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VIRGINIUS DA GAMA E MELO

A MODELAÇÃO
PEÇA EM 3 ATOS

l* Menção Honrosa
Prêmio Serviço Nacional de Teatro
1965

CAMPANHA NACIONAL DE TEATEO (S.N.T.)


MINISTÉRIO DA EDUCAÇÃO E CULTURA
Rio DE JANEIRO, 1966
PERSONAGENS

FERNANDO
EDUARDO
PAULO
IVONE
ADELAIDE
ANÃLIA
ALARICO
Voz
Juiz
DELEGADO
OSCAR
PENTEADO
PADRE
CAPITÃO
BONIFÁCIO
COSTEIKA
1° ATO
"A Cortina vai abrindo com a cena escura. Do fundo
surge Ivone trazendo os candeeiros. Ilumina-se a cena:
sala central, um corredor longo ao fim, portos aos lados.
Sofá, cadeiras, cômodas, móveis antigos, lavrados. A
mesa, ao centro, é rústica, como dois bancos laterai-s, sem
encosto. Retratos grandes nas paredes. Um Sagrado Co-
ração de Jesus. Alguns tamboretes. As portas ao lado
esquerdo dão para o alpendre, o terreiro. Arvores".
IVONE — É capaz desse gás não dar para hoje. Quem
pode mais comprar querosene... (arruma os candeeiros
na mesa, vai aos fundas, volta com os pratos) Um, dois. ..
três... quatro... (vai dispondo os pratos na mesa).
(Ouve-se um tiro e logo surgem pelo terreiro e alpendre
Fernando, Eduardo e Paulo com enxadas que vão encos-
tando nos cantos da sala)
FERNANDO — Bota logo a janta, mana. Estou morto
de fome.
EDUARDO — Eu também.
PAULO •— Chega está me dando uma coisa.
IVONE — Papai não chegou ainda. E mãe ainda está
lá dentro.
FERNANDO — Para onde foi o velho?
IVONE — Sei lá. Por aí, andando. Quem sabe pelo
açude.
EDUARDO —• Com certeza foi ver o gadão no curral
(ri).
IVONE — Tenha respeito. Ele é bom.
A MODELAÇÃO 11
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IVONE — Dobre a língua, cachorro!


PAULO — Para o curral, não foi não. Para não
sujar os sapatos. É capaz de estar mostrando a paisa- EDUARDO — (olhando os móveis) Bem que isso da-
gem a uma visita da Capital. qui dava uma lenha boa. A gente podia até fazer um
tanto de carvão. Estou cansado de procurar pau por
IVONE — Quem atirou lá fora?
aí, toda manhãzinha. Só dá graveto. Marmeleiro. Quem
FERNANDO — (olha a espingarda que aimda tem já viu cozinhar com marmeleiro?
nas mãos) Fui eu. Para descarregar. Não quero arma
IVONE — E eu, que digo?! Eu, que agüento a fu-
carregada em casa.
maceira? Tudo por sua causa, sua preguiça! Só me traz
IVONE — É bom. isso, umas coisinhas que não dão para fogo nenhum!
EDUARDO — Pode ser que alguém pense que é outra EDUARDO — A culpa não é minha. Está tudo pelado
coisa. por aí. Essa terra está virando casca de ovo. Nesses dias
IVONE — Lá vem você com suas histórias. a gente está é cozinhando com espinho de cardeiro.
EDUARDO — É que as coisas, aqui, às vezes são tão IVONE — Nada, tudo é preguiça sua. Tem lenha por
diíerentes. aí, ora se tem.
IVONE — Não vejo diferença nenhuma. EDUARDO — Lenha também se acaba. Se acaba tudo
EDUARDO — (dando de ombros) Está certo (vai donde só se faz tirar. Ou vocês pensam que nada disso
sentando numa das cadeiras) tem fim? Que é só tirar, tirar?
IVONE — (partindo para ele) Aí não. Sente no tam- PAULO — Quem pensa nisso? Coisa que a gente
borete. Deixe de ser mal-educado. Sujo desse jeito... tira, nunca mais volta. Depois de tirado, não é mais
Sente no tamborete. nada.
EDUARDO — (sentando no tamborete e sendo imita- IVONE — Safado!
do pelos outros) Está certo. FERNANDO — (levanta-se, encosta a espingarda na
parede, tira o chapéu, bota n,o cano da arma, joga o
PAULO — Esse negócio desses móveis aqui, enchendo
bisaco em cima da mesa) Está aí, mana.
tudo, como se fosse coisa para adorar. Não se usa, nin-
guém senta neles. Eu bem que dormia nesse sofá. IVONE — (abrindo o bisaco, apalpando) Muita
coisa?
IVONE — Melhor que vocês fossem se lavar. Tirar
essas alpercatas, limpar os pés que estão pretos de sujo. FERNANDO — (desalentado, sentando no tamborete
E o cheiro! Que nojo! e passando a manga no rosto) Veja!
IVONE — Parece que não tem nada (tira dois pás-
EDUARDO — Olha a rainha, a princesa! Com raiva
saros pequemos) Só?
do cheiro da gente, cheiro de trabalho, cheiro de homem!
EDUARDO — Não sei o que está pensando.
PAULO — É... Ela só gosta de cheiro de bode!
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FERNANDO — Só. E já foi muita coisa. Passei quase IVONE — (saindo para os fundos) Bate na boca,
o dia todo batendo por aí. desgraçado!
IVONE — Mas isto? Estas duas rolinhas? E no FERNANDO — (depois que ela sai) Ivone bem que
açude? podia casar. Está cm tempo. E tem noivo rico para ela:
FERNANDO — Em todo canto. No açude, no cercado Bonifácio. Veio me falar. Que é que vocês acham?
do Maracajá, na capoeira de Pasmado. Não tem nada. PAULO — Sei lá. Você, que é irmão, é quem sabe,
Não se vê nada. quem resolve. Fala com ela.
IVONE — Nem moco? Na pedreira? FERNANDO — Nunca ouvi ela falar no Bonifácio, a
FERNANDO — Não se encontra nada. Bati tudo. Es- não ser em tom de deboche.
tou morto, amado de andar atrás do que não se vê, EDUARDO — E podia ser de outro jeito? O que é
procurando o que não se encontra. que Bonifácio tem? Fora o dinheiro o que resta? Aquele
tipo mofino? Você tinha coragem de dormir com ele?
EDUARDO — O que está dando mais, agora, é ca-
langro. Diz que é bom. Nesses dias, heim, Paulo, vamos PAULO — Quem vai dormir é ela.
entrar no calangro. Diz que é bom. Muita gente acha que EDUARDO — Pior ainda. Não vai ter sossego.
é carne de galinha, direitinho. FERNANDO — Mas aqui ela está se acabando. Sem
IVONE •— Você podia pescar no açude. futuro nenhum. Vai ficar como nós.
PAULO — Já é.
FERNANDO - - E tem mais açude? Queria que você
EDUARDO — Tinha a vantagem de ser uma boca de
fosse lá. Aquilo está um barreiro, raso de se ver o fundo.
Não dá um palmo. Ora, um palmo! Só tem lama e, na- menos.
quela lama, nem um peixe. Já bati tudo. Nem piaba. FERNANDO — Uma boca de menos...
O que dá por perto é couro de sapo estorricado. — Vou falar com o velho.
EDUARDO — Melhor falar com ela.
EDUARDO —• Ali foi diferente do resto. Ali se perdeu
porque não se tirava nada. Foi juntando terra e por- FERNANDO — Falo também à velha.
caria, pau e desleixo, até que a água escorreu toda e PAULO — Pode falar mas não vejo vantagem.
só ficou a lama. FERNANDO — Mãe é mãe.
IVONE — (juntando os pássaros) É, vou lá para EDUARDO — Ah! Isso depende.
dentro preparar eles. FERNANDO — A velha pode pedir a ela. Para o bem
EDUARDO — Vê se não demora muito. dela, para o bem de todos.
EDUARDO — Não disse que esse negócio de mãe de-
IVONE — (mostrando os pássaros) Isto aqui? Isto pende? Fazer isso é papel de mãe?
aqui é o almoço de amanhã.
FERNANDO — O bem da filha. Uma casa, roupa,
PAULO — Já sei que vou ter indigestão. não passar necessidade. Ter um futuro garantido.
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PAULO — E agüentar Bonifácio o dia todo, juntos
sempre, vendo-o, tendo ele perto. EDUARDO — Isto aqui é mundo parado. A paciên-
EDUARDO — E dormir com ele, toda a noite, todas cia parece que vem da terra... A enxada, quando corta,
as noites. quando ajunta, quando afasta a terra, só encontra aque-
FERNANDO — Ninguém pode ter um pão com dois la poeira... terra esfarelada. Terra que virou um mofo
pedaços. Todo mundo tem que comer da banda podre seco.
para comer da boa. PAULO — Nem sempre. Do meu lado está dando uma
EDUARDO — Não. Todo mundo não tem que comer lama grossa, preta. O milho, o feijão, a mandioca apon-
da banda podre não, Bonifácio sempre comeu do bom tando caída, as folhas enterradas na lama preta, se aca-
e do melhor. bando. E o que é danado, mais em cima, a roça de Sim-
plício que é aquela beleza •— o feijão e o milho em ponto
FERNANDO — Tem qualidades. Trabalhador, homem
de colher. A mandioca, nem se fala.
de casa, econômico. Aumentou a terra, o gado que rece-
beu. Está rico. EDUARDO — Enriquecendo nas barbas da gente, en-
riquecendo na terra do tio. E a gente não faz nada.
EDUARDO — Sempre foi. O que ele está agora é É só metendo a enxada onde não dá nada e vendo Sim-
podre. plício botando o melhor da terra para fora. Tirando o
PAULO — Podre de rico. sangue da terra e a gente roendo os ossos. Um bando
EDUARDO — Para ele dá no mesmo. de cachorros, é o que somos.
FERNANDO — Ivone vai ser rica... rica. Aqui não FERNANDO —• (pondo-se de pé e andando em dire-
aparece ninguém. Ela não sai. E na redondeza não tem ção à porta da direita) Morrendo de fome e esse velho
ninguém melhor, mais rico que Bonifácio. não chega... (olha para fora) Não se vê ninguém. Esse
EDUARDO — É o rei. negócio de Simplício não pode continuar. Ainda por cima
FERNANDO — Pode dizer. devendo o foro desde o ano passado. Hoje tirei um tem-
po no campo e fui a ele. Cobrei, disse que ele não podia
EDUARDO — Que vai nos tirar a cozinheira, como
ficar na terra sem pagar. Nem um dia mais. E falei
nos contos de fada.
com força, vendo aquele roçado dele, tirado nas costas
PAULO — Também fica uma boca menos. da gente, me dando um travo na garganta.
FERNANDO — Um destino, uma solução para ela EDUARDO — Aquele homem está é roubando a nós
Ficar longe disso aqui, dessa moleza, dessa tristeza... todos. E o miserável parece que é maldito a fazer des-
A cada dia tudo ficando menor, a vida diminuindo a graça da gente. Onde ele trabalha dá tudo, onde a gente
cada dia. trabalha não dá nada. E tudo não é do tio? Por que
PAULO — É . . . Quem não quiser morrer, tem que aquele bandido vai ficar com o melhor pedaço? E ainda
sair. Um atrás do outro. Ficar não dá mais nada, não por cima de graça, com o foro atrasado, de barriga
dá mais nem desespero... cheia, mangando de nós. Até as duas cabras o miserável
já tem. Passa no leite, o infeliz.
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PAULO — De miunça, há muito tempo que nós não PAULO — E do roçado ele também não pode levar
tem notícia. E gado, eu já perdi até a lembrança de nada porque não pagou o foro e perdeu o direito.
como é. FERNANDO — Cobrei tudo. Cobrei tudo e quero o
EDUARDO — O velho é capaz de andar pelo curral, pagamento até amanhã, ao meio-dia, Foi o que disse a
vigiando. ele. Se não pagar, que arrume os tarecos e ganhe o
mundo. Não deixei o homem iludido. Disse da precisão:
PAULO — Vigiando... Ê, no curral, vigiando. Aqui- o foro ou a terra. O que nós não podia era ficar empa-
lo está tudo cheio de vaca leiteira, de bezerro, de boiato. tado por ele — sem receber nada pela terra e ele ti-
FERNANDO — Simplício botou muita razão, muita rando tudo.
influência, se pondo forte até nos pedidos de caridade. EDUARDO — Há muitos anos que vem sendo assim^'
Falou nos meninos, na mocinha que não tinha o que A gente trabalhando onde não dá nada e Simplício pas-
vestir. Se não pagava, era porque não podia. Não dis- sando na fartura de ano a ano. Como se a terra fosse
cuti nada. Me mantive na energia. Aquele verde do ro- dele, reservando o melhor pedaço para ele e nós fôs-
çado dele, tirado nas costas da gente, me dava um travo semos os moradores.
na garganta. Aquele milho, aquele feijão, aquela man-
dioca, tudo se oferecendo, me dava um nó de garganta FERNANDO — Sempre tive vontade de resolver isso,
como se fosse partir para o choro. E uma revolta gran- mas o velho, sabem como é, insistia em que Simplício
de porque tudo aquilo era nosso, no final das contas, ficasse. Todos foram embora, menos Simplício. A terra
pois a terra era nossa. E tudo que é da terra pertence tinha sido do pai dele e o velho parece que trata Sim-
à terra. l)ei prazo a Simplício para pagar o foro até plício como o pai. Acho mesmo que pensa ainda que
amanhã, ao meio-dia, Se não pagar tem que sair. Tem Simplício é o pai.
que sair. PAULO — Já ouvi muitas vezes era ele falando no
EDUARDO — Mas sair pagando o que deve. Pagando mel de aripuá que Simplício lhe trouxe. Desde que me
o foro do ano passado. O foro, que era nosso, e que ele entendo de gente, nunca vi ou soube que Simplício lhe
gozou o tempo todo. O foro que ele nos roubou. trouxesse mel.
PAULO —• Também ele não pode lucrar nada. Não EDUARDO — E tirar de onde? Se aqui não tem mais
pode lucrar nada da terra se não pagar o foro deste nenhum oco de pau. Não tem mais pé de pau de quali-
ano. Como ele pode lucrar sem ter direito? Se não pagar, dade nenhuma. Só se for mel de maribondo arranjado
aquilo é nosso. ali nas ripas do alpendre.
EDUARDO -- É. As cabras ficam pelo foro do ano FERNANDO - - Por isso ou aquilo outro, Simplício
passado. Foi mesmo com o dinheiro que ele roubou, dei- foi ficando e está aí. Mas amanhã isso se acaba. Se acaba
xando de pagar, que comprou as cabras. Se tivesse pago essa vida a locé nas costas da gente. O velho nem pre-
o foro, não tinha comprado. cisa saber do nada.

