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Copyright © Sara Fidélis, 2021

Todos os direitos reservados.


Preparação: Grazi Reis
Revisão: Grazi Reis
Diagramação: AK Diagramações
Capa: Washington Rodrigues

Esta é uma obra de ficção. Seu intuito é entreter as pessoas.


Nomes, personagens, lugares e acontecimentos descritos são
produtos da imaginação da autora. Qualquer semelhança com
nomes, datas e acontecimentos reais é mera coincidência.

Esta obra segue as Normas da Nova Ortografia da Língua


Portuguesa.

Todos os direitos reservados a autora. São proibidos o


armazenamento e/ou a reprodução de qualquer parte desta obra,
através de quaisquer meios - tangível ou intangível – sem o
consentimento escrito da autora.

Criado no Brasil
A violação dos direitos autorais é crime estabelecido na lei nº
9.610/98 e punido pelo artigo 184 do Código Penal.
Sumário
Sinopse
Notas inicais
Capítulo 1
Capítulo 2
Capítulo 3
Capítulo 4
Capítulo 5
Capítulo 6
Capítulo 7
Capítulo 8
Capítulo 9
Capítulo 10
Capítulo 11
Epílogo
Agradecimentos
Outras obras
Redes sociais
O primeiro natal de Dominic e Robin como marido e mulher
chegou, e não há nada que ele não faria pela esposa, exceto o que
ela mais deseja.

Como uma maneira de recompensá-la por isso, Dom decide


levá-la em uma viagem emocionante, acompanhados pela vovó
mais maluca do país e pelo pequeno filho do casal, com o objetivo

de realizar toda a lista de sonhos de Robin.

Em um motor home, a família vai se aventurar por lugares


novos e descobrir mais uma vez o que significa união e o amor,

além de, claro, fazer novos amigos.

Afinal, não é este o objetivo do Natal? Celebrar os bons

sentimentos, trazer oportunidades de recomeço e, talvez, a


possibilidade de um milagre.
Então é Natal… E o que você fez? O ano termina, e nasce

outra vez!

Quando pensei em trazer essa história e contar mais um


pouquinho da vida de Dominic e Robin, tive essa ideia, de aproveitar
um especial de fim de ano e trazer um enredo que aquecesse os

corações de vocês nessa época tão mágica.

A Doce Lista de Desejos de Natal, é para rir, se emocionar e


relembrar o verdadeiro sentido da vida, aqui não temos tristeza e

grandes dramas, é o tipo de história para se ler em dezembro e


entrar no novo ano com o coração cheio de amor!

Espero que gostem!

Com amor,

Sara Fidélis
Eu vejo Robin de onde estou sentado, esperando. Ela caminha
na nossa direção, estampando um sorriso nos lábios enquanto
carrega em uma das mãos um cupcake coberto por chantily e, na

outra, um com cobertura de chocolate.

— E aqui estão — ela diz, depositando um deles à frente de

Bernardo e o outro na minha mão.

— E eu, Robinha? — vovó Rute reclama, emburrada ao ver

que não ganhou.

Robin apoia as duas mãos na cintura e encara a avó com uma


expressão maternal.
— A senhora está com a glicemia alta, não pode comer um

desses.

Dona Rute abaixa a cabecinha branca, parecendo chateada,


mas Robin volta a sorrir e tira do bolso do avental rosa uma trufa,

enrolada em papel azul.

— Mas guardei esse aqui, esse não vai fazer mal — ela diz,

entregando o chocolate sem açúcar.

Desde que Robin e eu nos casamos, assumimos de perto os

cuidados com dona Rute, avó dela, e recentemente precisamos


reforçar a atenção com sua alimentação, principalmente por causa

da confeitaria, que a deixa muito perto dos doces o dia todo.

Robin sempre foi muito cuidadosa com a alimentação de


Bernardo também, não apenas pela restrição ao amendoim — o que

rendeu ao pequeno o apelido de Minduim —, mas também para que

ele não coma apenas besteiras o tempo todo. Existem dois motivos

para que ela abra exceções:

1 – Se for quinta-feira, noite da sobremesa. Esse é o dia da

semana em que temos uma refeição temática após o jantar e no

qual as guloseimas preparadas pelas mãos de fada da minha

esposa, estão liberadas.


2 – Alguma comemoração especial.

— Qual a razão do cupcake? — pergunto, enquanto observo o

Minduim devorar o doce.

— Estou feliz. Não posso? — ela devolve, brincando. — Tenho


o marido mais incrível do mundo, um filho saudável e maravilhoso,

minha vozinha morando com a gente e a Que Seja Doce. Alguém

pode ser mais feliz?

Aquiesço, concordando, mas algo em sua afirmação me


incomoda. Não é que não sejamos felizes, mas o modo como ela

disse me parece forçado, como se Robin tentasse convencer a si

mesma de que só tem razões a agradecer. O que provavelmente

significa que algo no paraíso não está tão perfeito assim.

— Manhê, depois eu posso comer outro?

— De jeito nenhum, por hoje é só esse, Bê.

— Mas a vó Rutinha disse que os iluminados podem chegar


amanhã. Se eles aminuzirem a gente, não vai dar tempo de ficar

dodói.

— São iluminatti e não iluminados, e por alguma razão sua avó

anda misturando os ETS e eles.


Robin volta a caminhar na direção da cozinha e para no balcão

de atendimento, conversando com Alice. Minha irmã, acima de


todas as expectativas, tem se mostrado uma ótima funcionária e

aprendiz da Robin.

— Vovó, a senhora acha que… — Observo meu filho de canto

de olho, tentando entender o quanto Bernardo está entretido com o


cupcake. — Acha que a Robin está estranha? Parece meio triste,

não parece?

Dona Rute mordeu um pedaço do chocolate e agora o encara

com raiva.

— Isso aqui é uma porcaria! — fala alto, atraindo a atenção de


todos os clientes enquanto atira o bombom no meio da mesa.

Suspiro ao perceber o marketing ruim e respondo alto:

— A senhora não está podendo com açúcar. Se sua glicemia


baixar, semana que vem vai poder comer um que não seja dietético.

Ela dá de ombros, e as pessoas desviam o olhar, percebendo


que a reclamação não é uma briga na confeitaria.

— A Robinha ama você — ela diz, em um dos seus momentos


bem lúcidos —, ama tanto que queria mais…
Eu entendo o que ela quer dizer. Robin queria ter um filho

comigo, porque, apesar de Bernardo ser meu filho desde que o


assumi como tal, Robin não teve a experiência de viver uma

gravidez feliz, amando e sendo amada, de curtir o momento


enquanto gerava uma vida.

Eu às vezes me permito imaginá-la grávida e consigo


visualizar perfeitamente como ela seria linda, e como eu adoraria

ouvir o bebê se mexendo. Nós temos um filho, mas não passamos


por esse processo juntos, além disso, Robin sofreu muito durante

toda a gravidez dele. Então seria maravilhoso viver isso ao lado


dela.

Não é possível, no entanto, já que após uma gestação de


risco, os médicos acharam por bem operá-la para que não tivesse

mais filhos, para que não corresse risco de vida. E, por mais que
talvez haja uma chance de reverter a cirurgia, não valeria o perigo
colocar a vida dela em risco.

Ainda que eu saiba disso, me sinto mal por não poder dar a ela

tudo que Robin deseja. Ela merece o melhor que a vida tem a
oferecer, e queria que tivesse tudo e não apenas parte de tudo.
— Talvez seja a hora de ter mais… — vovó Rute continua, me
arrancando do meu devaneio.

— O que a senhora quer dizer? Sabe que não podemos


arriscar…

— Por quê? Acho que a sua irmã dá conta sozinha.

Essa fala me deixa confuso por um momento. Dona Rute vem


sofrendo com um princípio de alzheimer tem algum tempo, e por

vezes diz coisas que não fazem muito sentido, mas é quando ela diz
coisas coerentes que menos a entendo.

— Conta de quê?

— Da outra confeitaria. Acho que a Robinha quer outra Que

Seja Doce, mas não quer perder a qualidade, mas a Alicezinha está
se dando bem, aprendendo… Acho que ela consegue fazer as

receitas — ela diz, com sua mania de diminutivos.

— Eu já conversei com a moça, vovó. Disse que só tem uma


Que Seja Doce porque a Robin disse que não vai abrir filial e perder
a qualidade.

— Aí que entra a sua irmã, uai.


Sua resposta me leva a pensar. Talvez eu não possa dar a
Robin o que ela mais quer, mas se realmente for seu desejo
expandir a Que Seja Doce, isso é algo em que posso ajudar.

— Sabe, vovó… Acho que tive uma inspiração.

Ela me encara e suspira, passando as mãos pelos cabelos


brancos.

— Um psicólogo bonito desses, Dom? Na próxima vez passe

desodorante antes de sair — ela diz, confundindo inspirar, com

transpirar.
Sigo de volta para a cozinha e me deparo com Alice, no
balcão, saltitando toda animada.

— Robin! Vem ver como ficou meu bolo — ela me chama, a


fim de mostrar sua proeza.

Realmente Alice melhorou muito nos últimos meses, se


esforçando ao máximo para aprender comigo e se dedicando a Que

Seja Doce de corpo e alma. Inclusive isso nos surpreendeu, já que,


com seu espírito livre, não pensamos que fosse ficar muito tempo.

Entro na cozinha depois dela, que já aponta para o bolo

decorado sobre o balcão.

— Ficou lindo! Você está se saindo tão bem nas decorações

que já, já, vai sair daqui e abrir uma loja para fazer concorrência.

Ela sorri e mexe as sobrancelhas, como se fosse exatamente


sua intenção.

— Nem pense nisso, Alice.


Abro a torneira da pia e começo a lavar a louça, determinada a

deixar tudo limpo antes de começar a assar as fornadas do período


da tarde.

— De jeito nenhum! Você e o Dom ainda vão me aguentar

muito por aqui — ela responde a minha reprimenda.

— Nós dois? Eu que te aguento. Ele vai pra clínica e me deixa

com você aqui.

Alice se vira e me fita, fazendo cara de assombro.

— Sou um anjo e uma cunhada amorosa, Robin. Você não era

assim, viu? No começo era toda tímida, boazinha…

Dou de ombros, ignorando sua sugestão de que eu tenha


mudado muito, ainda que seja verdade.

— Considerando que detestei você no começo, acho que me

tornei uma cunhada melhor, depois.

— Odiou por ciúmes — Alice rebate. — Se soubesse que eu

era irmã do Dominic, teria me amado já de primeira.

— Talvez… O fato é que agora eu tenho liberdade de reclamar


de você.
— Eu é que tenho que reclamar. Você é uma chefe bem
exigente e sabe como isso funciona.

Dessa vez paro o que estou fazendo para encará-la, com o

cenho franzido.

— Como? — Coloco as mãos na cintura, aguardando.

— Funcionários trabalham melhor se falarem mal dos chefes

para os amigos — Alice explica, como se fosse uma ciência.

— Primeiro que isso é uma mentira deslavada, e segundo…

Você fala mal de mim para os seus amigos? — Apesar do tom sério

que uso ao questionar, sei muito bem que ela está brincando.

Alice, no entanto, parece achar que levei a sério.

— Claro que não! — Ela larga o bolo na bancada e corre para

me abraçar pela cintura. — Eu tava só brincando, Robin.

— Não sei, não…

— Claro que sabe! Eu te adoro. Até falei pra sua mãe fazer

purê de batatas hoje pro jantar. Porque sei que você adora e você é

a melhor cunhada que eu tenho no mundo todo.

— E quantas você tem além de mim?

— Só as namoradas do Dominic…
— Ah! — Eu a afasto com um empurrão e ela cai na risada.

Menina engraçadinha.

— E por que pediu pra minha mãe fazer purê?

— Vocês não vão jantar lá? A árvore de Natal foi montada.


Acho que o Dom quer mostrar pro Minduim como ficou.

Eu não estava sabendo do plano, mas acho uma excelente


ideia. Estou cansada e, se além de não precisar preparar o jantar,

isso ainda vai alegrar o Bernardo, é uma proposta maravilhosa.

— Então nós vamos.

— Certo — Alice responde, correndo até a porta para atender

ao chamado de Tatiane, a moça que contratamos para ficar no


balcão.

Ela retorna instantes depois.

— Vai fazer mais bombons? A Tati disse que acabaram os


Alegria e os Paixão.

— Já estão na geladeira, prontos. Só precisa desenformar e


embrulhar.

— E os conselhos?
Alice questiona, se referindo a uma prática nossa, que foi o

que tornou nossa confeitaria famosa na cidade pequena de Lagos,


no interior de Minas Gerais. Dominic, com quem me casei há cerca

de um ano atrás, é um psicólogo brilhante e ele trabalha ajudando


pessoas a seguirem em frente após vivenciarem traumas, a

entenderem melhor quem são e o que lhes faz bem, a se


encontrarem.

Quando nos apaixonamos, eu era uma dessas pessoas


perdidas e ele me ajudou. Sempre que estava triste ou vivendo um

momento conturbado, Dom me deixava bilhetes pela casa que nós


dividíamos, com conselhos sobre a vida, pensamentos e versos
bonitos.

Foi assim que, depois que ele montou a confeitaria para que

eu pudesse realizar um dos meus grandes sonhos, surgiu a ideia


dos bombons reflexivos. São chocolates que receberam nomes de
sentimentos e os conselhos, versos e reflexões os acompanham em

forma de bilhete, e o cliente pode escolher o bombom de acordo


com o modo como ele se sente naquele momento e partilhar com os

amigos ou com as pessoas que ama.


Uma ideia linda e que deu muito certo. Todos os dias nossos
chocolates são os primeiros a esgotar.

— Ele já imprimiu, estão na segunda gaveta do armário.

Alice abre a geladeira, pegando as formas com os doces,

enquanto termino a louça. Estamos entretidas em nossos afazeres


quando Dominic entra na cozinha, chamando meu nome.

Já faz algum tempo que estamos juntos, mas ele ainda faz

meu coração disparar quando entra em um lugar, a simples visão


dele, como se os cabelos castanhos caindo um pouquinho sobre os
olhos escuros, o porte atlético e elegante ao mesmo tempo nunca

fossem se tornar comuns pra mim. Dominic é lindo de um jeito que é


só dele e que me desestrutura mesmo depois de termos casado. Ele

tem todo o meu coração, isso depois que segurou minhas mãos
para que eu juntasse todos os meus cacos caídos no chão.

— Eu já vou, meu docinho — Dom fala, se aproximando e me


abraçando por trás. — Vou levar a vovó pra ficar um pouco com a

Bárbara e deixo o Minduim na escola.

— Tá bom — respondo, me virando em seus braços para

receber seu beijo —, Alice disse que vamos jantar com nossos pais.
E não, não somos irmãos, e isso não é um incesto. Minha mãe
se casou com o pai, viúvo, do Dominic, mas isso é história antiga já.

— Eu ia te perguntar se queria ir.

— Claro que ia, amor. Eu não me importo, estou bem cansada


e vai ser bom.

Dom se inclina e beija minhas têmporas, em um gesto


carinhoso.

— Que tal uma massagem quando chegar?

— Eca! Vocês são muito melosos — Alice reclama e sai

rapidinho da cozinha, nos deixando a sós.

Dominic começa a rir da reação da irmã e meneia a cabeça.

— Uma hora ela vai ver só…

— Alice? Essa daí não vai se apaixonar fácil.

— São as melhores, docinho. Quando encontram alguém, as

barreiras vão embora.

— Como você, que ficou apaixonado assim que invadi a casa.

— Exatamente como eu — ele concorda. — Agora vou indo


porque tenho paciente daqui a pouco.
Dom me beija nos lábios com carinho e depois me deixa na

cozinha, enquanto o observo sair. Eu o amo por completo e gostaria


de retribuir tudo que ele já fez por mim. Dominic me amou e cuidou

de mim quando eu apenas cuidava de outras pessoas, ele me

ajudou a me reerguer e depois a realizar os meus sonhos, e sempre


me disse que amou meu filho desde o começo porque já havia no

coração dele o desejo de ser pai, e Bernardo supriu essa vontade.

Os dois se amam loucamente e, para o Bê, Dominic é o pai

que ele pediu a Deus, e para Dominic, Bernardo é sua vida. Ainda
assim, eu queria poder viver a experiência de gestar um bebê com

ele.

De modo nenhum essa criança seria mais importante que o

Minduim é nas nossas vidas, mas seria uma experiência nossa,


dividida, partilhada e, para completar, Bernardo vive me pedindo um

irmãozinho. E como explicar a um garotinho de cinco anos que não

posso mais ter filhos?

As vezes chego a cogitar…

— Terra chamando Robin — Alice brinca, me tirando do transe


causado pela reflexão. — Tudo bem?

— Claro. Só estava pensando…


— Em que exatamente? Você parece meio… aérea.

— Nada. É só que… — Alice me encara, ansiosa, esperando,

e decido me abrir um pouco. — Eu queria ter outro bebê.

— Adotar?

— Não. Você sabe que a minha gestação não foi fácil. O pai do
meu filho tinha morrido, meu pai também, e eu estava sozinha e

sem nenhuma estrutura para enfrentar a situação. Fui pega

completamente de surpresa, dentro de um furacão.

— Sim, eu sei que não foi fácil.

— Era isso que eu queria. O fácil, sabe? Queria viver uma


gravidez dessas de comercial de fraldas. Eu iria engordar e o Dom

diria que eu estava linda, ele iria fazer massagem nos meus pés

inchados, atenderia todos os meus desejos de grávida e eu ia até


inventar algum se não tivesse…

— Seria demais — Alice responde, os olhos rasos de água.

— Não seria? Consigo visualizar o Dom andando com o bebê

no canguru, eu amamentando em paz na minha casa, porque você

iria me ajudar com a confeitaria…


— E com o bebê também — minha cunhada responde,

sorrindo.

— O problema é que tenho todos esses sonhos, fico ansiosa

por isso e aí a realidade cai sobre mim outra vez. Porque não é

possível.

— Dizem que laqueadura é reversível…

— Sim, só que a minha foi feita porque minha gestação era de


risco, e não posso engravidar porque provavelmente não

sobreviveria.

— Então não tem mesmo a menor possibilidade — concorda,

categórica.

— Exatamente o que o Dominic diz, que jamais aceitaria


arriscar a minha vida assim.

— E você… Você se arriscaria?

— Eu sou muito feliz com eles e não posso deixar o Minduim

ou o Dom aqui, sem mim. Então por mais que eu queira viver esse
momento, não poderia fazer algo arriscado assim, mas faz tanto

tempo que isso aconteceu, eu não tinha recursos para procurar uma
segunda opinião, menos ainda disposição… Talvez não fosse tão

perigoso assim.

Alice meneia a cabeça, discordando.

— O meu irmão te ama, ele e o Bernardo são loucos um pelo

outro. Vocês têm a vovó Rute ainda por alguns anos, sua mãe e
meu pai, e têm a mim. Somos uma família, Robin. Seria ótimo se

tivessem um bebê, mas não se isso colocar sua vida em risco.

— Eu sei que não dá, e nem mesmo toco no assunto com seu

irmão. Acho que ele nem imagina… Só quis compartilhar com


alguém.

— Acha mesmo isso? Que o Dominic não imagina que se sinta

assim?

— Por quê? Conversaram sobre isso?

— Não exatamente, mas ele conhece você muito bem para


não notar.
Estamos reunidos ao redor da mesa dos Duarte. Agora eu
também sou um deles, mas ainda é um pouco estranho,

considerando a vida simples que sempre levei e que ainda levo,


porque Dominic e eu preferimos viver de maneira modesta, com as
condições que o nosso trabalho proporciona do que com o dinheiro

do pai dele. Mas é estranho que sejamos uma família, nós e as


pessoas mais ricas e influentes de Lagos.

Minha mãe deixou a mim e ao meu pai alguns anos atrás e,

apesar das tentativas de reaproximação, só a perdoei e voltamos a


nos falar recentemente, depois que conheci e me envolvi com

Dominic, que por coincidência é enteado dela.


— Robin, como estão as coisas na confeitaria? — A voz dela

interrompe minhas reflexões.

Ela está sentada do outro lado da mesa e me encara com seus


olhos expressivos e um sorriso gentil nos lábios. O prato já vazio à

sua frente.

— Vão bem, temos tido bastante trabalho, incluindo Alice… —

Minha cunhada concorda com um gesto afirmativo, talvez porque a

boca esteja cheia de purê, impedindo que responda.

— Vocês se deram bem ali, estão crescendo rápido — meu


sogro comemora —, foi um ano bom para todos nós. Vocês se

casaram, a confeitaria teve um bom avanço…

Aquiesço, porque realmente não tenho do que reclamar.

— A clínica do Dominic vai muito bem — comento, sorrindo em

resposta. — E os seus negócios nunca vão mal. Acho que temos

muito a agradecer esse ano.

O clima de Natal já começou a se instaurar e as decorações

estão por toda parte. Ainda que falte um mês para a data, as luzes

piscando pela cidade toda, demonstram a proximidade do dia

festivo.
— Me deem licença agora que vou levar o Bernardo para ver a
árvore — Dominic diz, se levantando com o arrastar da cadeira. —

Vem Superminduim! — Ele se abaixa para que Bernardo suba em

suas costas e depois, com ele já acomodado, os dois seguem em

disparada na direção da sala.

— Uaaaaau… — Da cozinha escuto a exclamação de surpresa


do meu filho. — Essa árvore é gigantesca!

Com um sorriso para os outros, também me levanto para

segui-los. Logo que entro no cômodo ao lado, no entanto, sou

surpreendida por uma das maiores árvores que já vi na vida.

— É mesmo, sua avó parece ter exagerado um pouco — falo,

aturdida com os quase três metros de altura diante de nós.

Ela foi decorada com grandes laços vermelhos, pequenos


embrulhos de presente e muitos sinos dourados.

— Não é exagero. Eu só gosto do Natal e acho que tem que

ser grande pra comportar tudo que vamos dar e ganhar — ela

responde, atrás de mim.

Pelo visto todos decidiram vir assistir às reações empolgadas

do Bernardo, que agora corre pela sala, abraçando os quatro

Papais-noéis que estão dispostos nos cantos.


— E foi bom pensar assim, Bárbara — Alice fala, apoiando

minha mãe. — Inclusive por causa da ideia do Dominic.

— Que ideia? — pergunto, fitando meu marido, que me encara

com expressão inocente.

— Bom, hoje estive com uma paciente e ela me disse uma


coisa interessante…

Ele caminha com as mãos no bolso, até estar diante da árvore


e de frente para todos nós. Dominic age como um líder na nossa

família e acho incrível a naturalidade com a qual faz isso.

Sentamos nos sofás, sabendo que o que quer que seja, é


importante. Suas palavras sempre mexem e tocam os pacientes, e
na nossa família não é diferente.

— Ela disse que percebeu agora, aos quarenta e três anos,

que não viveu. Que não realizou nada e que seus anos se passaram
de uma maneira robótica, cumprindo obrigações, trabalhando e se
doando às pessoas que ama. Mas nunca tirou um tempo para se

realizar e agora estava culpando aos outros pelas suas frustrações,


e desanimada por ter perdido tanto tempo.

Alice se senta no chão, diante de mim, e vejo Bernardo se


ajeitar entre as pernas dela, que o abraça.
— O que disse a ela? — seu pai pergunta.

— Que não é tarde. Assim como não é para nenhum de nós.

Sei que a maioria aqui se sente realizado de certa forma, mas essa
questão me fez refletir sobre os nossos sonhos, sobre tudo que
gostaríamos de realizar e, talvez, esteja ficando de lado… Sugeri

que ela anotasse seus desejos, fizesse uma lista com as coisas que
ainda queria fazer e as colocasse como objetivo para o próximo ano.

— Que ideia linda — Vovó Rute aplaude.

— Quero sugerir que todos nós façamos a mesma coisa. Falta


cerca de um mês para o Natal e minha mãe sempre nos fez

acreditar na magia dessa data.

— Os milagres de Natal — Alice concorda, e percebo seus

olhos rasos d’água ao se lembrar da mãe.

— É verdade — meu sogro concorda —, ela acreditava que


nessa época do ano, Deus estava mais atento aos nossos pedidos.

— É uma crença muito bonita — minha mãe apoia, e fico


contente ao perceber que ela não se enciúma das memórias que

eles compartilham da primeira senhora Duarte.


— Pois então. Assim como as crianças escrevem suas cartas
para o Papai Noel, quero incentivar vocês, nós, a escrevermos
nossos desejos em uma folha de papel. Vamos pendurar nessa

árvore gigante e acreditar com muita fé. No ano novo podemos


recolher nossas cartas.

— Vamos guardar, não é? Ano que vem podemos ver o que se


realizou! — Alice comenta.

Pelas suas reações e comentários, percebo que Dominic já

havia debatido a questão com ela.

Mas o que eu realmente gostaria de fazer ou ter? Acho que

Dominic tem razão, sempre me dediquei ao Bernardo e à minha


avó.

Depois que o conheci me dediquei ao nosso relacionamento e


a Que Seja Doce. Ambos me trouxeram felicidade, mas pensando

em lazer, em sonhos ou projetos, nunca parei para pensar no que


realmente queria até agora.

Dominic entrega um papel e uma caneta para cada um de nós.


Tiro a tampa lilás da minha e a deixo pairar sobre a folha em branco

enquanto tento encontrar dentro de mim as minhas vontades.


Viajar é uma delas. Sempre quis conhecer o Brasil todo e, se
pudesse fazer isso em um motor home, aí meu sonho estaria
completo, mas nunca sequer cogitei realizar. Com Bernardo

pequeno e agora com a confeitaria…

Mas bom, esse é um dos desejos de que venho abrindo mão,


então deve estar na lista.

1- Viajar por vários lugares do Brasil em um motor home.

Já me realizei profissionalmente e minha vida amorosa não

poderia ser melhor. Mas o que mais eu gostaria de fazer e que


nunca tive coragem?

Ah! A Dominium! Eu daria tudo para assistir a um show deles,

principalmente agora. Com a nova formação.

2- Ir a um show da Dominium… Mas por que sonhar baixo?

2- Ir a um show da Dominium e ganhar passe para o camarim.

Se eu conseguisse realizar esses dois sonhos, já estaria muito

realizada, mas eu também adoraria ver a neve… E talvez patinar no

gelo.

3 - Patinar no gelo.
No entanto, desde que comecei a listar as coisas, sinto lá no

fundo do meu coração duas vozes gritando. Sei quais são meus
dois maiores sonhos e também meus maiores temores.

— É pra escrever tudo, Robinha — vovó Rute fala ao meu

lado, percebendo minha hesitação.

— E os sonhos que sabemos que não vão se realizar?

— Milagre é milagre — ela diz, dando de ombros. — Eu


coloquei que quero conhecer um extraterrestre e essa parte seria

fácil, mas quero que seja um do bem…

Bom, se minha avó está pensando em algo tão surreal, nada

me impede de ser honesta comigo mesma sobre meus sonhos. Ao


menos por hoje.

4- Abrir uma filial da Que Seja Doce, sem perder nossa

qualidade.

5- Engravidar outra vez. Ter um filho. Viver… Eu e o bebê.

Por toda minha volta noto que os outros estão entretidos com
as próprias listas, com os próprios sonhos. Se eu pudesse realizar

esses que anotei, não precisaria de mais nada na vida. A tinta lilás
da caneta tem um pouco de glitter, o que deixa as palavras com um

aspecto mais mágico.

— E então, Docinho? — Sinto o cheiro do perfume dele antes

mesmo de ouvi-lo.

Dominic é o homem mais maravilhoso do mundo. Não tenho


reclamações a fazer a seu respeito e sei o quanto isso parece

impossível.

Não é que ele não tenha seus defeitos. Mas são coisas tão

singelas que ficam ocultas em meio às suas milhares de qualidades.

— Terminei — respondo, dobrando meu papel para que ele

não veja o que escrevi. — E você?

— Olha, eu bem que gostaria se Papai Noel me desse um

carro novo… Agora que as coisas estão fluindo bem, acho que não
é muito sonhar com isso para o próximo ano.

— Concordo totalmente e é muito merecido, amor.

Não digo isso apenas porque se tem alguém que merece o

melhor, é Dominic, mas porque ele vendeu o carro que tinha para

abrir minha confeitaria, antes mesmo de nos casarmos.


— Que bom que estamos de acordo nisso. Pensei que

estivesse apegada àquela lata velha…

— Acha que eu gosto quando ele decide parar no meio da rua

e me fazer passar vergonha?

— Quem sabe? Você é uma mulher peculiar.

— Sei.

— Aqui… — Ele me estende um furador e um pedaço de fita.

— É pra furar e amarrar, depois é só pendurar na árvore.

Faço do jeito que ele instrui, observando seu papel dobrado

em suas mãos e amarro a fitinha com um laço. Depois disso,

acompanho Dominic até a árvore imensa e penduro meus desejos

bem ao lado dos dele.

Dom pega Bernardo no colo para ajudar o pequeno a colocar

sua lista ali também — cheia de desenhos, porque ele não sabe

escrever —, e vejo vovó Rute depositar o seu papel onde deveria

ficar um dos embrulhos de enfeite.

Um a um, todos colocam na árvore seus anseios, sonhos e

projetos, e não posso deixar de pensar em como essa época traz

algo mágico e lindo: a esperança.


Fazer Robin deixar a casa na minha frente não é uma tarefa
fácil. Ela e Bárbara começaram a conversar e parecia que não iam

acabar nunca.

Com isso em mente, chamo Alice em um canto,


disfarçadamente, para pedir sua ajuda.

— Que foi? — ela pergunta.

Alice tem esse jeito todo de garota fatal, com as botas de cano

alto envernizadas e as roupas coladas e escuras, mas é só ver um


comercial mais fofo que começa a chorar.

— Preciso de ajuda em uma coisa.

— Fala logo…

— Eu te expliquei sobre a ideia dos desejos e o plano inicial,

mas não expliquei a finalidade. Você sabe que ando incomodado


por ver a Robin triste com essa questão do bebê.

— Ela acha que você não tem ideia…


— Como não? Toda vez que vemos uma mulher grávida os

olhos dela se enchem de água. Quero ajudá-la a realizar seus


outros sonhos, já que esse está fora do meu alcance.

Alice abre um sorriso matreiro, debochado.

— Vai ler os pedidos dela, senhor perfeitinho? Não é muito

ético.

— Ela é minha mulher, Alice, não minha paciente. E se eu

puder fazê-la ainda mais feliz, não vou hesitar. Além disso, ela vai

saber de tudo assim que eu começar a fazer o que quer que tenha
nessa lista.

— E o que você acha que tem?

— Se tratando da Robin, não sei. Ela não é muito materialista,

talvez algum outro curso fora, coisas pro Minduim e pra dona Rute.

— É, irmão. Ela colocou os desejos mais profundos ali,


achando que ninguém ia ler. Você pode se surpreender com uns

pedidos bem caros.

— Não importa, eu dou um jeito. Só preciso que você a leve lá

pra fora, pra eu roubar a lista.

Alice meneia a cabeça, discordando.


— Vai com ela e enrola no carro que eu levo, vai ser menos
suspeito.

Faço conforme ela diz e saio praticamente arrastando Robin

pela mão. Vovó Rute e Bernardo nos seguem de perto, em uma

discussão séria sobre a importância das balas de minhoca ácidas na

formação das crianças.

— Você tá muito apressado — Robin reclama. — Foi ideia sua

virmos e agora fica me acelerando.

— Ah, mas você está cansada, trabalhou o dia todo. Vai dizer

que não quer nossa cama?

O comentário arranca um sorriso dela.

— Antes quero um banho quente.

