Você está na página 1de 111

O Génio do Mal

Condessa de Ségur
Infanto-Juvenil

Esta obra foi digitalizada sem fins comerciais e destinada


unicamente à leitura de pessoas portadoras de deficiência visual.
Por força da lei de direitos de autor, este ficheiro não pode ser
distribuído para outros fins, no todo ou em parte, ainda que
gratuitamente.

Composto e impresso por


Printer Portuguesa, Indústria Gráfica, Mem Martins - Sintra
para a Editorial Publica, Com sede na Avenida Poeta
Mistral, 6- B - 1000 Lisboa
Maio de 1986

1
Uma perua perdida
BONARD - Ó meu maroto! Perdes-me os meus perus em vez de os
guardares!
JULIÃO - Asseguro-lhe, Sr. Bonard, que cuidei bem deles e
os juntei todos; não faltava nenhum quando os trouxe do campo.
BONARD - Se não faltava nenhum quando voltaste do campo,
também agora não devia faltar. Vejo muito bem que me estás a
enganar; toma cuidado com isso; não gosto de desleixados nem de
mentirosos.
Julião baixou a cabeça e não respondeu. Recolheu os perus;
depois foi tirar a água para a herdade, varreu o pátio, arranjou
a palha para o gado se deitar, e não
6
voltou para casa senão depois de ter acabado todo o trabalho.
Começavam a sentar-se à mesa para cear.
Julião tomou o seu lugar ao pé de Frederico, filho de
Bonard. Este último entrou depois de Julião.
BONARD (a Frederico) - Onde é que tens estado?
FREDERICO - Estive em casa do correeiro, para mandar dar um ponto
num arreio.
BONARD - Estiveste duas horas fora! Havia então muito que
fazer?
FREDERICO - Foi o correeiro que me fez esperar; não achava o
couro de que precisava.
BONARD - Vê se te deixas de passeios quando vais em serviço.
Não é a primeira vez que te censuro por estares fora tempo de
mais. Julião fez a tua tarefa e a dele. Trabalhou muito, e é por
isso que janta como nós; de outro modo não lhe teria dado senão
sopa e pão seco.
SR. A BONARD - Mas porquê? Ele não fez mal nenhum, que eu
saiba.
BONARD - Não fez mal? Não sabes então que perdeu uma perua,
e logo a mais bonita?
SR.a BONARD - Perdeu uma perua! Como fizeste isso, malvado
rapaz?
JULIÃO - Não sei, patroe. Eu trouxe-as todas e a conta
estava certa. Frederico pode dizê-lo, contei- as diante dele. Não
é verdade, Frederico?
FREDERICO - Palavra de honra que não me lembro de tal.
JULIÃO - Como? Não te lembras de que eu as contei diante de
ti e de que estavam lá as quarenta e oito?
FREDERICO - Ouwe lá: eu não estou encarregado dos perus; não
é coisa que me diga respeito, e, portanto, não prestei atenção.
7
SR. A BONARD - Mas, visto que não saíste do pátio, por onde é que
ela teria passado?
JULIÃO - Perdão, patroa, eu ausentei-me pelo espaço de um
quarto de hora para ir buscar a blusa de Frederico, que ele tinha
deixado no campo.
SR. A BONARD - Viste entrar alguém no pátio, Frederico?
FREDERICO - Disso não sei nada; parti imediatamente com o
arreio para o mandar arranjar.
SR. BONARD - É esquisito! Mas, mesmo assim não quero que os
meus perus se percam! É a ti que isso diz respeito, Julião. É
preciso que encontres a perua ou tens de a pagar. Vai procurá-la
nas proximidades; não pode estar longe.
Julião levantou-se e procurou por toda a parte, mas não
encontrou a ave desaparecida. Era noite cerrada quando voltou;
toda a gente se tinha ido deitar e a casa já estava fechada.
Julião estava muito pesaroso; subiu ao pequeno celeiro onde
dormia. Um enxergão e uma pobre manta compunham o seu mobiliário;
duas velhas camisas e um par de tamancos constituíam toda a sua
riqueza. Pôs-se de joelhos, tirando do peito uma cruzinha de
cobre que sua mãe lhe deixara.
Meu bom Jesus - disse ele, beijando-a -, bem sabeis que eu não
tenho culpa do desaparecimento da perua. Fazei com que ela se
encontre, meu bom Jesus. Fazei que a patroa e o Sr. Bonard deixem
de estar zangados comigo e que o Frederico se lembre de que não
faltava nenhum dos meus perus quando os trouxe. Estou sozinho no
mundo, meu bom Jesus; sou pobre e órfão, não me abandoneis; sois
meu pai e meu amigo, tenho
8
confiança em Vós. Boa e Santa Virgem, sede para mim uma boa nãe:
protegei- me."
Julião beijou mais uma vez o crucifixo e deitou- se;
mas não adormeceu logo; afligia- se por parecer negligente e
ingrato para com os Bonard que tinham sido bons para ele e o
haviam recolhido, quando a morte de seus pais o deixara só no
mundo. Além disso, estava inquieto com o desaparecimento da
perua, não podia explicar a si próprio como aquilo acontecera; e
temia que desaparecessem outras da mesma maneira.
No dia seguinte, foi dos primeiros a levantar- se;
abriu as capoeiras, acordou Frederico, que dormia na casa, e
encheu de água os baldes.
A Sr.a Bonard não tardou a aparecer.
SR. BONARD - Então, Julião, achaste a perua? i Porque não
vieste ontem à noite dar a resposta?
JULIÃO - Não achei nada, patroa, apesar de ter
procurado por toda a parte. E não dei a resposta porque toda a
gente se encontrava deitada e a casa fechada quando voltei.
SR. A BONARD - Voltaste então muito tarde? A
culpa é tua; se não tivesses perdido uma perua, não serias
obrigado a procurá-la. Vê se fazes com que isso não torne a
acontecer; eu perdoo-te a primeira vez, mas, se tornas a perder
alguma, pagá-la-ás.
Julião não respondeu. Que podia dizer? Ele próprio não
compreendia nada daquilo. Resolveu nunca mais fazer os recados de
que Frederico o encarregasse e não tornar a abandonar os perus
até estarem recolhidos. Enquanto esperava a hora de os levar para
o campo, fez o seu serviço, como de costume, e uma parte do de
Frederico, que era sempre o último a começar o trabalho.

2
Duas peruas perdidas
A semana passou, sem contrariedades para Julião; o número de
peruas manteve-se inalterável.
Uma tarde, quando Julião voltava do estábulo, após ter
contado os perus na presença de Frederico, este chamou-o:
- Julião, vai depressa ao moinho e traz-nos farelo; é
preciso para os cavalos que estão a chegar; não tenho nem um
punhado.
JULIÃO - Porque não foste lá, depois de almoçar? O Sr.
Bonard tinha- to dito.
FREDERICO - Não me lembrei; estive a limpar os apriscos.
JULIÃO - E porque não vais lá tu? Eu também tenho de tratar
dos estábulos.
FREDERICO - Anda! Acabas isso depois. Estou com pressa; o
meu pai espera-me.
JULIÃO - Recolho os perus e vou já.
FREDERICO - Ainda vais perder tempo atrás dos perus. Eu
recolho-tos.
JULIÃO - Olha que a conta está certa: quarenta e sete.
FREDERICO - Sim, sim; pega depressa num carrinho de mão para
trazer o saco de farelo.
9
Julião hesitou um instante; mas, decidindo-se, pegou no carrinho
de mão e partiu, correndo.
O moinho não era longe; meia hora depois Julião
levava a Frederico o carrinho com o farelo. Os seus perus
estavam recolhidos e ele recomeçou a trabalhar; estava tudo
pronto quando Bonard chegou com os cavalos.
BONARD - Trouxeste o farelo, Frederico?
FREDERICO - Trouxe, sim, meu pai; o saco está na estrebaria.
BONARD - Mediram-no bem?
FREDERICO - Muito bem, meu pai; estão ali mais de dois
hectolitros.
Bonard entrou na estrebaria com Frederico; desatou
o saco e, antes que pudesse mexer no farelo, saiu de lá um
grande rato, que começou a correr pela cavalariça.
BONARD - Que é isto? Um rato! Como foi que se anichou um rato no
saco? Apanha-o, mata-o.
Frederico começou a caça ao rato, mas não conseguiu
apanhá-lo.
Bonard chamou Julião.
- Vem depressa, Julião, ajudar-nos a matar um rato.
Acorreu Julião com uma vassoura; deu uma vassourada no rato e
este ainda correu mais depressa; uma segunda pancada aturdiu-o e
Bonard acabou de o matar com uma pisadela.
JULIÃO - Mas donde veio este rato?
BONARD - Saltou do saco. Como é que ele lá entrou? É o
que pergunto ao Frederico.
FREDERICO - Estava lá, sem dúvida, antes de terem
medido o farelo.
BONARD - Não deixa de ter a sua graça! Como se deixou
enterrar sem tentar sair?
10
Enquanto falava, Bonard meteu as mãos no saco para tirar farelo;
mas soltou uma exclamação de surpresa: não era farelo que de lá
tirava, mas sim cevada.
- Ora esta! Frederico, ouve lá: tu trazes-me cevada
tendo-te eu pedido farelo?
Frederico, tão admirado como seu pai, não respondia.
Olhava para aquilo, boquiaberto.
BONARD - Respondes ou não? Dizes que isto está bem
medido e mandas medir cevada em vez de farelo?
Bonard estava furioso; Julião, querendo evitar que
Frederico fosse repreendido, respondeu por ele.
- A culpa não é do Frederico, Sr. Bonard, mas sim minha.
Quando fui ao moinho estava com pressa; Frederico tinha-me
recomendado que não me demorasse para
o patrão já cá encontrar o farelo ao voltar. Eles deram-me
um saco que já estava preparado; havia lá vários; naturalmente
enganaram-se e deram-me cevada em vez de farelo.
BONARD (a Frederico) - Porque mandaste o Julião? Porque
não foste tu próprio? Porque esperaste até à noite?
FREDERICO (embaraçado) - Tinha muito que fazer; não
arranjei nem um momento disponível.
BONARD - E porque foi lá o Julião? Tiveste medo de te
cansar, preguiçoso? Vai depressa levar este saco e pede farelo.
FREDERICO - Mas agora, vamos jantar, meu pai. Eu posso
muito bem ir lá depois.
BONARD - Vai imediatamente... percebeste?
Frederico, obrigado a obedecer ao pai, pôs nisso toda a má
vontade que lhe foi possível; começou a andar lentamente, depois
de ter perdido tempo a procurar o
carrinho de mão, a encontrar um saco vazio e a sacudi-lo, a pegar
no saco de cevada, a colocá-lo no carrinho, lá se decidiu a ir ao
moinho. Julião queria ajudá-lo, mas Bonard não lho permitiu.
- Ei-lo enfim a caminho - disse Bonard quando Frederico
partiu. - E tu, Julião, proibo-te, daqui para o futuro, que faças
o trabalho dele. Está-se tornando preguiçoso, indolente; travou
relações com esse grande tratante do Alcino, o filho do homem do
café; já lhe proibi essas relações, mas, mesmo assim, continua a
encontrar- se com ele, eu sei. E ele vem algumas vezes aqui
enquanto cá não estou?
JULIÃO - Nunca, patrão. Desde que o patrão o expulsou, há
quase três meses, não tornou cá nem uma única vez.
BONARD - Contaste os perus esta tarde? Estavam todos?
JULIÃO - Estavam, sim, senhor; contei quarenta e sete. Foi o
Frederico que os recolheu enquanto eu fui ao moinho buscar o
farelo.
BONARD - Não gosto nada dessa troca de trabalho.
Era a ti que competia recolher os perus e Frederico devia ter ido
ao moinho. Repito-te que, para o futuro, quero que cada um faça o
seu serviço. Estas misturadas e complacências não trazem nada de
bom. Resulta daí que uns trabalham de menos e outros de mais.
JULIÃO - Estou deveras contrariado por lhe ter causado
um aborrecimento, patrão. Julgava proceder bem, obedecendo ao seu
filho, porque sei bem que sou quem vale menos em casa do Sr.
Bonard, que tem sido tão bom para mim e que me recolheu quando
toda a gente me repelia.
13
BONARD - Ouve, Julião: se me estás reconhecido pelo bem que te
faço, hás-de demonstrar-me isso não favorecendo a preguiça de
Frederico. É um defeito perigoso que leva a cometer muitas
tolices, e eu quero que o Frederico se conserve uma pessoa de
bem.
JULIÃO - Farei o que me diz, patrão; sei que é esse o meu
dever.
Falando sempre, Bonard tinha dado aveia aos cavalos,
enquanto Julião fazia a cama de palha que lhes era destinada.
Quando os animais ficaram servidos e arranjados, Bonard foi para
casa jantar. Julião seguia-o de perto.
SR.a BONARD - Ah! Já chegaste, grande tratante? Tornaste a perder
um peru e desta vez não te perdoo. O teu jantar hoje é sopa e pão
seco, e desconto-te o preço do peru nos sessenta francos que te
dá Bonard para os teus gastos; assim, meu rapaz, conta com
cinquenta e cinco francos, em lugar de sessenta, este ano.
Julião estava consternado. Encontravam-se lá todos os perus,
tinha disso a certeza, quando Frederico o mandara ao moinho, e
não era natural que alguém o tivesse roubado ou deixado fugir...
excepto... o próprio Frederico.
Julião contou à Sr.a Bonard como as coisas se haviam
passado: Frederico encarregara-se de recolher e fechar os perus
na capoeira, e com toda a certeza, estavam lá os quarenta e sete,
visto que ele os havia contado diante de Frederico.
- É impossível - replicou a Sr. a Bonard -, visto que fui eu
própria que encontrei os perus abandonados no pátio, sem ninguém
para os guardar e recolher; fui eu que os contei e só encontrei
quarenta e seis.
14
- Pois Frederico prometeu-me que os recolhia logo
- respondeu tristemente Julião -; e tenho a certeza absoluta
de que foram quarenta e sete que Lhe entreguei antes de ir ao
moinho.
Bonard ouvia e parecia contrariado.
- Escuta, mulher - disse ele -, esperemos por Frederico
para esclarecer o assunto; e entretanto dá a Julião de jantar;
ele explicou as coisas como um rapaz honesto e disse a verdade,
garanto-te. Não deixa de ter a sua graça que duas quintas-feiras
seguidas nos tenha desaparecido um peru sem que Frederico haja
dado por isso.
SR.a BONARD - O quê? Que queres dizer? Qual é a tua ideia? Porque
tu tens uma ideia, vejo-o muito bem.
BONARD - Certamente que tenho; talvez seja boa, ou talvez não.
SR. A BONARD - Mas diz qual é.
BONARD - Pois muito bem, digo que quinta-feira é
a véspera de sexta.
SR.a BONARD (rindo) - Olha a grande novidade! Não
precisávamos de ti para fazer essa descoberta!
BONARD - Sim, mas tu esqueces que sexta-feira é
dia de mercado na cidade; que se vende lá criação e que uma
pessoa pouco séria facilmente poderia apanhar um peru, torcer-lhe
o pescoço e levá- lo.
SR.a BONARD - Isso é verdade; mas como se com preende que um
estranho venha ao nosso pátio sem ser visto, que tenha tempo de
correr atrás dos perus e de fazer a sua escolha para deitar a mão
logo ao mais gordo, ao mais bonito?
BONARD - É precisamente aí que está a minha ideia; dir-
te-ei mais tarde. Enquanto esperas, serve o jantar.
15
A Sr. a Bonard olhou para o marido, com inquietação; começava a
ter um vago receio da ideia de que ele lhe falava; sentia-se
perturbada. No entanto, não disse nada. Pôs na mesa uma terrina
com sopa bem quente e um prato de carne de porco salgada de
fresco, com couves, cujo cheiro agradável, encheu de alegria
Julião e lhe fez apreciar com entusiasmo a bondade do seu patrão.
- Se não fosse o Sr. Bonard, eu não saborearia estas
deliciosas couves com carne de porco, coisas de que tanto gosto.
Frederico entrou no momento em que se sentavam à mesa. Tomou
o lugar do costume, junto de sua mãe, e comeu com belo apetite,
mas sem falar, porque estava de mau humor.
No fim de alguns instantes, surpreendido com o silêncio
geral, levantou os olhos para o pai que o examinava atentamente,
e depois para a mãe, cuja fisionomia grave lhe causava alguma
apreensão. Tinha muita vontade de interrogar Julião, mas tê-lo-
iam ouvido, e ele não queria deixar adivinhar a sua inquietação.
Quando terminou o jantar, Frederico levantou-se para sair, mas
Bonard não lho permitiu.
- Fica aqui, Frederico; preciso de te falar.
Tornou a sentar-se.
BONARD - Sabes que falta um peru?
FREDERICO (perturbado) - Não, pai, não sabia.
BONARD - Julião disse- te quantos estavam quando tu o mandaste
fazer um recado?
FREDERICO - Creio que não, meu pai; não me lembro disso.
JULIÃO - Como! Esqueceste que os contámos os dois na volta
do campo, e que antes de partir para o
16
moinho eu te repeti que o bando estava completo, que
estavam lá os quarenta e sete perus?
FREDERICO - Não me lembro; nem sequer prestei
atenção a isso.
JULIÃO - Pois olha, para mim é bem triste; é a
segunda vez que te esqueces e isso faz com que eu pareça
um mentiroso, um desleixado e um ingrato aos olhos dos
teus pais.
BONARD - Não, meu pobre rapaz, não te julgo tão
severamente; há um ano que estás em minha casa, tens-me
servido o melhor que podes e creio que és um bom e
honrado moço.
JULIÃO - Muito obrigado, patrão; se algumas vezes
não trabalho como devo, não é por má vontade, certamente.
BONARD - Mas, voltando ao assunto, como se compreende que tu,
Frederico, esquecesses duas vezes seguidas uma coisa que, no
entanto, é tão importante?
FREDERICO - Mas, papá, eu não tenho os perus a
meu cargo, isso é com o Julião.
BONARD - Bem sei; mas, para mostrares algum in teresse por ele,
que é tão amigo de te fazer as vontades, devias prestar mais
atenção quando te fala a respeito dos
perus. E, depois, como se compreende que, de cada vez
que se perde um peru, enquanto mandas Julião a recados, eu
veja vaguear em volta da quinta esse vadio do
Alcino com quem já proibi que te continuasses a dar?
FREDERICO - Não sei nada disso; não o tenho
visto, o papá bem sabe.
BONARD (severamente) - Sei, pelo contrário, que continuas
a falar-lhe apesar da minha proibição, e que há
quem vos tenha encontrado juntos muitas vezes. Mas ouve:
17
sabes que não gosto de te bater. Pois bem, castigar-te-ei com
severidade a primeira vez que te virem com esse tratante. Não te
quero com más companhias. Ouviste?
Frederico baixou a cabeça sem responder. Bonard saiu para
dar de beber aos cavalos. Julião ajudou a Sr. a Bonard a lavar a
louça e a pôr tudo em ordem. Frederico ficou só, pensativo e
perturbado.

3
O inglês e Alcino
Poucos dias depois, Julião estava no campo guardando os
seus perus, quando um homem, que não conhecia, se aproximou e
começou a mirá-lo atentamente; em seguida chegou-se mais.
HOMEM - Eh! pequena, ser tuas estes gordas animales?
- Não, meu senhor - respondeu Julião, admirado
com a pronúncia do desconhecido.
HOMEM - Pequena - mim querer comprar estes gordas
animales; mim gostar muito de turkeys*.
Julião não respondeu: não compreendia o que queria
aquele homem que falava tão mal o francês.
INGLÊS - Eh! pequena, você não ouvir mim?
' Peru, em inglês.
18
JULIÃO - Ouço bem, meu senhor, mas não percebo
o que diz.
INGLÊS - Você não perceber, tolinha? Mim dizer que mim
gostar muito de turkeys.
JULIÃO - Sim, meu senhor.
INGLÊS - E então?
JULIÃO - Então, meu senhor, não percebo.
INGLÊS (impacientando-se) - Você não perceber turkeys? Você não
saber falar, então.
JULIÃO - Sim, meu senhor, eu falo bem o francês, mas o
turco não.
INGLÊS (no mesmo tom) - Estupidazinha! Mim falar
francês como você, não falar turca. E mim dizer a
você: mim querer comprar estas gordas animales, estas ordas
turkeys.
JULIÃO (rindo) - muito bem, já percebo, o
senhor chama turcos aos meus perus. E o senhor quere- os para si?
INGLÊS - Ser isso mesma, pequena! Quanto custar elas?
JULIÃO - Não são meus, meu senhor, não posso vendê-los.
INGLÊS - Onde poder vender elas?
JULIÃO - Na herdade, meu senhor: a Sr.a Bonard.
INGLÊS - Onde ser isso, Sr. a Bonard?
JULIÃO - Lá adiante, senhor. Atrás deste bosquezinho, à
direita e depois à esquerda.
INGLÊS - Oh! mim não conhecer, mim não encontrar Sr. a
Bonard. Vem pequena, você mostrar a mim Sr. a Bonard.
JULIÃO - Eu não posso deixar os meus perus, senhor.
Tenho de os guardar enquanto andam a pastar.
19
INGLÊS - Pastar? Que ser isso, pastar?
JULIÃO - Pastar, comer. Só os recolho ao anoitecer. INGLÊS -
Miim não compreender muito bem. Você comer todas turkeys? Hoje?
JULIÃO - Não, senhor... Adeus, meu senhor.
E Julião, aborrecido com a conversa do inglês, cumprimentou-o e
começou a andar, levando os perus; o inglês seguiu-o. Foi em vão
que Julião parou, recomeçou a andar, se dirigiu para a direita ou
para a esquerda; o inglês não o deixava. Julião, um pouco
perturbado com esta obstinação, e temendo que aquele estranho lhe
roubasse algum peru, dirigiu-se para os lados da quinta com
intenção de chamar alguém que o socorresse para recolher os
perus.
No momento em que dava a volta à extremidade do bosquezinho,
avistou um rapazito que de lá saía, dirigindo-se também para a
quinta.
Julião chamou:
-Olá! venha por aqui, se faz favor! Dê-me uma ajuda para
recolher mais depressa os meus perus.
O rapaz voltou-se; Julião reconheceu Alcino e arrependeu-se
de o ter chamado. Alcino acorreu imediatamente e, por sua vez,
reconheceu o inglês, a quem cumprimentou.
ALCINO - Que me queres, Julião? Não me chamas muitas vezes,
e, no entanto, eu gosto imenso de ti.
JULIÃO - Sabes bem, Alcino, que o meu patrão nos proibiu, a
mim e ao Frederico, de falar contigo. Se hoje te chamei foi para
me ajudares a levar para a quinta os meus perus que estão com
vontade de se afastar; sentem que ainda não são horas de
recolher.
ALCINO - E porque tens tanta pressa de os levar?
20
JULIÃO - Porque desconfio deste homem que teima
em me seguir há duas horas; não sei o que ele quer. Não
percebo a sua algaravia.
ALCINO - Pois olha, é uma excelente pessoa; não te
fará mal nenhum, pelo contrário.
JULIÃO - Como é que o conheces?
ALCINO - Mora perto de nós, é a porta ao lado.
-Bom dia, good morning, my dear - disse ele, dirigindo-se a
Alcino. - Mim querer comprar estes
gordas turkeys, e o pequena não querer.
ALCINO - Espere, meu senhor, eu já lhe falo disso.
Ouve cá, Julião, o Sr. Georgey quer um dos teus perus.
Pagar-to-á por bom preço.
JULIÃO - Mas eu posso, por acaso, vender estes perus? Sabes
bem que não são meus. Ele que vá à herdade falar com a Senhora! É
ela quem vende a criação. Eu já
lhe disse, mas ele teima sempre em me seguir. Eis a
razão por que te chamei, sem te ter reconhecido; receava
que me levasse algum dos animais, enquanto eu perseguia os que se
afastavam.
ALCINO - Mas ouve cá, Julião, tu podias, mesmo assim, fazer
um óptimo negócio com este senhor!
Ele não olha a despesas, é rico; vendias-lhe um dos teus perus
por oito francos.
JULIÃO - Em primeiro lugar, já te disse que quem
os vende é a Sr.a Bonard, lá na herdade; e depois, ainda
que Lhe vendesse por oito francos, não vejo o que ganharia
com isso.
ALCINO - Como? Palerma! Pois não vês que sendo
quatro francos o preço de um peru, podias guardar quatro e
dar outro tanto à Sr. a Bonard?
JULIÃO - Ah! mas isso era um roubo!
21
ALCINO - De maneira nenhuma, visto que ela não
perdia nada com isso.
JULIÃO - É verdade, mas mesmo assim não me
parece que isso fosse um negócio sério.
ALCINO - Fazes mal, meu amigo; asseguro-te que
fazes mal. Deixa-me fazer o teu negócio; não é preciso
que te metas nisto; eu arranjo tudo e depois repartimos
os lucros.
Julião reflectiu um instante; Alcino observa-o com
inquietação; contraía-lhe os lábios um sorriso astuto.
ALCINO - Então decides-te?
- Já decidi e recuso - disse resolutamente Julião: Sinto que
isso não era um negócio honesto, visto que
nunca ousaria confessá-lo à Sr.a Bonard.
ALCINO - Mas ouve, meu amigo.
JULIÃO - Deixa-me; já te ouvi tempo de mais, visto
que hesitei um instante.
ALCINO - Então, escusas de contar comigo para
levar o bando; não sou eu que te ajudarei.
JULIÃO - Nem eu peço a tua ajuda; tirar-me-ei sozinho de
apuros. Vamos, a caminho, meus perus, e não
nos afastemos.
Julião fez silvar a chibata e os perus puseram-se a
caminho; o inglês, que esperava a alguma distância o
resultado da negociação de Alcino, escancarou muito a
boca, piscou os olhos e ia de novo começar a seguir Julião e
o seu bando, quando Alcino lhe fez um sinal para que
se não mexesse. Embrenhou-se a seguir no arvoredo e
encontrou-se ao mesmo tempo que Julião no limite do
bosque, ao pé da cancela.
Aproveitando-se do momento em que Julião tinha
deixado os perus para abrir a cancela, apanhou um que
22
estava pertinho da moita onde se encontrava escondido e
levou-o apressadamente para o bosque. Depois, passando
cautelosamente de moita em moita até alcançar o sítio
em que o deixara Julião, saiu do bosque e encontrou- se
com o inglês. Este não saíra do mesmo sítio; conservava-se
direito e imóvel. Quando viu chegar Alcino com a
gorda animalN, soltou um oh! de satisfação.
SR. GEORGEY - Quanto custar, my dear?
ALCINO - Oito francos, Sr. Georgey.
SR. GEORGEY - Oh! as outras custar seis.
ALCINO - É verdade, Sr. Georgey, mas Julião não
quis vendê-lo por menos de oito francos, porque tem
mais quinze dias que os dois últimos que o senhor comprou e
está mais gordo.
O inglês tirou oito francos da algibeira, deu-os a Alcino e pôs-
se a acariciar o peru, dizendo:
Pequena ser uma patiforiazinha, Mim julgar que pequena
vender seus animales demasiada caras. Você levar
turkey, ela sujar a minha quinta.
ALCINO - O senhor quer que eu leve o peru?
INGLÊS - Yes, my dear.
ALCINO - Mas é impossível, Sr. Georgey, porque
posso encontrar alguém de casa dos Bonard. E se eles
pensam que eu o roubei?
INGLÊS - Mim não compreender muito bem. Isso
não ter importância; você levar turkey.
ALCINO - Não posso, Sr. Georgey, eles vêem-me.
INGLÊS - Não falar tão alto, você. Mim não ser
surda. Mim dizer a você: levar turkey. Você não perceber?
Alcino procurou fazer-lhe compreender porque não
podia levá-lo e aproveitou-se de um momento de indecisão
23
do inglês para lhe entregar o peru e se escapar, correndo.
O inglês, embaraçado com o peru que se debatia, apertou-o
com as duas mãos, para impedir que ele fugisse. O pobre peru,
quase sufocado, justificou os receios do seu novo dono; sujou-lhe
bastante o ninexprimível, quer dizer, as calças. O Sr. Georgey
fez um oh! indignado, abriu as mãos num gesto involuntário,
largou o peru e este fugiu com tal velocidade em direcção à
herdade que o inglês perdeu toda a esperança de o apanhar.
Limitou-se a segui-lo majestosamente, de longe, não o perdendo de
vista. Pouco tempo depois, chegava à cancela.
Durante este tempo, Julião recolhia os perus. Bonard estava
no pátio.
-Patrão, patrão - gritou Julião, avistando-o - voltei mais
cedo para salvar os meus perus.
BONARD - Mas que aconteceu? Tiveste algum mau encontro?
JULIÃO - Julgo bem que sim, patrão; um homem muito
engraçado, que fala uma esquisita algaravia, queria absolutamente
ficar com os meus perus. E depois, patrão, ainda tive um encontro
bem pior: Alcino, que se dirigia para o lado da quinta e que eu
chamei para me ajudar a conduzir os animais.
BONARD - Porque o chamaste? Sabes que tanto tu como
Frederico, estão proibidos de Lhe falar.
JULIÃO - Foi porque não o conheci, patrão; e depois, quando
ele me apanhou não havia maneira de fazer com que se fosse
embora.
E Julião contou a Bonard o que se passara entre ele e
Alcino.
24
JULIÃO - Eu ainda hesitei, patrão; tive como que
vontade de fazer o que Alcino me aconselhava.
BONARD - E o que te fez desistir?
JULIÃO - Pensei que havia de me sentir envergonhado se o senhor e
a senhora soubessem; e que se fizesse isso era certamente às
escondidas do patrão. Então,
disse para comigo: toma cuidado, Julião; aquilo que não
tens coragem de mostrar à claridade do dia, com certeza
não é bonito. E se sentes medo do Sr. Bonard, que tem
sido tão bom para ti, é porque essa acção merecia castigo. E
vi que tivera um mau desejo e arrependi-me muito, muito, patrão;
e disse ainda para comigo que para me
castigar a mim próprio havia de lhe contar isto tudo. E
por isso o estou fazendo, patrão.
BONARD - Fizeste bem, Julião; és um bom e honrado rapaz. Mas
é conveniente contar os perus para ver se falta algum. Pareceu-me
ter visto correr alguém no bosque, há um instante.
- Ó patrão, estão cá todos; contei-os enquanto vinha
andando.
Apesar da confiança de Julião, Bonard contou os
perus.
BONARD - Só acho quarenta e cinco, meu rapaz; falta-te um.
JULIÃO (muito admirado) - Não é possível, patrão,
visto que acabei de os contar já perto da cancela.
No momento em que iam recomeçar a sua contagem,
ouviram piar um peru, que procurava passar através das
grades da cancela. Julião recolheu-o e exclamou alegremente:
- Cá está ele, patrão, cá está o nosso peru; perdeu
algumas penas e uma parte da cauda, mas é sem dúvida
25
nenhuma o nosso. Como conseguiram roubarem-mo se
eu nem um instante deixei de os seguir?
Bonard pegou no peru, examinou-o, voltou-o de todos os lados e
não viu nada que lhe desse a conhecer como fora roubado sem que
Julião tivesse visto o gatuno.
Adivinhou pouco mais ou menos a verdade, mas quis
certificar-se dela antes de dizer qualquer coisa a esse
respeito.