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fiei que ele queria era fazer o rombo maior. Ganhar
EDUARDO — Í3. É melhor ele não saber de nada. tempo e ir lucrando. Então me fiquei no prazo do dia.
Mas Simplício é bem capaz de estourar por aí, para falar EDUARDO — Para tirar coisa dali ele precisa de
com ele. muito tempo. Só de milho, ali tem para mais de 600
cuias.
PAULO — Ninguém deixa. Aqui ele não entra. B
a gente precisa ter cuidado na saída dele. Acompanhar PAULO -- Bote milho nisso. Para mim dá mais de
até o fim da propriedade, na hora certa, para ficar na 800. Umas 500 de farinha.
certeza de que ele não fica rondando por aí. EDUARDO — Feijão não tem menos de 700 cuias.
FERNANDO — Ê. O velho não precisa saber de nada. FERNANDO — (quase aos gritos) Amanhã esse ho-
E mesmo era difícil explicar. mem sai! Esse desgraçado tem que desinvadir a terra
da gente! Deixar de roer o que é nosso! Amanhã essa
EDUARDO — E não resolvia nada.
homem sai! Ora se sai!
PAULO — Parece que estou vendo (imita, o velho) EDUARDO —• E que ele não seja besta de fazer algum
"Nunca botei ninguém para fora de terra minha. Só mal ao roçado agora de noite. Não se meta a cavalo do
se for ladrão ou deflorador e não puder casar. Aí sai cão.
mesmo porque entrego à Polícia..." Parece que estou
vendo. PAULO — Até bom da gente dar uma voltinha,
noite alta, ali pelo roçado e pela casa dele. Não é para
FERNANDO — E Simplício enriquecendo nas costas nada não. Só para ele saber que nós estamos na es-
da gente. O cabra até está falante, e mentiroso. Menti- pera, de olho vivo. E se lembrar, bem lembrado, do
roso como diabo. Me fez uma série de lamúrias, as maio- tempo do prazo.
res do mundo. Nunca se viu tanta miséria. A menina FERNANDO - - É. É bom se fazer essa diligência.
mais velha, Ambrosina, não pode sair de casa quando Quando a noite estiver mais alta. Não acredito que ele
lava o vestido. Diz que só tem um.
se meta pelo roçado mas não se pode confiar.
EDUARDO -- E para quê? Para levantar? EDUARDO — Você leva a espingarda e dá um tiro
PAULO — Aquela menina está mesmo no ponto dj bem no terreiro da casa. É um aviso. Dá tenção ao
ganhar o dinheiro dela. De não ser pesada ao pai. E homem da firmeza da gente.
a danada está com uns peitão. Aquilo é material que FERNANDO — (pega a espingarda e o bisaoo, começa
rende muito. a carregar) Vou aproveitar enquanto o velho não chega.
EDUARDO — (rindo) Era o caso até de pagar o Por onde andará esse velho? Diabo! Estou com uma
foro. fome canina.
PAULO — (rindo também) Ah! Teu pai lá... ADELAIDE — (vem pelos fundos, usa calça e blusa)
Vai caçar, agora de noite?
FERNANDO — Tive medo quando ele pediu prazo.
Será que o homem paga, pensei comigo. Depois descon-
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FERNANDO — Vou, vou caçar. FERNANDO — Mistério nenhum.


EDUARDO - - Se for veado, nem precisa ir longe. ADELAIDE — Oxente, como é que você ia caçar sem
Mulher de calça, para mim, é veado. chumbo?
ADELAIDE — Oxentc, e todo veado não é mulher? FERNANDO — Para a caça de hoje, basta o susto.
(ri e dá uma voltinha, anda, devagar, sempre de costas). EDUARDO - - Mas amanhã é bom botar chumbo c
um prego.
FERNANDO — Tenha vergonha! Você não devia usar
calças. PAULO - - Na gaveta da cômoda ainda tem aquela
bala de veado.
ADELAIDE -- Oxente! E qual é a mulher que não
usa calças? FERNANDO — É, amanhã a gente bota a bala.
FERNANDO — Cadê o velho? ){ ADELAIDE — E amanhã o que é que vai caçar?
ADELAIDE — Quem sabe? Andando por aí (põe uma FERNANDO - - Tanta coisa.
perna wo banco, de costas para os primos, olha a sala} EDUARDO - - E nem precisa preparar o sal.
Ivone ainda não botou nem as colheres. ADELAIDE - - Se não querem dizer... Perguntar,
FERNANDO - - Quem fala! Você que não faz nada eu não pergunto. Não dou a mínima.
aqui em casa. Não ajuda em nada. EDUARDO — Não dá nada?
ADELAIDE -- Ora aqui eu até lavo os pratos. Bom ADELAIDE -- (fazendo um volteio) Só dou vontade.
é quando estou na cidade, na casa de titio. Lá sim é E muita...
que não faço nada. E o passadio? Comida da melhor. FERNANDO — Lá vem a velha.
Passeios, cinema, baile. Meus primos são ótimos. Me le-
vam a todas as festas. E minhas primas, umas jóias. ANÁLIA -- (vestindo à m,oda antiga) Boa noite. Já
chegaram todos? (sem esperar resposta) Ivone já botou
FERNANDO — Í!, mas há quatro anos que você não a mesa? Cadê seu Alarico?
sai daqui.
FERNANDO - - Ainda não veio não, mãe. Mas não
ADELAIDE -- Ah! Quer me ver pelas costas? Pois tarda. E nós com uma fome danada.
não vê não. Esse gostinho quem tem são outros (ri).
ANÁLIA - - (examinando a mesa) Ivone não botou
EDUARDO — Os felizardos... a toalha. Nem os talheres.
ADELAIDE — Quem sabe são eles.
ADELAIDE — (rindo) As colheres, mamãe.
FERNANDO — (pondo a espingarda na parede)
Pronto, está carregada. ANÁLIA - - Talheres, minha filha. É o que a gente
educada usa e assim que se diz. Talheres.
EDUARDO — Botou chumbo?
FERNANDO — Botei, por via das dúvidas. ADELAIDE — (rindo) Está certo, mamãe. Estou
ADELAIDE — Que mistério é esse? aprendendo (gritando) Ivone, traz os talheres.
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IVONE — (de dentro) Vou levar agora. ANÁLIA — Por que, minha filha?
ANÁLIA — Ivone esqueceu também os guardanapos. ADELAIDE — (rindo) Ora... Aqui não aparece nin-
EDUARDO — Talheres... guém ... Nem ela sai daqui... Só quem vê Ivone somos
PAULO — Guardanapos... nós mesmos... E que v ê . . . Aqui, entre nós, acho que
ela nem pensa nisso.
IVONE — (chega com as colheres, vai pondo ao lado
dos pratos) Pronto. ANÁLIA - - Sc ela não pensa, nós pensamos. Seu
Alarico e eu. Ainda outro dia falamos muito sobre isso.
ADELAIDE -- Você só trouxe as colheres, Ivone. Es- Um bom casamento, que filha nossa não é para qualquer
queceu os talheres. um. Antes uma boa morte, foi o que dissemos, seu Ala-
IVONE — (olhada oom ódio) É para a sopa, mamãe, rico e eu.
depois eu trago os talheres. ADELAIDE — É. Ivone pode escolher.
ANÁLIA — Falta também a toalha, os guardanapos. ANÁLIA - - Nós ajudando... Nós ajudando, não se
Você é tão esquecida, minha filha. esqueça... A vontade
IVONE — Sim, mãe. ADELAIDE - - (interrompendo) Não sei porque não
ADELAIDE — Mamãe, a senhora não acha melhor acredito muito nesse casamento... Aqui não aparece
botar aquela toalha e os guardanapos que têm o mono- rapaz nenhum... Eu, pelo menos, até agora não arran-
grama de papai? Ou aquela outra de barrinha verde? jei nada.
Tem um conjunto completo. FERNANDO — Pois não julgue Ivone por você. Quem
FERNANDO — Tenha vergonha! Cale-se! sabe se ela não está mesmo na véspera do casamento?
ADELAIDE - - (para os primos) Sempre tive muita ADELAIDE — Rá!
raiva desses guardanapos de barrinha verde. Mamãe, EDUARDO - - Eu estou com palpite que Ivone casa
com eles, fez calcinhas para mim. Incomodavam muito, logo. E noiva ainda esta semana.
bom mesmo é calcinha de seda, que é macia. PAULO - • Eu também.
ANÁLIA — É, Adelaide, acho que fica melhor o toa- ADELAIDE — Está brincando? Está brincando ou
Ihado de barrinha de seda, que é macia. está me escondendo coisa?
ADELAIDE — Alegre e macio. FERNANDO — Ninguém perde por esperar. O desti-
IVONE -- (saindo) Vou buscar lá dentro. Já volto. no, ninguém sabe. »
ANÁLIA — Ivone, até que é trabalhadora, mas é tão ADELAIDE —• Quem, aquela?! Desenxabida daquele
distraída. Às vezes tenho medo quando imagino ela to- jeito? Quem quer? (dá uma volta de corpo, meneando os
mando conta de casa, feito dona. Quando casar... quadris) Vê só, um material desse e até agora não apa-
ADELAIDE — É bem capaz de Ivone demorar muito receu ninguém (ri, maliciosa) Para casar, ninguém...
a casar. EDUARDO — Você precisa casar, para quê?
24 VIRGINIUS DA GAMA E MELO
A M ODELAÇÃO 25

FERNANDO — Pois Ivone vai casar mesmo, Adelaide. EDUARDO Aquele roçado de Simplício, hein,
ADELAIDE •—• (chega>n.do-sc para Fernando) Casar Paulo, acho que dá para mais de mil cuias de milho.
com quem? Quem sabe...
FERNANDO — Ela já encontrou noivo. Até quero PAULO -- Eu estou pensando é nas cabras. Passar
falar com você sobre isso. Para você ajudar c falar com nc leitinho de manhã...
ela. ANÁLIA - - Não sei o que é que seu Alarico anda
ADELAIDE — Falar com ela? fazendo no campo até essa hora. Num escuro destes.
FERNANDO — É homem como os outros, Adelaide.
FERNANDO — Sim. Aconselhar. Sabe como ela é.
E tem mais. É rico, Ivone vai ter tudo — casa, comida,
Acho que não pensa em casamento.
roupa lavada, gente trabalhando para ela.
ADELAIDE — Pensar, pensa. Ela não é doente, é? ADELAIDE — E eu é que vou trabalhar para vocês?
FERNANDO — Você só pensa nessas coisas. Não é Eu que vou ficar me matando na cozinha, cuidando de
isso. É que talvez ela receie sair de casa, deixar o velho, tudo dentro de casa, servindo de criada para vocês!
a velha, nós. A mudança de vida, sabe como é. Vocês que não ganham nada, trabalham sem futuro!
Nunca vocês deram futuro nenhum aqui para casa! Pre-
ADELAIDE - Você não está falando sério. Está é firo servir a homem, de outro jeito.
escondendo coisa. O negócio é outro. Quem é o noivo?
PAULO — Com o leite das cabras, a gente pode até
FERNANDO - - Aí é que está a coisa. Ela não faz fazer um queijinho. Há quanto tempo que não sei o
idéia. Ele é que falou comigo outro dia. que é um queijinho.
ADELAIDE — Quem é? EDUARDO — E queijo dá uma sustância, homem.
FERNANDO — Bonifácio. PAULO — Aquele milhão todo aqui no paiol. Nunca
ADELAIDE -- (espantada) Bonifácio?! (às gargalha- mais se viu esse paiol cheio. Agora, acho que a gente
das) E aquilo dá média de homem? Tem graça! Boni- vai ver.
fácio?! Só se Ivone estivesse doida! Não podia arranjar EDUARDO — Ora, se vai. E o feijão? Vai dar para
outro mais triste não? o ano todo e muito para vender. Estou precisando de
muda de roupa.
FERNANDO - - Bom, ele não ê essas coisas. Mas é
rico, trabalhador, homem de casa. Não é mulherengo. Dá FERNANDO — Mana, tenha calma. Essas coisas todas
um bom marido. se arranjam. A questão é se ajeitar esse casamento de
Bonifácio. Eu posso até lhe arranjar umas coisas. Você
ADELAIDE - - Bom marido só para você. Para mim, passar uns tempos na cidade. Não pense que você vai
Deus me livre. E Ivone também. Sabe duma coisa — sair prejudicada ajudando esse casamento. Nada disso.
eu acho que ele não dá média. Eu estive falando com Bonifácio, como lhe disse. O ho-
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A MODELAÇÃO 27
mcm está decidido. Quer casar. E ajuda, vai ajudar mes-
mo. Sabe como é, a gente precisa dumas coisas, você, ADELAIDE — Í!, arrisco, mas também me arrisco a
eu. Eu pensei também em você, mana. ficar empatada aqui a vida toda no lugar de Ivone, to-
ADELAIDE — Pensou, como? Em que eu ficar aqui mando conta da casa de vocês, uns marmanjos que não
para servir de criada para você, não foi? Que Ivone dão futuro nenhum, trabalhando, trabalhando sem ren-
saía e eu ficava, não foi?! Tem graça! Está muito enga- der nada. Na lavoura de vocês não se vê nada. Na de
nado! Eu não estou para isso não! Simplício, um morador, um simples morador, é aquela
FERNANDO — Não, pensei nada disso não. Pensei beleza, É uma vergonha. Vocês não dão mesmo para
em melhorar você. Lhe dar uns dinheiros para você pas- nada.
sar uns tempos na cidade. Esse negócio de tomar conta PAULO — Paga o foro nada. Paga não. Não paga
de casa, a gente arranja por aqui mesmo. Bota-se uma nem mesmo que possa, Eduardo. Do jeito que estou e
pessoa para fazer o serviço. vamos combinar logo isso com Fernando — mesmo que
ADELAIDE — E quem paga? Você, esses outros? Bo- ele possa pagar, não se recebe. O negócio é botar para
nifácio?! fora. Ou ele ou nós.
FERNANDO - - Dá-se uni jeito. Se a gente faz esse FERNANDO — As coisas vão mudar, mana. Vão
casamento, pode ficar certa que se dá um jeito. Você começar a mudar logo de amanhã em diante. Amanhã
tem o que estou lhe dizendo — uns dinheiros, uns tem- você não pode mais comparar a lavoura de Simplício
pos na cidade, vestidos, essas coisas. Basta se fazer esse com a nossa. Não vai poder não, mana.
casamento. Confie em mim. Se estou dizendo, é porque
EDUARDO — Sempre tive vontade naquela terra. Era
sei. Por isso é que estou pedindo para você ajudar, ajei-
o diabo. A gente trabalhando, trabalhando o ano todo.
tar as coisas junto a Ivone.
e não dando nada. Lá em cima Simplício, um morador,
ADELAIDE - - E quem garante que vai s»er assim? um simples morador, lucrando tudo que a terra dava.
Você não está me enganando não?
ADELAIDE — Por quê?
FERNANDO — Estou não, mana. Estou falando sério,
a verdade. Pode confiar. FERNANDO — Você amanhã vai saber. Vai ser o
ADELAIDE -- E se eu ajudar e depois você me der primeiro sinal de que as coisas vão mudar.
o bolo? ADELAIDE — Quero ver.
EDUARDO — Bom é terra como aquela que não pre- FERNANDO — Pois vai ver. E acreditar no que vem
cisa mais a gente trabalhar. Será que Simplício paga o depois, no casamento, cm tudo. As coisas vão mudar,
foro amanhã? mana.
FERNANDO -- Dou não, mana. Juro que não dou. PAULO — Enquanto eu juntava o milho peco, as es-
Pode confiar em mim. E mesmo que lhe custa dar essa pigas mirradas, Simplício ia levando cestos e mais cestos.
ajuda? Você está fazendo nada. Assim até arrisca ganhar. Levando o que era da gente. Levando da nossa terra o
que era nosso. E a gente de braços cruzados.
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ALARICO — (chegando pela porta do lado, à direita, do leite que sobrar. E vai sobrar muito! Tem muita vaca
batendo os sapatos na entrada) Dona Anália? Cadê dona parida, cada uma beleza, dona Anália!
Anália?! ADELAIDE — Mocinha deu cria?
ANÁLIA — Pronto, seu Alarico. FERNANDO — Cachorra!
ALARICO — Já chegaram todos? Então mandar bo- ALARICO — Se deu, minha filha?! Logo dois, duma
tar a janta. vez. Vaca de fibra. Conheci logo quando chegou, mimosa
ANÁLIA — (Para dentro) Ivone, bota a janta. Seu que era.
Alarico já chegou (encaminhando^-se para os fundos) EDUARDO — Agora a coisa está ficando mais séria.
Vou dar uma ajuda. O gadão agora está ficando gêmeo...
ALARICO — Não precisa não, dona Anália. Fique PAULO — E esse leite todo para onde irá? Ninguém
logo por aqui. O pessoal da cozinha traz tudo (sentando dá cabo de tanto leite. É açude de leite.
numa cadeira) Estava lá no curral, vendo o gado, dona EDUARDO — Açude o quê? Isso para mim, é mar
Anália. Gadão. Gadão mesmo. Faz gosto. Nunca vi tanta
de leite.
vaca parida.
ALARICO — Dei uma volta geral no campo (dirigin-
FERNANDO — (para interromper) Bênção, pai. do-se para a mesa, fica na cabeceira) Vamos sentando.
ALARICO — Bênção para vocês todos. Está tudo aben- Dona Anália, aqui. Vocês tomem os seus lugares.
çoado. Tudo aqui é abençoado. Gente, terra e bicho. ANÁLIA — A toalha não veio, nem os guardanapos.
Nunca se viu terra para dar tanto e gado mais parideiro. Só indo lá dentro.
É leite muito, dona Anália. Acho que devemos começar
logo a fazer queijo. ALARICO — Não se preocupe, dona Anália! O pessoal
da cozinha faz tudo. (aos gritos) A janta! Bota a janta!
ADELAIDE — E os leiteiros não levam todo o leite, (em tom regular) Gostei de ver o açude. Tem muita
pai? água nova. Precisamos fazer uma pescaria logo, seu Fer-
ALARICO — Podem o que, minha filha. É leite de- nando. Aquilo está cheio de peixe. Vi o peixe se bolindo,
mais. Só vendo. Não têm mais a quem vender na ci- saltando aperriado com a água nova. Até curimatã. Cada
dade. A gente vende tudo que eles querem e ainda vai uma gorda, enorme, deste tamanho (abre os braços) bri-
sobrar à vontade. Leite grosso, de gado bom, engordado lhando em cima d'água. Barriga ali tem mais de um
nesse pasto que está uma beleza. Leite ótimo para fazer palmo. Curimatã de era, neste tempo tudo ovada. Pre-
queijo. Vamos começar logo amanhã, dona Anália. Bo- cisamos fazer uma pescaria. Convidar o pessoal da re-
tar esse pessoal da cozinha para trabalhar. Ora, já se dondeza, chamar os pescadores de fama. Antoninho trata
viu! Um bando de negras enchendo a cozinha, comendo disso. Em menos duma semana ele enche isso aqui do
os meus pirões o sem fazer nada. Botar esse povo para pescador. Para o sábado, está bom no sábado, não é,
trabalhar, dona Anália! Amanhã é tudo fazendo queijo Fernando?
A MODELAÇÃO
30 VIRGINIUS DA GAMA E MELO
EDUARDO — Esse vem muito.
FERNANDO — É, sábado. Está bom. ADELAIDE — Por quê?
EDUARDO — Também acho. É depois da sexta-feira EDUARDO — Esse Antoninho, há seis anos, que e"
e antes do domingo. cruz, ali na beira do açude. Deu uma coisa nele e morreu
IVONE — (trazendo as xícaras da cozinha) Eespeite. dentro dágua. Vem muito fazer essa pescaria. Só se fôv
ALARICO — Minha filha, apresse aquele pessoal da pescaria de fantasma.
cozinha. ADELAIDE — E não é mesmo?
IVONE — Sim, papai. ALARICO — Só de peixe, o ano passado, tive mais
ADELAIDE — Ivone, você nem lembrou ao pessoal da de trezentos contos. E se deu peixe a essa pobreza toda,
cozinha que botasse a toalha de barrinha verde e os não foi dona Anália?
guardanapos. ANÁLIA — Se foi, seu Alarico. Não faltou peixe
IVONE — Até você? para ninguém.
EDUARDO — Nem dinheiro para nós (para Adelaide)
ANÁLIA — De fato, está faltando...
Você até fez aqueles dez vestidos de seda.
ALARICO — (interrompendo) Ali também tem muita ALARICO — Antoninho está ficando rico à minha
cará. Traíra, não se fala. Sempre fiz meu pé de meia custa. Só o que ele ganha na pescaria da gente dá para
naquele açude. Ainda o ano passado Antoninho me trou- passar o ano todo, de lorde, e ainda juntar. E do jeito
xe mais de 60 pescadores e para se despescar o açude que aquele moleque é esperto. Dizem que só passa do
se passou mais de uma semana. Muito peixe. Traíra de bom e do melhor.
seis palmos e curimatã de mais de dois palmos de barriga. EDUARDO — É, mas há muito tempo que não prova
«^—•£> EDUARDO — Isso, para mim, já é pirarucu. nada.
ALARICO — Dona Anália, não deixe de mandar PAULO — Também... Ele nem se move com aquela
comprar a cachaça para os pescadores. Duas ancoretas, ciuz enterrada bem no meio do peito.
pelo menos, para quebrar a frieza da água... Seu Fer- IVONE — (chega com o bule de café, vai servindo)
nando, não deixe de mandar o recado amanhã a Anto- O resto já vem.
ninho. Quero falar com ele... ALARICO — (sendo servido) Cadê o açúcar?
FERNANDO — Sim, pai. Mando logo cedo. IVONE — Já tem doce, papai.
ALARICO — Mande por aquele moleque de Batisti- ALARICO — Gostei muito de ver a roça lá de cima
nha que é um menino vivo danado. Diga que pegue a Está uma beleza! Nunca vi milho daquele tamanho e
burra que está no cercado do Maracajá. Vi a bicha hoje. não tem falha. Espiga inteirinha, de ponta a ponta.
Está gorda que faz gosto. Também nunca mais traba- ADELAIDE — Só se foi na roça do Simplício. Por-
lhou. Para dizer a Antoninho que dê um salto aqui logo, que na de vocês...
que quero falar com ele.
32 VIRGINIUS DA GAMA E MELO A MODELAÇÃO 33