Acaricio sua mão delicada entre meus dedos.

— E se colocarmos a vovó e o Bê pra dormir e aí tomarmos

um banho juntos? Posso esfregar suas costas — falo, em tom de

conspiração.

Robin estaca, colocando a mão livre na cintura.

— E vai querer algo em troca, não vai? — ela brinca, divertida.


— Só se você quiser me dar alguma coisa — respondo, no

mesmo tom divertido.

— Sempre quero dar algo pra você.

Apesar do tom malicioso e do duplo sentido na frase, Robin

ainda desvia os olhos dos meus quando faz essas piadinhas. Ela
não dispensa uma aventura inusitada comigo e aos poucos sua

autoestima e confiança foram restauradas, mas fazer e falar sobre


sexo, sem constrangimento, são duas coisas diferentes pra ela.

Liberto sua mão para que ela siga para o banco do passageiro
e dou a volta para abrir a porta de trás.

— Agora estou com mais pressa — grito, mas apenas ela


entende do que estou falando e ouço sua risada baixa.

Eu a vejo se sentar e ligar o som e ajudo Bernardo a entrar no

carro. Enquanto ajusto o cinto de segurança em volta dele, finjo


alguma dificuldade, para ganhar tempo.

Vovó Rute se senta ao lado do Minduim e mantém as mãos


fechadas sobre o colo, muito concentrada na vista da cidade que

temos daqui.
Vejo Alice vir correndo de dentro de casa. Ela para ao meu

lado enquanto começa a discursar sobre a história de um amigo que


está precisando de atendimento, enquanto isso, enfia três papéis no

bolso da minha calça.

— Três? — sussurro.

— Já que está todo Santa Claus nesse ano, pode aproveitar e

atender o Minduim e a vovó.

Abro um sorriso com a sugestão.

— É uma ótima ideia. — Fecho a porta do carro para que

nenhum deles possa nos ouvir. — Acho que vou fazer uma lista com
os pedidos de todos. Não quer me trazer o seu, do papai e da
Bárbara?

— Relaxa que a gente se vira. Só tem uma coisa que vocês

podem me dar, mas vou deixar pra falar disso no ano que vem —
Alice brinca, se aproveitando do fato de que falta pouco para isso.

— Que que tá acontecendo? — Robin chama lá de dentro. —


É fofoca? Quero saber também.

— É sim, Docinho. Já te conto…

Olho para Alice arregalando os olhos em busca de ajuda.


— Pergunta se ela viu que o Dominirock terminou e já saiu o
escolhido.

— Boa ideia! Lógico que ela viu, mas vou dizer que era disso
que estávamos falando.

Entro no carro e aceno para Alice antes de dar a partida.

— E então, qual é a fofoca? — Robin pergunta assim que


saímos do portão.

— Alice estava me falando que aquele programa que você


estava acompanhando terminou, o Dominirock. Disse que

selecionaram o baixista.

— Era isso? Fofoca velha, amor — comenta. — Não acredito

que você não viu o último episódio, foi emocionante…

— Pois é, perdi, que tristeza.

Ela estreita os olhos para mim, porque sabe que não ligo muito

para a banda.

— Sei. Mas você se lembra do cara que chegou com a bebê


no colo?

— O tal Açougueiro?

— Isso! O mais fofo de todos, ele foi o vencedor.


— Mais fofo? Nem sei se posso ficar enciumado. Fofo não é
apelido legal pra dar pra um homem.

— Quer que eu fale o mais gost…

— Robin! Essa palavra é reservada só pra mim.

Ela ri, se divertindo às minhas custas.

— Bom, o Ethan foi quem venceu. Agora vão começar a fazer


shows com a nova formação. Não é demais?

— Ele parecia mais legal que o resto — concordo, com a visão

de quem viu uns três episódios, se muito.

— Eu preferia que o Josh vencesse — vovó Rute grita lá de


trás —, ele ajuda os idosos, eu ia gostar de morar em um daqueles

asilos dele. Pena que ele perdeu…

Robin se vira no banco, fitando a avó em desespero, e começo

a rir. Ainda que eu não seja fã, todo mundo sabe que Ashton, Josh e
Tray são a formação original da Dominium.

— Vó! O Josh é da banda desde os quinze anos!

— Então ele não concorreu?

— Lógico que… — Mas então ela para, porque alguma outra

coisa atrai sua atenção. — De onde foi que saiu isso?


Olho pelo retrovisor e consigo ver a que ela se refere.

A saia preta da vovó está cheia de bolinhas brancas de isopor


e tem um monte de papel de presente jogado no banco, além de

várias fitinhas douradas.

— Nem na época que era casada com seu pai, a Bárbara era

tão unha de fome, Robinha, e ela era pobre. Pensei que agora que é
rica…

— O quê? Minha mãe? — Robin pergunta, surpresa.

Seu assombro é justificado, já que Bárbara não economiza em

absolutamente nada.

— Pendurou os presentes na árvore e eu peguei só três, mas

quando abri, olha aí! Só tem isopor dentro, Robinha!

Demoro um instante para compreender que vovó Rute roubou

a decoração da árvore, os enfeites, acreditando que fossem

presentes de verdade. Só me dou conta disso quando a gargalhada

de Robin ecoa no carro.


Dizem que para uma pessoa apaixonada não existem
obstáculos. É assim que me sinto ao ler a lista de desejos de Robin,
porque ela não foi muito econômica nos planos.

Fazer uma viagem de motor home pelo país, considerando


nossos trabalhos, já não seria fácil, mas com vovó Rute e Minduim,

me parece quase impossível. Quase, porque como eu disse, para os

apaixonados tudo é possível.

Assistir a um show da Dominium e conhecer a banda, no


entanto, é um pedido que exige um pouco mais de mim do que pura

determinação, afinal estamos em países diferentes e a Robin nem

mesmo fala inglês.


Patinar no gelo, morando no sul de Minas, não preciso nem

explicar o quanto é complicado, e isso falando das partes fáceis,


porque ela também mencionou uma filial da Que Seja Doce, que

mantivesse o padrão. Como em nome de Deus, eu vou fazer isso?

E, claro, como eu já esperava, seu último e mais profundo

desejo é justamente aquele que não posso dar a ela, diante disso,
os outros se tornam fáceis.

Estou no intervalo entre uma consulta e outra e aproveito o


momento para ler também os desejos de Minduim e da vovó.

Ele quer ver um dinossauro de perto, voar como um super-

herói e ganhar um irmão.

— Merda… — reclamo comigo mesmo, os pedidos dele


conseguem ser mais impossíveis que os da mãe. — Vamos ver o

que a vovó preparou pra mim. — Abro o papel já prevendo o pior,

por se tratar de quem se trata.

E não sou decepcionado com seus desejos.

1- Conhecer um alienígena do bem

2- Andar de moto com um broto

3- Dançar forró agarradinha de novo


4- Pintar os cabelos

É, Dominic… Maldita hora que decidiu realizar esses desejos

de Natal.

Mas não importa. A partir do momento que me comprometi,


não posso mais voltar atrás, afinal um compromisso comigo mesmo

ainda deve ser levado em conta.

A paciente que estava marcada para as 18h finalmente chega,

e interrompo minha divagação para recebê-la. A mulher passa pela


porta um tanto cabisbaixa, e percebo que qualquer que seja o

motivo que a trouxe até aqui é algo que a deixa envergonhada.

— Sente-se Anabel.

Ela alisa a saia comprida, nervosa, e se senta na cadeira à

minha frente, encarando as próprias mãos.

— Vamos conversar um pouco sobre você. O que você faz? —

questiono, me recostando em minha poltrona.

— Eu… Eu sou escritora.

Já gosto dela.

— Escritora? Isso é fascinante. E o que você escreve?


— Romances… — Percebo um leve rubor em seu rosto e isso

me faz deduzir que sejam livros com um conteúdo mais erótico.

— Isso é ótimo. Eu trabalho muito com palavras também —

comento, e finalmente ela ergue os olhos.

Aponto para o pote com os bilhetes, versos, enfim, os


pensamentos que deixo à disposição dos pacientes.

— Ainda fazemos a terapia tradicional, claro — continuo —,


mas acho que as palavras escritas tem o poder de tocar as pessoas

de um jeito mágico.

Anabel abre um sorriso ao me ouvir.

— Você é casado? — pergunta, mas ao mesmo tempo acho

que se dá conta de que falou alto e cobre a boca, emitindo um


arquejo exasperado. — Me desculpe, eu só quis dizer… Bom,

ninguém me entende quando falo de como as histórias mexem com


as pessoas.

Isso me arranca uma risada, pelo jeito tímido dela sei que não
quis dar em cima de mim, foi algo meio involuntário.

— Eu sou casado, sim — respondo, apenas para deixar isso


claro —, e posso deduzir, então, que pense o mesmo que eu sobre
as palavras…

A moça me encara com os olhos brilhando e, enquanto remexe

as mãos nervosamente, começa a falar:

— Completamente. Eu vivo pela minha escrita, respiro isso e

mesmo que só falte me matar às vezes, por trabalhar muito, dormir


pouco e comer mal, no fim, quando as pessoas começam a ler e a

comentar minhas histórias, tudo vale a pena. Quando alguém me diz


que algo que eu escrevi mudou a sua vida… não tem nada que

pague isso.

— E você tem muitos leitores? — sondo, tentando encontrar o

motivo da frustração dela, porque por mais que seu ritmo de


trabalho não me pareça muito saudável, é evidente que Anabel ama

escrever.

— Tenho sim, bom… já publiquei cinco romances em formato

digital e o primeiro saiu em físico recentemente e esgotou nas


livrarias.

— Isso é incrível, parabéns.

Ela aquiesce, agradecendo, e então de repente se levanta.


— Doutor, o senhor deve estar se perguntando porque eu vim,
mas a verdade é que não posso te dar os pormenores. Ainda não
me sinto confortável. Mas acho que posso resumir dizendo que

passei a viver apenas pelos livros, dentro dos meus romances, e


minha vida social é inexistente, a amorosa… Bom, eu sonho tanto

com os homens fictícios que os de carne e osso perderam a graça.


Aí de repente conheci um cara e ele é tão maravilhoso que nem
parece real e eu…

— Não consegue acreditar? — sondo.

— Mais ou menos, não consigo me arriscar, eu acho.

— Por que não? Ele não é exatamente o que você esperava?


— questiono, dando espaço para que ela explique suas razões.

— E mais um pouco.

— Tem medo de que esteja fingindo? De que não seja de


verdade?

— Ah, doutor! Ele é lindo de morrer, forte, sarcástico, tem um


passado meio sombrio, olhos azuis que penetram na alma.

— Certo — respondo, escondendo o riso. — E as qualidades

além do físico? Por falar nisso, passado sombrio não é exatamente


uma qualidade.

— Eu sei, mas é coisa de romance. Bom, ele é gentil,

educado, apesar de muito convencido. Ele valoriza o que eu penso,


aceita minhas decisões, é fiel e incrivelmente decidiu que gosta de

mim. Quer dizer, olha bem pra mim… Eu não sou feia, mas não faço
o tipo de um cara desses.

— Já que o assunto são os romances dos livros, não é

exatamente assim que acontece? O popular e a menina dos livros?

— A menina nerd, é desse jeito sempre! Mas isso porque


quem escreve os livros são as garotas como eu. Na vida real eles

querem as meninas que só pensam em compras e no quanto o

braço dele é grande.

— Será que é nele que você não acredita?

— O que… O quê? Quer dizer que não acredito em mim? Eu

não acredito em mim! Que coisa horrível… — Ela para de andar por

um momento, refletindo. — O senhor tem razão, talvez eu não

esteja me achando digna e por isso esteja procurando desculpas e


obstáculos! Bem que me disseram que o senhor era um gênio!

— Eu… obrigado. Mas você se deu conta sozinha —

respondo, porque ela realmente chegou a uma explicação muito


rápido.

— Então… Devo me arriscar mais, confiar no meu potencial e


acreditar no amor, afinal, eu vivo de amor, certo? Se eu não

acreditar, vai ser o fim da minha carreira, não é mesmo? Eu sei que

seu trabalho está mais para me fazer encontrar as respostas do que

aconselhar na cara de pau, mas podia ao menos abrir um sorriso


pra eu saber se estou no caminho?

O comentário espontâneo me arranca um sorriso sincero.

— Isso! Bom, eu acho que vou indo então, vou achá-lo e

descobrir no que esse meu romance clichê vai dar. E… depois eu te


conto. Posso pegar um desses? — ela questiona apontando para o

pote com os bilhetes.

— Fique à vontade.

Ela enfia a mão no pote e mexe os papéis com os olhos

fechados, como se tirasse a sorte, e então pega um deles.

— “Amar é um salto de fé e acreditar em algo, ou em alguém é


o mais perto que um adulto chega de ser outra vez criança.”

— Olha só, parece que escolheu bem. Você entende isso?

Acreditar, amar é um salto de fé, é como voltar a ser uma criança


inocente, porque a maioria das crianças ainda não viveu desilusões

e por isso existe esperança nos corações delas.

— Eu entendi perfeitamente — ela me encara com os olhos

arregalados —, isso é lindo e tão específico que parece que


escreveu pra mim! Vou entender como um sinal.

— Que bom.

Anabel pega a bolsa sobre a mesa e me levanto para

acompanhá-la.

— Até semana que vem, Anabel.

— Até semana que vem, doutor escritor.

Observo enquanto ela se afasta e passa pela recepção, então


volto para minha cadeira a fim de desligar o computador. Foi um

bom dia e uma última sessão interessante. Não sei se a paciente vai

voltar, porque me pareceu estar apenas atrás de uma razão para


seguir em frente com o seu tão sonhado amor e, depois do bilhete…

Tenho certeza de que ela encarou como um sinal.

Mas não está errada em correr atrás dos seus sonhos, é

estupidez abrir mão deles por medo. O novo dá medo, mas se não
se arriscar pode estar perdendo a chance da sua vida. E por falar

em sonhos…

Abro uma aba no navegador e digito, animado.

Trailer equipado, comprar.

Os valores não são tão baixos como imaginei e constato logo

que vou precisar alugar, porque gastaria duzentos, trezentos mil,

que não tenho, para termos um trailer razoável.

Alugar motor home.

O primeiro site que abro não traz valores, apenas enrola e no

final orienta a solicitar orçamento por e-mail. Já no segundo são

bem mais específicos, colocaram fotos dos veículos e os valores

das diárias embaixo, deixando claro que se forem mais dias, o valor
fica mais acessível. Vai me custar cerca de quatrocentos reais a

diária, bem melhor.

Digito o telefone no meu celular, esperando que a pessoa do

outro lado atenda. Antes que eu me dê conta da loucura que essa


ideia é.

— Motorlar, Cleide, boa noite…


— Boa noite, Cleide. Eu gostaria de saber o que preciso para

alugar um motor home. Documentação, formas de pagamento.

— Seu CPF e RG, além da carteira de habilitação. O valor

pode ser parcelado ou à vista com desconto, e a retirada você faz


aqui mesmo.

— Poços de Caldas, não é? Não é longe de onde eu moro, vou

fazer o possível para ir aí amanhã.

— Perfeito, estaremos aguardando.

Encerro a ligação sentindo uma agitação no peito. Eu vou

mesmo fazer isso.

Apesar dos meus planos, não consegui me desvencilhar de

todos para fugir até a cidade vizinha em busca do trailer. Por ser

uma quinta-feira, o que significa noite da sobremesa, Robin me


pediu para buscar Bernardo na escola, mas eu não chegaria a

tempo e não podia explicar ainda o motivo.

— Patrulha canina, patrulha canina… Não tem poblemas…


E essa é a razão pela qual estou ouvindo a música de abertura

de um desenho infantil, enquanto Bernardo, que faltou a aula, canta


a plenos pulmões no banco de trás do carro. A fase da galinha

pintadinha já se foi, graças a Deus, mas entramos nos cachorros

patrulheiros.

Além dele, Alice também teve que vir, o que significa mais uma
mentirinha para que ela pudesse faltar ao trabalho.

— Minduim, você sabe guardar segredo?

— Craro que sim — ele responde, com seriedade.

— O papai vai fechar hoje um negócio meio diferente, se tudo

der certo, mas é surpresa pra mamãe.

— Que negócio?

— Um trailer. O que você acha de alugarmos um trailer e


sairmos de férias?

Bernardo arregala os olhos, parecendo surpreso e empolgado.

— É animal!

Sim, animal é a nova palavra preferida dele.

— Também acho, mas quando sua mãe ligar, não vamos

contar pra ela, tá bom? Vamos fazer surpresa quando chegarmos


em casa.

— Mas papai… — Ele diminui o tom de voz. — A tia Alice

conta tudo pra mamãe.

— Tá me chamando de fofoqueira, Bê? — Alice se vira no

banco da frente para encarar o sobrinho.

— Não muito, tia. Só um pouquinho…

— Ah! Dominic! Olha o que ele tá falando de mim.

Começo a rir, porque Bernardo não está muito errado. Alice

não é muito boa em guardar segredos.

— Vocês precisam manter isso entre nós só por uma tarde —

falo. — Não é possível que não consigam.

— Isso se você fechar negócio. Nem viu o trailer ainda… —


minha irmã comenta.

— Pelas fotos está incrível e tudo veio a calhar porque amanhã


é o último dia de aula do Bernardo, depois ele já está de férias.

— E eu vou trabalhar muito na confeitaria — ela diz, mas

parece contente com a ideia.

— Prometo te trazer um presentão da viagem.


Começamos a passar por entre rochas bem altas na estrada e
percebo a atenção de Bernardo se desviar enquanto sua boca forma
um círculo de surpresa.

— Olha o tamanho dessa pedrrra — fala, arrastando o r.

— São grandes, não são? Sabia que essa cidade foi


construída em cima de um vulcão?

Pelos olhos esbugalhados dele, percebo que não é algo que


eu deveria ter mencionado.

— Um vulcão de verdade?

— É, mas ele está dormindo.

Alice estica as pernas, apoiando os pés no painel do carro e


meneando a cabeça.

— Sempre que escuto isso fico pensando, quem será que

achou que isso era uma boa ideia?

— Não tem perigo, sempre estão observando as atividades do

vulcão.

— É, mas que quem construiu primeiro era doido, isso era… —


ela afirma.
Entramos na cidade um pouco depois e sigo as orientações do
GPS para o endereço do estacionamento e a não ser por uma curva
à esquerda na hora errada, não encontro muitas dificuldades para

achar o lugar.

Descemos do carro e somos recebidos na entrada do lugar por

uma senhora, a mesma que me atendeu ao telefone.

— Venham por aqui…

Seguimos Cleide para dentro de um estacionamento comprido.


Bernardo se diverte afundando os pés nas britas espalhadas pelo
chão.

— Você vai adorar o trailer, ele é bem completo.

Ao longe observo o automóvel, casa móvel para ser mais


específico. Ele foi pintado de branco e azul, em um estilo meio retrô

e parece bem conservado por fora.

Cleide abre a porta quando chegamos diante dele e, depois,

dá espaço para que possamos entrar.

Primeiro há uma pequena cabine, onde fica o assento do


motorista e a poltrona ao lado para um passageiro. Uma porta divide
esse espaço do restante. Eu a abro, ela se assemelha às que
costumam ser colocadas em ônibus, mas foi pintada de azul-claro.

Do outro lado, primeiro posso ver uma mesa de quatro lugares,


fixada no chão e bancos estofados que também estão parafusados

no chão e nas laterais do trailer. Já à minha esquerda vejo quatro


poltronas, dispostas em duas fileiras de dois lugares, além de uma
televisão no alto.

— Caramba, eu não esperava algo tão legal — Alice comenta,


refletindo meu pensamento.

— Nem eu…

Atrás das poltronas temos uma pequena cozinha, com armário


e um fogão de duas bocas, além de uma geladeira de tamanho

razoável.

— Atrás da cozinha ficam o quarto e o banheiro — Cleide


anuncia.

O que ela chama de quarto, é mais um amontoado de


colchões que ficam um ao lado do outro, sendo que em um dos

cantos se ergue um beliche na parede. O banheiro é minúsculo,


mas não esperava mais que isso, tem uma privada, um lavatório e
só. O negócio é tomar banho quando pararmos no caminho.
— O que achou?

— Fantástico — respondo, com sinceridade. — Posso alugar


por quanto tempo?

— O prazo mínimo é de cinco dias, não tem máximo.

— Qual a diária? — Alice pergunta.

— Esse sai a quatrocentos reais por dia.

Eu já tinha feito os cálculos e não estava disposto a gastar


todo meu dinheiro ali, afinal ainda teríamos que comer na estrada

por um mês.

— Quero locar por trinta dias, quanto você consegue fazer de


desconto? Esse valor está alto.

— Te dou 25% de desconto e pode pagar no crédito.

Cleide rapidamente aceitou baixar o preço, não imagino que

esteja tão fácil alugar um trailer e assim ela já garante o mês.

— Vamos fazer negócio então e eu já vou dirigindo.

E foi assim que Alice voltou para Lagos dirigindo meu carro
enquanto Bernardo e eu voltamos no trailer, cantando a abertura da
Patrulha Canina outra vez e muito animados, eu mal posso esperar

para ver a cara da Robin.


— Esse trrrailer é animal.
Noite da sobremesa. Com a proximidade do Natal decidi usá-lo
como tema para os doces da noite e por isso temos um cardápio um
tanto variado, além da decoração bonita que consegui organizar na

mesa. A toalha no tom verde-escuro faz contraste com o dourado do


jogo de sousplat da mesa.

— Eu adoro esses pratos brancos — vovó Rute comenta de

repente, me assustando.

— Ai, que susto! Não vi a senhora entrar…

— Fui colocar um tapetinho de crochê que terminei no quarto


do Minduim e vim te ajudar. Quer que eu coloque os doces na

mesa?
— Os doces são para depois do jantar, vó. Pode deixar que já

estou terminando, senta aí.

— Só espero que Dominic e Bernardo cheguem a tempo — ela


fala, escolhendo uma cadeira de frente para mim.

Termino de colocar os pratos de porcelana que ganhei no

casamento sobre a mesa e aquiesço, concordando.

— Dominic pegou ele na escola, acho que passaram na casa

do pai dele.

Vovó agora está encarando o prato à sua frente, analisando

seus traços no reflexo dele.

— Robinha, hoje eu posso comer um docinho, não é verdade?

Encaro vovó Rute, que ergue o rosto e me fita com os olhos

suplicantes.

— Claro. Na noite da sobremesa vamos abrir uma exceção,

mas a senhora pode comer só dois, tá bom? Escolha bem.

Torço para que a resposta dela seja a que previ, porque são os

únicos que fiz sem açúcar. Alguns diriam que a estou enganando,
mas é por sua saúde que faço isso.
— Então vai ser o chocotone e também um pedaço daquele
pudim bonito que você colocou na geladeira — ela responde,

animada.

Por sorte eu a conheço muito bem e, se tudo der certo, vovó

nem vai notar a minha artimanha.

— Tá bom. Combinado então, eu vou só tomar um banho e

venho. Se o Dom chegar, avisa pra ele que já vamos jantar.

Entro no banheiro e aproveito para colocar uma música para


tocar no celular. Gosto de ouvir enquanto a água quente leva

embora o cansaço do dia, uma das coisas que descobri que adoro,

recentemente. É como se antes eu fosse apenas uma sombra,

passando pela vida, e depois tivesse renascido.

E, para melhorar, às vezes aos fins de semana, minha mãe


leva vovó Rute e Bernardo para a casa dela e Dom e eu temos o

apartamento só pra nós. Nessas ocasiões, gosto ainda mais dos

banhos, ouvir música enquanto alguém esfrega suas costas tem um

valor especial.

— Docinho, cheguei… — Ouço uma batida na porta, que é

seguida pela voz dele.

— Já estou saindo!
Ouço seus passos se distanciando e sua resposta mais

distante.

— Tá bom. Vou arrumar a mesa.

Ele não deve ter visto que já arrumei, termino meu banho

rapidamente e me troco, colocando um vestidinho rodado que


Dominic me deu na nossa lua de mel. Já vestida, deixo o banheiro

passando os dedos pelos fios dos cabelos, em uma secagem


malfeita.

Quando chego à cozinha, os três já estão sentados à mesa me


esperando. Os biscoitos natalinos coloridos foram colocados em um

pote, cuja tampa é um boneco de neve, e as panelas de comida


estão apoiadas nos descansos.

Dou um beijo nos cabelos cheirosos do meu filho e abraço


Dominic que já está picando um pedaço de carne para o nosso

Minduim.

— E então? Onde foi que vocês foram? A aula terminou faz

tempo…

Noto uma troca de olhares estranha entre os dois e me sento


em frente a eles. Apoio as mãos sob o queixo e os encaro com
atenção.
— Que foi? Estão com cara de que aprontaram alguma.

— Porque aprontamos — Dominic responde, arrancando uma

risada de Bernardo.

— E eu posso saber o que é? — Estreito os olhos, cada vez

mais desconfiada.

Vovó Rute também está atenta, observando a conversa em


silêncio.

— Pode. Na verdade, você tem que saber, pra se preparar.

— E esse mistério todo é pra fazer suspense?

— Vou contar, mas quero que saiba que já eliminei todas as

suas oposições. — Ele coloca o prato diante de Bernardo e apenas


então se senta. Dominic apoia os cotovelos na mesa e me encara

de volta. — E antes de me dar mil motivos para não fazermos isso,


precisa saber que não tem como desfazer. Já era!

— Eu estou ficando com medo. O que ele fez, vovó?

— Casou com você.

Encaro minha avó sem entender a que ela se refere e vejo

quando dá de ombros, antes de voltar a falar.

— Ele disse que não dá pra desfazer, pensei que fosse isso.
Prefiro não explicar agora que casamento pode ser desfeito
facilmente. Inclusive é o que mais acontece.

— Minduim? O que o papai fez?

— Uma surpresa animaaaal!

— Essa parte acho que eu entendi. Mas qual é a surpresa?

Dominic abre um sorriso cúmplice para Bernardo e, depois, se


volta para mim novamente.

— Lembra que pedi que fizessem as listas na casa do meu

pai? — Como me mantenho quieta, ele continua: — Eu não fui


honesto sobre meus motivos.

— Como assim?

— Eu… decidi que queria realizar seus sonhos, amor. Não só


os seus, os da vovó e do Bernardo também, então peguei as listas
da árvore e comecei a trabalhar nelas para realizar alguns dos

pedidos de vocês, pelo menos.

— Ah! Você roubou as listas da árvore? Não sei se estou brava


por ter lido tudo ou feliz com o gesto — falo, realmente surpresa.
Mas então me lembro dos desejos que coloquei no papel. — Olha,

agradeço pela ideia, mas se você já leu deve ter notado que
coloquei coisas bem inalcançáveis ou no mínimo complicadas.
Quando escrevi, não estava esperando a possibilidade de que
fossem acontecer.

— Eu sei que não era pra ninguém ler — ele responde, sem se

abalar —, mas como eu poderia alugar um trailer pra viajarmos o


mês todo, se eu nem fazia noção de que você queria isso?

— Como assim alugar um trailer? — questiono, com a certeza

de que meus olhos estão prestes a saltar das órbitas e sem registrar
quando vovó Rute se levanta da mesa, talvez com receio de

presenciar uma discussão.

— Foi o que o Minduim e eu fomos fazer, buscar seu motor

home. Sendo sincero, a Alice foi junto, porque precisava de alguém


para trazer nosso carro de volta.

— Dominic! Como você fez isso? Tem a confeitaria e…

— Já resolvi essa parte. A Alice vai tomar conta de tudo. Acho

que ela já provou que é capaz, e merece esse voto de confiança.

Abro a boca, mas não sai nada. Fico sem palavras por um
momento, mas logo as razões pelas quais isso é uma loucura

retornam.
— Bernardo tem aula.

— As férias começam amanhã.

— Mas tem a clínica, seus pacientes…

— Sim, já consegui programar o mês de férias na clínica e os

pacientes particulares eu posso atender online e adiar os que

também vão viajar.

— Mas… Tem também… — Tento encontrar mais alguma

razão, mas fica cada vez mais difícil e a expectativa começa a


crescer dentro de mim. — A vovó vai ficar desconfortável.

— Sua avó? Ela quer andar de moto, Robin. Acha que um

trailer com cama, poltronas e tudo mais vai ser páreo pra dona

Rute?

Nesse momento ouço o som dos saltinhos do tamanco dela

batendo no chão, indicando seu retorno.

Meu queixo finalmente vai ao chão ao encará-la com seus

sapatos de sair, um chapéu de palha na cabecinha branca e nada


menos que uma mala nas mãos, mas a pergunta que ela faz a

seguir é o estopim:

— Podemos ir agora?
Não foi tão difícil quanto imaginei convencer Robin,
principalmente porque, claro, eu sabia que ela queria, afinal os

desejos eram dela, mas também tinha ciência de que a confeitaria


seria um empecilho, porque é difícil para ela deixar o controle do
lugar nas mãos de outra pessoa.

No fim, a empolgação de Bernardo e da vovó foram os maiores

incentivos que ela precisava e, quando Robin viu o trailer, seus


olhos castanhos brilharam tanto que pareciam mel.

E foi assim que chegamos até aqui. Dois dias depois, em um

sábado ensolarado que parece bem promissor, observando o roteiro


que fizemos juntos — parte dele eu omiti — e deixando a garagem,
já abastecidos de combustível e de comida.

Robin está mais linda que nunca, os cabelos de um tom escuro


de loiro parecem mais claros com os raios do sol sobre eles. Ela fez

um coque no alto da cabeça, mas alguns fios se soltaram e agora


caem sobre seu rosto. Usando um vestido florido e um par de tênis

brancos, ela é como um dia de primavera, florescendo.


Vovó Rute está instalada confortavelmente lá atrás e Minduim

já assiste desenhos na televisão. Deixamos as ruas de Lagos para


trás, animados com a imprevisibilidade de tudo que nos aguarda.

— Nosso primeiro destino é São Paulo. Vamos parar antes,

ainda em Minas? — Robin já assumiu o modo copiloto, com o mapa

sobre o colo — optamos por um de papel por pura frescura, para


nos sentirmos mais aventureiros —, e com os pés no painel do

trailer.

— Vamos direto, se sentirem fome paramos no caminho, se

não, jantamos quando chegarmos lá — respondo, ciente de que não

teria a menor chance de seguirmos por umas cinco horas de viagem


sem que um deles decida ir ao banheiro ou comer.

Ela aquiesce, de acordo.

— Sabe, a hora que você disse o que tinha feito, achei que

fosse brincadeira. Depois pensei que era loucura…

— E agora? — pergunto, olhando de soslaio.

Robin dá de ombros, mas se senta direito e inclina o corpo a

fim de ligar o som.


— Ainda estou morrendo de medo de que Alice não dê conta,
mas feliz de termos arriscado. Sempre quis fazer isso…

— Devia ter me falado antes, podíamos já ter feito.

— Eu nem tinha vida antes de você, amor — ela responde,


carinhosa. — As coisas foram acontecendo e só agora estou

conseguindo pensar em tudo que tenho vontade de fazer.

— Não quero que se anule nunca mais.

— Não vou. — Robin estende a mão e a apoia sobre a minha

perna.

— Quero que compartilhe seus sonhos comigo, desde os mais

bobos até os mais importantes pra você, e prometo que farei o que
estiver ao meu alcance pra te ajudar a realizar todos eles.

Espero sua confirmação e a chance de talvez entrar em um

assunto mais sério, de discutir os motivos pelos quais não devemos

considerar a reversão da cirurgia que ela fez, mas ao invés disso


sou surpreendido com os gritos de Bernardo.

