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"Água-forte" de Manuel Bandeira: uma leitura da leitura

Paul Dixon

Romance Notes, Volume 61, Number 3, 2021, pp. 507-515 (Article)

Published by The University of North Carolina at Chapel Hill, Department


of Romance Studies
DOI: https://doi.org/10.1353/rmc.2021.0035

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https://muse.jhu.edu/article/853917

[ Access provided at 6 Jun 2022 01:47 GMT from USP-Universidade de São Paulo ]
“Água-forte” de manuel bandeira:
uma leitura da leitura

Paul dixon
Purdue university

resumo:
o aspecto erótico do poema “Água-forte” de manuel bandeira é amplamente reconhecido.
Por um lado o presente ensaio contribui para um entendimento mais específico desse erotismo,
propondo que o poema sugere uma certa tradição da representação do nu femenino—a da dame
à sa toilette. Por outro lado, o ensaio afirma que o poema tem uma importante referência meta-
poética sobre a recepção, ativa por parte do leitor, do próprio poema. os escassos detalhes do
poema convidam o leitor a projetar um sentido de realidade coerente, tal como a visão de uma
mulher que se penteia diante do espelho. ao formular essa leitura, preenchendo espaços vazios
no texto, o leitor imita os processos receptivos necessários, na arte da gravura, da apreciação de
um água-forte.

o preto no branco,
o pente na pele:
Pássaro espalmado
no céu quase branco.

em meio do pente,
a concha bivalve
num mar de escarlata.
Concha, rosa ou tâmara?

no escuro recesso,
as fontes da vida
a sangrar inúteis
Por duas feridas.

tudo bem oculto


sob as aparências
da água-forte simples:
de face, de flanco,
o preto no branco. (bandeira, Poesia 299–300)

Romance Notes 61.3 (2021): 507–15


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o poema “Água-forte” de manuel bandeia, de apenas dezesete versos, é um


texto excepcional. É exceção no sentido de ser enigmático, arcano, quase opa-
co, quando em geral a produção poética de bandeira é acessível e lúcida. mas
o poema é excepcional também pela posição que ocupa na obra do poeta, pois
é incluído frequentemente em antologias (Por exemplo, numa antologia feita
pelo próprio autor [Poesia], na coleção bilíngue de Candace slater e na anto-
logia da poesia modernista de giovanni Pontiero), é considerado um “poema
chave”, indispensável para a compreensão do autor. antônio e gilda Cândido
mencionam “Água-forte” como um texto paradigmático por expressar um
“desdobramento” do erotismo de bandeira, entre o materialismo direto do
olhar lascivo e um “espiritualismo” que transcende tal carnalidade (lii). ain-
da, citam o poema como exemplo de muitos que representam planos frag-
mentários, relativamente sem passagens entre si (lxi).
essas opiniões, como se sabe, são produto de um consenso crítico que se
acumula através dos anos, conglomerando-se ao redor de certas afirmações
influentes. nisso, a análise do poeta, ficcionista e ensaísta ledo ivo ocupa
um lugar central. o estudo de ivo saiu quando o escritor alagoano tinha trinta
e um anos, trinta e um anos antes de se tornar membro da academia brasileira
de letras. o ensaio também é um texto excepcional, já que poucas vezes
aparece um livro inteiro (mesmo um livro de apenas noventa e quatro pági-
nas), dedicado a um poema tão curto.
ivo, como muitos leitores, é atraído pelo aspecto enigmático do poema. o
ensaísta coloca o texto dentro da tradição de ofuscação deliberada, citando
stéphane mallarmé como o exemplo mais notável dessa atitude nos tempos
modernos. um dos contextos mais propícios dessa prática, segundo ivo, é o
da expressão erótica. em parte por um sentido natural de pudor, em parte por
temor do mau entendimento ou até da persecução pelo público, em parte pelo
gozo do jogo esconde-esconde entre escritor e leitor, o poeta recorre a uma
linguagem velada, até mascarada para comunicar suas impressões (31–6; ver
também moura, 73). o que ivo não mencionou, mas podia ter assinalado é
que, talvez paradoxalmente, o poema de bandeira esclarece essa perspectiva
ofuscante nos versos “tudo bem oculto / sob as aparências / da água-forte
simples”. a estética velada faz parte da referência desse poema metapoético.
o vocabulário chulo brasileiro, especialmente no que se refere às pala-
vras “pente” e “concha” é importante na leitura de ivo. segundo ele, “o pen-
te na pele” se refere ao púbis da mulher (39–40), à genitália abrindo-se como
“pássaro espalmado” no “céu quase branco”, ou seja na pele menos branca,
mais colorida em relação à epiderme do resto do corpo (42). o “céu” também
é o paraíso do prazer masculino, reino celeste do homem em sua nostalgia do
ventre materno (42–3).
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ivo nota a continuação da referência à genitália feminina nas palavras “a


