra de Marcel Proust. Cf. Antonio Candido,
"Realidade e realismo (via Marcel Proust)". In: ___,
Notas Recortes. São Paulo: Companhia das Letras, 1993,
p. 125.
1 "Hoje é quase impossível avaliar o quanto
o verso - "A poesia fugiu dos livros, agora está nos
jornais" - impulsionava um programa antiliterário
e demandava da efusão lírica, da expressão polida,
do verso bem torneado, mas fechado ao
contemporâneo, uma inspiração autenticamente
antielitista, politizada e coletivista, aberta à
atualidade da vida - um programa de vanguarda,
seja dito. Drummond representou àquela altura a
expressão por excelência da crise do verso (que vai
ser saturado de prosa, sintática e ritmicamente), o

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