— Manhê! Manhê! — A gritaria dele nos assusta, e Robin abre

a porta rapidamente.

— O que foi, filho?


— A vovó foi no banheiro e ela tá gritando lá de dentro.

— Ai meu Deus…

Robin se levanta e sai correndo. Fico apreensivo porque não


posso deixar o volante para descobrir o que está havendo, mas, por

sorte, estamos em uma parte da rodovia que tem acostamento,


então jogo o trailer para a lateral da estrada e estaciono, antes de

sair da cabine, indo atrás dela.

— O que houve? — pergunto para o Minduim, porque Robin e

vovó Rute não estão à vista, ainda que eu ouça as vozes acaloradas
delas vindas de dentro do banheiro.

— Acho que a vó caiu lá drento…

— Robin! Vovó! Está tudo bem aí? — pergunto, me


desesperando com a resposta dele.

— Es… Está! — A resposta da minha esposa vem


entrecortada com uma risada.

— Pare de rir de mim, Robinha!

Fico mais aliviado, porque se estão rindo significa que não foi
nada sério.
Em poucos instantes as duas saem de dentro da cabine, Robin

secando algumas lágrimas dos olhos e vovó Rute andando


estranhamente com as pernas bem abertas.

— O que aconteceu?

As bochechas da velhinha se tingem de vermelho, mas ela não


hesita em me contar.

— Eu dei descarga sentada e adivinha só? O vaso me chupou


pra dentro! Fiquei entalada!

— O vaso…

— Eu apertei o botão, mas não foi água que veio, não senhor!
Foi um vento forte que puxou minhas almofadas pra dentro e quase

me virou do avesso.

Robin começa a rir outra vez.

— A vovó estava com as pernas pra cima, entalada. Por sorte

era só o número um, ou estaria toda suja também.

— Culpa sua, Dom — vovó diz, apontando o dedo em riste


para mim. — Devia ter dito que era pra dar descarga de pé!

Tento me manter sério, mas as lágrimas escorrendo pelos


olhos de Robin, de tanto rir, não estão ajudando muito.
— Acho que além dessa regra, melhor instituirmos a de não
fazer número dois no trailer a menos que seja impossível segurar
até a próxima parada — falo, com expressão compenetrada e

evitando encarar Robin. — E se for impossível, é só pegar uma


sacola, colocar no vaso e pronto.

— E a sacola…

— A gente descarta nos campings. Porque do contrário vamos


ter que limpar o reservatório e eu acho que não vai ser nada

agradável.

— Certo. Cocô na sacolinha ou nas paradas — vovó Rute

concorda. — Agora vou acalmar meu traseiro naquela poltrona.

— A senhora está bem mesmo? Não se machucou?

— Só feri meu orgulho, filho — ela responde, se afastando e

nos deixando com um misto de pena e diversão.

Depois disso, a viagem transcorre em clima de diversão e sem


maiores inconvenientes. Ainda estamos no interior de Minas Gerais
e um pouco longe de chegar a São Paulo, quando Minduim aparece

na porta, com uma carinha de tristeza.


— Eu tô com a barriga doendo… — reclama, colocando a mão
sobre ela.

— Quer ir ao banheiro? — Robin pergunta, já estendendo a


mão para pegar um saquinho. Ficamos mais espertos depois da

vovó entalada feito sardinha.

— Não. Tô com vontade vomitar.

— Droga. Esqueci de comprar remédio pra enjoo — reclamo,

comigo mesmo. — Já está escurecendo e parece que tem uma

cidadezinha logo ali, descendo por aquela estrada.

Robin observa o lugar para o qual aponto, no mapa e assente.

— Deve ter uma farmácia e algum lugar onde possamos tomar

banho e estacionar pra passar a noite — continuo. — Está vendo as

luzes lá embaixo?

— Estou, a entrada deve ser por aqui, fique atento. Vale do


Recomeço… Não é onde mora aquela atriz? — ela questiona.

Minha expressão é de completa surpresa, afinal, o que uma

atriz conhecida iria fazer morando em uma vila pequena assim, não

sei.

— Que atriz?
— Uma bonita que fazia uns filmes de comédia romântica e

largou tudo por um fazendeiro — ela conta, parecendo empolgada.

— Não tenho ideia de quem você está falando.

— Clara alguma coisa…

— Bom, tendo farmácia e um chuveiro, não me importo de lidar

com uma celebridade — respondo, entrando à direita, rumo ao

vilarejo.
Entramos na cidadezinha e sou surpreendida pela beleza do
lugar. As construções históricas, as ruas de paralelepípedo, as
árvores floridas. É como se tivéssemos voltado no tempo.

As pessoas passeiam despreocupadas pela calçada, se


cumprimentando, e o cheiro de dama da noite já permeia o lugar,
ainda que haja resquícios de sol no céu.

Um padre — a julgar pela batina —, está parado em frente a

uma pequena sorveteria, conversando com uma garotinha e

aproveitamos a oportunidade para pedir informações.

— Boa tarde, tudo bem? O senhor sabe onde tem um hotel? —


pergunto, colocando a cabeça para fora da janela.

O padre abre um sorriso que me parece meio debochado,

antes de negar.
— Aqui não tem hotel, mas temos uma pousada em reforma,

logo ali na frente — ele diz, apontando. — Ainda não está em


funcionamento, mas talvez tenham um quarto…

— Se tiver banheiro já está de bom tamanho. Dormimos no

trailer — Dominic responde, gritando do outro lado.

— Ah, que ótimo! — o religioso comenta, observando o trailer

com mais atenção. — Pretendem passar a noite? Hoje é dia de

festival na cidade, festa do milho. Se quiserem se juntar a nós, vai


ser na praça da igreja. Vamos ter barracas com comida típica, caso

tenham fome, e muita diversão.

Aceno em concordância e abro um sorriso em resposta.

— Muito obrigada pelo convite e pelas informações, até mais.

Seguimos em frente na direção indicada e pouco adiante

vemos um arco com a placa da pousada. O lugar é bonito e parece

um castelo.

Estacionamos no pátio, e Dominic desce para conversar na

recepção. Abro a porta da cabine e encontro vovó e Bernardo

entretidos com um filme sobre cachorros falantes.


— Eu também vou descer — falo para os dois. — Fiquem aqui
que vou ver se consigo um chuveiro pra nós e já volto.

Desço do trailer e sigo pela porta de entrada, pela qual

Dominic passou pouco antes. Já de cara se percebe que o lugar

realmente está sendo reformado e que não estão recebendo

hóspedes, porque materiais de construção estão por toda parte e


tem um andaime no meio da recepção.

Uma moça está atrás do balcão. Ela usa um macacão jeans

surrado e há uma mancha branca de tinta em sua bochecha, que

contrasta com sua pele negra, os cabelos estão presos em um


coque e uma faixa vermelha os impede de cair sobre o rosto bonito.

— Funcionando, apenas um. Mas podem usar à vontade. —

Ouço quando diz para Dominic.

— Nós podemos pagar, negociar um valor pelos banhos, ainda

assim.

— Não tem necessidade, é só uma noite e um pouco de água.

Me retribuam voltando uma outra hora quando a pousada estiver


funcionando.

Ele percebe minha chegada e se vira com um sorriso.


— Docinho, essa é a Alícia, dona da pousada Recanto do

Recomeço.

Aceno para cumprimentá-la e não deixo de pensar que o nome

da pousada me parece familiar.

— Ela disse que podemos usar o banheiro e dormir no pátio,


sem problemas. Eu me ofereci para pagar o valor da diária, mas ela

disse que não precisa.

— Ah! Isso é muito gentil, mas não precisa. Vai ter seus custos

com água e energia, então insistimos em pagar. Temos uma criança


e uma idosa a bordo, o que deixa a viagem ainda mais complicada.

— Eu imagino. Essa cidade é conhecida por ser um refúgio


para todos que colocam os pés aqui, então fiquem à vontade e

realmente não precisam pagar pela água. Só vou pedir que tomem
banho mais cedo, porque tem festival do milho na praça logo mais e

preciso trancar tudo antes de ir.

— O padre que nos deu informação falou a respeito, parece

que é um bom lugar pra acharmos comida — Dom comenta, me


encarando em busca de aprovação.

— Por mim pode ser…


— É o melhor que vão encontrar hoje — Alícia comenta. — O

Porta sem trinca tem ótimas porções, mas estão fechados hoje
porque o dono também vai para o festival, mas as barracas têm tudo

que possam imaginar, vocês vão amar.

— Perfeito. Então vamos tomar banho para não te atrasar e

depois vamos a esse festival — comento, me animando.

Volto para o trailer a fim de pegar as roupas de Bernardo para


que ele tome banho antes e já deixo vovó de sobreaviso. Ela parece

bem empolgada com a ideia do festival e posso imaginar que, para


alguém que sai tão pouco de casa, seja mesmo um acontecimento e
tanto.

Entro com o Minduim na pousada e, mesmo que em meio a

latas de tinta e lona, dá pra perceber como a arquitetura do lugar é


linda. Com certeza vai ficar um espetáculo depois de reformado, o
que me parece meio longe de acontecer.

— Boa noite — cumprimento ao passar por um rapaz que está

parado no corredor que vai para o banheiro, usando um terno que


vale mais que a minha confeitaria.

Ele me olha de um jeito estranho, como se analisasse minha


aparência minuciosamente, e depois seus olhos se detêm em
Bernardo.

— Boa noite, a pousada está fechada — responde, arrogante.

— Eu sei, a Alícia nos permitiu usar o banheiro.

Ele apenas aquiesce, mas não responde o comentário e nem


sai do caminho.

— Léo? Está incomodando a moça? — Alícia grita. — Dá


licença pra eles e vem aqui me ajudar.

O rapaz esquisito obedece e finalmente sai da frente, deixando

o caminho livre para que Bernardo e eu possamos entrar no


banheiro.

Levamos cerca de uma hora para tomarmos banho, Bernardo,


Dominic, a vovó e eu e depois voltamos para o trailer para

terminarmos de nos arrumar.

Dominic está todo informal, diferente das roupas mais sociais

que usa no dia a dia na clínica, dessa vez decidiu usar uma
camiseta preta de mangas curtas, calça jeans escura e um par de

sapatos claros. Troco o vestido rodado de durante o dia por um


macacão de cor verde, e combino com uma sandália baixinha,

penteio e seco os cabelos e os deixo soltos.


Minduim trouxe todas as suas fantasias de super-herói na mala
e hoje optou por sair vestido de Homem-Aranha. Já a vovó está
radiante em um vestido de oncinha abaixo dos joelhos. É, não

vamos passar despercebidos pelo jeito.

Deixamos o pátio da pousada rumo à praça da cidade e


aproveitamos para caminhar pelas ruas calmas, sentindo o cheiro
da noite. Quando viramos na esquina já conseguimos ver a
movimentação e nem precisamos pedir que indiquem o caminho

certo.

A cidade inteira parece ter decidido comparecer, e mesmo

considerando que Vale do Recomeço não é grande, ainda assim é


muita gente.

Paramos em volta do coreto, porque há uma banda tocando e

alguns casais se arriscam em umas dancinhas mesmo no meio do

povo. As barracas ficam no meio da rua e chamam a atenção por


suas diversas cores e cheiros, que se espalham pelo ar.

É tanta gente junto que mal me dou conta quando Alícia chega

e para perto de nós, não até que ela se pronuncie:

— Vou apresentar meus amigos a vocês, precisam se

enturmar para entenderem realmente o poder dessa cidade. — Sua


voz atrai minha atenção e me viro para encontrá-la ao meu lado.

Ela acena empolgada para um casal que está atrás do coreto e


percebo que eles caminham em nossa direção, junto com outro

rapaz. Pela careta que Alícia faz, ela não esperava que ele viesse

também, mas é só quando eles param diante de nós que percebo

que a moça é a atriz de quem falei com Dominic antes. Eu já a vi em


vários filmes, mas infelizmente não consigo lembrar seu nome.

— Pessoal, essa é a Robin, o marido dela…

— Dominic — ele complementa.

— Isso, o filho deles, Bernardo — ela aponta, e Minduim faz

questão de fazer o gesto da teia do homem aranha para eles, o que


arranca risadas de todos —, e a avó, dona Rute.

Eles nos cumprimentam com educação, ainda que pareçam

não entender bem de onde surgimos.

— E esses são Levi e Clara, meus grandes amigos.

O outro rapaz franze o cenho, esperando que ela o apresente,


mas como Alícia não o faz, ele se adianta, estendendo a mão para

nos cumprimentar.

— E eu sou Felipe.
— É um prazer — respondo, estendendo a mão para

cumprimentá-lo também e depois me viro para Clara. — Você é a…

— Eu era — ela responde sorrindo —, agora sou só uma

roteirista que mora em uma fazenda.

— Combina com você — elogio. Ela realmente parece bem à


vontade aqui.

— Não é? E você ainda nem me viu dançar forró. Garanto que

me saio melhor que atuando.

— Forró? — Dominic interrompe a conversa. — Nesse festival


vão dançar forró?

— Tem até alguns casais dançando já, daqui a pouco

começam de verdade, mas, fica tranquilo, ninguém é obrigado, cara

— Levi responde, gargalhando.

O homem é o típico fazendeiro rico, usa uma camisa social e


calça jeans, botas escuras e um Rolex prata no pulso. Só falta o

chapéu, mas, considerando que já é noite, estranho seria se

estivesse usando. Ele e Clara formam um casal bonito, bem mais do


que ela e o ator que namorava antes.
— Não é isso — Dom responde, também rindo —, é que

preciso de um broto.

Levi encara meu marido com uma expressão estranha, como

se estivesse tentando entender de que ele está falando.

— Broto de quê? Feijão?

Dominic é quem ri abertamente agora.

— Não. Nós estamos viajando em uma espécie de missão,

realizar os desejos de toda a família. Por coincidência um dos


maiores desejos da vovó, é dançar forró com um broto. No caso, ela

se refere assim aos rapazes…

— Isso é muito legal! O Levi pode dançar com ela, não é

amor?

O rapaz ao lado começa a rir da enrascada em que a moça

acaba de colocar o marido. Mal sabem eles da obsessão da vovó

por aquilo que ela chama de almofadas. O parceiro de dança dela

corre sérios riscos de ser apalpado.

— Estrelinha, dançar eu posso, mas acho que está

esquecendo de que não sou exatamente um broto. Já passei disso

tem uns dez anos pelo menos — ele responde, se divertindo.


— Ah, isso não é problema — Dominic responde. — É uma

questão de perspectiva. Você está comparando com adolescentes,

mas a vovó está comparando com a idade dela. Eu sou um broto na

opinião dela, então você também é.

— Então perfeito, eu danço com a vovó. A menos que o Felipe

queira ir no meu lugar, ele adora dançar forró…

— Não danço bem como você, patrão.

Olho para a vovó, pra ver como a ideia lhe parece, mas ela

está distraída fazendo a teia junto com o Minduim e nem percebeu.

— Tá bom, então. Quando começar eu a tiro pra dançar — ele


decide.

— Enquanto isso, vamos dar uma volta pelas barracas e

conhecer o festival melhor. Muito obrigado. — Dominic segura

minha mão, e chamo nossa dupla dinâmica para nos acompanhar


no passeio.

Bernardo e vovó caminham à nossa frente, apontando

basicamente para tudo o que veem, até que eles estacam de

repente, quase nos fazendo trombar.


— Robinha do céu! Olha isso! — vovó fala, agitada, enquanto

aponta para uma tenda colorida.

Na placa está escrito em letras garrafais: MADAME SUZINDA,


LEIA SUA SORTE AQUI.

— Ah, não vó! Fala sério, vamos comer alguma coisa.

Mas ela já está seguindo adiante, arrastando Bernardo pela

mão. Por sorte ela se depara com o padre em seu caminho, o que
deve detê-la por um momento.

— Boa noite — ele cumprimenta e então vê Dominic e eu, logo

atrás, e abre um sorriso enorme —, vocês vieram mesmo. Espero

que estejam se divertindo.

— Estamos sim, obrigado pelo convite — Dominic responde.

— Com licença, padre. Vou ali ler minha sorte… — vovó diz,
em uma frase que nunca antes deve ter sido dita.

Mas, ao invés da repreensão que eu esperava ver nos olhos

do clérigo, ele apenas aquiesce, achando graça.

— Olha, tem dias que ela não fala, mas a senhora deu sorte.
Hoje a Su está falante, mas tentem não se incomodar, ela gosta de

pôr medo nas pessoas.


— Eu quero ouvir o meu destino. Quem sabe o que pode ser?
Com essa armação toda dos Iluminatti para dominar o mundo, as

coisas estão cada vez mais difíceis.

O padre parece confuso, mas não questiona a que ela se

refere e se oferece para acompanhá-la. Acho por bem ir junto,


porque a situação me parece estranha e vovó não é muito confiável

para ficar sem supervisão, mas deixo Dominic tomando conta de

Bernardo, afinal não preciso de um menino tendo pesadelos depois


disso.

Entramos na tenda bonita, feita de tecidos roxos e laranjas. Do

lado de dentro, um tapete estampado cobre todo o chão e, bem ao

fundo, uma figura esquálida e realmente amedrontadora nos encara


com órbitas brancas.

— Sejam bem-vindas à tenda da Suzinda, divirtam-se! — o


padre diz, e então sussurra para mim, baixinho: — Não deixa ela te

assustar.

Nós caminhamos até estar em frente a ela e, enquanto vovó se

senta em uma almofada no chão, observo as roupas coloridas da


cigana e sua respiração lenta. Ela se mantém tão imóvel que
poderia estar morta.
Até que ela bate palmas do nada e me faz dar um pulo.

— Huuum… O que as traz aqui? Querem saber o futuro?

— Melhor deixar isso com Deus — vovó responde. — Meu

futuro é a morte. Já estou com um pé na cova.

A cigana esboça um sorriso.

— Quer saber o que te aguarda no além-vida?

— E você por acaso sabe? — vovó indaga, astuta.

— Vim de lá. Este corpo é terreno, mas minha alma veio de


onde nenhum humano vivo já pisou.

— Robinha! É ela! Ela é um extraterrestre.

— Pode se dizer que sim — a cigana responde, esboçando um


sorriso.

— Ah, pelo amor de Deus… — murmuro, sem me conter.

— A jovem é cética. Tudo bem, só precisa de uma experiência


sobrenatural para abrir seu olhar interno.

— Tá bom. Agora vamos, vó.

— Você é do bem? Não está aqui para fazer mal aos homens,

está? — minha avó questiona.


— Estou aqui há quase cem anos e em nenhum dia cogitei
ferir os indefesos mortais. Estou aprendendo com eles e ensinando
a enxergarem o que é importante…

O padre meneia a cabeça, também sem acreditar na conversa


bizarra.

— Que monte de asneira é esse? Ela assustou a senhora? —


ele pergunta, encarando vovó Rute, com pena. — Suzinda,
Suzinda… Não vou mais te levar pro bar se continuar assustando as

visitas.

A velha então para de se mexer, com uma expressão medonha

no rosto, como se fosse uma estátua. Passo a mão diante dos olhos
dela e estalo os dedos, mas ela permanece imóvel.

— O que houve com ela?

— A Su só está brincando — o padre responde, mas não


tenho muita certeza disso.

Deixamos a tenda rapidamente. Eu, apavorada, já vovó Rute


toda feliz por ter conhecido um alienígena do bem, nas palavras
dela. Então nos encontramos com Dominic e Minduim, que devora

um algodão-doce como se não houvesse amanhã e voltamos para


perto do coreto, bem em tempo, porque o forró acaba de começar.
Levi tira minha avó para dançar e vejo os olhares que ela
direciona a ele, toda coquete. Clara também percebe, e parece

achar graça na situação. Por sorte, a velhinha está se comportando


bem e não escorrega a mão para baixo da cintura do homem.

Dominic e Bernardo saem pelas barracas, agora em busca de


pastéis, e fico ao lado do coreto observando a dança com Alícia e
Clara.

— Essa cidade é muito gostosa, entendo porque quis ficar aqui


— comento, me referindo à Clara.

— É muito bom viver aqui, mas não se engane — Alícia


comenta —, Clara foi seduzida por ele, eu que fiquei pela cidade.

— Mesmo? Você também não era daqui?

— Não. Eu morava em Belo Horizonte, mas vim buscar a Clara


e me apaixonei pela cidadezinha. A pousada estava à venda e uma
coisa levou a outra…

— Comprou a pousada e ficou?

— Exatamente. Estou reformando tudo agora, vai ter uma área

de lazer e um café embaixo. Provavelmente.

— Não tem certeza ainda? — questiono.


— Ela quer a filial de uma confeitaria que tem lá em Lagos,

conhece a cidade?

— Lagos? — pergunto, tardiamente percebendo onde foi que


ouvi o nome da pousada.

— Isso. Se chama Que Seja Doce, comi lá uma vez e quase


morri de amores, foi um orgasmo gastronômico. Mas infelizmente

eles não querem franquias — Alícia conta.

Eu me lembro bem de quando ela entrou em contato e Dominic


rejeitou a oferta por mim, prontamente. Eu realmente não estava

disposta na época, porque como poderia confiar minha marca a


alguém que não conhecia e sem saber se a pessoa se preocuparia
em manter meus padrões rígidos? Ultimamente, no entanto, a ideia

me seduz cada vez mais.

— Você já tentou de novo? Insiste um pouco — Clara sugere.

Fico quieta, apenas escutando.

— Eles acham que vai perder a qualidade, mas eu sou

dedicada, sou esforçada, sabe? — ela diz, se voltando para mim. —


Se quero essa confeitaria é justamente porque quero o padrão
deles. Vale do Recomeço merece algo assim.
— Ela não quer saber de outra, já tentei convencer — Clara
conta. — Eu disse que a Delicatéssen Mousse também é
maravilhosa e eles estão dispostos a franquear, mas não adiantou.

— Por que tem que ser essa? — pergunto, sondando.

— É tudo! Eu amo as cores e a decoração, os doces deliciosos

e eles trabalham com uns chocolates, que chegam ao cliente


acompanhados de uma mensagem. A pessoa escolhe de acordo
com o que está sentindo no dia.

— É uma ideia genial, preciso concordar — Clara afirma.

A conversa entre elas é uma massagem no meu ego e fico


doida de vontade de me abrir e dizer quem eu sou, mas me

controlo, porque se eu o fizer, em minutos estarei sendo arrastada


para assinar um contrato.
Já é de manhã quando ouço as batidas na porta do trailer.
Primeiro elas parecem distantes, como se me sugassem de volta do

sonho para a realidade, e depois ficam mais altas e firmes.

Eu me levanto, abotoando o short, e tento sair da cama, me


desvencilhando de Bernardo, que dormiu atravessado entre Robin e

eu. Vovó Rute conseguiu se ajeitar confortavelmente no beliche.

Abro a porta e me deparo com Alícia, que já está vestida e de


salto alto às sete da manhã.

— Bom dia! Preparei um café da manhã lá dentro. Se

quiserem vir comer antes de irem embora, fiquem à vontade.


Esfrego os olhos, um tanto sonolento. Não consegui nem

mesmo lavar o rosto antes de atendê-la.

— Bom dia, Alícia. Vou esperar o pessoal acordar e nós vamos


sim. Obrigado pelo convite.

— Ah! Estavam dormindo… — Ela realmente parece surpresa.

— Me desculpe, acho que não me dei conta de como é cedo. As

pessoas nessa cidade literalmente acordam com as galinhas.

Ela retorna para dentro da pousada, com um aceno de

despedida e um pouco sem jeito.

Quando fecho a porta, quase trombo com Robin, que já se


levantou.

— Era a Alícia?

— Sim. Ela disse que preparou o café da manhã e que

podemos comer antes de ir.

— Sobre isso… — Robin sussurra tentando não acordar a

vovó e o Minduim, mas já posso ouvir os dois se remexendo nas

camas, o som inconfundível do farfalhar dos lençóis. — Ontem eu

descobri uma coisa.

— O quê?
— Lembra da moça que ligou querendo franquiar a Que Seja
Doce? — pergunta, sentando-se em uma das poltronas perto da

entrada.

— Claro, falei com ela porque você não queria.

Ela balança a cabeça, afirmando.

— Acontece que, lendo meus desejos, agora você sabe que na

verdade eu quero. Só fiquei com medo de que, ao invés de

crescermos, isso destruísse a reputação que temos construído.

Eu me sento ao lado dela, tentando compreender onde Robin

quer chegar com isso.

— Imaginei isso mesmo antes de ler a lista. Mas o que houve?

— Acontece que aquela pessoa que ligou, era a Alícia. Foi

com ela que você falou…

Isso realmente me surpreende. Na época, como rejeitamos a

proposta, não me atentei muito ao nome do lugar ou da pessoa.

— Como você soube? Ela te chamou pra conversar e fez a

proposta outra vez?

— Não, na verdade ela não sabe que somos nós. Ela e a Clara

estavam falando sobre isso ontem, sobre a confeitaria que Alícia


quer colocar aqui, mas que ainda não fechou nada porque queria

que fosse a Que Seja Doce, mas que sua proposta havia sido
rejeitada. Liguei os pontos depois disso, obviamente.

— Você contou a ela?

— Ainda não, quero pensar melhor sobre isso.

— Sabe que desde que li sua lista, fiquei pensando em como


isso poderia acontecer. Acho que a resposta é a Alice…

— Alícia, você quer dizer.

— Não, minha irmã, Alice. Você ensinou tudo a ela, Alice está
tomando conta da confeitaria sozinha e se virando bem. Acho que
pode enviar ela pra ensinar e coordenar a franquia, até que o

franqueado se vire bem.

— É uma ótima opção, Dom. Não sei se a Alícia está pronta


pra isso, lidar com a confeitaria e a pousada ao mesmo tempo, e
esse namorado dela é bem esquisito.

— O tal Leonardo? — pergunto, um pouco surpreso.

— Você não achou?

— Achei, só não tinha entendido que eram namorados.


— Bom, imaginei que fossem, porque estão morando aí e a

pousada nem está em funcionamento.

— Tem razão, devem ser namorados. E ele é esquisito


mesmo… Bom, você tem uma escolha a fazer, mas não precisa ser
agora. Vamos seguir viagem e, se decidir que quer fazer isso,

conversamos com a Alice e depois ligamos para a Alícia.

Ela aquiesce, de acordo.

— Manhê… Tô com fome — Bernardo chama, e de onde estou

sentado consigo vê-lo se espreguiçando.

O pijama de extraterrestres que compramos em homenagem à


vovó sobe à medida que ele ergue os braços, revelando os pés nas
meias verdes e monstruosas que a Robin comprou.
— Aqui tem bolo, alguns pães, café quentinho e suco natural
— Alícia diz, mostrando os pratos na mesa comprida.

Apesar da bagunça na pousada, a mesa e os talheres e pratos


estão limpos e bem organizados.

Leonardo já está comendo e não parece muito disposto a ser


simpático, afinal nem ergueu os olhos desde que entramos na

cozinha.

Começo a passar manteiga em um pedaço de pão para


Bernardo, que já está sentado em uma cadeira entre a vovó e

Dominic.

Percebo o olhar atento de Alícia enquanto preparo o café do

Minduim, e Dominic separa os alimentos que minha avó pode


comer.

— Muito obrigada por tudo, Alícia — comento, sabendo que a

essa altura já devemos estar incomodando. — Vamos comer e


pegar a estrada logo, mas pretendemos voltar quando a reforma

tiver terminado.

— Vou adorar ter vocês como hóspedes — ela responde, e


parece sincera.

— Você está aqui tem quanto tempo, Alícia? — Dominic

pergunta, beliscando um pedaço de queijo.

— Cheguei tem alguns meses, dois ou três… Vim procurar

minha amiga Clara, mas ela decidiu ficar, até se casou, e acabei

ficando também. Nesse meio tempo, as pessoas que eram donas


desse lugar, que estava abandonado, ficaram amigas minhas e fiz

uma proposta de compra. Quero ver isso aqui cheio de vida e

funcionando, eu vou fazer isso…

Quanto mais tempo fico perto dela, mais me surpreendo. A

princípio Alícia pode parecer uma moça fútil, considerando os saltos

sempre presentes e o carro rosa estacionado do lado de fora, mas,

logo que se conhece melhor, você percebe como os estereótipos

prejudicam nosso julgamento.

Ela é batalhadora e está se esforçando por algo em que

acredita. Além disso, deixou sua vida de lado para vir em socorro da

amiga.
Leonardo se levanta repentinamente e coloca sua xícara na
mesa.

— Vou resolver umas coisas pra Clara, até mais tarde — ele

diz, antes de dar meia volta e sair.

Olho para Alícia, que faz uma careta com a saída do rapaz, e

fico ainda mais curiosa com o tipo de relação que eles têm.

Dominic também se levanta pouco depois e ajuda Bernardo a

subir em suas costas.

— Vamos correr no mercado e comprar umas coisinhas antes

de sairmos, tá bom, Docinho? O Minduim vai comigo, porque ele

está precisando muito de uma coisa.

— Precisando? De quê?

— Balas.

— Tá bom — respondo, me divertindo com a resposta dele. —

Vou terminar o café…

— E eu vou ao banheiro, porque se tiver que usar o daquele

trailer de novo, minhas almofadas não vão sobreviver.

Alícia encara minha avó com expressão de curiosidade, mas

só volta a falar quando ficamos a sós.


— Por que sua avó leva almofadas para o banheiro?

Isso quase me faz engasgar com o café, mas cubro a boca e

me controlo antes que o líquido saia voando.

— Não leva, ela se refere ao próprio bumbum assim —

respondo, rindo com a surpresa evidente no rosto dela.

— O quê?

— É, e aos bumbuns dos outros também.

Alícia começa a rir, porque de fato é bem engraçado.

— Sabe, adorei a sua relação com sua família, vocês parecem


muito unidos.

— Ah, obrigada, nós somos sim.

— Acho que meu comentário pareceu estranho. É que eu não


tive uma experiência tão profunda assim com ninguém, minha mãe

faleceu quando eu era pequena e meu pai trabalhava muito, ainda


que se esforçasse pra estar comigo, e agora…

— O quê? — pergunto, assustada ao perceber que os olhos


dela estão marejados.

Alícia meneia a cabeça, mas leva a mão até a barriga,


acariciando o ventre plano.
— Você vai ser mãe? — pergunto sussurrando.

Afinal, por que outra razão alguém acariciaria o próprio

abdômen?

— Vou, nem sei porque estou contando isso. — Ela ri, mas as

primeiras lágrimas escorrem por seu rosto. — Venho escondendo de


todo mundo. Talvez seja porque você não mora aqui, não contei

nem pra Clara ainda.

Apenas concordo com um gesto, sei como é receber uma

notícia que vira toda sua vida de cabeça para baixo. Parece que
enquanto não disser em voz alta, não se torna tão real.

— Sabe, ter o Bernardo sozinha foi a coisa mais difícil que eu


fiz. Mas também foi ele que me deu forças pra seguir em frente e

não desistir — conto. — Você também é forte, vai conseguir. O


Leonardo…

Alícia ergue o rosto e me encara com o cenho franzido e então

arregala os olhos.

— Ah, não! Deus me livre. Foi outra pessoa, quase tão ruim

quanto… Foi um rolo de uma noite e ele ainda não sabe. — Ela dá
de ombros, como se não fosse nada, mas percebo que a situação a

incomoda. — A gente não tem uma relação das melhores.


— Me desculpe, como você não abriu a pousada ainda e
moram os dois aqui, cheguei a pensar…

— Não. Ele era o agente da Clara e, depois que ela parou de


atuar, começou a ajudar na empresa do Levi e por falta de opção

está ficando aqui. Foi outra pessoa, mas nós só brigamos, ainda
não encontrei uma forma de contar.