concha bivalve”, concha que se encontra “no meio do pente” (47). a palavra
“bivalve”, segundo ivo, joga com o parentesco fonológico com a palavra
“vulva” (49). a sugestão paradisíaca do lugar continua, pois a concha é tam-
bém uma espécie de musa para o homem, permitindo-lhe ouvir o mar quando
juntada ao ouvido (47–8).
o “mar de escarlata”, na leitura de ivo, é o fluxo menstrual. esta noção
se torna mais clara quando o poema menciona “no escuro recesso, / as fon-
tes da vida / a sangrar inúteis / Por duas feridas”. as “duas feridas”, “fontes
da vida” são os ovários. ivo resume a ação do poema nos seguintes termos:
“É a história de um útero que se preparou para a procriação e, esta não acon-
tecendo, se descama numa sangrenta ferida” (51).
Comentando a palavra “inúteis”, o ensaísta situa o poema na visão do mun-
do de bandeira, afirmando que o poeta é um “místico ateu” que busca uma
transcendência, muitas vezes na relação com a mulher, mas que sempre acaba
na frustração. a percepção da “inanidade do sacrifício feminino” conduz a uma
atitude da inutilidade da vida (55–9). a sugestão do ensaio é que nessa procria-
ção que não acontece, o poeta se imagina como aquele que teria sido o pai.
não é que ledo ivo tenha descoberto uma mensagem extremamente ocul-
ta. a referência à menstruação está mais ou menos evidente nas imagens do
“mar de escarlata” e das “duas fontes da vida” “a sangrar”. não vejo motivo
nenhum de discordar com a leitura do autor alagoano. Vários críticos (tais como
arrigucci 1990, Cândido 1966, fonseca 2002, Junqueira 2003, lisboa 1990,
rosenbaum 1993 e Willis 2009) comentam a importância da nudez feminina
na obra de bandeira. em geral, os estudiosos ressaltam a transcendência da
visão erótica do poeta, especialmente no momento quase místico em que a
mulher se desnuda, oferecendo plenamente os segredos do corpo para o eu
poético. essas análises, em geral, mostram a amplitude semântica da nudez
em bandeira, notando que tal revelação tem sugestões sobre a criação poética
e a relação apaixonada do ser com seu mundo. em vista da reconhecida
abrangência do tema, creio que a análise de ivo é limitada, estreita, e que o
poema é mais rico e inclusivo do que o seu ensaio admite. a sexualidade, sem
dúvida, é central no poema, como na vida. mas tanto no texto como na reali-
dade, estas funções servem como emblemas para considerações menos instin-
tivas. Quero mostrar aqui que há dois mundos, além do mundo sexual,
tratados pelo poema. o primeiro desses é o mundo da arte visual, sugerido
pelo título do poema, “Água-forte”. o segundo é o mundo da literatura, suge-
rido pela redução radical da escrita nas palavras “o preto no branco”.
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o níVel PiCtóriCo e a Visão geral do Poeta