4
Uma sova bem merecida
No mesmo instante chegou o inglês e dirigiu-se a Julião,
cruzando os braços.
INGLÊS - Pequena, você ser uma ladra!
Julião, surpreendido, ficou mudo e imóvel.
INGLÊS - Pequena, você ser ladra, você roubar minha turkey.
Bonard aproximou-se do inglês.
- Que quer, senhor? Porque está insultando Julião?
INGLÊS (sempre com os braços cruzados) - Juliana!
Ser Juliana este pequena! Very welL. . Juliana você ser
um pequena ladra, gatuna, um pequena abominável.
BONARD - Ora essa, senhor! Terá acabado enfim
com os seus insultos?
INGLÊS - Mim não falar a você, sir, Mim não
conhecer você. Deixar-me tranquila. Mim falar a pequena;
26
ele ser um tratantezinha e mim esmurrar a ele; jogar
boxe.
BONARD - Experimente tocar-lhe, que eu lhe dou o
boxe; tente somente e verá!
O inglês, por única resposta, pôs-se em posição de
quem se prepara para jogar o boxe, e Bonard teria apanhado
um murro em pleno peito se não se houvesse esquivado a tempo; o
inglês atirara-se com tanta força contra Bonard, que tropeçou e
foi cair na lama da estrumeira, de cabeça para baixo.
Julião correu em seu socorro e ajudou-o a levantar-se,
enquanto Bonard ria a bandeiras despregadas.
O inglês estava agora de pé, encharcado numa água
negra e malcheirosa.
- Oh, my goodness! Oh my God - repetia ele num tom
lastimoso, mas sem sair do mesmo sítio.
A Sr.a Bonard tinha ouvido qualquer coisa da cena e
da queda; saiu de casa e vendo aquele infeliz homem, todo negro e
ensopado, dirigiu-se a ele.
- Meu pobre senhor! - exclamou ela. - O que
havia de lhe acontecer! Queira entrar, para se lavar e
limpar o fato.
O Inglês olhou-a um instante; a fisionomia da
Sr.a Bonard agradou-lhe, e ele saudou-a com graça e delicadeza.
INGLÊS - Senhora ser muito boa; mim agradecer
senhora. Mim estar um pouco enlameada e não ousar
entrar em aposentos de senhora.
SR. BONARD - Entre, entre, meu bom senhor, não
se importe.
INGLÊS (oferecendo-lhe o braço) - Se senhora querer, aceitar
braço.
27
SR.a BONARD (rindo) - Muito obrigada, meu caro
senhor: fica para outra vez; agora não está em estado de
patentear a sua delicadeza.
A Sr. a Bonard apressou-se a voltar a casa para preparar água,
sabão, uma selha e roupa branca. O inglês
seguiu-a em passo cauteloso mas antes voltou-se para
Julião e estendeu-lhe a mão, dizendo:
- Mim perdoar você, Juliana; você ajudar a mim, você ser um
good fellow.
Deu dois passos, voltou-se e ajuntou:
- Mas você ser uma pequena ladra se não dar a mim
a turkey.
Quando entrou em casa, a Sr.a Bonard mostrou-lhe a
água, o sabão e a roupa.
SR.a BONARD - Pronto, senhor; quer que o ajude?
O inglês olhou para ela com um ar indignado.
INGLÊS - Oh! Senhora! Fye! Uma senhora lavar
senhor! Fye! shacking!
SR.a BONARD - Oh! muito bem! O interesse não
era meu, Arranje-se sozinho. Voltarei a buscar o seu fato
para o limpar um pouco.
A Sr.a Bonard saiu, fechando a porta atrás de si, e foi
ter com Bonard e Julião, que se lavavam, tirando água à
bomba.
SR.a BONARD - Quem é este homem? Que ar engraçado ele tem!
Que andava a fazer, para rebolar assim nesta porcaria?
Bonard contou-lhe o que se passara e riram muito os
dois, por causa da aventura do inglês, mas a Sr. a Bonard
quis esclarecer o assunto do peru que ele reclamava.
- É muito claro - disse Bonard. - Provavelmente, Alcino deitou a
mão ao animal quando Julião abriu a
28
cancela. Foi ele sem dúvida que eu vi correndo através
do bosque; naturalmente vendeu o peru ao inglês e este
julgou que Julião tinha encarregado Alcino da venda;
aquele imbecil, desastrado como poucos, deixou por
certo fugir o peru que voltou, correndo, para a herdade;
ele seguiu-o e vendo-o no pátio julgou que Julião lho
queria roubar. E o pior é que, como não compreende
nada, não nos podemos explicar com ele.
A Sr. Bonard, mesmo assim quis ouvir a história
contada por Julião, que tinha acabado de se lavar.
Enquanto falavam, Bonard entrou na sala e viu o
inglês com uma camisa tão comprida, que lhe batia nos
calcanhares, postado diante do seu fato que contemplava
tristemente, com os braços cruzados.
BONARD - É certo que o seu belo fato está um
pouco deteriorado, mas dê-mo, que, daqui a pouco, nem
parece que lhe aconteceu isto.
E antes que o inglês tivesse tempo de descruzar e
estender os braços, Bonard agarrara no fato e levara-o
para o limpar no tanque que havia ao lado.
Por mais que o inglês gritasse: - Oh! dear! Oh!
goodness! Minhas papeis! Tomar atenção minhas papers!
Não pôr água minhas papers! Você afogar minhas papers! -
Bonard não lhe levou o fato senão depois de
estar limpo... e bem ensopado.
- Tome, senhor aqui está o seu fato, um pouco húmido, mas
asseado. Oh! Eu torci-o bem. Vamos lá, não
ficou com água. Acabará de secar em si.
O inglês agarrou na sobrecasaca, remexeu nas algiibeiras e
retirou de lá uma volumosa carteira que abriu, tremendo. Tirou
dela vários papéis que estavam num
estado deplorável. Avançou para Bonard, pôs-lhos a
29
duas polegadas no nariz e disse com a voz sufocada pela
emoção:
- Patifa, celerada! Você ter perdido minhas papers!
Ver, grande desgraça, ver? Os sketches (desenhos) de
todas fabricações minhas! Os compreendimentos de todas
máquinas! Que fazer mim, agora? Que apresentar a
amigos minhas de Inglaterra?
30
Bonard, que considerava o inglês como um louco, não se zangou com
os insultos que ele lhe dirigiu, nem com a sua injusta cólera.
Olhou para os papéis, enquanto
o Sr. Georgey os desdobrava, e disse com calma:
-Não faz mal, Sr. Inglês, não tem importância!
Trata-se somente de fazer com que tudo isso seque; depois, nem
mesmo parece que se molharam. Eu vou chamar a minha mulher e ela
dá-lhe uma ajuda.
INGLÊS - Espere aí! Mim não saber que você ser
marido de senhora! Um minuto, por favor! Mim querer
meu casaca nos ombros e minha ainexprimível, nas
pernas. Mim pedir desculpa a você, mim não saber que
senhora ser seu mulher. Na verdade, mim estar muito
arrependida.
Enquanto falava, o Sr. Georgey tinha-se vestido; esperou,
tiritando, a chegada da Sr.a Bonard, a quem o
marido fora buscar. Quando esta entrou, desfez-se em
cumprimentos e desculpas, a que nem o marido nem a
mulher prestaram atenção.
-Acende depressa o lume, Bonard. Este pobre
senhor treme que faz dó. Aquece-o o melhor que puderes; eu vou
pôr o ferro ao lume para secar e passar esses
papéis, aos quais parece ligar tanta importância.
O inglês deixou-se virar e revirar por Bonard diante
de um lume muito vivo.
A Sr. a Bonard ia passando e dobrando os papéis, enquanto o
Sr. Georgey era envolvido pelos vapores que a
sua roupa exalava.
Gastaram meia hora para aquecer o homem e enxugá-lo. Quando
se sentiu seco e quente, disse a Bonard, num tom suave e
moderado:
- Mim esperar ter minha turkey, my dear sir.
31
BONARD - Escute, bom senhor, e faça por compreender: a perua a
que chama turkey (não sei porquê)
não é sua, mas sim minha.
O inglês fez um movimento.
BONARD - Com licença; deixe-me acabar. Foi Alcino que lha
vendeu?
INGLÊS - Oh yes! Alcino good fellow! Ele vender a
mim tão bons turkeys!
BONARD - Pois bem, Alcino roubou-ma e vendeu-a
ao senhor.
INGLÊS - Oh! Alcino tão boa fellow! E Fridrico
também!
BONARD - Ele já lhe vendeu outras duas, não é
verdade?
INGLÊS - Oh! sim, excelentes!
BONARD - Pois Alcino tinha-as roubado a Julião.
INGLÊS - Oh! my goodness! Como Alcino ser um
patifa, gatuna? E Fridrico também?
BONARD - Por quanto lhas vendeu ele?
INGLÊS - Dois primeiros, seis; gorda último, oito.
Ele dizer ser mais gorda.
BONARD - Esse ladrão roubou-me a mim e ao
senhor.
INGLÊS (inquieto) - E mim não comer mais seus
gordos turkeys?
BONARD - Com certeza que sim; vender-lhas-ei a
quatro francos, enquanto tiver.
INGLÊS (rindo e esfregando as mãos) - Oh! very
well, nós boas amigas então. Oh! ladrona Alcino, ladrona
Fridrico! Ele ter vendido a mim duas primeiras. Quando
mim tornar a ver a eles, mim fazer aos dois um boxe
32
terrível. Good bye, Master Bonard. Mim vir muitas vezes.
Minhas papers, por favor.
SR.a BONARD - Aqui estão, senhor; estão bem secos, bem passados;
nem parece que se molharam; um
pouco amarelos, somente.
INGLÊS - Isso não ter importância nenhum. Good
bye.
O Sr. Georgey cumprimentou uma última vez e foi-se
embora.
Bonard olhou a mulher, que limpava os olhos.
BONARD - Estás a chorar, mulher? E tens razão;
por pouco que não faço o mesmo. Frederico, o nosso
filho, um ladrão!
SR.a BONARD - Foi Alcino que o levou a isso, com
certeza. Ele, sozinho, não faria uma acÇão tão má.
BONARD - Assim o creio; e aqui está o que ele
ganhou em não me obedecer; tinha-o proibido muitas
vezes de se dar com esse tratante do Alcino... Quando
voltar levará a sua conta.
SR.a BONARD - Oh! Bonard, poupa-o; pensa que
ele procedeu mal porque o levaram a isso.
BONARD - Um rapaz sério não se deixa levar. Repara no Julião: é
muito mais novo que Frederico, tem só
doze anos, e vê como ele resistiu.
Enquanto o marido e a mulher conversavam tristemente,
esperando Frederico, Julião havia recolhido os
perus e tratava dos cavalos. Nisto viu a cabeça de Frederico
a aparecer por detrás de um monte de palha.
JULIÃO (rindo) - Olha! que estás a fazer aí? Porque
te escondeste nesse sítio?
FREDERICO - Chut! Toma cuidado, não te ouçam.
Vi o inglês na sala. Já se foi embora?
33
JULIÃO - Já; foi mesmo agora. Porque é que tens
medo deste inglês? Tem um ar esquisito, mas não é mau,
apesar de tudo o que diz. De onde é que o conheces?
FREDERICO - Não o conheço muito bem; foi só de
o ter encontrado com o Alcino. Que disse ele? Porque
veio cá?
JULIÃO - Não sei lá muito bem; pedia-me o seu
tarkei; parece-me que é assim que ele chama aos perus.
FREDERICO - Sim, sim, mas que disse ele?
JULIÃO - Palavra de honra que não compreendi
grande coisa. Queria-me esmurrar a mim e depois ao teu
pai. Estava sempre a pedir o seu tarkei e chamava-me
ladrão, patife. Creio que ele não tem a cabeça bem no
lugar; tem a modo que um ar de maluco!
FREDERICO - Ele falou de mim?
JULIÃO - Não, parece-me que não. Mas que te importa isso?
FREDERICO - Tens a certeza de que ele não disse
nada a meu respeito?
JULIÃO - Eu, pelo menos, não ouvi nada.
FREDERICO - Então posso entrar?
JULIÃO - Porque não? Mas que é que tens? Estás
com um ar tão assustado!
FREDERICO - O papá está na sala?
JULIÃO - Penso que sim; não o vi sair.
Frederico, tranquilizado, saiu de detrás da palha e
dirigiu-se para casa.
A porta abriu-se e Bonard apareceu.
- Segue-me - disse ele a Frederico, num tom de
voz que despertou no rapaz todos os seus receios. Segue-me -
tornou ele -, vem à estrebaria. E tu, Julião, vai-te embora.
34
Julião obedeceu quase tão trémulo como Frederico. Bonard fechou a
porta. Frederico fez-se pálido como
um cadáver.
BONARD - Como travaste conhecimento com este inglês que
saiu daqui?
Frederico não respondeu; batia-lhe o queixo. Bonard aplicou-
lhe uma bofetada que lhe fez soltar um grito agudo.
BONARD - De onde conheces este inglês?
FREDERICO (chorando) - Eu... encontrei- o... com o Alcino.
BONARD - Porque estavas com o Alcino, apesar da minha
proibição? Porque roubaste os perus de acordo com o Alcino, para
os vender a este inglês? Porque
consentiste que eu ralhasse duas vezes com o Julião, sabendo
que ele estava inocente e sentindo-te culpado?
FREDERICO (chorando) - Não fui... eu... meu pai...
foi... o Alcino.
Depois pôs-se de joelhos diante do pai e disse-lhe,
soluçando:
- Meu pai, perdoe-me, foi o Alcino que roubou os perus. Eu
somente fiz mal em estar com ele depois da sua proibição.
BONARD - Tu estás a mentir. Sei tudo. Confessa a tua falta
francamente. Conta como isso aconteceu e como pôde o Alcino
vender os meus perus ao inglês.
FREDERICO - Alcino e eu combinámos encontrar-nos no bosque,
ao anoitecer, quando eu estivesse só; ele estava lá à minha
espera. Mandei Julião duas vezes fazer recados para que ele não
me visse com Alcino; corri pelo bosque e encontrei-o com o
inglês; depois, Alcino desapareceu por um instante e voltou com
um peru debaixo
35
do braço; antes que eu pudesse evitá-lo, fez o ajuste com
o inglês, que partiu imediatamente, levando o peru. Alcino
deu-me dois francos, pedindo-me para não falar daquilo a ninguém;
eu estava pasmado, nem sabia o que
fazia. Alcino fugiu e e fui-me também embora.
BONARD - E os dois francos?
FREDERICO - Não os pude restituir; Alcino tinha-se ido
embora.
BONARD - E da segunda vez?
FREDERICO - Passou-se tudo do mesmo modo.
BONARD - E tu deixaste-te levar, sabendo o que ia
acontecer? E guardaste mais uma vez o dinheiro, sabendo que
era um roubo? Nem sequer coraste, deixando
acusar Julião, pela segunda vez? E não te envergonhaste
de roubar teu pai e tua mãe e de te ligares, para isso, a
um velhaco, a um ladrão, como tu, afinal? Mentes, é
mentindo aumentas a culpa e o castigo.
Bonard agarrou Frederico e aplicou-lhe um rude
correctivo bem merecido; impeliu-o, em seguida, para
cima do monte da palha e saiu da estrebaria.

5
Os turkeys todos
Quando Bonard voltou para casa contou à mulher o que se
tinha passado entre ele e o Frederico.
A Sr. a Bonard chorou, mas achou que o marido tivera
razão.
36
Quando o Sr. Georgey voltou a sua casa, mudou de fato e foi ao
pequeno café do pai de Alcino.
SR. GEORGEY - Sr. Bourel, mim vir dizer a você que jovem
gentleman, Alcino, ser um gatuno.
BOUREL - Alcino! É impossível, Sr. Georgey. É um rapaz em
quem se pode ter confiança.
SR. GEORGEY - Mim dizer que ser raparigo ladra; ele ter
roubado a mim dinheiro de turkey; mim ter tirado e posto em mãos
dele oito francos. E que ter mim? Coisa nenhum. Turkey correr e
mim não poder apanhar ela. E Alcino levar oito francos em seu
bolsa. E mim não estar contente; mim dizer a você que Alcino ser
um gatuna.
Bourel abriu uma porta do fundo e chamou:
- Alcino, vem cá explicar-te com o Sr. Georgey; ele não está
contente contigo.
Alcino entrou e disse com ar hipócrita:
- Estou muito aborrecido por lhe ter causado contrariedades,
Sr. Georgey; quem tem a culpa de tudo é o Julião.
SR. GEORGEY (com vivacidade) - Que dizer você? Juliana ser
good fellow Ele levantar mim da lama preta e mal perfumada. E
turkey não ser dele. Ser incrível, como você ser gatuna com
turkeys.
ALCINO - Ó Sr. Georgey, asseguro-lhe que o Sr. Bonard se
enganou; ele acredita em Julião, que é um mentiroso; eu gosto
imenso de si e farei tudo o que quiser para lhe agradar e o
servir bem.
SR. GEORGEY - Mim ver este coisa mais tardiamente. Mim
perguntar à Sr. a Bonard.
ALCINO - A Sr. a Bonard não lhe diz a verdade, Sr. Georgey,
porque não gosta de mim e só acredita no Julião.
SR. GEORGEY - Sr.a Bonard ser muito amável; ela dizer sempre
verdade. Good bye, Sr. Bourel; good bye Alcino. Tomar cuidado!
Mim não gostar que outros enganar a mim.
O Sr. Georgey saiu, voltou a sua casa e chamou a
criada.
- Carolina, mim querer almoçar com muita pressa;
passar já do meio-dia.
Cinco minutos depois, Carolina levava o almoço ao
Sr. Georgey.
CAROLINA - O senhor tinha dito que comprava um
peru e não trouxe nada.
SR. GEORGEY - Ser todos estes raparigos que fazer
disparates. Mim não compreender já seus argumentações. Mim dar
oito francos por uma gorda, bela animal e mim ficar sem coisa
nenhum. Não haver turkey em cozinha e menos oito francos em meu
bolsa. Mim perguntar a Sr.a Bonard. Ser um amável dama, Sr. a
Bonard. E mim perguntar coisa todos a Sr.a Bonard.
Dias depois, enquanto escrevia, pensava no seu turkey e no
meio de o reaver. De repente uma ideia luminosa desanuviou-lhe a
fisionomia.
- Carolina - exclamou ele -, Carolina, vir depressa; mim
querer falar a você.
Carolina acorreu imediatamente.
CAROLINA - Que aconteceu? O senhor está indisposto?
SR. GEORGEY - Sim, my dear, muito mal indisposta, por minha
turkey. Você ir imediatamente com muita pressa a casa do Sr.
Bonard; você pedir a Sr. a Bonard meu gordo turkey e você trazer
turkey strangled.
CAROLINA - Mas que é strangled?
37
SR. GEORGEY - Você não saber que ser strangled?
Você apertar garganta de turkey; ela morta, não correr, não
fugir para a casa de Sr.a Bonard!
CAROLINA - Ah! o senhor quer dizer estrangulado.
SR. GEORGEY - Yes, yes, my dear, stranglada. Mim
julgar que dever-se dizer strangled; ser stranglada. Ser
mesmo coisa. Vá com todo pressa.
Carolina partiu, rindo. Mal tinha dado dez passos, ouviu
que a chamavam novamente da janela.
SR. GEORGEY - Carolina, my dear, você comprar
todos turkeys da Sr.a Bonard e todos semanas apanhar
dois turkeys e mim comer dois turkeys.
CAROLINA - Quanto devo pagar por eles, Sr. Georgey?
SR. GEORGEY - Você pagar o que pedir Sr.a Bonard e dar meus
cumprimentações. Vá depressa, my
dear, corre a todo velocidade.
A cabeça do Sr. Georgey desapareceu e a janela
fechou-se. Carolina principiou a andar depressa, mas,
quando ficou fora do alcance da vista, retomou o seu
passo normal.
Ainda que perca alguns minutos - pensou ela - os tarkei, como ele
lhes chama, não hão-de fugir. Mas
com este senhor é sempre tudo depressa, depressa. Não
tem paciência. Mas é um bom homem, apesar disso, e os
Bourel sabem-no bem. Depenam-no como um patinho.
É, sobretudo, do rapaz que eu não gosto. Como ele engana o
Sr. Georgey! É uma dor de alma! Mas eu ainda o
hei-de desmascarar. Olha! lá está ele; vai a sair do café
Margot. Onde arranjará todo o dinheiro que gasta? Não
é o pai que lho dá, porque é muito forreta. Rouba-o, concerteza.
39
Enquanto observava e reflectia, Carolina tinha chegado a casa dos
Bonard. Só ali encontrou a Sr.a Bonard e comunicou-lhe o recado
do Sr. Georgey.
SR. A BONARD (rindo) - Ah! Os meus perus deram-lhe no goto,
ao que parece. É muito cómico, não há dúvida.
CAROLINA - Vende-lhe os perus? Ele quere-os todos.
SR.a BONARD - Todos ao mesmo tempo? Que vai ele fazer destes
quarenta e seis animais, que é preciso alimentar e levar para o
campo?
CAROLINA - Não, não; só quer dois por semana; mas
quere-os todos guardados para ele. Por quanto os vende?
SR. A BONARD - Vende-os a quatro francos cada um; mas,
se for preciso conservá-los ainda três ou quatro meses, isso já
não é possível, porque tenho de fazer despesa com a alimentação
deles. Para mais começavam a enfraquecer e perdiam todo o valor.
CAROLINA - Mas ele recomendou-me tanto que os comprasse
todos!
SR.a BONARD - Ouça; para o obsequiar, posso guardar-lhe uma dúzia
deles, mas vendo o resto na feira do mês que vem. Não posso fazer
outra coisa. Estão todos bons para serem comidos.
CAROLINA - Como ele vai ficar contrariado! Gosta tanto
dos seus perus, que chega a dar vontade de rir. Quando lhe servi
os dois últimos, julguei vê-lo morrer sufocado de tanto que
comeu. Nunca tinha visto nenhuns tão tenros, tão bons, dizia ele,
entre duas garfadas.
SR.a BONARD - Vive só? Que faz ele no nosso
país?
40
CAROLINA - Vive sozinho; só me tem a mim para o
servir. Veio, parece, para construir e pôr a funcionar uma
fábrica para um amigo, o barão Gergenil, que não percebe
nada daquilo e o mandou vir de Inglaterra. Deve ter
muito dinheiro porque gasta sem conta. Está sempre a
trabalhar; nunca vê ninguém, senão os operários e o intérprete
que transmite as suas ordens. Não o compreenderiam se não fosse
assim.
SR.a BONARD - Tem uma algaravia confusa. E como
é ele? É bonacheirão? Dá-me a impressão de que deve
ter mau génio.
CAROLINA - Tem um feitio assomadiço e extravagante; mas é
muito bom homem. Vou-me afeiçoando a
ele e custa-me vê-lo enganado a toda a hora como é, pelos
Bourel, pai e filho. Alcino, sobretudo, depena-o de
uma forma lamentável; é um grande tratante, aquele rapaz.
Bem, até à vista, Sr. Bonard; dê-me um dos seus
perus para eu levar; se voltasse com mãos vazias o meu
patrão era capaz de adoecer.
SRa BONARD - Mas não os tenho cá, estão no
campo.
CAROLINA - Temos de lá ir; não quero voltar sem
peru.
SRa BONARD - Ouça, vá pelo bosque fora e volte
para o campo à esquerda; há-de encontrar Julião com os
perus; escolha o que quiser. Conhece Julião, creio eu?
CAROLINA - Palavra que não; estou na terra há
pouco tempo e conheço aqui pouca gente.
SR.a BONARD - Há-de conhecê-lo, mesmo assim, visto que é só ele
que lá está a guardar os meus perus.
Pelo bosque fora e depois à esquerda.
CAROLINA - Entendido; e pago ao Julião?
41
SR.a BONARD - Como quiser; não nos havemos de
zangar.
Carolina foi-se embora; tomou o caminho que a
Sr.a Bonard lhe indicara e encontrou Julião com os
perus.

6
As moedas de ouro do Sr. Georgey
À medida que Carolina se aproximava, Julião fitava-a
e sentia-se inquieto; temendo uma nova aventura, fez
com que os perus avançassem mais depressa. Mas Carolina
andava mais rapidamente que os perus e não tardou a
alcançá-los. Depois pôs-se a examinar atentamente os
animais, para ficar com o melhor.
A inquietação de Julião aumentou; não deixava de
olhar para Carolina e fez sibilar a chibata, para lhe
mostrar que estava pronto a defender à mão armada o bando
que tnha à sua guarda.
Carolina não prestou atenção a isso. Não se apercebia
da desconfiança de que estava sendo objecto. Mas quando
Julião viu que ela se curvava para apanhar o peru que
tinha escolhido, aplicou-lhe uma chibatada nas mãos e
avançou para ela com ar ameaçador. Carolina soltou um
grito.
JULIÃO - Não toque nos meus perus, olhe que lhe
fustigo os dedos a sério.
42
CAROLINA - Sempre és muito estúpido! Fiquei com
os dedos adormecidos por me teres batido com tanta
força. Isso não são maneiras de brincar, Julião.
JULIÃO - Não quero que toque nos meus perus;
vá-se embora.
CAROLINA - Mas se eu comprei um à Sr.a Bonard!
Foi ela quem me mandou aqui vir para o escolher.
JULIÃO - Ora, ora! Conheço a história. Já não acredito
nisso. Roubaram-me dois; não me deixarei roubar
terceira vez.
CAROLINA - És muito estúpido, meu rapaz. Eu
combinei o preço com a Sr.a Bonard. Toma lá quatro
francos para pagar o teu peru; será isto roubar?
JULIÃO - Não sei nada disso, mas não tocará neles
sem que a Sr.a Bonard me tenha dado ordem para isso.
Sei eu por acaso quem a senhora é, e se fala verdade?
CAROLINA - Visto que te chamo pelo teu nome, é
porque alguém mo disse e esse alguém é a Sr.a Bonard.
Vamos; deixa-me levar o peru e toma lá os quatro
francos.
JULIÃO - Não a deixo levar o peru e não quero os
seus quatro francos. Faz como Alcino, que me oferecia
também quatro francos para comprar um peru que vendia por
oito ao tal inglês.
CAROLINA - Qual inglês? O Sr. Georgey? É o
meu patrão.
JULIÃO - Tanto pior para si; o seu patrão utiliza-se
de patifes como Alcino. Quero lá saber do seu inglês! Só
conheço a Sr.a Bonard e não dou coisa alguma sem sua
ordem.
CAROLINA - Não és nada bem-educado, Julião;
vou-me queixar à Sr.a Bonard.
43
JULIÃO - Vá onde quiser e deixe-nos tranquilos, a
mim e aos meus quarenta e seis bichos.
CAROLINA - Quarenta e seis bichos, contigo, são
quarenta e sete; e o maior não é o menos bicho.
JULIÃO - Não quero saber dessas coisas. Vá-se queixar, se
quiser; diga-me todos os insultos que lhe passarem
pela cabeça, ofereça-me todo o dinheiro que tem; nada
disso dará resultado; não há-de tocar nos meus perus.
CAROLINA - Terminaste, maçador? Estás a fazer
com que perca o meu tempo. Se eu quisesse levava um
mesmo sem tua licença.
JULIÃO - Tente e verá.
E Julião pôs-se resolutamente em guarda entre Carolina e os
seus perus, com os punhos cerrados, prontos a
entrar em acção, e os pés em boa posição para o ataque
ou para a defesa. Carolina encolheu os ombros e dirigiu-se
para os lados da quinta.
Apesar de tudo, não é má - pensou Julião. - Mas
não faz mal, eu nunca a tinha visto; devo zelar pelos
interesses dos meus patrões, e afinal de contas fiz bem.
Carolina voltou à quinta e contou à Sr.a Bonard o
que se tinha passado. Esta riu com vontade.
- É um bom rapazinho - disse ela. - Teve medo
que lhe acontecesse alguma aventura como a do outro
dia, com o Alcino; procedeu bem.
CAROLINA - Muitíssimo obrigada! Acha que ele
fez bem em me fustigar os dedos de tal maneira que
ainda aqui tenho as marcas, hem?
SR.a BONARD - Mas ouça; a culpa é minha.
Deveria tê-la acompanhado para Lhe explicar, eu própria, o
nosso ajuste. Venha, venha, Carolina; vou fazer com
que Lhe dêem o seu peru.
44
Voltaram as duas ao campo e, com grande surpresa
sua, viram ao pé de Julião o Sr. Georgey, rindo a bandeiras
despregadas. Quando se aproximaram, redobrou as
gargalhadas e não conseguiu articular uma palavra.
SR. A BONARD - Que aconteceu, Julião? Porque est! tá o Sr.
Georgey contigo e porque se ri tanto?
JULIÃO - Parece que ele estava aqui pertinho, escondido numa
moita, enquanto eu defendia os meus perus dessa senhora, que me
queria levar um. Quando ela se foi embora, saiu da moita e
chegou, correndo, ao pé
de mim. Quis-me agarrar as mãos, mas eu defendi-me
com a chibata, fustigando-lhe os dedos o melhor que
pude. Em lugar de se zangar pôs-se a rir; quanto mais lhe
batia mais ria, e parece que rebenta a rir. Olhe, repare, lá
está ele a rebolar-se... Vou-me pôr a andar com os meus
perus... Ah! Já está mais sossegado; só dizia uma palavra, sempre
a mesma: tarkei, tarkei.
O inglês começou a rir ainda mais.
SR.a BONARD - Não tenhas medo, Julião, podes
ficar; o Sr. Georgey quer um peru do teu bando e chama-lhe
tarkei. E esta é a criada dele, a menina Carolina, que vinha
comprar um. Fui eu que a mandei cá.
JULIÃO (perturbado) - Eu não sabia, patroa. Peço-lhe que me
desculpe, e a menina Carolina também. Como não a conhecia, tinha
medo de que ela me roubasse
um dos meus perus, como fez o Alcino.
O inglês, vendo o ar enleado de Julião, julgou que a
Sr. a Bonard lhe estava a ralhar. Deixou de rir imediatamente,
levantou-se e disse:
- Você, Sr. Bonard, não ralhar com Juliana. Juliana
ser um honrado pequena, um bom pequena; ele ter batido em meu
Carolina, com muita força; ele empurrar money
45
de Carolina, querer esmurrar Carolina e bater a mim. Estar muito
bem, excelentemente. Mim gostar muito, imenso de Juliana; mim
querer levar ele com turkeys; Sr. a Bonard, mim querer levar
Juliana com turkeys; ele ser um honrado raparigo; mim gostar de
honrados raparigos. Good fellow, you linle dear - ajuntou o Sr.
Georgey, acariciando a cabeça de Julião. - Oh! sim, good fellow;
você vir com turkeys, para casa meu, em meus serviços,
Julianinha.
SRa BONARD - Mas, senhor, eu não quero de maneira nenhuma deixar
ir o Julião para sua casa. Quero conservá- lo na minha.
SR. GEORGEY - Oh! Sr. Bonard! Você ser tão amável, tão bom!
Mim gostar tanto de honrado raparigo!
SR.a BONARD - Também eu, senhor. Também gosto dos rapazes
honestos e é por isso que gosto do Julião e não quero ficar sem
ele.
SR. GEORGEY - Ouve, Julianinha: se você ir para casa meu,
mim dar muita coisa a você. Ver isto pequena?
E o Sr. Georgey tirou a bolsa da algibeira.
SR. GEORGEY - Você ver? Estar cheio de dinheiro amarela. Mim
dar a você cinco loiras. Ser muito, imensa; ser grande dinheiro.
E meteu-as, à força, na mão de Julião.
A Sr. a Bonard soltou um grito e Julião disse-lhe:
- Que tem, patroa? Porque está com medo?
SR.a BONARD - Vais deixar- me, meu Julião! Eu própria te
aconselho a que sigas um patrão tão generoso.
SR. GEORGEY - Bravo! Sr. a Bonard ser pessoa muito bem! Vem,
Julianinha, mim rica, mim dar a você sempre loiras.
46
JULIÃO - Muito obrigado, Sr. Georgey, obrigado. Estou-lhe deveras
agradecido. Tome lá as suas belas moedas, meu senhor, não preciso
delas; fico em casà do Sr. e da Sr. a Bonard; sinto-me ali muito
feliz e gosto deles.
Julião estendeu as moedas ao Sr. Georgey, que abriu a boca e
os olhos e ficou imóvel.
SR. a BONARD - Julião, meu rapaz, que estás a fazer? Recusas uma
fortuna e um futuro!
SR. GEORGEY - Juliana, você perder juíza, my dear. Porque
coisa gostar tanto de Srs. Bonard?
JULIÃO - Porque me recolheram quando fiquei órfão, meu
senhor; porque têm sido bons para mim há mais de um ano e eu
estou-lhes muito grato pela sua bondade. Não diga, minha querida
senhora, que recuso a felicidade e a fortuna. A minha felicidade
é mostrar-lhes a gratidão que sinto, servi-los o melhor que possa
e viver sempre com os senhores.
- Querido filho! - exclamou a Sr. a Bonard. Agradeço-te e
quero-te muito. O que fazes é muito belo.
E a Sr.a Bonard abraçou Julião, que chorava de alegria e
comoção. Carolina quis também abraçá-lo e o inglês deitou-lhe os
braços ao pescoço, exclamando:
- Beautiful! Beautiful! Julianinha ser uma grande homem.
E, pegando-lhe na mão, apertou-a e sacudiu-a com tanta
força, que quase lhe ia desmanchando o ombro. Julião passou-lhe
para as mãos as cinco moedas de ouro. Em vão, o inglês o quis
forçar a aceitá-las de novo. Julião fugiu e foi ter com os seus
perus que se haviam espalhado pelo campo, durante esta longa
cena. Andou a correr por toda a parte para os juntar; Carolina e
a Sr.a Bonard
47
correram também para o ajudar. O inglês afastou-se e conseguiu
apanhar dois perus dos melhores: examinou-os, achou-os gordos e
torceu-lhes o pescoço.
SR. GEORGEY - Carolina, Carolina, mim ter turkeys, mim ter
strangled dois gordos turkeys; ele ser pesados, terrivelmente.
Os perus estavam todos reunidos. Carolina foi ter com o
patrão e olhou para os que ele segurava.
CAROLINA - Mas eles estão mortos! O senhor estrangulou-os?
SR. GEORGEY (sorrindo) - Yes, my dear; mim querer comer
turkeys, sempre turkeys.
CAROLINA - Mas o senhor tem aí peru para oito dias.
SR. GEORGEY - No, no, my dear; um turkey todos dias... calar
você, my dear! Mim ter dito que querer e quando mim dizer que
querer é porque querer. Você dizer a Master Bonard, à Sr.a Bonard
e à Julianinha mim querer que almoçar todos amanhã comigo em meu
casinha. Então, my dear, você ir já com todo velocidade. Mim
pagar turkeys amanhã.
O Sr. Georgey foi-se embora sem voltar a cabeça; Carolina
pegou nos dois perus e foi comunicar à Sr.a Bonard e a Julião o
convite do Sr. Georgey.
A Sr.a Bonard agradeceu e aceitou, dizendo que iriam os
três; separaram-se, rindo.
Quando Bonard voltou do trabalho com Frederico, que tinha
ido ter com ele e a quem nunca mais deixara sozinho em casa senão
para o serviço necessário, a Sr. a Bonard contou-lhe as aventuras
da tarde. Bonard riu muito e comoveu-se com o desinteresse e a
dedicação de Julião.
48
- Obrigado, meu rapaz - disse ele -, não esqueceErei esta prova
de amizade que nos deste. Obrigado.
Frederico escutara em silêncio. Quando todos se calaram,
disse a Julião:
- É então muito rico esse inglês imbecil? Devias ter
guardado o dinheiro que te ofereceu.
JULIÃO - Ele não é imbecil, mas sim demasiadamente bom.
Creio que é rico, mas eu não tinha feito nada para merecer o
dinheiro que me dava e não quis aceitar o oferecimento que me fez
de ficar ao seu serviço.
FREDERiCO - Acho que foste muito estúpido em
todo esse negócio.
BONARD (secamente) - Cala-te! Tu não tens valor bastante para
apreciar o procedimento de Julião.