— Não sei por que, mas tenho uma suspeita — falo, me


lembrando das faíscas entre ela e o amigo de Levi. — Ontem no

festival, quando a Clara chegou…

Alícia balança a cabeça, afirmando.

— É ele mesmo.

— Acho que independente das diferenças de vocês, ele,


Felipe, não é? — Ela afirma com um gesto e então continuo: — Ele

tem o direto de saber que vai ser pai e você o de ter algum apoio,
ainda que financeiro.

Ela abaixa a cabeça, parecendo perdida.

— Eu vou contar, só não achei o momento certo, ainda.

— E quem sabe vocês se acertem? Dominic e eu só

brigávamos no começo.
— Não, entre nós não é assim. É só, sei lá, atração…

Aquiesço, preferindo não insistir. Que o tempo mostre se ela

está certa.

— E sobre a pousada, vai ficar incrível. Eu… Quero te


perguntar uma coisa — falo, tomando uma decisão no calor do
momento.

Mesmo que tenha dito ao meu marido que pensaria melhor.

— O quê?

— Você entende que se a confeitaria viesse pra cá, aquela de

Lagos que mencionou, eles iriam enviar alguém pra treinar você e
seus funcionários, ou pra ficar trabalhando com você?

Alícia franze o cenho outra vez, ela faz muito isso.

— Hã? De onde saiu esse assunto? — pergunta, sorrindo. —

Claro que sim, eu nem saberia por onde começar se não enviassem
alguém.

— E entende que teria que seguir as receitas para manter o

padrão? Sem mudar nada?

— E o que eu mudaria? Tudo que eles fazem é perfeito.

A massagem no ego também me ajuda na decisão, admito.


— Tá bom então. Vou estudar uma maneira de fazer dar certo

e entro em contato com você. Eu sei que é um sonho seu, mas


também é meu… Não me decepcione.

— Do que você está… Como você poderia me ajudar nisso?

— E vou vir aqui antes de inaugurar, experimentar cada

chocolate pra ter certeza de que o sabor é perfeito.

Agora sim ela me encara como se eu fosse completamente


louca e isso me arranca uma risada.

— Eu sou a proprietária. Desculpe não ter dito quando

mencionaram a confeitaria, mas não sabia o que dizer ou como fugir

de você quando começasse a me perseguir, insistindo.

— Tá brincando comigo!

— Não estou, não. É bem sério.

— E por que… Você veio aqui me conhecer?

— Não, foi uma coincidência absurda. Eu nem lembrava seu

nome.

Ela meneia a cabeça, assimilando a novidade.

— O que te fez repensar? Mudar de ideia?


— Eu sempre quis expandir, mas tenho muito receio de que

meus padrões se percam. Quando você disse aquilo sobre a

confeitaria, fiquei pensando que deveria ao menos estudar a


possibilidade sem te dizer nada e, se me decidisse, te diria depois.

O que me fez ter certeza e definir isso agora… foi sua gravidez.

— O quê? Por quê?

— Eu fui mãe solo, sem família e sem apoio, a não ser o da

vovó. Precisei recomeçar e fiz tudo ao meu alcance, com um


esforço sobre-humano para sustentar meu bebê.

— Mas seu marido…

— Dominic? Ele surgiu na minha vida iluminando tudo, se

tornou o pai que o Bernardo não conheceu. Mas isso é recente, ele

não é o pai biológico dele.

— Entendo…

— E, olhando pra você agora, vi tanta garra, força… Grávida,

sozinha e em meio a uma reforma! Você vai conseguir, Alícia, é

mais forte que eu fui. Sabe por quê? Eu me escondi por anos,
embaixo de roupas largas e de uma personalidade introspectiva.

— Você não parece introspectiva.


— Eu estava de luto, mas evitei meus traumas por tempo

demais. Você, ao contrário de mim, usa seus sapatos de salto como


se fossem armas e vai à guerra. Admiro isso.

— Eu… Eu os uso como armas. Como foi que adivinhou?

— Não sei. Só não achei que fosse puramente por estética,

uma mulher grávida em meio a uma obra, usando salto quinze. Você

pode batalhar de sapatilhas, sabe?

Alícia sorri e passa as mãos no rosto, secando as lágrimas.

— Obrigada por isso. Não só pela confeitaria, o que já é

maravilhoso, mas por me dar uma perspectiva diferente do que

tenho feito. — Ela respira fundo, antes de seguir em frente. — Não


me vi assim, forte e vitoriosa, sabe? Estou escondendo a gravidez

de todo mundo, até do meu pai e na verdade vim pra Vale do

Recomeço fugindo de um término ruim, de um relacionamento

tóxico…

— Parece que veio ao lugar certo para recomeçar, julgando

pelo nome.

— Com certeza. Eu vou dar um jeito de fazer tudo funcionar,

Felipe e eu não nos damos bem, mas eu posso ser amigável pelo
bem do bebê, e se ele não quiser ser pai… Foda-se ele, eu dou um

jeito.

— É isso, você consegue. Vou te emprestar minha cunhada,

Alice, até nos nomes vocês são parecidas, então espero que se
deem bem.

— Sua cunhada?

— É, vou falar com ela pra que venha ensinar tudo sobre a

Que Seja Doce, assim que terminar a reforma você me diz e ela

vem.

— Combinado, não vejo a hora.

É, estranhamente eu também não.


Já faz algum tempo que estamos entrando em São Paulo.

Vários trechos da estrada são espaçados e as construções se


amontoam para depois desaparecerem, a cidade parece começar,
para então sumir. Mas, em um dado momento, as casas e

comércios ficam mais próximos e o trânsito se intensifica, e então


finalmente estamos de fato na grande cidade.

— Estamos chegando, se preparem porque vamos fazer uma

parada estratégica e realizar mais alguns desejos… — aviso, e vejo


os olhos dos meus três companheiros de viagem se voltarem para

mim.

Sei que estão curiosos com o que virá a seguir e, sendo bem
honesto, estou ansioso para ver a cara de Bernardo quando
entender o plano.

Ouço as buzinas enquanto um trio de motoqueiros nos

ultrapassa sem maiores avisos. O que é recado suficiente para que


eu volte minha atenção totalmente para o trânsito insano.

Não demoramos muito para chegar ao shopping, mas acho

que nem eu estava preparado para as fortes emoções.

Nossa primeira parada é para comprar um brinquedo na

Otavio’s, uma das lojas da maior rede do segmento, essa fica dentro

do shopping, então unimos o útil ao agradável.

Bernardo entra correndo na loja, e seus olhos brilham de


empolgação. A verdade é que um lugar do tamanho desse faz a

alegria até mesmo dos adultos. São tantas opções de brinquedos,


dos mais variados tipos, que é fácil esquecer a idade e se sentir um

pouco criança também.

Ando um pouco atrás dele, entretido, observando os

videogames e os jogos mais modernos e me distraio, Robin e a


vovó foram fazer o próprio reconhecimento do lugar, mas, depois de

alguns instantes, procuro por Bernardo novamente e o encontro

parado, conversando com um desconhecido.


— Sabe, esse é o carro mais vendido da loja toda. Os garotos
o adoram…

— Ele é animal! Parece que tem fogo!

— É o Velocicarro, meu filho tem um igualzinho a esse.

O homem usa um terno perfeitamente alinhado, mas não

parece se importar muito em amarrotar a roupa, porque se agachou

até estar da altura de Bernardo.

— Quantos anos ele tem? — Minduim continua conversando

como se não me notasse de pé, observando.

— O meu filho? Ele tem três.

— Então é um menino pequeno. Eu já tenho cinco, sou um

menino grande.

— É verdade…

Bernardo então finalmente me nota e acena, me chamando.

— Pai, esse é meu amigo, ele tem um menino tombém, sabia?

Só que é um menino bebê.

— É mesmo?
O homem então se levanta, sorrindo ao ouvir as palavras de

Bernardo, e arruma o terno no corpo, antes de se dirigir a mim.

— Seu filho é muito esperto — diz, educado.

— Ele é. Até demais, na verdade.

— As crianças de hoje são assim, meu filho me dá cada lição

que você ficaria surpreso. E ele só tem três anos.

— Sei bem como é.

— Paiê… Eu posso ficar com esse? O moço disse que é o

Velocicarro, não achou ele animal? — Bernardo interrompe,


mostrando o brinquedo.

— Achei, claro — respondo, de acordo —, pode levar, então.

— Moço, você pode levar seu menino pra brincar comigo se

quiser. Eu vou ensinar ele a ser um menino grande… Qual é o


nome?

— Meu nome é Teseu — ele responde.

Apenas então me dou conta de que é o proprietário da rede de


lojas. Já o vi antes na televisão, mas não liguei os pontos a

princípio.

— Que nome engraçado…


— Minduim! — chamo sua atenção pelo comentário grosseiro.

Mas Teseu apenas sorri.

— É esquisito? Mas você se chama Minduim, não parece


muito normal também.

— Meu nome é Bernardo, Minduim é só um apelido.

— Ah, entendi. Digamos que Teseu seja meu apelido também.

— Ah, então assim eu entendi, mas qual é o nome do seu


bebê?

— Meu menino se chama Davi, e também tenho uma menina,


que se chama Martina.

— Uma menina? Viu, pai? Eu quero uma menina também.

Bernardo e Teseu me encaram, aguardando uma resposta.

— Amor? Minduim? — Robin chama, me salvando da situação


difícil. — Vamos? Temos muito o que fazer ainda.

Quando chega mais perto, ela percebe que estamos


acompanhados e cumprimenta Teseu com um gesto sutil de cabeça.

— Vamos, Bernardo já escolheu o que quer — respondo.


— Ótimo, vou pagar, então. A atendente me mostrou uma
fazendinha de laranjas muito linda, não quer ver, Bê?

Mas ele faz que não, se agarrando ao brinquedo escolhido


com mais força.

— Prefiro o carro animal.

— Tá bom, que seja o carro.

Os dois se afastam na direção do carro, nos deixando

sozinhos e fica um clima esquisito, um silêncio um pouco


constrangedor. Até que ele o quebra.

— Vocês não são daqui da cidade?

— Não, viemos de Minas, estamos fazendo uma viagem em


família.

— Eu adoro viajar com meus pequenos e minha esposa


também. O destino final de vocês é onde?

Isso me arranca um sorriso, porque é um tanto quanto

inesperado.

— Seattle, mas a Robin não sabe ainda.

— Uma surpresa? — ele questiona, curioso.


— Você conhece a Dominium?

Quando Teseu aquiesce, confirmando, continuo.

— Minha esposa é muito fã da banda e resolvi levá-la até lá

para ver um show. Infelizmente não consegui passes para o


camarim, como sei que ela gostaria, mas fiz o que está ao meu
alcance.

Teseu assente, me encarando em silêncio por um momento e

então, devagar, ele abre um sorriso.

— Acho que posso ajudar com isso.

— Como seria possível?

— Conheci um cara uma vez, filho do emir de Abu Dhabi.

Assovio alto diante da informação, ainda que não tenha

compreendido a relevância.

— Ele é muito amigo do Ashton Ray e, o melhor de tudo, fala

português. Se eu pedir, acho que ele descola os passes pra vocês.

Por um momento, fico chocado demais para responder, mas


acabo por me recuperar.

— E por que você faria algo assim?


— Por que não? Não me custa nada e vai deixar alguém muito

feliz. Além disso, também já tive ajuda em momentos importantes da


minha vida, e tenho a sensação de que nunca retribuirei o suficiente.

Quando nós nos despedimos do proprietário da loja e

seguimos nosso passeio, preciso me controlar para não contar tudo

para Robin, tamanha é minha empolgação com o que consegui. Isso


me distrai tanto, que apenas quando chegamos perto da praça de

alimentação, me dou conta de como o Natal está próximo. A

decoração já foi montada e é uma das maiores que já vi.

Robin nos deixou, decidida a comprar algumas coisas, e


Bernardo parece impressionado, apontando para todos os lados em

meio a gritos de empolgação.

— Ali, filho, quer falar com o Papai Noel? Pode dizer o que

quer ganhar de presente.

— Eu posso?

Quando aquiesço, confirmando, ele abre um sorriso largo.

— Então tá. Vamos depois daquela mulher…

O comentário chama minha atenção e me volto para o Papai

Noel, que acena sem graça para o segurança. A razão é bem óbvia,
uma mulher adulta e a julgar pelos cabelos brancos, idosa, decidiu

que era uma boa ideia se sentar no colo do bom velhinho.

— Papai… cadê a vovó Rutinha?

Merda, me distraí por um momento e ela já está aprontando.

Eu me aproximo do Papai Noel correndo, arrastando Bernardo


pela mão e, após milhares de pedidos de desculpas e da promessa

dele de atender ao pedido dela, consigo arrancar a vovó de lá —

ainda que ela quase tenha deixado o Noel pelado, se agarrando as

calças do homem.

Bernardo aproveita a deixa para se empoleirar no barbudo e

começo a me preocupar de que não dê conta de olhar os dois,

sozinho, se Robin demorar.

— O que você quer, garotinho?

— Eu quero um bebê — Bernardo responde, minando o resto


do meu ânimo.

— Um bebê?

Droga. Se ele e a mãe quisessem coisas mais possíveis e

fáceis, já teríamos resolvido sem precisar de um Papai Noel. Agora,


além da decepção, Bernardo ainda vai deixar de acreditar no poder

do Natal.

— É, quero um irmãozinho de presente. Não precisa me dar

carrinho ou brinquedo porque minha mãe já comprou agorinha…

— Entendo. — O Papai Noel me encara, percebendo a

situação complicada que tem nas mãos.

— Olha, infelizmente bebês não estão disponíveis na fábrica


do Papai Noel, só brinquedos. Mas você pode pedir um na fábrica

do papai do céu.

— O Jesus? — o pequeno pergunta, inocente.

— Isso. É aniversário dele, o Natal. Quem sabe te dá o que

você quer?

Bernardo pula do colo do homem, rapidamente, e aquiesce em

concordância.

— Então pode me dar um pula-pula bem grande.

— Ah! Agora falou a minha língua — o homem responde,

simpático.

Pego Bernardo pela mão, enquanto ele acena efusivamente se


despedindo do Noel, e alcanço vovó antes que ela se estatele na
escada rolante.

De mãos dadas com os dois, procuro por Robin e por sorte a

encontro caminhando em nossa direção com uma sacola pendurada

nos braços.

— Achei os talheres — ela diz. — Esqueci de pegar em casa e


vamos precisar comer, não é?

— Claro. E agora vamos achar o tal túnel de vento.

Na verdade, a atividade se chama Wind Up Indoor Skydiving,

mas é um nome longo e complexo e a razão pela qual estamos

aqui.

É literalmente um túnel de vento, com uns dezessete metros

de altura pelo que pesquisei. As turbinas produzem ventos potentes

e proporcionam a sensação de um voo de paraquedas, sem os

riscos. Foi a melhor opção que encontrei para que meu Minduim
voasse.

Chegando no local, a moça nos entrega um formulário para ser

preenchido e, depois da parte burocrática, nos encaminha para

vestirmos as roupas.
Robin não quis se arriscar no voo e achamos por bem dar uma

segurada na empolgação da vovó, pelo bem do coração dela. Então


vamos ser apenas Bernardo e eu.

Ajudo-o a vestir o macacão e a colocar os óculos, além de

prender o capacete bem firme na cabecinha dele.

— Está tranquilo, filho?

Ele balança a cabeça pra cima e pra baixo, afirmando.

— Meu coração tá um pouco acererado, mas é alegria.

— Então tá bom. Não precisa ficar nervoso — digo, me


vestindo também —, nós vamos juntinhos.

Termino de arrumar toda a parafernália que me foi entregue e

seguro a mão do pequeno, para nossa aventura.

Quando entramos no túnel, após ouvirmos as instruções com


atenção, me posiciono ao lado de Minduim, enquanto os monitores

da atividade também entram para nos dar suporte, se necessário.

Apesar da minha idade, sinto um frio na barriga antes de

ligarem as turbinas, mas não demonstro o receio e continuo sorrindo


para encorajar Bernardo.
Meu medo se mostra infundado, porque quando o vento
começa a circular pelos nossos corpos e somos impulsionados para

cima, ele parece calmo e aproveita cada um dos noventa segundos.

E quando tudo se encerra, Bernardo está exultante.

Voar pode ser riscado da lista finalmente.

Depois disso, deixamos a cidade de São Paulo e nos dirigimos


para o sul, lentamente. Nunca senti a distância tão intensamente,

porque nos voos as horas não passam de modo tão arrastado, mas

atrás de um volante, sob o sol quente ou a chuva forte, tudo parece


mais demorado.

Robin decide puxar uma música ao meu lado, e vovó Rute e

Bernardo embarcam na onda, cantando a plenos pulmões. E, por

mais que nenhum deles cante bem, ou possua um mínimo de


afinação, me divirto ouvindo as notas totalmente fora de ritmo e os

agudos do Minduim, que me arrancam risadas.

— A gente vai em qual país agora? — ele pergunta após


finalizarem a terceira canção, com um ótimo senso de geografia.

— Cidade, Bê. Nós estamos no Brasil, que é um país e


passeando de um estado para o outro, de uma cidade para a outra

— explico.
— O que é um país?

— Um país… Bom, é um conjunto de estados, que falam a


mesma língua e compartilham um mesmo espaço de terra. Depois

te mostro no mapa pra entender direitinho.

— E o que é um estado?

A pergunta na sequência já me faz rir.

— Um estado é um conjunto de cidades, dentro de um país —


Robin diz, copiando minha resposta.

— E uma cidade? O que é?

— Uma cidade é um espaço de terras que abriga muitas

pessoas e que fica dentro de um estado — falo, sabendo que uma


explicação mais complexa não seria compreendida e ainda geraria
outras milhares de perguntas.

— Então uma cidade fica dentro do estado, que por sua vez
fica dentro do país. Entendeu?

Minduim encara a mãe com os olhinhos astutos e aquiesce,


bem sério.

— Craro né? Eu sou esperto.


— Então seja esperto e vá se sentar com a vovó, porque não
pode ficar andando com o trailer em movimento.

— Pensei que fosse uma casa-carro — ele responde,


resmungando, mas obedece.

— Mas a pergunta dele também está me matando de

curiosidade. Vamos pra onde agora?

— Tem muito chão ainda até o Sul, então vamos fazer uma

parada em algum lugar pra dormirmos porque já estou morto.

— Eu posso dirigir, trocamos de lugar.

— E eu aceito, mas pode ser de manhã. Acho que estamos

todos muito cansados e pode ser perigoso pegar a estrada com


sono. Tudo bem?

— Claro, amor. Vamos parar então, comprei comida no


mercado. A gente consegue se virar aqui mesmo.

Pego uma estradinha de terra no caminho, ainda no estado de

São Paulo e sigo por ela por alguns minutos, sem rumo certo, até
avistar um bom lugar.

— O que acha de pararmos ali? — pergunto, apontando para


uma árvore alta e frondosa.
— Não vai ser difícil subir com o trailer, parece ter uma rampa.

Não é exatamente uma rampa, mas realmente é o caminho

ideal para sair da estrada. Em vários pontos vejo os barrancos altos


e com o mato alto, mas nesse ponto não. Apesar de ser mais alto

que a estrada, existe um trilho que facilita a subida e a árvore ainda


serve para amarrar a tenda, para comermos do lado de fora.

Subo a encosta sentindo o trailer chacoalhar um pouco, mas

consigo dirigir para o lugar que foi definido.

— Aqui não é uma cidade, pai! — Bernardo grita, dos fundos.

— Aqui é uma fazenda.

— Não é uma fazenda, Bernardo. É só uma roça — Robin


responde.

— E o que a gente vai fazer aqui?

— Vamos montar acampamento, escoteiro — digo, sabendo o

quanto isso vai animá-lo.

— Uhuuuuuul — ele grita alto —, vamos acampar vovó!

— É um lugar muito deserto — vovó reclama, temerosa.

Mas Bernardo começa a rir.

— Não, vó. Deserto é de areia, aqui é terra mesmo.


Estaciono sob a árvore e desço preparado para começar os

arranjos. Robin vai direto para a cozinha preparar nosso jantar.

Do lado de fora acendo os lampiões, de modo a iluminar os


arredores e afastar os bichos. Pego a tenda que trouxemos e

amarro duas das pontas na árvore e outras duas no trailer, formando


uma cobertura para abrir a mesa pequena.

Prendo também um dos lampiões bem em cima dela para


iluminar nossa sala de jantar improvisada.

Entro no trailer e carrego as cadeiras da cozinha para fora, sob

o olhar atento da minha esposa, que por jantar quis dizer macarrão
instantâneo e sanduíches de presunto e queijo.

— Precisa de ajuda?

— Não, já estou terminando

— Também estou acabando aqui.

A fogueira é a parte mais difícil. Sou um psicólogo, não um


homem da roça, não estou acostumado a acender fogo no meio do

nada, mas só de imaginar as expressões deles quando virem tudo


arrumado, já fico animado.
Recolho vários gravetos ao redor do trailer e começo ouvir os
grilos ao longe, além do coaxar de um sapo. A noite está caindo
realmente, ainda que no relógio já sejam mais de sete horas.

Quando consigo encher os braços com os gravetos, retorno


para a frente do trailer e os coloco juntos no chão, a uma curta
distância. Entro no trailer e quase faço Robin derrubar o prato com

os sanduíches, com um esbarrão.

Quando consigo encher os braços com os gravetos, retorno

para a frente do trailer e os coloco juntos no chão, a uma curta


distância.

Entro no trailer e quase faço Robin derrubar o prato com os

sanduíches, com um esbarrão.

— Só preciso do isqueiro e aí estará tudo pronto — comento,

ainda que ela não tenha perguntado.

Robin franze o cenho, mas não me questiona e entrega o que


peço.

De volta à fogueira improvisada, despejo um pouco de álcool


sobre os gravetos e depois atiro um pedaço de madeira bem menor,

aceso, e finalmente o fogo toma conta de tudo.


— Podem vir, pessoal! Tudo pronto.

Bernardo é o primeiro a aparecer, correndo. Ele salta para fora

do trailer e abre a boca em surpresa.

— Uaaaaau! Manhê, vem ver!

Robin e a vovó saem um pouco depois, ambas trazendo os


pratos e talheres com as nossas refeições.

— Que lindo, amor! Você fez tudo isso agora? Olha! Acendeu

até uma fogueira.

— Não foi nada. Nossa mesa está naquele canto — digo,


apontando o lugar iluminado.

Bernardo sai correndo em meio a gritos de “animal, cara” e


Robin e vovó o acompanham de perto.

— Pode pegar a panela com o macarrão? — Robin pede.

Faço o que ela diz e, em poucos minutos, estamos os quatro

sentados à mesa, saboreando nossa refeição e vendo as estrelas


no céu.
A noite foi simplesmente mágica. Dominic sempre tem as
melhores ideias e, quando ele sugeriu que deixássemos o trailer

para vovó e Minduim e dormíssemos do lado de fora, imaginei


insetos e ruídos estranhos ao relento, mas a verdade é que se
existe um homem que se prepara para todas as ocasiões, esse

homem é meu marido.

Ele havia incluído na bagagem uma barraca e com isso

conseguiu unir o útil ao agradável. Uma viagem em família e


momentos a sós e românticos. Por isso, dando sequência à noite

maravilhosa que passamos juntos, eu o acordei de uma das minhas

formas preferidas, saboreando cada pedacinho dele e sendo


recompensada com muita dedicação matinal.
Agora, enquanto ouvimos o som dos pássaros lá fora e

esperamos dar oito horas para acordar os outros e cair na estrada


outra vez, me deito sobre seu peito, ouvindo o som descompassado

do coração dele, que aos poucos vai voltando ao ritmo calmo de

sempre.

— Então vamos para o sul…

— Preferia as praias do nordeste? — ele pergunta, e sinto uma

pontada de dúvida em seu tom.

— Não, na verdade como nunca fui pra lugar nenhum,


qualquer escolha seria a certa.

Ele afaga meus cabelos com carinho.

— Montei o roteiro com base nos desejos das listas, mas

preciso confessar que alguns deles não são nada fáceis.

— Como o Minduim que queria voar?

— Não viu nada. Sua avó quer andar de moto com um broto.

Começo a rir porque sei que é exatamente o tipo de coisa que

vovó diria e nem posso julgar. Se fosse eu, na idade dela e solteira,
no mínimo ia querer apreciar um bom broto, como ela chama.

— E de onde é que vai tirar esse motoqueiro?


— E eu sei? — ele devolve a pergunta. — Estou seguindo o
fluxo e confiando na providência divina dos milagres de Natal.

E a providencia não falha. Mas nós ainda não sabíamos disso

quando chegamos na pequena cidade de Rio Dourado, perto das

onze da noite, cansados, depois de quase catorze horas de estrada.

— Não vamos seguir adiante? Pensei que fôssemos para

Gramado — comento, percebendo que Dominic de fato entrou na

cidadezinha.

— E vamos, mas se formos agora, vamos chegar muito tarde.

Melhor dormirmos aqui.

— E onde vamos parar exatamente?

— Eu pesquisei, tem um restaurante com espaço de camping,

uns chalés… Se quiser, podemos deixar os dois no trailer e namorar

em uma banheira quente — Dom sugere, malicioso.

Olho por sobre o ombro, afirmando que vovó e Minduim não


estão nos ouvindo, enquanto jogam alguma coisa com umas

pedrinhas na mesa da pequena cozinha.

— Não acho uma ideia ruim, mas tem que estacionar ao

ladinho do chalé. Porque fico preocupada com a vovó e o


Bernardo…

— Nós escapamos depois que eles dormirem e voltamos pro

trailer antes do sol nascer.

Com nossa fuga romântica devidamente acertada, Dom

conduz o motor home até o final de uma ruazinha estreita, e


chegamos diante do restaurante bonito de dois andares. No letreiro,

o nome A Cantina se vê nitidamente em letras grandes.

A porta está fechada, mas as luzes estão acesas e algumas

mesas ainda ocupadas, então estacionamos e descemos para


verificar. Quando passamos pela porta, sinto meu corpo ser

envolvido pelo calor da lareira de pedra, acesa em um canto.

O restaurante por si só tem um clima aconchegante, mas a

grande árvore de Natal, as meias penduradas na lareira e os


enfeites que estão por toda parte, fazem com que essa sensação

seja ainda maior.

Só quando me volto para o outro lado, percebo uma moça de

cabelos escuros, que sorri de trás do balcão.

— Posso ajudar? A cozinha já vai fechar, mas se quiserem


jantar posso ver se ainda é possível.
— Isso seria ótimo — Dominic responde, me pegando de

surpresa. — Na verdade estamos viajando de trailer e queremos


passar a noite no camping.

— Mas o jantar também seria ótimo — completo, porque agora


que ele deu a ideia, prefiro não ter que cozinhar hoje.

— Claro. Querem estacionar ou vão dormir em um chalé?

— Estacionar — ele responde, mas então se aproxima do


balcão —, e um chalé se possível.

— Sim, claro. — Ela faz um gesto com a mão, chamando

alguém, e em poucos instantes aparece um rapaz ao nosso lado.

A princípio ele parece destoar do ambiente interiorano, com o

piercing no nariz e as tatuagens que cobrem os braços à mostra,


mas apesar do estilo mais ousado, o sorriso dele faz com que se

perceba que combina com o lugar.

— Me chamou, Jenni?

— Eles vão passar a noite no camping e chegaram agora.

Ainda dá tempo de servirmos um jantar?

— Claro, vou avisar a Cíntia. Venham comigo — ele diz, se

voltando para nós.


Seguimos por entre as mesas até os fundos do restaurante e
paramos perto da lareira, em uma mesa de quatro lugares.

— O que vão pedir?

Olho de Dominic para vovó, esperando uma resposta, mas ela

parece ter concentrado toda sua atenção no rapaz, eu poderia jurar


que até mesmo seus olhos estão brilhando.

— Dom?

Ele dá de ombros.

— Sugere alguma coisa, Noah? — pergunta, com sua


capacidade incrível de decorar os nomes das pessoas.

— Uma massa, talvez? Temos os melhores vinhos para


acompanhar.

— Perfeito. Nos surpreenda então com o que puderem


preparar, sem que atrase muito vocês.

— Não é problema, cara — Noah responde, sorrindo. — Já

volto…

Ele então se afasta, e vovó apoia os braços na mesa.

— Que espetáculo de lugar — comenta, animada.


Encaro Dominic, que abafa uma risada, mas Bernardo,
inocente, concorda com vovó Rute.

— Tem uma lareira! E tá deixando meu pé quentinho — ele


comenta, feliz.

Considerando que em Minas não é tão comum encontrarmos


lareiras, entendo o deslumbre dele. Também não é comum que em

seu círculo social a vovó encontre homens como o Noah, então

também a compreendo.

— A senhora se comporte vovó, não viu a aliança no dedo do


rapaz? — Dominic provoca.

— Querido Domzinho, as vantagens da minha idade são

justamente essas. O rapaz não ia me querer, então não tem

problema olhar os atributos dele, a esposa não vai ter ciúmes, então
não me encrenco. Ai meu Deus… — Ela se interrompe, arregalando

os olhos.

— Que foi?

— Eu acho… Acho que vi um gato preto.

— Onde? — Bernardo se empoleira na cadeira, procurando.


— Passou pela porta! — Ela bate na madeira da mesa

repetidamente.

O garçom não demora muito a voltar, ele traz uma garrafa de

vinho Del Broussard e três taças, além de uma garrafa menor e um

copo, tudo em uma bandeja que apoia habilmente na mão.

— Trouxe um suco de uva para o guri — ele explica, solícito,


enquanto deposita as bebidas à nossa frente —, e a comida já vem.

— O suco é pra quem? — Bernardo pergunta, o rostinho

estampado de confusão.

— Trouxe pra você beber — o rapaz responde, se divertindo

ao perceber que Minduim não entendeu.

— Eu não chamo guri — Bê revida, também achando graça. —


Meu nome é Bernardo.

— Então trouxe para você, Bernardo — Noah fala, sem se dar

ao trabalho de explicar o termo.

— Minha avó viu um gatinho preto — fala, sondando Noah.

— Ah, é só o Salém, ele é nosso mascote.

Vovó bate na mesa outra vez, arrancando um sorriso do

homem.
— Não precisa ter medo, o Salém não dá azar. Outro dia saí

de moto e ele passou na minha frente, sabe o que aconteceu

depois? — questiona em tom de suspense.

— O quê? — perguntamos em uníssono.

— Ganhei um frango no bingo do padre Nelson!

— Que sorte! — Dominic responde, rindo.

— Bah! E não é? Minha esposa já tinha o Salém quando nos

conhecemos e tudo aqui progride com ele por perto.

Dito isso, vovó parece ficar mais calma com a presença do tal

gato e o rapaz se afasta novamente para atender a outra mesa.

— Sabe, amor, você decidiu por essa viagem para realizar


nossos desejos. Mas e os seus?

Dominic sorri, se recostando na cadeira ao ouvir minha

pergunta.

— Meu desejo é isso. São vocês aqui, comigo…

— Não é possível que não queira alguma coisa — insisto.

— Quero muitas, a longo prazo. Ver o Minduim se formar na

faculdade, e se casar um dia, jogar bola com ele.


— Você nem joga bola — comento, rindo.

— Por isso entrou na lista de desejos, não quer dizer que vou
ser um craque. Também quero ver a minha clínica crescer, ganhar

mais reconhecimento. A Que Seja Doce se expandir, a vovó parar

de me dar patos de crochê…

Ela faz uma careta pra ele, resmungando.

