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Arroz de Hauçá

Camila Ribeiro

Tratamento 02
duração aproximada 90 minutos.

longa-metragem
classificação indicativa: 12 anos
Lurdinha é casada com Túlio. Eles têm um único filho: Binho.
O casal mora na Ribeira, bairro tradicional de Salvador, onde
vivem desde o casamento. Binho, por sua vez, foi casado com
Lia com quem teve Bruno e se separaram recentemente. Cau,
Jussa e Leandra são sobrinhas de Lurdinha, mas foram criadas
como filhas. Jussa é casada com Déa e é irmã de Leandra, a
mais nova entre eles que é casada com Lucas e vivem no Rio de
Janeiro.

1 01. EXT - FEIRA DE SÃO JOAQUIM - DIA

Feira de São Joaquim, Salvador, Bahia. Pessoas falam ao mesmo


tempo, pessoas passam com sacolas de compras, feirantes
passam com caixas de verduras, vendedores conversam com
clientes.

LURDINHA, 65 anos, negra, cabelo grisalho, carrega uma sacola


de pano e um carrinho de compras. Anda tranquila pela feira
que conhece como a palma de suas mãos, está animada, anda
cumprimentando conhecidos. Lurdinha espera VENDEDOR 1
embrulhar uma garrafa de dendê em uma folha de jornal.

VENDEDOR 1
(assertivamente)
Melhor dendê diretamente do recôncavo
para a senhora, pode ficar tranquila
que tá levando ouro pra casa.

Lurdinha sorri debochada e tira umas notas de uma bolsinha


para pagar o Vendedor 1.

VENDEDOR 1
(propositivo)
Em que mais posso lhe ser útil?

LURDINHA
Vou querer 4 cocos seco também

VENDEDOR 1
Vou pegar uns bons pra você.

Vendedor 1 chacoalha alguns cocos escolhendo.

VENDEDOR 1
(seguro)
Pronto. Pode confiar, tá tudo bom.

LURDINHA
Você sabe que se não tiver eu volto,
né?

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2.

VENDEDOR 1
E como sei!

O vendedor 1 pega uma sacola e coloca o dendê e os cocos


dentro, Lurdinha paga o vendedor 1.

LURDINHA
Um bom domingo pra você, Joca.

O Vendedor 1 acena e Lurdinha segue olhando as próximas


barracas. Lurdinha para em frente a uma barraca com três
montanhas de camarão seco de tamanhos e tons diferentes.

LURDINHA
(confusa)
Quanto ta o quilo do bom?

VENDEDOR 2
(rindo)
Vinte e cinco pros amigos.

Lurdinha pega um camarão e come.

LURDINHA
Me veja 2 quilos. Capricha aí Vavá

VENDEDOR 2
(enfático)
Quando que não capricho pra senhora?

O Vendedor 2, com uma lata, pega os camarões, coloca em uma


sacola de papel e põe em cima da balança que marca 2,200kg.

VENDEDOR 2
Aí ó, 50 reais.

Vendedor entrega a sacola e Lurdinha paga.

VENDEDOR 2
Como vai Túlio? Nunca mais passei pelo
armarinho, Guta ta devagar nas
costuras...

LURDINHA
(com deboche)
Tá um velho babão! Só pensa no neto
agora! Passem lá pra gente tomar um
café esses dias!

VENDEDOR 2
Vamos sim, vai ter aqueles sequilhos?

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3.

LURDINHA
Vou preparar aquele com goiabada!
Espero por vocês

VENDEDOR 2
Não precisa chamar duas vezes!

Lurdinha acena, saindo em direção a barraca de tempero.


Lurdinha encosta e cheira a pimenta. Vendedor três sorri para
ela.

VENDEDOR 3
Chegou hoje D. Lurdes.! Tá fresquinha!

2 02. INT - COZINHA DA CASA DE LURDINHA - DIA

Cozinha de uma casa construída na década de 80 no bairro da


Ribeira. A cozinha é ampla e bem iluminada, tem um piso de
cerâmica e uma porta que dá para um quintal. A cozinha
mistura elementos da época da construção da casa com
elementos mais atuais como um fogão moderno 5 bocas. Todos
ficam descalços dentro de casa.

Em uma mesa grande antiga estão sentados em um canto Lurdinha


está com uma roupa simples porém elegante; BINHO, 30, negro,
porte de ex atleta, cabelo trançado, usa um short curto e uma
camiseta do vitória; JUSSA, 35, negra, cabelo curto com um
corte estiloso, veste uma saia reta com uma blusa de banda, e
BRUNO, 5, negro, cabelo nem grande nem curto, veste um
conjuntinho estampado, terminando de tomar café da manhã. Ao
fundo ouve-se um pescador vendendo na rua.

PESCADOR
(gritando melodicamente, voz off)
vermelho, sururu, camarão, polvo,
pititingaaaa, graúdo, fresquinho, de
qualidade... olha a lambreetaa..

Bruno "desenha" meticulosamente com os farelos do cuscuz no


seu prato fazendo um pequeno zumbido baixinho de uma música
com a boca fechada sem parar. Os demais sentados à mesa
observam em um leve clima de estranheza. Binho, sem graça e
inseguro por não saber como lidar com as especificidades do
filho, se levanta e começa a recolher os pratos fazendo
barulho empilhando a louça, enquanto Jussa cata as migalhas
do cuscuz no prato pirraçando Binho que ri. Binho não pega o
prato de Bruno na mesa. Lurdinha sacode o quente-frio, ouve
que está praticamente vazio, tenta se servir de mais café em
vão. Ouve-se ao fundo o som de um programa notícias vindo de
um rádio na sala.

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4.

LURDINHA
(carinhosa)
Meu filho, passe mais um pouco de café
para sua mãe tomar mais um copinho
fresco.

BINHO
(sério)
Sim senhora minha mãe.

Lurdinha ri da formalidade como Binho lhe responde, levanta


agilmente, vai até o armário onde pega um bombom
discretamente, ajuda a Bruno descer da cadeira e lhe entrega
o bombom indicando que ele vá comer no quintal, escondido,
para que Binho não veja. Bruno obedece e sai silenciosamente.
Jussa assiste à cena repreendendo com o olhar, apesar de
saber que Lurdinha não liga. Binho não vê nada e termina de
tirar a mesa, pega o prato de Bruno e empilha a louça na pia.
Binho joga a borra de café que estava no coador de pano na
pia deixando toda a pia preta. Coloca mais água para ferver
na leiteira e começa a lavar a louça. Jussa se levanta para
ajudar, enquanto Binho lava, Jussa enxuga com um pano de
prato e vai guardando as coisas no armário, ambos fazem suas
ações devagar, mais interessados na conversa. Sempre que
falam param de fazer o que tão fazendo.

LURDINHA
(cobrando)
Cadê essa menina que não chega?

BINHO
(para Jussa ironicamente)
Não é de Cau que ela está esperando
pontualidade né?

JUSSA
(com deboche)
Claro que é, essa aí já gosta de
motivo pra sofrer. Se não tiver o que
reclamar, uma agonia pra se apegar,
não presta pra ela não.

Lurdinha ignora o comentário dos dois. Binho e Jussa riem.

3 03. INT - COZINHA - DIA

Som da porta de entrada se abrindo. Lurdinha olha para Binho


e Jussa como quem diz que estava certa. Ouve-se o som baixo
vindo da sala de CAU, 32 anos, negra, cabelo preso, veste
short, camiseta folgada, beijar a testa de TÚLIO, 62, negro,
cabelo baixinho, bermuda de pano e uma camisa de manga curta

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5.

de botão. Cau adentra a cozinha com uma mochila nas costas e


carregando uma sacola.

CAU
(esbaforida)
Chegueeei time, e ai já botaram
cerveja na geladeira? Que calor é
esse? Não tô aguentando esse calor
não, um sol pra cada um na rua, deus é
pai.

JUSSA
Já chega dando ordens. Bom dia pra
você também pentelha.

Jussa joga o pano de prato que tá usando em Cau que tenta


desviar mas não consegue, o pano lhe acerta o rosto. Jussa e
Binho riem. Bruno, com a boca suja de chocolate e o papel do
bombom em mãos, vê Cau e vem correndo do quintal para abraçá-
la que se abaixa para apoiar a sacola no chão e agarrar
Bruno, mas ele é mais rápido e os dois acabam se embolando
com as compras.

JUSSA
(levemente enciumada)
Eta!

Bruno se solta do abraço e Cau pega a sacola que caiu. Bruno


a encara sério.

BRUNO
(sério)
Cau, você sabia que o açúcar é uma
caloria vazia e vicia o paladar
infantil?

Cau se espanta e ri.

BINHO
(explica)
É coisa da mãe dele.

CAU
(para Bruno de igual para igual)
É mesmo, sua mãe tem razão.
(rindo)
E essa boca suja de chocolate é o que?

Bruno ri. Jussa assiste à cena com um misto de ciúme e


admiração. Cau olha para Jussa, pega o pano de prato caído no
chão e o joga de volta. Jussa agarra o pano no ar e sorri.

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6.

CAU
(pilhando)
E essa cerveja existe ou é lenda?

BINHO
Ave Maria, não são nem onze horas
ainda, finja ser uma pessoal normal de
vez em quando.

CAU
(pausadamente)
Bom dia meus amores. Como vocês estão?
Tiveram uma boa noite de sono?
Escovaram os dentes direitinho? Todo
mundo bem, feliz e contente?

Binho vê a embalagem do bombom na mão de Bruno, olha para a


mãe repreendendo com o olhar. Lurdinha faz que vai falar mas
pára sem dar importância. Binho pega o filho no colo para
lavar seu rosto sujo de chocolate e joga a embalagem no lixo.

LURDINHA
(irônica)
Bom dia minha filha, que bom que
chegou, antes tarde do que mais tarde.

Cau não dá importância para a provocação da tia. Túlio que


está na sala chama Bruno.

TÚLIO
Bruunoo!! To te esperando para
começarmos nosso acampamento!

BINHO
(para Túlio)
Ele já vai!
(para Lurdinha)
To limpando a lambança que dona
Lurdinha proporcionou.

Binho seca o rosto de Bruno com o pano de prato e beija a


bocheca, Bruno desce do colo de Binho e anda para a sala.
Ouve-se o som de móveis se arrastando e objetos
irreconhecíveis sendo jogados no chão da sala, Lurdinha ouve
a barulhada e ri. Túlio desliga o rádio na sala e a partir
daqui se ouve sons de uma conversa não inteligível entre
Túlio e Bruno, principalmente a voz de Túlio.

JUSSA
A cerveja está quente ainda, espera
mais uns 20 que não estavam tão

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7.

geladas quando eu passei no depósito.

Cau olha para o relógio.

CAU
Ah, diga isso...
(para Binho)
Porque já são 11:15, para quem acordou
às 5 já tá mais que na hora.

LURDINHA
Ave maria, Cau, acordando cedo assim
no domingo pra que? nem pra dizer que
é pra chegar cedo, que não adiantou
muita coisa.

BINHO
Não já sabe, minha mãe, essa daí tem
um formigueiro na cama, não aguenta
ficar deitada, mas não adianta de
nada, como se pode perceber.

Cau tranquilamente tira três potes de sorvete da sacola e


coloca no congelador, se serve de água do filtro de barro,
vai até a Lurdinha, lhe dá um beijo na testa e apoia o copo
na mesa para poder tirar a camisa que está molhada de suor.
Vê-se ao longe Cau, com um top, pendurar a camisa no varal do
quintal e volta à cozinha.

CAU
(pilheira para Binho)
Só pra calar tua boquinha linguaruda
eu cheguei ontem em casa do trabalho
podre de cansada e a cozinha tava um
nojo; nojo, um nojo mesmo.

Binho e Jussa param o que estão fazendo para ouvir Cau.

CAU
Parece que o encanamento entupiu e era
resto de arroz e café para todo lado,
queria só sentar e chorar. Sorte é que
Diogo, filho de Seu Walter, agora mexe
com essas coisa, aí bati na porta dele
implorando ajuda pra ele ver a
situação lá de casa. Aí ele passou lá
em casa hoje cedinho porque tinha um
serviço marcado, aí teve que ir cedo
mesmo.

Cau dá tantas voltas para contar sua situação que Jussa e

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8.

Binho se dispersam em sua narração. Binho volta a ensaboar a


louça.

BINHO
Como se ela precisasse de desculpa
para se atrasar...

JUSSA
(interrompendo)
Faz tempo que não sei o que é acordar
tarde, parece que quanto mais velha
você vai ficando menos dorme, mais
chata você fica, tudo vai desandando.

CAU
Ih... Qual foi drama queen?

Som da água fervendo.

LURDINHA
(preocupada)
Ainda tá tendo insônia Jussa? Tem que
cuidar disso aí.

JUSSA
Tô vendo, tia, é que de noite é a
única hora silenciosa, é quando eu
consigo ter paz pra escrever. E tô
cheia de trabalho atrasado...

CAU
(questionando)
Continua levando trabalho pra casa é?
ih... Já vi esse filme...

JUSSA
(desanimada)
Ah Cau, que jeito tem? se eu não fizer
ninguém faz e eu ainda acredito no que
eu faço, né? devo ser a única na
secretaria, mas fazer o que?
(pausa)
Menina e agora tem uma menina nova na
secretaria me cercando, tá foda, viu?
Chegue primeiro que eu já conto.

CAU
(provocativa)
Olha ela... Cheia de mistério para
contar as mesmas confusões de sempre.
Jussiara faz mais uma vítima no

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9.

governo.
(pausa)
Cuidado, viu? Daqui a pouco lhe metem
uma justa causa por causar desilusões
amorosas no estado.

BINHO
(lamentando)
Uns com tantos e outros com tão
pouco...

Binho abra a torneira. Som de água caindo, Binha enxagua a


louça. Jussa percebe a água fervendo, joga o pó do café, mas
não desliga.

BINHO
Desde que Bruno nasceu é só troca
fralda, carrega menino, esquenta
comida, bota menino para dormir, leva
menino na escola, faz mais comida, e
ainda tem as frescuras de Lia, não
pode açúcar, evite farinha branca,
nada com conservante, nada de
aromatizante, leia a embalagem, não
pode isso não pode aquilo...
(dramático)
Sexo não sei nem mais que cheiro tem.