O almoÇo do Sr. Georgey


- Julião, Julião! São horas de te arranjares para irmos
almoçar a casa do Sr. Georgey - disse a Sr. a Bonard. - É preciso
que vás asseado, meu rapaz. Veste a blusa dos domingos, ensaboa-
te bem, dá uma penteadela nos cabelos e vai ter comigo à sala.
Espero-te lá.
Julião acabou o trabalho; foi pôr a vassoura na estrebaria e
correu a lavar-se na bomba.
- Assim, com muita água ficarei tão bem Iavado como se
me servisse do sabão da Sr.a Bonard.
Lavou-se e
49
esfregou-se tão bem que acabou por sair muito limpo de debaixo da
bomba; desembaraçou os cabelos, bem lavados, com o pente da
estrebaria que servia aos cavalos; vestiu roupa branca, uma velha
blusa desbotada mas limpa, calçou sapatos ferrados e foi ter à
sala com a Sr.a Bonard que esperava por ele cosendo roupa e o
examinou com atenção.
SR. A BONARD - Bem! Estás asseadinho, assim. A blusa não é
lá muito nova, mas hás-de comprar uma na próxima feira.
JULIÃO - E o Sr. Bonard, não vai?
SR.a BONARD - Vai ter connosco a casa do inglês; foi comprar uns
gansos.
Puseram-se os dois a caminho e não tardaram a chegar a casa
do Sr. Georgey. O pai Bonard esperava-os à porta.
CAROLINA - Entre, entre, Sr. Bonard; o meu patrão está aqui
na sala...
E Carolina abriu a porta da sala, onde o Sr. Georgey os
esperava.
SR. GEORGEY - Bons dias, good morning por todo sociedade.
Mim ter fome terrível por turkey. Vá depressa, Carolina, mim
sentir perfumação de turkey, isso fazer a mim um buraco em
stomach.
- E tem passado bem, Sr. Georgey? - disse a Sr. a Bonard,
para dizer qualquer coisa.
SR. GEORGEY - Oh! Yes, perfectly well!
SR.a BONARD - O Julião esteve a pôr-se bonito para vir à sua
casa; todos nós lhe estamos muito agradecidos, Sr. Georgey.
SR. GEORGEY - Oh! Dear! Calar você. Quando mim cheirar
turkey não dizer nada por causa de buraca
50
de stomach; mim pensar em turkey e não ouvir nada, só frituração
de molha. Para a mesa todo sociedade; mim
ouvir turkey.
Carolina chegava efectivamente com o peru cozinhado a
primor, exalando um aroma que fez sorrir o inglês. Os seus
compridos dentes descobriram-se até às gengivas, os olhos
brilharam-lhe como brasas e começou a trinchar o magnífico
animal.
Distribuiu-o com largueza pelos convivas, tirou a sua parte
e, um quarto de hora depois, só restava a carcaça.
SR. GEORGEY (serenamente) - Segundo turkey, Carolina.
Olharam-se todos com surpresa. Carolina sorriu do espanto geral.
SR. GEORGEY (vivamente) - Segundo turkey. Mim haver
mandado; quando mim mandar uma vez, não querer mandar outra vez;
ser pertubamento para stomach.
Carolina apressou-se a levar o segundo peru; o inglês
trinchou-o e quis servir grandes bocados como da primeira vez;
mas a Sr. a Bonard repartiu o seu enorme pedaço com o marido.
SR. GEORGEY - Oh! Que fazer, Sr. a Bonard? Você não
comer tudo? Não acha muito bom turkey engordado por você?
SR.a BONARD - Está óptimo, Sr. Georgey, mas eu e o meu marido não
podemos comer mais. Já nos tinha dado grandes bocados.
SR. GEORGEY (a meia voz) - Ser engraçado muito, imensa
engraçado! Você, Julianinha, você pequena favorecida, querer
ainda e sempre? Sinceramente?
JULIÃO - Quero sim, senhor! É tão bom o peru! Eu nunca
tinha comido.
51
SR. GEORGEY - Nunca... comer turkey... desgraçadinha! Mim dar
turkey a você. Dar seu prata... um pedaça, outro pedaça...
terceiro...
- Misericórdia! - exclamou a Sr.a Bonard, rindo e tirando o
prato das mãos do Sr. Georgey. - O senhor mata o meu pobre
Julião.
SR. GEORGEY - No, no, turkey nunca matar: turkey leve...
nunca sufocar stomach.
52
E recomeçou a comer com mais entusiasmo. Ficou só
uma escassa metade do segundo peru.
SR. GEORGEY - Leve isso, Carolina. Dê o... o...
hare... Não perceber o hare?... comprida animal... Como
dizer vocês? Um, um lebra?
CAROLINA - Ah! Já percebi. O senhor quer dizer
uma lebre.
SR. GEORGEY -Yes, yes, my dear, lebra. Mim dizer
bem, porque não perceber você? Ser por rabugice; você
não querer dar comer a mim o outro turkey e você
furious por este coisa. Vá, my dear, vá depressa buscar
lebra e ser bom raparigo como Julianinha.
Carolina, que não estava absolutamente nada furiosa
saiu a rir e apareceu trazendo a magnífica lebre com
molho de geleia de groselhas.
SR. GEORGEY - Sr.a Bonard, my dear, você comer
bocadinho de lebra.
SR. BONARD - Com muito gosto, Sr. Georgey mas
muito não; poucochinho.
O Sr. Georgey pôs-lhe no prato um pedaço enorme.
SR.a BONARD - Mas eu nunca conseguirei comer
isto tudo, Sr. Georgey; vou repartir com o meu marido.
SR. GEORGEY - Sr.a Bonard, isso ser muito pequena pedaça; pobre
Sr. Bonard não ter coiso nenhuma.
Por mais que o Sr. Georgey insistisse, eles não aceitaram,
declarando ter já comido mais do que podiam. Julião comeu de
maneira a contentar o Sr. Georgey que
olhava para ele com visível satisfação e obrigava todos a
beber em proporção com o que haviam comido.
Com a lebre foram servidas ervilhas e em seguida um
pudim. Julião devorava, devorava sem cessar. O inglês ria e
esfregava as mãos; Bonard ria e cantava; a Sr. a Bonard
53
sentia a cabeça andar à roda e estava inquieta. Carolina
saltitava, ria, enchia os copos e falava como uma pega.
SR. GEORGEY - Stop, Carolina, my dear Mim não querer
dar mais beber; eles estar todos em reviravolta; você, Carolina,
calar-se e correr com muita pressa, trazer coffee e deixar nós em
tranquilidade.
Carolina voltou um instante depois com o café, e o Sr.
Georgey serviu duas chávenas a cada um dos seus convidados.
SR. GEORGEY - Ser muito bom para tirar reviravol ta, my dear
Depois de coffee nós falar dia todo. Quando
lua chegar mim recolher vocês em casa vossa.
SR. A BONARD - Perdão, Sr. Georgey, preciso de me
ir embora daqui a bocado; temos que fazer em casa. SR.
GEORGEY - Que ter vocês a fazer? Fridrico
estar lá.
SR.a BONARD - Mas tenho a certeza de que ele não fez nada do que
há para fazer na herdade, Sr. Georgey. As vacas, os cavalos e os
porcos a tratar. E depois os perus ainda hoje não estiveram no
campo.
SR. GEORGEY - Então, nós todos partir ao mesmo tempo e mim
ajudar em turkeys minha Julianinha e
conversar com Julianinha. Mim começar:
Escute minhas razões, Juliana. Você bater em Carolina por causa
de turkeys, ser muito imenso bonito; você dizer no, no a seu
money, ser mais bom ainda. Você bater mim muito, muita força, ser
admirável. Então mim
dizer em meu cabeça: Juliana ser honesto criatura; que fazer
ele com Sr.a Bonard? Guardar turkeys. Isso não ser instrução,
guardar turkeys e bater mim e Carolina. Mim querer fazer bem a
pequena; mim querer ter ele. Quando mim dizer querer", mim pôr-se
em acção. Escutar vocês
54
ainda: mim ter grande multidão de money. Mim dar vestimentas a
Juliana; pagar master de leitura e de escritura e de contação e
de desenhações e mim ficar com ele para meus contas e meu caixa;
e dar a ele grande instrução e grande fortuna. Ser isto,
Julianinha. Querer você? Sr. a Bonard querer. Mim querer, toda
gente querer.
Olhavam todos uns para os outros e ninguém sabia o que
responder. Recusar tão grandes vantagens para Julião seria uma
loucura e também um egoísmo imperdoável. Mas perder Julião seria
para os Bonard um verdadeiro e grande desgosto. Continuavam todos
calados, não sabendo o que resolver.
Julião, por seu lado, pensava que nunca mais encontraria uma
ocasião tão boa de assegurar o seu futuro, desembaraçando ao
mesmo tempo os Bonard do encargo que haviam imposto a si próprios
de o amparar.
Que poderei eu fazer alguma vez para não estar, por
caridade, em casa dos meus patrões? - dizia ele de si para si. -
Não têm eles Frederico para os ajudar nos trabalhos da herdade? É
crescido, forte e robusto. Eu tenho só doze anos, sou miúdo,
débil, sem força. Em que me poderei empregar?
E decidia-se a aceitar o oferecimento do Sr. Georgey; mas
logo se lhe apresentava ao espírito o desgosto de deixar os
Bonard; a ingratidão que aparentaria aceitando o primeiro
oferecimento feito por um estranho, uma pessoa que mal conhecia,
que parecia ser, na verdade, bom homem, generoso, mas do qual as
ideias originais e a linguagem extravagante, poderiam acarretar
desgostos ou, pelo menos, coisas muito desagradáveis.
O Sr. Georgey não dissera mais nada; observava-os a todos.
55
Enfim, a Sr. a Bonard achou um meio de ganhar
tempo.
- Sr. Georgey - disse ela -, Julião fará o que quiser, mas
tem de ficar lá em casa até que os perus sejam vendidos na feira.
SR. GEORGEY - Quando ser feira?
BONARD - Daqui a três semanas.
SR. GEORGEY - Very well, my dear; dentro três semanas mim ir
lá pedir Juliana.
- Mas eu ainda não disse nada, patroa - exclamou Julião; e
rompeu em soluços.
Durante alguns instantes o inglês esteve a vê-lo chorar.
Depois passou- lhe repetidas vezes as mãos pelos cabelos e disse,
numa voz enternecida e muito suave:
-Pobre Julianinha, pobre Julianinha, chorar por
desgostamento deixar Sr. e Sr.a Bonard. Ser isso muito bonita,
muito simpática. Don't cry... meu Julianinha. Você consolar-se;
mim gostar de você muito, imensa; você ajudar Carolina, ajudar a
mim, miserável homem muito solitária que não ter ninguém de quem
gostar; mim procurar honrado raparigo para tornar feliz e não
encontrar ninguém. Não chorar, Julianinha, você fazer como seu
vontade. Mim ir amanhã e todos manhãs fazer encontramento com
turkeys. Quando passar três semanas você dizer a mim sim ou não.
Georgey apertou-lhe a mão com força. Julião levantou para
ele os olhos inundados de lágrimas, beijou a mão que apertava
ainda a sua e tentou falar, mas não conseguiu articular palavra.

8
A falsidade de Alcino
Todos se levantaram da mesa; os Bonard e Julião para
voltarem à herdade; o inglês para os acompanhar.
SR. A BONARD - Vai connosco, Sr. Georgey?
SR. GEORGEY - Yes, Sr.a Bonard, mim passear em companhia vossa.
Mim gostar muito fazer passeio em
companhia vossa. Mim querer ver turkey, ter um pouco, muito
medo Fridrico comer turkeys em ausentação de Juliana.
SR.a BONARD (rindo) - Oh! Sr. Georgey, Frederico não há-de comer
os quarenta e quatro perus apesar de ser um pouco guloso.
SR. GEORGEY - Fridrico ser gulosa! Fy! Ser isso coiso
feia, medonha, horrível, ter muito gosto por comida. Julianinha
não ter muito gosto. Saber bem turkey a ele, mas não ter gosto.
Os Bonard não puderam deixar de rir; o próprio Julião
sorriu vendo rir os patrões.
SR. GEORGEY - Que ter você, Sr.a Bonard? Mim ter dito
alguma tolice? Eh! mim estar contente; então. Pequena rir, ter
acabado choraminga.
E o Sr. Georgey pôs-se também a rir; mas mal tivera
tempo de abrir a boca e de mostrar os seus compridos
dentes, quando Bonard, que caminhava um pouco à frente,
exclamou:
- Ah! patife, Apanhei-te enfim!
E correu na direcção do bosque. Pararam todos,
surpreendidos.
Bonard tinha desaparecido por entre o arvoredo. O Sr.
Georgey ficara um pouco para trás; ainda não tinha chegado ao
bosque.
SR.a BONARD - Que foi isto?Viste alguma coisa, Julião?
JULIÃO - Não, não vi nada. Não sei o que foi.
SR. GEORGEY - My goodness! Mim ver! Mim ver! Ele correr! Saltar
fossa e cair. Eh! com muita rapidez! Master Bonard pára. Master
Bonard não ver ele!... Ele entrar em arvoredo; ter-se escapado!
Bravo! Bravo! my dear! ser muito bonito. Alcino ser muito, imenso
hábil.
SR.a BONARD - Que está vendo, Sr. Georgey Que
é? Eu não vejo absolutamente nada.
O Sr. Georgey explicou-lhe com muita dificuldade que,
havendo ficado para trás, tinha visto o que se passara na orla do
bosquezinho. Alcino saíra de lá correndo Perseguido pelo Sr.
Bonard que se encontrava ainda na
parte mais densa do arvoredo; Alcino, vendo-se quase apanhado,
saltara para a vala e ali se deitara ao comprido, escondido por
um salgueiro cujos ramos caíam sobre o fosso; que o Sr. Bonard já
não encontrara Alcino e voltava, sem dúvida, para a herdade,
através do bosque.
A Sr. Bonard não achou muita graça à história e apressou o
passo para ir ter com o marido.
Julião seguia-a, apesar dos chamamentos insistentes
do Sr. Georgey que não saía do mesmo sítio e queria ir procurar
Alcino no fosso.
58
A Sr.a Bonard chegou à herdade, ao mesmo tempo que o marido.
SR.a BONARD - É verdade, Bonard, que viste Alcino? Porque
correste atrás dele?
BONARD - Porque me pareceu que tinha visto Frederico;
queria apanhá-lo com a boca na botija.
SR.a BONARD - Tens a certeza de que estavam juntos? O Sr.
Georgey só viu Alcino que caiu no fosso quando saía do bosque.
BONARD - Eu não tornei a encontrar ninguém. Mas vamos ver se
Frederico está na herdade. Se não o acharmos é porque ainda se
encontrava com esse patife do Alcino e fugiram cada um para seu
lado. Vai ver no estábulo, que vejo na estrebaria.
Bonard entrou na estrebaria e avistou Frederico deitado
sobre uns molhos de feno e profundamente adormecido.
É espantoso! - disse ele de si para si. - Ia jurar que Alcino não
estava só.
Aproximou-se de Frederico e empurrou-o levemente; ele
entreabriu os olhos, soergueu- se e deixou-se de novo cair,
adormecido.
BONARD (a meia voz) - Está a dormir a sério! É
singular, lá isso é.
E foi-se embora, tornando a fechar a porta. Mal ele
tinha saído, Frederico levantou-se.
Mas que susto eu apanhei! Um segundo mais e era apanhado. Que
sorte ter ficado escondido por aquela moita e ter entrado pela
porta de trás, antes de o meu pai voltar. Alcino escapou-se,
suponho eu. Como ele fugiu depressa Ah ah ah E o diacho dos
cavalos que ainda não jantaram! Felizmente não dirão nada... De
qualquer
59
modo tenho de tornar a ver Alcino antes da feira; não chegámos a
combinar nada e, como ele diz, precisamos de dinheiro para que
nos possamos divertir a valer, como queremos.
Frederico sacudiu as palhinhas que Lhe haviam ficado presas
ao fato, saiu da estrebaria e entrou em casa, parecendo admirado
de ver que já tinha regressado toda a gente.
FREDERICO - Ah! Já voltaram! Há muito tempo?
BONARD - Há somente alguns instantes. Encontrei-te a dormir na
estrebaria; não quis acordar-te, pensando que te tivesse custado
a fazer sozinho o trabalho da herdade e te sentisses cansado.
FREDERICO - E é verdade, estava muito cansado.
SR.a BONARD (secamente) - No entanto não tinhas muito trabalho!
Dar de comer aos animais, aquecer o teu almoço, comê-lo e mais
nada.
FREDERICO - Mas os porcos fizeram-me correr muito; tinham
fugido para o bosque e de lá pouco lhes faltava para chegarem à
cevada; calcule o bonito estrago que ali teriam feito.
SR.a BONARD (no mesmo tom) - Por onde teriam passado? Estava tudo
bem fechado.
FREDERICO (embaraçado) - Por onde não sei dizer; o facto é
que estavam lá.
SR.a BONARD - Fechaste-os bem?
FREDERICO - Parece-me que sim; mas depois de me terem feito
correr durante mais de uma hora.
SR. BONARD - Bem, bem, cala-te!
BONARD - Que tens tu, mulher? Estás zangadíssima com
Frederico; no entanto acho que não fez muito mal, repousando um
pouco.
60
SR. BONARD - Ora! Ele não estava cansado; não tinha necessidade
de repousar.
BONARD - Que sabes tu a esse respeito?
SR. A BONARD - Sei o que sei. Frederico, vai-me buscar batatas e
um bocado de carne de porco fresca à cave.
Frederico, admirado com o tom seco de sua mãe, saiu
muito preocupado e lá foi à cave.
9
O Sr. Georgey consegue os seus intentos
Durante alguns dias tudo correu bem. Frederico fugia de
Alcino; Julião levava os perus para o campo e o Sr. Georgey ia lá
todos os dias, às duas horas. Sentava- se ao pé dele, não dizia
nada dos seus projectos e queria ouvir contar todos os pequenos
acontecimentos da vida do seu protegido; a infância infeliz, a
miséria dos pais, o triste fim do pai, que morrera de cólera, e
da mãe, morta um ano depois, de desgosto e miséria; o seu
abandono, a caridosa conduta dos Srs. Bonard, e a bondade que
sempre lhe testemunhavam.
- E você, pobre Julianinha, você não ser feliz?
perguntou ele, um dia.
JULIÃO - Eu seria feliz, Sr. Georgey, se não receasse
incomodar os meus bons patrões. Não são ricos; têm
61
só a sua terrazinha para viver, e trabalham tanto os dois, que
por vezes até ficam doentes.
SR. GEORGEY - E Fridrico ser um mandriona.
JULIÃO (embaraçado) - Não, meu senhor; mas... mas.
SR. GEORGEY - Muito bem, muito bem, Julianinha, mim
compreender; mim ver verdadeiro coisa. Você querer não dizer mal
e Fridrico ser um vagabunda, um patifa, um gatuna, um...
JULIÃO (com vivacidade) - Não, não, Sr. Georgey, asseguro-
lhe que...
SR. GEORGEY - Mim saber, mim dizer, mim acreditar. Tomar
você, Julianinha - ajuntou, estendendo-lhe uma moeda de ouro. -
Aceitar, mim dizer; aceitarrepetiu com um ar de autoridade a que
Julião não ousou resistir. - Ser para comprar bluso novo.
O Sr. Georgey levantou-se, apertou a mão de Julião e foi-se
embora, com passo grave e lento, sem virar a cabeça.
No outro dia, voltou a sentar-se, como de costume, ao pé de
Julião para o interrogar e o fazer falar. Ao deixá-lo, estendeu-
lhe uma nova moeda de ouro que Julião recusou energicamente.
JULIÃO - Isto é de mais, meu senhor, é de mais; na verdade,
é mesmo de mais.
SR. GEORGEY - Julianinha, mim querer. Ser para comprar
cinexprimível.
E, como na véspera, forçou-o a aceitar a moeda. No outro
dia, a mesma visita e terceira moeda de
ouro.
- Ser para comprar um jaleca e um cobertura para cabeça. Mim
querer.
62
Durante dois dias ainda, o Sr. Georgey obrigou- o a aceitar a sua
moeda. Julião sentia-se grato mas inquieto com esta grande
generosidade.
Todos os dias entregava a sua moeda de ouro à Sr.a
Bonard, pedindo-lhe para a gastar nas necessidades da casa.
JULIÃO - Eu não preciso de nada, patroa, graças à sua
bondade, e sinto-me muito feliz por poder conseguir para os
senhores um pouco de bem-estar.
SR.a BONARD - Bom rapazinho! Agradeço-te muito, meu filho;
não esquecerei nunca este rasgo do teu bom coração.
A Sr.a Bonard beijou-o, meteu a moeda de ouro num saquinho e
disse de si para si:
Oxalá que o inglês encha este saco. Seria uma fortuna para o bom
Julião. Que infelicidade Frederico não se parecer com ele!
Na véspera do dia da feira o Sr. Georgey foi à herdade dos
Bonard.
- Sr.a Bonard - disse ele, entrando -, quantos turkeys
resta a você?
SR.a BONARD - O Sr. Georgey comeu doze; tenho trinta e
quatro.
SR. GEORGEY - Sr. Bonard, você, se fazer favor,
conservar turkeys para mim?
SR.a BONARD - Mas, Sr. Georgey, eu não posso conservá-los
tanto tempo. A sua alimentação ficaria muito cara.
SR. GEORGEY - Sr.a Bonard, mim gostar enormemente muito
de turkeys; mim pagar grão e todo o seu engordamento e todo o
mais preciso e mim pagar dez francos por cada turkey.
63
SR. A BONARD - Ah! não senhor, isso é de mais. Visto que paga a
despesa, dando seis francos por cada animal, já paga
generosamente.
SR. GEORGEY - Sr.a Bonard, mim não gostar desse
generosamente; mim gostar de justiça e mim querer forçosamente,
absolutamente pagar dez francos. Mim querer. Você saber: mim
querer.
SR. A BONARD - Então como quiser, Sr. Georgey... Agradeço-
lhe muito; é um belo presente que me oferece e que eu não mereço.
SR. GEORGEY - Você merecer absolutamente bem. Você ser
excelente para minha Julianinha e mim pedir grande coisa por
caridade. Dar a mim Julianinha. Mim pedir muito, imensa. Dar
Julianinha a mim.
SR.a BONARD - Mas, senhor, eu não quero que o meu Julião
mude de religião; os ingleses não são católicos, como nós.
SR. GEORGEY - Oh! Yes! Mim inglês católica, mim do país de
Irlanda; Julianinha católica como eu. Você não ver a mim em
igreja vossa como vocês?... Porque não dizer nada? Mim fazer
feliz Julianinha. Mim pedir a você Julianinha.
A Sr.a Bonard chorava e não podia responder.
SR. GEORGEY - Você, senhora, não compreender, Julianinha ser
muito feliz comigo. Ele aprender tudo; ter muito dinheira; ter
boa religião católica. Tudo isso excelente.
SR. BONARD - O senhor tem razão; eu sei, eu vejo... Leve-o,
senhor, mas depois da feira.
SR. GEORGEY - Bravo, Sr. Bonard, você bom criatura. Mim
muito agradecer você. Mim vir no dia depois da feira. Adeus, boa
tarde.
64
E o Sr. Georgey foi-se embora, esfregando as mãos; quando passou
pelo campo onde Julião guardava os perus, anunciou-lhe o
consentimento da Sr. Bonard, prometendo-lhe torná-lo muito feliz,
mandar- lhe ensinar toda a espécie de coisas, e deixá-lo ir a
casa dos Bonard todas as tardes.
i Julião desta vez não chorou; começava a afeiçoar-se
ao inglês, que tinha sido tão bom para ele; compreendia que em
casa do Sr. Georgey não se tornaria pesado a ninguém e que
receberia uma educação melhor do que em casa dos Bonard. E depois
temia um pouco deixar- se influenciar pelo mau exemplo de
Frederico e pelos detestáveis conselhos de Alcino que aparecia
constantemente
e nem sempre podia evitar.
Julião limitou-se pois, a suspirar; agradeceu ao
Sr. Georgey, e prometeu que estaria pronto no dia combinado.
O Sr. Georgey apertou-lhe a mão, disse que o tornaria a ver na
feira e foi-se embora muito contente. Mal ele tinha partido, saiu
Alcino do bosque.
ALCINO - Bons dias! Julião; continuas a guardar perus?
Bonita ocupação, na verdade!
- Gosto mais de guardar perus do que de os roubar - respondeu
Julião, secamente.
ALCINO - Ah! ainda estás zangado comigo, pelo que vejo. Não
penses mais nisso, Julião; sei que fiz mal e asseguro-te que não
tornarei. Vais à feira amanhã?
JULIÃO - Ainda não sei; farei o que a Sr. a Bonard
quiser; mas não tenho muito interesse nisso.
ALCINO - Fazes mal; deve ser muito divertido; teatros,
peças engraçadas, habilidades de toda a espécie.
JULIÃO - Mas tu não podes ver nada disso, porque não
tens dinheiro.
65
ALCINO - Ora! Encontra-se sempre um meio de o
arranjar. E depois eu e Frederico combinámos levar lá o
inglês; há-de ser generoso connosco.
JULIÃO - Oh! Alcino, tu vais pregar alguma partida ao
bom do Sr. Georgey. Não quero isso, percebes?
ALCINO - Que partida queres que lhe pregue? Não seria
difícil, porque ele é estúpido como poucos; acredita em tudo o
que se diz.
JULIÃO - Não é estúpido, não; é demasiadamente bom. Se
o enganaste com os perus foi porque ele tinha confiança em ti,
julgava-te uma pessoa digna.
ALCINO (caçoando) - Aborreces-me com os teus perus.
Repetes sempre a mesma coisa! Se tens medo de que o teu inglês
seja enganado, vai com ele; podes impedir que o enganemos e
protegê-lo contra nós.
JULIÃO - Palavra de honra que não digo que não; e
sempre é uma razão para ir a essa feira que não me interessa
nada.
ALCINO - Vás ou não vás, é-me indiferente. Eu e o
Frederico vamos com o inglês, podes contar com isso de certeza.
Alcino meteu as mãos nos bolsos e foi-se embora,
cantando:
Tenho bom tabaco na minha tabaqueira, Tenho bom tabaco e tu não
hás-de ter.
Julião seguiu-o durante algum tempo com os olhos.
vou mesmo - disse ele de si para si. - Peço à
Sr. a Bonard que me deixe ir. Vou com o bom do Sr. Georgey e
talvez lhe possa ser útil.
66
Alcino, por seu lado, dizia:
"Ele vai; certamente que vai. Julga que por sua causa
deixaremos de fazer os nossos negociozinhos. Mas o que
é certo é que ainda nos há-de ajudar sem o saber. Este
Frederico é um maçador. Se tivesse querido escutar- me, não
precisaríamos do inglês palerma para facilitar as
nossas diversões. Acho, no entanto, que não teria sido
uma grande falta surripiar em casa uma moeda de ouro.
Os bens dos nossos pais não são nossos também? Além
disso é filho único e os pais nunca lhe dão nada para se
divertir... Mas, à falta do melhor, o inglês vai fazer-nos
bom arranjo. Embriagamo-lo e depois havemos de ver...
e se o Julião for com ele... podemos também embriagá-lo,
obrigamo-lo a fazer o que quisermos e depois dizemos que foi ele
o culpado de tudo. E talvez que daqui até
amanhã eu encontre um meio de arranjar dinheiro. Viva
a alegria, viva o vinho, o fricassé de frango e o café! São
as únicas coisas boas que conheço.

10
A conspiração
Julião voltou com os perus, contou-os, recolheu-os,
deu- lhes de comer e foi para casa.
Ali encontrou somente Frederico; Bonard ainda não
voltara do trabalho e a Sr.a Bonard estava na queijaria.
- Não vais amanhã à feira? - perguntou Frederico a
Julião.
JULIÃO - Parece-me bem que sim. Vou pedir hoje à noite à Sr. a
Bonard que me deixe ir.
FREDERICO (surpreendido) - Como assim? Ainda ontem à
noite disseste que não ias.
JULIÃO (maliciosamente) - É verdade, mas mudei de
ideias.
FREDERICO - Quem é que há-de guardar os perus, se
fores?
JULIÃO - Não hão-de morrer por ficarem um dia no pátio
com uma ração farta.
FREdERICO - Mas é preciso que fique alguém para guardar a casa.
JULIÃO - Ah, muito bem Provavelmente dizem-te para
ficares tu.
FREDERICO (indignado) - Eu! Ora essa! Eu, o filho da
casa! E tu então ias-te divertir! Tu que estás aqui por caridade,
para servir toda a gente.
JULIÃO (com tristeza) - Não estarei cá por muito tempo.
Não hei-de arruinar-te.
FREDERICO - Para onde vais? Quem é que te quer?
JULIÃO - Não te incomodes com isso. Já estou colocado.
FREDERICO - Colocado! Tu, colocado! Em casa de quem?
JULIÃO - Em casa do Sr. Georgey; o bom Sr. Georgey que
me quer para sempre em sua casa.
Frederico ficou tão admirado que se deixou cair numa
cadeira. Julião ia ocupar o lugar que Alcino esperava e
ambicionava. O futuro que Alcino procurava. Um lugar tão cheio de
atractivos, junto de homem tão fácil de enganar!
68
E era aquele estupidozinho, aquele pobretão que se ia aproveitar
de todas essas vantagens.
Tenho de ver o Alcino - disse ele de si para si - e de o
prevenir; é engenhoso e esperto; há-de achar um meio de o
desacreditar aos olhos do inglês... Felizmente ainda temos um dia
à nossa frente.
Julião observava a expressão sombria de Frederico e
dizia consigo:
Não está contente, ao que parece. Não quer que eu vá à feira; tem
medo de que os vá impedir de enganar o pobre do Sr. Georgey. Mais
uma razão para não deixar de lá ir.
Ficaram alguns minutos calados, sem olhar um para o
outro. A Sr.a Bonard entrou para tratar do jantar.
Levantaram-se os dois. Frederico ia falar, mas Julião
antecipou-se-lhe.
- Patroa - disse ele, adiantando-se -, tenho uma coisa
a pedir-lhe, uma coisa que desejo muito.
SR.a BONARD - Fala, meu filho; nunca me pediste nada; podes estar
certo de que te farei a vontade.
JULIÃO - Eu gostava muito de ir amanhã à feira, patroa.
SRa BONARD - E hás-de ir, meu rapaz, hás-de ir.
Mesmo agora ia dizer-te que te preparasses para isso;
tens de comprar muita coisa para que fiques convenientemente
vestido. Calças, casaco, boné, roupa branca... E
dinheiro não te falta, bem sabes.
JULIÃO - A patroa já me comprou muita coisa; por
isso agora tenho só dez francos. A cinco francos por mês,
é preciso tempo para uma pessoa ganhar com que se
vestir.
SR.a BONARD - Dez francos! Vais ver o que tens.
69
E abrindo o armário, tirou de lá um saquinho de pano, desatou-o e
espalhou em cima da mesa cinco moedas de vinte francos e sessenta
cêntimos em miúdos.
- Vês, meu rapaz - disse ela -, estás mais rico do que
pensavas.
JULIÃO - Essas cinco moedas de ouro não são minhas. A patroa
sabe que eu lhas tinha dado para as despesas da casa.
SR.a BONARD - E julgas, meu pobre pequeno, que teria consentido
alguma vez em te privar do pouco que possuis e que deves à
generosidade do Sr. Georgey? Não, nunca faria uma acção tão vil!
JULIÃO - Obrigado, patroa, estou-lhe muito agradecido pela
sua bondade para comigo. Posso então ir à feira?
SR.a BONARD - Certamente, meu rapaz, e vou contigo para te
comprar o que precisas.
FREDERICO - E eu, mamã, posso ir logo de manhã?
SR.a BONARD - Não, meu filho, ficas cá para guardares a casa
e tratar dos animais até que eu volte. Saio daqui muito cedo;
podes ir, portanto, pouco depois do meio-dia.
A Sr. a Bonard tornou a meter o dinheiro no saco, atou o
fio, pô-lo de novo no seu lugar, tirou a chave e colocou-a no
esconderijo atrás do armário. Depois começou a fazer os
preparativos para o jantar. Julião ajudava-a o melhor que podia.
Frederico ficara pensativo; no fim de alguns minutos levantou-se
e saiu.
SR.a BONARD - Aonde vais, Frederico?
FREDERICO - Vou ver se o pai já voltou com os cavalos e se
precisa de mim.
70

SR. BONARD - Bem, bem, meu filho, o teu pai vai ficar muito
contente.
Isto é caso para admirar - disse ela quando Frederico se foi
embora. - Em geral não faz senão o que lhe mandam. Sentir-me-ia
bem feliz se ele mudasse de carácter. Agora que vamos ficar sem
ti, meu Julião, tem de trabalhar muito mais. O principal obriga-o
o pai a fazer; agora as coisas mais pequenas é preciso que ele
pense e
que as faça.
JULIÃO - Há-de fazer, patroa, há-de fazer. Desde
que eu me vá embora, ele deixa de contar com a minha ajuda e
começa a trabalhar com toda a coragem.
SR. BONARD - Deus te ouça, meu Julião, mas receio muito
ter de procurar uma pessoa que te substitua, daqui a poucos dias.
Julião não respondeu porque pensava também que teria de ser
assim.
Meia hora depois voltou Bonard.
BONARD - O jantar está pronto? Tanto melhor! Tenho uma
fome devoradora.
SR. BONARD - Então para a mesa! Aqui está a sopa; dá-me o
teu prato, Bonard; e tu também, Julião. E o Frederico, onde está?
Ficou a tratar dos animais? Dei xaste-o na estrebaria?
BONARD - Não o vi; pensava encontrá-lo aqui.
SR. BONARD - Como assim? Ele foi há mais de meia hora ter contigo
para te ajudar a recolher e a tratar dos cavalos.
BONARD - Nem ouvi falar nisso. Voltei há muito tempo, visto que
já lhes dei a aveia, levei-os a beber, dei-lhes o feno e arranjei
a palha para se deitarem; gasta- se mais de uma hora nisto tudo.
71
SR. BONARD - É singular! Vai ver se o encontras, Julião.
Julião levantou-se e foi procurar Frederico, mas em lugar de
ver se estava na herdade, tomou o caminho da aldeia.
Certamente - disse ele consigo -, foi fazer as suas combinações
com Alcino para alterar as horas. Julgava poder ir à feira de
manhã e tem de estar em casa até ao meio-dia.
Com efeito, encontrou Frederico, que voltava com Alcino.
- Que vens fazer aqui? - perguntou este último, bruscamente.
- Vens para nos espiar?
JULIÃO - Vinha buscar Frederico, porque o Sr. e a Sr. a
Bonard me disseram que o procurasse. Já estão à mesa há algum
tempo.
ALCINO - Isto é vexatório! Este tratante vai-te denunciar.
Toma cuidado!
JULIÃO - Nunca o denunciei, vocês sabem isso muito bem.
Porque havia de começar hoje, na véspera de deixar a casa?
ALCINO - Então que vais dizer?
JULIÃO - Ainda não sei, conforme; se me interrogarem, digo a
verdade. Ele que entre em primeiro lugar e que fale; assim já não
me perguntam nada.
FREDERICO (inquieto) - Mas que hei-de eu dizer?
ALCINO - Dizes que foste ao campo, pela travessa; que, vendo a
charrua desatrelada, pensaste que o teu pai tinha voltado pelo
outro caminho. Que encontraste um operário e que este disse que
teu pai estava no ferrador para mandar ferrar um cavalo e que
voltavas de lá quando encontraste Julião.
72
FREDERICO - Bem, muito obrigado; tens sempre
ideias para sair de apuros...
E sem prestar atenção a Julião, Frederico deitou a
correr para chegar a casa em primeiro lugar.
Quando entrou, começou a sua explicação antes que
tivessem tido tempo de o interrogar.
E acrescentou:
- Mesmo sem entrar na oficina do ferrador, vi bem, meu pai,
que não estava lá e voltei a correr, pensando
que não deixaria de lhe convir uma ajuda.
BONARD - Obrigado, meu rapaz, mas quem foi o
imbecil que te pregou a peta do cavalo desferrado?
FREDERICO (embaraçado) - Não sei; meu pai, foi, sem
dúvida, um dos novos operários da fábrica, porque
eu nunca o tinha visto cá na terra.
BONARD - Mas como é que ele me conhece.
FREDERICO - Ele não o conhece, penso eu. Quando lhe
perguntei se o tinha encontrado (porque vinha dos
lados da nossa casa), respondeu-me que acabava de ver
passar um homem com dois cavalos, um dos quais estava
desferrado. Então pensei que o meu pai estivesse no
ferrador.
BONARD - Vamos, está muito bem; mas onde está
Julião?
FREDERICO - Ficou para trás; cá está ele.
Julião entrou.
SR.a BONARD - Vem acabar de jantar, meu pobre
Julião; estou bem aborrecida por te ter feito correr sem
necessidade. Comam os dois, devem estar com fome; já é
tarde:
Frederico e Julião não se fizeram rogados; comeram
a sopa, omoleta com toucinho, morcela e groselhas; uma
73
ceia feita com esmero; era a última que Julião devia comer em
casa deles.