— E, claro, ver você sorrir todos os dias. — O olhar dele se


perde por um momento, pensativo. — Correndo o risco de sair do

modo férias e voltar às reflexões de sempre, você sabe que já tive

tudo que eu quis financeiramente e me faltava alguma coisa.

Descobri que a felicidade está no brilho dos seus olhos quando


chego em casa, no som da gargalhada do nosso filho e nas

peripécias da vovó — fala, romântico como sempre.

— Nos jantares em família — completo, emocionada com a

declaração dele.

— E nas noites da sobremesa — vovó lembra.

— E em ver Patrulha Canina — Bernardo fala, sério, mas

consegue quebrar o momento e nos arrancar risadas.


Nesse instante uma moça loira se aproxima, trazendo consigo

uma bandeja com os pratos e com um vasilhame fumegante de

macarrão. Ela carrega tudo equilibrando nas mãos, ainda que seu

avental rosa, amarrado na cintura, evidencie a barriga pontuda.

Sinto um leve aperto no peito, apesar do momento feliz.

Parece que onde vamos o destino me coloca frente a frente com

mulheres grávidas apenas para esfregar minha incapacidade na

minha cara.

— Boa noite — ela cumprimenta, sorridente, me fazendo me

sentir culpada pelo pensamento. — Eu sou a Cíntia. É um pra…

— Ah não, cara! Já falei que não pode carregar coisas

pesadas, Cí — Noah chega correndo, vindo não sei de onde, e


arranca a bandeja da moça rapidamente.

— Noah!

— Desculpem, pessoal. Minha esposa está grávida, mas é

teimosa e insiste em pegar peso — ele explica, colocando nossos

pratos na mesa.

Noah serve nossas porções generosas de massa, o queijo por


cima está bem derretido e me dá água na boca, e enquanto isso,
Cíntia permanece com as mãos na cintura, observando o marido

com os olhos semicerrados.

— Desde quando isso é pesado? — pergunta, mais para si


mesma.

Mas ele escuta.

— Pra um piá de quinhentos gramas é uma tonelada!

Alterno meu olhar entre os dois, me divertindo com a

discussão. Ele parece mesmo preocupado.

— Noah! Não é o bebê que está carregando a bandeja — ela


responde, revirando os olhos.

— Claro que é, um Broussard não ia deixar a própria mãe levar

todo o peso.

Apesar do comentário esquisito, ele sorri, deixando claro que


ao menos nisso está brincando.

— Bom, espero que gostem da refeição — Cíntia diz,

ignorando o marido —, quando terminarem podem dar a volta com o

trailer para entrar no camping. Vocês acertam tudo na saída.

— Perfeito, obrigada.

— O café da manhã começa às 7h e vai até 10h.


Eles nos deixam a sós e sorrio ao observar o rapaz abrir a
porta da cozinha, enquanto ela meneia a cabeça para a atitude.

O jantar realmente é delicioso e saboreamos a comida em

silêncio. O vinho é indescritível e a noite parece que não pode

melhorar, mas quando terminamos de comer e damos a volta com o


trailer para o terreno atrás do restaurante, percebo o quanto me

enganei. O lugar torna tudo ainda mais especial. A luz da lua banha

o lago que margeia o espaço e as luzes acesas nos chalés dão o


toque de romantismo que coroa a beleza toda.

— Que lugar lindo! — comento com vovó, que também parece

admirada.

Dominic voltou para dentro do restaurante, com uma desculpa

esfarrapada, mas tenho certeza de que foi buscar a chave do chalé


e, quando volta, alguns minutos depois, Bernardo e a vovó já estão
na cama, se preparando para dormir.

— Deu certo? — pergunto, sussurrando.

Ele me mostra as chaves, tilintando em sua mão.

— Pedi esse aqui ao lado, porque aí ficamos de olho nos dois.

— Perfeito.
Levamos cerca de uma hora para sair, apenas depois que a
respiração de Bernardo já ficou profunda e vovó começou a roncar.
Quando entramos no chalé, o encontramos à meia luz, a cama

arrumada com lençóis brancos e, sobre ela, uma cesta com uma
garrafa de vinho, queijos e chocolates.

— Ah! Olha que lindo.

— Não tanto quanto você… — Dominic me abraça por trás e


sinto seus lábios em meu pescoço.

Fecho os olhos me permitindo sentir seus beijos doces.

— Vamos encher a banheira?

Aquiesço, afinal nossos banhos na estrada têm sido rápidos e


desconfortáveis e um momento de relaxamento na água quente,
com ele, soa maravilhoso.

Ouvimos o barulho da água cair, enquanto nos despimos


devagar, e o fogo nos olhos dele, me queima e acende sem demora.
Dominic abre a garrafa de vinho e serve em duas taças enquanto

entro na banheira, sentindo o calor da água envolver meu corpo.

Espero de pé enquanto ele caminha até mim e também entra,

seus pés movimentando a água. Dom se senta com as pernas


entreabertas e me acomodo entre elas, permitindo que meu corpo
se perca no dele.

Não dormimos de fato no chalé, depois de algum tempo


aproveitando a cama e a banheira, voltamos para o trailer ao invés
de arriscarmos pegar no sono e sermos descobertos no dia

seguinte. Mas pouco depois das sete, Bernardo acorda, empolgado


com o lugar diferente e, apesar de ter dormido pouco, também me
levanto para acompanhá-lo.

Dominic parece sonolento e já imagino que não vai ser um dia


muito produtivo no volante, o que é bom, porque a região é linda

para explorarmos. Apesar de ser cedo, quando entramos no


restaurante duas mesas já estão ocupadas. Em uma delas vejo um
casal aparentemente em lua de mel, considerando o quanto se

beijam. Já na outra, três pessoas desconhecidas, que nos encaram


com curiosidade, acompanhadas de Cíntia.

— Bom dia! — Ela nos nota e se levanta, caminhando em

nossa direção. — Espero que tenham tido uma noite agradável.

— Ah, foi ótimo, muito obrigada. Pela cesta também…

— Agradeça ao seu marido, ele que nos pediu pra preparar.

Dominic sorri, ignorando meu olhar de curiosidade.


— Vão querer comer o quê?

— Café — respondemos ao mesmo tempo, Dominic e eu.

Cíntia sorri, entendendo o que não dissemos, e aquiesce.

— Leite para o Bernardo se tiver. E a vovó…

— Pode ser leite quente também — ela diz.

— Certo. Já a comida, vocês podem se servir ali — Cíntia diz,

apontando para uma mesa extensa e farta. — Temos cacetinho,


cucas, frutas, roscas, e o chimarrão é por conta da casa.

— Misericórdia — vovó fala alto, atraindo a atenção dos outros

hóspedes e clientes.

— Tudo bem, senhora? — Cíntia parece preocupada.

Eu por outro lado já meneio a cabeça, sabendo exatamente o


rumo dos pensamentos da vovó.

— Uma moça tão bonita! Trabalhadora e grávida ainda…

Falando essas coisas.

— O quê? — A coitada não entende o que fez de errado.

— Não liga pra vovó, ela só te entendeu mal.

— Eu ofendi a senhora? — Agora a moça parece preocupada.


— Ofender não ofendeu, porque esses ouvidos velhos já

escutaram de tudo. Mas falar palavrão no café da manhã… tem um


padre ali — ela diz, apontando para o homem de batina que nos
encara curioso.

— Palavrão?

— Dona Rute — Dominic intervém —, é como eles chamam o

pão de sal aqui, não foi um palavrão.

Cíntia finalmente entende o problema e sorri constrangida.

— Ah, isso! Chamamos esse pão de cacetinho… Desculpe se


dei a entender outra coisa.

— E o que ela disse depois? — vovó sussurra, como se a

moça não estivesse ouvindo.

— Ela disse cuca. Não… Não só a metade da palavra, vó. É


uma comida também.

— Ah, sendo assim me desculpe.

— Não tem problema, são conflitos linguísticos — Cíntia

responde, sem deixar de sorrir.

Em seguida ela se afasta, mas é interceptada pelo trio curioso

da outra mesa, que pelos olhares dirigidos a nós, querem saber o


que houve.

Ignorando isso, nos servimos com bastante fartura, sem nos


importamos muito mais com o burburinho, estamos acostumados a

passar por situações assim com a vovó vez ou outra e aprendemos


a nos divertir ao invés de ficarmos envergonhados, mas quando
voltamos com nossos pratos para a mesa, encontramos os

integrantes do trio de pé, nos esperando.

— Bom dia! — a mulher de cabelos grisalhos cumprimenta.

— Bom dia… — respondo, hesitante.

— Vocês são novos por aqui, então viemos nos apresentar. Eu


sou a prefeita Marisa, esse é meu amigo George e esse é o padre

Nelson.

— Muito prazer — Dominic é quem responde, sempre mais

sociável que eu —, sou Dominic, essa é minha esposa Robin, nosso


filho Bernardo e a vovó Rute.

— Uma bela família. Vocês pretendem ficar mais tempo?

Porque vamos ter uma festinha de Natal no fim de semana, como


devem ter percebido a anfitriã daqui adora Natal…
Claro que percebemos, todos os lugares possíveis já estão
enfeitados.

— Infelizmente não, estamos conhecendo a região e


provavelmente já vamos embora amanhã — Dom diz, em tom de
pesar. Mais para agradá-los que por estar realmente triste, afinal de

contas ainda temos muito o que fazer pelo itinerário longo que ele
parece ter montado.

— Ah, estão de passagem. Vão para Araucária?

— Não, vamos pra Gramado. Queríamos conhecer as


vinícolas, mas nosso tempo está corrido já que queremos estar em

casa logo após o Natal.

— Pelo menos beberam o Del Broussard? É como conhecer


as vinícolas sem precisar sair daqui — a prefeita comenta.

— Bebemos sim, adoramos o vinho.

— Tenham uma boa viagem então, e que Deus os acompanhe

— o padre fala, nos abençoando.

— E enquanto estiverem aqui, se precisarem de alguma coisa,

podem me perguntar. Conheço Rio Dourado como a palma da


minha mão — o tal George se oferece.
— O senhor é guia? — vovó questiona astutamente.

— Não, sou carteiro.

— Certo, muito obrigado — Dominic agradece, conseguindo


encerrar o papo.

Eles se afastam e nos sentamos para comer. Apesar de


parecer diferente para alguns, nós que moramos em uma cidade

pequena estamos acostumados com pessoas assim, é a maneira


que encontram de serem hospitaleiras e gentis. E, é claro, de saber
das fofocas.

— Então, já que vamos ficar aqui hoje, quais serão nossos


planos? — sondo meu marido, tentando entender o que ele
pretende.

Ouvimos o estampido da porta da frente bater e desvio o olhar


a tempo de ver Noah entrar. Ele pendura um capacete em um

gancho perto da porta e arruma os cabelos bagunçados com a mão.

Dominic também o observa, mas por algum motivo sua


expressão pensativa se desfaz e ele abre um sorriso largo.

— Tive uma ideia.


Nem mesmo considerando todas as recentes loucuras dela,
imaginei que pudesse ver uma cena como essa, algum dia. Vovó

Rute se agarra firmemente em Noah, os pés apoiados nos pedais e


o capacete preto cobrindo os cabelos brancos.

Apesar de Dominic ter pedido ao rapaz para dar uma volta com

ela, não imaginei que minha avó fosse levar a ideia adiante, esperei
que ficasse com medo e desistisse, mas ao invés disso ela passou

batom e perfume e trocou os sapatinhos por um par de tênis que eu

nem sabia que existia.

Noah também me surpreendeu, porque não apenas concordou

como saiu literalmente pulando, animado com a façanha e foi buscar

os capacetes.
— Seu marido é mais pirado que a minha avó — comento com

Cíntia, que observa os dois se prepararem para sair, ao meu lado na


calçada.

— Ah, você não viu nada. Ele já saiu pelado nos jornais da

região em uma festa ano passado, já foi acusado de zoofilia,

injustamente, claro. Foi preso por destruir um bar, foi deser… — Ela
percebe meus olhos que evidentemente estão arregalados de

preocupação com a vovó e se interrompe. — Não estou ajudando,

não é? Se serve de consolo, Noah está bem mais calmo desde que
nos casamos e ele é responsável. Na maioria das vezes.

— Meu Deus… Dominic! — chamo por ele, planejando impedir


essa loucura antes que seja tarde demais, mas para a pequena

cidade, o passeio da velhinha parece ter se convertido em um

evento, já que as pessoas se reuniram na porta do restaurante para

assistir e a algazarra torna impossível que eu chegue até meu


marido em tempo.

— Segura firme, vó. Pelo amor de Deus! — berro, ao perceber

que Noah ligou a moto.

— E, você, não corra Noah! — Cíntia esbraveja ao meu lado.

— Cuidado com a dona Rute.


Ele acena, sorridente, como se não houvesse nada com o que
nos preocupar.

— Ele tem que ter cuidado mesmo — falo, suspirando. — E,

como seu marido também é doido, melhor você ficar atenta, minha

avó está apaixonada por ele. Vai que fogem juntos — brinco, em

uma tentativa de aliviar a tensão.

— Ah, tudo bem. Noah é apaixonante mesmo.

E pirado, mas não vou dizer isso a ela.

— Se serve de consolo, ela era encantada pelo meu marido

também, antes de nos casarmos — conto.

— Pior seria se ela os achasse feios.

Nesse ponto ela tem razão, se tem uma coisa que vovó tem é

bom gosto. Noah arranca com a moto nesse instante, ele acelera

devagar e as pessoas vão à loucura, gritando e aplaudindo,

agitadas.

— Adoraram sua avó.

— Ah, ela é uma aventura, sempre — comento. Dominic e

Bernardo finalmente chegam ao meu lado e param, enquanto


observamos a moto se distanciar.
— É um amor! Me disse que adorou as almofadas do meu

marido — Cíntia diz, me fazendo estatelar os olhos. — Fui eu que


coloquei as almofadas naquele banco lá de fora, são de Natal e

como deve ter notado eu sou apaixonada por essa época. Então
imagine minha alegria por alguém também gostar das almofadas…

Dominic engasga ao meu lado, em uma tosse inoportuna, e


apenas congelo um sorriso no rosto, evitando uma resposta, afinal é

melhor não destruir a inocência da mulher.

— Vocês vão seguir viagem hoje, não é? — ela pergunta,

alguns instantes depois.

— Isso. Vamos para Gramado… Parece que tem um parque


de gelo lá e é um dos planos da nossa lista.

— Existe uma lista? Que coisa legal, adorei a ideia de vocês.

— Foi o Dominic. — Ela dá de ombros, ouvindo meu


comentário. — Ele decidiu realizar nossos desejos de Natal e um
deles era o de ver a neve, como estamos no verão, parece a única

opção possível.

— É a Snowland, eu já fui umas duas vezes, acho que vão


gostar.
— Não tenho certeza, porque não sei patinar, mas vou tentar.

Nesse momento ouvimos o ronco da moto de Noah e,

segundos depois, eles surgem na esquina, vovó com os braços


erguidos e gritando em alto e bom som, não seguindo nenhum dos
meus conselhos de prudência, como era de se esperar.

Por sorte, contra todas as probabilidades, Noah está dirigindo

devagar, deixando que a velhinha aproveite a viagem.

Quando finalmente chegamos a Gramado, sou surpreendida


com o que encontramos. É exatamente o que eu esperava de uma

cidade romântica e turística, e ao mesmo tempo é muito diferente do


que imaginei.

O parque não estava absolutamente lotado e isso fez com que


não levasse muito tempo para conseguirmos calçar nossos patins e

entrar na pista.

Bernardo e Dominic pegaram um carrinho, ao estilo de um


pequeno trenó para evitar quedas, vovó e eu, por outro lado, somos

um show à parte.

— Acho melhor a senhora não se arriscar, vó. Se cair…


— E você acha que sou louca, Robinha? Não confio nesse
negócio de pôr os pés.

Apesar de a resposta ser exatamente a que eu desejava ouvir,


porque evita que eu precise me impor para fazê-la desistir da

patinação, não consigo evitar a curiosidade com seu comentário.

— E por que não confia?

— São sapatos com facas, menina. O que pode vir de bom

disso? E se eu cair, vou congelar o… Você sabe.

Aquiesço achando graça e caminho com ela até o banco, em

um dos cantos do ringue. Sentamos lado a lado, e aproveito para


calcar os meus patins, sentindo um frio que não vem diretamente do

gelo, mas da minha barriga.

Eu me levanto, determinada a tentar, já que estamos aqui por

conta de um dos meus desejos, e me curvo um pouco para frente,


como posso ver os outros patinadores fazerem. O problema é que

não tenho a menor ideia de como fazer o básico. Os patins são


muito pesados e as lâminas são finas e não ajudam em nada com o
equilíbrio do corpo.

Enquanto tento fincá-las no chão para me firmar, meus pés

fazem o trabalho contrário, se virando para fora.


— Eu acho que vou cair — grito para Dominic, abrindo os
braços para tentar me manter de pé.

— Docinho, feche um pouco as pernas — Dom instrui, gritando


de volta, enquanto arrasta Bernardo pelo gelo.

Isso apenas piora tudo, porque agora todas as outras pessoas


estão me encarando, o que me deixa mais nervosa. Faço o que ele

diz, apesar disso, mas é em vão.

Continuo oscilando para frente e para trás e vejo quando

Dominic fala com Bernardo e o deixa a alguns metros, correndo em


minha direção. Abro os braços e as pernas, tal qual uma pata choca

e vejo quando um dos meus pés desliza para frente, sem qualquer

controle, enquanto o outro faz o caminho inverso, em um espacato


não planejado.

— Socorroooo… — Já sinto os tendões das minhas pernas se

esforçando e quase posso imaginar o rompimento maravilhoso que

vai ser.

O Natal perfeito enquanto reaprendo a andar.

E, sim, penso em tudo isso enquanto lentamente minhas

pernas se abrem. Mas antes que eu me estatele lindamente no gelo


e congele minhas preciosas almofadas, Dominic surge patinando do

além e me alcança, me colocando de pé.

— Pensei que quisesse patinar, não virar bailarina — brinca,

abrindo um de seus sorrisos mais lindos.

Meu coração ainda está disparado diante da quase queda,

mas não deixo de notar como o momento parece mágico e como ele
sempre consegue ser meu príncipe, que surge quando mais preciso.

Dom nota meu olhar de adoração, e seu sorriso fica maior à

medida que ele se inclina em minha direção e sua boca toma a

minha em um beijo apaixonado. Sinto sua língua deslizar por entre


meus lábios e tocar a minha, enquanto o envolvo pelo pescoço,

sabendo que estou segura em seus braços.

— Manhê, pai… — Bernardo reclama, com a reação típica das

crianças diante de um beijo.

Dominic sorri contra meus lábios e se afasta um pouco,


mantendo os braços ao meu redor.

— Acho melhor desistirmos disso de patinação e irmos comer.

Talvez ainda dê tempo de vermos o show do Natal Luz.

— Ah! Isso seria incrível!


— Comprei os ingressos, mas achei que não fosse dar tempo

— ele explica. — Vamos então?

Saímos do parque e vamos até um dos vários restaurantes no

centro comercial. Assim como a maior parte da cidade, ele também


está enfeitado para o Natal. Luzes, pessoas fantasiadas e a magia

típica dessa data estão por toda parte, assim como os turistas que

lotam as mesas e as ruas.

— O que vamos comer? — pergunto, analisando o cardápio à


procura de algo que me chame a atenção. — Ah! Que tal fondue?

Dominic concorda, aprovando minha decisão.

— A melhor escolha, não dá pra sair daqui sem experimentar o

fondue.

— Vocês poderiam respeitar o Minduim e eu... — vovó


reclama, fechando um pouco a cara.

— Fondue é uma comida, dona Rute.

Ela suspira, se irritando um pouco.

— Quem foi que deu os nomes das comidas por aqui? Todos

são estranhos… — resmunga.


Com a decisão tomada, fazemos nosso pedido. O atendimento

é excepcional e em pouco tempo, estamos saboreando nossa


deliciosa refeição e, no fim das contas, vovó precisa assumir que

também amou a comida de nome estranho.

Saímos do restaurante direto para o espetáculo e eu não

poderia ficar mais apaixonada por uma cidade, nem se quisesse. Os


carros alegóricos, enfeitados por completo, a decoração rica em

luzes e as cores vibrantes do Natal que fazem a mágica acontecer,

tudo é encantador, e sinto o espírito natalina no ar e no olhar de


cada criança.

Dançarinos tomam conta do espaço à nossa frente, enquanto

assistimos a tudo das arquibancadas. As mulheres usam vestidos

em tons de vermelho e seus pares estão vestidos como duendes.


Bernardo está com os olhos brilhando e não é para menos, afinal

mesmo os adultos se encantam e se emocionam.

Como se já não fosse perfeito, de repente iniciam uma

apresentação que reconta a história do nascimento de Jesus, em


um musical tão bonito e cheio de detalhes que consegue me

arrancar algumas lágrimas. Quando finalmente termina, estou me

sentindo leve e inspirada. Pronta para a próxima parte da viagem.


— E agora? — questiono, enquanto caminhamos de volta para

o trailer.

— Agora vamos dormir, porque amanhã seguimos viagem —

Dominic responde, misterioso.

— É mesmo? E pra onde exatamente nós vamos? Tem um


ponto de interrogação no mapa depois de Gramado.

— Isso não posso contar, é surpresa.

— Como assim, não pode? Vai me levar sem dizer onde é?

Ele aquiesce, satisfeito consigo mesmo.

— Sim, você vai ter que confiar em mim. Vamos até certo

ponto normalmente, e depois as coisas vão ficar mais interessantes.

Tudo bem, eu confio no meu marido. Mas quando ele disse

que as coisas ficariam interessantes, não estava preparada para o

que viria a seguir.

Quando o dia amanheceu, Dominic dirigiu até uma filial da loja

em que alugou o trailer e o deixou lá, assim, do nada. Isso porque o


Rio Grande do Sul é bem longe de Minas Gerais.

E então, ele chamou um táxi.


A partir daí as coisas ficaram realmente curiosas. De algum

lugar — de onde exatamente não faço ideia —, ele retirou uma


venda e cobriu meus olhos. Poderia ser instigante, tentar captar

apenas os sons ao redor para descobrir informações sobre nosso

destino, mas então ele simplesmente colocou um par de fones nos

meus ouvidos e ligou uma música em altíssimo volume, tornando


impossível que eu ouvisse qualquer coisa além da canção.

Verdade seja dita, em defesa dele, Dominic colocou o novo

álbum da Dominium, o que fez com que ganhasse vários pontinhos,

mas quando me fez descer do carro e começou a me guiar por


algum lugar estranho, o frio na barriga e a apreensão voltaram com

força total.

Em alguns momentos ele parava, em outros caminhava mais

lentamente, como se estivéssemos em fila, esperando algo. Pude


sentir a presença de várias pessoas ao meu redor e alguns

chegavam a esbarrar em mim, mas as mãos de Dominic

permaneceram nos meus ombros o tempo todo, me dando


segurança.

Apenas quando ele retirou meus fones e a venda, percebi que

estávamos em um aeroporto. Dominic sorriu para mim e apontou


para a atendente atrás do balcão.

— Expliquei para a moça nossa situação e a surpresa, mas ela

precisa confirmar porque eu poderia estar te sequestrando…

A mulher sorri para mim, provavelmente encantada com a

surpresa.

— A senhora está viajando por vontade própria, certo?

— Claro, como meu marido explicou, é uma surpresa —

respondo, ainda que não faça a menor ideia do motivo pelo qual

estamos em um aeroporto.

— Certo. Vou precisar do seu passaporte, mas pode deixar


que de agora em diante resolvo tudo com ele. Espero que consiga

chegar ao seu destino sem que estraguem a diversão de vocês.

Depois disso, a venda e os fones retornaram e tudo voltou a


ficar confuso, continuei sem saber por onde andávamos ou o que

estava de fato acontecendo e não ouvia nada além da voz rouca e


grave de Ashton Ray, Dom me fez perceber que eu deveria me
sentar, e senti quando ele passou um cinto sobre meu corpo e o

afivelou.
— Estamos no avião? — perguntei, sem uma noção exata de
estar sussurrando ou gritando.

Ele afasta o fone um pouco, apenas para me responder.

— Estamos, fique tranquila porque estamos todos aqui e bem,


Minduim e vovó já se sentaram também, agora essa parte da
viagem vai demorar…

— Demorar quanto tempo?

— Várias horas, eu aconselho você a dormir e quando

estivermos chegando eu te acordo.

— Como vou dormir? Estou morrendo de curiosidade e, além

disso, a música está muito alta.

— Acho que agora não tem problema abaixar um pouco, mas


vai continuar com a venda…

Aquiesço, porque apesar da ansiedade, estou adorando ser


surpreendida. Dominic então retorna o fone para o lugar, mas a
música assume um volume mais baixo, de modo que consigo

relaxar um pouco, mesmo que tenha certeza absoluta de que não


vou dormir.

Eu dormi.
Apenas me dou conta disso quando percebo que o avião está
descendo, meu corpo sendo inclinado levemente para frente e as
vibrações são a certeza de que precisava. Estamos pousando e

ainda não entendi porque viajamos de avião. Talvez ele apenas


tenha se cansado de dirigir o motor home e decidido voltar de uma

maneira mais rápida, mas, se fosse isso, a surpresa não faria o


menor sentido.

Finalmente parece chegar a nossa vez de descer, porque

Dominic solta meu cinto e me guia gentilmente pelo corredor, para


fora do avião.

Ele ainda não disse nada e também não retirou meu fone ou a
venda. Sinto a mão pequena de Minduim segurar a minha e
continuo caminhando em frente. Depois de algum tempo, não sei

exatamente quanto, finalmente paramos.

Sinto o tecido da venda deslizar por sobre minha cabeça e


primeiro encontro os olhos dele, que me encaram cheios de

expectativa. Dominic então retira os fones e me concentro em sua


voz.

— Então, a surpresa é essa… Não vai surtar.


Vovó está rindo de orelha a orelha, empolgada, e Minduim
parece confuso. Olho ao redor, tentando compreender a que ele se

refere, já que ainda estamos em um aeroporto, mas aos poucos


uma percepção penetra em meu cérebro.

Eu não entendo quase nada do que as pessoas estão falando,


porque eles não falam português, mas um inglês muito rápido e
diferente do que me habituei na escola em que fiz seis meses de

curso.

— Mas que… Dominic? Onde nós estamos?

— Bem-vinda a Seattle, Docinho.


Robin está tão surpresa que demora algum tempo para se
recuperar e finalmente voltar a falar.

— Dominic, pelo amor de Deus… — Ela me encara com os


olhos arregalados e uma palidez atípica. — O que viemos fazer

aqui?

Dou de ombros, como se fosse muito óbvio.

— Você sabe o que viemos fazer, amor, afinal de contas

estava na sua lista.

— Não… Você só pode estar brincando comigo — diz, olhando


ao redor como que para confirmar. — Nós estamos mesmo em
Seattle?

— Estamos e vamos ao show da Dominium hoje à noite.

— Eu acho que estou passando mal — Robin sussurra,

levando a mão ao rosto.

— Era pra estar se sentindo muito bem, até a vovó está

animada para o show — comento, porque realmente dona Rute nem


hesitou quando mencionei o plano.

— A vovó, Dominic? Como vamos para um show com a vovó e

o Minduim?

— Eles vão tocar em um festival e muitas famílias vão, então é

algo mais comportado.

Robin se cala e fica me encarando por algum tempo,

assimilando a novidade. Ela meneia a cabeça, olha ao redor de

novo e então, lentamente, um sorriso começa a surgir. É devagar,


mas aos poucos ele toma conta de todo seu rosto, iluminando

completamente seu semblante.

— Eu sou uma dominadaaaa! — ela grita, pulando alto e sem

se importar que as pessoas ao redor estejam vendo.


Todos nos olham, curiosos, mas para meu alívio a maioria não
entende nossa língua.

E esse é um dos maiores inconvenientes com os quais temos

que lidar. Tenho um conhecimento mínimo de inglês, Robin tem

menos que o mínimo e vovó e Minduim não conhecem

absolutamente nada.

— I need a taxi to the hotel… — falo, me dirigindo a um

homem cuja camisa diz claramente “information”.

Ele parece entender que preciso de um táxi que nos leve ao

hotel, porque responde com duas frases, das quais apenas distingo

as palavras carro e dólares, mas como ele também aponta a

direção, não fica complicado entender o que quer dizer.

Seguimos para a direção indicada por ele, entramos no carro


amarelo e passo o endereço ao motorista, com minha pronúncia

horrível. Vovó começa a falar entusiasmada e o motorista parece se

divertir com nosso idioma e empolgação.

— Are you from Brazil? — ele questiona, querendo saber de


onde nós somos.

— Yes — respondo, sem me prolongar.


O motorista parece perceber que nossos conhecimentos de

inglês são escassos, porque apenas balança a cabeça, sorrindo, e


volta a se concentrar no trânsito.

Quando finalmente chegamos ao hotel e descemos do carro,


temos mais um pequeno problema linguístico.

O homem na recepção informa nosso quarto, mas acabo por

confundir o número treze com o trinta e com isso vamos parar no


andar errado, mas no fim conseguimos encontrar.

Dentro do quarto não temos mais inconvenientes e depois de


nos arrumarmos para o show, pegamos outro táxi bem em frente ao

hotel, prontos para o evento da noite.

Apesar da alegria de Robin, ela não faz a menor ideia de tudo

que vai acontecer hoje. O contato que consegui com Teseu


Demetriou fez toda a diferença, e as próximas horas prometem ser

tudo o que uma fã sonha, no entanto, mais uma vez a língua pode
se mostrar uma barreira.

O lugar escolhido para o festival está completamente lotado,


mas conduzo minha família por entre a multidão na direção do

camarote, o que já deixa Robin com um brilho diferente nos olhos.


Diante do palco há uma pequena grade, que impede que as
pessoas subam repentinamente, e atrás dela está a área reservada.

Uma outra grade separa o restante do público, que fica um pouco


mais distante.

— Não acredito que comprou ingressos no camarote… Devem


ter custado uma fortuna!

— Tudo por você — respondo, quando paramos.

Ela se inclina, me roubando um beijo rápido, e seguimos até a


entrada. O segurança pede nossos tickets, ou ao menos é o que

imagino, porque quando os mostro a ele, somos liberados para


entrar.

— Vamos ficar bem embaixo do palco — Robin sugere, me


puxando pela mão.

Arrasto Minduim pela outra mão e ele, por sua vez, segura

firme na avó, e assim seguimos como uma corrente humana até


estarmos diante do palco. Robin se espreme aqui e ali e nos força a

seguir o mesmo caminho, até estarmos na primeira fileira. Quando


nos acomodamos entre as pessoas, coloco Bernardo sobre os
ombros, de modo que ele possa ver e também para não o perder, e

Robin fica responsável por manter os olhos na vovó.


Uma banda desconhecida sobe ao palco, o vocalista tem os
cabelos platinados e não deve ter mais que vinte e pouco anos,
ainda assim, várias mulheres, incluindo a minha, gritam

ensandecidas, como se soubessem exatamente quem são os


moleques.

Demoro um pouco para reconhecer os rostos, mas acabo por


me lembrar que são os garotos que participaram do Dominirock e,

no fim, formaram uma banda.

— Como se chamam esses caras mesmo? — pergunto,


gritando por sobre a música alta que começaram a tocar.

— É o Chade, amor… — Robin responde ao meu lado,


sorridente.

— Mas e a banda?

— Shower Singers.