EDUARDO — Você diz isso agora. Mas amanhã mesmo satisfeito. A terra está dando muito. Por isso que nin-
eu vou lhe mostrar uma roça nossa tão boa, tão boa guém quer sair daqui.
que você vai se espantar. EDUARDO — Quer nada! E não ficando ninguém.
ADELAIDE — Deram para feitiçaria? Só tendo ea- Só nós, de bestas.
' timbó. Era só o que faltava. ADELAIDE — Eu, porque não encontro um homem
PAULO — Catimbó era no que estávamos vivendo. que me leve.
ALARICO — Ali nós temos feijão para mais de duas PAULO — Homem só leva para a cama.
mil cuias. E contando com as outras roças, todas muito ADELAIDE — Eu vou para tudo. O negócio é sair.
boas, vamos entrar mesmo na fartura. Estou pensando PAULO — Para a cama, não precisa sair, ir longe.
em que este ano, só de feijão, dona Anália, vamos ter Por aqui mesmo se arranja.
mais de dez mil cuias.
ADELAIDE — Até agora não vi nenhum.
EDUARDO — É feijão que nem ladrão acaba.
PAULO — Pois olhe como eu estou. Só por estar
PAULO — Só quem pode acabar é o gadão dele. junto de você.
ALARICO — Casa de farinha, nós temos que man- ADELAIDE — (olhando) Ainda não está boa não.
dar fazer outra logo. A mandioca está cobrindo tudo.
IVONE — (chegando com duas travessas) Safadeza!
Cada plantio que é uma beleza. Aquela casa de farinha
não dá mais para o serviço. ÍJ mandioca muito para ALARICO — Ponha aqui, dona Anália. Esse cuscus
uma casa só. Ano de fartura, dona Anália, ano de far- está bom?
tura. IVONE — Bom mesmo, papai. E a farinha é nova,
ANÁLIA — Ê bênção, seu Alarico. comprada a semana passada. E olhe aqui os pombos
assados. Assados no espeto.
ALARICO — Só sendo, dona Anália. Isto é terra
abençoada mesmo. Nunca se viu terra nenhuma dar tanto EDUARDO — Pombos! Isso não é nem rolinha, quanto
benefício. mais pombo! Isto tudo é passarinho vagabundo!
EDUARDO — Aos outros. Porque para nós só dá can- ADELAIDE — Tem gente aqui que queria pelo me-
seira, suor, e mais nada. nos uma pomba.
PAULO — Vai ver que pode dar muita coisa ainda. PAULO — E tem gente que já tem. Querendo...
Não se desengano, homem. Se dá aos outros por que não ADELAIDE — Isso é que é ser presunçoso (olhando)
dar a nós? E a terra pode dar aos outros? Isso... Oxente.
EDUARDO — Acho que não.
PAULO — Dá para fazer.
ALARICO — Isto aqui é tão abençoado, que vive todo
mundo bem e feliz, na fartura. Os moradores estão lu- ADELAIDE — É o que você pensa.
crando, dona Anália, que é uma admiração geral. Tudo ALARICO — ÍJsse pessoal da cozinha faz cada
34 VIKGINIUS DA GAMA E MELO A MODELAÇAO 35
A gente diz uma coisa e ele é oito ou oitenta. A vida e do melhor. Filha minha não se apresenta como mise-
era sobrar leite no jantar às pampas. Como estou man- rável na casa dos outros.
dando dar um bocado de leite aos porcos, o pessoal da ANÁLIA — Está certo, seu Alarico.
cozinha bota todo duma vez e nem uma gota no jantar.
Veja isso, amanhã, dona Anália. Tudo tem sua ordem. EDUARDO — Só que ela não vai encontrar esse Teo-
Mas a verdade é que os porcos estão se dando muito bem dorico, que já virou poeira.
com o leite. Aquele barrão seu, minha filha, está uma PAULO — (mostrando a Adelaide) Olhe como esse
maravilha. É cada barriga de fazer gosto. Andorinha, pedaço de pomba entra nesse cuscus (mexe no prato).
anteontem, pariu 28 bacorinhos. ADELAIDE — Só acredito vendo.
EDUARDO — Esse barrão é fantástico mesmo. Ima- IVONE — (carregando alguns pratos da mesa) Que-
gine que o mês passado essa mesma Andorinha pariu rem mais café?
17 bacorinhos. Barrão desse não tem quem agüente.
ALARICO — Precisa mais, não. Por falar em café,
ADELAIDE — É. Tudo que ê meu é assim. seu Eduardo, meus parabéns, vi muito café bonito em
PAULO — (olhando-a) É, está se vendo. sua roça. Roça bem trabalhada para dar um café da-
ADELAIDE — Vontade também consola. quelo jeito.
ANÁLIA — (para Ivone, de pé) Senta, minha filha, EDUARDO — É mesmo. E trabalhada de noite, tio,
Não se incomode com a mesa não. O pessoal da cozinha quando ninguém vê.
cuida de tudo. FERNANDO — Fale direito com o velho.
IVONE — Eu sei, mamãe. Mas não quero nada agora
PAULO — Se quiser, pode ver hoje. Quando a gen-
não. O meu já está lá dentro.
te sair, eu volto.
ANÁLIA — Menina esquisita, essa.
ADELAIDE — Estou curiosa.
ALABICO — Acho, dona Anália, que precisamos man-
ALARICO — Já está na hora da gente agradecer a
dar essa menina passar uns tempos na cidade, lá no com-
padre Teodorico. É bom para desarnar, se distrair. Deus a refeição de hoje. (Benze-se e todos da mesa, tam-
bém Ivone que vem chegando, depois levanta-se em pri-
Aquelas meninas de Teodorico são umas meninas sérias,
meiro lugar) Pois é, seu Fernando, não se esqueça de
de respeito.
mandar o recado a Antoninho, logo de manhã... Vou
EDUARDO — Essas "meninas", hoje, não saem mais para o quarto que andei muito hoje... Boa noite a to-
nem de casa. dos... Bênção também para todos...
ANÁLIA — Religiosas, muito religiosas, seu Alarico. ANÁLIA — Também vou para o quarto fazer as ora-
ALARICO — Pois é, dona Anália. Amanhã mande ções... Deus vos abençoe...
logo preparar as roupas dessa menina para ela ir passar ADELAIDE — (para Ivone que apaga um dos am-
uns tempos no compadre Teodorico. Quero tudo do bom ãceiros) Pode deixar o outro, que depois eu levo, Ivone.
36 VIKGINIUS DA GAMA E MELO
A MODELAÇÃO 37

FERNANDO — (pega o. espingarda, o chapéu) Vamos ALARICO - - Para mim tinha gente... (V m até a
indo. Já está uma hora boa. porta, examma-a, passa, pelos dois deitados) Tem nin-
guém não... A porta está fechada... Foi pesadelo
EDUARDO — É, está bom mesino. meu... Podia jurar que tinha gente... Pesadelo... Com
PAULO - - Vamos. Para não ficar muito tarde. Eu certeza foi aquela galinha gorda que me deram no jan-
até que não estou bem. Estou com uma moleza no corpo. tar. Esse pessoal da cozinha não devia fazer comida pe-
sada para o jantar... Também galinha de cabidela e
EDUARDO — Cabra mole é isso mesmo. Na hora, pão de ló depois... Tem quem agüente?
quando se vai ver, não dá para nada. Se quer ficar,
fique.
PAULO — (acompanhando os outros) Se piorar, eu
YOltO.

ADELAIDE — (fechmdo <a porta, quando eles vão


saindo) Vou passar a tranca. Quando voltarem, batam
(depois que fecha a porta, volta-se, olha a sala toda) Es-
tão todos recolhidos. Não tem mais nenhuma luz acesa
(apaga o oandeeim e <a sala mergulha no escuro)
Logo uma claridade branca, muito leve.
ADELAIDE — A lua está bonita hoje.
(Vê-se o vulto de Adelaide e logo o de Paulo —
A porta abrindo)
ADELAIDE — (em sussurro). Feche a porta. Com a
tranca. Está aí junto. (Juntmn-se os vultos)
ADELAIDE — Tenha juízo... No chão... No chão
é melhor... (Deitam-se os vultos) Devagar... Só
atrás... Atrás... Devagar... (suspira)
(Ouvem-se passos — pela esquerda aparece um
vulto)
2' ATO
"A mesma cena. Adelaide está perto da porta que dá
para o alpendre, usando oalça e blusa. Paulo chega pelo
terreiro, sem enxada, rifle na mão."
PAULO — Está esperando quem! (entra, abraça
Adelaide)
ADELAIDE - - Tenha juízo (solta-se, Paulo alisa-a pe-
las costas). Doido.
PAULO — Quem fica sossegado com tanta beleza?
ADELAIDE — Nada de novo? Estão lá ainda?
PAULO — Estão. Estão todos lá e chegando mais.
ADELAIDE — Não sei em que vai dar isso. Vou bus-
car seu almoço.
PAULO — Vá, que eu estou morrendo de fome.
ADELAIDE — Também... Mais de cinco horas. Para
quem saiu às nove. Isso até que é hora de jantar (sai)
PAULO — (encosta o rifle na parede, tira o chapéu,
bota no cano, enxuga com a manga o swor do rosto) Ah!
Negócio danado! Terra amaldiçoada! Quando a gente pen-
sa em melhorar, um negócio destes!
ADELAIDE — (trazendo um prato feito que põe na
mesa) Está aí.
PAULO — (sentando no banco) Só tem isso?
ADELAIDE — Queria galinha assada? Se não fosse
Ivone que mandou aquela saca de feijão, nem isso tinha.
42 VIRGINIUS DA GAMA E MELO A MODELAÇÃO 43