o texto se refere a uma categoria da arte visual, a “água-forte”, um tipo


de gravura em que o artista arranha uma imagem numa chapa de metal, pro-
tegida por uma camada de cera ou verniz. Quando a chapa é banhada em áci-
do (a água-forte), os lugares em que a proteção foi removida são gravados
pela ação corrosiva do líquido, deixando pequenos recortes capazes de rece-
ber e guardar tinta para impressões em papel. embora os desenvolvimentos na
técnica agora permitam a criação de gradações entre escuro e claro, o gênero
pictórico da água-forte, em seu aspecto mais básico e essencial, é uma repre-
sentação binária em que o papel fica com tinta ou sem tinta—“o preto no bran-
co”. tradicionalmente, o artista cria uma tonalidade cinzenta, que permite a
ilusão de relevos em três dimensões, por meio de linhas muito próximas, que
deixam o observador extrapolar ou imaginar os valores medianos. Qualquer
imagem muito ampliada de um rosto impresso numa cédula de dinheiro daria
um bom exemplo de tal técnica. Como veremos, o ato mental de extrapolar
terá importância no aspecto metapoético do texto.
o poema se anuncia como água-forte, sugerindo uma imitação verbal da
gravura, conduzindo o leitor a uma análise das semelhanças e diferenças entre
o texto e a representação visual. tanto no poema como na gravura “o preto
no branco”, ou a tinta no papel, constitui sua apresentação mais material. o
poema, como ekphrasis, participa da tradição do texto descritivo, especial-
mente descritivo de uma obra de arte (Preminger 320–21). Como davi arri-
gucci Júnior já assinalou (22), evoca uma tradição antiquíssima, originalmente
de Horácio, o conceito ut pictora poesis, que afirma a capacidade (ou até a
necessidade) de o poema criar imagens visuais (Preminger 1139–40). o poeta
é um pintor ou um criador de gravuras.
seguindo essa lógica, vale perguntar: se o poema é uma gravura, uma
representação pictográfica, que tipo de imagem chega a representar? Pode-se
identificar algum gênero de imagem visual? arrigucci Júnior já planteou tal
pergunta numa análise do poema “maçã” (Estrela da vida inteira, 1966), suge-
rindo que o poema imita, com palavras, uma natureza morta, tal como aquelas
famosas pinturas de Paul Cézanne cujas maçãs são admiradas pelo público
(23–44). seguindo uma linha parecida, proponho que, baseando-nos em apenas
algumas palavras, é possível inferir uma certa tradição artística. “o pente na
pele”, esse único verso, basta para sugerir a tradição da “dame à sa toilette”, ou
“après le bain”, o tema da mulher que se asseia, se enfeita ou se veste.
Há três elementos essenciais nessa tradição pictográfica. Primeiro é a pele;
o gênero “toilette” é uma subcategoria do gênero do nu. ao pintar a mulher
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durante suas abluções diárias, o artista encontra uma oportunidade de desco-


brir a nudez ou a semi-nudez da mulher, sem que essa demonstre motivos
abertamente eróticos. É uma tradição do nu mais pudica, mais inocente (pelo
menos para a mulher), mais aceitável aos valores burgueses, porque a mulher
é vislumbrada numa atitude cândida e inocente. um nu abertamente erótico,
tal como “la maja desnuda” de francisco de goya, olha diretamente para o
observador, com uma atitude de oferecer-se-lhe. muito distinto é o olhar da
mulher em sua “toilette”, que exclui o seu olhar da linha de visão do observa-
dor, que está furtivamente invadindo seu espaço privado (Chicago 150). na
maioria dos casos, é como se ela, enquanto revelasse as belezas de seu corpo,
nem tivesse consciência dos olhos alheios, do olhar do artista “voyeur”. Por
isso, há pouco, disse que o gênero da “toilette” é mais inocente “pelo menos
para a mulher”. Para a pessoa que a admira, existe a sugestão de uma olhade-
la lasciva e roubada (Chicago 159–60). uma gravura cômica de syrix e Pan
(dente) ressalta este aspecto do gênero.
um segundo elemento, quase sempre presente ou pelo menos implícito, é
o pente (degas, dubreuil, gentileschi, moreau, rubens). afinal de contas, o
maior motivo do rito preparativo é cuidar dos cabelos da mulher. na tradição,
ela quase sempre é dona de uma cabeleira abundante e ondulada. É difícil
encontrar um exemplo em que o cabelo não esteja sendo tocado, arranjado,
ou penteado. É frequente a presença de uma criada, geralmente ocupada em
cuidar do cabelo de sua senhora. o leitor do poema de bandeira, ao ler a pala-
vra “pente”, bem pode pensar em linhas sexuais. mas também, creio, deve
pensar num certo contexto artístico, talvez o da “toilette”, em que o pente tem
um papel mais inócuo e convencional.
o terceiro elemento essencial na tradição da “toilette” é o espelho (bellini,
degas, fontainbleau school, rosetti). Para a mulher o espelho é tão essencial
como o pente. ao dirigir sua atenção para o espelho, é claro, ela está absorta
na vista de si mesma. se em geral o enfoque do artista é lateral, é porque seu
sujeito está olhando o espelho, e não o artista. o poema de bandeira não tem
espelho. no entanto, como disse, parece ressaltar a questão da perspectiva
oblíqua, com as palavras “de face, de flanco”. as imagens da tradição “toi-
lette”, em geral, são de flanco. o artista precisa se posicionar do lado da
dama, olhá-la de flanco, porque o aspecto frontal da mulher, sua “face” se
dirige ao espelho. na realidade, este posicionamento envolve o triângulo tão
decepcionante e universal nas relações amorosas. nos poemas europeus rela-
cionados à tradição pictórica da “toilette”, é frequente o poeta expressar ciú-
mes do espelho de sua senhora, já que o vidro recebe mais atenção do que
ele. implicitamente, é uma queixa sobre as tendências narcisistas da compa-
nheira (Pericolo 155–58, 162–63).
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nisso há compatibilidade com a visão poética de bandeira, no que se