Ah, então é isso. A música deles é boa, ainda que eu não


conheça e o vocalista realmente tem carisma. Eles ainda estão
abrindo shows de outras bandas mais famosas pelo que posso ver,

mas existe potencial para que cresçam.


O que me importa é ver que Robin está curtindo e isso que a
Dominium nem entrou ainda… Desvio os olhos para ter certeza de
que nossa encrenqueira está se comportando e a vejo sacudindo a

cabeça ao som da música, com uma tiara fluorescente sobre os


cabelos, as duas anteninhas se balançam e brilham no escuro e não

faço a menor ideia de onde isso surgiu, mas prefiro deixar pra lá.

— Obrigado por nos ouvirem e comparecerem — Chade


agradece, em inglês.

Não entendo bem o que ele fala depois, mas quando grita

Dominium e o público vai à loucura, não há nenhuma dúvida de que

o momento chegou.

Robin, assim como os demais, pula e grita, eufórica e vejo os


quatro integrantes da banda subirem ao palco, em meio a uma

comoção incrível do público.

À frente dos amigos, Ashton Ray se aproxima do microfone,

vestindo uma blusa sem mangas, preta, que deixa à mostra os


braços tatuados e uma calça completamente rasgada — nunca

entendi porque as pessoas pagam por roupas destruídas. Do lado

esquerdo dele está o novo baixista e ao lado direito o guitarrista


problemático. Não consigo ver o baterista, que fica nos fundos do

palco, mas posso ouvir nitidamente as baquetas retumbarem.

O vocalista começa a falar e consigo discernir ao menos uns

dois palavrões elogiosos em sua fala, ainda que soe tudo muito

diferente no inglês. Algo como, é foda pra caralho.

Robin não deve estar entendendo nada, mas mesmo assim


grita e pula enlouquecida e quando ele começa a cantar, ergue os

braços e fecha os olhos, se entregando à música.

Se tem algo que não posso negar, nem que eu queira, é que a

banda realmente é muito boa. A maior parte do público é constituído


por mulheres, mas isso porque os integrantes são jovens e parecem

modelos de comercial de bebida cara, o que não significa que a

música seja ruim.

Mas ainda que fossem, a alegria de Robin faria valer a pena o


sacrifício.

Como ela está distraída com a canção romântica, procuro vovó

outra vez com os olhos, mas o que vejo é difícil de compreender.

Por algum motivo, vovó Rute não tem mais os pés no chão,

mas uma perna está do outro lado da grade, enquanto a outra está
esticada no ar, em uma clara tentativa de pular. Ela está

planejando…

— Pai, a vó vai subir lá no palco? — Minduim pergunta, a frase

inocente sendo o suficiente para fazer com que o meu coração


dispare.

Bato com a ponta do dedo no ombro de Robin, tentando

chamar sua atenção para que consiga impedir a loucura, mas ela

simplesmente está chorando com a intensidade da música e me


ignora por completo.

Tento passar por ela, mas com Bernardo sobre os ombros e as

pessoas que me acotovelam, empurrando por pensarem que estou

tentando roubar seus lugares, não consigo muito progresso.

O pânico ameaça me dominar, enquanto prevejo a queda da


velhinha e no mínimo alguns ossos quebrados, mas então a música

para repentinamente e quando olho outra vez para o palco, Ashton

Ray está abaixado, segurando a mão da vovó para ajudá-la a subir.

Com a interrupção da música, Robin finalmente abre os olhos


e quando digo isso, quero dizer que eles poderiam ser confundidos

com duas bolas de golfe, de tão grandes e abertos.


— Are you a dominated? — Ashton questiona, e em seguida

oferece o microfone para que ela responda.

— Ted? Que Ted?

Começo a rir porque essa conversa tem tudo para ser hilária.

Vovó não entende absolutamente nada de inglês e ele com certeza

não sabe falar português.

— I see you are not from around here. How did you get here?

— Não, eu não comecei a rir… Robinha — ela grita, encarando


a neta —, fala pra ele conversar em brasileiro.

— Oh, you are Brazilian — o cantor comenta, sorrindo por

finalmente ter compreendido alguma coisa.

— Hummm… — vovó resmunga, parecendo constrangida com


os olhares sobre si.

As bochechas estão ruborizadas, o que não faz o menor

sentido se considerarmos que a decisão de pular a grade e subir ao

palco foi totalmente dela, mas sempre que possível seu olhar se
desvia para os fundos do palco, na direção da bateria.

— Was jumping over the grid. Why?

— Uai… Isso mesmo. Robinha, ele sabe que somos de Minas!


Robin bate palmas empolgada, ainda que seja muito óbvio que

não foi o que ele disse. Ashton sorri para as duas, notando a troca

entre elas e então puxa a vovó para um abraço que parece ser de

despedida.

Ela deveria parecer feliz, mas tudo que dona Rute faz, é olhar

novamente para o baterista, por quem ela tem uma queda. Em

seguida acho que Ashton pede que desça, por ser perigoso e ela

concorda com um gesto de cabeça, como se o entendesse e chego


a pensar que realmente compreendeu, mas ao invés de fazer o que

Ashton sugere, quando ele a solta, vovó corre para os fundos do

palco, direto para Josh Nicols.

O guitarrista, Tray se não estou enganado, está se


contorcendo de rir com a cena, enquanto o rapaz que se vê como

alvo se levanta, um pouco assustado, mas disposto a retribuir o

carinho da velhinha com um abraço.

Depois disso, ela parece satisfeita, enquanto Robin, Bernardo


e eu, apenas assistimos a tudo sem reagir. A assessora da banda

sobe ao palco e acompanha a vovó para fora, mas para nosso

desespero, ela não volta por sobre a mesma grade e sim, segue
para algum lugar atrás dos músicos e do palco. O show volta a

acontecer, mas Robin se vira para mim, claramente desesperada.

— E agora?

— Vamos ter que dar a volta e ir atrás dela.

Apesar de saber que Robin não quer perder o show, ela não

pensa duas vezes antes de deixar seu lugar privilegiado para sair

em busca da avó, afinal, o risco de nos perdermos, caso eu fosse


sozinho, é bem grande.

Demoramos algum tempo para chegar aos fundos do palco, já

que a multidão empurrando não ajuda muito, mas quando

conseguimos, nos deparamos com uma barreira de seguranças.

— Preciso entrar aí, aquela senhora é da nossa família — falo,


gesticulando.

— Em inglês, Dom — Robin sugere, ao perceber que não me

entenderam.

— I need… Como falo entrar aí?

— Não tenho a menor ideia. Go here?

— Meu Deus… That grandma… — digo, tentando outro


caminho.
A expressão do homem é mais compreensiva, o que me leva
crer que ao menos ele agora entendeu que me refiro à vovó.

— Estão procurando a senhora que subiu ao palco? — Um

homem aparece repentinamente, atrás dos guardas.

Apesar de nos questionar em português, ele claramente não é


brasileiro, o que é nítido pelo sotaque carregado, que o denuncia.

— Isso, ela é avó da minha esposa. Viemos do Brasil para

assistir ao show, mas nos distraímos e ela pulou a grade…

O homem passa a mão pelos cabelos escuros e abre um

sorriso.

— Dominic Duarte? — pergunta, em tom de reconhecimento.

— Quem é você? — Como é que alguém pode me reconhecer

do outro lado do mundo?

A menos que…

— Sou Azal Patel. Falamos por telefone por intermédio de


Teseu Demetriou.

— Não acredito! Que sorte a nossa encontrar você aqui.

Robin olha dele para mim, tentando entender o que está

havendo.
— Esperem aí. Como se não fosse chocante demais o fato de
o homem falar português, estão dizendo que já se conhecem? Que
se falaram por telefone?

— Imagino que essa seja sua mulher, a que é fã da banda —


Azal volta a falar, sem responder à pergunta dela.

— Ela mesma.

— Se quiserem entrar agora, assim que o show acabar os


rapazes vão para o camarim.

— Ah meu Deus — Robin sussurra, se dando conta do que


está havendo —, nós vamos… Vamos falar com eles?

— Não vai desmaiar, vai? — o árabe questiona.

Parece uma brincadeira, mas o tom dele é sério e mostra que


não é piada.

— Eu… Claro que não. Por que desmaiaria?

— Ficaria surpresa se soubesse o quanto isso acontece…


Encontramos a velhinha safada, sentada confortavelmente
entre algumas almofadas em um grande sofá. Apesar de estar
acompanhada apenas por duas desconhecidas, sendo uma delas

uma mulher de cabelos muito coloridos e a outra… Acho que é


Jasmim, a esposa de Tray Anders. Ainda assim minha avó não

parece nem um pouco preocupada.

— Ah! Finalmente vocês apareceram — diz, como se não


duvidasse nem por um momento que fôssemos encontrá-la. — Eu

estava aqui com essas mocinhas, esperando.

— Essa é minha esposa, Andy — o árabe fala, atrás de nós, e

a moça de cabelos diferentes ergue os olhos ao ouvir a voz dele —,


mas nem ela e nem Jas falam português, então não sei exatamente

como estavam conversando.

— Provavelmente igual Ashton falou com dona Rute no palco,


sem entenderem nada — Dominic responde, achando graça.

— Bom, parece que ao menos vocês deram sorte de encontrar

alguém que fale português, porque vou poder traduzir tudo pra

vocês. — A mulher dele pergunta alguma coisa e o rapaz explica em

inglês, antes de voltar a falar com Dominic. — Podem se sentar se


quiserem, o show já vai acabar.

— Aii… — é minha única resposta, sinto meu coração

disparado no peito com a expectativa.

A esposa de Azal questiona alguma outra coisa e ele volta a


falar com ela, mas em seguida se vira para mim, sorrindo.

— Andy disse que não precisa se preocupar. Que os desmaios

são frequentes só no começo, mas que uma hora se acostuma com

eles.

Sorrio, agradecida pelo conselho estranho, e não explico o

óbvio. Nunca vou me acostumar, mesmo porque é um evento único,

mas também não pretendo desmaiar.


— Fala pra sua esposa que amei os cabelos dela — vovó
pede. — Queria pintar os meus assim.

Ele obedece e os olhos da moça se iluminam. Não faço ideia

do que ela responde, mas tenho um pressentimento ruim ao vê-la se

afastar na direção de uma porta fechada.

E, por falar em porta, a do camarim bate com força na parede

se abrindo e revelando ninguém menos que Tray Anders, seguido

de perto por Josh, Ethan e Ashton. As esposas caminham logo

atrás, sorrindo e conversando animadas entre si.

Não tento entender o que estão dizendo, porque de repente

está tudo girando e meu estômago embrulhado. Se eu vomitar aos

pés da Dominium, nunca vou me perdoar.

— Docinho, está se sentindo bem? — Dom percebe minha


situação, mas não consigo responder.

Eu me abaixo, apoiando as mãos nos joelhos e vejo quando

Azal caminha para trás de mim, se posicionando para me segurar,

porque ele realmente acha que vou desmaiar.

Os outros parecem perceber que algo não está certo e se

aproximam, o que apenas piora tudo. Diante de mim estão todos


eles, me encarando com ares de preocupação, e simplesmente não

consigo dizer uma palavra das que seriam adequadas ao momento.

— Acho que minha pressão caiu… E talvez eu vomite o jantar.

Azal volta a falar em inglês e então, como em um sonho

desses impossíveis, Ashton me pega no colo e caminha comigo na


direção do sofá.

Desvio os olhos para o meu marido e percebo que ele não


parece muito feliz com isso, mas é maduro o bastante para entender

que não existem aqui intenções maldosas.

Ashton fala alguma coisa e ouço Azal voltar a traduzir em


seguida.

— Ash quer saber se está doente ou emocionada?

— Hum, acho que emocionada.

Os outros começam a falar todos juntos e eu só queria que por

um milagre pudesse entender tudo.

A loira, Anelyse, se senta ao lado da minha vó e puxa assunto,


mas recebe de volta um grande olhar de interrogação.

— Não enche Tray, ela não está passando mal porque você é
bonito demais — Azal responde.
Isso me arranca uma risada, afinal eles são exatamente como

imaginei, ainda que nos meus sonhos falassem português.

Julia então aparece diante de mim e estende um comprimido,


dizendo algo incompreensível e falando muito rápido.

— Ela disse que parece que você vai vomitar e que é um


remédio pra enjoo.

Agradeço em inglês e ela sorri, com um dar de ombros, como


se não fosse nada demais. Majô, uma negra muito bonita, aparece

também ao lado de Julia e me estende uma garrafa d'água pela


metade, o que dispensa explicações.

Tomo o comprimido e vejo quando meu marido se aproxima do


sofá e se senta ao meu lado, Bernardo acompanha a tudo em

silêncio e se senta sobre as pernas do pai.

— Tudo bem?

— Sim, acho que foram muitas emoções.

— Quer conversar com eles?

Dizer alguma coisa? Posso tentar traduzir no google, ou o Azal


pode…

— Claro. Vou me arrepender se não disser nada.


Ele aquiesce.

— Pode ajudar, senhor Patel? — Dom questiona, todo formal.

— Claro, estou aqui pra isso mesmo. Pode falar, Robin.

— Bom, meu nome é Robin e sou uma confeiteira no Brasil.


Sou fã da Dominium tem muito tempo e nunca pude ir a um show de

vocês, então nem acredito que esteja realmente aqui, parece que
estou sonhando… Perdi boa parte do show, mas valeu a pena pra

ter esse momento aqui. E Ethan… Congratulations!

— Thank you — ele agradece, abrindo um sorriso largo.

Ashton diz algumas coisas e só consigo pegar uma ou outra


palavra, mas Azal traduz perfeitamente.

— Que bom que pôde vir, Robin, talvez conversar seja difícil,

mas ao menos a música é uma linguagem universal.

Andy aparece, voltando sei lá de onde e arrasta Tray para um

canto, não sei o que os dois conversam, mas de repente o


guitarrista começa a pular, empolgado, enquanto a esposa dele

meneia a cabeça, achando graça.

Azal escuta o que os dois falam e então se vira para nós, com

o cenho franzido.
— A Andy disse que sua avó quer pintar o cabelo e que ela e o
Tray vão fazer isso se vocês concordarem. Tem uma tinta verde ali e
o Anders já está animadinho, como pode ver.

— Pintar o cabelo da vovó de verde?

— Ah que adorável! — vovó comenta, batendo palmas.

— Ficou doida, vó?

— Andy disse que é tinta que usam em festas, sai em poucos

dias ou após umas duas lavadas — Azal volta a falar, após ouvir a

esposa.

Encaro Dominic, entre desesperada e anestesiada, afinal de


contas ainda parece que nada disso está acontecendo.

— Pintar os cabelos era um desejo da lista dela, Docinho. E

estamos em Seattle, no camarim da sua banda preferida e um deles

quer pintar os cabelos dela. Acho que é uma daquelas histórias que
vamos contar a vida toda…

Aquiesço, porque ele tem razão e é como se diz, só se vive

uma vez e a vovó não tem mais tantos anos pela frente, então que

viva em grande estilo.


— Tá bom, podem pintar — falo, encarando Tray, que me fita

cheio de expectativa, com aqueles olhos lindos e que deixam


qualquer uma com as pernas bambas.

— Yes?

— Ok, yes — concordo.

Ele sai pulando pelo camarim, comemorando e os outros

começam a rir, já acostumados às loucuras do guitarrista.

Também já estou habituada ao jeito irreverente dele, pela


televisão, mas nunca imaginei que um dia estaria no mesmo

cômodo, presenciando tudo.

E é assim que nossa turnê de encerra. Tray Anders e Andy

pintam os cabelos brancos da vovó de verde, Josh Nicols usa o


google tradutor para dizer a ela que, se um dia quiser, pode ir

conhecer o Peace, a casa de repouso que ele coordena — ela

parece tentada —, fui carregada no colo por ninguém menos que


Ashton Ray, e Ethan Walker afirmou duas vezes que somos uma

linda família e que nossa ideia de viagem foi inspiradora.

Quem sabe um dia a Dominium faça uma canção sobre nós?


— Obrigado por tudo, senhor Patel. — Ouço Dominic

agradecer, ciente de que o sonho precisa chegar ao fim.

Mas não antes de uma bela foto e alguns autógrafos.

Reunimos todos em frente ao sofá e, quando olho ao redor,

ainda parece surreal. Ashton e sua beleza característica, as


tatuagens e os braços fortes, Josh e sua carinha de anjo loiro, Tray,

louco como sempre e deitado no chão à nossa frente, Ethan, lindo e

gentil, o pedacinho que sempre faltou e que não sabíamos, e o


casal, Azal e Andy, mais parte da banda que os próprios

instrumentos musicais.

E, junto com eles, minha linda família. Eu, boba e feliz, mais

realizada que nunca, Bernardo, que se diverte ouvindo as pessoas


conversarem em uma língua que ele não conhece, vovó Rute, agora

com os cabelos da cor de abacate e um sorriso maior que o sucesso

da Dominium e meu marido, Dominic, a razão de estarmos aqui,

minha alma gêmea e a pessoa que faz tudo para colocar um sorriso
no meu rosto, minha melhor escolha, sempre.

É incrível o quanto o amo. Mesmo aqui, em meio aos músicos,

com suas belezas extraordinárias, ninguém é mais lindo que meu

Dom e jamais outro ocuparia em meu peito o lugar dele.


Quando a assessora da banda ergue o celular e todos

congelam os sorrisos para a foto, me viro para ele, que também se


volta para mim, com todo amor do mundo nos olhos escuros.

— Eu te amo, Dom.

— Também te amo. Feliz Natal, Docinho.

O caminho de volta foi tranquilo e chegamos em casa de fato a


tempo para o Natal.

Após tantas emoções, aproveitamos nosso retorno para mais

uma rodada delas, contando a Alice nosso plano de enviá-la a Vale

do Recomeço para cuidar da filial da Que Seja Doce. Ela adorou a


ideia, não apenas pela confiança que demonstramos com isso, mas

também pela oportunidade de ganhar experiência.

A noite de Natal está sendo mágica. Sentamos ao redor da

mesa de jantar na casa da minha mãe e conversamos animados

sobre tudo que vivemos nos últimos dias.

— Foi a melhor viagem da história — conto, enquanto nossos

pais nos encaram, aguardando os detalhes —, passamos por uma

cidadezinha encantadora, aqui no sul de Minas e foi onde


conhecemos a Alícia, que vai ser a responsável pela filial da Que

Seja Doce.

— Isso é maravilhoso — mamãe comenta, aplaudindo.

— Depois conhecemos São Paulo, Minduim voou naqueles

túneis de vento, sabem? — Dom conta. — A viagem também foi


superimportante pra o que veio a seguir.

— Como assim?

— Foi em São Paulo que conheci o Teseu Demetriou, sabem?

Meu sogro aquiesce, afinal, todo comerciante, ou empresário

bem-sucedido nesse país já ouviu o nome do homem.

— Ele tinha feito amizade com um árabe que era amigo íntimo
dos caras da Dominium e fez a ponte entre nós. Por sorte, o Azal

falava português, o que facilitou tudo.

— E foi ele que ajudou vocês? — meu sogro pergunta, curioso.

— Sim. Ele conseguiu passes para o camarim e falou com a

banda sobre nós, sobre termos ido até lá vindos de outro país e eles
nos cederam algum tempo.

— Então depois de São Paulo foram direto pra Seattle?


— Não. Anda fomos para o Rio Grande do Sul. Ficamos em

um camping lindo. Vovó andou de moto com um doido que


conhecemos por lá… Foi muito divertido e romântico. Depois fomos

pra Gramado e vimos o espetáculo do Natal Luz e, só depois, fomos

para os Estados Unidos.

— E foi tudo bem? O Minduim se adaptou ao fuso horário?

— Foi ótimo. Passei muito mais mal que ele durante a viagem,
meu estômago anda meio ruim nos últimos dias — conto, me

lembrando das reviradas de emoção que ele deu.

— Aposto que vai ficar cem por cento quando vir o que

preparei de sobremesa.

Olho ao redor, procurando, mas não vejo nada. Minha mãe

então se levanta e pega a bandeja coberta com uma tampa

prateada e caminha apressada até mim.

Ela deposita o vasilhame na mesa, diante dos meus olhos e,

depois de algum suspense, retira a tampa.

— Rabanadas! Você amava quando era criança!

É automático. Como se a visão dos pães embebidos em

açúcar e depois fritos, ativassem o mal-estar. Sinto o estômago


revirar em protesto e deixo a mesa, correndo para despejar a
refeição no banheiro mais próximo.

Logicamente isso não está normal, considerando que nem

mesmo cheguei a comer as rabanadas e começo a ficar preocupada

com a constância dos enjoos.

Volto para a mesa um pouco depois e encontro os olhares

também preocupados dos outros, Dominic está com a cabeça baixa,

o que faz soar um alarme na minha mente. Ele está tenso com isso.

— Não é nada demais, Dom. Só estou enjoada… — amenizo,


tentando tranquilizá-lo.

— Você tem passado muito mal, acho melhor irmos ao hospital

pra nos livrarmos da dúvida. Pode estar doente… — ele diz e olha

ao redor, aguardando o apoio dos outros.

Minha mãe é a primeira a apoiar.

— Pode ser algum problema na vesícula, melhor ir se


consultar.

E é o que fazemos. Dominic me leva de imediato para o


médico e toda nossa família vai atrás, como se eu estivesse
morrendo ou algo assim. Um bando de exagerados!
Quando nos sentamos nas cadeiras do consultório, após me
darem remédio para as náuseas e coletarem um pouco de sangue
para alguns exames, o médico chega, analisando os papéis que já

estão prontos.

— O que ela tem doutor? — Dominic segura minha mão,


apreensivo.

— Tenho duas notícias, uma boa e uma ruim. A boa é que sua
esposa não está doente, a ruim é que não vai melhorar tão cedo…

Dominic baixa os olhos e aquiesce, como se entendesse o que


ele quer dizer com isso.

— Doutor, se está sugerindo que eu estou grávida, preciso

dizer que não é possível. Fiz laqueadura tem alguns anos…

— Então ela foi revertida — ele diz, encarando os papéis. —

Suas trompas não foram cortadas, mas amarradas e pelo que vejo
aqui, se soltaram, porque você está grávida, sim. Meus parabéns.

Levo a mão à boca, completamente em choque com a

informação. Apesar disso, meu peito se aquece com a notícia.

— Ela fez a cirurgia porque, de acordo com os médicos na

época, não podia ter mais filhos. Seria arriscado pra ela… — Dom
diz, me lembrando dos motivos pelos quais essa não é uma notícia
boa.

— Arriscado por quê? Robin é jovem, tem um corpo saudável,


podemos fazer um ultrassom, mas não vejo indicativo algum de
problema.

— Precisamos dos exames de imagem, doutor — Dom insiste.


— Eu não vou arriscar perdê-la.

— Então vamos fazer agora mesmo e pensamos no restante


depois.

Apesar da notícia me pegar de surpresa, também não consigo

sentir de fato o que ela significa pra nós, porque não posso acreditar
na chance de levar a gravidez adiante.

Quando entramos na sala de ultrassom, minhas mãos estão

geladas e suando. Dominic segura forte em uma delas, me dando


apoio, e me ajuda a subir e deitar na maca. Somos atendidos então,

mas não pelo mesmo médico e sim por uma médica que é muito
simpática.

— Vou colocar o gel frio na sua barriga e vamos ver como

estão o bebê e a mamãe.


Sinto o líquido frio e o momento em que ela posiciona o
aparelho sobre minha barriga. O barulho chiado ressoa na sala,

enquanto ela procura por algo mais nítido.

— Ahh! Aqui está…

E então ouvimos as batidas frenéticas do coraçãozinho dele.

— Você nem desconfiou que estivesse grávida? — ela


pergunta, percebendo meus olhos marejados.

— Não até hoje.

— Que engraçado… Já está de quase doze semanas.

— Doze semanas? — Dominic pergunta, tão chocado quando


eu.

— Sim, o primeiro trimestre já foi e você nem percebeu.

— E está tudo bem? Com ela e com o bebê? — questiona,


nervoso.

— Tudo ótimo. Não consigo ver o sexo, mas já podem fazer o


exame de sexagem fetal se quiserem descobrir.

— Mas eu não posso ter mais filhos! A parede do meu útero…


— Não tem nada de errado, é uma belíssima parede se quer

saber. Pode ser que quando te deram esse diagnóstico houvesse


algum problema, mas não há mais. Além disso, abortos
espontâneos são mais comuns nas primeiras semanas, você já

passou disso e seu bebê está ativo e grandinho.

— Não posso acreditar.

— Precisamos de mais exames, uma bateria completa —


Dominic pede, determinado. — Robin, amor, não vamos comemorar
ainda, tá bom? Não quero que se decepcione.

Concordo com um gesto, ele tem razão, mas a esperança já se


infiltrou no meu coração e no dele, pelo brilho que posso ver em
seus olhos.

E é o que fazemos. Uma sequência de exames de sangue,


imagem, urina e tudo mais que é possível, além de recebermos

opiniões médicas variadas, antes de aceitarmos os fatos.

— Podemos verificar só mais uma vez? Se eu sair daqui


comprando um monte de roupinhas e depois acontecer alguma

coisa, vou processar o hospital — Dominic fala, em tom brando, mas


de ameaça.
— Rapaz, vocês precisam processar quem atendeu sua
esposa e sugeriu que ela não poderia ter filhos nunca mais. Ela está
perfeitamente bem, não há nenhuma razão para alarme. Pode

comprar as roupas que quiser.

Dominic assente, assimilando a resposta do médico, e


finalmente deixa as emoções virem à tona e seus olhos se enchem

de água.

— Vou deixar vocês sozinhos um pouco — o médico diz, nos

dando um pouco de privacidade.

— Não acredito nisso, amor… Eu queria tanto, mas não me


permiti ter esperanças por medo. Pensei que fosse perder você se

acontecesse.

— Eu sei, Dom. Mas está tudo bem, vamos ficar bem.

— Mas, como? Você até mesmo foi operada!

— Quando Deus quer fazer milagres, nada o impede —


respondo, aceitando que não existem explicações óbvias.

— Acho que é uma boa resposta. Fico mais tranquilo


pensando que foi Deus ou o destino.
— É um milagre, amor, nosso milagre de Natal — falo,
colocando a mão sobre o ventre pela primeira vez, ciente de que

agora uma vida cresce ali. — Meu maior desejo… E sabe de uma
coisa? Se tudo que eu pedi aconteceu, já estou pensando no que
posso incluir na lista do ano que vem.

Dominic meneia a cabeça, desesperado.

— De jeito nenhum! Se me surgir com outra lista cheia de

loucuras como as que vivemos recentemente, vai levar palmadas


nas almofadas — ele brinca.

— Só vou pedir uma casa nova, maior, pra criarmos nossos

filhos com bastante espaço! Eu não poderia desejar mais nada da


vida.

— Nem eu, meu amor.

— Pensei que não estivesse muito animado, pela sua reação


inicial.

— Eu só estava com medo, mas já tenho até apelidos prontos


pra ela — Dom revela, o sorriso tomando conta de todo o rosto.

— Ela?
— Não viu como ficou tímida se escondendo durante três
meses? Aposto que é uma Robinha.

— Vai chamá-la assim?

— Não, se for uma menina, vou chamar de Cupcake. Já

pensou? Um Minduim e uma Cupcake!

Abro um sorriso também, diante do apelido fofo.

— E se for menino?

— Hum… Vai ser Cupcake também.


Dois anos se passaram em uma velocidade impressionante.

Talvez porque estivéssemos ocupados demais com a vida e com os


rumos imprevisíveis que ela tomou.

A gravidez de Robin foi tranquila e os meses que se passaram,

mais que especiais. Vivemos todos os momentos com os quais


sonhamos e não poupamos esforços para que nossa filha se

sentisse bem recebida e amada desde o ventre. Ela deu à luz a uma

linda menina, seis meses depois de descobrirmos a gravidez, e


demos a ela o nome de Vitória, porque a bebê veio realmente como

uma dádiva dos céus. Agora, a pequena já está andando pela casa,
com pouco mais de um ano de vida, mas muitas histórias na

bagagem.
As coisas realmente mudaram muito. Alice foi morar em Vale

do Recomeço de vez e se casou, Robin continuou tocando a matriz


da Que Seja Doce e eu, atendendo meus pacientes como sempre,

Bernardo, agora já com quase sete anos, está na escola e entrou

para o time de futebol, o que me levou a aprender a jogar ao menos


o básico para participar dos treinos. Aí está um sonho que consegui

realizar.

Vovó Rute continua a mesmíssima coisa, sua doença não

evoluiu graças a Deus e, se continuar assim, ainda teremos bons


anos com ela pela frente, porque, ao que tudo indica, a velhinha

pretende viver mais que a Rainha Elizabeth da Inglaterra.

E hoje é apenas mais um dia comum das nossas vidas, tão

especial quanto todos os outros. Fechei a clínica um pouco mais

cedo e busquei Vitória com a babá no apartamento, Bernardo já

havia chegado do colégio, mas preferiu continuar jogando no


videogame, enquanto a pequena e eu, fomos buscar Robin na

confeitaria.

Espero com a bebê no carrinho, do lado de fora, sem avisar

Robin que viemos. Quando o relógio mostra que são seis horas,
entrego à Vitória a flor que colhi no caminho, para que ela entregue
para a mãe, e aguardamos, pacientes.

Robin sai um pouco depois e tranca a porta, ainda sem nos

notar. Quando ela se vira e nos encontra, seu sorriso se abre e ela

corre na nossa direção.

— Meus amores! Vieram fazer uma surpresa?

Ela me dá um beijo rápido e depois se inclina para beijar nossa

filha, que entrega a flor nas mãos dela.

— Que linda, Vivi… A mamãe amou a flor.

— Não estava amassada quando peguei, mas a plantinha não

resistiu às mãos carinhosas dela.

— Não é fácil resistir, Dom.

Robin apoia as mãos para empurrar o carrinho, enquanto


caminho ao seu lado, circundando seus ombros com meu braço.

— E então? Animado pra hoje? — ela pergunta, me lembrando

o dia da semana.

— Muito! Qual o tema da noite da sobremesa?

— Bebês.
— Bebês? Não sei se acho uma boa, que acha, Vivi? — ele

pergunta, olhando para a filha entretida com o movimento de


pessoas passando. — Acho que vivi já é uma mocinha. Esse tema

já é coisa do passado, né filha?

— Mas o tema não é por causa dela…

Dom parece hesitar por um instante e então entende.

— Você está brincando, né?

— Não mesmo. Parece que o médico que me atendeu depois


do nascimento do Minduim não poderia estar mais errado… É mais

uma bênção.

Se ela diz, eu apenas concordo. Robin tem razão na maioria

das vezes, ela é minha luz, meu lar.

Meu desejo de Natal, todos os anos.

E nas outras datas também.


Agradeço, primeiramente ao meu Deus, que me deu forças
para lutar a cada adversidade e persistência para lidar com os

obstáculos, e principalmente, por ter me agraciado com a


capacidade para criar e contar histórias.

Dedico este conto às minhas leitoras que tornaram todas as

minhas histórias possíveis e por isso estamos aqui, agrupando os


personagens mais queridos em um único cenário.

Quero agradecer ao meu pai, por me ensinar a ter valores, me


mostrar o caminho do amor e da perseverança, mas, com esta

realização em mente, quero agradecer principalmente por ter me

ensinado o amor aos livros, por apoiar meus escritos desde sempre.

Obrigada por ler meus poemas desconexos aos seis anos e imprimir
meu primeiro livro aos sete, “Samy, a maléfica”. Queria eu que todos

tivessem pais como o senhor. Eu te amo.