11
A partida para a feira
No outro dia de manhã, quando Julião acabou o seu trabalho,
a Sr. a Bonard foi buscá-lo para irem à feira e puseram-se os
dois a caminho.
SR.a BONARD - Diz-me, Julião, se nós passássemos por casa do Sr.
Georgey e o levássemos? Certamente não consegue desembaraçar-se
sozinho na feira; hão-de enganá- lo, roubá-lo, sem dúvida.
JULIÃO - Se a patroa não se importa, passamos somente para
lhe dizer que me espere e que irei buscá-lo perto do meio-dia.
SR. BONARD - E porque não havemos de levá-lo já, visto que
vamos lá?
JULIÃO - Ó patroa, é porque... é porque... gostava mais que
fizéssemos as nossas compras sem ele.
SR. BONARD - Mas porquê?
JULIÃO - Porque... eu receio... que... que... que ele queira
pagar tudo. Já me deu tanta coisa que me sentiria envergonhado.
SR. BONARD - Tens razão, Julião. Foi um bom e honesto
pensamento o teu...
A Sr. a Bonard deu-lhe uma pancadinha na face e continuou o
seu caminho.
74
Julião subiu a escada do Sr. Georgey enquanto a Sr.a Bonard
descansava, conversando com Carolina que acabava de se arranjar
para ir também à feira.
- Sr. Georgey - disse Julião -, desculpe o incómodo.
SR. GEORGEY - Não incomodar coiso nenhuma, Julianinha; mim
satisfeito por ver você; mim querer ir à feira com você.
JULIÃO - Sim, senhor, vinha mesmo pedir-lhe para esperar por
mim até ao meio-dia; venho buscá-lo.
SR. GEORGEY - Mim gostar mais de ir neste momenta; mim
querer comprar multidão de coisas.
JULIÃO - Mas hão-de lá estar mais feirantes ao meio-
dia, Sr. Georgey.
SR. GEORGEY - Então você ficar cá, Julianinha. Nós comer turkeys
antes da feira.
JULIÃO - Não, Sr. Georgey, tenho de me ir embora. SR.
GEORGEY - Que ser essa impacientação? Porque ser preciso ir você
só?
JULIÃO (hesitante) - Porque a Sr.a Bonard está à porta à minha
espera. Sr. Georgey, e...
SR. GEORGEY - Oh! my goodness! Sr. a Bonard esperar e mim não
saber. Ser muito malcriada, Julianinha...
E, antes que Julião o pudesse impedir, o Sr. Georgey desceu.
SR. GEORGEY - Oh! dear! Sr.a Bonard! Mim zangado, muito; você
ficar em frente de porta meu e mim não saber. Oh! Julianinha, ser
muito, imensa ridícula. Mim pedir desculpas, perdão. Por favor
entrar, Sr.a Bonard.
SR.a BONARD - Não posso, Sr. Georgey; tenho de fazer
umas compras com Julião e temos de estar de volta ao meio-dia.
SR. GEORGEY - E o patetinho Juliana não falar de compras. Ele
não dizer nada. Mim ir comer um pouco. Carolina, Carolina!
Depressa chá, creme, toast Muito toast, muito chávenas, muito
creme. Com todo velocidade, Carolina.
Carolina desembaraçou-se tanto que, um quarto de hora
depois, o chá e os seus complementos estavam na sala. O Sr.
Georgey obrigou a Sr. Bonard e Julião a sentarem-se à mesa e a
comerem.
Como não tinham ainda tomado nada, aquela pequena refeição
improvisada foi comida com prazer. O Sr. Georgey mastigou uma
dúzia de toasts, quer dizer, torradas, tão grandes como pratos.
Quatro daquelas fatias teriam embuchado qualquer outra pessoa,
mas o Sr. Georgey tinha um estômago vigorosamente constituído;
não estoirou nem se embuchou e levantou-se satisfeito, disposto a
esperar, sem impaciência, pela hora de almoçar. Um cálice de
vinho de Málaga acabou de o reconfortar; e, pegando no chapéu,
saiu com a Sr.a Bonard e Julião, depois de haver tomado a
precaução de meter na algibeira um punhado de moedas de ouro.
A cidade não era longe; o tempo estava magnífico. Chegaram
depois de meia hora de caminho.
Enquanto eles compravam e o Sr. Georgey pagava e fazia
outras compras por sua conta - xales, vestidos, gravatinhas,
toucas para a Sr.a Bonard, fatos, peúgas, chapéu, etc. , para
Julião, presentes de espécies diferentes para outras pessoas que
queria recompensar de pequenos serviços que lhe haviam prestado.

12
Um roubo audacioso
- Então - disse Alcino, quando chegou - já se foram embora?
FREDERICO - Estão todos fora de casa até ao meio- dia; são
dez horas, temos duas horas à nossa frente.
ALCINO - Está bem, fazem-se muitas coisas em duas horas.
Julião está na feira com tua mãe, disseste- me ontem; o inglês
vai lá ter com ele, certamente, ou então Julião, pescou-o por aí.
FREDERICO - E todo o nosso plano fica escangalhado. Julião
vai impedir o inglês de nos distrair, de pagar os nossos
divertimentos. Que coisa tão irritante!
ALCINO - Deixa lá! Faremos dele o que quisermos! não é tão
santo como parece; três ou quatro copos de vinho e temo-lo na
mão.
FREDERICO - Mas não temos dinheiro para começar.
ALCINO - Também pensei nisso; temos de o arranjar; é
possível que Julião previna o inglês e consiga fazer com que não
nos convide a acompanhá-lo. E eu que penso em tudo, tomei as
minhas precauções. Os perus estão aqui, não é verdade?
FREDERICO - Certamente, visto que o inglês quer comê-los
todos. Guardam-se para ele.
77
ALCINO (rindo) - E tu é que vais guardá-los; mas que divertido!
FREDERICO - Não fales nisso; sinto-me furioso só de pensar
nessa maçada. E depois com meu pai sempre a vigiar-me.
ALCINO - Pois bem! Vou ajudar-te, diminuindo o seu número
para que sejam mais depressa comidos. Vais ver.
FREDERICO - Espero que não vás matar nenhum. Olha que eu não
quero isso.
ALCINO - Tomas-me por tolo? Espera um instante que vou
buscar o meu homem.
FREDERICO - Qual homem? Quero saber; quero...
Alcino estava já muito longe; tinha corrido direito à cancela;
dois minutos depois voltava com um homem corpulento, de tamancos
e blusa.
- Olhe, Sr. Grandon, cá estão os perus. Estão bonitos, bem
gordos, bons para comer, como vê. Escolha dois como tínhamos
combinado.
78
O homem olhou com atenção os perus.
- Sim, estão em bom estado; e quanto custa cada
um?
ALCINO - Ora essa! Veja quanto quer dar.
GRANDON - Três francos! Está bem?
ALCINO - Três francos! Está a brincar, Sr. Grandon. Valem quatro
francos a olhos fechados; e se os
vender pagar-lhos-ão a cinco ou seis francos, pelo menos.
GRANDON - Isso é outro negócio; a venda não te
diz respeito. É para serem comidos que os compro e não
para revenda; três francos e cinquenta, se quiseres, e
nem mais um real.
ALCINO - Eu insisto nos quatro francos, nem menos
um cêntimo; disseram-me para os vender a quatro francos, pagos à
vista.
GRANDON - Bom, vá lá pelos quatro francos, mas
perco com isto; na verdade, perco.
ALCINO (zombando) - Isso é outro negócio; não
quero saber de ganhos ou de percas. Quatro francos pagos
imediatamente.
GRANDON - Bem, sejam os quatro francos, seú
grande pândego!
ALCINO - Dois perus a quatro francos, são... são...
Quantos francos são, Frederico?
Frederico não respondeu; estava mudo de surpresa.
A audácia de Alcino assombrava-o; já não ousava resistir.
Tremia só de pensar no que poderia resultar desse
roubo descarado.
GRANDON (rindo) - São sete francos, com os demónios. Não
sabes fazer contas?
ALCINO - É verdade, Sr. Grandon, é verdade! Agora vejo que
são sete francos, como diz!
79
GRANDON - Ora ainda bem! Olha, toma lá os sete francos; eu levo
os bichos, já estou atrasado.
Abriu a vedação, apressou-se a meter dois gordos perus numa
gaiola própria para a criação, subiu para a carroça e partiu a
trote, com medo de que o rapaz reparasse que os perus tinham sido
pagos a três francos e cinquenta em lugar de quatro. Alcino
contou o dinheiro; estavam os sete francos, certos.
- Vês tu - disse ele -, estamos ricos; temos com que nos
divertir e ficaste livre destes dois aborrecidos bichos... Que é
que tens? Não dizes nada?
FREDERICO - Oh! Alcino, que fizeste? Que é que me vai agora
acontecer? Que hei-de eu dizer para me desculpar?
ALCINO - Mas que estúpido! Que estúpido tu és! Que falta de
imaginação! Vais-te já embora comigo. Metemos pela travessa e
vamos para a cidade, através dos campos, mas não entramos lá
senão depois do meio- dia, quando tivermos a certeza de que a tua
mãe já voltou à herdade.
FREDERICO - Mas isso não explica como desapareceram os dois
perus!
ALCINO - Muito bem, até! Dizes que saíste um pouco mais
cedo, pensando que tua mãe não se demoraria, e que os perus
estavam no pátio, quando saíste; que alguns ratoneiros esperavam,
certamente, a tua partida para roubar os perus e vendê-los na
feira.
FREDERICO - Os ratoneiros teriam roubado de preferência o
dinheiro que está no armário da sala.
ALCINO - Dinheiro? Há cá dinheiro? Tens razão! os gatunos
não costumam estar com meias medidas. Estás certo de que há
dinheiro cá em casa?
80
FREDERICO - Absolutamente certo. Mais de cem francos, creio eu,
que a mamã contou ontem à noite e que são do Julião.
ALCINO - Do Julião? Cem francos? É impossível!
FREDERICO - Tenho a certeza; foi o imbecil do inglês que lhos
deu.
ALCINO - Isso é de mais para um mendigo como Julião e, como
disseste há pouco, não era natural que os gatunos os deixassem
ficar.
FREDERICO (assustado) - Que vais tu fazer?
ALCINO - Já vais ver como eu te vou salvar. Vamos, despacha-te.
Temos de sair dentro de um quarto de hora e, se a tua mãe vem um
pouco mais cedo, está tudo perdido.
Frederico quis resistir à vontade de Alcino, mas este
agarrou-o pela gola do casaco e levou-o até ao armário da sala.
- Onde está a chave? - perguntou, em tom imperioso.
Frederico tremia e deixou-se cair numa cadeira.
ALCINO - Dá-me a chave ou prego-te uma sova por conta da que hás-
de apanhar do teu pai se ele suspeitar que tu... que tu...
roubaste tudo isto. E ainda por cima hei-de dizer ao teu pai que
te batii porque me propuseste o roubo deste dinheiro, do qual eu
não podia adivinhar a existência.
Frederico, estimulado por esta ameaça, acompanhada de uma
palmada, mostrou-lhe o esconderijo onde sua mãe tinha a chave.
Alcino abriu o armário e achou facilmente o saco; esvaziou-
o, pegou no dinheiro que lá havia ficado, tornou a colocar a
chave no esconderijo e, com uma
81
alavanca partiu a almofada de uma das portas do armário e
arrancou a fechadura.
ALCINO - Agora vem depressa; não há tempo a perder. Julgarão
que os ladrões, não tendo encontrado a chave, partiram tudo.
Desta maneira, não suspeitarão de ti, que conheces o esconderijo.
Corramos depressa, vamos divertir-nos a valer; depois, guardo o
resto do dinheiro. Temos aqui para muito tempo e não precisaremos
mais do inglês.
E, arrastando o infeliz Frederico, aterrorizado, o qual sentia
mais vontade de chorar do que de se divertir, correu a tomar o
caminho lateral e, em breve, desapareceram os dois por detrás de
um outeiro.
Detiveram-se durante algum tempo no bosque; Alcino teve
receio de que o rosto consternado do seu amigo atraísse as
atenções. Procurou reanimá-lo.
- Vamos, Frederico - disse ele -, vê se espertas. De que
tens medo? Não é um grande crime teres saído alguns minutos antes
da hora. Podias, por acaso, prever que iriam roubar a herdade
precisamente durante esses poucos instantes de ausência? Dizes
aos teus pais que foi uma felicidade saíres mais cedo porque
poderias ter sido morto pelos ladrões. Dizes que provavelmente
eram uns poucos, visto que conseguiram arrancar uma fechadura tão
forte. Tomas um ar assustado, indignado; procuras os vestígios
dos ladrões, dizes que te lembras de ter visto passar malteses.
FREDERICO (tremendo) - Eles naturalmente não me acreditam.
ALCINO - Com certeza que, se estiveres com o aspecto que
tens agora, adivinham imediatamente que os estás a enganar; é
preciso que chegues com ar alegre, como um rapaz que acaba de se
divertir graças ao inglês que quis pagar tudo; não esqueças isto;
é importante. E quando te falarem do roubo tomas um ar
consternado e exclamas: Que felicidade eu não ter cá estado!
Esses patifes ter-me- iam morto para que não os denunciasse. Não
esqueças isto também.
FREDERICO - Sim, sim, compreendo. Mas, fizeste com que
cometesse uma acção bem má; tenho remorsos.
ALCINO - Imbecil! A quem fizemos mal?
83
FREDERICO - Primeiramente a meu pai e minha mãe; e depois ao
pobre Julião que me causa dó, agora que lhe roubámos tudo o que
possuía.
ALCINO - Em primeiro lugar, Julião não perde nada com isto;
porque o ricaço do seu inglês que lhe tomou amizade, não sei
porquê, há-de dar- lhe o dobro do que perdeu. Teus pais também
podem perfeitamente perder dois perus; não hão-de morrer por
isso, podes estar descansado. Aliás, como te disse já mais de uma
vez, o que é deles não é também teu? Não és tu o seu único filho?
Não há-de ser tua, um dia, a herdade e tudo o que eles possuem?
E, visto que nunca te dão nem um real para te divertires, não
terás o direito de aliviar um pouco a sua bolsa? Achas que um
rapaz de dezassete anos deve ser tratado como uma criança de
sete? Tiraste, pois, o que é teu. Onde está o mal?
- Realmente é verdade - exclamou o fraco rapaz.
- Nunca me dão nada.
ALCINO - Já vês que tenho razão. Querem que vivas como um
mendigo. Não te deixes ir nisso. Aos dezassete anos é-se quase um
homem. Vejamos, não penses mais nisto e continuemos, embora
devagar, o nosso caminho, para não chegarmos tarde à cidade.
Temos ainda de andar durante meia hora e creio que já não falta
muito para o meio-dia.
E continuaram o seu caminho.

13
O terror da Sr. a Bonard
De repente, na volta de uma sebe, Frederico soltou um grito
abafado.
ALCINO - Então, que foi isso? Que aconteceu?
FREDERICO (titubeando) - Parece-me que vejo a mamã, ali, na
estrada; está parada a conversar com alguém.
ALCINO - Depressa, para trás da sebe; estão de costas
voltadas, não nos viram.
Deitaram-se os dois de bruços, passaram através de uma
abertura da sebe e agacharam-se atrás de um espesso arvoredo.
Durante alguns instantes não ouviram nada; depois chegou até eles
um ruído confuso de risos e vozes e depois palavras distintas.
- Vai tão depressa, Sr. a Bonard! Mal posso acompanhá-la;
até me falta a respiração.
SRa BONARD - É porque tenho medo de fazer esperar o meu pobre
pequeno, Sr.a Blondel. Tinha-lhe pro metido estar de volta antes
do meio-dia e já ouço dar meio-dia no campanário da igreja.
SR.a BLONDEL - Ora! Demora-se mais logo à tarde; meia hora
perdida não é caso de morte.
SR.a BONARD - É que ele não é muito dócil, sabe, Sr. a
Blondel? É capaz de se impacientar e deixar a her dade e os
animais ao deus-dará.
SR. BLONDEL - Toda a gente está na feira; não vai lá ninguém.
SR.a BONARD - E os ratoneiros que andam por toda a parte,
que roubam, que matam mesmo, diz-se.
SR.a BLONDEL - Deixe lá! São patranhas que nos querem fazer
engolir... Ah! Mas já cá estamos; não encontrámos o Frederico, é
porque ele ainda não foi.
Chegaram neste momento à porta da herdade.
SR.a BONARD - Ora esta! Onde está o Frederico? Pensava encontrá-
lo na cancela.
SR.a BLONDEL - É porque está em casa, sem dúvida.
A Sr.a Bonard entrou em primeiro lugar, tirou o xale,
dobrou-o cuidadosamente e quis guardá-lo no armário. Soltou então
um grito que assustou a Sr.a Blondel.
SR.a BLONDEL - Que foi? Está doente? Sente-se
mal?
A Sr.a Bonard apoiara-se à parede; estava pálida como um
cadáver.
- Roubados! Roubados! - disse ela, numa voz desfalecida. - O
armário arrombado! A fechadura arrancada!
A Sr.a Blondel comparticipou do terror da sua amiga;
gritaram e levantaram-se as duas, chamaram por socorro, mas
ninguém aparecia; como tinha dito a Sr.a Blondel, toda a gente se
encontrava na feira.
Só muito tempo depois revistaram o armário e se asseguraram
do roubo que tinha sido cometido.
SR.a BONARD - Pobre Julião! O poucochinho que possuía!
Levaram tudo! Admiro-me de que não tenham roubado mais coisas;
não tocaram nos fatos nem em nenhuma peça de vestuário.
86
SR. A BLONDEL - Porque essas coisas servir-lhes-iam de embaraço.
Que haviam eles de fazer da roupa e dos fatos que poderiam
denunciá-los?
SR.a BONARD - Mas o Frederico, onde está? Ai! Meu Deus!
Frederico, meu pobre filho, onde estás tu?
SR.a BLONDEL - Deve estar aí agachado em qualquer canto.
SR.a BONARD - Contanto que não o tenham assassinado!
SR.a BLONDEL - Ah! É bem possível! Os ratoneiros são tão
malvados! Não conhecem Deus nem lei nenhuma!
A Sr.a Bonard, mais morta que viva, continuou a gritar, a
chamar Frederico, a correr por toda a parte, procurando nos
celeiros, nas granjas, nos estábulos, nas estrebarias, nos
apriscos. A sua amiga acompanhava-a, gritando mais do que ela e
prodigalizando consolações que redobravam o desespero da Sr. a
Bonard.
- Ah! Naturalmente degolaram- no ou mataram-no por asfixia,
porque não se vê sangue em parte nenhuma... Eu bem lhe dizia que
estes salteadores são demónios, satanáses, criaturas
desqualificadas, velhacos, tratantes! E veja a sua maldade!
Provavelmente deitaram- no à água ou enterraram-no em algum sítio
para que não pudesse denunciá-los.
Depois de ter corrido, procurando por toda a parte, as
consolações da Sr.a Blondel produziram o efeito natural; a Sr.a
Bonard, esgotada por tantos gritos inúteis, foi acometida por um
ataque de nervos, que a sua amiga procurou, em vão, combater com
baldes de água pela cabeça, pancadas nas mãos e penas queimadas
no nariz. Vendo, enfim, que os seus esforços eram inúteis, voltou
à primeira forma e soltou gritos capazes de acordar um morto.
À força de muito gritar acabou por conseguir socorro;
Bonard, que voltava muito descansadamente da feira, depois de ter
vendido bem, muito bem, o seu gado, ouviu o apelo potente da Sr.
a Blondel; muito assustado, apressou o passo e entrou ofegante em
casa; pouco faltou para que juntasse os seus gritos aos da Sr.
aBlondel; viu a mulher estendida no chão, num charco, com o rosto
enegrecido e abrasado e os membros agitados por movimentos
nervosos. Mas Bonard era homem, procedia em lugar de gritar;
levantou a mulher, limpou-a o melhor que pôdde, deitou-a na cama,
tirou-lhe o vestido molhado, esfregou-lhe as fontes e a testa com
vinagre e viu, enfim, que progressivamente se acalmava e voltava
a si, olhando em redor.
A Sr. a Bonard abriu os olhos, reconheceu o marido e começou
a soluçar ainda mais.
BONARD - Que tens tu, mulher, minha boa e querida mulher?
SR.a BONARD - Frederico, Frederico! Foi assassinado por eles,
degolado, estrangulado, num fosso.
BONARD (surpreendido) - Frederico assassinado, estrangulado?
Que estás a dizer? Acabo de o deixar rindo como um bem-
aventurado, num teatro de farsas com Julião, o Sr. Georgey e, o
que bastante me aborrece, com Alcino. Mas o Sr. Georgey quis
mimoseá-los aos três e levá-los a todas as diversões.
SR. A BONARD (juntando as mãos) - Louvado seja Deus! Bendito
seja Deus! Meu bom Jesus, minha boa e Santa Virgem, como eu Vos
agradeço! Pensei que tivesse sido morto pelos ladrões.
88
BONARD - Os ladrões! Quais ladrões? Meu Deus, meu bom Deus! Mas
tu não estás boa da cabeça, minha pobre, minha querida mulher!
A Sr.a Blondel tomou então a palavra e explicou-lhe o que
tinha causado o terror e o desespero da Sr.a Bonard. A duração
desta narrativa teve a vantagem de dar aos Bonard tempo para se
acalmarem.
A Sr.a Bonard levantou-se, vestiu-se e mostrou ao marido a
fechadura e o armário partidos.
Fizeram duas suposições, das quais uma se aproximava da
verdade, acerca daquele roubo que não conseguiam compreender;
passaram revista geral no interior e no exterior; animais e
coisas estavam nos seus lugares. Quando chegaram à capoeira dos
perus e os contaram, os gritos das mulheres recomeçaram.
- Calem-se, mulheres - disse Bonard com autoridade - , em
lugar de gritarmos, agradeçamos a Deus que as nossas perdas se
limitem a dois perus e algum dinheiro, e que os receios de minha
mulher não se tenham realizado.
As mulheres calaram-se.
- Além de que estes perus talvez não estejam perdidos;
talvez se tivessem separado dos outros no bosque e vais ver que
voltam provavelmente antes da noite - acrescentou Bonard.
A Sr.a Bonard, que já se sentia feliz por saber o filho em
segurança, aceitou, de bom grado, a esperança que o marido lhe
oferecia.
Quanto à Sr. Blondel, em vista da calma da Sr.a Bonard,
recuperou depressa a sua, que não tinha perdido senão na
aparência.
A Sr.a Bonard, depois de haver readquirido completamente a
sua tranquilidade de espírito, começou a achar mau que Frederico
tivesse saído antes da sua volta, abandonando assim a herdade e
os animais.
- E depois - disse ela -, nunca se ouviu aqui falar de
roubos dentro das casas; quem teve a ousadia bastante para vir
despedaçar uma porta e uma fechadura numa herdade que se sabe
habitada?
SR.a BLONDEL - E depois, como puderam adivinhar que havia
dinheiro neste armário?
SR.a BONARD - E porque se contentaram em roubar o dinheiro e
não levaram roupa e fatos?
SR.a BLONDEL - E se o Frederico só saiu ao meio- dia, como a
senhora lhe tinha recomendado, como foi que os ladrões tiveram
tempo de cometer o roubo?
SR.a BONARD - E se os perus foram roubados, porque não os
levaram todos?
SR.a BLONDEL - E como se compreende que os ladrões se tenham
combinado para vir roubar a herdade justamente durante a meia
hora em que aqui não estava ninguém?
SR. A BONARD - E como... ?
BONARD - Basta de suposições, boas mulheres; ainda que
falássemos até amanhã não ficaríamos sabendo mais. Frederico há-
de voltar antes da noite; vamos saber por ele o que viu e ouviu.
E amanhã vou apresentar queixa ao administrador e à polícia, que
hão-de conseguir descobrir os gatunos...
Esta confiança pôs fim às reflexões das duas amigas. A Sr.a
Blondel continuou o seu caminho para a aldeia, onde andou de
porta em porta a contar a aventura de que tinha sido testemunha.
A Sr.a Bonard cuidou dos animais e procurou os perus
desaparecidos. Bonard foi tratar dos cavalos, fazer as
90
suas contas e calcular os lucros inesperados que tivera na venda
dos bezerros, vacas e poldros.
Quando terminaram o trabalho do dia, marido e mulher
juntaram-se na sala para cear e esperar o regresso de Frederico e
Julião.

14
Um almoço no café
Durante estes acontecimentos ocorridos na herdade, Frederico
e Alcino haviam-se encontrado na cidade com o Sr. Georgey e
Julião. Não reconheceram este último à primeira vista.
O Sr. Georgey comprara-lhe um fato completo de bela fazenda
azul-escura, um chapéu e sapatos de verniz; tinha, assim, um
aspecto de pessoa importante.
O primeiro sentimento que experimentaram os dois ladrões foi
um ciúme odioso do que eles chamavam a felicidade de Julião; o
segundo foi um vivo desejo de obter do Sr. Georgey o mesmo favor.
ALCINO - Como, és tu, Julião? Quem te deu esse belo fato?
Nunca tive nenhum tão bom, eu que sou muito mais rico do que tu!
FREDERICO - Mas que felicidade estares assim tão bem
vestido! Sentir-me-ia contentíssimo se meus pais me tratassem
assim tão bem. Mas não me dão coisa nenhuma; não gostam nada de
mim e ando sempre sem dinheiro como qualquer miserável.
91
SR. GEORGEY - Ser Julianinha, si própria que ter comprado tudo...
Julião quis falar. O Sr. Georgey tapou-lhe a boca.
SR. GEORGEY - Você, Julianinha, não dizer palavra. Mim não
querer. Mim querer silêncio.
ÁLCINO - Aposto, Sr. Georgey, que foi o senhor que pagou
tudo. É tão bom, tão generoso!
FREDERICO - E gosta tanto de dar! E as pessoas sentem-se tão
felizes quando o senhor lhes dá alguma coisa!
SR. GEORGEY - Ser verdade, bem verdadeiro? Então mim dar
qualquer coisa a vocês se vocês não ser mais malcriados. Vocês
três vir atrás de meus costas. Mim dar já. Julianinha, você dizer
a mim onde haver almoço excelente. E depois mim dar uma
admiração, uma surpresa a vocês dois.
ALCINO - Tenho um primo que é dono de um excelente café, Sr.
Georgey. Se quiser, levá-lo-ei lá.
SR. GEORGEY - No. Mim querer seguir Julianinha. Andar você,
Julianinha...
Julião obedeceu; abriu a marcha; os outros dois seguiram o
Sr. Georgey e chegaram dentro em pouco os quatro a um dos
melhores cafés da cidade.
O Sr. Georgey tomou assento numa mesa de quatro lugares; os
seus companheiros sentaram-se ao lado e à frente dele.
SR. GEORGEY - Rapaz!
CRIADO - Aqui estou, senhor! Que manda Vossa Excelência?
SR. GEORGEY - Excelente almoço.
CRIADO - E que deseja o senhor?
SR. GEORGEY - Tudo que você ter.
92
CRIADO - Temos sopa de pão, de aletria, de sebola, de arroz. Qual
deseja o senhor?
SR. GEORGEY - Todas.
CRIADO (pasmado) - Quantas doses, senhor?
- Oito. Duas de cada um.
O rapaz, cada vez mais surpreendido, levou duas doses de
cada sopa.
SR. GEORGEY - Dois a mim, Georgey; dois a Juliana, dois aos
outros.
O criado colocou diante do Sr. Georgey e dos três rapazes os
pratos de sopa.
SR. GEORGEY - Comer você, Julianinha; comer vocês outros.
JULIÃO - Senhor... senhor, mas... é de mais.
SR. GEORGEY (num tom autoritário) - Comer, Julianinha; mim dizer
comer.
Julião não ousou desobedecer e comeu; os outros dois fizeram
o mesmo.
SR. GEORGEY - Rapaz.
CRIADO - Aqui estou, senhor.
SR. GEORGEY - Que ter você?
CRIADO - Cozido, lombo de vaca com batatas, peru...
-Oh! Yes, você dar turkey; e depois claret (Bordéus) branca,
tinta; vinho Borgonha branca, tinta.
O criado levou duas asas de peru e quatro garrafas de vinhos
pedidos.
SR. GEORGEY - Que ser isto? Dois garfados! Mim querer turkey
inteiro... Você não compreender. Turkey, peru toda, sem cortar
nenhum bocado.
E bebeu o vinho que Alcino lhe deitou no copo, enchendo ele
próprio, a seguir, o de Julião.
93
- Você beber, Julianinha - disse esvaziando o copo, que Alcino se
apressou a encher de novo, enquanto Frederico enchia o de Julião.
O criado, assombrado, foi buscar um peru inteiro. O Sr.
Georgey deu a Frederico e a Alcino as duas porções que haviam
sido levadas em primeiro lugar, trinchou o peru completo, pôs uma
asa enorme em frente de Julião e comeu o resto sem notar que a
sala inteira e os criados o olhavam com espanto.
SR. GEORGEY - Rapaz!
CRIADO - Aqui estou, senhor.
SR. GEORGEY - Que ter você?
CRIADO - Perdizes, cabrito...
SR. GEORGEY - Oh! Yes! Mim querer perdizes, seis;
cabrita, um pata.
CRIADO - O senhor quer dizer uma coxa?
SR. GEORGEY - Oh dear! shocking! Mim não dizer esse palavra
imundo; dizer-se: uma pata.
O criado foi executar esta ordem no meio de uma
gargalhada geral. Quando chegaram os pratos pedidos, o Sr.
Georgey deu uma perdiz a Julião, uma a Frederico
outra a Alcino e comeu ele três.
Bebeu de um trago uma garrafa de vinho que tinha na sua
frente, depois de ter enchido o copo de Julião. Cortou três
fatias de cabrito que deu aos seus convidados e comeu o resto.
Alcino enchia sem cessar o copo do inglês, que bebia sem
parar. Depois começou a misturar o vinho branco
com o tinto, para com mais segurança o embriagar. Julião bebia o
menos que podia, I O Sr. Georgey chamou:
- Rapaz!
94
CRIADO - Aqui estou, senhor.
SR. GEORGEY - Trazer com toda velocidade champanhe, Madeira,
Málaga e conhaque. Com muita pressa;
mim sufocar, mim ter sede.
O Sr. Georgey não se apercebia da astúcia de Alcino, da mistura
dos vinhos, e do número de copos que lhe
enchia, sem cessar.
O resto do almoço decorreu do mesmo modo.
O Sr. Georgey pediu ainda galinholas, legumes, quatro
variedades de doce, frutas de diversas espécies, compotas,
biscoitos e mais vinho.
Quando lhe trouxeram a conta, que era uma exorbitância, disse
Ser muito, mas ser bom comida. Mim voltar... Toma. Pôs as notas
em cima da mesa, levantou-se e
dirigiu-se para a porta, cambaleando ligeiramente.
CRIADO - Se o senhor quiser esperar um momento, vou buscar a
demasia.
SR. GEORGEY - Mim nunca esperar.
E saiu. Julião seguiu-o cambaleando mais do que ele.
Alcino disse ao criado:
- Traga-me o resto; sou eu que guardo a demasia
dele.
O criado levou a Alcino a demasia; este meteu-a na
algibeira.
CRIADO - E eu, senhor?
ALCINO - Está certo. Frederico, dá-me uma gorjeta.
Frederico deu-lha; Alcino pô-la na mão do criado que
muito descontente, resmungou:
- Quando vir o patrão hei-de dar-lhe parte da
mesquinhez dos seus criados.
95
Apesar de o Sr. Georgey estar habituado a beber muito, a
quantidade e a mistura de vinhos que tinha ingerido produziram os
seus efeitos; não tinha as ideias muito nítidas.
Julião, que nunca bebia, sentia-se mal seguro nas pernas;
iam no entanto andando, seguidos de Frederico e de Alcino; mais
habituados ao vinho e mais prudentes que Julião, tinham bebido
pouco e conservavam todo o seu juízo. Dirigiram-se para o lado do
teatro, onde fizeram entrar o Sr. Georgey e Julião. Alcino pagou
os quatro lugares, prometendo a si próprio recuperar largamente
esse dinheiro. Fora ali que Bonard os vira entre as duas e as
três horas da tarde. Representavam-se farsas; toda a gente ria.
Depois das farsas foi uma peça trágica. Alcino aproveitou-se da
atenção dos espectadores dirigida para a cena, e da sonolência do
Sr. Georgey e de Julião, para introduzir cautelosamente a mão na
algibeira do inglês e retirar de lá um punhado de moedas de ouro
que meteu no bolso do seu colete, depois de ter posto, com
destreza, algumas na algibeira de Julião.
- Porque fazes isso? - perguntou Frederico.
ALCINO - Chut! Cala-te. Explico-te daqui a bocado.
A peça continuou. Quando acabou e todos se levantaram para
deixar a sala, o Sr. Georgey e Julião dormiam profundamente.
Ninguém prestou atenção a isso. O teatro despovoara-se. Alcino e
Frederico tinham-se ido embora.
Perto das oito horas da noite iluminou-se a sala e começou a
encher- se segunda vez. O Sr. Georgey foi o primeiro a acordar,
esfregou os olhos, procurou recordar- se, lembrou-se de tudo e
ficou envergonhado por se haver embriagado em presença de três
rapazes tão novos
96
e sobretudo perante Julião, de quem seria protector a partir do
dia seguinte. Procurou Julião e viu-o dormindo sossegadamente a
seu lado.
Que fazer? - perguntou de si para si. - Que contar a ele? Que
dizer? Que explicar? Pobre Julianinha! Ser mim que ter dado
bebida!... Mim ser terrivelmente castigada "
Enquanto corava e se acusava, sacudia ligeiramente Julião;
este foi acordado pelo ruído que faziam as pessoas que chegavam e
pelos esforços do inglês. Olhou para todos os lados, viu o sr.
Georgey acordado e pôs-se rapidamente em pé.
- Aqui estou, Sr. Georgey. Peço-lhe muita desculpa. Não sei
o que foi isto. Estou pronto a segui- lo, meu senhor...
O Sr. Georgey ergueu-se sem responder e saiu, seguido de
Julião. Estava já um pouco escuro, mas começava a nascer a lua; a
rua estava cheia de gente; o Sr. Georgey caminhava, sem falar.
- Meu senhor - disse enfim Julião -, vejo que está zangado
comigo, peço-lhe muita desculpa, meu senhor. Sei bem que fiz mal;
nunca bebo vinho, meu senhor; não devia ter aceitado tanto.
Asseguro-lhe, Sr. Georgey, que estou envergonhado e muito triste.
Nunca mais caio em tal. Juro-lhe.
SR. GEORGEY - Pobre Julianinha! Mim não ter nenhuma zanga
contra você; pobre pequena! Somente estar furiosa e corar por
causa de mim. Mim fazer acção má, horrível. Mim ser estúpida
criatura e você não fazer mal, não pedir desculpa, não dizer nada
mau para você. Cá estar a cancela de Sr. a Bonard. Boa noite,
good bye, little dear; boa noite; mim voltar amanhã.

