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Paul Dixon
[ Access provided at 6 Jun 2022 01:47 GMT from USP-Universidade de São Paulo ]
“Água-forte” de manuel bandeira:
uma leitura da leitura
Paul dixon
Purdue university
resumo:
o aspecto erótico do poema “Água-forte” de manuel bandeira é amplamente reconhecido.
Por um lado o presente ensaio contribui para um entendimento mais específico desse erotismo,
propondo que o poema sugere uma certa tradição da representação do nu femenino—a da dame
à sa toilette. Por outro lado, o ensaio afirma que o poema tem uma importante referência meta-
poética sobre a recepção, ativa por parte do leitor, do próprio poema. os escassos detalhes do
poema convidam o leitor a projetar um sentido de realidade coerente, tal como a visão de uma
mulher que se penteia diante do espelho. ao formular essa leitura, preenchendo espaços vazios
no texto, o leitor imita os processos receptivos necessários, na arte da gravura, da apreciação de
um água-forte.
o preto no branco,
o pente na pele:
Pássaro espalmado
no céu quase branco.
em meio do pente,
a concha bivalve
num mar de escarlata.
Concha, rosa ou tâmara?
no escuro recesso,
as fontes da vida
a sangrar inúteis
Por duas feridas.
segundo bruce dean Willis, a mulher na poética bandeira tende a ser metá-
fora da criação poética (82). aqui quero sugerir que ela representa não ape-
nas a elaboração do poema, mas também sua recepção. além de sugerir uma
representação visual que surpreende uma mulher fazendo sua “toilette”, o
poema de bandeira parece comentar o aspecto mais subjetivo da situação, a
perspectiva de quem olha aquele cenário. ao estudar esse olhar, o texto tam-
bém sugere uma análise da recepção do texto, “o preto no branco”, e em
especial o texto poético. o poema sugere três ações eminentemente imaginá-
rias nesse processo receptivo, ocorrendo-se principalmente nas estrofes duas
e três. Primeiro, há uma aproximação quase cinematográfica em que o sujeito
se coloca cada vez mais perto do objeto de seu olhar. Chega a examinar de
bem perto o pente introduzido na primeira estrofe. e “em meio do pente”
encontra “a concha bivalve / num mar de escarlata”. o verso “Concha, rosa
ou tâmara?” sugere uma certa dificuldade em identificar objetos tão pequenos.
num nível metapoético, chama atenção ao papel ativo do leitor quando decifra
o texto escrito. as inevitáveis lacunas ou espaços imprecisos, em vez de cons-
tatar opacidade, impedindo ao leitor a construção de sentidos, estimula sua
imaginação na forma de imagens ou propostas possíveis. a vagueza da infor-
mação não impede a elaboração de hipóteses, impulso muito consistente com
as teorias fenomenológicas da recepção (iser 51). no contexto da “toilette” os
versos parecem dar uma olhada detalhada nos pentes ricamente ornamentados,
que se usavam em tempos mais antigos. o material usado para os pentes era
madeira de lei, casca de tartaruga, e às vezes chifre, todas substâncias mais ou
menos escuras, como um “mar de escarlata”. em contraste com o material
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mais escuro, era comum embutir enfeites em nácar, ou seja, do material irisado
das conchas (gaillard, Comb —Polynesian, Comb— Chinese). os objetos
representados pelo trabalho de madrepérola eram paisagens, flores ou folhas, e
muitas vezes aves (Comb —egyptian, Comb— Probably german, lacquer
Comb, Woman’s Comb), o que nos remete ao verso “Pássaro espalmado”.
ao seguirmos a leitura mais explicitamente sexual, como a de ledo ivo,
chegamos a uma segunda ação imaginativa. Há uma reorientação da posição
da mulher representada; em vez de ser vista “de flanco”, que seria normal
para um cenário de “toilette”, ela passa a ser contemplada “de face”. ao ofe-
recer-se ao contemplador “de face”, ela lhe dá um acesso muito mais íntimo
e direto. sem esse posicionamento frontal, muito mais aberto, vulnerável, e
profundo, a visão das partes da anatomia íntima não seria possível. se há tal
mudança de posição em relação ao sujeito do olhar, é razoável considerá-la
como uma manobra da imaginação. o homem contempla uma mulher “de
flanco” e em seus devaneios eróticos, passa a encará-la “de face”, numa ati-
tude de plena e aberta acessibilidade. tal mudança imaginária corresponde a
um fenômeno comum na recepção de um texto literário, quando os leitores
passam de uma posição exterior ou alheio, “de flanco”, para uma posição de
plena identificação “de face”, chegando a conceber o texto como uma mensa-
gem dirigida diretamente para eles. os leitores deixam sua identidade real,
como pessoas que apenas assistem, e chegam a desfrutar a ilusão de ser ver-
dadeiros participantes do mundo representado.
a terceira ação, evidente na terceira estrofe, é a penetração. a imaginação
não permanece na superfície, na pele do objeto representado, mas sim passa
para o interior do fenômeno. na leitura de arrigucci Júnior, já mencionada,
esse impulso penetrativo é tanto erótico como poético, pois o poeta tenta
“desentranhar” os objetos, passando ao centro dos mesmos, para tirar-lhes a
poesia (29). a sugestão sexual tem seu paralelo na teoria da recepção do tex-
to, quando os leitores, em seu desejo de envolver-se intimamente na comu-
nhão com a mensagem, cedem ao poder de uma “atração”, “entregando-se”,
projetando-se em níveis imaginários mais profundos (iser 51–2).
mas assim como os devaneios eróticos têm seus limites, nunca permitin-
do uma experiência de plena intimidade, a projeção da imaginação também
sofre uma viravolta. É como se a imagem das “fontes da vida / a sangrar inú-
teis” devolvesse o sujeito do poema à dura realidade: a mulher admirada, em
todo seu encanto natural e potencia vital, não é para ele. se for uma questão
de oferecer suas “fontes da vida” ao “eu” do poema ou a ninguém, ela prefe-
re não oferecê-las a ninguém! no aspecto da recepção do texto, este momen-
to parece corresponder ao processo inevitável de sair do mundo imaginado,
para retornar ao mundo real —o momento da “desilusão”. assim, a recepção
514 romanCe notes
obras Citadas
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