Ao meu esposo, Gustavo, agradeço por todo incentivo, por se


orgulhar de mim e contar minhas realizações para o mundo, por me
amar sempre, descabelada ou de pijama e por ser sempre meu

referencial de amor.

Aos meus filhos, Enzo e Théo, por serem a luz que ilumina
meus momentos sombrios e por completarem minha felicidade, amo

vocês.

Agradeço aos meus familiares, por me ajudarem nos

momentos em que necessitei, sou muito grata por todo apoio e por

acreditarem em mim. Obrigada minha mãe, Rosimar, minhas irmãs,


Esther e Damares, minha tia Rosângela, que é uma segunda mãe e

faz mais por mim que eu poderia sonhar em pedir, meu tio Pedro e

Samara, minha prima e melhor babá do mundo todo, amo vocês.


Agradeço a Cristina, que é mesmo uma avó maravilhosa para os

meus filhos e aos meus sogros e cunhados por todas as orações e

ajuda.

Agradeço a cada um de vocês, leitores, porque isso não faria

nenhum sentido se não estivessem ao meu lado, são como uma

segunda família, aquela que me entende e acolhe. Obrigada por

cada comentário de incentivo, foram vocês o meu combustível para

chegar até o final. Aqui não vou citar nomes, mas vocês sabem

quem são. Todas as meninas do meu grupo de ladies e todos os


outros, que em silêncio estão sempre ali. Não quero me arriscar a
esquecer alguém, mas espero que saibam o quão especiais são

para mim.

A minha agência, Increasy, por aceitar meu ritmo doido de

trabalho e embarcar nele, especialmente a Grazi, pelas madrugadas

e fins de semana em que se dedicou tanto. E a Maria Vitória, minha


assessora, pelo material incrível de divulgação e pelo esforço para

fazer tudo correr bem. Ao Washington, pela capa linda e que

transmite exatamente o que eu queria! Muito obrigada.

Aos amigos que de alguma forma fizeram parte desse


processo, deixo aqui o meu muito obrigada também, vocês são

muitos e o apoio, a divulgação, o ânimo de cada um fez toda a

diferença, mas nesse caso quero citar alguns nomes em especial;

desde já peço que me perdoem se esqueci alguém.

Letti Oliver. Meu Deus, não sei nem mesmo o que dizer de

você, um presente que a vida me deu. Obrigada por ter me ajudado

desde o início, por todas as dicas, por todo o trabalho gratuito, por

usar seu tempo livre, mesmo quando este é apenas nas

madrugadas, para fazer o seu melhor por mim. Obrigada por todo

seu empenho para que hoje eu estivesse aqui.


Ju Barbosa, obrigada por sempre dizer as palavras certas

quando preciso ouvir e pelos nossos papos madrugada adentro.


Obrigada pela amizade e por torcer tanto por mim, quanto eu torço

pelo seu sucesso.

Fernanda Santana, agradeço por todas as palavras nos

momentos difíceis que passei e por me ajudar a manter os pés no


chão mesmo sem deixar de sonhar. Por ser uma amiga que vibra

comigo.

Minhas amigas autoras e amigos. Nossa, são tantas que não

vou dizer todos os nomes, mas vocês sabem quem são. Meu muito
obrigada a cada uma de vocês, prometo um post de agradecimento

onde vou marcar a cada uma.

As parceiras, que me apoiam tanto, um muito obrigada a todas

vocês: Ana Cristina, Anathielle, Anna Bia, Anny, Ariadny, Carla,


Cláudia, Hayane, Ingrid, Isabelle, Jaque, Jessica, Joseany, Julia,

Lare, Lih, Lola, Luh, Maria José, Nicolle, Rachel, Ray, Rose, Vivi.

Bom, é isso. Se você chegou até aqui, meu muito obrigada em


particular a você, espero que tenha sido uma excelente leitura e que
eu te encontre aqui também nos próximos.

Obrigada.
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OBRAS DA AUTORA
O dia amanheceu uma hora atrás, e posso ver os raios de sol

incidirem sobre as mesas de madeira, o chão e os balcões,


deixando tudo em um tom de dourado que sempre me faz suspirar.

O pão está assando no forno, e o chiado da panela de pressão

indica que logo o feijão vai estar pronto. Dificilmente tenho muitos
clientes para o almoço, é no jantar que o pequeno restaurante, que

está na minha família a mais de dez anos, fica lotado. Ou ficava,

ultimamente o movimento não é mais o mesmo.


Coloco a placa escrito open para fora, para que vejam que já

estamos atendendo, e volto para trás do balcão, amarrando


novamente meu avental na cintura, mais firme, alisando o tecido em

seguida.

O frio já chegou no Sul e, apesar de ainda não estarmos nem

perto das baixas temperaturas que nos atingem no mês de julho,


prefiro trabalhar com as portas fechadas.

A cidade é muito pequena, então trabalho com café e pão pela


manhã, sirvo almoço ao meio dia e jantar à noite. O Cantina é o

único restaurante da cidade, o que ajuda, ainda que não seja o

bastante para me enriquecer.

Ouço o sinete da porta e ergo os olhos a tempo de ver Marisa

passar por ela, sorrindo enquanto esfrega as mãos, envoltas por

grossas luvas de lã.

— Bom dia, Cíntia! Está gelado aí fora. — Ela arruma os

cabelos grisalhos que se bagunçaram um pouco com o vento. —

Quero um copo do seu café pra me aquecer e um cacetinho, com

bastante manteiga, por favor.

— Bom dia, prefeita — respondo de volta. — Agora mesmo.


Enquanto preparo o prato, Marisa escolhe uma mesa e se
senta em uma das cadeiras, retirando as luvas.

— E então, Cíntia? Animada com a festa junina?

O assunto sempre eleva meu ânimo, já que é uma época bem


agitada para nós, o comércio recebe muitos turistas e com isso

conseguimos suportar os meses mais parados.

— Muito animada, a previsão é de que muita gente acabe

vindo aqui, mesmo com o hotel fechado. Como vão os preparativos?

Levo o prato e a xícara em uma bandeja e os coloco sobre a

mesa. Marisa arranca uma ponta do pão antes de me fitar com o

olhar entristecido.

— Estão me enlouquecendo, mas vai ficar tudo muito lindo.

Comprei aquelas luzes que você adora para enfeitarmos seu jardim,

acho que as pessoas vão amar.

O terreno em que fica o restaurante não é realmente meu, mas


minha mãe, e agora eu, o alugamos tem muitos anos e o dono, um

velho milionário que mora na cidade de Araucária parece até

mesmo ter se esquecido de nós.


Durante esse tempo em que o restaurante funciona aqui, já

atrasamos o aluguel algumas vezes e ele nunca nos cobrou, acho


que mal se lembra desse cantinho perdido, então é quase como se

fosse meu, e toda a cidade parece considerar o mesmo.

Marisa ergue os olhos de sua xícara de café, está tão

empolgada que nem nota a migalha de pão no canto de sua boca.

— Vai ficar maravilhoso, Marisa.

— Vou pedir que venham dar um jeito no quintal pra você,

capinar aquela grama que está alta e deixar tudo bem bonito.

Assinto, satisfeita, afinal desde que perdi mamãe cerca de um


ano atrás, não tenho tido muitas alegrias e praticamente tenho
vivido os últimos meses na expectativa por essa época e pelo

trabalho mais pesado, que sempre me ajuda a não pensar na


solidão que venho sentindo.

Era a festa preferida da minha mãe, e todos os anos ela


adorava preparar a decoração e receber os turistas para jantares,

cafés e, principalmente, para nossa tradicional festa junina.

O terreno é imenso, cheio de árvores altas, e termina na beira


de um lago, o que confere um charme ainda mais especial ao
ambiente.
— Já estou ansiosa.

— Ah, vai ser perfeito. Já comprei os festões, as luzes já foram

testadas para decorar, e boa parte dos ingredientes para a comida


já chegou. Ainda temos que arrumar tudo, claro, mas vai ser tão
lindo como todos os anos.

— O que vai ser lindo? — Olho para trás e encontro George, o

nosso carteiro. — Bom dia, Cíntia, bom dia, prefeita.

— Correspondência pra mim? — pergunto, ansiosa para que

cheguem os lampiões elétricos que comprei para colocar sobre as


mesas.

— Não, minha filha. Vim mesmo atrás de um copo de café com


leite. Pode fazer pra mim?

— Claro…

Volto para trás do balcão e coloco o leite para ferver. Despejo o


café na caneca grande enquanto espero.

— Ficaram sabendo da última festa do vinho dos Broussard?

— ele pergunta, se referindo ao dono do imóvel que alugo.

— O que houve? — Marisa pergunta, curiosa, e também me

atento para escutar a fofoca.


— Nada de ruim, foi um sucesso estrondoso. Os repórteres do
país todo estavam lá e estão dizendo que logo o velho vai passar de
vez a diretoria pro neto.

Essa é novidade. Os Broussard são praticamente os donos de

Araucária, uma cidadezinha que fica a cerca de uma hora daqui,


mas a verdade é que o patrimônio deles vai muito além, já que o
vinho produzido pela família é consumido no país todo e exportado

também. Mas se tem algo que é de conhecimento geral é que John


Broussard governa tudo pessoalmente, delegando poucas funções

aos filhos e aos netos. Ele dirigiu a empresa com punho de ferro
desde que começou, quando veio de fora do país e fixou moradia no
Brasil.

— Isso é sério? — Marisa também se espanta. — Qual deles?

O mais velho, o gênio ou o arruaceiro?

— O mais velho, claro. Acha que o velho confiaria alguma

coisa ao marginal?

Ela dá de ombros.

— Imaginei que não, mas o tal Michel se formou fora do país, é

muito inteligente pelo que dizem, mas pra mim é tudo boato, não
imagino o velho abrindo mão do seu império de uvas.
As paredes são brancas e impessoais, mas os móveis têm
aquele aspecto de requinte, quando na verdade, para olhos mais
atentos, fica muito claro que é só aparência. Juntos, não devem

valer mais que minha moto.

Meia hora na sala de espera do banco, sentado em uma


poltrona preta, bem desconfortável, esperando para tratar com o
gerente sobre um assunto que não me informaram. Como se eu não

tivesse mais o que fazer e fosse um qualquer.

Como sempre, meu avô inventando uma das suas para me


punir. Não que eu não me exceda em alguns casos, mas porra!

Dessa vez eu não tive culpa.

Levanto para tomar um copo de água pela terceira vez,

impaciente, quando a porta da sala ao lado se abre e o homenzinho


atarracado aparece.

— Noah Broussard? — Ele ajeita os óculos sobre o nariz

enrugado.
Não deixo de notar o modo como abaixa os olhos, sem ousar

me encarar. É como se minha presença o deixasse nervoso, o que


já me faz pensar que se trata de algo desagradável. Ou talvez ele

apenas não goste de tatuagens.

— O próprio.

— Pode entrar, por aqui, por favor — pede, voltando para sua

cadeira atrás da mesa de madeira.

Entro em sua sala e me sento na poltrona em frente a ele, uma

bem mais macia que a do lado de fora.

— Pode me dizer do que se trata? Como deve saber, não sou


muito paciente com burocracias.

— Claro. Então, o senhor é o neto do senhor Broussard... — O

homenzinho se recosta na cadeira, me fitando com interesse.

— Acho que já sabe a resposta.

— Sim, sim, eu sei. — Ele ergue as mãos em sua defesa. —

Infelizmente, não tenho notícias muito boas — fala, abrindo uma

pasta preta sobre a mesa.

— Então pode ir direto ao ponto.


— Bom, acredito que deve ter notado o problema com seus
cartões de crédito.

Assinto sem dizer nada, já estou irritado desde que passei a

merda de um vexame ontem à noite, sem conseguir pagar a conta

do bar.

— Pois bem — continua —, sua conta foi aberta por seu avô,

quando o senhor ainda era menor de idade e foi ele também que

concedeu o crédito para os seus cartões.

— Eu sei dessa merda toda — concordo sem grande

interesse. — Mas e daí? Meu avô não ficou pobre da noite para o

dia. O que houve com meu cartão?

— Não, ele não ficou pobre. — O homem sorri, sem graça. —

Mas ao que parece, o senhor sim.

— Eu? Como assim?

— O senhor Broussard bloqueou seus cartões e congelou sua


conta.

— Que porra é essa? Por que ele fez isso?

— Nesse caso, vai precisar falar com ele, Noah. Como foi seu
avô quem abriu a conta, no nome dele, não há nada que possamos
fazer sem autorização.

— E o que eu vou fazer agora?

A expressão dele grita a palavra “trabalhar”, e isso não seria


um problema, não fossem as dívidas altas que fiz. Nenhum emprego

que eu possa arrumar por conta própria vai arcar com as minhas
despesas.

— Não posso ajudar, Noah. Mas tenho certeza de que existe


algum motivo por trás disso, seu avô deve ter tido suas razões.

Franzo o cenho ao ouvir o que ele diz.

— Merda… Vou falar com ele.

O gerente aquiesce.

Levanto-me e aperto a mão do homem, que parece um pouco

constrangido com meu vocabulário.

Saio do escritório, totalmente aéreo.

Meu avô e eu nunca fomos exatamente melhores amigos, não

como ele e Anthony, mas ele sempre me deu tudo que o dinheiro
podia comprar. Nunca fomos muito família, mas também não fui

privado de nada, até agora.


Alcanço o celular no bolso da calça e disco o número de

Anthony, meu primo, e ele atende no segundo toque.

— E aí, Noah? Não foi preso de novo, né?

Por aí se nota a imagem que minha família tem de mim.

— Não fui, mas devo ter feito uma merda das grandes. Vou ter

que fazer uma viagem não planejada, acredita?

— Viagem, é? O que aconteceu? — ele pergunta, parece

interessado, mas posso ouvir o som do teclado do computador.

Anthony trabalha dia e noite e, se continuar assim, será a


cópia do nosso avô em breve.

— O velho bloqueou minha conta e meus cartões. Que porra


eu fiz dessa vez?

— Não pergunta pra mim, ele não me disse nada. Tem certeza
de que não foi preso?

— Tenho, merda. Por que fica falando como se isso sempre

acontecesse? Foi só uma vez e nem foi culpa minha.

A garota era um pecado, gostosa pra caralho e ficou dando

mole. A safada só esqueceu de avisar que o namorado tinha dois


metros de altura e também estava na festa.
Aí, claro, a culpa foi minha por pegar as garrafas do bar e
quebrar na cabeça dele, mas que porra eu ia fazer? O cara tinha o
dobro do meu tamanho, no soco eu ia me ferrar.

— Claro que não. Te fotografaram cheirando pó? Não seria a

primeira vez.

Hesito por um instante. Fazia tempo que eu não ia pra uma

festa assim e não sou um viciado, só uso as vezes pra curtir com os
caras.

— Acho que não foi isso…

— Então não sei. Vai pra Araucária?

Bufo, com raiva.

— Tenho outra opção?

— Deixa de ser turrão, Noah. Conversa com o velho, escuta o


sermão e pede desculpas pelo que for.

— Eu vou tentar, mas primeiro preciso descobrir o que deixou

ele tão puto.

A verdade é que nem mesmo sei o motivo e como não sou

bom em pedir desculpas, fica pior ainda.


Meu avô veio dos Estados Unidos para o Brasil ainda muito
jovem, conheceu minha avó, se apaixonaram e se casaram, e ele
decidiu ficar. Naquela época ninguém imaginava que as plantações

de uva virariam aquela vinícola e que o vinho Del Broussard seria


conhecido em todo canto.

Mas o cara era focado, não desistiu até enriquecer com isso.
Não desistiu quando minha avó morreu, mas perdeu um pouco o
ânimo, deixou a grande São Paulo para trás, delegou algumas

funções para Anthony e se enfurnou em Araucária, no interior do Rio

Grande do Sul, onde fica a fazenda Santa Inês e a vinícola Del

Broussard.

Ele não me deserdou quando roubei o jatinho do amigo dele e

fui pro Rio com dois amigos, nem quando dei um perdido nas

roupas da minha prima Linda, enquanto a boneca nadava pelada.

Aguentou firme as matérias nos jornais, falando da prisão e


das drogas e me perdoou por embebedar e depois filmar o padre,

que foi benzer nossas uvas. Não sei nem se Deus me perdoou, mas

meu avô acabou esquecendo. Depois de tanta merda que fiz, não

consigo imaginar o que posso ter feito dessa vez pra que ele
tomasse essa atitude.
Dirijo para a casa rapidamente, costurando no trânsito e me

esforçando para chegar o quanto antes. Não quero perder muito


tempo, então junto algumas roupas na mochila e coloco nas costas,

antes de pegar o capacete outra vez e sair para a garagem.

Coloco a chave na minha BMW e só então me dou conta da

dura realidade.

Não tenho como abastecer.

Ligo outra vez pro Anthony, torcendo para que meu avô não

tenha chegado antes e proibido ele de me ajudar.

— Que foi agora, Noah? — ele atende, amistoso.

— Como vou abastecer sem o cartão? Me empresta algum

dinheiro.

— E vou mandar pra que conta, se a sua foi bloqueada?

Merda.

— Não tem um amigo aí perto pra quem eu possa transferir?

Então uma luz se acende na minha cabeça sem um único

miolo intacto.

— Vou no posto de gasolina e peço o pix deles... Sabe que foi


a melhor coisa que inventaram? Aí você manda direto pro posto.
— Tá bom, mas vê se resolve sua vida porque ter que ficar

entre você e o vovô é um saco.

Encerro a ligação e subo na moto, determinado a chegar em

Araucária ainda hoje, mesmo que eu acorde meu avô às três da


manhã.

A ideia de o arrancar da cama me faz sorrir. Ele vai ficar

furioso e isso é bom, porque eu estou irado.

Apesar do constrangimento com o pix, no fim tudo dá certo e

pego a estrada para Araucária pouco depois das oito da noite.

A jaqueta de couro é forrada e me aquece um pouco, ao

menos o necessário pra não morrer congelado na estrada, mas

ainda assim sinto um frio da porra.

Andar de moto tem suas vantagens. Evita o trânsito e é bem


mais rápido, mas a desvantagem é essa, congela até os ossos

quando faz frio, e se chover… aí a merda está completa.

A estrada está bem vazia, então acelero a quase duzentos por

hora e, por mais que sinta o vento cortando a pele exposta do meu
pescoço, não demoro tanto a chegar.
A casa de John fica afastada da cidade, no topo de uma colina

e abaixo dela, suas preciosas uvas.

Subo o morro com o farol iluminando o caminho. As luzes da

casa grande estão apagadas, o que indica que com certeza ele já foi

dormir.

Abro o portão lateral, que é fechado apenas com uma corrente

segurando-o e entro com a moto para o quintal, nos fundos da


mansão.

O barulho alto do motor, na paz e calmaria que cercam a casa,

é demais para que alguém se mantenha dormindo e, em poucos

instantes, vejo a luz da sala do caseiro se acender e ele e a esposa,


Mila saírem para o quintal, o homem trazendo uma espingarda na

mão.

— Quem está aí?

— Sou só eu, o Noah.

— Noah? — dona Mila também deixa a casa e me olha de


frente. — Menino, por que não avisou que vinha?

Abro um sorriso ao ouvir o tratamento. Tenho vinte e seis anos,

mas pra ela sempre vou ser um menino.


— Quis fazer uma surpresa. O vovô está dormindo?

— Claro. Vou pegar a chave da cozinha pra você entrar, mas

deixa pra conversar com ele de manhã… Sabe como ele fica

quando o acordam.

— Báh, se sei. Claro que eu sei.


Dezenas de papéis estão espalhados sobre a mesa, listas e

mais listas de coisas a fazer para a decoração do restaurante.

Todos os anos nessa época acendemos a lareira mais cedo,


colocamos marshmallows no cardápio e aumentamos os pedidos de

vinho. Mas o que realmente traz tanta gente a Rio Dourado, para o
inverno, é nossa famosa festa junina. E, para que tudo saia

conforme o planejado, os enfeites são essenciais.

Pode ser, que com o fechamento do hotel que havia na cidade,

as pessoas acabem não vindo como o esperado, mas tenho tentado


manter o pensamento positivo.

— Salém! Vem aqui com a mamãe… — Procuro meu gato sob

a mesa da cozinha e o encontro deitado confortavelmente em cima


das minhas pantufas.

Deixo as listas para depois e o pego no colo, colocando-o

sobre minha cama, no apartamento que fica sobre o Cantina e que

tem um quarto — que faz as vezes de sala de televisão também —

e uma pequena cozinha, além do banheiro. Depois alcanço a caixa


que está em cima do armário, me apoiando nas pontas dos pés. É o

único local que tenho para guardar as decorações dos anos

anteriores, já que não tenho muito espaço.

Retiro de dentro da caixa algumas luzes e bandeirolas

desbotadas, que não vão servir mais, e tomo o cuidado de

desembaraçar tudo, antes de descartar ou guardar de volta na


caixa.

Salém ronrona, subindo nas minhas pernas em busca de

atenção, e faço um carinho em sua cabecinha peluda. O ano não foi

nada fácil para nós, mas acabamos por encontrar um jeito de seguir
juntos depois que minha mãe faleceu.

— Vamos descer? A Jeniffer precisa ir pra casa.


Outra vez pego meu gatinho nos braços, mas agora o coloco
dentro da caixa, em cima das decorações.

Desço as escadas cantarolando enquanto ele me encara com

aquele ar de julgamento. Ao entrar no restaurante no andar de

baixo, coloco Salém sobre sua almofada no chão e assumo meu

posto, atrás do balcão.

— Obrigada por ficar aqui, Jeni. Pode ir agora, se quiser.

Jeniffer sorri e me olha, meio de lado.

— Graças a Deus a festa está chegando, a animação vai ser

boa pra todos nós e você vai precisar de mim aqui o dia todo.

Concordo com um gesto de cabeça.

— Período integral, um pagamento mais gordinho... Posso

entender porque está tão empolgada — brinco.

— Pagamento mais gordinho significa um novo par de botas,

Cíntia. Quero uma daquelas que vai até o meio da coxa, amanhã já

fico aqui desde cedo até a noite.

— Eu adoro essa época, você sabe. Sou quase um esquimó,

por mim seria inverno o ano todo. As roupas, as botas, as


comidas…
Jeni ri, mas não discorda, afinal eu sou mesmo a doida do

inverno nessa cidade. Biscoitos, chocolate quente, chás, caldos,


meias tricotadas à mão, cachecóis e tudo que envolve a época, tem

minha assinatura.

Ouço o ronco estridente de uma moto e um estalo alto. Levo a

mão ao peito, assustada. Será um acidente?

Mas, antes que possa sair correndo para verificar, a moto


estaciona em frente ao restaurante e um homem que não consigo
ver bem através da porta fechada, desce.

Jeni e eu ficamos em silêncio, aguardando o recém-chegado.

O homem entra no restaurante e caminha confiante até o


balcão, óculos escuros, uma jaqueta de couro justa nos ombros

largos e um perfume que se espalha pelo local.

Nunca o vi por aqui e, com certeza, ele não é do tipo que se


esquece com facilidade.

— Um expresso — diz apenas, com a voz autoritária,


parecendo irritado.

Não diz boa tarde e não me oferece um sorriso sequer.


— Me desculpe, não tenho expresso — respondo e, como ele

não diz nada, ofereço: — Uma xícara de café coado?

— Não. Pode ser um latte gelado, então.

Jeni desvia os olhos para o chão. Não era para ser algo

constrangedor, mas o modo arrogante com que ele fala, deixa tudo
mais esquisito e quase me sinto mal por não ter as bebidas que ele

quer.

— Também não temos. Não trabalho com máquina de café,

apenas café coado, mas posso colocar leite no seu, caso prefira.

— Café preto, puro.

Ele me dá as costas, e ergo as sobrancelhas para não dizer

nada. Que homem mal-educado!

Encho a xícara de café e fito Jeni, que me encara com os


olhos arregalados.

— Era para viagem, mas tudo bem, agora que já colocou na


xícara — ele resmunga.

Minha expressão se fecha, afinal até minha paciência tem


limites.

— O senhor não disse que era pra viagem.


Ele estende a mão para pegar a xícara e posso ver as
tatuagens que a cobrem até o pulso; a jaqueta esconde o resto, mas
chego a imaginar que continuem até bem mais em cima.

— E você, como atendente, não perguntou.

Abro a boca, completamente surpresa com tamanha falta de


educação.

— Sinto muito — respondo, cruzando os braços para

demonstrar que não sinto é nada.

— Então aqui é o restaurante da Címber? — pergunta, dando

alguns passos para trás, como se analisasse o lugar.

Estreito os olhos, tentando entender porque ele sabe meu

nome — ou quase isso — e o motivo do interesse.

— Quem quer saber?

O mal-educado abre um sorriso cínico, meio de lado. Isso o

deixa ainda mais bonito e muito mais arrogante, se é que é possível.

— Imagino que você seja a Címber — repete o nome


inusitado. — Sabe que pensei que fosse um restaurante de
verdade? — comenta, dando uma volta pelo lugar e observando os

detalhes, as mesas e até os enfeites sobre elas. — Mas está mais


pra uma vendinha daquelas de esquina. Você serve café, almoço e
jantar. Vende cachaça e balinhas também?

Babaca. Não respondo, porque se eu disser a verdade, vou ter


de admitir que sim, tenho uma cachaça bastante procurada e balas

macias que as crianças sempre compram aqui.

— Moço, o senhor não pagou o café. — Crispo os dentes ao

falar, demonstrando que já é hora de ir.

— Ah! — Ele se vira, retirando a carteira do bolso. — Achei

que fosse por conta da casa.

Quê? Sorrio tentando parecer uma estátua, mas nem

questiono o absurdo que ele diz.

— E quanto é? — O indecente arranca uma nota de cem reais

e me estende.

Esse ridículo.

— Quer saber? É por conta da casa mesmo. Pode ir, passe

muito bem.

O babaca retira os óculos escuros e vejo seus olhos escuros e

o piercing na ponta do nariz, que, por sinal, combina muito com seu
estilo “rebelde sem causa”.
— Então, obrigado. Depois eu volto — completa. — Vou

arrumar um lugar para dormir e venho mais tarde pra conversarmos.

Vejo-o sair pela porta e subir na moto, saindo em seguida na

mesma velocidade absurda que chegou.

— O que foi isso? — Jeni pergunta, tão chocada quanto eu.

— Um imbecil?

— Um imbecil muito gato, você quer dizer. E o que foi aquele

olhar no final? Estou sentindo calor só de ver a interação entre


vocês. Quanta química!

— Ficou doida? Nunca vi um homem tão grosseiro na minha

vida. Mal-educado! Viu como falou do restaurante? E me chamando

de Címber.

— Ver eu vi, mas você viu os braços dele?

Dou de ombros.

— Embaixo da jaqueta? Não vi nada demais.

— Ah, é? E onde é que você vê isso por aqui? Um gato

daqueles, todo tatuado e com aquele sorriso diabólico — comenta,


gargalhando.

— Assisto muito nos filmes. — Acabo rindo junto.


— E eles sempre começam assim… — Jeni suspira, toda

boba. — Um bad-boy amargurado e a moça boazinha. Você é a

boazinha, caso não esteja acompanhando o raciocínio.

— Tá bom. E aí o homem passa de moto para comprar um


café, ofende ela e seu negócio e depois se apaixona e decide mudar

por amor? Meio controverso.

— Ah, me deixa sonhar. Coisa chata! Ele disse que ia voltar

pra conversar, não disse? Aí que vai rolar aquela faísca.

— Verdade — respondo, aturdida. Só então me dando conta


do que ele falou. — O que esse esquisito quer falar comigo?

— É o amor, amiga. Eu disse…

Meneio a cabeça, achando graça de seus comentários

românticos, e volto para a cozinha, tentando tirar o incidente


estranho da cabeça.

— Vai ficar um tempo aí? Se for, vou assar uma cuca enquanto

você vigia aí na frente — pergunto já caminhando para dentro —,

sempre pode aparecer um doido.


UM POUCO ANTES…

Entro no casarão do meu avô tomando o cuidado de fazer


bastante barulho. Quanto antes ele acordar, melhor.

Subo as escadas batendo os pés em cada degrau e


assobiando uma música o mais alto que posso; antes mesmo de

chegar ao topo da escadaria, John Broussard em pessoa surge


diante de mim, sem disfarçar a irritação.

— Não podia ter vindo mais cedo? Ou amanhã, Noah?

Abro um sorrisão e corro para abraçá-lo, porque isso só o

deixa ainda mais nervoso.

— Claro que não. O senhor chama, e eu venho na mesma

hora.

— Não te chamei aqui — retruco, me afastando com um


safanão.
— Bloqueou minha conta e meus cartões, o que é a mesma

coisa.

Dessa vez ele sorri minimamente, mas é o suficiente para que


eu saiba o quanto está se divertindo às minhas custas.

— Então já soube. E como foi que descobriu? Fez compras e o

cartão foi rejeitado? Chamou umas garotas de luxo e não teve como

pagar? — o velho provoca.

Suspiro, relembrando a situação constrangedora.

— Não foi nada tão dramático. Estava em um bar, bebendo

com meus amigos e não pude pagar a conta.

— Podia ser pior — concorda, quase desapontado, enquanto


amarra o robe de seda na cintura, sobre o pijama.

Ele segue para o quarto, arrastando as calças de flanela atrás

de si, e isso me parece engraçado.

Antes de se enfurnar em Araucária, vovô estava sempre de

terno e engravatado, mas aqui faz frio pra cacete e ele precisou

ceder e passar a usar roupas mais apropriadas.

— E o que foi que fiz? Ainda não entendi porque o senhor tirou

meu dinheiro.
John para no umbral da porta e se vira, me encarando com um
olhar meio triste.

— Já tentei todas as opções com você, Noah, mas nada deu

certo até agora. Então precisei ser mais determinado.

— De que por… Porcaria! — corrijo ao ver o olhar gélido dele.

— De que porcaria o senhor está falando?

— Vou mostrar. — Ele entra no quarto e caminha até a gaveta

da mesa de cabeceira, ao lado da cama enorme em que John


dorme sozinho.

Abrindo, pega um envelope pardo de dentro dela e retorna

com ele para perto de mim. Sinto um arrepio de premonição.

Sempre que John atira um desses envelopes na minha cara, a caixa

de pandora é aberta e encontro minhas piores vergonhas.

— Essa foi possivelmente a pior coisa que você podia ter feito,

Noah.

Pego o envelope das mãos do velho e retiro as fotos de dentro

dele.

Encontro uma sequência de nudes. Fotos minhas em vários

ângulos, deitado na areia da praia, levemente alcoolizado e


completamente despido.

— Vô, eu embebedei o padre que veio benzer a vinícola, com

certeza isso foi pior.

— Dá uma olhadinha na última foto.

Passo as imagens, procurando pelo que ele mencionou, mas

apenas encontro mais uma foto minha. Nessa estou abraçado com
um cachorro de rua.

— Dormi de conchinha com um cão sarnento. Tudo bem que é


constrangedor, mas provavelmente estava frio.

— Provavelmente? — ele bufa, irado. — Você nem se lembra.

Suspiro, também começando a me irritar.

Eu estava muito doido naquele dia. Fui a pra praia com outras

seis pessoas, mas nenhuma delas aparece nas fotos, então com
certeza é esperar demais que, se não me recordo de terem ido

embora, eu vá me lembrar do clima.

— Do jeito que o senhor está falando e agindo, pensei que


estivesse pelado com a mulher de alguém importante, ou sei lá, algo
pior.
— Mas foi pior, seu irresponsável! Fui ameaçado por um

jornalista e a matéria que ele vai publicar, diz que você é adepto de
zoofilia.