Vocês estavam passando na rapadura com farinha. B remendos, anda com um jeito orgulhoso como se aquiU>
olhem lá! A rapadura está se acabando. fosse fazenda estampada.
PAULO - - (mexendo oom a colher) É o diabo. A ADELAIDE — São decentes. Onde foi casa é tapera.
gente quase que não lucrou nada daquela roça. Também Vocês é que não têm jeito. Só dão para andar do jeito
você ficou um tempão na cidade, gastando. Vendo os que andam. Se você usasse roupa de alfaiate, paletó ou
homens. jaquetão, bem cortado, em menos de dois minutos esta-
va todo desmantelado. Mondrongo não se veste como
ADELAIDE - - Limpando a vista. Deixei muita gente
rapaz de praça. Ficava logo todo cheio de dedos, sem
doida por mim.
saber onde botar o corpo.
PAULO -- Por você ou por aquilo?
PAULO — Está aí uma coisa que sei e você sabe
ADELAIDE — Sei lá. Um material como este (dá uma que sei — onde botar o corpo.
voltinha)
ADELAIDE — Só dá para isso.
PAULO — Se a gente tivesse empregado o dinheiro
PAULO — E você quer outra coisa?
melhor, não estava desse jeito hoje. Foi um desastre sua
invenção de ir para a cidade só para gastar dinheiro. ADELAIDE — Não se trata disso. O que se trata é de
ADELAIDE - - Não gastei um tostão do seu. educação, elegância. Isto que papai e mamãe têm e vo-
cês não sabem nem o que é. Também você nunca foi na
PAULO — Do meu, não, do de todos. Tivesse empre-
cidade, nos lugares decentes. Quando vai é na feira,
gado aquele dinheiro todo aqui e a coisa era outra.
tomar cana com as sujeitas.
ADELAIDE - - Outra? Para que? Para tomarem? PAULO -- Está aí. Até que nunca mais precisei. Es-
PAULO — Lá isso é. Mas era diferente. De qual- tou passando no bom.
quer maneira a gente estava com um pé de meia. Dinhei- ADELAIDE — É, mas vivia gastando dinheiro com
ro dá para fazer muita coisa. Até para resolver isto. A elas. Dinheiro que papai lhe dava.
questão é saber trabalhar.
PAULO -- Seu pai nunca me deu dinheiro. Ê coisa
ADELAIDE — Justamente o que vocês nunca soube- que ele não usa há muito tempo. Se eu não me virasse.. .
ram : trabalhar. O negócio de vocês era só cavar, cavar, ADELAIDE — Pois é. Pior ainda. Tirava de nós todos.
plantar onde não dava, botar semente em terra morta
Nunca vi nada do trabalho de vocês. Trabalho o ano PAULO — E você não gastou tanto dinheiro na ci-
todo e depois, cadê? Nadinha! O ano todo nessa comida dade? Esse tempo todo que passou lá foi às custas de
e nem roupa para mudar vocês têm. Papai e mamãe an- quem? Recebia dos homens?
dam daquele jeito. Não sei como se arrumam com aque- ADELAIDE — Dos homens? Você é besta mesmo. Ho-
las roupas puídas, remendadas. mem não paga por essas coisas. Homem paga é mu-
PAULO - - E o tio, quando sai por aí, segurando 03 lher. Para nós é diferente — é festa, cinema, sorvete, jan-
trapos, parece que saiu do alfaiate. A tia, com aqueles tar, presente, sabe lá o que é isso. Passeio de automóvel,
44 VIRGINIUS DA GAMA E MELO A MODELAÇÃO 45

então, nem se fala. Ali se goza mesmo. Você quer saber a filha dele, na zona, naturalmente pagando a pobre com
duma coisa? Eu, lá quase que não tinha despesa ne- o dinheiro do pai.
nhuma. Até na roupa, bem que eu já estava me fazen- PAULO — Menos eu. Só se foi Fernando ou Eduardo.
do. Sabe como é — um material como este (dá uma vol-
ADELAIDE — Você sabe que foram os dois, safado.
tinha) Tudo doido! E quem experimentava, só queria
E vá logo me tirando dessa história de dinheiro rouba-
repetir.
do. Porque roubado foi. Tudo que era do homem passa-
PAULO — Safada! ram nos peitos, até a filha.
ADELAIDE — Agora. Depois vem atrás de mim. Pois, PAULO — E você estava no mesmo lugar dela, se
olhe, vou lhe dizer uma coisa para você tirar logo duma não fosse isso, mal agradecida. Aliás vocação não lhe
vez essa idéia de dinheiro da cabeça. Da roça que vo- falta.
cês roubaram de Simplício, eu não recebi um tostão. Não ADELAIDE — Vê se eu me passo nunca para isso. Sei
quis. Dinheiro roubado. Deus me livre! fazer render meu capital. Quero somente que fique sa-
PAULO — Dobre a língua. Dinheiro roubado, não. bendo que eu não gastei nem um tostão desse dinheiro
Simplício não pagou o foro. Atrasado dois anos. Não roubado. O que gastei na cidade, recebi de Fernando.
tinha direito. A lavoura era nossa. O que é da terra é PAULO — De Fernando?! Onde ele roubou?!
da terra. ADELAIDE — (coando em si) Foi outro negócio.
ADELAIDE — Deixassem o homem lucrar que ele pa- PAULO — Aqui não teve outro negócio nenhum. Não
gava tudo. Mas a ambição foi maior. Quiseram tudo se vendeu mais nada, não houve rendimento nenhum.
duma vez. Botaram o homem para fora, a filha mais ve- Onde ele roubou?
lha saiu quase nua. Ficaram apreciando e roubaram ato ADELAIDE — Um negócio... Eu vou dizer... Mas
as cabras. Deixaram o homem sem nada e depois tange- você jura que não diz a ninguém?... Jura?...
ram para fora. Levaram até o fim da propriedade e
quase passam o dia todo lá com medo que ele viesse fa- ALARICO — (vem dos fundos da casa, um bacamar-
lar com o velho. te bôoa de sino) — Não sei o que esses cabras estão pen-
sando. Estão pensando que isto aqui é a casa de Noca?
PAULO — Cachorra mal agradecida! Se não fosse Onde já se viu deixar o eito?! Um cercado sem homem
isso, você, não sei onde estava. Os pirões deste ano todo, para trabalhar! O resto tudo trabalhando e ali aquele
os pirões que você comeu, mal agradecida, vieram dali. magote de bestas sem fazer nada! (senta num tamborete,
ADELAIDE — Se soubesse, não tinha comido. Mas de- longe dos outros, esgaravatando o cano do bacamarte)
via ter imaginado que uns vagabundos, uns burros como Este prego precisa ser mais socado. É melhor botar pri-
vocês, que não sabem trabalhar, que não sabem fazer meiro este, que é maior. Ou essa ponta de faca? Essa
nada com a terra, só podiam viver mesmo às custas dos aqui já furou gente.
outros. Roubaram o homem e depois ainda andaram com PAULO — Que tem ele?
46 VIRfíINIUS DA GAMA E MELO
A MODELAÇÃO 47
ADELAIDE — Sei lá. Desde de manhã, quando você
saiu, que ele está assim. Mexendo nesse bacamarte, ti- um serviço bem feito. Quero ver negro cm terra minha
rando e botando coisa. Não sei onde arranjou esse bicho. com topete, (olhando o cano do bacamarte) Aqui ainda
cabe muita coisa. De pólvora está bom — meio cano. Mas
PAULO — Esse danado podo é pipocar com ele. Será quero entupir até a boca. Assim é que fica bom para
que tem pólvora? destambocar esses cabras safados. Comendo meus pirões
ADELAIDE — Tem. E pólvora muita. Êlc tirou do de graça, sem trabalhar. Vagabundos!
bisaco de Fernando. A primeira vez que vi ele estava ADELAIDE — Está furioso.
botando a pólvora dentro do bacamarte. Botou muita,
PAULO — Sempre esteve.
um pacote.
PAULO — Com certeza também tirou espoleta, ADELAIDE — Mas, agora, com esse movimento, piorou.
ADELAIDE — Na certa. ALARICO — Seu Paulo, os cabras já estão trabalhan-
do?
PAULO — É um perigo com esse negócio. Esse ba-
PAULO — Ainda não, tio. ^/
camarte pode pipocar a qualquer hora em cima da gen-
te. Um homem nesse estado... Um homem assim não ALARICO — (aos gritos) Meta a pcia! Meta a peia!
pode usar uma arma. E logo uma dessas... É preciso Peia foi feita mesmo para cabra safado! Meta a peia
tomar. sem pena! Meta a peia! Cabra safado só trabalha bom
ADELAIDE — Não tem quem tome... Já fizemos tu- mesmo no relho! (aaminha para o alpendre, bacamarte
d o . . . Eu, Eduardo, todo mundo já pediu a ele para em punho) Quero essa canalha toda no cito! No cito e
entregar a arma. Não entrega a ninguém. O almoço foi na peia! Peia é melhor que tem para amansar cangote
uma agonia com essa coisa horrível em cima da mesa, duro de negro atrevido! Peia neles, pessoal! Peia que
apontando para a gente. Ninguém comeu. essa gente está ficando preguiçosa é de comer meus pi-
rões de graça! Peia neles! Muita peia!
PAULO — É uma coisa horrível.
PAULO — O homem está com a gota.
ADELAIDE — Passou o dia todo botando e tirando
coisas nesse cano. Tem de tudo — prego, pedaço de fer- ADELAIDE — É capaz de ter um negócio no cora-
ro, ponta de faca, até vidro. Um tiro desses numa pessoa ção. Morrer de raiva,
deixa tudo desmantelado. PAULO — Morre não. Esse aí é dos que duram cem
ALARICO — Ainda cabe muita coisa. Para essa gen- anos.
te que não quer ficar no eito é bom encher até a boca. ADELAIDE — Bem que ele anda meio cansado.
Ora, aonde já se viu isto?! (aos gritos) Querer deixar PAULO •— Já ia me esquecendo... Como foi o ne-
o eito?! Logo aonde?! Em propriedade minha! Será que gócio que você ia me contar... Esse dinheiro que Fer-
estão pensando que eu sou boi do eu branco, agora man- nando lhe deu, de onde veio?
dado por cabra de peia?! Mando tudo para o tronco!
ADELAIDE — Você jura que não diz a ninguém...
Já mandei chamar Caçulinha e os cabras. Vamos ter aqui
Jura?
48 VIRGINIUS DA GAMA E MELO A MODELAOAO 49

PAULO — Juro. do mundo. O homem só pensa mesmo em guardar di-


nheiro. Passa toda privação. É um doente.
ADELAIDE — Jure, então.
ADELAIDE — Doente, que nada! Homem de juízo, ga-
PAULO -- (í)ewae?jcío-se)Está jurado.
nhando e juntando, que é bom. Ivone está com o futuro
ADELAIDE —• Pois, agora, eu conto. Não se lembra do garantido. E se ele morrer, então, viúva rica está ali
casamento de Ivone, que foi uma coisa assim de uma para gozar a vida.
hora para outra? Que não houve noivado, nem nada? Foi PAULO — Se ela durar até lá. Com filho todo ano,
tudo a toque de caixa, não foi? Pois bem, o dinheiro veio
se acabando na criação e no leite, não acredito muito.
dêsso casamento. Ouvi dizer que menino dele só toma leite da mãe. Tenha
PAULO — Quem deu? Bonifácio? ou não tenha, o peito tem que dar.
ALARICO — (do lodo de fora) Peia neles! Peia neles! ALARICO — Peia neles! Peia neles!
ADELAIDE — Só podia ser ele. Quem mais podia dar ADELAIDE — Criança nova se alimenta do leite da
ou tinha dinheiro? mãe, todo mundo sabe disso. Gosto muito que Ivone te-
nha filho todo ano. Senão me tinha ficado um remorso,
PAULO — Era para o enxoval? Não vi Ivone com um remorso tão grande que durava a vida toda.
enxoval nenhum. Vi ela sair daqui com a roupa do cor-
po. Até toda molhada, tanto era o choro. PAULO — Qual era?
ADELAIDE — É que no tempo em que ajeitei o casa-
ADELAIDE — Enxoval, que nada! Aquilo era dinhei- mento de Bonifácio com Ivone, para mim, ela não dava
ro para fazer o casamento! Para fazer Ivone aceitar Bo- média de homem. Isso era uma coisa que me agoniava
nifácio! Deu trabalho... Foi um ganho merecido. aqui no íntimo.
ALARICO — Lote de negro comendo meus pirões de PAULO — Mas assim mesmo ajeitou.
graça! Só no relho!
ADELAIDE — Claro. Tinha que ser. Era para o bem
PAULO — Foi mesmo merecido. Receber dinheiro dela. Ela ia ficar rica, Além disso era uma boca de me-
para ajeitar o casamento da irmã. nos aqui em casa. Diminuía o sacrifício. Só aceitei o ne-
ADELAIDE — Foi para o bem dela. Hoje, está muito gócio com Fernando porque ele me disse isso. E era jus-
melhor do que nós. to. Tão justo que Ivone não queria o casamento, não
queria, não dizia porque, era uma repulsa, um negócio.
PAULO — Vivendo com Bonifácio? Trancada em
Acho que era por causa do noivo, de Bonifácio. Nisso
casa, metida com as negras, vivendo quase como bicho
dou razão a ela. Aquilo não é figura para entusiasmar
ADELAIDE •— Rica, na boa casa c no bom passadio. ninguém. Ora, entusiasmar, para moca nenhuma agüen-
PAULO — Outro dia, vi Ivone. Magra, acabada, os pei- tar. E agüentar junto, numa casa, o tempo todo, dor-
tos murchos, nem parece a que vivia aqui. Ali na casa mir junto, Virgem Maria! Até dou engulho, só de pen-
de Bonifácio, todo mundo sabe, a miséria é a maior sar. Melhor dormir com o tinhoso.
50 VIRfílNIUS DA GAMA K MELO
A MODELAÇAO 51

PAULO — Mas vocês convenceram Ivone. ALARICO — (aos gritos, fora) Peia neles! Só no
relho!
ALARICO — (aos gritos, de fora) Peia neles! Peia
neles! PAULO — Fernando lhe deu quanto?
ADELAIDE — Recebi cinqüenta. Tudo em notinha
ADELAIDK — Convencemos, convencemos porque era
nova. Uns dinheiros lindos.
para o bem dela. A coisa até andava difícil, ela naquela
resistência. Depois me lembrrei do que Fernando tinha PAULO — Recebeu logo, antes do casamento?
me dito, aquilo mesmo que tinha me convencido para ADELAIDE —• Claro. O negócio foi pelo compromis-
aceitar o negócio. Aí disse a Ivone. Foi tiro e queda. Fa- so. Garantido, não tinha dúvida. E a gente deixava Ivo-
lei de tarde e, de noite, na hora da janta, ela me disse ne enganar a gente, você acha? Bonifácio podia confiar.
que aceitava o casamento. PAULO —• Ora, se podia. Uma dupla dessa, traba-
PAULO — O que foi? lhando junto. E Fernando, quanto recebeu?
ADELAIDK — Não já lhe disse? Que era para o bem ADELAIDE — Cinqüenta também. O negócio foi ra-
dela, mas que ela também visse a situação - - casando, chado. Ele acertou e eu trabalhei muito. Ivone não ti-
era uma boca de menos aqui em casa, uma carga que se nha sossego. Era de manhã, de tarde, de noite, eu ali,
tirava. B ela visse que casamento estava muito difícil, em cima do assunto. E não conseguia nada. Até que veio
faltando rapaz, e para ela, então, que não saía de casa, aquela inspiração.
que nunca ia à cidade, que não conhecia ninguém... PAULO — Foi você que botou a empregada aqui?
Moça pobre, sem nada, perdida aqui nestes cafundós de ADELAIDE — Eu, o quê? Recebi meu cobre e ganhei
Judas... o mundo. Fazia parte do trato. Acertei logo com Fer-
PAULO —• Você disse isso a Ivone? nando que não ia tomar o lugar de Ivone e servir de
empregada para vocês. No princípio, eu nem queria o
ADELAIDE — Claro que disse, imbecil! Parece que ó
casamento com medo disso. Mas ele me garantiu que saía
idiota. Quantas vezes quer que repita?! Onde já se viu! dinheiro e ele botava empregada e eu ia para a cidade.
Disse e disse bem dito e o resultado foi o melhor possí- Mas o dinheiro não deu nem para nada. Acabou logo.
vel. Completo, ela aceitou logo. O resto foi somente pre-
parar o casório. Mas eu sempre com aquele remorso, PAULO — Será que você fez alguma caridade?
aquela idéia que Bonifácio não dava média de homem. Ê ADELAIDE — Você é besta!
verdade que Ivone, pelo jeito, não pensava nessas coisas. ALARICO — (aos gritos, fora-) Peia e chumbo neles!
Mas sabe como é — aquele remorso não me largava. Só Só no relho!
me desafoguei mesmo quando soube que ela estava grá- PAULO — E Fernando? Que fez do dinheiro dele?
vida. E agora é todo ano. Está aí como a gente se engana A nós, não disse nada...
nessas coisas. Eu pensando que Bonifácio não dava mé-
dia e deixa que o homem até é trabalhador do bom. Quem ADELAIDE •— Está aí o que não sei. A empregada,
diria! ele deve ter pago.
A MODELAÇÃO 53
52 VIEGINIUS DA GAMA K MELO