15
O regresso de Julião
O Sr. Georgey continuou o seu caminho, deixando Julião
na cancela.
Este último entrou em casa e encontrou os Bonard
inquietos com a sua demora e a de Frederico. Eram nove horas e,
portanto, noite fechada.
- Ah! até que enfim, chegaram! - disse a Sr.a Bonard -
Começava a estar inquieta. Onde está Frederico? Preciso de lhe
falar.
JULIÃO (com um ar embaraçado) - Não sei, patroa. Há
muito tempo que o não vejo.
SR.a BONARD - Mas porque se separaram?
JULIÃO (baixando a cabeça) - É que, patroa... eu adormeci no
teatro e o Sr. Georgey só me acordou às oito horas.
SR.a BONARD - Adormeceste! E só acordaste às oito horas! E foi o
Sr. Georgey! Que quer isso dizer?
JULIÃO (rompendo em soluços) - Oh! patroa, quer dizer
que eu sou um mau rapaz, indigno da bondade do Sr. Georgey.
Embriaguei-me; foi por isso que adormeci. Ó patroa, perdoe-me;
juro que não torno a fazer uma coisa destas!
SR.a BONARD - Meu pobre rapaz, perdoo-te de boa vontade, tanto
mais que não te embriagaste sozinho, sem dúvida, e naturalmente o
Sr. Georgey pagou-te o vinho.
JULIÃO - É verdade, patroa.
SR.a BONARD - Foi então ele que te embriagou?
JULIÃO - Oh! não! patroa; estava a almoçar, não prestava
atenção; eu é que devia não ter bebido. E fui eu à feira para
impedir que ele fosse enganado!
SR.a BONARD - Enganado por quem?
JULIÃO - Pelo... pelo... Alcino.
SR.a BONARD - Mas o Alcino não estava convosco.
JULIÃO - Perdão, patroa, foi lá ter com o Frederico.
BONARD (dando um murro na mesa) - Com o Frederico? Mais uma vez!
Depois de eu o ter proibido terminantemente!
SR.a BONARD - E ficaram juntos?
JULIÃO - Não sei, patroa; não os vi quando acordei. BONARD -
Está bem, meu rapaz, não te aflijas; não fizeste isso com
maldade, não calculaste que esse vinho te embriagasse. Tens um ar
cansado; vai-te deitar.
SR.a BONARD - Despe primeiro o teu lindo fato novo. Eu vou
guardá-lo aqui ao lado.
Julião tirou o casaco, depois o colete e tocou, por acaso,
nos bolsos.
- Ai! Meu Deus! Que está aqui? Dinheiro!... Ouro... De onde
veio isto? Não é meu!... Não percebo nada.
SR.a BONARD - Ouro! Por que razão tens ouro nas algibeiras?
Ela e o marido contaram as moedas: eram dez e mais algumas
moedas de prata. Estavam estupefactos.
- Oh! Meu Deus! - exclamou Julião. - Vão julgar que eu as
roubei! Mas como pôde vir parar todo este dinheiro à minha
algibeira? Não me lembro de nada senão de ter almoçado, termos
ido para o teatro e depois adormecido.
99
BONARD - Ouve, Julião, o Sr. Georgey estava um pouco embriagado
como tu?
JULIÃO (hesitante) - Creio que sim, patrão... um
bocadito, porque não se segurava muito bem nas pernas; cambaleava
um pouco; Alcino e Frederico amparavam-no.
BONARD - Foi talvez ele próprio que te meteu tudo isso
na algibeira.
JULIÃO - Não posso ficar com este dinheiro, patrão. Se foi
ele, certamente não sabia o que fazia. Eu estava ao seu lado e
naturalmente enganou-se na algibeira. Queria metê-lo na sua e
meteu-o na minha... Ó patrão, deixe-me levar-lhe este dinheiro
imediatamente, para que ele não julgue que foi roubado.
BONARD - Levas-lho amanhã, meu amigo; hoje é tarde de mais.
Encontrá-lo-ias deitado, e como bebeu de mais, havia de ser
difícil acordá-lo.
JULIÃO - Pobre Sr. Georgey! A culpa não é sua. Lembro-me
agora de que Alcino insistia sempre com ele para beber e lhe
deitava vinho branco e tinto; depois, obrigou-o a beber, no fim,
champanhe; foi isso que Lhe subiu à cabeça! Pobre Sr. Georgey! E
era por isso que me pedia perdão quando voltávamos! Parecia
envergonhado! E eu que desconfiava do Alcino e precisamente por
isso me decidi a ir à feira para impedir que ele fosse enganado!
Deixei que o embriagassem e talvez até... que o roubassem.
SR.a BONARD - Que o roubassem! Como?... Julgas
que... , que o Alcino... ?
JULIÃO (precipitadamente) - Não, não, patroa, não
penso nisso; não penso nada, não sei nada. Falei estouvadamente.
100
Bonard e a sua mulher não responderam; disseram a Julião que se
fosse deitar. Este desejou-lhes as boas- noites e foi para o seu
celeirozinho.
Uma vez ali chegado, rezou e chorou durante muito tempo.
O que fazem os maus exemplos e os maus companheiros! -
pensou ele. - Se não fosse isso, não sentiria agora a vergonha de
me ter embriagado; o pobre do Sr. Georgey não teria também de
corar do seu dia de feira! Pobre homem! É pena! É tão bom!... E
como o Alcino estragou o Frederico! Meus infelizes patrões!
Quantos desgostos lhes virá ainda a dar! E eu que me vou embora!
Ficam sem ninguém para os ajudar, para cuidar deles... E pensar
que devo ir para não os sobrecarregar. Ah! se não fosse este
receio, nunca teria pensado em os deixar. Meus bons patrões! Se
fossem mais ricos!... Mas tudo quanto Nosso Senhor faz é para
nosso bem, diz o Sr. Abade. Devo conformar-me.
E, chorando sempre, Julião adormeceu.

16
Os relógios e as correntes
Que tinham feito Frederico e Alcino, durante este tempo? No
fim do espectáculo foram-se embora cautelosamente, com medo de
acordar o Sr. Georgey e Julião.
101
Quando se viram fora do teatro, Frederico perguntou a Alcino:
- Porque meteste aquelas moedas de ouro no bolso de Julião?
Onde as arranjaste?
ALCINO - No bolso do inglês, pois então!
FREDERICO - Como? Roubaste-o?
ALCINO - Cala-te para aí, palerma! Gritas como se falasses
com um surdo. Não se dizem essas coisas alto. Tirei, não roubei.
FREDERICO - Mas se as tiraste da sua algibeira sem que ele
soubesse...
ALCINO - Pois muito bem! Tirei-as para impedir que outro
qualquer as tirasse. Ele estava embriagado, como sabes; dormia e
soprava como um búfalo. O primeiro sujeito que aparecesse podia
roubá-lo e até esganá- lo. Assim, esvaziando-lhe os bolsos,
salvei-lhe provavelmente a vida.
FREDERICO - Ah! compreendo. Queres restituir-lhe o dinheiro.
ALCINO - Não, não lhe torno a dar as suas loiras. Não sou
tão estúpido como isso. Tinha prometido que nos daria um presente
e não nos deu nada; eu poupei-lhe o trabalho de escolher; vamos
nós comprar o que mais nos convier.
FREDERICO - Mas porque meteste as moedas no bolso de Julião?
ALCINO - Para fazer crer que foi o Julião que roubou o
inglês no caso deste ter notado alguma coisa.
FREDERICO - Mas isso é abominável! Depois de teres roubado o
Julião, cometes uma acção vil e queres que a atribuam a esse
pobre rapaz!
102
ALCINO - Aborreces-me com a tua piedade parva, e és estúpido como
um ganso. Em primeiro lugar, o in glês, que é um imbecil
consumado, nem mesmo pensará em contar o dinheiro; há-de julgar
que perdeu as moedas por um buraco que tive o cuidado de fazer no
fundo da algibeira. E se ele se queixar, diz-se-lhe que foi
Julião que não resistiu à tentação. Procura-se nos bolsos deste e
encontra-se o dinheiro; o inglês, que lhe tem amizade, não diz
mais nada: leva o seu pobre Julianinha e não pensa mais nisso.
FREDERICO - Mas o meu pai e a minha mãe pensarão no caso,
por certo, e hão-de julgar Julião um gatuno.
ALCINO - Que tens tu com isso? Esse Julião é um insolente, é
o teu pior inimigo; tem trabalhado para ocupar o teu lugar em
casa e para fazer com que te expulsem. Acredita nisto que te
digo. Vê-lo-ás, não há-de tardar muito.
FREDERICO - Como? Julgas que Julião?...
ALCINO - Não julgo, tenho a certeza. É um verdadeiro serviço de
amigo, este que te presto. Mas falemos de outra coisa. Gostavas
de ter um relógio?
FREDERICO - Pois claro que gostava! Um relógio! É preciso
muito dinheiro para ter um relógio. E tu próprio, apesar do que
tens furtado a teus pais e a outras pessoas, ainda não tens
nenhum.
ALCINO - Não, porque nunca juntei a quantia bastante para
isso. Mas é necessário que cada um de nós tenha um relógio, visto
que temos com que o comprar. Vamos ao estabelecimento de um primo
meu que é relojoeiro e com quem me dou.
FREDERICO - Mas se nos virem com relógios hão-de perguntar-
nos quem no-los deu.
103
ALCINO - Muito bem, a resposta é fácil: o bom inglês, o excelente
Sr. Georgey.
FREDERICO - E se alguém lho perguntar?
ALCINO - Sabe ele, por acaso, o que faz e o que dá? Tanto mais
que, ou ele não compreende os outros, ou os outros não o
compreendem a ele.
FREDERICO - Tenho medo de que me faças cometer uma acção má
e, ainda para mais, perigosa, porque se somos descobertos estamos
perdidos.
ALCINO (zombando) - Tu tens sempre medo. Estás quase com
dezassete anos e és como uma criança de seis que tem medo dos
açoites. Ainda te dão açoites?
- Não, certamente - respondeu Frederico, com ar irritado. -
Não tenho medo absolutamente nenhum e não sou uma criança.
ALCINO - Então anda daí comprar um relógio, grande idiota;
sou eu que to dou.
Frederico deixou-se levar para a loja do primo relojoeiro.
Alcino pediu relógios, e mostraram-lhe alguns de prata.
- Relógios de ouro - disse Alcino, repelindo com desprezo os
de prata.
- Estás então muito rico? - disse o primo.
ALCINO - É verdade; deram- nos que chegue para comprarmos
relógios de ouro.
RELOJOEIRO - Isso é diferente. Aqui têm, escolham.
ALCINO - Para que preço?
RELOJOEIRO - Há aqui estes para cem francos; estes para
cento e vinte, cento e trinta e por aí adiante.
ALCINO - Qual levas, Frederico?
FREDERICO - Não tenho a mínima ideia; não quero um
demasiadamente caro:
104
RELOJOEIRO - Está aqui um de cento e vinte francos que Lhe deve
convir, senhor.
- E eu - disse Alcino - decido-me por este; é
muito bonito. Quanto custa?
RELOJOEIRO - Cento e trinta, preço fixo.
ALCINO - Muito bem, fico com ele.
RELOJOEIRO - Um momento. É a pronto pagamento; não te posso
dar crédito.
ALCINO - Pago e levo. Aqui está o dinheiro. Quanto tenho de
dar?
RELOJOEIRO - Não é difícil de contar: cento e
vinte com cento e trinta, faz duzentos e cinquenta. Aqui
estão os relógios e as chaves e mais um cordão, porque
não regatearam.
Alcino tirou da algibeira uma quantidade de moedas
de vinte francos; contou dez, depois duas, mais duas
moedas de cinco francos que tinha dado o criado do café, e
guardou o resto.
RELOJOEIRO - Tiveste então uma herança?
ALCINO - Não. Mas tenho um amigo, rico e generoso, que quis
que nós tivéssemos relógios. Até à vista, primo.
RELOJOEIRO - Até à vista. Vê se consegues trazer-me o teu amigo.
ALCINO - Hei-de trazer-to e olha que te prestarei
com isso um grande serviço, porque os negócios não vão
bem, segundo me parece.
RELOJOEIRO - Não, não! E, de resto, quanto
maior freguesia se tem, mais se ganha.
Os dois larápios foram-se embora com os relógios nos
bolsos. Alcino estava orgulhoso e puxava muitas vezes
pelo dele para o mostrar. Frederico, comprometido e assustado,
105
nem tocava no seu, com medo de que alguma pessoa das suas
relações o visse e fosse falar nisso ao pai.
- Agora - disse Alcino - vamos ver outras curiosidades.
E dirigiram-se para o local da feira, onde se achavam
reunidos os pavilhões de animais ferozes ou amestrados, as
barracas de prestidigitadores, os teatros de farsas e os
dançarinos de corda. Entraram em toda a parte. Alcino ria,
divertia-se, falava com os vizinhos. Frederico tinha o aspecto de
um condenado à morte: sério, sombrio, silencioso. O relógio
causava-lhe mais medo que prazer; a sua consciência, ainda não
afeita ao vício, atormentava-o cruelmente. Se não fosse o medo
que lhe inspirava o mau amigo, teria voltado ao relojoeiro para
lhe devolver o relógio e recuperar o dinheiro, que levaria depois
ao Sr. Georgey.
Toda a sala ria às gargalhadas com os ordinários gracejos de
um palhaço que discutia com o seu patrão arlequim. Alcino estava
ao lado de dois rapazes amáveis e risonhos, com os quais falava e
comentava as habilidades
e os bons ditos do palhaço. Teria de bom grado passado
ali a noite. Nunca se havia divertido tanto.
Mas o arlequim e o palhaço tinham esgotado a alegria e
o reportório; cumprimentaram, retiraram-se e os espectadores
saíram todos. No meio da multidão, apressada para visitar novos
divertimentos, Alcino viu-se separado dos seus amáveis
companheiros e, por mais que olhasse e procurasse, não pôde
encontrá-los.
- É aborrecido - disse ele a Frederico. - Cá estou eu
reduzido à tua companhia que não é lá muito divertida. Não
conversas, não olhas para nada e nada te diverte. Teria feito bem
melhor se tivesse vindo sem ti.
106
FREDERICO - Prouvera a Deus que eu não te tivesse acompanhado a
esta maldita feira. Desde manhã que ainda não senti senão
desgosto e terror.
ALCINO - Porque és um imbecil e um medroso; não tens mais
coragem do que uma galinha. Se te tivesse dado ouvidos, viríamos
e voltaríamos com os bolsos vazios; andaríamos atrás daquele
estúpido inglês e do seu mendigozito. Não tínhamos adquirido os
relógios nem tudo o que ainda vamos comprar.
FREDERICO - Ó Alcino, peço-te que não compres mais nada.
Este relógio já me faz um medo terrível.
ALCINO - Ah! ah! ah! És um estúpido, um animal! Segue-me;
vou levar-te ao estabelecimento de um bom rapaz que há-de
completar os nossos relógios.
FREDERICO - De que precisam eles mais? Já os acho
demasiadamente completos e caros.
ALCINO - Vais ver. E desta vez, se não ficares contente,
deixo-te para aí, e depois arranja-te como puderes.
FREDERICO (resolutamente) - Se me deixares, vou a casa do
Sr. Georgey, dou-lhe o relógio e conto-lhe tudo.
ALCINO - Miserável! Decide-te a fazer o que dizes e deito as
culpas todas para cima de ti; e preparo as coisas de maneira a
fazer com que te apanhem e te metam na prisão. E é tal qual como
se tu fosses o responsável de tudo. E o meu primo relojoeiro há-
de confirmar o que eu disser, para que nem eu nem o meu rico e
generoso amigo deixemos de ser seus fregueses.
O infortunado Frederico, assustado com as ameaças de Alcino,
prometeu-lhe calar-se e ganhar coragem.
Entraram os dois na joalharia.
JOALheIRO - Em que poderemos servi-los, senhores?
107
ALCINO - Correntes de relógio, se faz favor.
JOALheIRO - Para o pescoço ou para o colete?
ALCINO - Para o colete. (Baixo a Frederico) - Então, fala,
imbecil; estão a olhar para ti.
- Para o colete - repetiu Frederico timidamente.
JOALheIRO - Ei-las, senhores. Têm aqui de prata... (Alcino
recusa-as) e estas de prata dourada. (Alcino recusa outra vez) -
Também tenho estas de ouro.
ALCINO - É isso mesmo. Escolhe, Frederico; há aí
algumas muito bonitas.
Pegaram em algumas, pousaram-nas e pegaram-lhes de novo
várias vezes. O joalheiro não as perdia de vista.
O ar descarado de Alcino e o aspecto perturbado e assustado
de Frederico, inspiravam-lhe suspeitas.
Tenho mesmo a impressão de que são larápiospensou ele.
ALCINO - Vamos, Frederico; escolhe aquela de que
gostas; queres esta?
Alcino mostrou-lhe uma. Frederico pegou nela, dizendo:
- Quero, sim - com uma voz tão trémula, que o joalheiro
colocou instintivamente a mão nas jóias e puxou-as para si.
JOALheIRO - Sabem, senhores, que as pagam no acto da
compra?
ALCINO - Certamente que sei. Quanto custa esta
corrente?
JOALheIRO - Oitenta francos, senhor.
- Tome lá - disse Alcino, atirando para cima do balcão
quatro moedas de vinte francos. - E esta?
- Oitenta, senhor - respondeu o joalheiro com
pronunciada delicadeza.
108
- Tome lá - disse Alcino outra vez.
Quis tirar o relógio para o prender à corrente e não o encontrou:
tinha desaparecido. Por mais que procurasse e vasculhasse em todo
o fato, não achou o relógio.
- Foi roubado, o senhor? - perguntou o joalheiro.
- Suspeita de alguém?
- No teatro, estive entre dois rapazes que usaram de mil
delicadezas comigo e aos quais, porque mo pediram, disse as horas
que marcava o meu relógio - respondeu Alcino com voz trémula.
JOALheIRO - O senhor deve apresentar queixa no comissariado
da polícia.
- Muito obrigado, caro senhor. Anda, Frederico.
Frederico, vendo o rosto consternado do amigo, aproveitou
com alegria a ocasião de se desembaraçar do relógio.
FREDERICO - Olha, toma o meu, Alcino; eu não tenho grande
interesse por isto.
ALCINO (surpreendido) - O teu? Então o teu? Que fazes da
corrente?
FREDERICO - Guarda-a com o relógio que o joalheiro lhe
prendeu. Guarda, guarda tudo; prestas-me um bom serviço.
ALCINO - Se é para te prestar um serviço, é diferente.
Obrigado, guardo-o como lembrança tua.
FREDERICO - Vais apresentar queixa?
ALCINO - Não sou tão estúpido como isso! Para divulgar a
questão e fazer com que me descubram? Era preciso dar o meu nome,
o teu e o do relojoeiro. Haviam de me perguntar onde arranjara
dinheiro para pagar os relógios e tudo se descobriria. Os
patifes! Tinham um ar tão amável!

17
Os polícias e o Sr. Georgey
- Que se passa ali no local da feira? - perguntou Frederico,
que tinha readquirido a alegria desde que se desembaraçara do
relógio e da corrente. - Parece que os polícias prenderam alguém.
ALCINO - Vamos ver; toda a gente corre para aquele lado;
deve ali haver qualquer coisa curiosa.
Apressaram o passo e misturaram-se com a multidão.
- Que foi? - perguntou Alcino a um homem que falava e
gesticulava animadamente.
HOMEM - São dois velhacos que os polícias prenderam, no
momento em que roubavam o relógio a um original muito engraçado,
que fala atabalhoadamente não sei que língua. Não o compreendem e
ele próprin não compreende melhor o que lhe perguntam.
Continuaram a avançar. Alcino viu, com terror, que o
original era o Sr. Georgey, e os dois ladrões os dois amáveis
companheiros.
-Escapemo-nos - disse ele a Frederico -; é o Sr. Georgey e
os dois tratantes que provavelmente também roubaram o meu
relógio. Se o inglês nos vê, chama-nos e estamos perdidos.
Frederico quis fugir precipitadamente; Alcino segurou-o com
força.
110
-Devagar, desastrado, fazes com que nos prendam se mostrares
medo; façamos de conta que queremos passar para o outro lado.
Conseguiram, enfim, sair do meio da multidão. Enquanto
fugiam assim ao perigo que os ameaçava, Alcino achou maneira de
introduzir no bolso de Frederico a segunda corrente e o ouro e a
prata que lhe restava.
Quando já estavam um pouco afastados, apressaram o passo. Ao
passarem diante de um café muito iluminado, Alcino viu as horas
no seu relógio.
- Onze horas - disse ele. - Voltemos depressa.
Mas no mesmo momento sentiu- se agarrado pela gola. Soltou
um grito quando, ao voltar-se, viu um polícia. Frederico, que
caminhava à frente, deixou escapar uma exclamação: - Os polícias!
E começou a correr mais depressa. Passado um instante,
sentiu-se, por sua vez, apanhado.
POLÍCIA - Oh! Foges diante dos polícias, meu rapaz: mau
sinal! Tens de vir com o teu camarada que possui um belo relógio
e uma bonita corrente. Ora estas coisas dizem muito mal com o seu
casaco de fazenda grosseira e os seus sapatos ferrados.
FREDERICO - Deixe-me, Sr. Polícia. Estou inocente, juro-lhe;
não tenho nada comigo, nem relógio, nem corrente.
POLÍCIA - É o que vamos ver, meu menino; vais connosco à
presença do Sr. inglês que declarou terem- lhe roubado todo o
dinheiro, o relógio e a corrente.
Frederico tremia convulsivamente; o polícia tinha de o amparar e
arrastar.
Alcino, não menos assustado, repontava, no entanto, com
descaramento. Afirmava que o relógio e a corrente
111
lhe tinham sido dados pelo excelente Sr. Georgey; indicava o
relojoeiro que lho vendera e o joalheiro a quem comprara a
corrente.
O seu ar ousado e as indicações precisas que forneceu
abalaram um pouco a convicção dos polícias; o que o escoltava
disse-lhe com mais brandura:
-Pois bem, meu amigo, se estás inocente, o que vamos saber
daqui a bocado, não tens nada a temer da polícia. Estamos quase a
chegar. O Sr. Georgey, como lhe chamas, há-de reconhecer-te e ele
nos dirá que não roubaste nada, assim como o teu companheiro que
afirma não ter coisa nenhuma nas algibeiras.
Chegaram, com efeito, à presença do comissário da polícia
que fora verificar o roubo.
Quando os polícias lhe levaram os dois amigos, ordenou que
os revistassem. Alcino não tinha nada consigo de suspeito, mas
Frederico, que havia afirmado não ter nada nos bolsos, soltou um
grito de angústia quando o polícia lhe tirou de uma algibeira do
casaco uma corrente e algumas moedas de ouro e prata.
- Estás mais rico do que supunhas, meu rapaz - disse- lhe o
polícia.
A exclamação de Frederico atraiu a atenção do Sr. Georgey;
voltou-se, reconheceu-o, viu também Alcino e exclamou:
- O pequena Bonard! Oh! my goodness!
O pobre do Sr. Georgey ficou como que petrificado. POLÍCIA -
Queira, senhor, vir ver se a corrente e o ouro que achámos na
algibeira deste rapaz são seus.
O Sr. Georgey aproximou-se. Lançou um olhar às moedas de
ouro que eram guinéus ingleses. Eram as suas, não havia que
duvidar. Que fazer?! A pobre
112
Sr. a Bonard e o marido ficariam desonrados com o roubo do filho!
Decidiu- se rapidamente. Era preciso salvar a honra dos Bonard.
- Mim conhecer, ser pequena Bonard. Mim ter dado coisas a
pequena Bonard. Mim ter dado coisas a pequena Bonard e ter
comprado corrente. Ser muito bonito... ajuntou ele, examinando a
corrente. - Mim saber, mim conhecer. Ele vir comigo, mim dar tudo
a ele.
POLÍCIA - E o outro rapaz? O relógio e a corrente que tem no
bolso não pertencem ao senhor?
SR. GEORGEY - No, no, ser uma prenda. Mim ter dado, mim ter
dado. No, no, meu reloja não ser assim. Ter letras. Uma coroa
baronet Ser dois grandes patifas ter roubado. Mim estar seguro,
completamente certo.
Levaram os dois ladrões à presença do Sr. Georgey e
mostraram-lhe o relógio e a carteira com que fugiam quando haviam
sido presos.
SR. GEORGEY - Ser isto! Ser minha reloja! Mim conhecer.
Olhe, ver letras G. G. , isto ser para dizer: George Georgey.
Olhe, ver coroa baronet, isto ser para dizer sir Midleway... mim
conhecer; ser Alcino, este. Deixe, deixe, dois rapazes, mim levar
eles; ser escuro, ser meia-noite. Good bye, sir. Vir Alcino;
Fridrico andar em meu frente!
Os dois larápios, imensamente contentes por se verem livres
daquilo com tanta facilidade, não obrigaram o Sr. Georgey a
repetir a ordem; saindo do meio da multidão, foram ter com ele e
começaram a caminhar à sua frente em silêncio.
Quando saíram da cidade, Alcino, que já havia recuperado o
seu descaramento do costume, começou a querer desculpar-se
perante o Sr. Georgey.
113
- Como é bom, Sr. Georgey, por nos ter defendido, a mim e ao
Frederico, daqueles maus polícias!
SR. GEORGEY - Segurar seu língua, malcriada, ladrona; mim
proibir palavras a você.
ALCINO - Mas, senhor, asseguro-lhe...
SR. GEORGEY - Mim dizer: segurar língua. Mim não querer
ouvir seu voz horrível: gatuna, velhaca, tratanta. Mim dizer tudo
a Sr.a Bonard, a Master Bonard, a
114
papá Alcino. Ah! você ter vontade de roubar! Você julgar Georgey
imbecil como você! Julgar mim desculpar você! Mim saber tudo; mim
falar mentirosamente por causa Sr. a Bonard por razão de Fridrico
ser gatuna como você. Mim ter dó, pobre Sr. Bonard, mim saber
Sr.a Bonard e Master mortos por vergonha de Fridrico. Eis como
mim ter falado contrariamente ao verdade. E você, patifa, dar no
momento reloja, corrente, guinéus que você roubar a mim, Georgey.
ALCINO - Foi Frederico, Sr. Georgey, não fui eu. SR. GEORGEY
- Mentirosa, velhaca! Dar já a mim todo roubamento...
E o Sr. Georgey agarrou Alcino, que se debateu
violentamente, mas foi em breve dominado pelos murros do vigoroso
inglês. O relógio e a corrente passaram num instante do bolso do
Alcino para o do Sr Georgey. Frederico não esperou a sua vez e
entregou ele próprio, soluçando, a corrente e todo o dinheiro que
a polícia lhe havia restituído.
- Oh! Sr. Georgey - exclamou ele -, não pense que fui eu que
o roubei. Foi Alcino que fez tudo e que me levou a proceder mal.
Eu não queria, tinha medo; mas ele não me deixou intervir e
obrigou-me a comprar o relógio e a corrente. Meteu o seu dinheiro
no meu bolso quando estávamos no meio da multidão que se juntou
em volta dos dois ladrões. Só vim a saber isto quando os polícias
me revistaram. Perdoe-me, Sr. Georgey; não diga nada ao meu pai.
Ele espancava-me.
SR. GEORGEY - Ele fazer muito bem, e mim querer dizer. Ser
de mais, horrível!
Alcino quis implorar clemência e acusar Julião, mas o inglês
fê-lo calar, puxando-lhe as orelhas.
115
SR. GEORGEY - Mim proibir a você, celerada, falar um palavra. Mim
querer dizer aos dois pais e dizer. Amanhã mim dizer. Ir para
casa sua e você, Fridrico, também. Mim voltar para a minha.
Carolina, depressamente uma luz; mim querer ir cama.
O Sr. Georgey empurrou os dois rapazes, entrou em casa,
fechou a porta, deu duas voltas à chave e subiu para o seu
quarto. Carolina ouviu-o passear ainda durante muito tempo e
falar alto.
Está doido! - pensou ela. - Já estava quase e a feira endoideceu-
o por completo.

18
A cólera de Bonard
Frederico e Alcino continuavam em frente da porta do Sr.
Georgey, mudos e consternados. Frederico chorava; Alcino, com os
punhos cerrados e os olhos faiscantes de cólera, reflectia no
meio de se sair bem daquilo, atribuindo todas as culpas a
Frederico.
FREDERICO - Que vai ser de nós, meu Deus, se o Sr. Georgey
conta tudo aos nossos pais! Dá-me um bom conselho, Alcino, tu que
me levaste a praticar o mal e que arranjas sempre boas desculpas.
ALCINO - Tenho uma para mim; mas para ti não.
FREDERICO - Como? Vais abandonar-me, agora que estou tão receoso
e aflito?
116
ALCINO - Quero lá saber de ti! És um imbecil, um cobarde. Foi a
tua estúpida expressão que atraiu a atenção dos polícias e que
fez com que nos prendessem. Maldito seja o dia em que te meti nos
meus negócios.
FREDERICO - E maldito seja o dia em que te dei ouvidos ou te
ajudei nas tuas roubalheiras. Se não fosses tu, eu podia ser
feliz e alegre como Julião. Não tinha medo de ninguém e os meus
pais gostavam por certo de mim como outrora.
ALCINO - Deixas-me ou não tranquilo com as tuas choradeiras?
Vai para casa, não tens nada a fazer aqui.
No momento em que dizia estas palavras, caiu-lhe um balde de
água fria por cima da cabeça e ouviu uma voz que dizia:
- Patifa, infama!
Alcino, sufocado pela água, primeiramente não pôde
distinguir coisa nenhuma; mas, um instante depois, voltou-se para
todos os lados e não viu nada; levantou os olhos para a janela do
Sr. Georgey: estava fechada e com o cortinado corrido, nem mesmo
se via luz. Encontrava-se só. O próprio Frederico tinha
desaparecido. Surpreendido e um pouco assustado, tomou o partido
de voltar para casa e de se deitar; batiam as duas horas no
campanário da aldeia.
Frederico corria com quanta velocidade podia para chegar a
casa dos pais, que ele julgava deitados havia muito tempo. Abriu
a cancela, dirigiu-se para a estrebaria, onde contava passar a
noite, e viu, com grande susto, luz na sala, cuja porta estava
aberta. Não havia maneira de evitar uma explicação.
Vou tentar - pensou ele - fazer como Alcino; o descaramento
dá-lhe sempre bons resultados.
117
Entrou. A Sr.a Bonard soltou um grito de alegria; Bonard, que
dormitava com os cotovelos apoiados na mesa, acordou em
sobressalto.
FREDERICO - Como, meus pobres pais, estavam ainda à minha
espera? Isso entristece-me bastante. Se soubesse não tinha ido à
última representação no teatro; e depois aquele bom Sr. Georgey,
com quem voltei, obrigou-me a comer um bom jantar num excelente
café. Tudo isso fez com que eu chegasse tarde; pensei que
estivessem deitados há muito tempo e absolutamente tranquilos a
meu respeito.
SR. A BONARD - Enquanto te divertias, Frederico, afligiamo-
nos nós, estávamos ralados julgando-te só com esse mau rapaz que
é o Alcino, porque o Sr. Georgey tinha-nos trazido Julião perto
das nove horas.
Frederico pareceu perturbar-se; a mãe pensou que era
arrependimento por os ter inquietado.
BONARD - Sabes o que nos aconteceu enquanto te divertias?
Frederico não respondeu.
BONARD - Fomos roubados... Não dizes nada? Olha, vê o
armário: arrombaram-no, levaram o dinheiro do pobre Julião e dois
perus dos melhores. Porque saíste antes de regresso de tua mãe?
Mas fala, anda! Pareces um ganso a arregalar os olhos. Quem é o
ladrão? Conhece-lo? Viste-o?
FREDERICO - Não vi nada. Não sei nada; saí... pensava... não
sabia.
BONARD - Vai-te deitar. Estás a impacientar-me com essa cara
embrutecida. Amanhã explicar-te-ás. O Sr. Georgey naturalmente
obrigou- te a beber como ao pobre Julião. Vai-te embora.
118
Frederico não se fez rogado; foi para o quarto, mais inquieto do
que quando chegara. Deitou-se mas não pôde dormir. Ao romper do
dia apurou o ouvido, julgando sempre ouvir o Sr. Georgey. Chegou
por fim a hora de se levantar. Bonard foi tratar dos cavalos;
Julião, levantado havia muito, ajudava-o o melhor que podia.
Frederico não ousara deixar o leito e fingia dormir. Enfim, perto
das oito horas, a mãe entrou e sacudiu-o.
Frederico fingiu acordar em sobressalto e saltou da cama.
FREDERICO - O quê? Que é? Os ladrões?
SR.a BONARD - Tens de te levantar, Frederico. O teu pai tomou o
pequeno-almoço e depois saiu para ir apresentar a queixa à
cidade. Anda, veste-te e vem comer a sopa.
Frederico levantou-se.
Não previra que o pai apresentasse queixa do roubo cometido
na herdade; despertaram de novo todos os seus receios. Tremia;
batiam-lhe os dentes.
SR.a BONARD - Que Chapeo esquisito o teu! De que tens medo?
FREDERICO - De nada, de nada. Não fui eu que os roubei.
Foram os ratoneiros.
SR.a BONARD - Como sabes? Viste-os, então?
FREDERICO - Não vi nada. Como poderia tê- los visto? De que havia
eu de ter medo? Onde está Julião? O Sr. Georgey veio cá?
SRa BONARD - Não. Porque havia de vir?
FREDERICO - Por causa do roubo. A mamã bem sabe.
SR. A BONARD - Mas que se importa o Sr. Georgey com
isso?
119
FREDERICO - Não sei nada disso. Posso, por acaso, saber? Pois se
eu nem cá estava!
SR.a BONARD - Olha, tu não sabes o que dizes. Vem comer a
sopa, já é tarde.
FREDERICO - Não tenho fome.
SR.a BONARD - Mas sentes-te doente? Estás pálido como um
morto! São os resultados de te divertires de mais e de te
deitares tão tarde. Seja como for, vem comer. Não deves ficar em
jejum, pode fazer-te mal; o apetite virá quando começares a
comer.
Frederico, obrigado a ceder, seguiu a mãe e encontrou Julião
que andava varrendo a sala e arrumando tudo. Olharam-se com
desconfiança. Frederico temia que Julião tivesse adivinhado
alguma coisa; Julião tinha realmente suspeitas que não queria
deixar transparecer. Frederico acabava de comer a sopa quando
apareceu o Sr. Georgey. Julião correu para ele.
- Ainda bem que veio, Sr. Georgey. Ontem à noite, quando me
despia, encontrei muitas moedas de ouro no bolso do meu casaco:
não são minhas. Devem ser suas; eu estava ao pé de si, creio que
o senhor se enganou na algibeira; em lugar de as meter na sua,
meteu-as na minha.
SR. GEORGEY - No, no, mim não ter posto nada; mim não tocar
em nada. Mim compreender, mim saber. Ser indignas, patifas Alcino
e Fridrico; eles roubar a mim e meter pequena quantia em colete
sua, para dizer: ser Juliana, ladrão de Georgey.
A Sr.a Bonard não podia crer no que ouvia; toda ela tremia.
SR. GEORGEY - Onde estar Master Bonard? Mim ter a dizer um
terrível história a ele e a pobre Sr. g Bonard.
120
Oh! estar ali, Master Bonard. Vir depressamente. Mim ter a dizer
a você: sua Fridrico ser ladrão horrível; Alcino patifa ainda
mais horrível, abominable.
Bonard, que acabava de entrar, ficou tão trémulo como sua
mulher; Frederico, não podendo escapar-se, caíra de joelhos no
meio da sala; Julião ficara consternado. Ninguém falava. O Sr.
Georgey contou o melhor que pôde o que lhe tinha acontecido desde
que encontrara Alcino e Frederico. Disse como achara o bolso
vazio ao regressar a casa; como voltara à cidade para apresentar
queixa; como enquanto procurava Alcino e Frederico, fora
novamente roubado por dois rapazes que haviam sido presos e aos
quais tinham encontrado o seu relógio, a sua carteira e um outro
relógio, do qual a polícia procurava o proprietário e que era o
que Alcino e Frederico haviam comprado pouco antes.
Falou com emoção da dolorosa surpresa que sentira ao ver
Frederico conduzido por polícias em companhia de Alcino, e quando
vira que Frederico tinha no bolso uma corrente de ouro e guinéus,
que eram precisamente os seus.
Contou a generosa resolução que tomara de salvar a honra dos
seus amigos Bonard. Vira-se ao mesmo tempo obrigado, embora com
desgosto, a atestar a inocência de Alcino, visto que os dois
rapazes tinham sido presos quando andavam juntos; explicou como
declarara haver-lhes dado tudo e como depois desta declaração os
levara consigo. Contou como Alcino devia ter introduzido as
moedas no bolso de Julião para fazer crer que fora este que
cometera o roubo.
- Mim ter dito todas as coisas terríveis a papá Alcino. Papá
ter dado Alcino uma pancadaria tão terrível
121
que a miserável ficar deitada no chão. Mim crer Fridrico
menos terrível. Ele haver escutado abominável Alcino.
Mim crer que Fridrico estar desgostada, arrependida;
que não fazer mais uma roubalhice tão má. Mas mim
dizer a vocês, para pobre Sr.a Bonard e você, Master Bonard,
saber o que fazer rapaz seu. Ser muito imenso vil, .
pobre Juliana não fazer nada mau. Ele não ter culpa de
beber muito bebida de vinho. Ser mim criminosa, miserável, fazer
embriagado pobre pequena. Mim dar exemplo
mau a pequena. Mim ter vergonha horrível, mim ter desgosto
horrível; mim tomar resolução nunca beber demais um só bottle
vinho. Mim prometer, mim assegurar, mim jurar. Um só garrafa. Mim
ter feito juramento a
meu coração.
A Sr.a Bonard soluçava. Bonard deitara a cabeça nas
mãos e gemia. Frederico, aterrado, mais branco que a
cal, deixara-se cair e não ousava mexer-se. Julião chorava
baixinho.
O Sr. Georgey olhava-os com dó.
- Pobres pais! Mim ter dever de falar. Por turkeys
mim não haver dito nada e fazer descoberta que ser os
dois pequenos ladrões. Mim crer eles nunca mais roubar
turkeys, e mim ter comprado todos turkeys para impedimento de
roubar eles. Mas mim não poder fazer encobrimento de ontem, ser
mau de mais.
-E o roubo do armário! - exclamou de repente
Bonard, precipitando-se sobre Frederico e agarrando-o ;
pelos cabelos. - Diz, fala; confessa, celerado!
-Foi o Alcino! - respondeu Frederico com voz
desfalecida.
BONARD - E tu viste; tu sabias!
- Estava cá - respondeu Frederico no mesmo tom.
1212
BONARD - Porque o arrombaste em lugar de o abrir?
FREDERICO - Foi o Alcino, para fazer crer que haviam
sido ladrões.
BONARD (com desespero) - E eu que fui apresentar
queixa! E agora vão chegar os polícias! E o meu nome fica
desonrado! Miserável, és indigno de viver! Não te posso ver; não
quero ficar desonrado por tua causa! E a tua pobre mãe! Apontada
a dedo! Mãe de um ladrão! Ladrão! O meu filho ladrão!
E Bonard, louco de espanto e de dor, agarrou numa pesada
tenaz e levantando o braço, ia talvez descarregar um golpe
mortal, quando o Sr. Georgey, arremessando-se para ele, o
estreitou nos seus braços vigorosos e, apesar da sua
resistência, o arrastou para o quarto ao
lado.
Frederico tinha caído sem sentidos; Julião amparava
a Sr.a Bonard, quase desmaiada numa cadeira. O inglês tinha
aferrolhado bem a porta do quarto
com medo de que Bonard lhe fugisse.
SR. GEORGEY - Não ter medo, você, pobre criatura; não ficar
desonrado, mim arranjar tudo; mim dizer
como ontem: ser mim.
BONARD - É impossível, impossível; vão fazer um inquérito.
Eu não quero que julguem o senhor um ladrão, um bandido: Além de
que ninguém acreditava nisso. O senhor, uma pessoa rica, arrombar
um móvel para roubar um pobre homem como eu. É impossível.
Ninguém o acreditava.
SR. GEORGEY - Acreditar muito perfeitamente. Mim dizer:
mim, Georgey querer vestimenta bonita de Juliana para a feira.
Mim, Georgey, não encontrar chave.
123
Mim, Georgey, imenso teimosa, mim querer, desejar vestimentas.
Mim, Georgey, rico. Mim partir fechação e pegar dinheiro para
divertir Julianinha e outros, porque
mim esquecer levar coisas em meu bolso. Mim voltar de
feira tarde de mais ontem. Mim vir no dia de hoje para
contar, pedir desculpa e fazer pagamento para indemnização e mim
fazer pagamento com loiras do pocket de
Julianinha. Estar muito bem, isto. Mim pagar bom jantar
a polícias e tudo acabar bem.
À medida que o Sr. Georgey falava, o rosto de Bonard ia-se
iluminando. Quando terminou a sua explicação, o pobre Bonard,
cheio de reconhecimento, lançou-se de joelhos aos pés do generoso
inglês e, juntando as
mãos, exclamou:
- Oh! O senhor salva-me mais do que a vida! Salva
a honra de todos nós! Salva o meu miserável filho! Evitou que eu
cometesse um crime. Ah! Sr. Georgey, abençoado seja! Hei-de
abençoá-lo toda a vida, como o meu
anjo bom, o meu salvador!
SR. GEORGEY - No, no, my dear! Ser demasiado
para mim, pobre homem solitário, ridícula. Mim saber
que mim fazer tolices muitas e outros rir de mim. Mim
saber, mim saber. Eles ter razão.
Quando Bonard se acalmou completamente, o
Sr. Georgey permitiu-lhe voltar à sala para consolar e
tranquilizar a Sr.a Bonard.
- Quanto a Frederico - disse Bonard -, façam com que se vá
embora, que eu não o veja mais.
SR. GEORGEY - No, Master Bonard, não ser bom, ser mau, Fridrico
muito desolada. Fridrico muito arrependida; Fridrico sempre rapaz
sua. Você ralhar a ele
para fazer dever sua; você bater mesmo um pouco, mas
124
não dever expulsar ele; ser mau, ser maldade. Ver, Deus perdoar
sempre. Você, papá como Deus e você perdoar. Entre depressamente.
O Sr. Georgey abriu a porta e impeliu para a sala
Bonard que hesitava ainda. Frederico continuava estendido no chão
sem movimento. Julião tratava da Sr.a Bonard, que não deixara de
soluçar. Bonard dirigiu-se para ela.
-Tranquiliza-te, consola-te, minha pobre mulher,
não há-de haver desonra nem inquérito. O nosso
salvador, o generoso Sr. Georgey, arranjou tudo.
E explicou-lhe o plano do Sr. Georgey.
Quando a Sr.a Bonard compreendeu bem a generosa
resolução do inglês, lançou-se por sua vez aos pés
dele, abraçou-lhe os joelhos e dirigiu-lhe os mais tocantes
agradecimentos. O pobre do Sr. Georgey procurava em
vão pôr fim a uma cena que o enchia de embaraço; só o
conseguiu quando Lhes mostrou o corpo do filho estendido no chão.
- E eu que me havia esquecido dele, com o desgosto! -
exclamou a Sr.a Bonard, precipitando-se sobre o
corpo inanimado do filho.
Com a ajuda de Julião e do Sr. Georgey, Frederico
foi levantado, despido, deitado e friccionado com
vinagre.
Abriu enfim os olhos e fitou com um ar assustado as
pessoas que o rodeavam. Ao encontrar o pai, soltou um
grito de terror; debateu-se durante uns instantes e
perdeu de novo os sentidos.
- Master Bonard não ficar - disse o Sr. Georgey.
Fridrico ter grande assustamento. Sr.a Bonard ficar só
com Julianinha.