O café derrama e suja o fogão. Lurdinha olha com reprovação.

LURDINHA
(reclamando)
Olha meu fogão novo!

BINHO
(indignado)
Ah, mas não é possível uma coisa
dessas. Até quando eu passo um café
você tem que meter a mão no que eu tô
fazendo.

Binho desliga o fogo olhando para Jussa.

JUSSA
(impaciente)
Ah não enche, a água tava fervendo aí
há uma cara e você nem viu. Eu limpo e
passo outro minha tia, dois minutos.

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10.

LURDINHA
(interrompendo)
Precisa mais não, deixa quieto, me
veja um copo de água mesmo.
(para Cau)
Comprou o de coco queimado, minha
filha?

Jussa pega um copo d'água e dá pra Lurdinha.

CAU
Coco queimado, milho verde e tapioca.
Eu lá sou doida de chegar aqui
faltando alguma coisa?

LURDINHA
(rindo)
Por isso que pedi a você, esses dois
aqui não dá para se confiar, nem a
cerveja trazem gelada!
(provocando)
Ainda ficaram tirando uma com sua cara
que não chegava.

CAU
Tava até tranquilo lá hoje!
(provocando)
Deve ser porque tá cedo ainda!
(pausa)
S. Luiz lhe mandou um abraço viu.

Binho e Jussa olham para Lurdinha chocados.

BINHO
Com uma mãe carinhosa dessas o cara
cresce calejado.

Binho limpa o fogão.

LURDINHA
(rindo enquanto olha pra Jussa
pirraçando)
Ah deixe de bobagem, Binho. Papagaio
que acompanha João-de-barro vira
ajudante de pedreiro.

Jussa fica mais chocada.

JUSSA
(respondendo a pirraça)
Quem sai aos seus não degenera

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11.

CAU
(interrompendo com delay)
O que que vocês tão falando de mim aí?

JUSSA
(cortando)
Não viaja, Cau.

LURDINHA
(mudando de assunto)
Vamos ao que interessa. Prestem
atenção porque hoje eu não vou
cozinhar, quem vão cozinhar são vocês.

Binho toma um susto e pára para ouvir.

JUSSA
Em que ano estamos? alguém mais ouviu
isso?

BINHO
Uhun! Só não entendi.

JUSSA
(lamenta)
E eu achando que hoje era meu dia de
folga... Desembucha aí tia que
novidade é essa?.

BINHO
Que novidade é essa mainha? Eu já não
sou o lavador de pratos oficial da
casa?
(fazendo graça)
Quem lava não cozinha você que me
ensinou!

Cau, Jussa e Lurdinha não aguentam e riem da cara de pau de


Binho.

LURDINHA
(séria)
Vou ensinar como é que faz o arroz de
hauçá, tô ficando velha, vamo ver se
algum de vocês aprende logo.

BINHO
(em tom de pirraça)
Olha só, Dona Lourdes vai deixar a
gente mexer na sua pre-cio-sa
cozinha...

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12.

JUSSA
(provocativa)
você que faz a receita de olhos
fechados vai correr o risco de comer
papa de arroz?
(séria investigativa)
Não estou te reconhecendo, tem coisa
aí!
(fazendo piada)
Quem é você e cadê a minha tia?

LURDINHA
Comece não para eu não mudar de ideia.
Nem um café dão conta de passar
direito, tenho é medo do que vocês
comem em suas casas. Já tô quase me
arrependendo.

Cau ri. Lurdinha ri com deboche.

CAU
Quieta vocês! Eu quero fazer! É o seu,
meu prato, o meu, seu prato, é o prato
que você faz que eu mais gosto, ou
seja, o melhor prato do mundo já que
ninguém chega aos seus pés.

BINHO
Puxa-saco.

Cau dá nos ombros.

BINHO
(para Lurdinha)
é brincadeira né, reclama quando eu
frito um ovo dizendo que não sei
cuidar de suas panelas e agora vem com
essa, mas beleza
(performático)
agora vocês vão ver o masterchef dando
show aqui, vocês acham que é só esse
corpinho que é sedutor?

JUSSA
(provocando)
E não era você que tava na seca Binho?

BINHO
(toma uma rasteira, mas se
recupera)
na seca por falta de tempo, não por

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13.

falta de habilidade!

Cau e Jussa se olham e riem.

JUSSA
(sem levar a sério)
Ah, ta certo!

LURDINHA
E aí, lindezas, vamos aos trabalhos ou
vão ficar na disputa de gogó?

CAU
(botando pilha)
pxiiiiiii...

LURDINHA
E não quero ninguém de má vontade ou
cara feia, quem não quiser que não
faça, má vontade na cozinha traz
agouro.

JUSSA
Ave Maria tia, você pesa logo, era só
uma brincadeira.

BINHO
bora mainha, to aqui no gás! Apredam
com o papai chef aqui!

Lurdinha ri satisfeita.

LURDINHA
Preciso que um de vocês limpe os
camarões, alguém pra ir cortando os
temperos. Jussa, pegue essa carne que
tá dessalgando aí e prova pra ver se
Tá boa.

BINHO
sim chef!

CAU
Eu corto os temperos!

JUSSA
(cara de nojo)
Provar crua?

LURDINHA
É, menina, deixe de frescura, pra ver

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14.

se ainda tá salgada... Me dê aqui que


eu provo.

Cau dá os temperos para Binho lavar enquanto pega uma faca e


uma tábua para cortar os temperos. Lurdinha observa todos os
movimentos.

LURDINHA
Pegue outra faca, essa não serve.

Cau guarda a faca e, ao pegar outra, deixa cair no chão. Pega


rápido no chão.

CAU
3 segundos

Cau sopra a faca, Jussa ri, Lurdinha observa calada, Cau


revira os olhos e dá pra Binho lavar também. Jussa larga o
pano de prato por um instante, empurra Binho pro lado para
usar a pia, lava a carne e leva para Lurdinha provar. Binho
entrega a faca e os temperos (coentro, cebola, pimenta de
cheiro) lavados para Cau que pisca para Binho em
agradecimento e começa a cortá-los. Binho volta a lavar a
louça. Cau pega uma vasilha, enche de água, coloca as cebolas
dentro e começa a descascá-las.

LURDINHA
Olha que belezura que tá essa carne, ó
pra isso.
(Lurdinha tira delicadamente um
fiapo da carne para provar)
Repare, primeira coisa: vê se presta
atenção vocês aí... Nunca comprem
charque embalado a vapor em mercado,
elas são pura gordura, caro e velho.

Lurdinha fecha os olhos enquanto prova a carne, Cau da


bancada se estica para ver a carne.

CAU
Deixa eu provar também!

LURDINHA
Tá boa. Põe na pressão para depois
você desfiar.

JUSSA
(com deboche)
Depois que largou de ser vegetariana
até carne crua quer provar.

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15.

CAU
Pior é você que nunca larga do meu pé.

LURDINHA
Aproveite pegue logo ali a panela de
barro, a maior que tiver tampa, passe
uma água que tem tempo que ela tá
guardada.

Jussa imita Cau, deixa a carne em cima da bancada para pegar


a panela de pressão uma panela de barro bem grande, entrega a
de barro para Binho lavar, empurra ele para encher a panela
de pressão e água. Cau vai até a carne meio sem saber como
tirar um fiapo, tira um pedaço e prova. Jussa corta a carne
em pedaços menores, coloca a panela de pressão o fogo, joga
as carnes dentro e fecha na pressão. Cau começa pelo coentro.
Som do coentro sendo picado preenche a cozinha.

4 04. INT - SALA - DIA

A sala tem uma decoração antiga com pequenas adaptações


feitas com o nascimento de Bruno, brinquedos na parte mais
baixa do rack e objetos decorativos mais no alto. A campainha
toca insistentemente. Da porta da sala se vê LEANDRA, 27,
negra, cabelo trançado curto, veste um macacão de pano, está
em frente a grade da casa.

LEANDRA
(grita)
Ô de casa! Tem pão velho??

Leandra percebe que o cadeado está só encostado e vai


entrando pelo portão. Túlio está sentado no chão da sala
brincando com Bruno, responde à Leandra no ímpeto, empolgado,
levanta para abrir a porta para Leandra.

TÚLIO
(rindo)
Tem açúcar aqui não!

Túlio ainda sem acreditar no que vê, pega a mochila de


Leandra de suas costas, apalpa a cabeça de Leandra com
carinho. Leandra sorri, retribui o gesto.

LEANDRA
E ai campeão, criando mais um
escoteiro?

TÚLIO
(babão)
Ah minha filha, ele que me cria, me

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16.

ensina tudo que tinha me esquecido


desde que vocês cresceram e ganharam
mundo.
(pausa)
Que saudade que eu tava de tu, Lê. Não
mate seu velho do coração não!

LEANDRA
Ô meu tio, me perdoe! A vida tá
corrida mesmo, reze para as coisas se
ajeitarem que eu virei mais com
certeza, não é por falta de querer.

TÚLIO
Eu sei, minha filha, é que a gente vai
ficando velho vai ficando mais mole
também, perdoe a carência de seu
velho.
(pausa)
Como você está com a cara boa!

LEANDRA
Já não aguentava mais de ansiedade pra
chegar aqui. Estava contando os
minutos, mal dormi essa noite.

Leandra olha para Bruno que se assustou um pouco com o


barulho da campainha.

LEANDRA
E aí, Bruno, tudo massa?

Leandra se abaixa e dá um beijo nele que não reage muito.

TÚLIO
(sereno)
É o tempo dele, daqui a pouco ele te
dá um abraço.
(para Bruno)
né Bruno?
(animado)
O povo está todo na cozinha, sua tia
acordou com as galinhas hoje.

Leandra sorri para Bruno, atravessa o corredor em direção a


cozinha. Bruno volta a se concentrar nos seus brinquedos.
Túlio entra em um quarto para guardar a mochila de Leandra e
volta para a sala sorridente.

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17.

5 05. INT - COZINHA - DIA

Todos na cozinha são surpreendidos com a chegada de Leandra


menos Lurdinha que já sabia, mas fica emocionada ao vê-la.
Binho limpa suas mãos de detergente na roupa de Leandra e a
abraça forte. Jussa e Cau largam o que estão fazendo e
abraçam juntas Leandra bagunçando o cabelo dela.

BINHO
(curioso)
Que bons ventos trazem a senhora aqui?

JUSSA
É. Por que não avisou que tava vindo?
Eu te pegava no aeroporto.

LEANDRA
Quis fazer uma surpresa. Soube que
hoje tinha uma receita especial, eu
não podia perder. Esse povo carioca
não sabe cozinhar direito não.

Leandra pisca para Lurdinha.

LURDINHA
Ela acha que me conquista com essa
conversinha...

CAU
desembucha mulher! Tanto tempo
enrolando pra aparecer e chega assim
do nada sem avisar!

LEANDRA
Estou precisando de uns dados do
projeto que desenvolvi lá em belas
artes que não me liberaram por e-mail,
disseram que tinha que separar e tal.
E aí já viu. Tem uns dois meses já eu
pedindo e nada, aí eu vim.

Jussa não come a pilha mas deixa quieto.

LURDINHA
Venha cá, minha filha, para eu te dar
um abraço que eu também sinto saudade.

Leandra anda até a tia que a olha analisando.

LURDINHA
Está com uma cara desbotada minha

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18.

filha, precisa pegar um solzinho. Você


ta comendo direito? Tô te achando mais
magra.
(séria)
Leandra, você precisa se cuidar minha
filha!

Leandra ignora os comentários de Lurdinha, lhe dá um beijo na


testa e se abaixa para a tia beijar seu olho. Cau começa a
cortar as cebolas.

LURDINHA
Aproveite que ta em pé e pegue logo
uns copos aí no armário e uma cerveja
no congelador que agora eu que tô com
sede.

CAU
Aí eu vi! Chegue chegando, Lê, bote
essa cerveja aí para a gente que eu
não aguento mais chorar com essas
cebolas.

LEANDRA
Pera que to me mijando desde o
aeroporto.

LURDINHA
a metade da cebola você corta não
precisa cortar não, pode picar.
(apontando para um mini triturador
de tempero no escorredor de prato)
pegue esse treco que pica rapidinho.

Leandra sai apertada para o banheiro. Cau pega o mini


triturador no escorredor e começa a usá-lo. Ao terminar, Cau
arruma os temperos separados em cumbucas.

CAU
Tá boa a quantidade tia?

Cau mostra os temperos cortados. Lurdinha olha de longe


fazendo uma análise "severa", assente que sim rindo. Cau
limpa a bancada, bota na pia a tábua, a faca e o cortador de
cebola para Binho lavar e vai no quintal jogar as cascas e
raízes na composteira. Leandra volta para a cozinha meio
perdida, procura os copos. Jussa aponta a direção dos copos
para Leandra que os pega, pega uma garrafa de cerveja no
congelador, olha em volta, pega mais uma garrafa, serve a
todos e se senta à mesa, Leandra deixa as garrafas de cerveja
em cima da mesa.

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19.

CAU
Aí ó, já cortei tudo e Binho com essa
mão mole lavando os pratos, nem pegou
no camarão ainda.

Binho olha para a cara de pau de Cau e balança a cabeça como


quem diz que não tem jeito.

CAU
Ó, vou ajudar para não dizer que eu
sou ruim (ri) além do que estou
ficando com fome, não fiquei até tarde
tomando café que nem uns e outros por
aqui.
(toma um gole da cerveja)
Essa cerveja já tava na hora. Ô tia,
na sua caixinha você não tem um
remédio pra cólica não?

LURDINHA
Olha pra minha cara Cau, que cólica
que eu tenho minha filha?

JUSSA
Eu tenho, peraí...

Jussa atravessa o corredor em direção ao quarto, volta com o


celular na mão e um comprimido e dá para Cau. Cau engole o
comprimido com um gole de cerveja, pega o saco com os
camarões enquanto Binho enxuga as mãos em um pano de prato.

BINHO
terminei.

Binho pega uma vasilha para tratar os camarões e ambos sentam-


se à mesa junto com Lurdinha.