so facilitar. Tem cabra aqui querendo deixar o cito. Onde


PAULO — Pagou besteira. E você terminou voltan-
já se viu? Não estou para isso! Ninguém está para isso
do para o lugar dela. Que lucro teve em vender a irmã?
— cabra querer deixar o cito. Na peia e no chumbo! Não
ADELAIDE — Vender o quê? Fazer a felicidade da posso facilitar. Ou diz quem é ou vai logo para o infer-
mana. Às vezes penso, me vejo no lugar dela. no, a frente toda esbandalhada. Este aqui (bate no ba-
PAULO — Invejando ela, é? camarte) está carregado até a boca. Tem tudo de bom
ADELAIDE — Naquele Bonifácio, bem que eu dava para ensinar a regra do bom viver a cabra safado. Pre-
um jeito. go, ponta de faca, pedaço de anzol, pedaço de armador,
ALARICO — (no alpendre, aos gritos) Quem vem lá? caco de vidro. Material de primeira para lascar os pei-
Ou diz quem é ou eu queimo?! tos de cabra atrevido que quer deixar o cito.
PAULO — (saltando do banco e correndo para o al- FERNANDO — (botando as latas dágua no alpendre,
pendre) Que diabo é isto?! ainda sem subir o batmte) Que tem ele? E esse baca-
ADELAIDE — (indo para o alpendre, mais devagar) marte está armado?
Quem será? PAULO — Está.
(No meio escuro, Fernando chegando com, um pau FERNANDO — B preciso tomar.
nos ombros e latas d'água). ADELAIDE —• (chegando para o velho) Mas papai, o
ALARICO — .(aos gritos) Quem vem lá?! Ou diz quem senhor atirava mesmo?
é ou eu queimo! Alto! Quem vem lá? (aponta o bacamar- ALARICO — O que?! Se eu atirava?! Minha filha, você
te) Se é de paz, diga logo, que estou mandando logo ainda não conhece seu pai. E o que merece um cabra de
qualquer diabo para o inferno de volta! peia desses que quer deixar o eito?! Que está pensando
FERNANDO — Sou eu, papai! Não atire! Sou eu, pa- que isto aqui, propriedade minha, é casa de Noca? Onde
pai! Não atire! É seu filho Fernando! todos mandam e ninguém obedece? Lasco os peitos de
qualquer um! E não estou fazendo demais! Para esses
PAULO — (estendendo a mão para o bacamarte) Í3
cabras que vivem comendo meus pirões de graça e não
Fernando, titio. Vem trazendo a água.
querem o eito, só peia! Peia e chumbo! Lasco qualquer
ADELAIDE — É Fernando, Fernando, papai! Fer- um pelos peitos, de meio a meio!
nando!
ADELAIDE — E esse bacamarte está carregado mesmo?
ALARICO — (afastando o bacamarte das mãos de Pau-
ALARICO — Está aí, minha filha. Quando chegar a
lo e baixando a voz) Com esse aqui, não tenho medo de
hora de lascar os peitos dum cachorro desses, eu chamo
nada! Nunca negou fogo e tem mandado muito cabra sa-
você para ver o estrago. Vou botar todo o fato do bicho
fado para as profundas. E do jeito que está faz até gos-
para fora. Veja o peso (mostra a arma, sopesando) De
to — carregado até a boca. Se Fernando não fala era
pólvora está até o meio do cano. Espoleta é da melhor,
bem fatível de ser carregado no pipoco. Não posso faci-
veja. Quando sentar este aqui em cima dum cabra atre-
litar (vai de imã ponta a outra do alpendre) Não pos-
54 VIRGINIUS DA GAMA E MELO A MODELAÇÃO 55

vido desses, vai custar para juntar os pedaços. Fica o nós. As cabras, as duas cabras nossas, ainda vi, de longe,
exemplo para a cambada toda, você vai ver. Você vai os restos do churrasco que eles fizeram no cercado do
ver quem é seu pai! E esses cabras vão ver com quan- Maracajá.
tos paus se faz uma jangada! PAULO — Disseram alguma coisa a você?
FERNANDO — Isso é um perigo. Precisamos conter FERNANDO — De piquete em piquete eu tinha que
o velho. me explicar. Deu trabalho a chegar no barreiro. Pergun-
PAULO — Se a gente pudesse tomar esse bacamarte. tavam coisas, quantos tinha aqui. Mandavam recados.
FERNANDO — Vamos ver se ele se distrai ou dorme. PAULO — Qual é a tenção deles?
ADELAIDE -- Está difícil. Desde manhã, quando vo- FERNANDO — Não vão sair da terra. Não vão sair
cês saíram, que ele apareceu com o bacamarte e não lar- de jeito nenhum. Vieram para ficar — é o que dizem.
ga. Todo mundo aqui já pediu e não teve jeito. Não há
quem tome. PAULO — E nós?
FERNANDO — (pondo as latas nos ombros, entrando FERNANDO — Dizem que nós devemos sair. Se a
em casa) Vamos ver. Vamos ver que jeito se dá. gente não for embora, eles vão apertar. Aí ninguém podo
PAULO — E como está a coisa lá? mais sair daqui, nem trazer mais água nem mais lenha.
FERNANDO — No mesmo. É só chegando mais gente, PAULO — Quer dizer que querem botar a gente para
mais gente. E ninguém sai. Em todo canto tem um pi- fora da terra da gente?
quete. FERNANDO — Eles dizem que precisam da terra. Que
PAULO -- Tudo armado? nós não sabemos trabalhar a terra, não aproveitamos, o
FERNANDO — Armado. E arma de todo jeito. Tem mato está tomando conta de tudo. Nós não fazendo nada.
muita gente no rifle e vi também mosquetão e fuzil. Foi- Não produzindo. E eles, que podem produzir, sem terra
ce, nem se fala. É uma floresta. Estrovenga também tem para plantar.
muita. Quem não tem outra coisa, leva uma enxada. PAULO — E a gente pode fazer mais do que faz?
PAULO — E sua espingarda? Só com essas enxadas... A gente trabalha tanto quan-
to qualquer um deles. O dia todo, de sol a sol. E mais
FERNANDO — Levei nada. Sabia que tinha de passar
pelos piquetes. Deixei guardada aqui perto. Vou buscar dedicado ainda porque é a terra da gente.
agora. Assim que despejar essas latas na jarra. FERNANDO — Foi o que disse a eles. E disse mais
PAULO — E comida, como é que esse povo está se que a gente só saía daqui a força. Que não ia abandonar
arranjando? o que era da gente.
FERNANDO — Ê o que não falta. Vi muito caldeirão PAULO — E eles?
fervendo. Feijão muito e com um cheiro de toucinho e FERNANDO — Não querem saber de razão nenhuma,
charque que dá gosto. Estão passando muito melhor que Era eu dizendo essas coisas e eles repetindo — Não inte-
56 VIRGINIUS DA GAMA E MELO
A MODELACAO 57

ressa, não interessa. Já estão avisados. Têm que sair. Se


FERNANDO — E você está pensando em sair? Eu só
não saem por bem, saem por mal — eles estão decididos,
saio daqui morto. Só saio morto, está ouvindo? (aos gri-
não resta dúvida. O mais exaltado era Simplício.
tos)
PAULO — Simplício? PAULO -- Eu também fico. Mas o velho, a velha, a
FERNANDO — Sim, Simplício. Encontrei no pique- moça? Que vai ser deles quando cortarem a água, a le-
te que fica bem em cima do barreiro, o último. Armado nha? A gente não pode se sustentar.
de rifle, me botando uns olhos. Senti um frio quando FERNANDO — Simplício disse que esta era a última
avistei o homem. água. Que nem voltasse amanhã para não perder a via-
PAULO — Ele não estava lá ontem, estava? gem. De amanhã em diante — disse ele — nem mais uma
gota.
FERNANDO — Estava não. Deve ter chegado hoje.
Tem chegado muita gente. Não sei donde sai tanta. Acho PAULO -- E os outros?
que estão vindo de bem longe. O certo é que a terra toda FERNANDO — Tudo de acordo. Tudo de acordo. E
está cheia, formigando. dando ordens, imagine. Só faziam dizer — a ordem é
sair. Sair por bem ou por mal. Amanhã não tem mais
PAULO — O que foi que ele disse?
água nem lenha.
FERNANDO — Que os tempos tinham mudado. Quem PAULO — Amanhã um de nós vai buscar água; o
botava gente para fora da terra era ele. Respondi que a outro, a lenha. Preparado para tudo. Eu levo uns ca-
gente tinha direito na terra e ele não. Nós não tínha- chorros desses para o inferno, garanto. E pode ser até
mos o direito de empatar a vida dos outros, a vida do que a gente traga, quem sabe, água e lenha.
povo, foi o que me respondeu. O povo precisava da terra
para viver e para fazer a terra produzir. Justamente o FERNANDO — Í! difícil. O negócio está muito orga-
que nós não fazíamos. Nas mãos da gente a terra não nizado. São muitos os piquetes. Daqui para a água deve
dava nada. Nós não sabíamos trabalhar e portanto tínha- ter mais de oito. Eu nem contei, estava meio arriado. E
mos perdido o direito à terra, ílle ia mostrar a nós todos para a lenha, que é mais longe, naquela capoeira, nem
quando o povo tomasse conta da terra o que era produ- se fala. Se passar por um piquete, não se passa pelo ou-
ção, como esta terra iria produzir. Já tinha mostrado tro. Eles estão todos muito armados. Não vejo jeito.
antes. Já tinha mostrado o que era braço de trabalha- PAULO — Pior é esse velho e essa velha, A moça ato
dor verdadeiro. A ganância da gente tinha botado ele nem tanto.
para fora, tinha tomado conta da lavoura dele. Mas ago-
FERNANDO — Eles têm que ir embora. Eu é que
ra, ele, com o povo, com a justiça, ia botar os vagabun-
dos para fora. não saio. Eu fico. Daqui só saio morto. Não vou entregar
a propriedade a esses cachorros.
PAULO — Você acha que eles vão ficar até o fim,
até a gente sair? PAULO — Está firmado, companheiro. A gente fica.
Mas primeiro vamos mandar para fora o velho, a velha,
58 VIRGINIUS DA GAMA E MELO
A MODELAÇÃO 59
a moça. Não adianta nada eles ficarem por aqui. Fican- to ver. Miro também estava lá, aquele mesmo cabelo alou-
do, só vão atrapalhar.
rado, não mudou nada.
FERNANDO — A gente podia mandar eles embora PAULO — E Maria Celeste?
agora de noite. Fala-se com Eduardo, combina-se tudo.
FERNANDO — Maria Celeste também. Até que pa-
PAULO — Não. É melhor ver o que acontece ama-
rece mais bonita. Boa como diabo. Mas nem sorriu para
nhã de manhã. Se eles não dão água nem lenha. Se não
mim. Me olhou dura. Nem parece aquela. Muito indife-
derem, a gente manda o pessoal embora e depois vai bus-
rente para mim. Mas continua boa. E o corno velho,
car água e lenha à força. Estou seco para lascar uns
cachorros desses. Miro, ali de lado.

FERNANDO — Faz raiva, ódio, ver a arrogância des- PAULO — Como é que juntou tanta gente? Todo esse
ses bandidos. Só queria que você visse o jeito com quo povo devia estar espalhado, cada um no seu canto.
Luiz Serafim me olhou. FERNANDO — E estava. Quem reuniu tudo foi uma
PAULO — Está lá também? Ali! Esse eu queria pe- sociedade que eles têm. Tem lá um homem da Direto-
gar. Cachorro safado, explorou a gente o tempo todo e ria dirigindo tudo. Falei com ele. A conversa era a mes-
ainda queria ficar no mole. Custou a sair da terra, o ma. A gente tinha que sair porque a terra agora era
desgraçado. Foi preciso tocar fogo nos roçados dele. Fogo deles.
bem empregado. PAULO — Tomar da gente para entregar aos ou-
FERNANDO — Pois agora está de grande, de cima, tros ...
me dando ordens. "Olhe, vá embora logo, está ouvindo? FERNANDO — É isso mesmo. Eu vou lá dentro levar
f: uma ordem" — era o que me dizia aquele cachorro. estas latas (põe as latas no .ombro e segue para <« fun-
E não é ele somente não. Tem muita gente antiga daqui, dos. Já está escuro quase total).
que vivia nos explorando e que está voltando agora.
Gente que eu não sabia nem que ainda estava vivendo. PAULO — Adelaide! Adelaide! Vem acender os can-
O negro Severino José de Santana está lá, escorado numa deeiros! (aos gritos)
foice que não tem mais tamanho. Zé Caçador cuspindo a ADELAIDE — (do alpendre) Já vou! Está assombra-
cachaça para o lado, se babando todo. Toda a canalha do?!
que a gente botou daqui para fora.
PAULO — Que é que o tio está fazendo?
PAULO — Ah! Só queria pegar um cachorro desses.
ADELAIDE — (tirando os candeeiros de cima da cô-
FERNANDO — Não está fácil não. Tem muita gente moda, acendendo) Sei lá. Está no alpendre, olhando o
armada. No rifle. Vi até mosquetão e fuzil. Encontrei mundo. Não tira os olhos do campo. Também não diz
também Benedito Olho Cego. Me mirou com aquele olho nada.
furado, parece que está vendo e furando a gente de tan-
PAULO — E o bacamarte?
(50 VIIWJ1NIUS DA GAMA E MELO
A MODELAÇAO 61
ADELAIDE — Com ele. E larga nunca? É coisa do EDUARDO — Ah, se fosse só isso! Eles querem é to-
muito valor, estimação.
mar a terra toda e botar a gente para fora,
PAULO — Precisamos tomar aquele bacamarte.
ALARICO - - Já mandei recado a Caçulinha. Estou
ADELAIDE — Pois sim. esperando ele e os cabras duma hora para outra. Vai ser
EDUARDO — (chegando dos fundos) Também acho um serviço bem feito. Quero ver cabra no eito, rodando
que esse bacamarte nas mãos do tio é um perigo. na peia, e se se meter a besta levando chumbo! Caçuli-
ADELAIDE — Acordou agora? nha resolve logo isso, bota logo a canga nesses cabras de
EDUARDO — Agora. Estava cansadíssimo. E vou pas- peia! Quem reclamar vai gemer e beijar o nó da peia!
sar de novo a noite acordado. PAULO — O homem está com a gota, E mais com
PAULO — Acho que eles não querem invadir a casa esse bacamarte na mão!
não. Fernando esteve com eles, conversou. O pensamen- EDUARDO — Eu vou me afastando. Quero lá ficar na
to deles é outro. É deixar a gente cercado aqui, sem frente desse bicho.
água nem lenha. Diz que vão começar amanhã a negar FERNANDO — (vindo da cozinha, passando para o
água e lenha. Disseram a Fernando que aquela era ;; alpendre) Vou lá fora, buscar a espingarda.
última água. ALARICO — Estou sem homem! Esse meu filho está
ALARICO — (chegando pelo alpendre) O negro Dio- ficando doido! Onde já se viu deixar a espingarda lá fora
nísio já botou o gado todo no curral. Gadão bonito, como num tempo como este?! Isto aqui está cheio de ladrões!
esse, nunca se viu por aqui. Gordo, gordo, o pêlo luzin- Esses cabras todos são ladrões! Pois não vê que essa cam-
do. É muito leite o que estamos tirando este ano. Muito bada de nojentos vivia aqui, comendo os meus pirões de
leite. Minha filha, avise ao pessoal da cozinha para bo- graça, e agora quer deixar o eito?! Essa gente é capaz
tar a janta. de tudo! Esse povo vê uma espingarda assim abando-
ADELAIDE — Vou avisar. E papai não vai guardar nada e vai logo carregando. Isto tudo está cheio de la-
esse bacamarte para lavar as mãos? drões, ladrões, meu filho, é o que estou dizendo, ladrões!
ALARICO — Vou nada, minha filha, (bate na c&m- FERNANDO — Pois é, por isso mesmo é que vou bus-
nha) Desse aqui não me separo mais. É minha garantia. car a arma. Antes que alguém leve.
Enquanto esses cabras não acabarem com essa besteira ALARICO — Vá logo! Vá logo, desgraçado! (enquanto
de deixar o eito, meu negócio é com este aqui (bate no- Fermmdo vai saindo) Queira Deus ainda encontre.
vamente na cvronha) carregado até a boca. Esperando EDUARDO —• Não quer se sentar não, tio? Para es-
um cachorro desses para lascar os peitos. Vou esbandei- perar a janta.
rar um do ponta a ponta. Quero ver o fato do lado de ALARICO -— Ainda não tem prato nem toalha, Esse
fora. Onde já se viu isso?! Um lote de cabras mofinos, pessoal da cozinha está botando as manguinhas de fora.
que vivem comendo os meus pirões de graça, agora se Também dona An alia é aquela moleza — água me leva,
metendo a besta! Querendo deixar o eito!
água m c traz.
r A MODELAÇÃO 63
62 VIRGINIUS DA GAMA E MELO