19
A doença
O Sr. Georgey levou consigo Bonard, mas teve dificuldade em
acalmá-lo; tão depressa se acusava de ter
morto o filho, como falava em o expulsar e sovar.
O Sr. Georgey, impassível, deixava-o falar. Esperava os
polícias.
- Mim querer dizer, mim mesmo. Mim querer fazer
explicação só.
Ia a todo o momento ao quarto do lado, saber notícias de
Frederico e levá-las a Bonard. Aquele havia recuperado os
sentidos, mas parecia não compreender nada e
não saber o que dizia. Julgava sempre estar vendo Alcino
ao pé do seu leito; suplicava que o expulsassem.
- Ele vai fazer-me mal, tenho medo... é tão mau...
socorro! Ele quer levar-me; e leva-me... socorro! Vai
chamar os polícias! Quer mandar prender Julião...
Julgam que o Julião roubou. Pobre Julião! Algemam-no
levam-no para a prisão... Esperem! Esperem! Não foi
ele, foi o Alcino!... Juro-lhes que foi o Alcino!... Juro-lhes
que foi o Alcino... eu vi-o... ele disse-mo... mente, mente...
Não acreditem no que ele diz, Srs. Polícias...
Vejam, vejam como deita vinho branco e tinto ao
Sr. Georgey. Quer embriagá-lo... para o roubar. Vêem
como ele o rouba? Reparem como mete moedas de ouro
no bolso de Julião... e no meu... mas digam-lhe... Não o
126
deixem... Meu Deus, meu Deus! Que desgraça eu ter dado ouvidos ao
Alcino...
E Frederico caía, esgotado, sobre o travesseiro. Parecia por
vezes adormecer, mas recomeçava a gritar, a debater-se e a dar a
conhecer, pelas suas palavras incoerentes, tudo o que se havia
passado entre ele e Alcino.
A Sr.a Bonard não sabia que fazer. O Sr. Georgey disse a
Julião para ir chamar um médico. Julião obedeceu imediatamente.
Enquanto executava esta ordem, chegaram os polícias,
encarregados do inquérito sobre o roubo praticado na véspera em
casa de Bonard.
O Sr. Georgey foi ao seu encontro e apertou-lhes a mão à
inglesa, rindo.
- Vocês ver roubo e arrombação!... Ser isto!... E apontou
para o armário.
-Vocês ver ladrão?... ser esta! E mostrou-se a si próprio
com o dedo.
OFICIAL DA POLíCIA - Como assim?! O senhor, o ladrão? É
impossível.
SR. GEORGEY - Ser muito possível, porque ser mesmo assim.
E o Sr. Georgey pôs-se a rir da expressão estupefacta dos
polícias. E explicou-lhe o suposto roubo, como prometera e
Bonard, e a indemnização que acabava de lhe oferecer. Julião
colocara as moedas de ouro em cima da mesa e ainda lá estavam.
- Olhe - disse o Sr. Georgey -, mim dar muito dinheiro.
OFICIAL DA POLÍCIA - Não há mais nada a dizer, senhor, visto
que paga tão generosamente o estrago; creio que o Sr. Bonard não
reclama mais nada.
127
SR. GEORGEY - Master Polícia, mim dizer a você
outra coisa; rapaz que você apanhar ontem na cidade ser
filho de Master Bonard. Pobre pequena ficar tão chocada, tão
desolada, você julgar ser ela um ladrão que estar
em desesperamento, doente e imbecil; ele pensar sempre
ser ladrão; ver sempre aparição súbito de vocês. Venha
ver; olhe pobre Sr. aBonard. Não deve prender tão
depressa. Ser perigoso; bom para fazer matar rapaz.
O Sr. Georgey abriu a porta e mandou entrar os polícias, no
momento em que Frederico gritava:
- Não fui eu! Não fui eu!... Sr. Polícia, não fui eu!
Deixe-me! Ai, que eu morro... Socorro! venham todos...
Não fui eu!
- Venham embora, depressa - disse o Sr. Georgey, puxando-
lhes pelos fatos. - Vocês fazer assustamento a
ele. Não ter medo, Sr. a Bonard. Físico vir. Ser bom físico;
curar todos coisas.
Os polícias retiraram-se, patenteando a Bonard todo o
seu interesse e pesar. O Sr. Georgey acompanhou-os.
- Pegar para comer e beber - disse ele, estendendo- lhes uma
moeda de ouro.
OFICIAL DA POLÍCIA - Peço perdão, senhor, mas não podemos
aceitar. É um insulto oferecer-nos dinheiro
por termos cumprido o nosso dever. Muito boas tardes,
senhor.
SR. GEORGEY - Mim estar muito, imenso desgostosa de ofender
vocês, corajosa soldado - respondeu o
Sr. Georgey. - Mim não querer isso, verdade verdadeiro, mim
não querer.
OFICIAL DA POLÍCIA - Assim o creio. O senhor é
estrangeiro, não conhece os usos e os costumes franceses.
128
SR. GEORGEY - Mim conhecer bem carácter francês; ser generoso,
ser grande, ser muito amável e outras coisas. Mim conhecer, mim
saber. Boas tardes, polícia francesa.
Os polícias foram-se embora rindo. O Sr. Georgey voltou
para casa.
- Mim ficar para escutar físico. Mim querer saber que
coisas ser preciso para Fridrico.
Sentou-se e ficou à espera. Julião não tardou a voltar
acompanhado pelo médico. O Sr. Georgey introduziu este
imediatamente no quarto de Frederico.
O Dr. Boneuil tomou o pulso ao doente, examinou -lhe os
olhos injectados de sangue e prestou atenção à
sua maneira de falar breve e sacudida.
- Deve ter sofrido uma forte comoção, um grande susto.
Há quanto tempo está neste estado?
SR. A BONARD - Há três ou quatro horas, Sr. Doutor.
O interrogatório e o exame continuaram ainda durante algum
tempo.
O resultado da consulta foi um tratamento imediato e ainda outras
prescrições que a Sr.a Bonard observou escrupulosamente.
O Sr. Georgey retirou-se com o Dr. Boneuil e pelo
caminho interrogou-o; o médico compreendia mal as suas perguntas,
às quais dava respostas absolutamente incompreensíveis para
Georgey. A conversa continuou
assim até à porta deste último, que cumprimentou e entrou.
CAROLINA - Então o senhor não traz o Julião?
SR. GEORGEY - No, my dear, Sr.a Bonard ter necessidade dele.
129
CAROLINA - E quando virá?
SR. GEORGEY - Mim não saber. Físico saber; mim não
compreender palavras sem compreensão deste Sr. Boneuil. Ele
falar, falar com um magpie.
CAROLINA - Que é isso, senhor? Um magpie?
SR. GEORGEY - Você não perceber? Ser espantosa! Você saber
nada. Magpie ser grande pássaro que ter penas brancos e pretos,
que falar muito sempre. Dizer-se das mulheres: ela falar como uma
magpie.
CAROLINA - Oh! O senhor quer dizer gralha!
SR. GEORGEY - Muito justamente, uma gralha. Ser isso, muito
justamente; como você, Carolina.
O Sr. Georgey, fatigado com a véspera e a manhã desse dia,
quis ficar em casa durante algum tempo a trabalhar nos seus
planos e modelos de máquinas. Ia somente todos os dias de manhã e
à tarde saber notícias de Frederico. Nunca deixava de perguntar a
Julião quando iria.
- Assim que Frederico estiver curado e a Sr.a Bonard já não
precisar de mim - respondia sempre Julião.
A doença foi longa e a convalescença mais longa ainda.
A presença de Bonard fazia com que Frederico recaísse num
estado nervoso que obrigou o médico a proibir o pai de lhe
aparecer, até ao restabelecimento de seu filho.
Um dia, dois meses depois da feira, Julião entrou
precipitadamente na sala onde estava a Sr. a Bonard.
- Patroa, sabe a novidade? O Alcino alistou-se no exército.
Foi o pai que o obrigou; deu-lhe a escolher entre ser soldado ou
ser expulso e ficar sem dinheiro e sem abrigo. Antes quis partir
como soldado.
130
O olhar de Frederico animou- se.
- Fez bem, eu gostava de fazer o mesmo.
SR.a BONARD - Tu! Pensas nisso, meu pobre filho? É uma profissão
horrível, a de soldado.
FREDERICO - Não é tão má como isso. Vêem-se terras,
arranjam-se bons camaradas.
SR. A BONARD - Deixa-te de ideias. Não quero que sejas
soldado, percebes? Teu pai com certeza também não quer. Para
morreres em algum combate!
FREDERICO - O meu pai! Quer lá saber disso? Que lhe importa
que eu viva ou morra? Se não fosse o Sr. Georgey, já eu não
existia há muito tempo.
SR.a BONARD - Não fales assim, Frederico. Não esqueças o que se
passou.
Frederico calou-se, baixou a cabeça, ficando triste e
silencioso. Desde a sua doença, nunca mais ninguém o tinha visto
sorrir; poucas vezes lhe ouviam a voz; comia pouco e dormia mal e
trabalhava sem entusiasmo. Nunca falava com o pai nem do pai.
Evitava encontar-se com ele e mesmo olhá-lo. Parecia que a
presença de Bonard lhe causava uma sensação desagradável e até
dolorosa.

20
O alistamento
Julião podia enfim cumprir o seu contrato com o Sr. Georgey. Três
meses depois da famosa feira que havia sido testemunha de tão
tristes acontecimentos, Frederico
131
pôde retomar o trabalho e Julião tomou o seu lugar em casa do Sr.
Georgey.
O seu novo patrão mandou-o para a escola; Julião tinha boa
memória, facilidade em aprender, inteligência e boa vontade;
aprendeu em menos de um ano a ler, a escrever, a fazer contas e
os primeiros elementos de todas as coisas que o Sr. Georgey lhe
quis mandar ensinar. Toda a gente andava contente com ele; estava
sempre pronto a ajudar em tudo, era activo, condescendente e
atencioso, servia o Sr. Georgey com um zelo e uma fidelidade que
eram entusiasticamente apreciados pelo bom inglês.
Este quisera muitas vezes recompensá-lo generosamente pelos
seus serviços; Julião nunca aceitara nada; e quando o patrão
insistia, a sua resposta era sempre a mesma:
- Se deseja absolutamente fazer bem, Sr. Georgey, dê à Sr.a
Bonard aquilo que quer que eu aceite e que estou tão longe de
merecer.
- Very well, my dear - respondia o Sr. Georgey. Mim levar à
Sr.a Bonard.
E entregava, com efeito, à Sr. Bonard, quantias das quais mais
tarde saberemos a importância, porque o Sr. Georgey a tinha
proibido de falar nisso, sobretudo a Julião, que ele muito
estimava e a quem queria pôr ao abrigo da pobreza.
- Ele recusar e mim não querer abandonar ele sem fortuna.
Mim querer Juliana comer turkeys.
Um dia encontrou a Sr.a Bonard sozinha, chorando junto da
lareira.
SR. GEORGEY - Que ter você, pobre Sr.a Bonard? Porque fazer
você choramingações?
132
SR. A BONARD - Ah! Sr. Georgey, como estou desgostosa! Já não
consigo conter-me. Tenho de chorar para aliviar o coração.
SR. GEORGEY - Por que coisa estar o coração de você tão
pesaroso?
SR.a BONARD - Porque meu marido e Frederico não podem suportar-se
um ao outro, desde aquele dia terrível em que o senhor evitou uma
desgraça tão grande. O pai não pode ver o filho sem que se sinta
possuído de uma cólera que cada vez se torna mais violenta. E o
filho tomou aversão ao pai e não consegue vencer este mau
sentimento. Estou receando continuamente qualquer cena terrível.
Esta manhã houve entre eles um princípio de discussão que, só com
dificuldade, consegui que não fosse mais longe. Frederico queria
alistar-se no exército. O pai dizia-lhe que um ladrão não é digno
de ser militar. Disseram um ao outro coisas horríveis. Felizmente
consegui separá-los, levando comigo Frederico. Mas, se se
passasse uma coisa parecida na minha ausência, calcule o que
podia acontecer.
O inglês não respondeu: reflectia e deixava-a cho rar... De
repente, levantou-se e foi pôr-se em frente dela, com os braços
cruzados.
Sr.a Bonard - disse ele, numa voz solene -, ter você
crença... quer dizer, confiança em mim?
SR. A BONARD - Oh! Pode estar certo de que tenho em si
toda a confiança.
SR. GEORGEY - Mil obrigados, Sr.a Bonard. Estão vocês todos
salvos e satisfeitos.
SR. A BONARD - Como? Que quer fazer? Como há-de o senhor
impedir o pai de corar por causa do filho, e o filho de ter
rancor ao pai?
133
SR. GEORGEY - Mim poder muito bem. Você ver bem depressa.
SR.a BONARD - Mas se torna a haver alguma discussão entre
eles enquanto isso não acontece?
SR. GEORGEY - Não haver nada, mesmo nada. Onde estar
Fridrico?
SR.a BONARD - Está a bater o trigo na granja.
SR. GEORGEY - Muito bom, muito bom. Mim querer ver ele
rapidamente. Você chamar Fridrico.
A Sr. a Bonard, que tinha realmente confiança no Sr.
Georgey, apressou- se a ir buscar Frederico e levou-o para a
sala.
SR. GEORGEY - Fridrico: haver dois anos você não ser feliz;
Sr. Bonard não ser feliz, Sr. Bonard não ser feliz. Mim não
querer. Mim querer todos feliz. Você vir comigo, arranjar
alojamento ao pé de mim. E mim arranjar tudo muito bem. Boa
tarde, Sr. Bonard; amanhã eu dizer toda meu intenção. Você,
Fridrico, vir depressa atrás de mim.
O Sr. Georgey saiu, e Frederico, muito surpreendido, seguiu-
o maquinalmente sem compreender porque se ia embora. A Sr. a
Bonard, não menos admirada, deixou-o partir sem saber o que o Sr.
Georgey queria fazer dele, mas muito contente por ele deixar a
casa e absolutamente certa de que era para seu bem.
Pelo caminho, o Sr. Georgey explicou a Frederico, conforme
pôde, o que acabava de saber pela Sr. a Bonard.
SR. GEORGEY - Não deve ficar lá, Fridrico. Deve tornar-se
soldado; boa e valente militar francesa. Você ter vontade. Você
ficar com Julianinha; mim escrever carta para fazer boa
alistamentação. Mim conhecer coronel valorosa e fazer a ele
recomendação para você.
134
Quando coronel dizer yes, mim enviar você com loiras para ser lá
feliz... Você querer? Dizer se querer. Você ter dezoito anos,
poder.
FREDERICO - Isso era o que eu mais desejava, Sr.
Georgey, mas o meu pai não quer e recusa certamente a sua
autorização.
SR. GEORGEY - Mim dizer você ter dezoito anos. Mim
dizer você poder ir sem autorização. Quer ou não?
FREDERICO - Quero, sim, Sr. Georgey. Quero, quero com
certeza. Não posso continuar a viver em casa do meu pai; sou ali
demasiadamente infeliz. Não me dirige a palavra senão para me
chamar ladrão, patife, celerado. Faz-me ameaças terríveis para me
impedir de tornar a cair noutra, diz ele. A minha pobre mãe está
sempre a chorar; meu pai ralha com ela. A casa é um inferno.
SR. GEORGEY - Ser mau, uma inferna; ser preciso tornar
paraíso, e mim querer. Você vir a ser bravo militar; você ganhar
cruz ou medalha e voltar imenso gloriosa. Papá ficar gloriosa,
mamã louca de felicidades e você contente e honrosa.
- Obrigado, Sr. Georgey, muito obrigado - exclamou
Frederico, radiante de alegria. - Há um ano levo
uma vida absolutamente miserável e é ao senhor que ficarei
devendo a felicidade.
O Sr. Georgey observava com satisfação Frederico que
tinha os olhos cheios de lágrimas de reconhecimento.
SR. GEORGEY - Estar muito bem, my dear. Você ser ainda
bom criatura. Alcina ter partido, você não ver mais esta patifa,
esta ladrona. Estar muito bem...
E o Sr. Georgey entrou em sua casa com Frederico. SR.
GEORGEY - Carolina, Fridrico vir para cá. Ficar uma semana. Você
arranjar deitação.
135
CAROLINA - Mas, Sr. Georgey, não tenho cama nem quarto para ele.
SR. GEORGEY - Procure na povoação, depressa.
CAROLINA - Mas, patrão, não há aqui ninguém que tenha uma cama
para emprestar.
SR. GEORGEY - Mim não pedir emprestada. Mim querer comprada.
Ir depressa comprar cama de patifa Alcina.
CAROLINA - Quanto quer o senhor dar por ela?
SR. GEORGEY - Carolina, você encher mim de cólera. Pagar o que
pedir patifa de pai. Vai com todo velocidade; mim estar cheio de
exaltamento.
Carolina correu a executar a ordem do Sr. Georgey. Sabia que
qualquer contrariedade o encolerizava terrivelmente e, apesar
dele nunca ter batido nem injuriado ninguém, assustavam-na muito
os seus olhos faiscantes, os dentes cerrados, os punhos
crispados, os gritos estri dentes, os movimentos bruscos e os
murros que dava nos móveis.
O negócio foi discutido e não se concluiu rapidamente.
BOUREL - Para quem é que você quer a cama de Alcino?
CAROLINA - Para uma pessoa que tem pressa.
BOUREL - Olhe que não vale grande coisa, já a previno; não é nova
nem coisa que se pareça.
CAROLINA - Por isso mesmo calculo que não me peça muito
dinheiro.
Após larga discussão sobre o preço, Carolina comprou a cama.
SR. GEORGEY - Ir lá para baixo. Fridrico também. Quando
Julianinha voltar, vocês dizer a ele que subir.
136
Em baixo arranjaram-se o melhor que puderam. Carolina mandou
colocar a cama de Frederico num compartimento escuro ao pé da
cozinha; era por poucos dias; e ele declarou que ficaria ali
muito bem.
Uma hora depois, quando Julião subiu aos aposentos do
Sr. Georgey, encontrou-o a escrever uma carta.
SR. GEORGEY - Ah! Julianinha, mim querer saber seus
lições. Mim querer ver seus escriturações.
Julião mostrou-lhe os seus cadernos escolares. O Sr. Georgey
examinou-os.
SR. GEORGEY - Estar muito perfeitamente bem. Sua
escrevinhação ser muito bonita. Desenho estar muito regular.
Calculamento perfeitamente, exactamente feito.
JULIÃO - É que já há mais de um ano que ando a
aprender, Sr. Georgey.
SR. GEORGEY - E mim querer você aprender ainda um ano e
então poder voltar para Sr. Bonard. Isso ser melhor que fazer
desenhações, fabricações como mim quer. Eles tão sós, tão
tristes, gostar de você muito, imensa. Você feliz em casa de Sr.a
Bonard; mim deixar a você dinheiro; você não ser encargo, mas
riqueza. Você ficar vermelha? Estar contente?
JULIÃO - Estou muito contente, Sr. Georgey; mas tenho
então que o deixar? O patrão de quem tanto gosto e a quem tanto
devo?
SR. GEORGEY - Yes, my dear; Mim ter acabado aqui
estabelecimento de fábrica. Mim fazer por divertir-me, ver
terras, fazer progressão de fabricações na França. Mim ser rica,
muito rica. Não ter necessidade para mim. Você, pequena, ficar
com instrução bastante, um ano mais; mim deixar à Sr. Bonard
dinheiro para viver e para seu acomodamento.
JULIÃO - Não sei como agradecer-lhe, Sr. Georgey, toda a sua
bondade para comigo! Eu gostava tanto de nunca mais o deixar.
Gostava também muito de voltar para casa dos Srs. Bonard, que
foram tão bons para mim. Mas o Frederico, patrão? Não gosta muito
de mim, o patrão sabe. Deve ficar aborrecido por eu voltar lá
para casa.
SR. GEORGEY - Fridrico deixar casa seu. Ele fazer-se soldado
francês. Está lá em baixo com Carolina; vá pedir explicação a
ele.
Julião, surpreendido por saber Frederico em casa do Sr.
Georgey, e não ousando interrogá-lo a este respeito, desceu à
sala de jantar onde encontrou Frederico sozinho. Carolina
ocupava-se do arranjo da casa. Julião soube então a discussão que
se passara de manhã entre o Sr. Bonard e o seu filho; compreendeu
os terrores da Sr.a Bonard e o meio de os fazer cessar,
encontrado pelo Sr. Georgey para felicidade de todos.
JULIÃO - Mas sentes realmente vontade de te alistar,
Frederico?
FREDERICO - É a única maneira que tenho de fugir ao desprezo
e à cólera de meu pai! Se soubesses como sou infeliz há quase
dois anos, desde que recomecei a trabalhar com ele! Cometi
grandes erros, é verdade; mas bastante arrependido estou. Sinto
de tal modo esse desgosto, que meu pai poderia já ter-se apiedado
de mim e perdoar-me, como fez minha mãe. Quando eu for soldado
ninguém mais pensará em mim; e se tiver a felicidade de ser morto
em combate, talvez então me perdoem. Tenho ido algumas vezes
visitar o nosso bom abade; procurou consolar-me. Acha que faço
bem em me alistar no exército.
138
JULIÃO - Acho também que a tua maneira de pensar é boa; mas que
será dos teus pobres pais, da tua mãe, sobretudo?
FREDERICO - Ficam ainda contigo, Julião; gostam imensamente
de ti e têm muita razão. Ah! Se eu tivesse feito como tu! Se
tivesse rejeitado os conselhos daquele malvado do Alcino! Se te
tivesse dado ouvidos!
Frederico estendeu a mão a Julião, que a apertou nas suas.
FREDERICO - Meu querido Julião! Tive ciúmes de ti por seres
tão bom! Detestei-te porque não quiseste proceder como eu!
Perdoa-me, Julião! Sê meu amigo, meu irmão! Eu gosto de ti agora.
Julião lançou-se nos braços de Frederico.
JULIÃO - Sim, Frederico, sou teu amigo, o teu irmão. Hei-de
guardar-te o lugar para quando voltares.
Falaram ainda durante muito tempo. Frederico sentiu o
coração aliviado depois desta conversa; deixou de estar triste e
os seus bons sentimentos tornaram-se mais firmes.
Serviram os dois o Sr. Georgey durante o jantar e
esforçaram-se por Lhe testemunhar o seu reconhecimento por mil
pequenas atenções que ele recebia dando mostras de prazer e
afecto.

21
As despedidas
Cinco ou seis dias depois Carolina levou ao Sr. Georgey uma
carta remetida de Lião. Ele leu-a e chamou Frederico.
- Olhe - disse ele -, ser resposta do coronel.
Frederico pegou na carta e leu:
Meu caro Georgey:
nMande-me imediatamente o rapaz de que me fala e pelo
qual tanto se interessa. Olharei por ele; não se preocupe com o
seu futuro. Tem de passar seis meses no depósito colonial.
Passado este tempo, mandá-lo-ei para a Argélia.
HEspero que não esqueça a visita que me prometeu.
Encontrará aqui com que satisfazer o gosto pelas fábricas de toda
a espécie.
Adeus, meu amigo; mil lembranças reconhecidas pelos
serviços que me prestou e que não esquecerei nunca.
Bertrand Duguesclin Coronel do 102.o Regimento
de Caçadores de África
140
SR. GEORGEY - Amanhã ser preciso partir, Fridrico.
FREDERICO - Amanhã! Já! Julião, meu bom Julião, vai dizer à
minha pobre mãe que venha abraçar-me esta tarde e amanhã outra
vez.
SR. GEORGEY - Ser mim que dizer a Sr.a Bonard. Você ficar
com Julianinha para consolação.
E o Sr. Georgey pegou no chapéu e saiu.
- Como o Sr. Georgey é bom! - disse Frederico com ar
pensativo. - Para que eu não ficasse só, foi ele próprio falar à
mãe. E eu que o enganava e consentia que fosse roubado por aquele
patife do Alcino!...
JULIÃO - Não penses mais no passado, Frederico; sabes que um
soldado deve ser tão corajoso de coração e de espírito como de
acção. Vais partir para voltar com pletamente mudado; por isso
deixa os teus antigos pecados: pensa só no futuro.
FREDERICO - É o que vou tentar; mas, Julião, antes de tudo
deixar, de tudo esquecer, tenho de escrever a meu pai; não quero
ir sem o seu perdão. Traz-me as coisas necessárias para escrever
umas cartas.
Julião foi buscar papel, caneta e tinta e pôs-se a fazer um
trabalho escolar enquanto Frederico escrevia.
Meu pai:
Vou partir para me alistar no exército. KComo o Sr. Georgey me
assegurou que aos dezoito anos não é necessária a autorização do
pai, limito-me a pedir-lhe o seu perdão pelo passado e a sua
bênção para o futuro. Sentir-me-ei infeliz enquanto
141
não possuir de novo a estima e a afeição de meu pai. Afirmo-lhe
que daqui em diante o seu nome será dignamente usado pelo seu
infortunado filho.
Frederico Soldado do 102. " Regimento
de Caçadores de ÁfricaH
Escreveu uma segunda carta ao Sr. Abade, outra ao Sr.
Georgey, para lhe expressar uma última vez o arrependimento dos
seus erros e a gratidão que lhe dedicava, e escreveu enfim uma
carta que Julião devia entregar, depois da sua partida, à Sr. a
Bonard.
Passou ainda algum tempo antes que o sr. Georgey voltasse.
Chegou enfim; aproximava-se a hora do jantar.
SR. GEORGEY - Sr.a Bonard vir depois do jantar dos animales.
Mim ter dito docemente, para não tornar ela demasiado
surpreendida, demasiado afligida. Mim dizer assim
- Sr.a Bonard, você excelente criatura; você muito meiga, não
murmurando de bom Deus. Então mim ter a dizer uma coisa cruel,
mas não ainda; ser preciso habituar-se você a pensamento cruel.
Sr.a Bonard rogar, chorar, suplicar a mim, dizer a ela coisa
cruel. Mas mim olhar relógio e dizer: No, no, Sr.a Bonard,
impossível; mim esperar uma hora inteira de sessenta minutos. Mim
ter desgostamento, grande pena de ver choramingas terríveis de
pobre Sr. gBonard mas mim não querer. Mim calcular uma hora! E
ser uma hora. Quando o relógio tocar mim levantar-se; mim pôr-se
em pé em frente de Sr.a Bonard, cruzar dois braços e dizer: Sr.a
Bonard. Ela responder nada. Mim olhar e
142
ver ela chorar tão enormemente tanto que não poder
dizer palavra. Mim dizer terceira vez: Sr. a Bonard, mim
querer, mim dever dizer a você que Fridrico, seu rapaz...
adivinhar o quê?
- Morreu! - responder ela.
- No, no - dizer eu -; não morrer; não morrer.
- Estar muito doente, então?
- No, no, doente não - dizer eu.
- Que ser então? Diga, fale, mim morrer de impaciência!
- Fridrico - dizer eu - estar muito, imenso excelente; mas dever
partir amanhã para soldado. Ir muito
longe; querer você ir ver a ele, dar-lhe abraços, bênçãos,
consolações, esta noite e amanhã outra vez.
Ela não chorar e dizer:
- E mais quê?
Nada - dizer eu.
E depois ela dizer a mim que eu ser cruel, que ter
maldade, ela muito furiosa. Mim dizer:
- Que ter você? Mim fazer de propósito; Fridrico ir para a
guerra, haver muitas balas, ser horrível!
Mim dizer nada a ela; ser atormentamento terrível; ela julgar
Fridrico morta.
- Absolutamente nada. Fridrico partir somente.
Sr. Bonard, então contente perfeitamente feliz. Ver vocês dois,
mim fazer muito bem.
i Frederico e Julião, que ao princípio da narração do
Sr. Georgey se tinham sentido irritados com ele, puseram-se a rir
no fim, e não tiveram coragem de o censurar por ter feito sofrer
inutilmente a Sr.a Bonard durante uma hora. Frederico agradeceu-
lhe mesmo e esperou com impaciência a chegada de sua mãe.
143
Esta foi mais cedo do que ele esperava, porque Bonard tinha saído
para longe a fazer uma venda de feno que devia terminar com um
jantar em casa do comprador. A Sr. a Bonard perguntou ao Sr.
Georgey se lhe permitia que jantasse em sua casa para ficar tanto
tempo quanto possível com Frederico.
SR. GEORGEY - E seu marido, Sr. a Bonard? Ele não vir?
SR.a BONARD - Não, Sr. Georgey; não tive coragem de Lhe
falar nisso.
SR. GEORGEY - Mim estar pasmada, muito pasmada. Master
Bonard fazer mal; e mim julgar que ele fazer sempre bem.
SR.a BONARD - Espera talvez que Frederico lhe peça.
FREDERICO - Foi o que eu pensei, mamã, e escrevi uma carta
que há-de levar-lhe logo, não é verdade? Ei-la.
SR.a BONARD - Fizeste bem, meu filho; entrego-lha com
certeza, logo que ele volte.
144
A Sr.a Bonard estava tão contente por se sentir tranquila acerca
da sorte do filho depois da terrível inquietação que lhe causara
a engenhosa ideia do Sr
Georgy que sentiu mais alegria do que tristeza. O jantar foi
bastante animado; Frederico e Julião sentiam- se felizes
por vê-la tão resignada. Carolina havia melhorado a
refeição; o vinho era bom; mas o Sr. Georgey, fiel à sua
promessa, bebeu só uma garrafa e não quis que os outros
convivas bebessem mais do que uma. Nesse dia, comeu toda a gente
reunida, pois era a última refeição a que Frederico assistia com
sua mãe e Julião, antes de partir. Em seguida
acompanharam a Sr.a Bonard a casa, O Sr. Georgey saiu
enquanto ela se despedia de Frederico e lhe prometia uma última
visita para o dia seguinte, antes da sua partida. Julião
perguntou a Frederico se
não queria dar uma volta pelos campos.
- Não sei. Encontraria por toda a parte recordações de
Alcino e das más acções que me levou a cometer. Vamos ter com o
Sr. Georgey pelo caminho do costume.
A noite passou, bastante agitada para Frederico e
Julião. No outro dia, muito cedo, Carolina levou-lhes o
pequeno-almoço. Quando acabaram de comer, Frederico foi
apresentar as suas despedidas ao Sr. Georgey, que lhe apertou a
mão, deixando nela um embrulhinho de moedas de ouro, e prometendo
que iria vê-lo durante a visita que iria fazer ao seu amigo
coronel Duguesclin. O jovem agradeceu-lhe, apertou-lhe a mão,
beijou-lha e saiu com os olhos cheios de lágrimas. Encontrou lá
em baixo sua mãe, que acabava de chegar.
- E o meu pai? - perguntou ele.
145
SR.a BONARD (hesitante) - O pai agradece a tua carta; esteve para
vir comigo, mas, no último momento resolveu ficar. Disse que
temia deixar-se arrebatar pela cólera; sente que procede mal, mas
é uma coisa mais forte que a sua vontade. Encarregou-me de te
dizer que te perdoa e te envia a bênção.
Frederico ficou consolado com estas últimas palavras e
abraçou a mãe mais de dez vezes. As despedidas foram dolorosas.
Julião acompanhou o seu amigo até cidade e não o deixou senão na
estação do caminho de ferro, no momento em que ele subia para a
carruagem. Voltou então para casa, muito triste. O Sr. Georgey
dispensou-o do serviço até à tarde, para consolar a pobre Sr.a
Bonard.