LURDINHA
deixa uns 10 inteiros para decorar e o
reto pode tirar a cabeça.

Cau come um camarão a cada quatro que trata. Lurdinha dá um


gole e se serve do restinho da cerveja que tem na garrafa.

LURDINHA
Cuidado para não se furarem!

Jussa olha preocupada para o celular. Leandra observa.

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20.

LEANDRA
(para Jussa)
O que que tá pegando?]

Jussa é pega de surpresa.

JUSSA
(falando pra dentro)
Nada não, Déa ligou e eu não vi.

Jussa disca um número e liga, mas cai direto na caixa.

CAU
E aí, Lê, me conta... como estão as
coisas por lá?

LEANDRA
Ah Cau, fácil não ta, né? Tô dando
graças a Deus que tem rolado esses
freela porque a bolsa até hoje nada.

JUSSA
(tentando aproximação)
Mas que absurdo hein!
(pausa)
Mas ô Lê, antes do bicho pegar avisa,
né? A gente se resolve entre a gente,
ta comendo mosca é?

LEANDRA
Não esquenta Jussa, tá apertado, mas
ta rolando.

CAU
Essa aí come pão seco, mas não cede.

BINHO
(sondando)
E esse almoço assim sem data, tem
algum motivo especial que eu
desconheço? Alguém ta grávida? É tu
Lê?

Cau engasga.

LEANDRA
Endoidou, Binho? Eu mal me sustento
vou botar uma criança no mundo?

Lurdinha interrompe tentando disfarçar insegurança.

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21.

LURDINHA
Deixe de besteira, menino, eu estava
com saudade de vocês, ora essa...
Nunca mais tomei um porre com minhas
meninas! Se eu não chamo, nunca
aparecem. Agora precisa de motivo para
vir me ver?

CAU
Mas que exagero, minha tia, eu tava
aqui semana passada.

BINHO
Já não conhece? tem que tirar 70% da
intensidade de tudo que ela fala. Aqui
Se você dá a mão ela já quer o braço.

JUSSA
Eu nem me abalo mais...

LEANDRA
Eu estar aqui já não é um bom motivo?

BINHO
(fingindo desânimo)
Ah é, você está aqui.

Jussa ri.

LEANDRA
(indignada)
Binho!

Binho ri.

LURDINHA
(continuando como se não tivesse
sido interrompida)
Apareceu depois depois de meses
prometendo!!
(pausa)
Só me vem aqui esse estrupício para
comer. Sorte que ele traz Bruno para
distrair Túlio que ta cada dia mais
abestalhado.
(rindo)
Quase chora um dia desses quando Binho
tava pra levar o menino, vocês
precisavam ver.

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22.

TÚLIO
(off)
Eu to ouvindo viu!!

Bruno ri ao fundo.

LURDINHA
(responde alto)
E é mentira?

BINHO
Mentira não é não que eu tô de prova.
Ele quase arranca o menino do meu colo
pedindo que ele dormisse aqui, pode um
negócio desses? Eles estão precisando
de mais netos, galera. Tão
sobrecarregando o meu menino, vamos
agilizar esse processo aí.

CAU
Nem olhe pra mim, não quero ver homem
passando na minha frente.

JUSSA
Eu nem quero mais falar disso, vocês
sabem o quanto eu quero. Por mim já
tinha mais três correndo por aqui.
(pausa)
Mas não depende só de mim né...

LEANDRA
E como anda a Déa, Jussa?

JUSSA
(ressentida)
Daquele mesmo jeito, né? Maravilhosa
demais salvando o mundo, mas pouco
para em casa.
(desanimada)
Parece que as viagens só aumentam,
daqui a pouco nem reconheço mais ela.
Um dia desses ela abriu a porta de
casa e Mamão latiu achando que a casa
estava sendo invadida. Bota fé?

LEANDRA
Ai, irmã, que barra.

BINHO
Pelo menos ta casada... Continua
transando né...

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23.

CAU
Ai, Binho, vê se cresce, parece
adolescente.

JUSSA
Deixa ele, transo sim, mais que você
pelo visto, uma vez na vida quando ela
pára em casa e olhe lá...

CAU
Não precisa chutar cachorro morto.

BINHO
(provocando)
Já sem ela...

JUSSA
Que sem ela, menino? Deixa de inventar
história. Daqui a pouco tem gente
ouvindo e sua gracinha vira uma
tragédia.

Binho olha fingindo que acredita.

JUSSA
Eu não sou cega, né? Mas não transo
com ninguém.

LURDINHA
(aconselhando)
Jussa, você ta ficando velha pra ficar
dando corda por aí não ta não?

CAU
(botando pilha)
ETAA

JUSSA
(chocada)
Minha tia!!

LURDINHA
Estou só perguntando, ué...
(pausa)
Pra entender... porque você está
Sempre metida em confusão..

JUSSA
Não coma a pilha deles não, minha tia.
Eu sei que eu tenho mel mas não
exagerem, vocês aumentam tudo, deus é

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24.

mais. Com uma família fofoqueira


dessas ninguém precisa de inimigo.

LURDINHA
Ah, não exagere, menina. Não passa
dessa porta, aqui é tudo do seu
sangue.

JUSSA
Eu tô falando a verdade!

LEANDRA
(mudando o tom da conversa)
Mas vocês estão bem?

JUSSA
Bem bem não tamo, né? Rolou uns
estresse, a gente mal tem se visto. Aí
ela começa a desenterrar coisas só pra
mudar de assunto, procurando velhos
culpados para os problemas de agora...
(pausa)
Enfim, ela dormiu uma noite na casa
dos pais antes dessa viagem agora,
disse que não aguentava mais, mas
acalmou, já conversamos, por telefone
pra variar, mas conversamos.
(encerrando o assunto)
Ó deixa quieto, viu. Tá tudo bem já.

LURDINHA
(alarmando)
Oxente, Jussa, teve tudo isso e você
não contou nada?

JUSSA
(irritada)
Eu não já disse que tá tudo bem?

LEANDRA
(tranquila)
Calma, Jussa, é que você nunca fala
seus bo, a gente fica preocupada

JUSSA
(mais calma)
Desculpa.
(pausa)
Tá tudo bem tia, ela volta hoje até,
disse que dependendo da hora dá uma
passada aqui, mas, eu sendo vocês, nem

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25.

me apegaria a isso.

Jussa olha o celular para ver se tem alguma mensagem,mas


nada, coloca o celular na estante.

LURDINHA
Lê, você não quer ir adiantando o
leite de coco não?

LEANDRA
Vixe, será que eu sei fazer?

CAU
Oxente, Lê, até parece que não foi
criada nessa casa.

LEANDRA
Essa era a função de Jussa, eu era
muito pequena, mas não tem segredo né?
Faz quantos?

JUSSA
O segredo é não perder o dedo!

LURDINHA
todos.

Leandra pega três cocos secos e quebra na quina da porta para


o quintal.

LURDINHA
Tem uma pedra boa embaixo da
lavanderia pra tu quebrar em pedaços
menores.

Leandra vai até a lavanderia, pega a pedra, senta no batente


e bate a pedra nos pedaços do coco até ficar em pedaços
menores. Jussa pega um pote e uma faquinha e dá para Leandra
ir colocando o coco seco, deixa do lado da irmã e pega um
pedaço para ficar mastigando. Leandra olha e faz o mesmo e
começa a tirar a carne do coco com a faquinha. Binho olha com
cara de pidão, Leandra joga para ele que pega no ar.

LURDINHA
(reclamando)
Não vai ter para a comida!

Cau fura o dedo com a cabeça de um camarão e sangra um pouco.

CAU
Ai caralho!

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26.

BINHO
(resmungando)
Não adianta nada falar as coisas que
ela não presta atenção mesmo. Me dá
esse dedo aqui.

Cau estende o dedo e Binho morde o dedo de Cau.

BINHO
Vai passar um álcool, que eu termino
aqui.

Cau levanta para lavar o dedo na pia quase derrubando os


camarões, mas Binho segura o pote e ri.

LURDINHA
Fica debaixo da pia minha filha
(para Leandra)
ó você pra não se cortar aí também

Leandra assente. Cau lava a mão e passa o álcool no dedo.


Jussa olha a hora, levanta, desliga a panela de pressão e
coloca embaixo da pia ligada. Som da pressão saindo. Jussa
pega um pano de prato e entrega para Leandra.

JUSSA
Enrole sua mão.

Leandra protege a mão com o pano de prato.

LEANDRA
Valeu!

Jussa pega mais cerveja no congelador e serve todo mundo na


cozinha. Também pega as garrafas vazias em cima da mesa e
coloca todas em um engradado no quintal.

BINHO
Ô, Lê, o pessoal do baba sempre
pergunta por você.

LEANDRA
(nostálgica)
Nossa ainda tá rolando?

BINHO
Religiosamente.

LEANDRA
No Rio nunca rola de jogar.

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27.

LURDINHA
Você precisa se exercitar, passa o dia
na frente do computador, não tem como
isso fazer bem.

BINHO
(empolgado)
Você fica até quando?

LEANDRA
Volto de hoje a oito.

BINHO
Massa, bora comigo essa semana, o
pessoal vai gostar de te ver.
(pausa)
É bom que eles lembram como é que se
joga de verdade

LEANDRA
Vixe.. nem bote tanta pilha neles que
eu tô enferrujada
(rindo)
não sei nem se é bom ir e manchar a
imagem consagrada que eu construí com
tanto esforço.

BINHO
Ixi, tá todo mundo enferrujado, passou
dos trinta os joelhos todos doem.

LEANDRA
(animada)
Bora sim! vai ser bom ver os meninos.

BINHO
(empolgado)
Vai ser massa, eles nem vão acreditar
quando tu aparecer. Dá até pra gente
parar na barraca de Neinha depois, nas
quartas Bruno dorme com Lia.

LEANDRA
Ô saudade daquele pastel lotado de
recheio.

CAU
Porra, assim até eu vou assistir esse
baba.

Ouve-se um barulho de coisas desmoronando na sala. Binho

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28.

assustado dá um pulo em direção à sala. Jussa vai atrás.

LURDINHA
(grita tranquila)
Tudo bem aí??

TÚLIO
(voz off)
Siiiim...
(pausa)
Um pequeno incidente de trabalho mas
nada de mais.

6 06. INT - SALA - DIA

A sala está de cabeça para baixo, almofadas espalhadas


jogadas pelos cantos, brinquedos de madeira e bonecos de
diferentes estilos e tamanhos caídos no chão, aparentando um
grande acampamento de escoteiros em destroços. Por cima
deles, uma estrutura de lençóis e barbantes está caída com um
lado suspenso por um prego na parede. Túlio caído no sofá e
Bruno em pé ao seu lado. Vê-se que Túlio caiu deitado.

BINHO
(repreendendo)
Caramba, pai.

JUSSA
(rindo)
Alguém disse pequeno incidente? Parece
que passou um furacão por aqui.

BRUNO
A gente tava quase terminando a
barraca, pai.

TÚLIO
(calmo)
Está tudo bem, eu não me apoiei
direito, foi só isso, do chão não
passa, né?

Binho olha para um vaso decorativo no chão com um pedaço


quebrado e faz gesto de que deu merda. Túlio faz sinal de
silêncio, cata o pedaço solto, guarda dentro do vaso e o
recoloca na estante escondendo o lado quebrado, como se nada
tivesse acontecido, Jussa dá uma risada abafada.

TÚLIO
(baixinho)
depois eu colo.

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29.

(tom normal)
Vão pra lá para não bagunçarem nosso
acampamento, voltem pra cozinha.

JUSSA
(ressaltando)
Pra não bagunçarem, ouviu, Binho?

Binho contrariado ajuda o pai a se levantar, Jussa ri. Voltam


os dois para a cozinha.

7 07. INT - COZINHA - DIA

Leandra coloca o coco no liquidificador e completa com água.

LURDINHA
Tem água demais aí, pode tirar um
pouco.

Leandra tira um copo de água do liquidificador. Entra Binho e


Jussa. Binho senta para continuar a tratar o camarão..

LURDINHA
Ta bom aí.

BINHO
(emburrado)
Eu me rendo, vocês acham engraçado
porque não é vocês que estão aqui toda
hora.

LURDINHA
(relativizando)
Deixe de exagero, meu filho. Vaso ruim
não quebra, seu pai não sabe ficar
parado, essa briga já é perdida.

LEANDRA
Onde é que tem um pano de prato limpo?

BINHO
Na terceira gaveta do lado esquerdo da
estante

LEANDRA
Pega aí pra mim vá!

BINHO
Agora veja, eu aqui sentado com meus
camarões.

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30.

Jussa pega o pano e joga para Leandra.

JUSSA
Toma, pentelha.

LEANDRA
Também te amo.

JUSSA
A cara nem arde.

BRUNO
(voz off)
Mãe!

Silêncio na cozinha. Binho toma um susto, larga a bacia de


camarão na mesa, demonstra uma alegria misturada com
insegurança, não sabe onde enfiar as mãos. Leandra liga o
liquidificador preenchendo o silêncio com o som dele batendo.
Binho se levanta.

8 08. INT - SALA - DIA

LIA, 30, negra, cabelo volumoso, muito bonita e bem vestida,


está na porta da sala. Ao fundo o som do liquidificador.

LIA
Chame seu pai lá, meu filho.
(para Túlio)
Tudo bem, S. Túlio? Como vai o senhor?
(olhando para a bagunça ao redor)
Parece que estão se divertindo por
aqui.

TÚLIO
Estamos sim, esse menino é minha maior
alegria.
(de má vontade)
Tudo bem, filha? fique à vontade, a
casa é sua.

Binho, meio sem jeito, aparece na sala antes de Bruno chegar


até ele. Túlio se senta no sofá incomodado e finge não
prestar atenção na conversa. Bruno acompanha a conversa dos
pais em silêncio.

BINHO
(acanhado)
Oi, Lia, tudo bem?

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31.

LIA
(tranquila)
Tudo bem sim, desculpa aparecer sem
avisar, a mochila dele da escola ficou
lá em casa, estava de saída,
aproveitei para deixar logo aqui.