EDUARDO — (saltando para trás, assombrado) Vir-


EDUAKDO — Mas é bom sentar, tio. Pelo menos vai gem Maria!
descansando. PAULO — (saltando também) Eita diabo!
ALAKICO — (dirige-se para a mesa, senta na cabe-
ALARICO — (dando murros menores) Essa canalha
ceira, bota o bacamarte em cima, apontando para a fren-
toda que quer deixar o eito tem que entrar na peia! Na
te) Vá lá.
peia e no chumbo se se meter a besta! Eu não digo nada
EDUARDO — Tio, não quer que eu guarde esse baca- mas estou esperando Cagulinha duma hora para outra!
marte? Aí ern cima da mesa vai incomodar.
EDUARDO — Com outro murro desse a casa cai.
PAULO — Está perdendo tempo. Esse aí ele não PAULO — Vi a hora desse danado lascar nós todos.
larga.
ALARICO — Estou perdendo um dia de serviço no
ALARICO — Precisa guardar não. Este aqui não in- cercado do Maracajá de Cima por causa dessa canalha
comoda ninguém. atrevida. Felizmente que o prejuízo foi somente ali, onde
EDUARDO —• Não incomoda ninguém não. Mas enche o serviço já está quase terminado. Mas não é por isso.
a mesa. Os pratos, sabe como é. É pelo desaforo! Onde já se viu cabra se negar ao eito
ALARICO — Tem nada não. A mesa é larga. Esta mi- por aqui? Onde já se viu?! Me digam os senhores, onde
nha mesa sempre foi muito larga. Todo mundo sabe disso. já se viu cabra se negar ao eito?!
Tem dia que dou aí na cozinha comida para mais de 90 EDUARDO — Em canto nenhum. Eu, pelo menos, nun-
pessoas. Almoço e janta, aqui, sempre foi direto. Disso ca vi.
me orgulho. Quem chegar é só se abaucar e ir comendo. PAULO — Só se estiver doido.
Todo mundo sabe disso. Mesa larga, a minha. FERNANDO — (chegando pelo alpendre, a espingar-
PAULO — Larga mesmo. Há muitos anos que não se da na mão) Está aqui, pai, encontrei. Estava no mesmo
enche. De comida nunca mais se encheu. lugar, igualzinha como deixei.
EDUARDO — Eu vou lá poder me sentar com esse ba- ALARICO — Muito me espanta. Muito me espanta. No
camarte na minha frente. Já sei que hoje não janto. E meio da cabroeira ladrona em que nós estamos vivendo,
não jantar aqui uma vez só é capaz de morrer de fome. acontecer uma coisa dessas! Honestidade, não foi, posso
Quem vive nesta dieta... garantir. É coisa que não existe mais nesses cabras. Com
ALARICO — (alistando o bacamarte) Este aqui está certeza não viram a arma.
carregado mesmo. Carrego do bom c do melhor. Meio FERNANDO — Vou guardar. Por falar nisso, o se-
cano de pólvora: o resto ê de todo bagulho de aço e fer- nhor não quer me dar esse bacamarte para guardar tam-
ro, que se encontrou por aí. Até caco de vidro (larga bém?
um murro que faz a rnesa estremecer, o bacamarte tam- ALARICO — (dá novo murro na mesa, saltando no-
bém) Está pronto mesmo para lascar os peitos dum ca- vamente Eduardo e Paulo) Já disse e repito que não me
bra de peia!
VIRGINIUS DA GAMA E MELO A MODELAÇÃO 65

separo deste bacamarte! É minha garantia, abaixo de ADELAIDE — (aproximando os pratos) Desculpe.
Deus! Não do nesse bacamarte a homem nenhum. Vou ALARICO — Tem nada não. Mande trazer o resto.
dormir com ele, comer com ele. Sei onde vivo, no meio Bote esse pessoal da cozinha para trabalhar. Onde já se
em que estou. ÍJsses cabras estão todos alterados. Hoje viu um povo que só quer saber de comer os meus pirões?
deixaram o cito no cercado do Maracajá. Onde já se viu EDUARDO — O pessoal lá de dentro está gordo mes-
cabra deixar o eito um dia sem estar de espinhela caída mo. Mais gordo que o gado do curral.
ou enterrando o pai ou a mãe?!
PAULO — Também pudera! Passando no bom e no
EDUARDO — Com outro murro, sou capaz de morrer melhor.
de susto. ALARICO — Cadê dona Anália? Chame dona Anália.
PAULO — Esse diabo termina mesmo estourando em ADELAIDE — Ela vai jantar no quarto, papai.
cima da gente. Esse homem está furioso. É caso de corda.
FERNANDO — Se acalme, pai. ALARICO — Ah! Mulher mais cheia de invenções.
Igual a essa, eu nunca vi. A vida toda tem sido assim.
ALARICO — O que? Se acalme?! Estou sem homem! Antigamente era uma enxaqueca, uma coisa e outra.
físse meu filho é um bestalhão. Para mim, tinha tirado
ADELAIDE — (saindo para os fundos] Ela está bem
raça de homem. Puxou à mãe, aos parentes mofinos de
dona Anália. Ora, se acalme, se acalme com cabra dei- nias está descansando e me pediu para levar a janta no
xando o eito! A propriedade cheia de cabra querendo quarto.
ser gente! ALARICO — Sempre foi assim (começa a dar umas
batidinh-as na mesa, quando se ouve do lado de fora)
ADELAIDE — (trazendo os pratos, espcwta-se com. o
bacamarte) Virgem Maria! Voz — ô de casa? ô de casa?
ALARICO — Está doida!! É você agora quem vai ALARICO — Quem será?
trazer os pratos, quem vai botar a janta? E o pessoal da Voz —• õ de casa? ô de casa?
cozinha também não quer trabalhar mais não? Quer se-
ALARICO — (levantando-se) Vocês estão conhecendo
guir o exemplo do Maracajá? Meto o chicote nessas ne-
pela voz?
gras, deixo a pão c água! Ou no bacalhau assado sem
água. Quero ver secar o lombo dessas negras. Tudo en- FERNANDO — (levantando-se) Espere aí, que eu vou
gordando às minhas custas, passando no bom e no me- ver.
lhor e minha filha é quem bota a mesa. Onde já se viu?! EDUARDO — Quem é? Quer falar com quem?
ADELAIDE — É para apressar o serviço, papai. Voz — É um recado do Chefe para o dono da casa.
ALARICO — Está se vendo que você está apressada ALARICO — (indo para o alpendre) Está falando
inesmo. Está botando os pratos no meio da mesa, bem com o dono da casa. (para os outros) Que história é
longe de seu pai. Como quer que eu chegue lá? c.;sa de Chefe?
66 VIEGINIUS DA GAMA E MELO

Voz — O Chefe mandou dizer que a casa deve sei


desocupada amanhã. Ou saem por bem ou saem por mal.
De amanhã em diante o chefe não dá mais nem uma
gota dágua.
ALARICO — (Já na porta, com o bacamarte na mão]
1 í A MODELAÇÃO

ADELAIDE — (rompendo em choro) Papai! Mataram


Papai!
EDUARDO — (corre para casa, apanha um rifle, se-
gue para o campo atirando) Esse cachorro foi embora!
67

O quê?! Qual é a casa que vai ser desocupada, cachorro? Esse cachorro foi embora!
Voz — Cachorro não, dobre a língua, latifundiário. PAULO — (junto do velho e estendido, com Fernan-
É para desocupar essa casa aí, que o Chefe mandou. do) Bandido!
Nessa casa de amanhã em diante quem vai morar somos FERNANDO — (vendo que Adelaide se aproxima, vaí-
nós! -Ihe ao encontro) Mana, tenha calma. Tenha calma, ele
ALARICO — (apoplético) Ainda não nasceu o puto está com Deus.
para me dar ordens, seu filho duma égua! Quanto mais ADELAIDE — (abraçada com Fernando) Mataram
esse tal de Chefe! meu pai! Mataram meu pai!
FERNANDO — Tenha calma, pai. Tenha calma. FERNANDO — Tenha calma, mana. .. Tenha cal-
EDUARDO — (se aproximando] Segura o velho. m a . . . Tudo tem seu tempo...
PAULO — (também se aproximando) Não deixa ele EDUARDO — (aproximando-se do corpo) Morreu?
fazer besteira. PAULO — Não durou nada. Morreu logo.
ADELAIDE — Papai, papai. EDUARDO — Eita, que estrago medonho! Pegou foi
Voz — Dobre a língua, latifundiário, dobre a lín- tudo. Estragou ele todo.
gua! E agradeça de joelhos a gente não lhe botar para PAULO — Você pegou o cabra?
fora agora de noite. Para dormir no relento. Só pelo de-
saforo! Veja como fala, seu latifundiário! EDUARDO — Sei não. Acho que não.
ALARICO — (saindo de alpendre a fora, descendo o ADELAIDE — Quero ver meu pai. Quero ver meu
terreiro, armado e erguendo o bacamarte) Cabra de peia! pai!
Ah! Filho duma égua! Mostra a cara, cachorro! Quero FERNANDO — Vamos para dentro, mana. Vamos para
ouvir o latido de novo, cachorro da moléstia! dc:ntro. Venha tomar qualquer coisa (vai conduzindo-a
Voz — Ah! Latifundiário dos seiscentos diabos, in- pelo alpendre, entrando na sala).
feliz da boca suja! EDUARDO — Como vamos levar ele para casa? Que
ALARICO — (apontando o bacamarte) Vou te lascar coisa medonha!
os peitos, filho duma égua! (um tiro eworme, outro tiro PAULO — Tem que ficar enrolado num lençol. A gen-
e luz do lado da voz, Alariao cm no terreiro estertorando) te bota em cima da mesa.
68 VIRGINIUS DA GAMA E MELO A MODELAÇÃO 69

EDUARDO — Do bacamarte não se vê nada. Saltou rando, de mandioca pronta para a colheita... Que chei-
tudo. ro bom... (desce o batente do alpendre, vai caminhan-
do pelo terreiro) Esse cheiro bom foi de chuva há pou-
PAULO — Parece que ficou tudo dentro dele. Estra-
co... Cheiro bom de terra molhada... Terra abençoa-
gou ele todo.
da esta... Abençoada mesmo... Seu Alarico ainda não
EDUAKDO —• E a bala do cabra também. Deve ter veio para a janta. Ainda está caminhando pelos cam-
acertado. O tio estava de peito aberto, dentro do clarão pos. .. Que silêncio... Que paz abençoada...
do tiro.
PAULO — Até que o velho doido no fim morreu como
macho. Vamos ver se a gente também morre.
EDUARDO — É, agora não tem mais jeito. É mandar
as duas mulheres amanhã embora, bem cedo, logo no en-
terro. Vou é azeitar de novo meu rifle. Fernando, se
quiser, pode ir com elas. Eu vou pegar uns cachorros
desses.
PAULO — Eu também quero ver se tiro o couro de
alguns deles antes de tirarem o meu.
EDUARDO — (rmdo lúffubre) Está dizendo besteira,
mano. Só pode ser mesmo antes de tirarem seu couro. l
PAULO — Mano, olha quem vem saindo ali na porta.
EDUARDO — Tia Anália!
ANÁLIA •— (chega iw alpendre, as mãos para frente,
tateando) Cadê o povo daqui de casa? Não tem ninguém
não? Também não me levaram a janta. Adelaide não me
levou a janta. Parece que ainda não está na hora. Não
tem ninguém. Seu Alarico ainda não voltou do cam-
po... Deve estar pelo curral... Vendo o gado gordo que
ele não se farta de olhar... E os roçados que este ano
são tão grandes, ano bom, de lucro para todo mundo...
Tudo que é morador vai entrar rico pela Festa... Isso
aqui é mesmo terra abençoada (está na leira do alpen-
dre) Que cheiro bom, de milho verde, de feijão madu-
3' ATO
1

"O cenário é o mesmo. Foram retirados a mesa e os ban-


cos. No lugar olá mesa está o caixão fechado, as quatro
velas acesas. O resto permanece, as portas, que dão para
fora, abertas. O sofá e as cadeiras estão ocupadas por
várias pessoas. Fernando, Paulo, Eduardo, Adelaide e
outros estão de pé. No alpendre e no terreiro, há gente e
soldados armados."

FERNANDO — Preferia que o velho fosse enterrado


com mais simplicidade.
ADELAIDE — Melhor que seja assim do que como cão
sem dono.
EDUARDO — É chegando gente importante que não
tem mais fim.
PAULO — E nós sem uma roupa que preste para o
enterro.
ADELAIDE — Tem nada o que. Í3 bom mesmo que eles
saibam o que a gente estava passando.
EDUARDO — E a velha, como vai?
ADELAIDE — No mesmo. Não sabe de nada. Comeu
e dormiu como nos outros dias. Está se ajeitando agora.
Com pouco mais, sai.
EDUARDO — E daí?
ADELAIDE — O que é que tem? Não tem diferença
nenhuma. Ela não vê nada, não ouve nada.
A MODELAÇÃO 75
74 VIRGINIUS DA GAMA E MELO

tudo. E não é gentinha daqui não. É gente grossa, trei-


EDUARDO — Mas vai sentir esse povão todo dentro
da sala e no alpendre. E a falta do tio. nada.
PAULO — Isso é o de menos. A gente diz que ele EDUARDO — Diz que a estrada ficou lisa de tanto
foi para o curral ver o gado leiteiro. passar caminhão carregado de gente.
ADELAIDE — (ajeita as grinaldas em volta do cai- PAULO — E também muito carro de passeio, dos
xão) Está chegando todo mundo. Já veio o padre, o juiz, grandes.
o delegado. ÍJsse capitão é muito distinto. E os soldados FERNANDO — Estavam passando bem. Fogo tinha
são muito calmos. bem uns trinta. Ficou até um caldeirão abandonado. Lata
EDUARDO — Foi só o que serviu. Numa manhã só de conserva chega era uma imundície.
eles botaram esses cabras todos para correr. Não tem mais ADELAIDE — De doce, também. Um soldado até achou
nenhum na propriedade. Vasculharam tudo. uma lata de goiabada inteirinha, Não tiveram tempo de
PAULO — A carreira foi tão grande, só com a no- comer.
tícia. Não pegaram quase ninguém. PAULO — Só queria saber onde eles arranjam tanta
ADELAIDE — O capitão me disse que na Capital está coisa. Tanto caminhão.
um verdadeiro reboliço. A Associação Comercial se reu- EDUARDO — Isso para mim só pode ser do governo.
niu de madrugada e pediu garantias ao Exército. Foi por Isso só sendo obra do governo.
isso que a tropa veio para cá e não veio a polícia. O go- FERNANDO — Era o que seu Oscar estava dizendo a
vernador não merece confiança. Padre Vieira. Do jeito que foi aqui, foi também em Ala-
PAULO — Diz que o rádio não fala outra coisa. goinha e Lagoa do Gato. Está se vendo que tudo isso é
EDUARDO — (apertando a mão de um que lhe dá os organizado.
pêsames) Obrigado. EDUARDO — E por quem pode. Por quem pode. Não
ADELAIDE — (suspira, de cabeça baixa, qua-ndo a é para qualquer gentinha não.
abraçam). ADELAIDE — (olhando para o alpendre) Está che-
PAULO — Obrigado. gando mais gente.
FERNANDO — Obrigado... A tropa andou por toda FERNANDO — E nós com essa roupa, (reparando Ade-
a propriedade, examinou os lugares dos piquetes e, pelo laide) E você vai ficar com essa calça e blusa? Não vai
jeito, calculou mais de trezentos homens. botar vestido?
EDUARDO — Por aqui eles não arranjavam tudo isso. EDUARDO — Isso não é traje para enterro.
Veio muita gente de fora, de muito longe. PAULO — Está escandalizando.
PAULO — Está se vendo que tudo isso é organizado. ADELAIDE —• Escandalizando nada. O capitão, quan-
do me viu, disse logo — guerrilheira. Isto aqui é traje
FERNANDO — Era justamente o que estava dizendo
de guerrilheira. Vocês não sabem o que é isto não.
ali seu Oscar ao Padre Vieira. Tem cabeça por trás disso
76 VIRGINIUS DA GAMA E METX) A MODELAÇÃO 77