refere à relação com a mulher. as mulheres que se oferecem para o poeta, as
que se dão “de face” são mulheres imaginárias como as de Pasárgada: “lá
tenho a mulher que eu quero / na cama que escolherei” (Poesia 264). as
mulheres reais, evocadas na poesia de bandeira, são mulheres “de flanco”
pois não retornam o olhar do poeta, preferindo interessar-se em outros obje-
tos. tal visão, por exemplo, se vê em “Carinho triste” (Poesia 222–23) onde
o eu poético reconhece que a boca, os seios e o ventre da amada são “dele
[de outro] quando ele bem quer”. mesmo não se entregando para outro
homem (nesse caso seriam mulheres cujas “fontes da vida” estariam a “san-
grar inúteis”), preferem absorver-se em si mesmas, como se estivessem com
os olhos fixos no espelho.

o níVel metaliterÁrio e o uniVerso PoÉtiCo de bandeira

segundo bruce dean Willis, a mulher na poética bandeira tende a ser metá-
fora da criação poética (82). aqui quero sugerir que ela representa não ape-
nas a elaboração do poema, mas também sua recepção. além de sugerir uma
representação visual que surpreende uma mulher fazendo sua “toilette”, o
poema de bandeira parece comentar o aspecto mais subjetivo da situação, a
perspectiva de quem olha aquele cenário. ao estudar esse olhar, o texto tam-
bém sugere uma análise da recepção do texto, “o preto no branco”, e em
especial o texto poético. o poema sugere três ações eminentemente imaginá-
rias nesse processo receptivo, ocorrendo-se principalmente nas estrofes duas
e três. Primeiro, há uma aproximação quase cinematográfica em que o sujeito
se coloca cada vez mais perto do objeto de seu olhar. Chega a examinar de
bem perto o pente introduzido na primeira estrofe. e “em meio do pente”
encontra “a concha bivalve / num mar de escarlata”. o verso “Concha, rosa
ou tâmara?” sugere uma certa dificuldade em identificar objetos tão pequenos.
num nível metapoético, chama atenção ao papel ativo do leitor quando decifra
o texto escrito. as inevitáveis lacunas ou espaços imprecisos, em vez de cons-
tatar opacidade, impedindo ao leitor a construção de sentidos, estimula sua
imaginação na forma de imagens ou propostas possíveis. a vagueza da infor-
mação não impede a elaboração de hipóteses, impulso muito consistente com
as teorias fenomenológicas da recepção (iser 51). no contexto da “toilette” os
versos parecem dar uma olhada detalhada nos pentes ricamente ornamentados,
que se usavam em tempos mais antigos. o material usado para os pentes era
madeira de lei, casca de tartaruga, e às vezes chifre, todas substâncias mais ou
menos escuras, como um “mar de escarlata”. em contraste com o material
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mais escuro, era comum embutir enfeites em nácar, ou seja, do material irisado
das conchas (gaillard, Comb —Polynesian, Comb— Chinese). os objetos
representados pelo trabalho de madrepérola eram paisagens, flores ou folhas, e
muitas vezes aves (Comb —egyptian, Comb— Probably german, lacquer
Comb, Woman’s Comb), o que nos remete ao verso “Pássaro espalmado”.
ao seguirmos a leitura mais explicitamente sexual, como a de ledo ivo,
chegamos a uma segunda ação imaginativa. Há uma reorientação da posição
da mulher representada; em vez de ser vista “de flanco”, que seria normal
para um cenário de “toilette”, ela passa a ser contemplada “de face”. ao ofe-
recer-se ao contemplador “de face”, ela lhe dá um acesso muito mais íntimo