22
Os maus camaradas
Decorreu mais um ano sem que sobreviesse qualquer
acontecimento importante. Passado este tempo, combinou-se que
Julião voltaria para casa dos seus antigos patrões e que o Sr.
Georgey partiria para fazer uma viagem pelo sul da França e
depois por África, onde tencionava fundar novas fábricas. Havia
recebido duas ou três cartas do coronel Duguesclin, que Lhe
enviava excelentes notícias de Frederico. Era considerado um dos
melhores soldados do regimento. Tinha já tomado parte em dois ou
três pequenos combates, nos quais se distinguira; fora
146
citado elogiosamente duas vezes em ordem de serviço, e o coronel
tinha a certeza de que ele seria dentro em breve promovido a cabo
e depois a sargento.
As cartas transformaram inteiramente a opinião de Bonard
para com o filho; em lugar de se envergonhar dele, sentia-se
orgulhoso e não deixava passar uma única ocasião de falar a
respeito do filho e dos elogios que o seu coronel lhe fazia.
Quando o Sr. Georgey teve de partir para a Argélia, Bonard
enviou uma carta cheia de afeição e de incitamentos para
Frederico, chamando-lhe o seu querido filho, a glória do seu
nome, a esperança da sua velhice etc.
Que fora feito de Alcino, durante esse tempo? O acaso fizera
com que ingressasse no mesmo regimento de Frederico; somente, e
para grande felicidade deste, o esquadrão de Alcino fora enviado
para uma outra guarnição afastada.
Mas um dia - dia fatal, que calhou ser o da partida do Sr.
Georgey para a África -, o esquadrão de Frederico recebeu ordem
de se juntar ao outro. Oito dias depois estavam reùnidos e
Frederico verificou, com terror, que Alcino fazia parte do
regimento. Alcino, pelo contrário, ficou encantado com esta
descoberta. Resolveu arranjar um apoio em Frederico, que sabia
estar bem visto pelo coronel, pensando que a excelente reputação
de que ele gozava no regimento, atenuaria um pouco a sua, que era
péssima.
Quando virem que somos amigos - pensou ele -, hão-de
considerar-me mais e não continuarão a mandar-me fazer os piores
serviços do quartel. De qualquer modo, tenho de lidar
cautelosamente com Frederico. Nem
147
uma palavra acerca do passado; evitava certamente a minha
companhia se lhe falasse naquelas coisas. Não, não, não sou tão
estúpido a esse ponto. Farei de homem sério; de santo, até, se
preciso for. Hei-de lisonjeá-lo e obrigá-lo a travar relações com
os meus amigos, dizendo que são óptimos rapazes, que têm
necessidade de bons conselhos, de bons exemplos, que lhe pedimos
para nos dirigir, para nos contar no número dos seus amigos.
Conseguirei facilmente que caia na armadilha; é fraco e uma vez
que o tenha na mão, aproveitar-nos-emos do dinheiro que lhe envia
o imbecil do inglês, para nos divertirmos. Isto tem a sua graça!
E nós então, pobres diabos, que não temos um real! Tenho de
ensinar a lição aos amigos, não vão trair-se diante dele!
Deitariam tudo a perder, os tratantes!
Alcino foi com efeito procurar os camaradas, explicou-lhes que
era conveniente lançar as vistas sobre a bolsa de Frederico e que
para isso se tornava necessário dar mostras de pessoas cordatas,
sossegadas, de bons soldados, numa palavra, temo-lo na mão e
havemos de conseguir que vá para diante. O principal é sabermos
como proceder. E continuou com as suas recomendações e
explicações; os outros acabaram por mandá-lo passear.
- Ouve lá, julgas que somos alguns tolos? Quantas vezes já
repetiste as mesmas coisas? Sabemos muito bem como enganá-lo sem
que te metas nisso.
(') Os nomes dos soldados amigos de Alcino são derivados de
palavras que designam as suas más qualidades. Assim: Guesard é
derivado de vadio; Gredinet, de patife; Fourbilon, de velhaco;
Renardot, de raposa.
148
ALCINO - Não, vocês não o conhecem; não conseguem apanhá-lo;
escapa-se e eu é que sofro com isso. Ele conhece muito bem o
provérbio: Diz-me com quem andas, dir- te-ei quem és.
GUEUSARD - Arranja-te como quiseres; mas acho que devemos
começar por fazer com que ele pague as boas- vindas com umas
garrafas de vinho e de aguardente e depois embriagamo-lo, se
pudermos.
GREDINET - E em seguida depenamo-lo; o seu inglês tornará a
abastecê-lo.
ALCINO - E julgas, imbecil, que se deixa apanhar assim como
um patinho, sem mesmo abrir o bico para piar?
FOURBILLON - Quero lá saber que grite ou que pie depois de
lhe haver despejado a bolsa!
RENARDOT - E ainda que grite, que importância tem isso? Não
há-de ir apresentar queixa depois de se haver embriagado
connosco.
ALCINO - Façam o que quiserem; mas vão por mau caminho,
reparem no que lhes digo.
GUEUSARD - Isso é o que vamos ver. Bom, a limpeza da caserna
está pronta; agora vais fazer as apresen tações e lembrar a
história das boas-vindas.
ALCINO - Não lhe digo nem uma palavra a esse respeito;
deitaria tudo a perder... Mas olhem, lá anda ele no pátio. Sigam-
me.
Alcino, seguido pelo seu bando, dirigiu-se para Frederico,
que tinha ido tomar ar; como o dia estivera ardente, todos
procuravam respirar livremente antes da hora de recolher.
ALCINO - Bons dias, meu caro Frederico. Ora cá estamos nós
alistados no mesmo regimento e bem diferentes
149
do que éramos dantes. Eis alguns amigos que te quero apresentar.
Têm, como eu, ouvido falar de ti.
FREDERICO - De mim? Mas a que propósito?
ALCINO - Como? És então o único a ignorar que se não fala senão
de ti, cá no regimento? O teu nome anda em todas as bocas. Quando
queremos elogiar um camarada, dizemos: valente como Bonard,
pontual como Bonard, bom cristão como Bonard, magnânimo como
Bonard... Não é verdade, camaradas? Não estou a brincar.
TODOS - Pois claro! É verdade! É já uma coisa
proverbial no nosso esquadrão.
FREDERICO - Obrigado, pela boa opinião que de mim
fazem, camaradas. Tenho muito prazer em conhecê-los. E quanto a
nós, Alcino, creio bem que havemos de viver em boa amizade, como
bons soldados e verdadeiros cristãos.
ALCINO - É exactamente o que eu penso; seremos todos como um
só homem.
GREDINET - E havemos de ser a flor do regimento, tendo-te a
ti, Bonard, à nossa frente.
RENARDOT - Isso mesmo, sejamos todos granadeiros de Bonard,
para nossa glória.
FOURBILLON - Costumas fumar?
FREDERICO - Não, não tenho esse hábito.
FOURBILLON - Tanto pior; ia pedir-te um charuto; estou com uma
dor de dentes de enlouquecer e não tenho nada comigo para comprar
um.
FREDERICO - Não seja essa a dúvida. Não tenho charutos mas
tenho com que os comprar. De quanto precisas?
FOURBILLON - Isso depende dos camaradas. Se
quiserem fumar em sinal de regozijo, para festejar a tua
150
chegada, e se és generoso como se diz, podes bem distribuir dois
charutos por cabeça.
FREDERICO - Dois é muito pouco; contemos com quatro; ora,
nós somos seis, mas como eu não fumo, vêm vinte charutos. Quanto
custa cada um?
GUEUSARD - Para que sejam sofríveis, tens de contar com
quinze cêntimos; ao todo, três francos.
FREDERICO - Olha, aqui tens cinco francos. Vai à cantina.
GUEUSARD - Mereces bem a reputação de que gozas, meu caro
camarada. Vou lá já, não hão-de esperar muito por mim.
ALCINO (baixo a Frederico) - Fizeste bem, Frederico; são
pobres rapazes sem um real, como eu, mas muito reconhecidos;
farás deles o que quiseres se lhes ofereceres qualquer coisa de
vez em quando.
Foi esta a primeira experiência de Alcino e seus
companheiros. Desde então continuaram a servir-se da bolsa de
Frederico, fazendo-lhe repetidamente novos pedidos.
Umas vezes era chlarutos, outras uma garrafa de vinho ou de
aguardente, outras ainda, uma pequena perda ao jogo para pagar.
Frederico, desconfiado ao princípio, deixou-se convencer quando
viu Alcino tão completamente modificado na aparência, tão
contrito pelo seu passado que recordava cautelosa e
indirectamente, sem que ninguém, além de Frederico, pudesse
compreendê-lo.
Não se apercebia de que os seus supostos amigos o enredavam
cada vez mais e o afastavam dos outros verdadeiros camaradas, dos
quais a todo o momento lhe diziam mal.
151
Um dia o coronel encontrou-o rodeado pelo bando de Alcino e
chamou-o.
CORONEL - Então, como vai isso, meu rapaz? Há muito que não
te via. Porque te dás com aqueles indivíduos? São os mais mal
comportados do regimento. Toma cuidado! Sabes que me interesso
por ti e não gosto de te ver com más companhias. Estou bem
informado a esse respeito; sei que Lhes dás dinheiro e andas
muitas vezes com eles; que bebem e te obrigam a beber de vez em
quando. Toma cuidado, repito, não vão levar-te para maus
caminhos.
FREDERICO - Agradeço muito o seu conselho, meu coronel.
Imaginava ter neles bons amigos. Acho-os muito afáveis, muito bem
comportados e pontuais no serviço. Não tinha ainda desconfiado
deles. Mas a sua advertência não foi feita em vão, meu coronel;
de hoje para o futuro hei- de evitá-los.
CORONEL - Devem, então, estar muito mudados para que tenhas
deles uma opinião tão boa. Apesar das aparências, não esqueças o
meu conselho. Adeus, meu amigo; continuarei a olhar por ti.
O coronel afastou-se e os amigos de Alcino aproximaram-se.
ALCINO - Que te disse o coronel? Olhava para nós enquanto
falava contigo.
FREDERICO - Disse-me qualquer coisa que me desgostou e que
lhes diz respeito.
GREDINET - Mas que foi? Estás com um ar contrariado, na
verdade.
FREDERICO - E tenho razão para isso. Disse-me para tomar
cuidado com os camaradas que têm má reputação no regimento.
152
RENARDOT - E então, que temos nós com isso?
FREDERICO - Deu-me a entender que vocês são alguns deles.
ALCINO - Ora essa! Não acreditaste nisso, penso eu!
FREDERICO - O meu coronel nunca me deu senão bons conselhos
e acho que tenho feito sempre bem em os seguir.
ALCINO - Assim nos queres abandonar! Que grande maldade isso
seria! Havíamos de sentir imenso a tua falta.
FREDERICO - Vocês não hão-de sentir a minha falta porque
continuarei sempre pronto a obsequiá-los. Mas quero afastar-me um
pouco para obedecer ao meu coronel.
Alcino olhou para os camaradas e piscou o olho. Estes
compreenderam que não tinham tempo a perder se queriam executar
os seus projectos e alcançar de Frederico o mais que pudessem.
ALCINO - Respeito a tua submissão, meu amigo, e, pela nossa
parte, havemos de evitar a tua companhia em lugar de a procurar.
Mas concede-nos um último serão. Reunimo-nos na camarata e
esvaziamos uma ou duas garrafas à saúde do coronel, apesar de ele
ter sido injusto para connosco.
Frederico, surpreendido e satisfeito com uma submissão que
não esperava, consentiu de boa vontade nesse serão de despedida.
Prometeu ir ter com eles à camarata, logo a seguir ao exercício,
e separaram-se amigavelmente.

23
O génio mau
Quando os amigos ficaram sós, olharam, consternados, uns
para os outros.
ALCINO - Aquele piegas foge-nos. Eu já lhes tinha dito que
vocês iam com muita pressa; viam-nos sempre juntos, levávamo-lo
vezes de mais à cantina. Devíamos ter feito as coisas mais
suavemente, embriagando-o sem ele dar por isso; então é que
teríamos dado no vinte.
GUEUSARD - Uma coisa adiada não está perdida; temos ainda o
serão.
ALCINO - De que nos serve isso agora que ele está prevenido?
GUEUSARD - Deixa-me proceder à minha vontade; encarrego-me
de o obrigar a beber mais do que o necessário para fazer passar
as suas loiras para o nosso bolso.
ALCINO - Tentemos; é o nosso último dia; agora já não
precisamos de usar de cautela.
De combinação com Alcino, Gueusard e Gredinet encarregaram-
se de arranjar o vinho e a aguardente. Foram buscá-los à cantina
por conta do amigo Bonard; ali sabiam que Frederico pagava bem e
entregaram aos dois amigos tudo o que eles pediram: dez garrafas
de vinho, seis garrafas de aguardente e de licores.
154
Depois do exercício, Frederico dirigiu-se à camarata, como havia
prometido; os amigos já lá estavam.
ALCINO - És pontual; sempre o foste.
FOURBILLON - Não me admiro que o coronel te tenha amizade;
és o melhor soldado do regimento.
RENARDOT - E não é somente o coronel que gosta de ti; todos
os nossos superiores te estimam.
GUEUSARD - Hás-de ir longe, sou eu que to digo.
ALCINO - Palavra de honra, não ficaria admirado se um dia
tivéssemos de te apresentar armas, chamando-te meu general.
GREDINET - E não vem longe o dia em que havemos de chamar-te
sargento.
ALCINOl - E não é senão um acto de justiça da parte do
coronel; merece bem que bebamos uma garrafa à sua saúde.
TODOS - Muito bem! A saúde do coronel! Viva o nosso coronel!
Frederico não pôde recusar- se a beber à saúde do coronel;
bebeu o vinho de um trago, com entusiasmo; as lisonjas dos amigos
haviam-no disposto bem.
GREDINET - Os teus pais é que vão sentir-se orgulhosos.
Calcula como ficarão, vendo-te chegar com as divisas de sargento.
ALCINO - Os queridos pais! Como vão sentir-se felizes e
orgulhosos! Temos de beber à sua saúde. Vivam os Srs. Bonard!
Frederico, comovido com o pensamento de voltar à sua terra
com as divisas de sargento, bebeu, com gosto, mais um copo à
saúde dos pais.
RENARDOT - E como o tenente- coronel fala de ti! Parece que
és seu filho; olha-te mesmo com satisfação.
155
GUEUSARD - É porque tu és um bonito rapaz! De grande uniforme, na
forma, não se encontra nenhum mais garboso do que tu.
ALCINO - E nós que nos esquecemos de beber à saúde
dele! Viva o tenente-coronel! À sua saúde!
E beberam um terceiro copo à saúde do excelente oficial.
Frederico falava, ria e agradecia. Um quarto copo foi bebido à
saúde do capitão, depois um quinto pelo tenente. A cabeça de
Frederico começava a aquecer. Os amigos passaram em seguida à
aguardente que Frederico não supunha tão forte. Depois começaram
os cantos os Ì risos, os gritos. Alcino estava embriagado; os
amigos ainda mais; estavam de tal maneira que haviam esquecido o
dinheiro de que tencionavam apoderar-se. Frederico, que
conservava bastante razão para ter mão em si encontrava-se um
pouco menos embriagado que os outros, mas já não tinha as ideias
nítidas. O barulho tornou-se tão forte que atraiu a atenção do
sargento; preparavam-se para tocar a recolher.
- Tarrenego! Que se passa lá em cima? Que diabo de barulho é
este? Tenho de ir ver.
O sargento subiu, entrou e viu garrafas vazias no chão,
homens dançando, gritando e cantando à porfia.
SARGENTO - Parem, parem todos! Tudo para a casa da guarda!
ALCINO - Não és tu que me fazes ir até lá, cara de bolacha,
gordo bochechudo. Tenta somente e verás. Estou bem aqui: aqui
fico!
SARGENTO - Isso é que vamos ver, borrachão. Não vais para a
casa da guarda, mas sim para o calabouço.
O sargento quis agarrar Alcino pela gola, mas este repeliu-
o.
156
SARGENTO - Toma cuidado! Um soldado que levanta a mão para um
superior, espera-o o Conselho de Guerra.
E fez um movimento para levar Alcino.
ALCINO - Vai passear mais o teu Conselho de Guerra; quero lá
bem saber de um canalha como tu.
E Alcino descarregou-lhe um murro, que o fez cambalear.
- A mim, praças da guarda! - exclamou o sargento.
- A mim, amigos! A mim Frederico! Vais deixar engavetar o
teu amigo?
Frederico, que ainda não se movera, correu em socorro de
Alcino e, sem ter consciência do que fazia, lutou com o sargento
para libertar o falso amigo.
Entretanto acudiu a força da guarda.
Estes dois homens para o calabouço - disse o sargento. - Os
outros para a casa da guarda.
Alcino gritou, praguejou, debateu-se, mas foi facilmente
subjugado e levado. Frederico deixou-se prender, sem resistência;
o instinto da disciplina militar obrigou-o a obedecer
maquinalmente, mas, para seu mal, demasiado tarde.
Quando os homens do piquete reconheceram Frederico, houve
grande surpresa e consternação geral.
O próprio sargento participou desta impressão: só o
reconhecera quando a força da guarda chegara.
É impossível salvá-lo - pensou ele -, agora que os homens o viram
e o levaram para o calabouço. Tenho de fazer o meu relatório.
Torná-lo-ei o mais suave que puder. Mas como se encontrava Bonard
no meio daqueles borrachões, fazendo com eles um barulho infernal
e embriagado como eles? É incrível! Um soldado tão bom!
Nunca esteve detido no quartel nem mesmo na casa da guarda.
Embriagaram-no, certanente, pobre rapaz! Como vai ficar
desgostoso amanhã quando acordar no calabouço, depois de Lhe
haver passado o efeito da bebedeira!
O sargento saiu triste e pensativo; foi fazer o seu
relatório para ao tenente de serviço. O tenente passou-o ao
capitão. Nessa mesma tarde o coronel foi informado do que se
passara.
Pobre rapaz! - exclamou de si para consigo. - Mau negócio!
Impossível de remediar. Uma luta entre um soldado e o seu
sargento é, pelo menos, anos de prisão. Do outro não me admira.
Um patife, sempre a ser castigado! Ainda esta manhã eu tinha
prevenido Bonard, dizendo-lhe que desconfiasse daqueles
tratantes. E prometeu-me afastar-se dele. Pobre rapaz! E o meu
amigo Georgey! Vai ficar desgostoso. Recomendou-mo tanto!
Nessa mesma tarde, a triste notícia espalhou-se nos dois
esquadrões. Não se falava noutra coisa em todas as casernas.
Todos lamentavam Frederico! Alcino ainda se tornou mais detestado
porque calcularam, e com razão, que fora ele que obrigara Bonard
a beber, causando assim a sua desgraça.

24
Os prisioneiros
Frederico, encerrado no calabouço, meio embriagado, não
compreendendo ainda a sua situação, deitou-se na palha que servia
de leito aos prisioneiros e adormeceu
158
profundamente; não acordou senão no outro dia, quando o sargento
o foi ver e interrogar.
FREDERICO - Ah! É o meu sargento! Ainda bem que veio. Porque
estou no calabouço? Que fiz eu? Não me lembro de nada, senão de
me obrigarem a beber à saúde de tanta gente, inclusive à sua, que
fiquei transtornado da cabeça. Estou com medo de haver cometido
alguma tolice, pois não é por qualquer insignificância que se
mete um soldado no calabouço.
- Pobre rapaz! - disse o sargento, apertando-lhe a mão. -
Pobre Bonard! Se te houvesse reconhecido mais cedo, ter-te-ia
salvado; mas as praças da guarda já tinham chegado e haviam-te
agarrado... era demasiado tarde.
FREDERICO - Salvar-me! Meu Deus! Mas que fiz eu então, meu
sargento? Diga-me, suplico-lhe.
SARGENTO - Maltrataste-me. Lutaste comigo!
FREDERICO - Maltratei-o? A si, meu sargento, a quem tanto quero e
respeito! A si, meu superior! Mas é a desonra, a prisão!
O sargento não respondeu.
FREDERICO (torcendo as mãos) - Infeliz! Infeliz! Que fiz eu?
Antes a morte que a desonra! Meu sargento tenha piedade de mim,
dos meus pais! É por eles e não por mim... E o meu bom coronel
que me havia prevenido de manhã, dizendo-me que evitasse as más
companhias! O meu dever era ter-lhe obedecido e não tornar a
andar com eles. Pediram-me que lhes concedesse um último serão,
um serão de despedida. E eu, que nunca bebo, deixei-me levar por
eles a beber à saúde daqueles a quem mais estimo. Meu Deus! Meu
Deus! Tende piedade de mim e dos meus pobres pais!... Bater no
meu
159
sargento!... Mas é medonho, é horrível! Estava certamente louco!
Oh! Infeliz, infeliz!
E o pobre Frederico caiu em cima da palha, estorcendo-se e
chorando.
-Meu pai, meu pai! Amaldiçoa-me, com certeza! Pobre
mãe! Que vai ser dela? Perdão, piedade. Mate-me, meu sargento,
por favor, mate-me!
SARGENTO - Então, meu pobre rapaz, coragem! Gostam de
ti cá no regimento; é esta a primeira falta que cometes; foste
levado por outros. Tem esperança. O Conselho de Guerra há-de ser
composto de amigos. Talvez te absolvam.
FREDERICO - Procura animar-me, meu sargento. É muito
bom! Agradeço- lhe. Mas o código militar? Mereço a prisão. E
antes da prisão, a desonra: a vergonha para mim e para os meus!
Oh! meu Deus!
SARGENTO - Eu fiz o relatório tão brando quanto
possível, no que te diz respeito; meu amigo. Com o Bourel é outro
caso.
FREDERICO - Alcino? Ele tocou-lhe?
SARGENTO - Tocou-me! És muito indulgente; empurrou-me,
bateu-me, chamou-me canalha e descarregou-me um murro no estômago
que quase me deitou ao chão. A esse, que é um tratante, um mau
soldado, não o poupei: disse toda a verdade. Aquele pode estar
certo do que o espera.
FREDERICO - Alcino! Desgraçado! Que me fez! Foi sempre o meu
génio mau, um Satanás encarniçado em perder- me.
SARGENTO - Até à vista, meu pobre Bonard. Quando
estiveres mais calmo, voltarei com o tenente para saber os
pormenores do que se passou antes da minha
160
chegada. Tem confiança, meu amigo, não desanimes. Os oficiais
olharão à tua boa conduta, à tua valentia. O nosso coronel há-de
ser o primeiro a fazer tudo o que puder por ti.
FREDERICO - Obrigado, meu sargento; agradeço-lhe do fundo do
coração.
Quando se separou de Bonard, o sargento dirigiu-se ao
calabouço de Alcino.
- Que quer? Disse este último, num tom brusco.
SARGENTO - Quero ver se lamentas o teu procedimento de
ontem. O arrependimento poderia melhorar- te a situação e
concorrer para que te tratassem com indulgência.
ALCINO (com modo carrancudo) - Pensam que sou algum imbecil!
Conheço perfeitamente o código militar. Imaginam que não sei o
que me vai acontecer. Mas isso é-me absolutamente indiferente.
Pela vida que levo neste imundo regimento! Ultrajem-me, inventem,
mintam, não faço caso de nada, nem de ninguém.
SARGENTO - Convido-o a mudar de linguagem se quiser obter um
julgamento favorável.
ALCINO - Não mudo nada; sei que hei-de estourar um dia ou
outro. Antes quero a prisão do que a cólera ou o tifo de que se
morre nestas miseráveis casernas. Deixe-me sossegado e mande-me
qualquer coisa para comer: tenho fome.
O sargento lançou-lhe um olhar de desprezo e foi-se embora.
- Tenho fome - repetiu Alcino, colericamente enquanto o
sargento saía.
- Tragam de comer a estes homens. Pão e água a este, pão e
sopa para Bonard - disse o sargento ao
161
soldado que o acompanhava. Depois, acrescentou:Que tratante não é
este Bourel!
Durante o dia, o coronel quis ir, ele próprio, com o tenente
ver e interrogar Frederico. Encontraram-no sentado no leito e
chorando.
O coronel, comovido, aproximou-se. Frederico ergueu a cabeça
e reconhecendo o seu coronel levantou-se com prontidão.
FREDERICO - Ó meu coronel, que bondade a sua!
CORONEL - Quis interrogar-te eu próprio, meu pobre rapaz, para
ver se consigo compreender como um bom e valente soldado como tu
pôde colocar-se na triste situação em que te encontras. O
sargento contou-me o que se passou durante a visita que te fez
esta manhã. Podes estar certo de que, se conseguirmos livrar-te
disto, nos sentiremos todos muito felizes. Explica-me como foi
que, depois da minha recomendação e da tua promessa, tornaste a
reunir- te àqueles maus companheiros e te embriagaste com eles.
Frederico contou-lhe minuciosamente o que se passara entre
ele e os camaradas e como havia perdido a cabeça no fim da orgia,
a ponto de não se recordar absolutamente nada da cena com o
sargento.
CORONEL - É um caso muito, muito espinhoso! Não posso
prometer-te nada, mas os teus antecedentes valer- te-ão,
certamente, a indulgência do Conselho e podes estar certo de que
o meu parecer há-de ser favorável.
FREDERICO - Deus o abençoe, meu coronel. Em lugar de
censuras e palavras severas, recebo de si, somente, palavras de
indulgência. Sim, que Deus o abençoe a si e aos seus, e nunca o
faça experimentar os horrores que me ameaçam devido à minha
falta.
162
O coronel, comovido, estendeu a mão a Frederico, que a beijou
efusivamente. A porta do calabouço fechou-se e ele tornou a ficar
só, entregue às suas reflexões. Quando, mais tarde, lhe foram
levar o comer, perguntou ao soldado se podia receber a visita do
capelão da guarnição.
- Vou falar nisso ao nosso sargento. Ele obtém-te, com
certeza, o consentimento; nunca costuma recusá-lo aos que o pedem
- respondeu o soldado.
Nessa mesma tarde, com efeito, o capelão visitou o pobre
prisioneiro; foi uma grande consolação para Frederico, que lhe
abriu o seu coração, contando-lhe todas as faltas passadas, a
desarmonia que havia entre ele e o pai, etc. Revelou- Lhe, sem
nada encobrir, o desespero que sentia por causa dos pais, o seu
rancor, odiento por vezes, a Alcino, causador de todos os seus
males. O bom padre consolou-o, incutindo-lhe coragem e deixou-o
numa disposição de espírito muito mais calma e resignada.
Quanto a Alcino, conservava todos os seus maus sentimentos.
Pensava:
A única coisa que lamento é que Frederico não tenha dado uma
sova valente ao malvado do sargento; seria certamente condenado
como eu, o que assim se torna bastante incerto, visto que somente
lutou com aquele patife.