PAULO — Isso, para mim, é deboche. DELEGADO — Já pedi a nomeação de um delegado


especial, se possível um promotor, para presidir o inqué-
FERNANDO — Traje de guerrilheira, você podo usar
rito. A responsabilidade é grande.
em toda ocasião, menos na hora do enterro do pai.
ADELAIDE — Vou do jeito que estou. Juiz — Muito grande, delegado Ramos. O Estado
inteiro está com as vistas voltadas para nós.
PAULO — Todo mundo olhando, todo mundo comen-
tando. Padre Vieira está ali escandalizado. DELEGADO — Recebi um telegrama do governador
dando todas as instruções. Telegrama enérgico. Enorme.
ADELAIDE — Já falavam antes. Sou mulher partici-
O homem está preocupado mesmo.
pante, mulher do meu tempo, emancipada. Vocês não sa-
bem de nada. Também nunca viram n a d a . . . Socados Juiz — Dizem que a Capital está pegando fogo. Co-
aqui o tempo todo. mício em quase toda a parte, a Assembléia vai se reunir.
Juiz — O inquérito deve esclarecer tudo, delegado Deve estar se reunindo a esta hora.
Ramos. Esclarecer tudo. ílsso movimento aporá está com DELEGADO — Desde manhãzinha que o rádio não fala
sangue. Com sangue. A ocorrência mais grave foi aqui. em outra coisa. Está tudo de prontidão. Polícia, Exér-
DELEGADO — Dr. Taveira, pode ficar certo que to- cito.
das as providências já foram tomadas. O inquérito vai Juiz — É grave, delegado Ramos, é grave. E noa
ser o mais rigoroso possível. no centro dos acontecimentos. E o povo esperando de
Juiz — Sei, sei... São as testemunhas... As teste- nós. (passanido a mão no rosto) É grave, lá vem seu
munhas. .. Todo o precedente... Ê preciso cuidado, de- Oscar.
legado Ramos... Veja a nossa responsabilidade... Quem OSCAR — Dr. Juiz, aqui é o dr. Penteado, presiden-
sabe se isso não poderia ter sido evitado... te da Associação Comercial.
Juiz — Muito prazer. Já o conhecia muito, de nome,
DELEGADO — Dr. Taveira, estamos cuidando de tudo. de suas grandes atividades. Não esperava numa ocasião
A responsabilidade é grande, sei... Já estão arroladas
como esta...
8 testemunhas.
PENTEADO — De muito pesar para todos nós.
Juiz — Do lado deles? V. Exa. é um juiz que honra o Estado. Sempre falamos
DELEGADO — Do lado deles, também tem. Temos os no senhor, lá na Associação. Ah! se tivéssemos, nesta
nomes c onde se pode encontrá-los. Para que não desa- hora, mais uns poucos juizes como o senhor!
pareçam, já mandei procurar, (metendo a •mão no bolso, Juiz — Bondade sua, dr. Penteado, bondade sua,
tirando wm caderno) Quer ver os nomes?
OSO-VR —• Delegado Ramos.
Juiz — Não, precisa não. Pode guardar... Uma res-
ponsabilidade dessas! Só queria que o governador no- PENTEADO — Prazer.
measse uma Comissão Judiciária para esse caso. D;'LEGADO — Às ordens do doutor.
78 VIROINIT.TS DA GAMA E MELO A MODELAÇÃO 79

PENTEADO — A ação policial, desculpe-me o senhor nome que me veio foi o seu, foi o seu nome que indi-
delegado, ultimamente, tem deixado muito a desejar. quei, logo — "Para mim, o melhor governador do Esta-
DELEGADO — Faz-se o que se pode, dr. Faz-se o que do seria o dr. Penteado" E me comovi quando todos fi-
se pode. caram de acordo e o seu nome foi aplaudidíssimo.
PENTEADO — O que tem sido muito pouco. Muito PENTEADO — Quem sou eu, padre Vieira, quem sou
pouco. Senão não teríamos casos lamentáveis como este. eu? Um simples presidente da Associação Comercial, um
Um baluarte das forças produtoras do Estado, o coronel posto de confiança dos colegas, dos companheiros, dos
Alarico Diomedes, morrer assim. Nas mãos de bandidos, amigos.
nas mãos de bandidos, senhor delegado. E isto não é tudo. PADRE — Não é preciso documento maior. A con-
O pior é que estamos com diversos delegados no interior fiança de quem lhe conhece mais, de quem está mais
do Estado auxiliando, prestigiando esses bandidos. Os próximo. E, agora, nestes últimos tempos, a confiança
da Capital, nem se fala, o próprio secretário da Segu- do Estado, a confiança do povo cristão que tem encon-
rança tem prestigiado esses elementos. É por isso que trado na Associação Comercial e no seu presidente a re-
o governador está sendo responsabilizado, e com razão, sistência democrática da civilização cristã. Isso é muito,
por esses acontecimentos. dr. Penteado, muito mais do que se pode esperar dum
OSCAE — Padre Vieira, tenha a bondade. Quero lhe homem numa época como esta. Muito mais, dr. Penteado.
apresentar aqui o dr. Penteado, presidente da Associação PENTEADO — Reverendo, não temos feito nada. O quo
Comercial. lamento é o que deixamos de fazer. Mas em todo caso
PADRE — Ah! Muito prazer e muita honra. Admiro lhe digo — o que temos feito é em virtude de nossa for-
muito suas atitudes. mação cristã e com o amparo generoso do cristianismo.
A luta, entretanto, tem sido tremenda. Coisa aliás a que
PENTEADO — Ditadas pela minha consciência cristã,
o senhor não é estranho. Imagino pelo descnlace de on-
padre Vieira. Há muito que o admirava. Suas virtudes
tem, essa tragédia que nos assalta hoje, o que tem sido
são proclamadas cm todo o Estado, reverendo. Nós, lá
seu sacrifício nesta paróquia.
na Associação, falamos no senhor repetidas vezes. Feliz
mente que o nosso clero ainda dispõe de figuras como o PADKE — Nunca se pensou num fim desse para seu
reverendo. E quanto menor é o número, maior o valor Alarico. Como os tempos estão mudados! Muito muda-
do exemplo, maior o valor do apostolado. dos. O enterro vai ser na Capital, dr. Penteado?
PADRE — Bondade sua, dr. Penteado, eu não mere- PENTEADO — Vai. Vim para isto. Já falei com a
ço. Mas me desvaneço porque estou vendo, agora, com família. Estamos aqui em comissão para acompanhar o
o contato pessoal, a confirmação de suas qualidades, de corpo. Coronel Alarico Diomedes, para nós, foi um már-
suas grandes qualidades, pelas quais sempre tive grande tir. O primeiro mártir de nosso ideal. Será sepultado
entusiasmo. Ainda outro dia, num grupo de amigos, fa- com todas as honras. Tudo por nossa conta, é claro. A
lava-se de governo, de quem podia governar, e logo o Associação não abandona nenhum dos nossos. Aliás o
80 VIRGINIUS DA GAMA E MELO A MODELAÇÃO 81

carro fúnebre deve estar a chegar. Talvez já esteja lá PENTEADO — Como lhe disse, Bonifácio, tudo por
em cima na ponta da estrada. nossa conta. Seu sogro, o digno coronel Alarico Diome-
PADRE — Eis aí uma coisa em que seu Alarico sem- des, foi o mártir de nossa causa. Estamos fazendo muito
pre falava •— puxar a estrada até aqui. pouco para o que ele merece.
PENTEADO — O coronel Alarico Diomedes sairá da- Juiz — Como estava lhe dizendo, delegado Ramos,
qui nos nossos braços. Nos braços dos seus companhei- o inquérito...
ros. Todos nós reverenciando o seu exemplo, o seu gran- PADRE — Console-se, minha filha, ele agora descan-
de exemplo. sa. Reze, minha filha, reze...
PADRE — (vendo Ivone que chega, chorando, ao lado CAPITÃO — Pelo menos, dona Adelaide, atenda a um
de Bonifácio) Coitada de Ivone. Tão religiosa, tão aman- pedido meu... Sente um pouco... Olhe que é o meu
te do pai. primeiro pedido.
PENTEADO — Ê filha? BONIFÁCIO — A família toda se sente honrada com
OSCAR — í}. Casada com Bonifácio Nogueira. essa atitude da Associação Comercial, dr. Penteado. Mui-
to honrada, e agradecida.
PENTEADO •—• Muito bem. Muito bem (balançando a
cabeça) Grande companheiro nosso. Homem de bem, de- DELEGADO — O rádio do governador é muito exten-
cidido. Grande homem. Vou dar-lhe os pêsames. so, muito enérgico mesmo. As notícias da Capital são
sérias. A Assembléia está reunida, A oposição fazendo
Juiz —• (Penteado saindo) Homem de muita fibra,
discursos tremendos.
esse presidente. Líder autêntico. Nasceu para líder.
ADELAIDE — Vá l á . . . (sentando) Mas só atendo
PADRE — (alto, para ser ouvido por Penteado) Para
porque é um pedido do capitão... O primeiro pedido,
Governador, Deus seja servido.
olhe lá.
ADELAIDE — Não, obrigada, estou bem. Agradeço a OSCAR — A Associação Comercial teve uma grande
lembrança, mas não preciso. atitude.
CAPITÃO —• (segurando uma cadeira) Há tantas ho- PADRE — Reze comigo, minha filha. Reze comigo.. .
ras em pé. Por obséquio, descanse um pouco. "Padre Nosso, que está..."
ADELAIDE — Obrigada, mas estou bem. Ainda supor- juiz — É grave, delegado Ramos, é grave. É mui-
to muito mais. Quando a gente está passando por essas to grave. A nossa responsabilidade...
coisas parece que não cansa nunca. EDUARDO — Será que esse carro fúnebre não chegai
CAPITÃO — (e\m tom carinhoso) Guerrilheira, san- FERNANDO — Quando chegar lá em cima, mandam
gue, coragem de guerrilheira. avisar.
ADELAIDE — (olha-o, com leve sorriso) Nem tanto. CAPITÃO — Não sabe, dona Adelaide, a satisfação
É porque não preciso mesmo. Guerrilheira nada. que está me dando...
82 VIKGINIUS DA GAMA E MELO A MODELACAO 83

PAULO — Nós temos que acompanhar o corpo até a ADELAIDE — Isso, para nos, capitão, como valor de
Capital? dinheiro não existe. Jamais venderíamos estes móveis.
FERNANDO — Sem dúvida. Maior do que qualquer quantia é o valor estimativo.
EDUARDO — Não fica ninguém aqui em casa. IVONE — Padre Vieira, onde está Fernando? E ma-
FERNANDO •—• Nem os soldados. Vão ficar uns pou- mãe, padre Vieira, como está a pobre?
cos, mas no campo, na estrada. DELEGADO — Cabo Milar.cz chegou agora com um
PAULO — É o diabo a gente ir para a Capital dêsso rádio. Terminou a sessão da Assembléia. Só se falou nessa
jeito. Com estas roupas. caso de seu Alarico. Estão esperando mais notícias.
EDUARDO — Homem, está aí as coisas como são. Até Juiz — Do governador Acaricio? Foi quem nomeou
que é bom que Adelaide vá assim de calça. De guerrilhei- para a comarca.
ra, como diz. Até que justifica esta roupa da gente. So- PENTEADO — Das grandes famílias do Estado, das
mos todos guerrilheiros. mais tradicionais. Educação finíssima. Gente de raça,
essa do coronel Alarico.
PADRE — A propósito da paróquia, dr. Penteado, se
rne permite neste momento, estamos construindo uma ANÁLIA — (dos fundos, aos gritos) Joana, ô Joana,
igreja nova. Com auxílios do povo... muita dificuldade, me <iá um cafezinho, negra dos diabos! Esse pessoal da
sabe... todos aqui são pobres... cozinha está comendo os pirões de seu Alarico de graça
e não quer fazer nada.
CAPITÃO — Dona Adelaide, é difícil encontrar hoje
estes móveis. Móveis de jacarandá, de tradição, das gran- PADRE — É a viúva.
des famílias de antigamente. Isso tudo está valendo uma OSCAR — Dona Anália parece que está nervosa.
fortuna, dona Adelaide. IVONE — Fernando, vou ver mamãe. Trouxe umas
Juiz — O Estado inteiro, senhor delegado Ramos, roupas para vocês. Vocês não podem ir para a Capital,
está com os olhos voltados para nós... O problema está acompanhar o enterro, desse jeito. Arranjei com Boni-
se avolumando, se avolumando, se espraiando... E nós fácio, acho que dá para você e Paulo. Para Eduardo
no centro dos acontecimentos... É grave, senhor dele- trouxe do pai de Bonifácio. Pode ser que não fique bom,
gado Ramos, estamos no centro dos acontecimentos... mas é melhor que nada. Estão no quarto.
Temos que corresponder ao governador, ao governador, ADELAIDE — Estas velas... Este cheiro... (pende a
senhor delegado Ramos! cabeça)
OSCAR — Será que não servem um cafezinho ao OSCAR — Dr. Penteado, deseja alguma coisa? Dis-
dr. Penteado, à comissão da Associação Comercial? E ponha deste seu criado.
gente tão distinta. E ainda por cima está tudo por conta CAPITÃO — (amparando a cabeça de Adelaide) Não
deles. Por conta deles, é o que estou lhe dizendo, Am- quer ir até lá fora, respirar o ar puro, dona Adelaide?
brósio. Vamos. Lá fora é melhor.
84 VIRGINIUS DA GAMA E MELO A MODELAÇAO 85

IVONE — (enquanto eles vão saindo) E Adelaide FERNANDO — (perturbado) Você é besta!
ainda está desse jeito, de calça?
PAULO — Besta, não. Já fui. Hoje não sou mais. Sei
FERNANDO — E diz que não vai mudar. Que é trajo de tudo. Sei quanto você recebeu pelo casamento de Ivo-
de guerrilheira.
ne, seu santinho de pau oco.
PADRE — Não me acostumo com essa mania de moça
andar de calça. FERNANDO — Aquela idiota!
OSCAR — Civilização, padre Vieira, civilização. Os PAULO — Está se aperriando? Quero a minha parte.
tempos estão mudados. Isso não fica assim não.
FERNANDO — Espere muito. Não tenho nada.
ANÁLIA — Joana, ô Joana! Me dá um cafezinho, li-
geiro, condenada! PAULO — Não tem o que. Quero a minha parte. Não
tem santo que dê jeito.
PENTEADO — A senhora viúva parece que está bem
FERNANDO — Cabra safado!
nervosa.
PAULO — Safado é você! Você que vendeu a irmã a
OSCAR — A filha já foi acalmá-la. esse besta!
PAULO — O quê? Vestir roupa de Bonifácio? Rou- FERNANDO — (partindo para Paul») Puto, eu lhe
pa desse bicho? Prefiro ir nu. arrebento agora mesmo!
EDUARDO — E eu, botar as porcarias que o pai dele EDUARDO — (interrompendo-se) Respeitem o morto!
não quer mais? Vou do guerrilheiro, como Adelaide! Ou- PADRE — (aproximando-se) Consolem-se, meus fi-
viu, de guerrilheiro! Mas não com os trapos do pai de lhos, consolem-se. Não se desesperem. Foi a vontade de
Bonifácio. Ainda tenho vergonha na cara. Deus. Rezem, rezem, vamos rezar, (abraça todos) Na
DELEGADO — Ainda não se sabe quem atirou em oração é que se ganha fortaleza de ânimo.
seu Alarico. OSCAR — Essas velas são feitas aqui mesmo pela ve-
OSCAR — O Ministro da Justiça já telegrafou. lha Noca. Custam caro mas são boas.
FERNANDO — Pois eu vou ver se alguma coisa dá juiz — (iflí mãos cruzadas nas costas) Agora essa
para mim. rádio do Tribunal!... O Tribunal quer saber como está
PAULO — Naturalmente. Você recebe tudo dele. Es- a comarca diante destes acontecimentos.. . Senhor dele-
tá acostumado. gado Ramos, o Tribunal está apreensivo!... É grave,
senhor delegado, é grave!
FERNANDO — Acostumado a quê?
PENTEADO — Nós, da Associação Comercial, acha-
PAULO — A receber dele. Começou a receber antes mos o governador muito desgastado. E o senhor sabe, ali
do casamento. Se recebe dinheiro, porque não recebe rou- na Associação nós temos o pulso da vida do Estado. Sabe,
pa. O dono é o mesmo. as classes produtoras. Não, absolutamente, não acredita-
86 VIltOINJUS DA GAMA E MELO A MODELAÇÃO 87