BINHO
ah, entendi, obrigado.
(pausa)
Não quer ficar para almoçar? vai ter
aquela comida de mainha que tu gosta.

Túlio escuta a conversa incomodado.

LIA
Quero não, Binho, obrigada, tenho um
compromisso agora.

BINHO
Tô até cozinhando hoje?

LIA
(surpresa)
E ela deixou? Parece que as coisas
andam mudadas por aqui então...

BINHO
Pra você ver!

LIA
Bom, dá um beijo em sua mãe por mim,
to meio atrasada, já vou indo tá.

BINHO
Claro, tá certo, obrigada tá?

LIA
Tranquilo, eu que esqueci de entregar.
(pausa)
É, você pensou no que eu te disse?

Túlio observa inculcado.

BINHO
(cabisbaixo)
Tô pensando, tô pensando.

LIA
Beleza. Quando puder conversar você me
avisa.

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32.

(para Bruno)
Vem aqui me dar um beijo, filho.

Bruno dá um beijo na mãe e volta para a brincadeira com o


avô. Lia sorri.

LIA
Até mais, seu Túlio, divirtam-se.

TÚLIO
Até, que Deus lhe acompanhe, minha
filha.

Lia dá um beijo no rosto de Binho e sai. Binho sem jeito olha


para o pai que está discretamente vendo a cena e vê Lia
saindo ao fundo. Baixa a cabeça sem coragem de encarar mais o
pai. Som do liquidificador para. Breve silêncio. Som de
partida do carro de Lia. Túlio procura o olhar do filho
docilmente que está parado na porta olhando para Bruno
perdido em seus pensamentos.

TÚLIO
O que que você tá pensando, meu filho?

BINHO
(sem entender)
Hã?

Túlio faz menção a direção que Lia estava.

BINHO
(fugindo da conversa)
Nada demais não, pai, coisa de Lia.

Túlio contrariado vê que Binho não vai falar, deixa quieto.

TÚLIO
Tá bem meu filho.

Binho entra para guardar a mochila de Bruno em um quarto.


Túlio volta a brincar com Bruno.

TÚLIO
Pega esse barbante ali, Bruno.

Bruno pega o barbante e entrega ao avô que está montando uma


estrutura de tecidos como uma lona de circo.

TÚLIO
Vou te ensinar a fazer um nó de
marinheiro, presta bem atenção tá.

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33.

BRUNO
sim.

Bruno está bem concentrado nas mãos de Túlio enquanto ele


ensina o nó. Binho bota a cara no corredor, assiste à
conversa dos dois e sorri emocionado vendo a conexão de Túlio
com Bruno.

TÚLIO
Chama nó de marinheiro porque são
usados nos barcos há muitos muitos
anos para prender muito bem as cordas
que seguram a vela. Cadê seu barquinho
de madeira?

Bruno olha ao redor, levanta para buscar o barquinho que está


próximo e volta para mostrar a Túlio.

TÚLIO
(segurando o barco)
essas são as velas, lembra?

Bruno assente com a cabeça.

BRUNO
Sim, lembro.

TÚLIO
Se você prestar atenção, vai ver que
com jeito você desfaz elas com
precisão, olha...

Túlio demonstra repetidamente o movimento de fazer e desfazer


o nó e Bruno acompanha animado. Túlio corta outro pedaço do
barbante e dá para Bruno tentar também.

9 09. INT - COZINHA -DIA

Jussa abre a panela de pressão, joga a água na pia, começa a


desfiar a carne com um garfo, prova um pedaço. Lurdinha
levanta, pega um segundo garfo e entrega para Jussa.

LURDINHA
Segure com um e desfie com o outro.

Leandra termina de filtrar o leite. Jussa faz como Lurdinha


explicou.

LEANDRA
(impressionada)
Até hoje isso é, tia?

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34.

LURDINHA
(resignada)
Ah, minha filha, até hoje.

Leandra dá um gole no leite de coco.

JUSSA
Aí tem jeito não... O chá de calcinha
foi pesado. Esse aí acha que a única
mulher no mundo é ela. Finge que
superou mas não engana ninguém.

Binho entra na cozinha e elas fazem silêncio. Leandra faz


menção de jogar o bagaço do coco no lixo.

LURDINHA
O bagaço não é lixo não, menina, bote
num pote que depois vou fazer um
cuscuz de tapioca.

Leandra assente.

BINHO
(sério)
Não precisam disfarçar, eu sei que
tavam falando de mim.

Binho senta na mesa de novo e volta a tratar os camarões.

CAU
(irônica)
Hmmm falou o centro do universo.

BINHO
Só não sou idiota.

JUSSA
(provocando)
Ah né não? pois parece. Até hoje
lambendo o chão pra essa daí passar.

Binho para de tratar os camarões para assistir as primas o


provocando.

LURDINHA
(tom de sermão)
Ô Jussiara, segura essa língua dentro
da boca.

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35.

CAU
(irônica)
É, Jussa, deixa ele sofrer em paz. Se
ele quer lamber quem é tu pra se
meter?

Cau ri.

JUSSA
Não está mais aqui quem falou!

BINHO
(sem paciência)
Ha ha ha, engraçadão. Já deu? Se
divertiram o suficiente? Cau não
namora com ninguém desde que terminou
com aquele professorzinho otário lá e
ninguém pega no pé dela.

Cau para sem reação. Binho ao terminar a fala já percebe que


falou merda e murcha. Lurdinha olha para Binho o
repreendendo.

JUSSA
(agressiva)
Cala a boca, Binho! Olha o que você tá
dizendo moleque. Perdeu a noção foi?

LEANDRA
(mais baixo)
Ô vei, não fode.

LURDINHA
(apreensiva)
Meu filho...!

CAU
(séria)
Tá de boa, galera, eu devo ter
merecido. Valeu Binho, somos dois
trouxas iguais.
(pausa)
Aproveita vocês duas aí que tão bem
casadas porque do lado de cá é só
ladeira abaixo.

BINHO
(arrependido)
Foi mal, Cau, eu não quis...

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36.

CAU
(interrompendo)
Tá de boa. Relaxa aí.

LEANDRA
Parabéns hein, zé ruela, torta de
climão.

CAU
(cortando)
Trocou a fita? Tá tudo bem, já falei.

Binho vai até a prima e lhe dá uma empurradinha atrás dos


joelhos, quando ela faz que vai cair ele a abraça forte. Cau
relaxa, Binho dá um beijo na testa de Cau e um peteleco na
orelha, Cau resmunga do peteleco, mas dá um sorriso amarelo.
Binho pega mais cerveja na geladeira, serve todo mundo e
coloca os cascos no engradado no quintal.

BINHO
(sussurrando para Cau)
Eu te amo.

CAU
(sussurando)
Eu nãao...

Binho e Cau riem.

JUSSA
Já que ela veio a tona, como é que tá
aquela história da mudança?

BINHO
(incomodado)
Não era pra mudar a fita?

LURDINHA
(diminuindo o tom de voz)
Fala baixo.

LEANDRA
Que mudança?

LURDINHA
(falando baixo)
Lia recebeu uma proposta de emprego em
outra cidade.

Binho fica incomodado, não sabe lidar com o assunto, mas


permanece calado.

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37.

LEANDRA
(falando mais baixo porém sem
entender porque)
Que cidade? e Bruno?

Lurdinha aponta para a sala.

LURDINHA
(sussurrando)
Ele ainda não sabe.

JUSSA
(com desdém)
Lá em Minas.

Lurdinha gesticula para Jussa baixar o tom.

LURDINHA
(tom baixo)
Pois é, essa é a questão: Bruno.

LEANDRA
(tom baixo)
Mas gente, uma mudança assim não vai
ser ruim pro menino?

Cau olha pra Leandra fazendo sinal que não fale no assunto.
Leandra percebe e tenta reverter a situação.

LEANDRA
(tom baixo)
Digo, ficar longe da família, ele não
é muito apegado a vocês?

CAU
(tom baixo)
Ôo, vocês tem que falar logo pro meu
tio!

BINHO
(incomodado tom baixo)
Eu vou falar quando decidirmos o que
faremos.

LURDINHA
(sussurrando)
Túlio que não odeia ninguém já não
quer ver a cara dela, imagina quando
souber.
(sarcástica)
Coitada.

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38.

Jussa ri abafado. Binho perde a paciência.

BINHO
(alto e irritado)
Gente, isso quem decide sou eu e ela
que somos os pais beleza? Obrigado
pela preocupação de vocês, mas estamos
resolvendo isso.

JUSSA
(debochando)
Ou seja, ela vai resolver.

LURDINHA
(para Jussa)
Deixa ele.
(para Binho)
Eu só quero que vocês pensem nele na
hora de tomar a decisão.

CAU
Calma, gente.

BINHO
(sério)
É só nisso que eu penso, mãe.

Silêncio na cozinha.

10 10. INT - SALA - DIA

Bruno e Túlio estão dentro de uma grande barraca feita por


lençóis no meio da sala. A barraca tem diversos acessórios e
penduricalhos simulando um acampamento real: mapas,
ferramentas, binoculo, lanterna... Bruno, deitado em um
tapete entre almofadas e bonecos, tem um lenço de escoteiro
envolta do pescoço, observa atentamente em silêncio Túlio que
está terminando de prender grampos de segurança fazendo
desenho como constelações no tecido que cobre a barraca.

BRUNO
(atento)
O que você está fazendo?

TÚLIO
(concentrado)
O céu.

Bruno observa sem entender.

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39.

TÚLIO
Estou desenhando as estrelas que tem
no céu, as constelações, Bruneco.

BRUNO
(estranhando)
Nunca vi um céu assim.

TÚLIO
(pacientemente)
Não é o céu de verdade,é um desenho do
céu, com as estrelas. Aqui em Salvador
é uma cidade com tanta luz que a gente
não consegue ver tantas estrelas à
noite, mas elas estão lá.

BRUNO
Se não dá pra ver como a gente sabe
que elas não foram embora?

TÚLIO
Porque quando estamos em lugares com
menos luz a gente consegue ver elas.

BRUNO
Tipo no quarto na hora de dormir?

TÚLIO
Não, tipo em cidade pequena, em um
barco no meio do mar, ou em uma mata,
onde não tem tanta luz elétrica, ruas
iluminadas... O céu fica mais escuro e
as estrelas aparecem mais.

Bruno reflete, não entende totalmente, mas consegue


acompanhar o que o avô diz.

TÚLIO
Pera ainda.

Túlio sai da barraca e joga um manto por cima escurecendo a


barraca por dentro, entra de novo, deita do lado de Bruno e
liga uma lanterna.

TÚLIO
Vou te explicar aqui para quando a
gente for na roça de seu tio Joaquim
eu vou te mostrar o que dá pra ver a
olho nu.

Bruno ri.

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40.

BRUNO
(curioso)
Olho nu?

TÚLIO
Quis dizer que dá pra ver com o olho
sem precisar de um equipamento como um
telescópio ou uma lente de aumento.

Túlio aponta a primeira constelação com uma lanterna e Bruno


observa.

TÚLIO
Essas cinco estrelas aqui formam o
cruzeiro do sul, ela tem uma forma de
cruz ta vendo?

BRUNO
sim.

TÚLIO
Ela serve até hoje como referência
para navegantes se localizarem pelo
céu à noite.

Bruno fica reflexivo.

TÚLIO
Segura aqui.

Túlio entrega a lanterna para Bruno segurar.

TÚLIO
A ponta mais longa da cruz indica para
onde é o sul.

BRUNO
Vô, você sabia que quando você tá
roncando você não está sonhando?

TÚLIO
E é, é?

BRUNO
(sério)
É.
(pausa)
Você que ronca muito sonha quando?

Túlio ri. Bruno observa o céu feito por Túlio.

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41.

TÚLIO
E eu ronco tanto assim?

BRUNO
(sério)
Ronca.

TÚLIO
Eu sonho de vez em quando, mas tem
muito sonho que não me lembro. E você?
Você não ronca.

BRUNO
Não ronco.

TÚLIO
Como você tem certeza se você está
dormindo?

BRUNO
Eu sei. Quem ronca é velho. Ou meu pai
as vezes.
(pausa)
Você acabou de dizer que eu não
ronco!!

TÚLIO
Eu posso ter mentido!

BRUNO
Você não mente.
(reflexivo)
Ou você mentiu quando disse isso?

Túlio ri.

TÚLIO
Você está certo, não menti.

BRUNO
(convencido)
Sabia.

TÚLIO
E sonhar, você sonha?

BRUNO
Sonho. Sonho muito.
(pausa)
Todo mundo sonha, mas tem gente que
não lembra.

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42.

TÚLIO
Sim, é verdade, eu sonho, mas nem
sempre me lembro.

BRUNO
Minha mãe me explicou que as crianças
começam a saber que sonho é sonho com
uns cinco anos. Já tem quase um ano
que eu sonho. Eu já sonho bastante.

TÚLIO
Ah é? e você não vai me contar com o
que você sonha?

BRUNO
É muita coisa. Precisaria de uma vida
inteira para contar tudo que já sonho.

Túlio ri.

TÚLIO
Vamos aos poucos. Me conta um sonho
que você sonhou essa semana?

BRUNO
Qualquer um?

TÚLIO
Sim, pode escolher.

Bruno para e pensar.

BRUNO
Sonhei que minha avó fazia um bolo de
aniversário bem grande de morango e
que pra eu comer eu precisava sentar
nele de tão grande.
(pausa)
Aí eu tava sentado começando a comer e
meu pai chegava. Para ele não me ver
eu deitava dentro do bolo de
aniversário e aí eu via que Lucas
estava comigo dentro do bolo.

TÚLIO
E quem é Lucas?

BRUNO
Meu colega.

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43.

TÚLIO
Da escola?

BRUNO
Sim.

TÚLIO
Hmmmm, quero conhecê-lo.

BRUNO
(reflete)
Tá bom.
(pausa)
Ele pode vir aqui?

TÚLIO
Claro. Ele gosta de acampar?

BRUNO
(pensativo)
Acho que gosta. Nunca perguntei.

TÚLIO
A gente pode apresentar o nosso
acampamento para ele.

BRUNO
(sério)
Vou falar com a mãe dele.