25
Uma visita agradável
Dez dias depois deste acontecimento, o coronel, sozinho
no seu quarto, lia atentamente os interrogatórios dos
acusados e todas as peças do processo. Viu, com surpresa,
que Alcino acusava Frederico de dois roubos graves
em prejuízo do Sr. Georgey e de um pobre órfão
recolhido por caridade em casa dos Bonard.
Leu com verdadeiro desgosto a meia confissão de
Frederico, que atribuía a responsabilidade desses actos
a Alcino.
Não compreendia por que razão aquele roubo não
havia sido punido pelos tribunais e compreendia ainda
menos que um jovem, capaz de duas acções tão vis como
criminosas, se tivesse tornado no que Frederico era, desde
a entrada no regimento: o exemplo de todos os
camaradas.
KComo pôde Georgey afeiçoar-se a um ladrão e
recomendar-mo em termos tão entusiásticos e afectuosos?
Quando se entregava a estas reflexões, ouviu uma
discussão à porta, entre a sentinela e uma pessoa que
queria entrar.
- Deus me perdoe - exclamou ele -, mas é Georgey! Conheço a
sua pronúncia. Quer passar sem se importar
164
com o regulamento. Tenho de lá ir, porque a sentinela é capaz de
o trespassar com a baioneta.
O coronel levantou-se precipitadamente, abriu a porta e
desceu. O Sr. Georgey queria, por força, entrar e a sentinela
voltava para ele a ponta da baioneta, no mo mento em que o
coronel apareceu.
- Georgey!... exclamou. - Sentinela, deixa passar.
O soldado levantou a espingarda e apresentou armas.
CORONEL - Entre, entre, meu amigo.
SR. GEORGEY - Um minuta, por favor. Soldado você ter bem
feito; mim ser má, imbecil e você ser bom soldado francês. Ser só
isto. Pegue pequeno recompensa.
E o Sr. Georgey estendeu-lhe uma moeda de ouro. O soldado
não se mexeu; continuou na posição de apresentar armas.
SR. GEORGEY - Que ter você, soldado francês? Porque não
estender mão?
- Descansar armas! - comandou o coronel. - Estende a mão e
aceita.
O soldado fez a continência; estendeu a mão ao Sr. Georgey
sorrindo e recebeu a moeda de ouro.
O coronel ria da surpresa do Sr. Georgey.
- Entre, meu caro Georgey. Você esteve retido à porta este
tempo todo por causa das ordens que tinha a sentinela.
SR. GEORGEY - Bom dia, my dear coronel. Bom dia. Mim sentir-
se feliz de vê-lo. Pobre soldado francês não compreender nada:
mim falar, ele falar; ser mesma coisa nada. Mim não poder ver
você.
CORONEL - Mas entrou, enfim, meu amigo; já o esperava; o seu
quarto está pronto. Quer tomar alguma coisa enquanto se espera
pelo jantar?
165
SR. GEORGEY - No, my dear Mim ter estômago cheio e trazer a você
coisas deliciosas. Empadas de fígado de patas gordos; empadas de
partridge (perdiz) com
muitos cogumelos. Empadas de salmão deliciosos; turkeys
gordos, gordos e com cogumelos no estômago; gansos pequenos
feitas em banha, dentro de tigelos de
barro; ser admirável.
O coronel ria cada vez mais à medida que o Sr. Georgey
enumerava os seus suculentos presentes.
CORONEL - Vejo, meu caro amigo, que continua a ser o
mesmo; não esquece os bons petiscos, como também nunca esquece os
amigos.
SR. GEORGEY - No, my dear, nunca. Mim trazer boa coisa a
Fridrico: língua cozido com pele, com cogumelos e fumada; queijo
que pesar trinta quilos; ser muito I excelente para ele, salgado
com côdeas, fumado. Ele ter
comer muito tempo.
O coronel já não ria.
- Ah! Meu caro Georgey, o seu Frederico causa- me
grande inquietação! Ocupava-me dele quando você chegou.
SR. GEORGEY - Que ter ele? Porque dizer você pobre
Fridrico? Estar doente?
CORONEL - Não; está no calabouço há dez dias.
SR. GEORGEY - Fridrico em calabouço? Por que coisa meter você em
calabouço Fridrico, soldado francês?
CORONEL - Um mau negócio para o pobre rapaz. Embriagou-
se instigado por um tratante, um seu conterrâneo chamado Alcino
Bourel.
SR. GEORGEY - Alcino! My goodness! Essa patifa
abominável, essa tratante horrivel, perseguir em toda a parte
pobre Fridrico?
166
CORONEL - Eram seis; fizeram uma barulheira infernal; o sargento
foi ver de que se tratava. Alcino injuriou-o, bateu-lhe;
Frederico lutou com o sargento para libertar Alcino. Entretanto
chegou o piquete; estão os
dois no calabouço, onde esperam o julgamento.
SR. GEORGEY - Oh! My goodness! Pobre Fridrico!
Pobre Sr.a Bonard! Fridrico morto ou desonroso, ser
mesma coisa... e Master Bonard! Ele ter medo tão grande
de desonramento!... Coronel, você ser meu amigo. Você
dar a mim Fridrico e não fazer julgamento.
CORONEL - Ah! Se eu pudesse, meu amigo, teria
abafado a questão. Mas o Alcino também está preso; os
outros bêbedos foram para a casa da guarda. Os homens
do piquete viram-nos todos quando acudiram a libertar o
sargento, que estava sendo esmurrado pelo Alcino e que
era ajudado por Frederico.
Falaram ainda durante muito tempo: o Sr. Georgey
procurando os meios de salvar Frederico, o coronel
demonstrando-lhe a sua impossibilidade. Quando falou
ao seu amigo do roubo de que Alcino acusava Frederico, o Sr.
Georgey pôs-se em pé de um salto e encolerizou-se
terrivelmente contra Alcino. Logo que recuperou a
calma, o coronel interrogou-o sobre esta acusação.
O Sr. Georgey contou tudo e não esqueceu o arrependimento, a
doença, a profunda tristeza de Frederico e a sua
transformação. O coronel agradeceu muito ao Sr. Georgey
todos estes pormenores e prometeu-lhe que se serviria deles no
decorrer do processo para fazer vingar a
posição de Frederico.
SR. GEORGEY - Mim também servir-me deles; mim
querer falar por Fridrico. Mim querer defender esta
pobre miserável.
167
CORONEL (sorrindo) - Você? Mas meu caro amigo, não fala a nossa
língua tão correctamente que possa pleitear qualquer causa. Ele
há-de ter um advogado.
SR. GEORGEY - Ele ter dez advogados, não importar isso a mim.
Você não poder proibir mim defender
infeliz criatura muito, imenso insultada. Alcino ser celerada; e
mim querer dizer ele ser celerada, mentirosa,
gatuna e outras coisas.
CORONEL - Pois fale, se quiser, meu amigo, e se
Frederico lho consentir. Receio somente que o prejudique querendo
auxiliá-lo.
SR. GEORGEY - No, no, mim saber que dizer; mim
não ser imbecil; mim dizer bem.
A hora do jantar pôs fim à conversa. O Sr. Georgey
comeu por quatro e adiou para o dia seguinte a visita ao
prisioneiro.
Frederico vegetava tristemente no calabouço em que
o haviam encerrado. No entanto, os seus camaradas
aproveitavam-se da amizade que os oficiais e o sargento
lhe dedicavam, levando-lhe todos os mimos que os pobres soldados
de guarnição na Argélia podiam obter; o
seu pedaço de carne era maior que o deles; a gamela da
sopa mais cheia e a ração de café mais açucarada.
Mandavam-lhe alguns livros; a empregada da cantina
tratava melhor da sua roupa; o enxergão era menos duro; faziam,
enfim, tudo quanto podiam para suavizar a
sua situação. Frederico verificava isto com reconhecimento e
prazer e agradecia aos seus camaradas e superiores.
O capelão ia vê-lo tantas vezes quantas lho permitiam
as suas numerosas ocupações; estas visitas acalmavam
sempre a agitação do infeliz prisioneiro.
168
Certa manhã, no dia seguinte ao da chegada do Sr. Georgey, abriu-
se a porta do calabouço e Frederico viu entrar o excelente
inglês, seguido de um soldado que transportava um cesto cheio de
provisões. Frederico não pôde reter um grito de alegria; correu
ao encontro do Sr. Georgey; e, num movimento instintivo e
irreflectido, lançou-se-lhe nos braços e apertou-o contra o
peito, grato por tão feliz encontro.
SR. GEORGEY - Pobre Fridrico, mim estar tão desgostado, tão
afligido! Mim não saber nada ontem. Mim saber tudo à tarde;
coronel me contar. Mim trazer consolação para estômago; celerada
Alcino não ter nada, nem bocado.
Frederico, demasiadamente comovido para poder falar,
apertava-lhe as mãos e fitava-o com um olhar humedecido e grato.
O Sr. Georgey aproveitou-se do silêncio de Frederico para
expandir a sua indignação contra Alcino e a esperança que tinha
de o ver fuzilado em pedaços, como bem o merecia.
- Mim trazer a você novas excelentes de Sr.a Bonard, Sr.
Bonard e Julianinha.
Frederico estremeceu e empalideceu visivelmente. O Sr. Georgey,
que o observava, meteu a mão na algibeira; levava-lhe cartas do
pai e da mãe; e sabia bem o que continham; Bonard agradecia ao
filho o ter honrado o seu nome; contava- lhe os ditos da gente da
terra, os cumprimentos que Lhe dirigiam, a felicidade que sentira
ao saber que seu filho fora citado duas vezes em Ordem de
Serviço; e outras coisas neste género que eram na presente
situação outras tantas punhaladas para o infeliz Frederico. A
carta da Sr.a Bonard, muito mais terna,
169
continha, no entanto, sentimentos idênticos de orgulho maternal.
a esSe pobre infortunado ser justificado - disse
consigo o Sr. Georgey - mim dar depois; se houver condenação, mim
queimar.
Estiveram alguns instantes em silêncio; Frederico
procurava conter a emoção e dissimular a vergonha que sentia; o
Sr. Georgey procurava meio de o distrair. Encontrou-o enfim.
-Mim ver coronel; ele dizer não ser isto grande coisa
para você. Sargento vai dizer que não ser nada, ser ele que
empurrar; você haver empurrado somente Alcino; você ser excelente
criatura e os outros gostarem todos de você. E julgamento ser
excelente.
Frederico olhava-o, surpreendido.
FREDERICO - No entanto eu ouvi a leitura do auto de
acusação e lá diz que lutei com o sargento.
SR. GEORGEY - Que ser lutar? Nada, absolutamente. Não
ser bater.
FREDERICO - Deus o ouça, Sr. Georgey. Agradeço- lhe a
sua boa intenção.
SR. GEORGEY - Olhe, Fridrico, eis um grande cesto; ter
bons coisas para comer. Você ter curiosidade? Querer ver? Mim
saber. Olhar.
E o Sr. Georgey retirou do cesto três línguas
cozinhadas com pele e fumadas.
-Alhos. Cogumelos. Pistácios. Todos três admiráveis. Um
empada e uma presunto.
E o Sr. Georgey pousou tudo em cima do enxergão.
Frederico sorriu. Sentia-se comovido pela bondade com que aquele
excelente homem procurava consolá-lo. Aparentou um ar satisfeito
e manifestou-lhe efusivamente
170
a sua gratidão por ter arranjado tão agradáveis meios de o
distrair no seu desgosto. O Sr. Georgey ficou encantado; contou-
lhe muitas coisas da aldeia, da herdade, de Julião e deixou
Frederico realmente reanimado e contente com todas aquelas
notícias da sua terra.

26
O Conselho de Guerra
Poucos dias depois, reuniu o Conselho de Guerra para
julgar Alcino e Frederico. Este último foi conduzido e
colocado entre dois soldados de infantaria. Estava
mortalmente pálido; tinha os olhos inchados das lágrimas que
chorara toda a noite. A sua fisionomia aparentava angústia,
vergonha e dor.
Alcino foi colocado a seu lado. O ar descarado com
que se apresentou, o olhar falso e mau, o sorriso
forçado, contrastavam com a atitude humilde e triste do seu
companheiro.
Leram as peças necessárias, o acto de acusação, os
depoimentos, os interrogatórios e chamaram o sargento
para depor perante o tribunal.
Este acusou Alcino com grande cólera e falou de
Frederico em termos muito moderados.
PRESIDENTE - Mas Bonard chegou realmente a
tocar-lhes?
SARGENTO - Para se defender, sim, mas não para atacar.
PRESIDENTE - Como foi isto? Explique-se.
SARGENTO - Quer dizer que quando Bourel o chamou, ele chegou ao
pé de nós, cambaleando, porque o vinho o tornava pouco firme.
Assim que se aproximou mais, empurrei-o; ele quis apoiar-se em
Bourel, mas enganou-se, suponho, confundindo-me com este, e foi a
mim que se segurou, cambaleando. Eu tornei a repeli- lo; ele
voltou a cair sobre a minha cabeça e o meu ombro. Depois acudiram
as praças da guarda e prenderam os dois; mas o facto de se ter
apoiado em mim não quer dizer que me tenha empurrado; há uma
certa diferença entre estas duas coisas.
-Está bem, pode retirar-se - disse o presidente com um
ligeiro sorriso.
O sargento retirou-se, limpando a fronte; o suor inundava-
lhe o rosto. Frederico lançou-lhe um olhar de gratidão. As praças
da guarda fizeram os seus depoimentos no mesmo sentido favorável
a Frederico, acerca do que haviam podido ver.
Depois de ouvidas as testemunhas, interrogaram Alcino.
PRESIDENTE - Chamou ao sargento gordo, bochechudo e canalha?
ALCINO - É verdade, escapou-me.
PRESIDENTE - Empurrou-o?
ALCINO - Empurrei-o e tenho muito orgulho nisso; ele não
tinha o direito de me agarrar pelo pescoço.
PRESIDENTE - Tinha perfeitamente esse direito, visto que o
senhor lhe resistia e estava embriagado. Além disso, deu-lhe um
murro.
ALCINO - Não foi muito vigoroso. Eu não estava de posse de toda
a minha força. O vinho, o senhor bem o sabe, enfraquece-nos os
braços e as pernas.
PRESIDENTE - Chamou os camaradas em seu auxílio, e
especialmente Frederico Bonard? Porque os chamou, se não tinha a
intenção de lutar com o seu sargento?
ALCINO - Não me queria deixar agredir; o uniforme
francês deve ser respeitado.
PRESIDENTE - Foi devido ao respeito pelo uniforme que
bateu no seu superior?
ALCINO - Talvez o empurrasse um pouco, mas Bonard fez a
mesma coisa.
PRESIDENTE - Não se trata de Bonard, mas sim
de si.
ALCINO - Se falo dele é porque não ignoro que
querem fazer recair todas as culpas sobre mim para o
desculpar.
PRESIDENTE - Repito que não se trata de Bonard
nas perguntas que lhe dirijo, mas sim de si. Segundo a
sua própria confissão, deu um murro num seu superior,
chamou-lhe canalha e apelou para os seus amigos, na
intenção evidente de se libertar pela força. Tem alguma
coisa a alegar em sua defesa?
ALCINO - Ainda que tivesse, de que me serviria isso
se estão todos decididos, de antemão, a mandar-me
prender e a absolver Bonard, que é um hipócrita e um
ladrão? Ele é tão culpado ou mais do que eu. Isto é
julgamento para rir.
PRESIDENTE - Cale-se; não deve insultar os seus
juízes e um camarada. Previno-o de que está tornando o
seu caso ainda pior...
173
ALCINO - Isso é-me absolutamente indiferente se conseguir fazer
com que condenem esse velhaco do Bonard, esse ladrão, esse...
Nessa altura o Sr. Georgey levanta-se impetuosamente e
exclama:
- Mim pedir palavra.
PRESIDENTE - E há-de tê-la, senhor, quando chegarmos à
defesa. Queira sentar-se.
O Sr. Georgey sentou-se de novo, dizendo:
- Mim pedir desculpa; esta patifa de Alcino pôr mim em
furor.
Alcino agita-se, mostra o punho ao Sr. Georgey, gritando:
-Você é um mentiroso! Ligaram-se todos contra mim!
PRESIDENTE - Reconduzam o preso ao seu lugar.
Dois soldados levaram Alcino, que se debateu e a quem
dificilmente conseguiam acalmar.
PRESIDENTE - Bonard, é com desgosto que o vemos no banco dos
réus. A sua conduta foi sempre exemplar. Diga- nos por que motivo
lutou com o seu sargento, que o coloca na presente situação.
FREDERICO (com voz trémula) - Meu coronel, tive a
infelicidade de cometer um grande erro. Fui levado a beber, a
embriagar-me, e consenti nisso. Não posso explicar como me
encontro no estado de degradação que me coloca perante a justiça.
Não me recordo de nada do que se passou entre mim e o meu
sargento. Fio-me inteiramente nele para lhe dar a conhecer a
extensão da minha falta; estimo-o, respeito-o e de há quinze dias
para cá expio pelo arrependimento e pelas lágrimas a desgraça de
o haver desconsiderado.
174
PRESIDENTE - Não se lembra de Bourel lhe ter pedido que o
auxiliasse na luta que travou com o sargento?
FREDERICO - Não, meu coronel.
PRESIDENte - Não se lembra de ter lutado com o seu sargento?
FREDERICO - Não, meu coronel.
PRESIDENTE - Vá!
Frederico, pálido e extenuado, volta para o seu lugar.
Chamam as testemunhas; estas atenuam o melhor que podem a
intervenção de Frederico na luta.
Os camaradas de Alcino confessam a trama urdida por este, os
meios de lisonja e hipocrisia que haviam empregado; a compra dos
vinhos e licores para mais seguramente embriagarem a sua vítima;
o projecto de roubo que a própria embriaguez e a chegada do
sargento haviam impedido de pôr em execução.
As interrupções e os arrebatamentos de Alcino excitam a
indignação do auditório.
Depois de ouvidas as testemunhas, tomam a palavra os
advogados; o de Alcino invoca a favor do seu arguido a
embriaguez, a irreflexão do momento; promete que ele mudará por
completo se os juízes quiserem usar de indulgência e conceder-lhe
o perdão.
O advogado de Frederico recorda os seus bons precedentes, a
sua pontualidade no serviço, a valentia de que dera prova nos
combates, o espírito de sacrifício já de monstrado, a camaradagem
sempre patente, qualidades que o haviam tornado querido dos seus
superiores e camaradas; recomenda-o instantemente à benevolência
dos chefes, tanto por ele como pelos pais, a quem a desonra do
filho iria atingir mortalmente. Defende a sua inocência;
175
prova que Frederico fora vítima de uma trama urdida por Bourel,
que queria apoderar-se do dinheiro dele e
aviltá-lo aos olhos dos seus superiores.
Diz, por fim, que o Sr. Georgey, amigo de Frederico, se havia
encarregado de explicar a indigna acusação de
roubo feita por Alcino Bourel.
O Sr. Georgey sobe à tribuna do advogado, cumprimenta a
assistência e começa:
- Ilustres sirs, mim não poder impedir um indignação de meu
coração, quando este Alcino, gatuna, acusar
pobre Fridrico como ladrona. Mim saber tudo; mim ver
tudo; ser Alcino gatuna! Fridrico ser imprudente, boa
criatura. Ele haver seguido indigna amigo; julgar boa, verdadeira
amigo. Ele saber nada de roubalhices horríveis de amigo. Fridrico
não compreender muito bem que
querer fazer, indigna criatura; e quando compreender,
quando dizer: mim não querer, ser tarde de mais; Alcino haver
roubado a mim... E Fridrico não querer
faser ele, metê-lo em prisão. E quando bons polícias
franceses prender indigna Alcino, este velhaca meter, no
bolso de pobre Fridrico, reloja, corrente, ouro, e tudo.
Mim dizer, para salvar Fridrico, ser mim que dar reloja, ouro e
corrente. Polícias franceses dizer. Muito bem;
não haver gatuna. E mim levar dois rapazes; e mim
ralhar muito a Alcino e expulsar ele. E Fridrico estar
quase completamente à morte, de desolação por prisão
de polícias. E pai infortunado e mãe infeliz, quase mortos
por honra perdida num minuta. Eis porque Fridrico ser
soldado. E senhores ter capacidade ver que ser ele bom
soldado, valente soldado, soldado francês, em valoroso, bravo
regimento cento e dois. E, se este malvada Alcino
conseguir desonramento, morte de pobre Fridrico, ele
176
contente, ele encantada, ele feliz. E pobre Master Bonard e Sr.a
Bonard mortos ou palermas de terrível desolação. Que fazer ele,
pobre acusada? Nada. Sargenta dizer: absolutamente nada, .
Somente cair em ombro de bravo, ilustre sargenta francesa. E
porque cair Fridrico em cima de ombro? Porque tratante Alcino
embriagar infeliz com abominável, horrível vinho. Ser acto de
grande celerada, dar vinho horrível. E pobre infeliz estar em tão
grande arrependimento, tão grande desgostamento! (Mostrando
Frederico e voltando-se para ele. ) Ver ele chorar! Pobre rapaz,
você chorar por sua honra, por seus infelizes pais! Você bravo
como um leão terrível, você corajosa, forte sempre, em toda a
parte; você agora abatida, humilhada, envergonhada! Seus pobres
olhos acesos como sol, na frente de inimigos... tristes,
abaixados, embaciados... Pobre Fridrico! Tranquilize seu pobre
coração; seus chefes ser justos; eles ser bons; saber ser você
uma honra de regimento; eles saber você não querer fazer mal;
eles saber sua desolação. Eles abrir a você as portas do túmulo e
dizer: Sai, Lázaro! Toma vida e honra! Tu julgar-te morto para
honra. Nós dar vida com honra. Vai combater ainda e sempre por
glória da nossa bela França. Vai ganhar a cruz da honra. Vai
gritar ao hoje e sempre inimigo: Viva Deus e a França,
Ouviu-se na sala um murmúrio de aprovação quando o Sr. Georgey
desceu da tribuna. Frederico lançou- se-lhe nos braços, e o Sr.
Georgey estreitou-o a si durante alguns instantes.
O Conselho retirou para deliberar sobre a sorte dos dois
acusados.
A espera não foi longa.
177
Quando voltou à sala:
- Frederico Bonard - disse o presidente -, o tribunal,
usando de indulgência para consigo, em vista da sua excelente
conduta, dos seus antecedentes, e em atenção ao seu sincero
arrependimento, iliba-o de culpa e absolve-o plenamente, por
unanimidade.
Frederico levantou-se de um salto; o seu rosto, de uma
palidez mortal, tornou-se purpúreo; estendeu os braços para o
coronel e para os outros membros do Conselho e caiu redondamente
no chão.
O Sr. Georgey precipitou-se para ele; correram algumas
pessoas em seu auxílio e transportaram Frederico, a quem a
alegria quase matara. Não tardou a voltar a si; foi sacudido por
uma crise de choro, que o aliviou e pôde então manifestar ao Sr.
Georgey o vivíssimo reconheci mento que sentia, pois receara ter
de sofrer pelo menos cinco anos de prisão e ver a caderneta
militar maculada.
Quando diminuiu o tumulto causado pela queda de
Frederico, o presidente continuou:
- Alcino Bourel, o tribunal, não podendo usar de
indulgência para consigo, em vista da gravidade da sua infracção
à disciplina militar e conforme o artigo... do Código Militar,
condena-o a prisão perpétua.
Produziu-se um silêncio solene após a leitura desta
sentença. Foi interrompida por Alcino, que exclamou, estendendo o
punho cerrado para o tribunal:
- Canalhas! Agora já não preciso de medir as palavras;
posso-lhes dizer a todos que os odeio, que os desprezo, que são
todos uns velhacos.
- Levem-no - disse o coronel. - Condenado, tem trêsdias
para apelar da sentença ou implorar a clemência imperial.
178
ALCINO (vociferando) - Não quero apelar para ninguém; quero
morrer.
Dizendo estas palavras, Alcino precipitou-se sobre o sargento e
antes que este pudesse refazer-se da surpresa, lançou-o por
terra, agredindo-o selvaticamente.
Os guardas subjugaram Alcino e levaram o sargento
coberto de sangue.
Quando acalmou o tumulto, causado por esta cena,
conduziram Alcino. O coronel ordenou que o pusessem a ferros. Os
oficiais que compunham o tribunal foram todos saber notícias de
Frederico. A cena que se seguiu foi tocante. Frederico, fora de
si, não sabia como exprimir o seu reconhecimento.
CORONEL - Sossega meu rapaz, sossega; cumprimos o nosso
dever; agora é preciso que cumpras o teu.
Brevemente, talvez, estaremos a braços com um exército de
árabes. Bate-te como o fizeste até aqui; ganha as tuas divisas de
cabo e depois as de sargento, enquanto esperas pela patente de
oficial e pela cruz.
Toda a gente se retirou, deixando Frederico só com o
Sr. Georgey, que havia recebido muitos cumprimentos e se podia
orgulhar de ter contribuído para a absolvição do seu protegido.
Quando o Sr. Georgey e Frederico tomaram conhecimento
da nova violência de Alcino, o primeiro esfregou as mãos,
dizendo:
- Mim saber. Ser um animal feroz horrível. Ele preso
para sempre, ser muito bom.
Frederico, que se sentia inquieto por causa do sargen
to, foi saber notícias suas. Encontrou-o restabelecido do desmaio
e aliviado pela perda de sangue que sofrera em consequência da
agressão de Alcino.
179
Enquanto Frederico estivera na prisão mal tocara nas iguarias que
o Sr. Georgey lhe havia oferecido; por isso, propôs aos seus
companheiros de caserna banquetearem-se com elas na refeição da
tarde.
- Mas vinho, não - disse ele. - Só um copinho no fim. Jurei
nunca mais beber mais do que um copo a cada refeição.
Os camaradas aplaudiram a sua resolução, que ainda
contribuiu para que a refeição da tarde fosse mais alegre. As
iguarias do Sr. Georgey tiveram um sucesso prodigioso. Frederico
viu-se obrigado a guardá-las para evitar acidentes.
- Sentir-nos-emos muito felizes - disse ele - ao
verificarmos amanhã que ainda temos algumas, meus amigos.
CAMARADAS - De facto a tua absolvição vale bem dois dias de
festa.
FREDERICO - Todos os dias da minha vida passarão a ser dias
de festa e de acção de graças a Deus e aos meus queridos chefes.
CABO - Como o nosso bom capelão está contente! Como
agradecia ao nosso coronel e aos outros camaradas que te
julgaram!
CAMARADA - E o tratante do Alcino como gritou e praguejou!
Que bandido!
FREDERICO - Peçamos a Deus por ele, meus bons amigos. Pedi
ao Sr. Capelão uma missa pela conversão daquele infeliz. Oxalá
ele se arrependa e morra em paz com a sua consciência.

27
Batalha e vitória
O coronel havia previsto bem. Três dias depois do
julgamento, um sinal de alerta despertou o regimento no meio da
noite. Um posto avançado anunciou que se aproximava uma grande
multidão de árabes; passados alguns instantes os dois esquadrões
estavam a pé e formados. Os árabes saíam, sem ruído de um
desfiladeiro, no qual o coronel não quis internar-se, por saber
que o inimigo coroava, de preferência, as cristas das montanhas.
Julgavam surpreender a praça forte, mas foram eles próprios
colhidos de surpresa e envolvidos, antes que pudessem refazer-se.
Houve, então, um terrível morticÍnio e foram praticados prodígios
de valentia. Num dado
momento, encontrando-se o coronel só e rodeado por um grupo
de árabes, acudiu Frederico, que manejou tão bem o sabre à
esquerda e à direita, que conseguiu libertá-lo e ferir gravemente
o chefe do grupo, a quem fez prisioneiro.
Numa outra ocasião viu o seu sargento encurralado entre
um rochedo e seis árabes, dos quais se defendia corajosamente.
Frederico caiu sobre eles, descarregando golpes de sabre;
derrubou três, feriu e pôs em debandada o resto e transportou o
sargento, que estava ferido numa perna e não podia andar.
181
No dia seguinte foi mais uma vez citado em Ordem
de Serviço e recebeu as divisas de cabo.
O Sr. Georgey exaltava com os êxitos do seu protegido e disse ao
coronel depois da batalha:
-Mim olhar sempre com óculo de aproximação.
Mim ver tudo de cima de meu telhado.
CORONEL - Como? Mas onde estava?
SR. GEORGEY - Mim ter subido muito alto em
telhado. Mim ver muito bem. Ser muito bonito, na verdade.
Fridrico ir, vir, correr, dar pancada por todos lados. Ser lindo,
pancadaria. Mim nunca ter visto combates assim. Ser belo,
soldados franceses. Ser como regimento de leões. Mim gostar deste
coisa. Mim dizer bravo aos leões franceses!
O Sr. Georgey ficou ainda dois meses com o coronel.
Depois foi montar algumas fábricas perto de Argel.
Um dia, andando a visitar um hospital francês, ao
atravessar uma das salas, ouviu que o chamavam; aproximou-se
do leito donde partira o chamamento e reconheceu o seu amigo
Frederico; mas parecia a sombra do
vigoroso soldado que ele deixara dois anos antes. Magro
pálido, enfraquecido, Frederico mal podia falar. Pegou
na mão do seu antigo defensor e apertou-a nas suas, tão
desprovidas de força.
SR. GEORGEY - Que ter você, infeliz? Você estar
aqui, num hospital?
FREDERICO - Estou aqui há três meses, Sr. Georgey; estou muito
doente com as febres que não querem
deixar-me. Se pudesse mudar de ares, voltar à terra, i
creio que me curaria muito depressa.
SR. GEORGEY - Ser preciso ir, meu caro Fridrico, ser preciso.
182
FREDERICO - Mas não posso, Sr. Georgey; é uma
coisa difícil de conseguir, e não conheço ninguém que
possa fazer as diligências necessárias para isso.
SR. GEORGEY - E o seu bravo coronel?
FREDERICO - O regimento foi mandado para
Napolléonville, Sr. Georgey. Estou muito longe dele.
SR. GEORGEY - E que ser você? Cabo ainda?
FREDERICO - Não, não, sou sargento e estou citado para
a cruz da Legião de Honra, mas receio bem não
chegar nunca a usá-la!
SR. GEORGEY - Sargento! Ser bonito! Muito bonito. Sargento e
a cruz aos vinte e um anos! Mim
pedir por você; mimobter; mim levar você comigo; levar
você para casa Sr.a Bonard.
Frederico apertou-lhe as mãos, radiante de alegria, e
agradeceu-lhe calorosamente.
Oito dias depois, o Sr. Georgey levava-lhe uma licença de um
ano. Tratou, em seguida, da passagem num
bom navio e das provisões necessárias para a viagem.
Quinze dias mais tarde, o Sr. Georgey e Frederico
desembarcavam em Toulon. Estiveram ali somente durante vinte e
quatro horas, para repousar um pouco. Frederico escreveu à mãe,
para lhe anunciar a sua chegada
com o Sr. Georgey.
Três dias depois chegaram à herdade dos Bonard.
O primeiro encontro foi comovente. A Sr.a Bonard não
se cansava de abraçar e admirar o filho e de agradecer
ao Sr. Georgey. O pai não se fartava de olhar para as suas
divisas de sargento. Estava de tal maneira belo e forte que se
tornava difícil reconhecê-lo. Todos admiraram muito Frederico;
crescera um meio palmo e engordara muito; os seus largos ombros,
a tez bronzeada,
183
o fino bigode davam-lhe um ar marcial que Julião invejava.
- E eu que fiquei com uma aparência tão fraca - disse
Julião, mirando Frederico por todos os lados.
FREDERICO - Achas-te fraco? Mas cresceste de tal maneira que
estás quase irreconhecível. Lembra-te de que tens só dezasseis
anos. Estás alto e forte para a tua idade.
184
BONARD - E o facto é que faz o trabalho de um homem. Sempre
pronto para tudo; nunca se cansa.
- Não é como eu na sua idade - disse Frederico sorrindo. E
ficou pensativo a recordar o passado.
SR. GEORGEY - Vamos, sargento, não falar de dezassete anos.
Falar de vinte e dois, ser mais agradável. Ver papá Bonard, como
seu rapaz estar soberbo. E seus magníficas divisas! E mim que ver
chegar divisas sobre meu telhado.
BONARD - Como? Em cima do seu telhado? Qual telhado?
SR. GEORGEY - Ser telhado de coronel. Mim ver meu óculo. Ele
se bater furiosamente! Ser belo! Magnífico! Como Fridrico bater
em moiriscos, moiriscos cair, torcer- se. Ser serpentes contra
leões. E, a seguir, Fridrico ser cabo. E em outro combatimento
ser sargento.
Frederico quis mudar de conversa, mas o Sr. Georgey voltava
sempre às batalhas, aos rasgos de bravura, aos episódios com o
coronel e o sargento, aos altos feitos de Frederico; o pai era
todo ouvidos para o Sr. Georgey; a mãe só tinha olhos para o seu
filho.
Depois de muitas conversas, muitas e muitas perguntas e um
belo jantar, depois de Frederico ter dado a conhecer o que devia
ao seu bom protector, salvo a questão do Conselho de Guerra que o
Sr. Georgey lhe dissera que não contasse senão à mãe, Bonard quis
mostrar o seu sargento na povoação; propôs-lhe uma visita ao Sr.
Abade.
SR. GEORGEY - E também mim querer alojamentação. Que fazer
Carolina?
- O seu alojamento é muito perto, Sr. Georgey; temos um belo
quarto para si, na herdade; graças aos
185
doze mil francos que deixou a Julião, graças à sua generosidade
com ele e connosco, aumentámos e melhorámos muito a nossa casa
que dispõe agora das comodidades necessárias. Se desejar ter
Carolina ao seu serviço, ela vem, por certo, de boa vontade; está
em casa da mãe e trabalham em luvas.
SR. GEORGEY - Oh! yes! Mim querer muito bem! Mim querer ver
meu alojamento em casa vossa.
Mostraram a casa toda ao Sr. Georgey. Em cima havia dois
belos e grandes quartos contíguos, um para ele e outro para
Julião; ficavam ainda dois: um para Carolina e outro para
qualquer visita. Em baixo ficava Bonard com sua mulher e
Frederico.
Quando voltaram à sala, Frederico lançou um olhar furtivo
para o lado do antigo armário quebrado; viu, com viva satisfação,
que já lá não estava. O Sr. Georgey, depois de ele se ter ido
embora, comprara um bonito aparador para substituir o armário
fatal, queimado por sua ordem.
Durante vários dias, Bonard, triunfante levou o filho a casa
de todas as pessoas das suas relações e à cidade onde procurou
todos os pretextos possíveis para o fazer passar diante do posto
da polícia. Frederico, por causa das suas divisas, recebia a
continência dos simples polícias e um aperto de mão do cabo. O
pai cumprimentava também e parava com prazer, para conversar e
dizer duas palavras acerca dos combates contados pelo Sr.
Georgey.
No entanto, Frederico não quis ficar inactivo; trabalhava
como Julião, o que foi para Bonard uma grande ajuda; não
precisava, assim, de nenhum jornaleiro; todo o trabalho se fazia
entre os três.
186
Carolina, que voltara com alegria para casa do seu
antigo patrão, ajudava a Sr.a Bonard a cuidar do lar e dos
animais.
O Sr. Georgey vivia feliz como um rei, rodeado por
pessoas a quem estimava e que tinham por ele tanta
afeição como reconhecimento. Resolveu fixar residência
naquela região. Comprou, muito perto dos Bonard, uma
bonita moradia, ao pé de uma ribeira muito abundante
em peixe, onde podia entregar-se ao prazer da pesca e da
qual também quis aproveitar-se para montar uma fábrica.
Carolina ficou sendo sua governanta, sob a direcção
da mãe, que entrara com ela ao serviço do Sr. Georgey.
O fim da licença de Frederico aproximava-se; restavam- lhe
somente três meses daquela magnífica vida de
família. Lamentava muitas vezes não poder continuar assim até ao
fim da vida.
-Mas - dizia ele - tenho de cumprir o meu
tempo. Faltam-me ainda três anos de serviço.
A Sr.a Bonard chorava. Frederico procurava distraí- la
mas, quanto mais se aproximava o momento da separação, mais
aumentava a sua tristeza e mais disposto Frederico se sentia a
participar dela.
- Ah! Se eu tivesse dezoito anos - dizia Julião que prazer
sentiria indo em vez de ti! E com que felicidade daria a todos
esta prova do meu reconhecimento!
FREDERICO - Gostavas então de seguir a vida de
soldado?
JULIÃO - Não, agora não. Mas se evitasse, assim, que
fosses, gostaria mais dela do que de qualquer outra.
O Sr. Georgey não dizia nada. Algumas vezes enaltecia a vida
militar.
- Ser magnífico! - dizia ele. - Ser tão glorioso!
187
Um dia, à hora do jantar, o Sr. Georgey entregou uma carta a
Frederico.
SR. GEORGEY - Ser do coronel. Ele pedir notícias de sua
saúde.
FREDERICO - Excelente coronel! Que bondade a sua!
JULIÃO - Que te diz ele? Lê.
Meu caro Bonard
Junto te envio a baixa do serviço e a cruz que tão merecidamente
ganhaste. Quero dar-te eu próprio esta boa noticia e dizer-te que
tenho pena de que não voltes, pois eras uma das glórias do
regimento; os teus superiores e camaradas lamentam, como eu, a
tua ausência. Mas, visto que o médico declara, segundo diz o Sr
Georgey, que não podes voltar à África sem perigo para a tua
vida, não hesito em conceder-te a baixa de serviço. Aí vai
absolutamente em regra. Espero tornar a ver-te, um dia, como
paisano.
Teu antigo coronel do 102.º Regimento de Caçadores de África.
Bertrand Duguesclin
Frederico teve dificuldade em chegar ao fim. A alegria e a
surpresa estrangulava-lhe a voz. Quando acabou, olhou para o Sr.
Georgey, que sorria, pegou-lhe numa das mãos, apertou-lha com
força e levou-a aos lábios. Quis falar mas não pôde articular
palavra. Rolavam-lhe
188
grandes lágrimas pelas faces. O Sr. Georgey levantou-se
e apertou-o nos braços.
SR. GEORGEY - Não ser nada, não ser nada. Mim
não ter muito dificuldade em fazer a coisa. Somente mim
ter feito escrevinhações. Sr. a Bonard, ele estar muito
contente.
SR.a BONARD - Oh! Sr. Georgey! Nosso querido e
digno benfeitor! Como poderemos agradecer? Que havemos de fazer
para testemunhar a nossa gratidão?
SR. GEORGEY - Procurar ser muito feliz e depois
dar um pequeno porção de amizade ao pobre Georgey, muito só,
sem família.
- Seremos sempre os seus amigos sinceros e devotados servidores.
A nossa família será a sua, querido e
excelente benfeitor - respondeu a Sr.a Bonard, caindo
de joelhos. - O senhor restituiu um filho a sua mãe. Ela
nunca esquecerá o que Lhe deve.
Bonard estava no auge da alegria; ver o filho condecorado e
sargento, saber que ficaria na terra e gozar a
todo o momento da sua glória, era tudo quanto havia
desejado.
A partir desse dia passou a haver na herdade uma
felicidade perfeita; o Sr. Georgey nunca sentiu desejo de
deixar os seus amigos e retomar as antigas relações. Encontrava
entre os Bonard tudo quanto desejara: calma, afeição, sentimentos
honestos, gostos simples, e uma gratidão sem limites. Levou para
casa uma irmã mais nova
de Carolina, boa, activa e afável; tem dezanove anos.
Frederico acha nela as qualidades precisas para a felicidade do
lar. A Sr.a Bonard manifesta grande desejo de a
ter por nora. O Sr. Georgey diz a todo o momento palavras que
julga subtis, mas que mostram claramente que
189
aquele casamento lhe agradaria muito. Frederico sorri. Paulina
cora e não parece descontente; toda a gente es pera assistir a um
casamento antes de dois meses.
Frederico tem vinte e quatro anos; herdará alguma
coisa, é bom rapaz, religioso e trabalhador. Desde o
desaparecimento do seu génio mau, como ele chamava a Alcino, não
tornou a faltar aos seus deveres. Há-de ser bom marido e bom pai
porque é bom filho, bom amigo e, sobretudo, bom cristão.
Julião conta passar a vida ao pé dos seus benfeitores
que esperam ficar para sempre com ele. Fala muitas vezes ao Sr.
Georgey na vantagem que este teria em se aproveitar da ribeirinha
que atravessa a sua propriedade, para montar uma fábrica de
arame. O Sr. Georgey não diz que não; sorri, faz planos que
explica a Julião e passam serões inteiros a fazer projectos, que
serão, provavelmente, executados em breve.
Frederico casou e o Sr. Georgey deu-lhe como presente
dez mil francos e cinco mil a Paulina, e começou a construção de
uma fábrica cuja direcção e lucros se destinam à Julianinha. São
todos tão felizes quanto o merecem ser as almas bondosas.

FIM

Você também pode gostar