mos na Associação Comercial que o governador faça o COSTEIRA — O governo lamenta profundamente es-
substituto. Não acreditamos. tes graves acontecimentos. Esta época conturbada...
OSCAR — O secretário do Interior! PADRE •— É em toda parte...
Juiz — O Secretário do Interior! Deve ter vindo PENTEADO — E a Capital?
para falar comigo! COSTEIRA — Todos lamentam o acontecido. O am-
DELEGADO — Dr. Costeira, doutor Secretário do biente é de tristeza geral. Houve o choque, é exato. Mas
Interior e Segurança, aqui! a situação já está normalizada — o governo está no con-
ADELAIDE - - (vem o secretário) Cadê Fernando? trole dos acontecimentos. Muito concorreu para isso a so-
lução pacífica que foi encontrada hoje pela manhã, an-
EDUARDO — Está lá dentro.
tes da reunião da Assembléia.
ADELAIDE — Vá chamar ele urgente. Está aqui o PENTEADO — Não estou informaao. Viajei pela ma-
dr. Costeira, o Secretário do Interior. Quer falar com drugada. Logo que soube parti para o tea*ro dos acon-
ele. tecimentos.
PENTEADO — (adiantando-se) Como vai, dr. Cos- COSTEIRA — O caso, praticamente, está solucionado.
teira? Quer dizer, na medida em que podia ser solucionado. O
COSTEIRA — E o caro amigo? que se pode fazer dentro dos podêres humanos, apenas...
PENTEADO — (apresentando) Dr. Taveira, juiz de Pelo menos pacifica-se a região, criando novas condições
direito. de vida para os camponeses e sem prejuízo para os pro-
prietários.
COSTEIRA — Já nos conhecemos. Depois precisamos PADRE — Uma solução equânime.
ter uma conferência. A mais vagar.
COSTEIRA — Exatamente, padre Vieira. Equânime.
PENTEADO — Padre Vieira. Refiro-me à desapropriação que a Assembléia aprovou,
COSTEIRA — Muito prazer, reverendo. através de projeto do líder do governo. Aprovação equâ-
nime. Imediatamente uma comissão de deputados levou o
DELEGADO — (apresentando-se) Com a devida vê-
projeto a Palácio e, na mesma hora, houve a sanção de
nia, dr. Costeira, dr. Secretário do Interior e Seguran-
S. Exa. Foi uma inspiração do governador que tem me-
ça, delegado Ramos, delegado do município, às suas or-
recido aplausos gerais.
dens, para o que der e vier.
PENTEADO — Sem dúvida, sem dúvida... Mas, e o
COSTEIRA - - Muito boas as suas referências lá na montante da desapropriação?
Secretaria. É conhecida a sua serenidade num posto di-
COSTEIRA — Foi mais uma inspiração de S. Exa. E
fícil como este.
esta, desejo chamar sua atenção, padre Vieira, um ato
PENTEADO — Difícil, muito difícil. E um desenlace de compreensão cristã. S. Exa. aproveitou a oportuni-
lamentável como este. dade, de certo modo, para corresponder a um ressarci-
88 VIRGINIUS DA GAMA E MELO A MODELAÇÃO 89

mento da perda irreparável que foi para o Estado o de- FERNANDO — (desajeitado na roupa ã-e Bonifácio]
saparecimento do coronel Alarico Diomedes. É. Adelaide já me falou.
PADRE — Interessa-se muito, interessa-se muito, dou- COSTEIRA— Os 150 milhões, a esta altura, já estão
tor secretário. em depósito para pagamento aos herdeiros habilitados.
COSTEIRA — Pela manhã, S. Exa. chamou o líder do S. Exa. mandou dar o andamento mais rápido possível.
governo e deu instruções para apresentar o projeto, in- FERNANDO — Tem minha mãe, eu, ela e Ivone.
dicando o montante da desapropriação. Sabem quanto
arbitrou S. Exa.? 150 milhões. ADELAIDE — E Bonifácio.
FERNANDO — Ivone e Bonifácio dá no mesmo. É mi-
PENTEADO — Cento e cinqüenta milhões?! Uma for-
tuna! nha irmã casada.
PADRE — Uma bênção para a família, Que ato cris- COSTEIRA — Pois o dinheiro já está em depósito.
tão! Pode ser recebido logo com um alvará. Depois teremos
DELEGADO — Uma fortuna! os trâmites legais, é claro.
COSTEIRA — Claro que a propriedade não vale, real- DELEGADO — Esse pessoal vai tirar o pé da lama.
mente, isto. Mas o coração de S. Exa... Os senhores sa- Juiz — E tirar de grande, de muito grande, senhor
bem . . . Convém notar aliás a compreensão da Assem- delegado Ramos!
bléia . . . A aprovação foi unânime.
PENTEADO — É um perdulário. Um louco. Anarquiza
PADRE — Foi, afinal, a grandeza do momento. Deus as finanças do Estado. 150 milhões! Isto aqui vale
escreve certo por linhas tortas. Ah! Os desígnios da Pro- nem 20.
vidência!
OSCAR — Vinte? Me desculpe, dr. Penteado, me des-
COSTEIRA — Tem razão, revendo, tem razão.
culpe, mas sou daqui. Isto aqui não vale nada. Não dá
PENTEADO — (bestifioado) Uma fortuna! nada, dr. Penteado. Não tinha quem comprasse essa ter-
COSTEIRA — Vim para aqui imediatamente — fazer ra. Só se fosse doido varrido.
a comunicação à família. Naturalmente, em primeiro lu- PADRE — Ah! Que grandeza de coração. Esses ra-
gar, apresentar os pêsames do governo e prestar as últi- pazes, agora, vão ter outra vida. Sofreram muito aqui,
mas homenagens do Executivo ao coronel Alarico Diome- trabalhando tanto sem resultado. A terra nunca os aju-
des. Ah! Lá vem dona Adelaide. Com licença, dou.
ADELAIDE — Dr. Costeira, meu irmão Fernando. ANÁLIA — (saindo do quarto, as mãos para frente,
COSTEIRA — Apresento-lhe os pêsames em nome do tateamdo) Cadê o meu café? Cadê o meu café? Cheiro
governador. Naturalmente dona Adelaide já lhe falou da de vela acesa... O que é isto? (aproximando-se do cai-
solução que demos a este problema — a desapropriação. xão).
90 VIRGINIUS DA GAMA E MELO A MODELAÇAO 91

IVONE — (tomando-lhe a frente) Estou aqui, ma- DELEGADO — A propriedade há muito tempo não
mãe. Venha comigo. Porque não ficou no quarto espe- tem nenhum morador porque não rendia nem para pa-
rando que eu levasse o café? Daqui a pouco a senhora vai gar os cinco contos que seu Alarico pedia de foro. A fa-
lá para casa, passar uns dias comigo. mília vivia passando fome. Quanto mais trinta. Esse
ANÁLIA — Que cheiro de vela. povo, sei não, sei não.. .
IVONE — É uma vela que acendi no Sagrado Cora- EDUARDO •—• Bem que a morte do tio está servindo.
ção de Jesus. Promessa. 150 milhões, seu Paulo, 150 milhões. Já é um dinheirão.
ADELAIDE — Que adianta dizer essas coisas? Ela Juiz — Camponês nenhum se agüentará por aqui
não ouve. Não ouve nem vê nada, nessas condições. Essa terra não dá nada. Não tinha mo-
ANÁLIA — (sendo conduzida) Eu quero é meu café. rador nenhum e seu Alarico só pedia cinco contos de
Meu café. Seu Alarico ainda não veio. Que cheiro de foro. A família, ninguém sabe como vivia.
vela. DELEGADO — Esse povo nunca viu carne, dr. Tavei-
PADRE — Dr. Costeira, o senhor tem alguma desti- rã. Nunca fez feira. E por aqui não encontrei nenhuma
nação para a propriedade? ave de pena. De comida, aqui, só vi as latas de conserva
vazias que os camponeses deixaram.
COSTEIRA — Claro, padre Vieira. E para isso vamos
precisar muito de sua colaboração. Pretende-se a pacifi • Juiz —• E esse povo, agora, com 150 milhões, senhor
cação, a solução do conflito social. Esta terra vai ser lo- delegado Ramos, 150 milhões. É grave, é muito grave,
teada com os camponeses, vendida por prazo longo e pa- ouça o que estou lhe dizendo.
gamento de 30 contos anuais. PENTEADO — Este é um precedente revolucionário,
PENTEADO — A terra vai ser entregue aos campo- seu Oscar. É um precedente seríssimo. Abre as portas
neses? para a desapropriação de qualquer terra no Estado.
PAULO — Será que a gente pega alguma coisa desses
COSTEIRA — Sim, senhor. É o que estou dizendo aqui
ao Padre Vieira. Vendida a longo prazo, com amortização 150 milhões?
de 30 contos anuais, em tese, variando, é claro, com a OSCAR — É só o camponês chegar, ocupar e o go-
inflação e o custo de vida. Foi um plano de S. Exa. que verno desapropriar.
consta do projeto e do decreto de desapropriação. EDUARDO —• Por que não pega?
DELEGADO — Trinta contos anuais? PENTEADO — Pois é. E ainda por cima a tentação
COSTEIRA — Trinta contos. Todos podem pagar. A do preço. Com um precedente deste, essa desapropriação
quantia não podia ser mais módica. por uma fortuna louca, até proprietário vai enfraquecer.
PADKE — Isso é que é solução humana, cristã. PAULO — Nós somos sobrinhos. Não herdamos.
OSCAR — Só quero ver qual ê o camponês que vai PADRE — O motorista do carro fúnebre chegou,
entrar nesse negócio. dr. Penteado. O carro está na estrada.
A MODELACAO 93
92 VIRGINIUS DA GAMA K MEXO

PENTEADO — Seu Oscar, como vai ser agora? Não PAULO — (segura o outro braço de Fernando) Vai
devemos perder tempo. O pessoal na cidade está espe- agora não. Resolva. E esses anos todos que a gente tra-
rando. O enterro lá tem hora marcada. balhou aqui! Está tudo perdido?
PADRE — (aspergindo água benta sobre o caixão)
OSCAR — Aqui não tem demora. Padre Vieira já en- Requiescent in pace... Amém.
comendou o corpo. É só pegar o caixão e seguir.
FERNANDO — Só sei de minha vida. Vocês falem com
EDUARDO — Adelaide? Adelaide, e esses 150 milhões? Bonifácio, ele que resolva.
ADELAIDE — O que é que tem? PENTEADO — (vendo que o padre se afasta, tendo
PENTEADO — Então providencie logo, sau Oscar. terminado) Vamos pegar o caixão, Oscar.
EDUARDO — Bonifácio, o que, cachorro! Quem resol-
PAULO — A gente não recebe nada?
ve é você e agora mesmo!
ADELAIDE — Vocês querem herdar? Tinha graça! De FERNANDO — Me solte que eu tenho de pegar o
quem?! Querem passar por cima dos filhos? caixão!
OSCAR — Dona Ivone, o carro fúnebre já chegou. BONIFÁCIO — Fernando? Cadê Fernando!
Devemos pegar o caixão e seguir. Já está ficando tarde PAULO — Ele já vai. Podem ir levando.
e o enterro tem hora marcada na Capital.
PENTEADO — Pegue aqui, Oscar. Capitão, ali. Va-
EDUARDO — Fernando? Fernando, a gente não re- mos, dr. Costeira, (vão saindo, carregando o caixão)
cebe nada desses 150 milhões? Cuidado com a porta. Depois tem o alpendre.
FERNANDO — Eeceber por que? Vocês são filhos?! PADRE — (acompamhado) De Profundis clamavit
ADELAIDE — Cada um cuida de si. Sei lá da vida de ad Te, Domine. ..
ninguém. Só sei da minha vida. Dr. Costeira quer que IVONE — Adelaide, eu só vou até perto da estrada.
eu seja secretária dele. Não sei. Estou rica. Depois venho buscar mamãe.
PAULO — Cachorra! ADELAIDE —• Está certo. Eu vou com ele até a Ca-
pital (para os que carregam, o caixão) Olhem o batentel
ADELAIDE — Que triste! Já estão levando o caixão.
Vou para lá. Tem um batente aí!
EDUARDO — Esses anos todos que a gente trabalhou
FERNANDO — Também vou. aqui, ajudando a matar a fome de seu pai, de sua mãe,
EDUARDO — (segurando-o por um braço] Vai, não. de suas irmãs... Quer dizer que tudo isso está perdido?!
Agora não. Como é? Resolva — a gente recebe ou não PAULO — Calejei minhas mãos nessa terra que não
recebe? dava nada. Toda minha vida está aí, nessa terra revol-
FERNANDO (fazendo f\ôrça pura soltar-se) Me vida com minha sustanca, com meu suor, com minha
largue. alma.
94 VIRGINIUS DA GAMA E MELO A MODELACAO 95

FERNANDO — Que é que eu posso fazer? Vocês não ANÁLIA -—• (tateando, as mãos para frente, toma-lhe
são herdeiros! Me soltem que eu tenho de acompanhar o caminho) Seu Alarico ainda não veio para o almo-
o enterro! ço... Deve estar pelo roçado do Maracajá de Cima.
EDUARDO — Desde pequeno que estou nessa terra. B
não estou só morando não. Estou dentro dela, misturado (Pelo fim do palco, às costas de Fernando)
com as sementes, com os IcirÕes, com as coivaras, com os EDUARDO — Eu mato esse bandido! (dá volta em
bichos todos que andam por ela, com as minhocas. Com
as minhocas! E isso não vale nada não?! Anália, ergue a arma, atira. Fernando pára estremecen-
do. Eduardo atira novamente e aintes que Fernando caia
FERNANDO -- Me soltem que eu tenho de acompa-
nhar o enterro. Me soltem! ouve-se outro tiro. É Paulo que saltou para o terreiro,
também armado)
PAULO — Essa terra — acho que tem mais de mim
do que eu mesmo. Já sou muito menos do que era e não PAULO —• Vamos sangrar! Acabar com ele, mano!
me gastei nada que não fosse para a terra. Estou ali EDUARDO — (ambos chegando para Fernando caído)
também, Eduardo, estou ali até no estéreo, até nas fe-
Vamos sangrar esse bandido! Encher a terra do sangue
zes. No resto do que se comia que saía tudo do meu bra-
ço, da minha força de homem entrando nela, fazendo ela dele!
brotar a semente, a florescer o milho, o feijão, a man- ANÁLIA —• (andando pelo terreiro) Seu Alarico ain-
dioca, ano a ano. De sol a sol. da não veio do campo. Que cheiro bom... De milho flo-
ANÁLIA — (saindo do quarto, as mãos para frente, rescendo, de feijão madurando, de mandioca e flores do
tateando) Seu Alarico ainda não veio do campo... Que campo... Terra abençoada...
vento fresco!
EDUARDO — É muito sangue desse bandido. Muito
FERNANDO — Mamãe!
sangue nessa terra maninha.
EDUARDO — (afrouxando o aperto em Fernando, sur-
preso) A tia! PAULO — É sangue muito. Mas ela bebe tudo c todo
sangue e não dá nada. Terra amaldiçoada. O nosso san-
PAULO — (idem) A tia!... Que adianta? Ela não
vê nem ouve nada. gue, mano, também já está todo nessa terra que não dá
nada em troca.
FERNANDO — (num repelão solta-se, corre para o
alpendre, dali grita) Vocês se ajeitem com o Bonifácio! ANÁLIA — Que cheiro bom dessa verdura toda...
Vão pedir a ele! Todos os anos se repetindo. .. Parece um milagre — da
EDUARDO — Eu mato esse bandido! Eu mato esse areia, da terra, surgindo coisa e linda e boa — o fei-
bandido! (corre e pega o rifle na parede, salta para. o al- jão acamando para o milho fazer pendão... Tanta coi-
pendre) Eu mato esse bandido! sa...
96 VTKC.INIUS DA GAMA E MELO

PAULO — (olhando-a) A vida da tia também, mano,


seguiu a terra. Se acabando nessa terra maninha. Mas,
nós, mano? Todo o tempo de nossa vida, de nossa sus-
tança, de nosso sangue, está por tudo isso — nessas la-
deiras, nesses campos desfeitos, nessa miséria. O que ela
faz de nós, mano?!
EDUARDO —- Não, mano, a terra só faz provar o ho-
mem mas o homem é quem sabe e escolhe o destino. Nós,
nós que fizemos de nós, mano? A terra não engana. Ela
se mostra como ela é. O homem é quem sabe e escolhe o
destino. Nós, o que fizemos de nós, mano?!

FIM DA PEÇA

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