Túlio ri. Bruno sorri feliz com a ideia. Breve silêncio dos
dois curtindo o momento.

TÚLIO
E era seu aniversário no sonho?

BRUNO
Não.
(pausa)
Meu aniversário eu sonhei outro dia.
Mas era um bolo de morango menor,
quase normal, e minha mãe disse que
meu aniversário ainda falta 6 sábados,
to contando.

Túlio se emociona.

TÚLIO
É verdade, já já chega. Você está
ficando grande rápido, hein?

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44.

Bruno fica em dúvida.

TÚLIO
Você gosta de bolo de morango, né?

BRUNO
Sim, é meu preferido.

TÚLIO
É o de sua avó também.

BRUNO
(convicto)
É porque é o melhor mesmo.

11 11. INT - COZINHA - DIA

Jussa tenta ligar de novo, mas dá desligado. Cau tenta


quebrar o gelo.

CAU
Minha tia, que novidade é essa máquina
de cortar cebola? desde quando a
senhora usa isso?

LURDINHA
Ah menina, desde agora, comprei numa
loja lá naquele shopping esquisito...
pituba sei lá o que center, um
daqueles três lá.

BINHO
(estranhando)
Oxente, minha mãe, e a senhora perdeu
o que dos lados de lá?
(fala todo se bulindo)
Ama dizer que tudo que precisa
encontra a dois quarteirões de casa.
(pausa)
Não quer ir nem até Roma quanto
mais...

Lurdinha é pega de surpresa e fica sem resposta. Túlio entra


na cozinha olhando para Lurdinha.

TÚLIO
Eu precisei ir ao contador e sua mãe
me acompanhou.

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45.

LURDINHA
(tensa tentando disfarçar)
Isso. Só que demorou muito, Deus me
livre, lugar desagradável, fui dar uma
volta e achei essas lojas que vende
esses treco de plástico.

CAU
É ótimo, vou comprar um desses pra
mim. Foi caro?

LURDINHA
Que nada, eu te dou um, a gente vai lá
de novo semana que vem.

BINHO
(estranhando)
E esse contador não sempre veio até
aqui?

Breve silêncio. Lurdinha demora para responder.

LURDINHA
É, meu filho. mas parece que agora só
anda sem tempo, ninguém tem mais tempo
pra nada, ainda mais quando é pra
velho.

JUSSA
(resolutiva)
O contador não é Érico? Eu vou ligar
pra ele! Quando quer um favor é cheio
de tempo, cafezinho, conversa fiada,
pra depois fazer corpo mole com vocês,
nem pensar!

LURDINHA
(apreensiva)
Não é pra tanto minha filha, ele é
sempre muito atencioso, ele deve estar
atarefado esses dias, não ligue não,
não há precisão.

JUSSA
(desconfiada)
Ok, mas quando ele passar pela
secretaria eu vou dar uma chamada
nele.

LURDINHA
Deixa de besteira Jussa, vai parecer

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46.

que eu me queixei dele pra você, não é


bonito.

Túlio pega um suco na geladeira e dois copos, faz carinho em


Lurdinha que está disfarçando sua apreensão e senta à mesa.
Túlio serve os dois copos.

TÚLIO
Vem, Bruneco! tomar o suco.

Ouve-se Bruno chegando.

CAU
Tio, vou te passar uma lista de lãs
para tu separar pra mim que eu tô
querendo fazer uma atividade lá na
escola com as crianças, tá bem?
(pausa)
Essa semana foi punk, a mãe de Caio
foi hospitalizada porque o marido
espancou ela, o menino chegou na
escola super agressivo, brigou com
dois colegas. Tá foda.
(pausa)
Se eu te passar a lista amanhã você
separa para eu buscar na quarta?

Pequeno silêncio.

TÚLIO
Claro, minha filha, até terça se
quiser.

CAU
Deixa para a quarta mesmo, terça não
consigo.
(animada)
Voltei para a capoeira.

BINHO
(surpreso)
Voltou? Poxa, nem me falou. Como tá
mestre Formiga? Tô sentindo a maior
falta, mas agora tá impossível. Não
tenho mais hora pra sair do trampo, é
material entrando e saindo o dia todo,
mal vejo a luz do sol preso naquele
almoxarifado.

CAU
Tô tentando, né? Tem duas semanas que

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47.

tô indo. Ele perguntou notícias suas.

Binho sorri feliz com a lembrança.

BINHO
Manda um abraço, quero voltar com
Bruno lá. Já tá na hora dele começar.

CAU
(entusiasmada para Bruno)
Vai ser massa hein Bruneco, a gente
fazendo capoeira juntos?

BRUNO
Sim! Eu quero!

Cau pega mais cerveja no congelador.

CAU
Eta, tá cu de foca essa aqui, já tá na
hora de descer elas.

JUSSA
Cuidado para não empedrar!

Cau sopra cuidadosamente o fundo da garrafa antes de abrir,


serve todo mundo, deixa os cascos no quintal. Cau volta à
cozinha e desce as cervejas para a parte de baixo da
geladeira. Binho pega as sobras dos camarões para jogar no
lixo, vê que o lixo da pia está cheio, troca o saco e coloca
o lixo no quintal e volta para a cozinha.

LEANDRA
E aí, tio, como anda o armarinho?

TÚLIO
Bem, Lê, daquele mesmo jeito. Parece
que as pessoas continuam costurando
mesmo com tanta tecnologia.
(ri)
Só não é a mesma alegria porque não
tem sua tia lá do meu lado o tempo
todo.

Lurdinha sorri.

LEANDRA
Você não tá mais lá, tia?

LURDINHA
Seu tio está exagerando, eu tenho

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48.

ficado menos, de tarde tô ficando com


Bruno quando ele chega da escola
(para Bruno)
né, meu amor?

BRUNO
Sim.

Binho pega uma frigideira para refogar o camarão.

TÚLIO
Mas de qualquer maneira tenho pensado
em fechar a loja qualquer dia
desses...

Lurdinha reage apreensiva com o caminho que a conversa pode


tomar.

JUSSA
Oxente, meu tio? Você querendo deixar
de trabalhar?

Binho acende o fogo e coloca a frigideira.

CAU
(com estranhamento)
É, tio, que novidade é essa?

BINHO
(preocupado)
Tá tudo bem, pai? Você não comentou
nada comigo.

JUSSA
Vocês estão meios esquisitos hein.

Lurdinha bebe apreensiva e Túlio faz sinal que vai falar.

TÚLIO
(sério)
Sua tia está enrolando para falar
então eu mesmo digo.

BINHO
(apreensivo)
Falar o que gente? O que que ta
pegando aqui?

Binho desliga e chega mais perto da mesa. Jussa para de


desfiar a carne e senta à mesa.

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49.

LURDINHA
(apreensiva)
Minha filha, mexe esse arroz para não
grudar.

CAU
(séria)
Nem liguei ainda, tia, não muda de
assunto não, desembucha aí o que que
tá pegando.

Lurdinha hesita, está muito nervosa. Túlio toma a frente, com


serenidade toca os joelhos da esposa para tranquilizá-la.

TÚLIO
A tia de vocês não vinha se sentindo
bem, com muitas dores de cabeça, então
fomos ao médico e ele passou uns
exames, por isso que fomos lá no
centro empresarial.
(pausa)
Lurdinha ta perdendo gradualmente a
visão.

Silêncio na cozinha. Bruno ri. Leandra observa Bruno e a


reação dos demais. Jussa fica nervosa. Cau começa uma frase
sem coragem e é interrompida por Bruno.

CAU
(apreensiva)
Mas tia...

BRUNO
O que que é isso, vó?

LURDINHA
(tentando manter a calma)
A vovó vai ficar cega meu bem.

JUSSA
(falando sozinha com raiva)
Puta merda.

BRUNO
E como você vai fazer nosso almoço?

Lurdinha toma ar para respirar, mas Túlio se antecipa.

TÚLIO
(tentando demonstrar entusiasmo)
Eu e você vamos fazer Bruno, o que

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50.

acha?

BRUNO
Eeeu não sei fazer!

Bruno não entende bem e perde o interesse no assunto, se


distrai com um resto de espuma do suco no copo.

CAU
(ansiosa)
Ai meu deus do céu, minha tia, mas é o
que exatamente? como é o tratamento?

JUSSA
(pragmática)
É gente, explica direito, tem tanta
coisa que se faz hoje em dia, que
desânimo é esse? Déa conhece os
melhores cirurgiões do Brasil.

LURDINHA
(interrompe seca)
Não tem muito o que fazer não, meus
amores.

TÚLIO
(calmo)
Operação é muito delicado.

Lurdinha está muito tensa e deixa uma lágrima cair, mas


enxuga rápido sem ninguém ver.

LEANDRA
Eu já tentei conversar com ela, dei
uma pesquisada em cima do que vocês me
passaram e tem uns tratamentos
alternativos...

BINHO
(interrompendo indignado)
Você já sabia?
(para Lurdinha)
Por que ela já sabia e eu não?

Lurdinha não encara o filho.

CAU
(tentando acalmá-lo)
Calma, Binho, tá doido é?

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51.

LEANDRA
Eu sabia porque eu não sou escandalosa
que nem vocês. Estava tentando ajudar.

CAU
(perde a paciência)
Ah, não fode né, Lê? É fácil não ser
escandalosa de longe.

JUSSA
(indignada)
E eu? A gente ta aqui todo dia, vocês
de segredinho e agora eu sou
escandalosa que não sei lidar com a
situação?!

TÚLIO
(sermão impaciente)
Pelo visto não sabe mesmo! Vocês
bateram a cabeça na parede foi? Isso
não é sobre vocês não, deixem de
maluquice, parem de cobrar qualquer
coisa no momento que sua mãe está
prestes a ficar cega! Era só o que me
faltava.

Todos ficam em silêncio.

JUSSA
Desculpa, tia. Olha, vou conversar com
Paulla, ela com certeza vai saber algo
que a gente possa fazer, ela conhece
muita gente boa, acompanha as
pesquisas mais avançadas, vou ligar
pra ela aqui.

Lurdinha assente com a cabeça resiliente, se levanta com


calma e para na porta dos fundos olhando para o quintal.

TÚLIO
Não ligue agora, vai assustar a menina
por telefone sem necessidade.

JUSSA
(atordoada)
nem adianta, ela ta sem sinal
(para Leandra)
Que tratamento é esse que você
pesquisou, Lê?

Binho está atônito com todas as informações e não consegue

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52.

participar da conversa.

LEANDRA
Eu não entendo muito bem dessas
coisas, mas anotei tudo e mandei pro
meu tio, o importante é que pessoas já
conseguiram estagnar o processo da
perda.

JUSSA
(elétrica)
Tá vendo aí, tia? Vamos com calma, vai
dar tudo certo.

Binho anda pela cozinha e começa a chorar discretamente.

TÚLIO
(paciente)
O médico não acredita muito nisso que
a Lê mandou, mas vamos avaliar com
calma né, meu bem? Podemos ir em
outros especialistas também...

LURDINHA
(sem segurança)
Sim, vamos ver...

TÚLIO
(tentando mudar o clima da
conversa)
Bom, notícia dada.

Túlio levanta e toca no ombro de Lurdinha afetuosamente.

TÚLIO
Tá mais calma, amor? Olha que família
barraqueira que você criou!

Lurdinha sorri ainda um pouco nervosa.

LURDINHA
(entre um riso e um choro)
Agora a culpa é minha deles terem
saído assim?!

Cau, Leandra e Jussa que estão apreensivas dão um sorriso.


Breve silêncio. Lurdinha toma o restante de cerveja que está
em seu copo.

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53.

JUSSA
(tentando transparecer calma)
Eu vou procurar uma casa aqui no
bairro pra ficar mais perto, tá?

LURDINHA
(segura)
Tá louca, Jussa? Você demorou um
tempão construindo sua casa do jeito
que você queria.
(tom de sermão)
Olha, eu não vou ficar incapacitada,
galera, vamos com calma aí. Eu amo
vocês por perto, mas pera aí, todo
mundo precisa seguir com suas vidas.

JUSSA
(acalmando)
Mas, tia, não dá pra lidar como se
nada fosse mudar, eu quero estar mais
perto pra qualquer coisa, eu demoro
meia hora pra chegar aqui, imagina
numa necessidade.

LEANDRA
(mansa)
É, tia, pode ser bom.

LURDINHA
(incomodada)
Não vai ter necessidade, Jussa, vivi
minha vida inteira com vocês vivendo a
de vocês, vocês são jovens, não tem
nada que mudar os planos assim.

JUSSA
Não vou fazer nada por impulso, ok?
vamos vendo com calma, é bom que eu
vejo mais o Bruno também.

Jussa busca apoio no olhar de Túlio.

JUSSA
A gente vai vendo juntas, beleza?

Túlio olha pra Lurdinha tentando acalmá-la, para que ela


aceite o cuidado da família.

LURDINHA
Tá bem, minha filha, a gente vê isso
depois.

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54.

Breve silêncio. Lurdinha dá uma longa respirada e vai se


acalmando. Jussa manda uma mensagem para Déa.

LURDINHA
Ó, pelo que ainda vejo meu copo tá
vazio.

Todos dão uma aliviada. Jussa levanta para pegar uma cerveja,
serve Lurdinha e completa os demais copos.

CAU
E aí, vamos terminar esse almoço? O
mundo não tá acabando, vamos resolver
isso juntos, levanta esse astral aí.

LURDINHA
Isso, minha filha.
(para Leandra)
Bota aquele disco que tu me deu que eu
gosto que aqui não é velório, bora
continuar essa comida que depois que
eu tiver cega alguém vai ter que
cozinhar pra mim e eu não vou querer
comida mais ou menos!

BINHO
Vira essa boca pra lá, mainha!

Leandra levanta para colocar o disco na sala. Lurdinha pega a


mão do filho.

LURDINHA
(conformada)
Ô meu filho, às vezes a vida nos dá
umas rasteiras que não tem jeito,
né?Nem tudo está sob nosso controle, a
gente tem que aprender a aceitar.
(enérgica)
Bora, meu povo, esse almoço sai ou não
sai? Eu sozinha já tinha feito tudo.
Cau está fazendo o que? Nada, né?
Bora, já lavou o arroz? Coloque na
panela de barro 6 xícaras de arroz com
um pouco de água.