e direto. sem esse posicionamento frontal, muito mais aberto, vulnerável, e
profundo, a visão das partes da anatomia íntima não seria possível. se há tal
mudança de posição em relação ao sujeito do olhar, é razoável considerá-la
como uma manobra da imaginação. o homem contempla uma mulher “de
flanco” e em seus devaneios eróticos, passa a encará-la “de face”, numa ati-
tude de plena e aberta acessibilidade. tal mudança imaginária corresponde a
um fenômeno comum na recepção de um texto literário, quando os leitores
passam de uma posição exterior ou alheio, “de flanco”, para uma posição de
plena identificação “de face”, chegando a conceber o texto como uma mensa-
gem dirigida diretamente para eles. os leitores deixam sua identidade real,
como pessoas que apenas assistem, e chegam a desfrutar a ilusão de ser ver-
dadeiros participantes do mundo representado.
a terceira ação, evidente na terceira estrofe, é a penetração. a imaginação
não permanece na superfície, na pele do objeto representado, mas sim passa
para o interior do fenômeno. na leitura de arrigucci Júnior, já mencionada,
esse impulso penetrativo é tanto erótico como poético, pois o poeta tenta
“desentranhar” os objetos, passando ao centro dos mesmos, para tirar-lhes a
poesia (29). a sugestão sexual tem seu paralelo na teoria da recepção do tex-
to, quando os leitores, em seu desejo de envolver-se intimamente na comu-
nhão com a mensagem, cedem ao poder de uma “atração”, “entregando-se”,
projetando-se em níveis imaginários mais profundos (iser 51–2).
mas assim como os devaneios eróticos têm seus limites, nunca permitin-
do uma experiência de plena intimidade, a projeção da imaginação também
sofre uma viravolta. É como se a imagem das “fontes da vida / a sangrar inú-
teis” devolvesse o sujeito do poema à dura realidade: a mulher admirada, em
todo seu encanto natural e potencia vital, não é para ele. se for uma questão
de oferecer suas “fontes da vida” ao “eu” do poema ou a ninguém, ela prefe-
re não oferecê-las a ninguém! no aspecto da recepção do texto, este momen-
to parece corresponder ao processo inevitável de sair do mundo imaginado,
para retornar ao mundo real —o momento da “desilusão”. assim, a recepção
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de um texto é um ciclo, começando com um encontro distante e material, com


a percepção do “preto no branco”, passando por uma viagem maravilhosa de
projeções subjetivas, com possibilidades riquíssimas e representadas com o
cromatismo da “escarlata”, mas sempre terminando onde começou, outra vez
na dura materialidade do “preto no branco”.
reconhece-se que as hipóteses examinadas aqui são baseadas numa evi-
dência textual notavelmente escassa. Porém, tal exercício de inferências está
em acordo com o sentido geral do poema, tanto na sua descrição de uma gra-
vura, como em sua mensagem metapóetica sobre a recepção do texto. o verso
“concha, rosa ou tâmara?” tem um papel importante nessa questão da deci-
fração como a projeção de opções. na água-forte, uma série de linhas soltas
adquire coerência quando o olho do observador impõe uma ordem sobre elas,
penetrando nos espaços brancos e criando formas concretas. no texto, os lei-
tores também se inserem no “preto e branco”, preenchendo vazios, atuando
“sob as aparências”, e num jogo intersubjetivo com a palavra, construindo
visões possíveis.

obras Citadas

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