JUSSA
Não é com o leite de coco?

LURDINHA
O leite vai só depois do arroz quase
cozido.

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55.

Ouve-se o início de um sambinha vindo da sala. Binho perde o


controle e aumenta o choro.

BINHO
(grita chorando)
Desgraça! Puta que pariu.

Binho sai da cozinha e bate a porta de um quarto. Leandra


desliga o som e volta para cozinha. Climão na cozinha, Bruno
se assusta, Lurdinha respira fundo, Túlio se levanta para
seguir Binho, mas Lurdinha faz menção que ele fique. Ela se
levanta e sai da cozinha para ver Binho.

12 12. INT - COZINHA - DIA

Túlio arrasado, Leandra, Cau e Jussa se olham, Bruno ainda


assustado com o grito de Binho.

JUSSA
Vem aqui, Bruneco.

Jussa pega Bruno no colo.

BRUNO
Por que meu pai...

Bruno não consegue completar a frase.

JUSSA
Ele tá com medo, meu bem, mas já vai
passar, a vovó já foi cuidar dele.

BRUNO
Ele tá com medo de que?

JUSSA
É que a vovó tá doente, e a gente não
gosta quando nossa mãe fica doente,
né?

Bruno pensa e assente.

BRUNO
sim.

CAU
(atenciosamente para Bruno)
Foi um susto meu bem, já passa.
(para Túlio)
Tio, explica aí direito o que o médico
falou.

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56.

JUSSA
É rei, dá a real aí pra gente.

13 13. INT - ANTIGO QUARTO DE BINHO - DIA

Essa cena remete à relação de Binho criança com Lurdinha.


Apesar do seu porte físico, Binho parece pequeno e frágil.
Quarto com duas camas de solteiro, um gaveteiro antigo com
porta-retratos com fotos dos primos quando criança e fotos de
Bruno atuais. Um baú em um canto com brinquedos de Bruno ao
redor, encostadas à cama vê-se a bolsa de Jussa, as mochilas
de Bruno e de Leandra. As paredes estão cobertas de desenhos
de Bruno e Túlio.

A luz está apagada, o quarto é iluminado apenas pela luz que


entra da janela. Lurdinha abre a porta devagar e entra
silenciosa no quarto. Binho está sentado na beira de uma das
camas chorando copiosamente. Ela senta-se ao seu lado e o
abraça em silêncio, Binho deita a cabeça no colo da mãe e
chora incessantemente. Vê-se as fotos dos primos quando
criança.

VENDEDOR DE TABOCA
(voz off)
óoolhaa a tabocaa, uma é três, duas é
cinco, olha a tabocaaa.

14 14. INT- COZINHA - DIA

Continuação da cena 13

TÚLIO
O médico explicou que o caso dela não
é tão simples assim.

LEANDRA
E as pesquisas que eu mandei? ali tem
tratamentos que já funcionaram.

TÚLIO
Eu mostrei tudo aquilo que você me
mandou, Lê, mas ele disse que o caso
de sua tia é mais específico. Sua tia
já tem pressão alta, também já não é
mais uma menina. Esse tratamento é
agressivo e sem garantia de sucesso,
que poderia ter muitas consequências
pra ela, que na nossa idade não é
aconselhável.

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57.

JUSSA
(angustiada)
E como ela está agora? Quanto tempo
tem isso? Quanto tempo pra ela perder
a visão?

CAU
(alarmando)
meu deus, olha essa casa cheia de
batente, a gente vai precisar fazer
uma reforma aqui...

Bruno fica incomodado com a conversa, desce do colo de Jussa


e senta no batente do quintal com um pedaço de coco seco na
mão.

TÚLIO
Uns meses, entre idas e vindas com os
exames.
(pausa)
Não foi fácil, vocês bem conhecem a
peça, né? Não suporta ouvir falar em
médico.

CAU
(surpresa)
Meses, tio? E a gente aqui sem saber
de nada? Ô Leandra, que caralho, hein?
Boca miúda da porra, um negócio sério
desses.
(com remorso aponta para Túlio e
Leandra)
Vocês foram irresponsáveis.

LEANDRA
Ó lá. Tava demorando... Minha tia
pediu pra eu esperar, disse que ia
contar assim que tivesse com os exames
prontos. Achei que ia ser rápido, eu
quis contar, ela ficou enrolando, foi
foda segurar sozinha, mas vocês sabem
como ela é incisiva quando quer.

JUSSA
(sarcática)
E tu desobediente quando lhe convém.

LEANDRA
Que diferença isso faz agora?

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58.

JUSSA
toda! poderíamos estar procurando uma
solução!

LEANDRA
Que saco essa tonteação hein, Jussa?
Vocês estão perdendo a linha. Queria
ver se fosse tu, ela apertou minha
mente.

JUSSA
(incisiva)
Contaria na hora, com certeza, não ia
ter meia conversa.

LEANDRA
Ah é, que nem quando teve o acidente
dos nossos pais?

JUSSA
(emputecida)
Você não estava aqui!!! Eu contei na
rodoviária mesmo!

CAU
(tom alto)
Chega vocês duas!
(respira fundo)
Fala mais tio.

Leandra segura o choro. Um breve silêncio.

CAU
Que loucura que virou isso aqui. Puta
merda, hein?

Cau levanta e pega uma água, bebe, enche de novo e entrega


para Leandra beber, Leandra bebe devagar.

JUSSA
(baixinho para Leandra)
Desculpa.

CAU
Conta tio.

TÚLIO
(pacientemente)
O médico explicou que o processo varia
muito o tempo, já começou na verdade.
Precisamos ir acompanhando, depende

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59.

muito de como o corpo vai reagindo.

CAU
E um tratamento natureba? Tipo
acupuntura? Será que não ajuda?

JUSSA
(irônica)
Lá vem...

CAU
Mal não vai fazer...

Bruno acha a palavra engraçada e ri sozinho, olha para a


mesa.

BRUNO
O que é acupuntura, tia?

CAU
É um médico que cura doenças com
agulhas, Bruno.

BRUNO
Que nem as que vovô usa?

CAU
Parecidas, as dele são só para
médicos.

Bruno assente.

BRUNO
E vai botar agulhas na vovó?

CAU
(pacientemente)
É, meu bem, mas com cuidado, sem
machucar, ele sabe o lugar certinho
que tem que botar.
(para Túlio)
Sério, tio, eu vou em um que é muito
bom e não é caro, podemos conversar
com ele.

TÚLIO
Eu pagaria o que fosse, minha filha,
para sua tia não estar passando por
isso.

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60.

CAU
Eu sei, tio, a gente também.

LEANDRA
Cau tem razão, talvez ele consiga
desacelerar o processo pelo menos.

JUSSA
Acho que a gente deve ver outro
médico, não devemos descartar a
cirurgia tão rápido assim.

CAU
Ela não vai topar nem a pau!

TÚLIO
(enfático)
Ela não pode fazer cirurgia. Mesmo que
ela quisesse. Vocês não lembram da
recuperação de quando ela tirou o
apêndice?

JUSSA
Cirurgia não é mais como há 20 anos
atrás, gente. O que que é isso? Quando
ela se der conta já resolveu tudo.

Túlio faz que vai responder, mas desiste. Ficam todos em


silêncio. Leandra faz sinal pra Jussa segurar a onda.

LEANDRA
Tio, a gente tá aqui pro que vocês
decidirem e no que for necessário.

CAU E JUSSA
sim...

BRUNO
Eu também tô aqui, vô!

Túlio sorri.

TÚLIO
Vai me ajudar a cuidar de sua avó,
Bruno?

BRUNO
Vou sim, mas não gosto de agulhas.

CAU
As agulhas só o médico pode mexer, tá?

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61.

Bruno assente com a cabeça.

BRUNO
sim.

TÚLIO
Não sei o que seria de mim sem esse
menino aqui.

Jussa, Leandra e Cau se olham preocupadas.

15 15. INT - COZINHA - DIA

Lurdinha volta para a cozinha, dá uma olhada na comida na


bancada, pega um copo de água e se senta.

TÚLIO
E aí?

LURDINHA
Está tudo bem, ele já vem.

Túlio consente. Lurdinha senta à mesa, Binho entra lento na


cozinha, lava a cara na pia tentando se recompor, enxuga o
rosto com um pano de prato, pega uma cerveja na geladeira.
Jussa levanta e volta a desfiar a carne.

BINHO
Todas bebem?

JUSSA
Macaco quer banana?

Binho, ainda um pouco cabisbaixo, completa os copos vazios,


coloca as garrafas no quintal, e quando passa por Bruno é
questionado pelo filho.

BRUNO
Pai, você xingou.

Binho se abaixa na altura do filho.

BINHO
Foi mesmo, eu errei, desculpa, filho.

BRUNO
Por que você gritou?

Binho senta ao lado de Bruno.

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62.

BINHO
filho, as vezes a gente faz algo mesmo
sabendo que é errado porque a gente
não sabe lidar com o coração. Quando
acontecem sempre acaba machucando os
outros, se eu tivesse sempre xingando
ou gritando isso seria ruim né?

BRUNO
sim.

BINHO
E tem coisas mais sérias como bater em
alguém que não podemos só deixar pra
lá. Eu gritei porque eu fiquei com uma
coisa no coração que não tava cabendo
dentro de mim, a vovó tá doente e isso
me doeu muito e eu não soube falar, tá
errado né? Mas sabe quando você ficava
com sono e não conseguia dormir e aí
ficava irritado? Não era por mal, mas
você não sabia dizer o que incomodava,
não era? E ai a gente foi descobrindo
juntos..

BRUNO
Sim.

BINHO
A vovó foi no quarto me ajudar a
entender o que eu tava sentindo.
(pausa)
Não quis te assustar filho, as vezes
eu também fico criança.

BRUNO
Tudo bem pai, eu já me desassustei.

Binho dá a mão para Bruno bater de volta como um comprimento.


Binho pisca para Bruno que pisca com os dois olhos de volta.
Binho dá um beijo no olho de Bruno, se levanta, pega os
camarões na mesa, vai em direção ao fogão, tendo a ação
interrompida por Lurdinha.

LURDINHA
Deixa eu provar esse camarão aí, meu
filho.

BINHO
E desde quando você precisa provar
camarão?

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63.

LURDINHA
Tu tá negando um camarão para sua mãe,
menino?

BINHO
Ah, diga isso, que tu tá roubando
comida antes de ficar pronta, como
você sempre reclamou.

LURDINHA
Agora veja, ousadia nunca lhe faltou,
né? Me dê logo três aí para dar um
salgadinho na boca.

Binho dá quatro camarões para a mãe, come um, e vai para o


fogão para refogá-lo. Binho pega o dendê e a cebola picada.

BINHO
Tá boa essa quantidade aqui?

LURDINHA
Pegue a metade e deixe a metade para
fritar a carne, mas frite a carne
antes!

JUSSA
Opa! Tô quase terminando aqui.

Cau despeja o arroz a panela de barro, som dos grãos caindo.


Cau liga o fogo enquanto Binho espera Jussa terminar.

JUSSA
Pronto, toma aqui.

Jussa entrega a tábua com a carne desfiada para Binho. Binho


refoga a cebola com a carne. Os sons da comida na panela
preenchem o ambiente. Enquanto pega um pirex para reservar a
carne, Jussa rouba um pouco ainda na panela. Cau dá um tapa
na mão de Jussa que quase derruba tudo.

JUSSA
Óo.. quase cai no chão.

CAU
Alguém me passa o leite de coco?

Leandra levanta e entrega a jarra com o leite de coco, Cau


deixa ao lado da panela. Binho separa a carne que está
dourada, prova um pouco, gosta e começa a refogar o camarão
no dendê. Lurdinha vai inspecionar o fogão e rouba um pouco
de carne também. Cau ri.

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64.

JUSSA
(provocativa)
Vai dar um tapa em minha tia também,
Cau?

LURDINHA
(rindo)
Ela é doida, mas tem juízo.

CAU
Ela pode.
(pausa)
Binho, passa o olho aí rapidinho que
preciso mijar.

Cau sai em direção ao banheiro.

16 16. INT - BANHEIRO - DIA

Banheiro estreito, azulejos florais, pouca coisa sob a pia,


um espelho antigo na parede. Cau senta no vaso e começa a
fazer xixi, logo depois Jussa entra sem bater.

CAU
Aff tô jorrando sangue.

JUSSA
Me dê que eu lavo.

Cau entrega seu coletor para Jussa que lava na pia.

JUSSA
Como é que cabia nós todos nesse
banheiro apertado, hein?

CAU
(sorrindo)
Mágica de Dona Lurdinha.

JUSSA
E você ainda conseguiu espaço pra cair
e quebrar o dente.

CAU
Noooossa, e eu achei que ia ficar
banguela pra sempre. Só saia nas fotos
com aquele sorriso amarelo sem abrir a
boca.

As duas riem. Jussa devolve o coletor a Cau que se levanta do


vaso e agacha para encaixá-lo. Enquanto Cau lava as mãos,

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65.

Jussa faz xixi, Cau olha os dentes no espelho.

CAU
Às vezes até esqueço que ele é
remendado.

Cau lava o rosto e refaz a arrumação do cabelo com os


grampos.

CAU
(com um grampo entre os dentes)
E quando tu botou chiclete no cabelo
de Binho e a gente tentou cortar só o
pedaço...

JUSSA
Nossa, ele ficou com um buraco na
cabeça, coitado. Minha tia me deu uma
broooonca e esse menino choraaava...
(pausa)
Até hoje eu não sei o que era pior: se
era ela brigando ou ele chorando do
meu lado.

CAU
logo ele, todo apegado a esse cabelo.

JUSSA
É, né? Mas a ideia de cortar fora foi
sua, eu ainda acho que se a gente
tivesse insistido o chiclete saia.

CAU
Saía o que, vei? A gente gastou meia
garrafa de óleo na cabeça do menino e
nada.

JUSSA
Nossa, ele pingava óleo. Mas minha tia
não aliviou pro meu lado não, ficamos
nós dois carecas. A diferença era que
eu não tava nem aí, já não gostava
muito de pentear o cabelo, foi até
bom, depois ela queria que eu deixasse
o cabelo crescer e quem não queria era
eu.

Leandra entra no banheiro.

LEANDRA
E ai, como é que é? Tão fazendo sabão

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66.

antes do almoço é?

CAU
(provocativa)
Tá com cíumes é?

JUSSA
ê bexiga apertada.. vai mijar de novo?

LEANDRA
Já não sabe?

Jussa ri, se levanta e Leandra senta rápido.

CAU
Eu se arrependeu de ter raspado sua
cabeça isso sim, e não queria admitir.

JUSSA
(para Leandra)
tu chega a lembrar quando a gente
grudou chiclete na cabeça de Binho?

Jussa lava as mãos, enxuga no short de Cau que segue


arrumando o cabelo.

LEANDRA
Leeembro!
(refletindo)
Foi a única época que vi Binho com
cabelo raspado...

JUSSA
por ele ficava com o chiclete mesmo.

Cau e Leandra riem. Leandra se levanta deixando o banheiro


intransitável. As três se apertam em frente ao espelho.

LEANDRA
(para Jussa)
Estou vendo um fio branco em você
hein?

JUSSA
Um? Então olhe direito que tem um
monte.

CAU
(para Leandra)
Você não tem não?

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67.

LEANDRA
Até onde eu sei não.

Cau abre o cabelo para mostrar os dela.

CAU
Olhem aqui.

Jussa e Leandra se aproximam ainda mais.

JUSSA
Você tem mais do que eu.

CAU
Ó. Vou cuidar do meu arroz, vai que
Binho resolve se vingar logo hoje?!

Cau coloca um último grampo no cabelo, abre a porta sai em


direção a cozinha, Jussa fica encostada na porta do banheiro
esperando Leandra.

17 17. INT - COZINHA -DIA

Cau entra na cozinha e volta para panela de arroz.

CAU
(para Binho)
Não deixou meu arroz queimar não,né?

BINHO
Mas é folgada mesmo.

Cau ri.

LURDINHA
Já pode por o leite de coco.

Cau assente e coloca o leite de coco na panela. Jussa e


Leandra entram na cozinha. A campainha toca, Déa, 33, negra,
calça jeans e camisa social, mala de rodinhas e uma mochila
nas costas, está na porta.

JUSSA
Quem é agora?

DÉA
(voz off)
Tem comida ainda aí?

Jussa levanta animada.

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68.

JUSSA
Ó ela! tão com moral, hein?

Jussa vai até a porta.

JUSSA
(voz off)
Oi, amor, que bom que conseguiu
chegar, o pessoal já perguntou de
você.
(pausa)
Como foi a viagem?

18 18. INT - SALA/CORREDOR - DIA

Jussa pega a mala de rodinha da mão de Déa. É a primeira vez


que elas se vêem depois da briga, Jussa faz um movimento de
aproximação para um abraço, mas para no meio sem jeito, Déa
abraça forte Jussa que solta a mala e relaxa no abraço.

DÉA
Tô bem cansada, mas o saldo é
positivo, gostaram muito da minha
pesquisa, acho que tem chance de
conseguirmos financiamento. Cadê sua
tia? Faz tempo que não a vejo!

Jussa aponta pra cozinha e abre a porta do quarto para


guardar a mala.

19 19. INT - COZINHA- DIA

Déa entra na cozinha seguida por Jussa.

DÉA
Pelo cheiro cheguei na hora certa!

Leandra levanta para abraçar Déa.

LEANDRA
(brincando)
Chegar essa hora é fácil! Queria ver
quebrar uns cocos aqui no chão!

DÉA
Ninguém me chamou pra quebrar coco se
não eu vinha!

JUSSA
(para Déa)
Melhor coisa que você fez foi chegar

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69.

só agora.

Déa não entende o comentário, mas deixa quieto.

DÉA
(animada)
Mulheer, quanto tempo que não lhe
vejo, não sabia que estava por aqui!
Como estão as coisas por lá? Como tá
Lucas? A gente tá até querendo ir
visitar vocês.
(para Jussa)
Né, meu bem?

JUSSA
É sim, basta ter um espaço na sua
agenda.

Déa sente a provocação e murcha.

LEANDRA
Cheguei agorinha. Ele está bem, acabou
de fechar um contrato mais longo numa
agência de bacana, vai até botar o
carro pra dar um grau pra ver se vende
melhor.

JUSSA
(preocupada)
Vão vender o carro?

LEANDRA
Não tá valendo mais à pena manter não,
qualquer coisinha é 300 conto. Deus é
pai.

DÉA
É bom. Pra você é tudo meio perto, né?

LEANDRA
É sim, pra ele que vai ser um pouco
pior, que essa agência é quase na zona
sul. Mas ele mesmo tá achando melhor
vender.

DÉA
Pena que Lucas não veio junto, tempo
que não nos vemos, mas garanto que
essa visita não vai demorar de
acontecer.
(procurando Bruno)

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70.

Cadê meu parceiro?

Bruno aparece na porta do quintal com a mão para cima e vai


até Déa que se abaixa para bater na mão dele. Bruno conta
algo em seu ouvido, Déa presta atenção e sorri, Bruno sorri
também.

LEANDRA
A gente preferiu economizar agora para
vermos dele vir no natal com mais
tempo.

LURDINHA
Que benção! Nem me lembro mais a cara
desse menino.

LEANDRA
Mas tia, eu sempre mando foto.

LURDINHA
Não é a mesma coisa né, Lê?
(para Déa)
Minha filha, o pé ta carregado de
jabuticaba que tu gosta.

TÚLIO
E ainda tem aquela cachacinha que Cau
trouxe da chapada.

DÉA
Opaaa, que delícia, vou fazer uma
caipirinha pra gente

TÚLIO
Agora falou a minha língua.

CAU
Ainda? Já tem é tempo isso.

Déa vai ao quintal.

TÚLIO
Pra você ver, mal to bebendo, minha
filha, aqui o regime é pesado, eu só
obedeço.

BINHO
Tô bem vendo hein, pai.

LURDINHA
Deixe ele fazer o drama dele. Quem não

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71.

o conhece que o compre. Eu bem sei


quem era ele na segunda-feira.

TÚLIO
Ave Maria Lurdes! Quantos anos tem
isso?
(para Binho)
Hoje é um dia especial, meu filho.

BINHO
Não está mais aqui quem falou.
(para Lurdinha)
Pelo o que eu sei a senhora não ficava
para trás não!

JUSSA
Não mesmo! Dizem por aí que a festa
foi proibida porque D. Lurdinha não
tinha limites!
(pausa)
Levanta os copos todo mundo pra eu
limpar aqui.

LURDINHA
(orgulhosa)
Essa rua ficava era pequena.

Todos que estão à mesa levantam os copos. Jussa passa um pano


úmido na mesa, pega mais cerveja na geladeira, completa os
copos, coloca as garrafas no quintal, pega no armário uma
toalha de mesa bonita, coloca-a, pratos e talheres
empilhados.

LURDINHA
(para Cau)
Deixa eu ver esse arroz aí, mexe ele
que é pra ficar grudentinho. deixa eu
provar.

Cau pega um pouco na colher de pau, assopra, oferece para que


a tia prove e prova também. Lurdinha gesticula enquanto
explica.

LURDINHA
Está quase bom já. Mais dois minutos
você desliga. Aí ó, preste atenção,
você vai arrumar a carne ao redor e no
centro você coloca o camarão com o
caldinho, por último você salpica bem
o tempero verde e a pimenta de cheiro
por cima e abafa. Cuidado com essa

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72.

panela quente!

20 20. EXT - QUINTAL - DIA

O quintal tem uma área estreita com piso batido onde fica a
máquina de lavar, uma lavanderia, um armarinho com produtos
de limpeza e o engradado de cerveja. Na parte ao ar livre,
chão de terra, um banco de madeira feito por Túlio, umas
plantas de baixo porte, um pé de jabuticaba e um varal com
roupas estendidas. Déa está com um pote pegando jabuticaba,
chega Leandra. Déa puxa assunto.

DÉA
E aí, Lê, quer que eu faça uma também
pra você?

LEANDRA
Não, tô tranquila na cerveja, Déa, não
aguento misturar.

DÉA
me conta de seu projeto, como é que
tá? A orientadora é legal? Tá rolando
os prazos direitinho? Já sabe quando
qualifica?

LEANDRA
Déa, está tudo bem? Parece que você ta
me entrevistando.

DÉA
Desculpa Lê, cheguei acelerada.
(constrangida)
E acho que não tô muito bem mesmo, sei
que tô em falta com Jussa, acabo
sentindo como se tivesse em falta com
todos vocês.

Leandra olha para Déa que está sem graça.

LEANDRA
Calma, não é pra tanto.

DÉA
A gente teve a maior treta antes de eu
viajar e não nos vimos desde então, aí
eu chego aqui, vejo você, depois de
tanto tempo dizendo que quero ir lhe
visitar e nunca vamos, Jussa joga na
cara e eu nem tenho o que dizer, né?
Ela ta certa.

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73.

(pausa)
Caramba, parece que tô perdendo minha
família, eu cheguei e parecia que eu
tava sobrando.

LEANDRA
Ei Déa, calma aí, não tem nada
sobrando. Todo mundo queria te ver, eu
perguntei logo quando cheguei. A Jussa
tá mesmo sentindo sua falta e acho que
vocês precisam conversar, mas tudo se
resolve, ela é louca por você e você
sabe.
(pausa)
Para de querer abraçar o mundo
sozinha, Déa, você não tá nem
respirando direito.

DÉA
(desmonta)
Eu estou exausta. Sua irmã tem toda
razão, eu não cumpro nada do que a
gente combina. Eu quero mudar, eu
quero faz tempo mas não consigo e sua
irmã joga na cara, você tá ligada na
peça, né? E eu perco paciênca, aí já
viu...
(pausa)
Vou tirar férias assim que essa
pesquisa for encaminhada e tá perto,
já conversei no laboratório. Tem dois
anos que a gente planeja essa viagem,
de dezembro não passa.

LEANDRA
Agoora eu acredito, se uma
capricorniana disse isso, é verdade.

Déa chupa uma jabuticaba tensa, Leandra quebra o silêncio.

LEANDRA
E já que você perguntou, a pesquisa tá
indo bem sim, a orientadora é bem
rigorosa, mas tá animada com a ideia.
Eu que dei uma desanimada. Acho que
não é mais o que eu quero fazer. Digo,
para além do mestrado, não sei se
quero continuar como designer que vive
uma doideira de mil prazos apertados,
grana curta, sem direito a férias,
seguro desemprego, inss, nada, saca?

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74.

Eu fico bolada com isso. Sempre


nadando pra não morrer afogada,
morando nessa cidade cara, que ninguém
se preocupa de verdade com você, me
fodendo para fechar o mês, sabe?
Parece que a gente corre corre,
alcança os objetivos, mas a corrida
não termina, e eu to ficando cansada,
sabe? E me dei conta que não vou
conseguir ser tão correria por muito
tempo. Nem quero.

Déa surpresa olha Leandra com sua revelação, mas entende bem
o sentimento.

LEANDRA
E é foda, porque foi toda uma missão
mudar de cidade, tinha acabado de
enterrar meus pais. Minha tia e minha
irmã me atazanando, "pra que Rio?",
"pra que mestrado", "pra que isso",
"pra que aquilo?" E agora vou dizer o
que? Vou largar tudo que briguei
tanto?

DÉA
Se for o que você quiser, sim, Lê.
Isso é sobre você, não é sobre seus
pais, sua Lurdinha ou Jussiara.

Leandra chupa uma jabuticaba nervosa. As duas comem


jabuticaba em silêncio por um tempo. Leandra muda de assunto
para se recompor.

LEANDRA
Essa jabuticabeira foi Binho e Jussa
que plantaram, sabia?

DÉA
Sério? Ela nunca me falou.

LEANDRA
Ela já tem quase 30 anos. Eu nem era
nascida.

Déa olha para trás, vê Jussa de longe, Jussa sorri para ela
da porta da cozinha. Leandra e Déa se levantam e voltam para
a cozinha.

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75.

21 21. INT - COZINHA - DIA

Déa e Leandra entram na cozinha. Cau rouba uma jabuticaba do


pote.

DÉA
Já ia me esquecendo, trouxe aquele
doce de leite com café que tu gosta,
tia. Confesso que não sei se é dos
melhores, comprei meio na correria
perto do hotel, mas a cara tá bonita.

LURDINHA
Ah minha filha, nem precisava. O
problema é que com esse povo todo aqui
não passa de hoje.

Déa ri e vai ao quarto buscar o doce.

BINHO
Ave Maria, minha mãe, vou querer não.

CAU
É bom que sobra, eu vou querer sim.

BRUNO
Eu também.

BINHO
É hoje que esse menino fica aceso até
tarde.

BRUNO
(para Leandra)
Você sabia que doce faz mal pra
criança? Minha mãe disse que tira até
o sono.

LEANDRA
Caraca. É mesmo, Bruno! Melhor comer
bem pouquinho.

BRUNO
Eu como pouco. Só como aqui na casa de
minha avó.

Binho olha para Lurdinha censurando-a. Leandra ri.

LURDINHA
Cau, vá por uma blusa pra comer.

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76.

Cau vai até o quintal, pega uma blusa velha de campanha


política pendurada no varal e veste. Pelo tamanho imagina-se
que a camisa seja de Túlio. Déa volta com o doce e deixa em
cima da bancada. Pega o pote de jabuticaba para lavar.

LEANDRA
E tio Jota hein, cês têm notícia dele?

Todos reagem com cara de paisagem, fingindo não ter ouvido,


exceto Lurdinha que dá um gole de cerveja e responde séria.

LURDINHA
Leandra, por favor não traga gente
podre pra cozinha que azeda a comida.

Déa não está entendendo nada.

LEANDRA
(para a tia)
Não está mais aqui quem falou!
(baixinho para Déa)
É o pai de Cau.

Déa assente entendendo de quem se trata. Jussa encosta em


Déa. Cau volta para a cozinha sem perceber o clima.

JUSSA
Tava com saudade.

Déa sorri.

DÉA
Eu ainda tô. Chega aqui para eu sentir
teu cheiro.

Jussa encosta, Déa dá um cheiro no cangote.

DÉA
(sensual)
Hm.. Cheirinho de fritura...

Jussa ri.

DÉA
Tenho uma surpresa pra você.

Jussa se surpreende curiosa.

DÉA
Em casa.

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77.

Jussa muda o tom e fala baixinho.

JUSSA
Depois tenho que te contar um b.o. de
minha tia.

Déa se assusta.

DÉA
Que tipo de b.o.?

JUSSA
Depois, meu bem, depois. Já rolou
estresse aqui não quero trazer o
assunto de novo, mas vai ficar tudo
bem.
(pausa)
Te mandei uma mensagem mais cedo.

DÉA
Tava sem sinal, depois descarregou.
Também te liguei.

JUSSA
E eu liguei de volta. Não importa,
você já está aqui.

Jussa prova a caipirinha que Déa tá fazendo.

JUSSA
Tá uma delícia, mas tá forte.

DÉA
A gente gosta assim.

JUSSA
Tô sabendo...

Déa pega os copos e anda em direção a Túlio. Déa e Túlio


brindam e bebem, Lurdinha pega o copo de Túlio e dá uma
bicadinha. Leandra vai na sala colocar o disco que Lurdinha
gosta.

TÚLIO
Assim não vale, vou precisar repor meu
copo.

Déa e Lurdinha riem. Começa a tocar um sambinha lento,


Leandra volta para cozinha.

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78.

LEANDRA
Tia, tem daquela sua conserva de
pimenta aí?

BINHO
Oxe agora que é carioca a senhora
deixou de ter hemorróidas foi?

LURDINHA
Binho, pelo amor de Deus!
(ela não se segura e acaba rindo
no meio da fala)
Déa não é obrigada a ouvir essas
coisas.

Leandra, Déa, Cau e Jussa caem na gargalhada.

BINHO
Sentou na cozinha, comeu da comida,
tem um preço.

DÉA
Opaa! Pode continuar falando que comer
da comida dessa casa vale à pena.

LEANDRA
(ainda rindo)
Essa conserva vale o sofrimento. Uma
vez na vida não mata.

BINHO
Não mata, mas na hora de sair ó, sai
pegando fogo.

LEANDRA
Esquenta não, tá tranquilo. Vou pegar
uma pomada do Bruno emprestada.

Binho ri.

LURDINHA
Comida é sagrado, chega de porcaria na
minha cozinha.

BINHO
Ela falando assim nem parece que
aprendemos com a própria. Corpo também
é sagrado minha mãe, não era assim?

LURDINHA
Mas vocês distorcem tudo que eu digo

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79.

mesmo, né? Criei meu próprio ninho de


cobras.

TÚLIO
(para Leandra)
Tá ali na prateleira, minha filha,
pegue aí que eu também só como com
ela.

Leandra pega a conserva, abre, cheira fechando os olhos e


coloca na mesa. Cau prova o arroz e desliga o fogo.

LEANDRA
(animada)
Tá venenosa.

TÚLIO
(sério para Déa)
Ô minha filha, acho que você pegou um
copo furado, sua tia deu um golinho e
já acabou.

DÉA
Acho que o meu também ta sabia, vou
fazer outra pra gente.

Déa levanta para completar os copos.

LURDINHA
Lê, aproveitando que você está aqui,
vou marcar com as meninas aqui da rua
pra gente jogar uma partidinha...

TÚLIO
Mas Lurdes?! Uma traição assim na
minha cara...

Leandra abafa a risada.

LURDINHA
(carinhosa)
Querido, você é muito bonzinho pra
jogar com aquelas cobras, se distrai
fácil demais.

LEANDRA
Sem querer passar na sua frente tio,
mas pode marcar, tia. Delas dá gosto
de ganhar.

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80.

DÉA
Ô, Túlio, vamos marcar um jogo mais
pacífico aqui mesmo, eu adoro buraco,
mas nem me arrisco a jogar com essa
turma pra não decepcionar minha tia
publicamente.

LURDINHA
Ai gente, não misturem as coisas,
família é família, jogo é jogo. Eu
posso jogar nesse jogo de café com
leite de vocês, o que eu não posso é
correr riscos fora de casa.

TÚLIO
Vai com ela, Lê, depois se ela não
ganha, volta saindo fumaça pra casa.

Binho solta uma risada abafada e imita a mãe quando perde.

LEANDRA
Então já é, tia! Pode marcar, que esse
risco comigo você não corre.

LURDINHA
Assim que se fala.

Binho coloca delicadamente o camarão no arroz, Cau finaliza


salpicando cuidadosamente o tempero verde e as pimentas e
tampa para abafar o calor. Lurdinha observa de longe. Cau
passa a mão perto das laterais da panela para sentir a
temperatura, pega dois panos de prato. Déa termina de fazer
as caipirinhas e se senta de novo ao lado de Túlio com os
copos cheios.

CAU
Lá vou eu hein, sai todo mundo da
frente que tá pelando.

Cau cuidadosamente pega a panela de barro ainda quente.

LURDINHA
Logo quem pra carregar, meu pai do
céu!

JUSSA
Só não derruba, Cau!

TÚLIO
Vem Bruno!

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81.

Jussa coloca Bruno na cadeira, Binho e Jussa sentam-se à


mesa, Cau coloca a panela no centro da mesa com cuidado,
Lurdinha se levanta para tirar a tampa, sobe um vapor de
comida quente, todos se servem em alvoroço falando ao mesmo
tempo.

PERFIL DOS PERSONAGENS

LURDINHA

57 anos, negra, cabelos grisalhos, leonina elegante sem


frescura, forte, generosa, controladora, gosta tudo do seu
jeito, teimosa e debochada. Lurdinha é casada com Túlio há
quase 40 anos; desse casamento nasceu Binho, mas ela também
considera suas sobrinhas Cau, Jussa e Leandra como filhas.
Lurdinha é uma clássica matriarca: cozinheira de mão cheia,
tem o melhor tempero do bairro e sempre faz comida suficiente
para alimentar um time de futebol, melhor sobrar do que
faltar. Bairrista e protetora, acha que ninguém além dos seus
prestam. Lurdinha tem um repertório de cozinha tradicional,
mas ama assistir programas de comida que envolvem
competições, pois ela em si também é muito competitiva. Ama
jogar dominó tomando uma cerveja nos finais de semanas. Tem
dificuldade de achar que alguém seja a sua altura para ser
sua dupla e sempre coloca a culpa das perdas nos outros.

Lurdinha tem, junto com o marido, um armarinho que


construíram juntos perto da casa onde moram. Recentemente
Lurdinha foi diagnosticada com glaucoma e tem muito medo de

Created using Celtx


82.

médico, onde se vê fora do controle da situação. Teve


complicações em uma cirurgia de apendicite e não suporta a
ideia de fazer uma nova cirurgia. Acostumada a cuidar dos
demais, tem muita dificuldade de aceitar ajuda ou de se
mostrar vulnerável e a possibilidade de perder sua autonomia
por causa da doença a deixa assustada e em processo de
negação.

CAU

32 anos, negra, aquariana. Filha única, pai violento mora no


interior e não mantem muito contato. Com a morte da mãe,
quando tinha dez anos, Cau foi morar em Salvador na casa da
tia. Cau é proativa, brincalhona, mas tem dificuldade de
cumprir horário e é muito estabanada. Dona de uma áurea
juvenil, aparenta ter menos idade do que tem. Professora de
ensino fundamental em uma escola de bairro, Cau ama conviver
com crianças, mas não quer ser mãe. É a tia preferida de
Bruno, apesar de Jussa ser a madrinha. Ela está solteira há
um ano; antes, teve um namoro abusivo de 3 anos com um
professor da escola onde trabalha, que mobilizou toda a
família e é considerado como um tabu. Cau tem dificuldade de
assumir o trauma, se considera autossuficiente e não pretende
se relacionar com outras pessoas tão cedo.

Cau ama comida, música e literatura, já fez yoga, aula de


fotografia, dança e agora voltou para a capoeira. Não gosta
da medicina alopata, sempre busca um caminho entre medicinas
alternativas. Ela acredita que a educação há de salvar o
mundo, mas a realidade em que vive está bem distante do seu
sonho: ela tem alunos com muitos problemas em casa, que
precisariam de uma atenção e de um suporte que a escola não
tem capacidade de dar. Cau já teve crises de ansiedade por
causa das frustações no trabalho, mas agora está mais
calejada e faz terapia para lidar com isso. Cau já foi
vegetariana, tem uma alimentação leve e saudável abrindo
exceções para os encontros familiares quando a Lurdinha
cozinha.

JUSSA

35 anos, negra, capricorniana. É a prima mais velha da


família, irmã de Leandra, casada com Déa há 8 anos. Seus pais
faleceram enquanto estava na faculdade, entrando no mercado
de trabalho. Jussa é orgulhosa, briguenta, conversadeira,
pirracenta, não tem passas na língua, mas tem dificuldade de
expressar seus sentimentos. Não entende porque a tia confia
mais em Leandra, visto que ela é muito mais presente.

Acredita na ciência ocidental acima de tudo, dorme pouco e


quando precisa, toma remédios pra dormir. É concursada da

Created using Celtx


83.

secretaria de cultura do estado, tem uma carreira estável,


mas um ambiente de trabalho muito conflituoso. Jussa é muito
paquerada no trabalho e curte esse jogo, o que acarreta em
situações que fogem ao seu controle e geram atrito em
casa,mas é fiel ao seu relacionamento. Jussa sonha em ser
mãe, mas Luana adia essa idéia priorizando sua carreira
profissional. Apesar das crises e das ausências, Jussa ama
muito Déa.

Déa

33 anos, negra, aquariana. Sonhadora, idealiza o trabalho e


se dedica ao máximo a ele. Casada há 8 anos com Jussa, é
pesquisadora na área de saúde, viaja muito a trabalho para
congressos. Por conta das viagens, Déa é muito ausente, o que
gera uma crise na relação. É também muito querida pela
família de Jussa, mas se sente insegura quanto à aprovação da
cunhada Leandra. Déa ainda não se sente pronta para ser mãe,
o que é um outro ponto de crise na relação, ainda não sabe
como, mas está disposta a reverter a situação.

BINHO

30 anos, negro, canceriano, porte de ex-atleta, cabelos


trançados. Único filho de Lurdinha, Binho é brincalhão,
pirracento, mas não aguenta provocação. Exagerado, aumenta as
histórias, sensível, tem coração mole e é muito carinhoso. É
gerente em uma loja de departamento tipo Le Biscuit. Binho
tem uma relação mal resolvida com Lia, ex-namorada com quem
teve um filho, Bruno, e não teve outras relações desde então.
Binho tem guarda compartilhada de Bruno e lhe é muito difícil
de discordar de Lia nas decisões sobre o filho. Normalmente
ele acaba acatando as opiniões de Lia, está em crise com a
possibilidade dela se mudar para outro estado com Bruno,
situação que o paralisa. Mora em uma casa próxima à da mãe na
Ribeira, bairro onde nasceu. Binho joga bola semanalmente com
os mesmos amigos da infância e torce para o Vitória.

LEANDRA

27 anos, negra, taurina. Mora no Rio com o namorado desde o


curso de graduação em designer, está fazendo mestrado. não
tem muita grana, as vezes passa por aperto, mas não gosta de
aceitar ajuda. Faz uns trabalhos freelancer, que são a sua
principal renda. Sempre foi superprotegida pela tia por ser a
mais nova, o que se intensificou com a morte de seus pais
quando ela tinha 17 anos. Se considera mais madura do que de

Created using Celtx


84.

fato é, teimosa, gosta de fazer jogo de ciúmes. Leandra


herdou do tio Túlio a paixão por política e futebol.

TÚLIO

62 anos, negro, pisciano. Sonhava com a casa cheia de


criança, queria ter seu próprio time de futebol. Pai de filho
único, ensinou as sobrinhas a jogar também. Túlio é casado
com Lurdinha há 30 ano. Ele é comerciante, tem um armarinho
com a esposa perto de casa. É inventivo, sabe costurar e vira
uma criança ao lado do neto. Túlio é quem melhor consegue se
comunicar com Bruno falando com o neto sem infantilizá-lo.
Túlio é completamente apaixonado por política e por futebol,
chora e se emociona no mesmo nível. Manso, boa praça, não
gosta de confusão, mas antipatiza com sua ex nora Lia.
Pretende se aposentar com o resultado dos exames de Lurdinha
para poder cuidar dela e da casa, ele é louco por ela, seus
olhos brilham quando fala dela, teve problemas com bebida e
atualmente bebe só em datas comemorativas.

BRUNO

5 anos, negro, taurino. Filho de Binho e Lia, tem guarda


compartilhada. Gosta de ficar na casa dos avós, onde se sente
seguro e é mais mimado. Come doces com a avó Lurdinha quando
o pai não está e inventa sempre novas brincadeiras com o avô
Túlio. Bruno desenha muito bem. Bruno fala bem articulado
sobre assuntos que gosta como sonhos e doces, mas tem
dificuldade de compreender e expressar sentimentos. Se
assusta fácil com gritos e movimentos bruscos. Tem medo de
desenho animado. Bruno tem alguns traços recorrentes de quem
vive no espectro do autismo, mas não demonstra tantos
sintomas e a família não sabe como lidar. Os seus traços são
hiperfoco, as vezes falar na terceira pessoa, dificuldade de
socialização, dificuldade de reconhecer emoções, riso fora de
hora, vocalização de sons, incômodo com barulho.

LIA

30 anos, negra, virginiana. Exuberante, sempre bem arrumada e


séria. Ex esposa de Binho, mãe de Bruno. Lia terminou com
Binho, seguiu a vida e tem um novo namorado, mas Binho não
sabe. Lia é engenheira civil e acaba de ser convidada para
trabalhar em um escritório fora do estado. Lia divide a
guarda de Bruno com Binho, é muito atenciosa e preocupada com
uma alimentação saudável.

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