Abro os olhos, finalmente entendendo a sugestão.

— Que porra é essa? Ele está achando que eu… Fiz


sacanagem com o cachorrinho?

— Ele sabe que não foi isso, Noah. Mas quantas vezes preciso
dizer que sempre tem gente querendo derrubar nossa família? E

você só piora tudo! Não importa o que o homem acha, mas o que
ele vai dizer.

— Mas que merda! Isso é calúnia. Contra mim e o cachorro,


que não fez nada de errado. Quanto o senhor teve que dar pra ele

ficar quieto? Vou dar uma surra nesse desgraçado.

— Não tive que dar nada, Noah. A matéria vai ao ar pela


manhã.

— O quê?! Como o senhor pôde fazer isso comigo? Por que


não pagou?

A revolta que sinto agora é inexplicável. Meu próprio avô me


obrigando a passar por uma humilhação como essa.
— Você foi quem fez isso e agora vai arcar com as
consequências.

Encaro as fotos outra vez, furioso e as atiro no chão.

— E ainda tirou meu dinheiro! Como vou viajar e me esconder

agora? Preciso sumir até a fofoca desaparecer.

Ele caminha até a cama e se senta nela, retirando os sapatos


como se planejasse voltar a dormir.

— Você vai se esconder na cidade aqui ao lado, em Rio


Dourado. Vou dizer exatamente o que vai fazer, Noah, e, se quiser

ter seu dinheiro e sua vida de volta, vai ter que me surpreender com
seu potencial, meu filho. Ou então não precisa nem aparecer na

minha frente mais.

— Vô… Por favor! — suplico. Só não me ajoelho porque sei

que ele odeia quem implora. — O senhor ainda pode ligar pro cara,
pedir que não publique a matéria, e eu faço o que quiser.

— Não. — John se deita e ajeita o travesseiro sob a cabeça,


calmamente. — Eu tenho um imóvel em Rio Dourado, onde funciona

um restaurante. Era de uma senhora, mas a filha assumiu depois


que a mulher faleceu. Essa vai ser a única coisa que vai ter de mim

por enquanto, até me provar do que é capaz.


— Um restaurante?

— Não, Noah. O restaurante é da moça, que se chama

Címber, ou algo assim, o que você está recebendo de mim é o


imóvel e te dou autonomia para fazer o que quiser dele.

— Mas se é um restaurante, o que eu vou fazer?

— Ou você despeja a moça — ele fecha os olhos —, tira o


restaurante de lá e faz outra coisa, ou sobrevive com o valor do

aluguel do cômodo. Claro que não é o suficiente para as suas

extravagâncias, mas vai dar pra comer.

— E eu vou fazer o que, se despejar a moça? Vou vender meu

corpo no imóvel vazio? Porque se não tenho dinheiro, nem móveis,

nem nada… Mas é bem capaz…

— O que vai fazer lá é por sua conta — responde, indiferente.


— Negocie, compre, venda, não sei! Faça o que qualquer outro

Broussard faria, qualquer um com um pouco de tino para os

negócios e bom senso! Sempre pode vender sua moto — sugere,

demoníaco.

Merda.
É no espírito de fúria cega que pego a estrada na manhã

seguinte, no domingo bem cedo. Não consegui nem mesmo pensar

em uma alternativa para a minha situação ou no que poderia fazer

com o tal cômodo.

Não aceitei o café que me foi oferecido na fazenda — um

arrependimento que começo a ter logo depois de sair —, e o único

dinheiro de que disponho é uma nota de cem reais que meu avô me

deu, alertando que deve durar até que eu consiga me virar sozinho,
ou vou passar fome. É mole?

Avisto a placa do tal restaurante pouco depois de entrar na

cidadezinha, piso no freio ao ver o estabelecimento e os pneus

cantam, enquanto estaciono diante dele.

Uma moça extremamente educada e desarrumada na mesma

proporção me atende. Ela está usando um suéter de lã e meias

roxas também de lã, com chinelos.

Vai adorar as pessoas em Rio Dourado, guri — meu avô disse,


antes que eu deixasse a fazenda.
O caralho que vou. Não tem a porra de um café expresso na

cidade e a atendente não pergunta nada direito. Além disso, não

tenho a menor ideia de como vou dizer a ela que o dono do lugar
agora sou eu e me virar com oitocentos reais por mês.

Volto para a moto cuspindo marimbondos. Não é culpa dela na

verdade, meu avô, a cidade e a propriedade já surtiram o efeito

esperado: me deixaram puto. E ser obrigado a ficar em um lugar

que não tem uma boate, um bar decente ou mesmo café expresso,
é o cúmulo.

Subo a colina íngreme que leva à única pousada da cidade,

disposto a deixar minhas coisas e só depois voltar e ter uma

conversa séria com a dona do restaurante.

Uma mulher de meia idade, usando bobs nos cabelos e um

vestido muito florido atende a porta, me dirigindo um olhar de

cautela.

— Pois não?

— Aqui é uma pousada? — pergunto, dando uma olhada na


fachada do lugar.

Não vejo um balcão ou uma placa, então posso ter me

enganado.
— Sim, senhor. Precisa de um quarto?

— Preciso. Tem uma suíte disponível?

A mulher aumenta o sorriso.

— Tenho! Meu melhor quarto.

Isso também deve significar que é o mais caro.

— E quanto é? — faço a pergunta que nunca pensei em fazer

na vida.

Nunca me importei com os valores, porque tudo estava dentro

do meu orçamento. Mas agora, para cogitar a diária em uma


espelunca como essa, preciso saber o preço.

— A suíte é cento e cinquenta reais por noite.

Afirmo com um gesto, como se não fosse muito além do que

posso pagar agora.

— E o quarto mais simples?

— Ah, esse é oitenta.

Agradeço e subo na moto outra vez. Onde já se viu? Cobrar

oitenta reais por uma cama? É meu dinheiro para o mês todo!
As coisas são muito incoerentes. Oitenta reais por uma noite

em um quarto sem banheiro e oitocentos reais por mês em um

imóvel grande como o do restaurante, com um pequeno

apartamento em cima e um quintal gigante, pelo que John


descreveu. Não faz o menor sentido. Nunca entendi de imóveis,

mas algo me diz que o restaurante foi alugado quase de graça.

Decido que o jeito vai ser voltar para me encontrar com

Címber, o que me faz pensar na primeira impressão que passei a


dona do lugar. Eu teria sido mais gentil se soubesse que precisaria

pedir um favor e não apenas mandar e assistir enquanto ela

obedecia.
“A vida é como uma caixa de chocolates, você nunca
sabe o que vai encontrar.”
Forrest Gump

A imagem que me encara no reflexo do espelho não sou eu.

Bom, não exatamente.

A maquiagem pesada, os olhos destacados com um delineado

grosso, os lábios pintados com batom vermelho sangue, nada disso


foi escolha minha.

As lâmpadas que circundam o espelho destacam ainda mais

as diferenças entre a mulher empoderada, perfeita e sexy e a Clara

de verdade, aquela que ninguém vê.


É mais um papel, vivo uma personagem criada por eles, por

todos e nunca reclamei, afinal aceitei atuar.

Olho o relógio e percebo que faltam cinco minutos para minha


entrada, vou receber um prêmio pela atuação em meu último filme e

só consigo pensar em quanta gente deve estar na plateia, em todos

aqueles olhos me encarando e em cada frase ensaiada que


precisarei dizer.

Abro a gaveta sob a penteadeira e retiro de lá uma caixinha de


analgésicos, mas dentro dela guardo o calmante forte que sempre

tomo antes de enfrentar a multidão. Há um pacotinho em um canto,

mas nunca toquei nele.

São drogas. Meu agente as conseguiu para mim e disse que

podiam ajudar, assim os enjoos cessariam, eu não vomitaria sempre

e seria mais solta, mas já vi o que isso fez com outros vários na
mesma profissão que eu. Então resisto à tentação, mesmo que a

cada dia o pacote me chame mais e mais alto.

Pego meu comprimido, torcendo para que ainda dê tempo de

fazer efeito, destampo a garrafa de água e estou prestes a tomar,


quando ouço as batidas na porta, seguidas pela voz de Leonardo.

— E então, Clara? Está pronta?


Ele entra no camarim e sorri daquele jeito forçado. Leonardo
não é um crápula, mas só pensa em negócios e no meu sucesso, o

que seria bom se eu gostasse mesmo do que faço.

— Vou só tomar o remédio... — Enfio o comprimido na boca e

jogo água em cima.

Quando me levanto, percebo a expressão dele mais séria.

— Tomou agora? Não vai adiantar nada. Por que não tomou

esse calmante antes?

— Meu pai me ligou, cinquenta minutos de instruções e

falatório. Perdi a noção do tempo. Tem muita gente lá?

— Está lotado — responde e sinto o embrulho na boca do


estômago subir. — Tem uma coisa que preciso te falar... O Túlio

está na primeira fila e programamos para que ele suba ao palco e

faça uma declaração de amor pra você, mas sei que odeia

surpresas, então achei melhor avisar.

Ele ainda está no meio da frase e eu já estou a caminho do

banheiro. Vomito o pouco que como na privada, graças a dieta

maluca que estou fazendo para o próximo papel não foi muita coisa.
Quando saio, ele coloca uma toalha na minha mão e estende o

batom para que eu o retoque.

— Precisamos ir.

Sigo-o para fora e paramos na lateral do palco, aguardando.

— Você está bem? — pergunta preocupado.

— Leo, vomitei o remédio. Tem muita gente...

— Você precisa perder esse pânico, essa vergonha. Devia


usar os outros comprimidos.

— Eu aguento. — Respiro fundo. — Vou subir, dizer o que


decorei e comer uma caixa de chocolates quando pousar em casa.

Ele sorri me incentivando, mas parece me esconder alguma


coisa.

— E agora, ela — começa a apresentadora —, que nos

emocionou, nos confundiu e nos fez repensar convicções no longa


Um Voo Singular. Recebendo o prêmio de melhor atuação, Clara

Coutinho!

Leo me dá um toque nas costas.

— Sorria.
Caminho o mais confiante que consigo, coloco um sorriso no

rosto e sigo firme até onde a apresentadora me aguarda.

Ela me oferece o troféu e eu o aceito, inclinando-me para


cumprimentá-la.

A loira se move para o lado, cedendo-me o microfone e sinto


minhas mãos suando.

Me posiciono em frente a ele e me recordo das palavras que


ensaiei.

— Boa noite! Estou feliz de uma maneira que nem posso

descrever e emocionada por ter tocado tantas pessoas ao ponto de


me acharem merecedora dessa honra. Só tenho a agradecer por
acompanharem meu trabalho...

Finalmente acabou. Foi horrível, Túlio subiu ao palco, me

entregou flores e me pediu em casamento diante de toda aquela


gente. Agora, chega! Vou precisar dar um basta nisso ou me verei

casada e com cinco filhos quando resolver me impor.

Finalmente depois de voar de São Paulo de volta para Belo

Horizonte — como faço todas as vezes que preciso estar em algum


programa ou premiação —, chego em casa e saio retirando os
sapatos pelo caminho, sentindo-me aliviada por estar longe das
câmeras.

Uma dorzinha de cabeça chata me incomoda e só consigo

pensar nos chocolates que vou comer e que vão aplacar minha
ansiedade.

Acendo a luz da cozinha e abro o armário, apenas para


encontrar um grande nada.

Quem foi que mexeu... Leonardo!

Pego o celular e disco o número da Rita, a moça que cuida da


limpeza para mim.

— Oi, dona Clara — ela atende.

— Rita, o Leonardo veio aqui?

Ela fica em silêncio e sinto a culpa no vazio que se segue.

— Desculpe, dona Clara. Foi ontem, ele disse que era para o

seu bem, que precisava emagrecer pra um filme e que podia dizer
que foi ele, se a senhora ficasse brava.

— O Leo comeu todos os meus chocolates? — pergunto,


soando mais ameaçadora do que é educado.
— Jogou fora. Mas se quiser, posso ir até aí e fazer uma
sobremesa.

Que ideia! Rita mora do outro lado da cidade, na verdade


Leonardo e meu pai insistiram para que ela morasse aqui, mas isso

seria demais. Minha casa é o único lugar em que posso ser eu


mesma e ficar sozinha, meu refúgio. Ainda que Leonardo também
more na cidade e me fiscalize o tempo todo.

— Não precisa. Mas quando ele aparecer aqui, esconda meus


doces na próxima vez.

— Pode deixar, prometo que escondo — ela concorda de

pronto.

— Então boa noite, Rita. Até amanhã.

Suspirando cansada, me rendo ao fato de que Leo consegue


me manter na dieta mesmo sem estar por perto.

O celular vibra ainda na minha mão.

— Oi, pai...

— Clara, preciso que volte para cá. Temos que conversar e

isso não pode esperar.


Talvez ele tenha bebido, não está fazendo muito sentido. Olho

para o relógio e percebo que já passa das dez da noite.

— Pai, já está tarde e vou levar umas oito horas para chegar

em São Paulo se for de carro e já dispensei o jatinho. Eu estava aí

até agora a pouco...

— Não tem problema. Se sair agora, poderemos conversar de


manhã sobre o contrato na Iluminar.

Sinto uma pontada no peito. Não, ele não pode cogitar me

impedir de assinar esse contrato.

— Eu quero assinar — falo, decidida. Talvez a conversa que

planejava ter com ele aconteça mais rápido que eu esperava. — Já


conversamos sobre isso, é uma plataforma de streaming, eles

querem todos os meus filmes no catálogo e, se isso acontecer,

porque estou intermediando as negociações na produtora, vai me


dar visibilidade e renda, além da possibilidade de parar de aceitar

papéis por um tempo. Eu preciso disso, pai. Não estou aguentando

mais... Preciso descansar, ir pra um canto que ninguém me ache,

que não fiquem divulgando minha vida.

— Essa bobagem de novo? Venha até aqui e vamos

conversar, decidir juntos.


Abro a boca para contestar, mas ele já desligou.

Droga. Vou fazer trinta e dois anos logo, sou adulta e deveria

tomar minhas próprias decisões, mas ele e Leonardo acabam

minando minhas escolhas e aceitei isso por tanto tempo, que pareço
ter perdido a capacidade de lutar pelo que quero.

Mas não dessa vez. Estou saturada e mesmo que eu o

obedeça, indo até São Paulo, vai ser do meu jeito e apenas para

dizer que não vou desistir de ter meu espaço.

Preciso enfrentá-lo de uma vez por todas, papai já tomou


decisões por mim que me trazem tristeza até hoje. Minha vida

poderia ser completamente diferente se não fosse isso.

Indo até meu quarto, troco o vestido longo por uma blusa de

tricô e uma calça escura e confortável, calço meus sapatos, coloco


em minha bolsa apenas meus pertences pessoais, já que na casa

dele tem muita coisa minha por causa de todas as vezes em que

preciso estar lá e pego as chaves do carro.

Seria bem mais fácil morar em São Paulo do que esse ir e vir.
Quando papai se mudou por causa do trabalho, insistiu muito para

que eu fosse também, mas eu havia comprado minha casa pouco

antes e isso, somado a minha insistência, acabou convencendo-o.


Além de Leonardo, que sempre reporta a ele tudo que acontece e

com isso ele consegue manter o domínio mesmo distante.

Ao menos dessa vez, sem um voo agendado, vou aproveitar a

viagem, colocar o pé na estrada e fazer o que quero, sem que

ninguém me perturbe por umas oito horas.

Sento no banco da frente do meu Audi A7, tentando chegar o

banco para frente, está longe demais para mim. Não costumo dirigir
tanto quanto gostaria, algo que também vai ter que mudar.

Ligo o som, colocando uma seleção de músicas que ouço

geralmente quando estou malhando e finalmente deixo a garagem.

Tão logo pego a estrada, saindo de Belo Horizonte, me


arrependo de não ter parado em algum lugar e comprado meus

chocolates, eles seriam uma ótima companhia nas próximas horas.

Aos poucos as casas na beira da rodovia vão diminuindo, até

que reste apenas mato nas laterais, meu carro e vários outros que,
por algum motivo, também estão indo ou vindo.

Aumento o som e começo minha cantoria particular, tiro os

sapatos e canto, animada com minha solidão, mas principalmente

com a decisão que tomei.


Vou balançando a cabeça, sorrindo de verdade pela primeira

vez em um bom tempo, mas ainda atenta ao trânsito.

Sigo assim por muito tempo, alternando para uma versão de

músicas tristes que me trazem lembranças dolorosas e voltando


para as alegres.

Já estou no interior de Minas quando me dou conta de que não

comi nada, meu estômago já reclama e minhas costas doem.

Preciso esticar as pernas.

Paro o carro ao avistar uma lojinha de conveniência. Por sorte


o lugar está vazio e depois de comprar um sanduíche, uma lata de

refrigerante — me sentindo rebelde — e uns dez bombons, apenas

para me vingar de Leonardo, volto para o carro.

Como o sanduíche ainda no estacionamento com minha


bebida carregada de açúcar e saio para a rodovia outra vez.

Volto para as músicas animadas e celebro minha liberdade,

enfiando um chocolate quase inteiro na boca.

Pouco mais de meia hora depois, me dou conta de onde estou.

Abaixo o volume do som, enquanto observo atenta, à procura da


estradinha de terra que leva a Vale do Recomeço.
Quando avisto a placa indicando a entrada, não penso duas

vezes antes de jogar o carro para o acostamento e descer dele.

Desliguei o carro. Agora está escuro, mas acendo a lanterna


do celular, atravesso a estrada de terra e desço a encosta na lateral

dela, me escorando em uma árvore para observar melhor.

O caminho que leva a Vale desce íngreme acima de onde

estou, meio pendurada para ver a pequena cidade em que passei os


melhores dias da minha vida.

As luzes das ruelas estão acesas e mesmo ao longe consigo

sentir aquela paz que a cidadezinha tem. Em algum lugar lá

embaixo tem uma saída, que conduz a um sítio e lá está ele.

Nós tínhamos dezessete anos na época e mesmo quase

quinze anos depois, nunca consegui deixar de pensar em como

minha vida teria sido se eu tivesse feito outra escolha, se tivesse

dito a ele meus motivos e procurado uma forma de lutar.

Com certeza seria mais feliz que sou hoje. A vontade de


descer a encosta esmaga meu peito, queria poder vê-lo uma vez

mais, saber como as coisas ficaram, se meu sacrifício valeu a pena.

Mas sei que jamais terei coragem para isso.


Estou tão distraída que não percebo o outro carro se
aproximando, nem mesmo os passos, não até ouvir a voz do

homem, atrás de mim, no escuro.

— Precisa de ajuda com o carro, moça?

Me viro assustada e dou um pulo no lugar, a terra e o cascalho


embaixo dos meus pés se deslocam enquanto caio, rolando

barranco abaixo.
"Carpe diem. Aproveitem o dia, garotos. Façam suas vidas
serem extraordinárias."
Sociedade dos Poetas Mortos

03 DE NOVEMBRO, DE 2005
15 ANOS ANTES

Os solavancos são pura responsabilidade da estrada. Não


importa muito o fato de que a nova caminhonete S-10 do meu pai

seja macia, confortável e maravilhosa. De nada isso adianta, porque

a estrada é completamente esburacada e cheia de cascalho.

As rodas grandes amortecem o impacto, óbvio, mas ainda


assim, dependendo do tamanho dos buracos, sinto meu corpo
sacolejar de leve, o que inviabiliza que tire um cochilo, então

aproveito para observar a paisagem noturna.

Depois de morar por minha vida toda em Belo Horizonte e ter


saído de lá apenas para conhecer outras cidades ainda mais

agitadas, como São Paulo, por exemplo, cada curva na estrada de

terra que leva a uma cidadezinha no interior de Minas Gerais é


novidade.

Os animais no caminho, a mata verde iluminada pelos faróis


do carro e as florezinhas laranjas que se acumulam na beira da

estrada, as árvores cheias, o silêncio e ao mesmo tempo o barulho

da noite, o céu escuro e bonito demais, cheio de estrelas que não


podia ver na cidade e o cheiro... Um cheiro de ar puro.

De vez em quando avisto alguma plantação de café. De

acordo com o que sempre ouvi, o café domina a região e faz girar a
economia do sul de Minas.

— Pai, vou ligar o som... Já estamos chegando?

Ele me fita de lado, um olhar meio enviesado e balança a

cabeça, afirmando.

— De acordo com o GPS, sim. Não sei se estamos no

caminho certo, esse fim de mundo está mais para um lugar


abandonado por Deus, que uma cidade... —responde irritado. — E
não ligue o som — completa ao ver minha mão se mover na direção

do CD-player.

Acabo fazendo uma careta de desgosto, mas não desobedeço.

Meu pai sabe ser categórico.

— Por quê?

Disse que não o desobedeço, mas isso não quer dizer que não

o questione.

— Sabe que não gosto de música.

Sim, é uma das piores respostas que se pode dar.

— E o senhor sabe que é esquisito não gostar de música, não

sabe?

Ele apenas dá de ombros.

— Você tem dezessete anos, Clara. Não entende de muita

coisa.

Solto uma risada mal humorada.

— Sei de algumas... — Decido mudar o rumo da conversa, não

me sinto disposta a entrar em uma discussão sem sentido agora. —

Olha só o que decidi, por exemplo: — conto, enquanto abro a


mochila perto dos meus pés... — Está vendo? Trouxe algumas

apostilas, meus cadernos e muito material de estudo. Vou aproveitar


essas férias e me preparar para o vestibular. Legal, né?

Vejo-o assentir e isso me traz alívio, ao menos até agora


estamos de acordo.

Seu rosto está concentrado na estrada e os ouvidos na voz

robótica do GPS, mas o fato de ter acenado me dá a certeza de que


me escutou.

— Pelo menos vou ter o que fazer enquanto o senhor


trabalha...

— Acho uma excelente ideia. Bom que fica preparada para


quando retornarmos e não fico preocupado em estar te deixando

muito entediada.

Assinto com um gesto e cruzo as duas pernas, apoiando meus


pés no painel da caminhonete. Adoro o perigo de provocar meu pai
vez ou outra, mesmo que minha rebeldia não vá muito longe.

Por exemplo: eu deveria ter teimado em ficar em casa, mas ao

invés disso estou sendo arrastada para uma cidadezinha que está
mais para uma vila, onde vou passar os próximos dois meses, que é
todo o período das minhas férias.
— O banco fica longe da pousada em que vamos nos

hospedar? — Não que faça muita diferença, não é como se eu fosse


visitá-lo no trabalho.

— Não sei, mas imagino que não — ele responde. — Pelo


tamanho do lugar, nada deve ser muito longe.

Vale do Recomeço. É um nome bonitinho e pelas fotos que vi

na internet o lugar também é assim. Bem rural, pacato e sossegado.

Isso não me incomoda, na verdade é o que faz com que a

mudança temporária não seja tão horrível. Não sou uma pessoa das
festas e baladas. Em meus dezessete anos de existência aprendi

que minha cama, alguns filmes e comida de qualidade são itens


essenciais para a vida. Barulho, música alta e aglomerações são

dispensáveis.

— Olha, Clara... Você sabe que é importante que eu fiscalize a

filial do banco. Poderia mandar outra pessoa e, inclusive, o gerente


que foi enviado para cá é alguém em quem confio bastante, mas

não posso simplesmente deixar tudo nas mãos dos outros. É assim
que os funcionários se tranquilizam, ficam relapsos com seus
trabalhos e começam a se sentir donos de tudo. Precisam saber

quem manda para depois obedecerem como se deve.


Aceno concordando. Não que realmente esteja de acordo, mas
outra vez evito uma discussão que não vai me levar a lugar algum.

É assim que meu pai conduz os negócios, com punho de ferro,


aparições nas filiais do banco para tocar o terror e ocasionais

demissões. É mais ou menos como ele me dirige também, com


regras e ordens, decisões que não pedem minha opinião e
distância, mas de vez em quando aparece e aterroriza, mostra quem

manda e, bom, no meu caso não tenho a opção de ser demitida.

— Acredito que a pousada seja simples, nada muito luxuoso


pelo porte da cidade. Mas você vai ficar bem... Não vai?

Meu rosto se vira na direção da voz dele, que


inesperadamente parece preocupada.

— Vou ficar bem. Eles devem ter uma locadora... Talvez uma
livraria.

O sorriso dele é cético.

— Locadora, pode até ser. Livraria, acho bem difícil. Mas você
vai dar um jeito e, estudando, nem vai ter muito tempo livre.

— É... Sobre isso... Estive trabalhando em um roteiro novo,

sabe? Acho que daria um filme excelente — falo, sondando o


assunto que sempre tento introduzir.

— Já conversamos sobre isso e não apenas uma vez, Clara.

Por que alguém se sujeitaria a fazer roteiros de filmes, criar as


oportunidades para que outros brilhem? Se quer mesmo trabalhar

com filmes, vá ser atriz. Tenho alguns contatos e estou certo de que
antes mesmo de se formar vai estar nos palcos.

A fala dele faz meu coração acelerar. Sempre o mesmo

assunto, a mesma determinação e nunca, nunca chegamos a lugar


algum.

— Pai, eu não quero isso — explico pela décima vez. — Não

gosto de palcos, de chamar atenção, das pessoas me olhando,

concentradas em todos os meus movimentos.

Antes mesmo que eu termine, sua cabeça já está se movendo


de um lado para o outro.

— Mas você sabe atuar. Lembra aquele teatro que fez na

escola? Foi excelente.

Suspiro. Maldito teatro.

— Eu vomitei antes de subir ao palco. Quero escrever os


roteiros, gosto de criar as histórias, eu poderia até mesmo dirigir um
set, mas atuar não é pra mim.

— Clara — seus olhos saem da estrada por um momento e


focam em mim. Dura um segundo, mas é o bastante para transmitir

a firmeza e determinação no gesto. — Você é minha filha, nasceu

para ser reconhecida. Não para ter o nome nos créditos de um filme,

sem que ninguém faça ideia de quem é. Nasceu para brilhar e não
conferir brilho aos outros.

Penso em oferecer meus argumentos mais uma vez, mas uma

terceira voz na cabine me interrompe:

Você chegou ao seu destino.

Realmente, após a última curva na estrada de terra, entramos


em uma rua de paralelepípedo, com algumas casas nas duas

laterais. Não se parece mesmo com uma cidade, mas pelo visto é.

Virando à esquerda na primeira esquina, finalmente vemos

mais casas; noto também alguns pontos comerciais, fechados em


sua maioria.

Passamos por uma pizzaria e minha boca se enche de água

com a expectativa da comida, mas as portas já estão seladas,

apesar de dar para ver uma luz acesa. Olho no celular apenas para
ter certeza de que é mesmo tarde assim e, para meu espanto, são
apenas nove e meia da noite, mas o lugar parece completamente

deserto.

— Deve ter algo de comer na pousada — meu pai fala,

adivinhando o rumo dos meus pensamentos. — A farmácia também


está fechada... — ele diz, rindo ao notar o prédio completamente

escuro.

— E se alguém ficar doente? — pergunto, curiosa.

— Provavelmente o hospital fica aberto vinte e quatro horas

por dia.

Provavelmente?

Enquanto conversamos, avançamos pelas pedras que calçam

a rua. Os prédios e as casas são em sua maioria históricos e não

posso deixar de observar tudo extasiada.

Por menor e mais antiquado que possa parecer, é lindo. É


como estar dentro de um quadro com uma pintura de outros tempos.

As casas brancas, as janelas de madeira coloridas em azul,

verde, amarelo... Os postes nas ruas se parecem com aqueles que

eram acendidos por lampiões antigamente. A cidadezinha é linda e


dá uma sensação de nostalgia — pelo passado que nunca vivi.
No final da rua, depois de passarmos pelo que acho ser o

centro, já que tinha uma igreja e uma sorveteria, chegamos à


pousada Recanto do Recomeço.

Quando desço do carro e minhas botas de cano baixo atingem

o chão, inalo o aroma da noite, o cheiro de mato, das flores, das

árvores.

Passo as mãos pelos meus cabelos que agora se tornaram um


emaranhado castanho e disforme. Eu não deveria ter deixado a

janela aberta durante a viagem.

— Vem, Clara... Vai ficar aí a noite toda?

Apresso o passo para acompanhá-lo e juntos entramos pelo


arco de pedras que faz com que o lugar se pareça com um castelo.

O cheiro das flores fica mais forte e anuncia o jardim bonito antes

mesmo que eu o veja.

Logo que entramos na recepção somos recebidos por um


outro aroma, um que indica que há algo muito gostoso no fogo.

Agradeço em silêncio a Deus.

Meu pai toca a sineta e um pouco depois uma senhora

sorridente aparece na porta, secando as mãos em um avental azul.


— Boa noite! Vocês demoraram a chegar — ela diz com

informalidade. — Preparei o jantar para os dois e os quartos já estão

prontos para recebê-los. Imagino que seja o senhor Alessandro.

Vejo uma pilha de panfletos sobre o balcão e pego um deles


enquanto ouço a resposta do meu pai.

— Alessandro Alves Coutinho — ele confirma e vejo a mulher

abrir um caderno simples de espiral e marcar um x na frente do

nome.

— E essa menina bonita é sua filha?

Ela me olha, ainda sorrindo e enfio o papel no bolso, liberando


a mão para cumprimentá-la.

— Sou Clara.

— Bem-vinda, Clara. Meu nome é Ilda, meu marido Genaro

está lá em cima conferindo se está tudo perfeito nos quartos de


vocês. Querem subir agora ou preferem jantar antes?

— Vamos jantar, Ilda. Essa mocinha está faminta. Você pode

levar as malas para cima.

Com essas palavras ele sai andando na mesma direção de

onde dona Ilda havia vindo. Ela olha desolada para as malas no
chão e acompanho seu olhar.

Meu pai não é uma pessoa ruim, mas as vezes é tão sem

noção!

Uma senhora da idade dela jamais conseguiria levar as malas

sozinha e sair dessa aventura com a coluna ilesa.

— Vamos nós duas, Dona Ilda. A senhora leva essa... —

Estendo minha bolsa de mão, pequena e compacta, mas


principalmente leve, para que ela carregue, e acabo eu mesma

pegando a mala do meu pai e colocando sobre o ombro e erguendo

a alça da minha, que para minha salvação é de rodinhas — apesar

de bem grande e pesada.

A mulher segue calada ao meu lado e pela sua expressão

transparente me sinto na obrigação de defender meu pai.

— Olha, peço que o perdoe. Ele está acostumado a ficar em

grandes hotéis, sabe aqueles com carrinhos?

Ela assente e abre um sorriso meio tenso.

— Então... Os atendentes apenas colocam as malas no


carrinho e levam para os quartos. Acho que acabou não se tocando

de que não seria tão fácil assim aqui.


O sorriso dela fica mais natural e parece entender o ponto.

— Verdade, menina — responde. — Acho que eu devia

providenciar um carrinho desses. Mas é que geralmente as pessoas

vem pra cá apenas por um fim de semana e a bagagem é pouca. Na

verdade, vocês não trouxeram muito levando em conta que vão ficar
tanto tempo por aqui...

Realmente, mas considerando o peso disso tudo para subir

cada degrau de pedra e o fato de que quando olho para baixo me

passa a tragédia pela mente — eu caindo com as malas e


esbarrando na Dona Ilda, levando-a comigo na diversão, fico feliz

por meu pai ter sido chato e me proibido de levar muita coisa.

— Ah, vamos lavando as roupas e podemos comprar algumas

coisas por aqui também.

Devagar acabamos chegando ao topo da escada e entramos

em um corredor.

A mulher caminha na frente e se dirige ao último quarto,


arrastando os chinelos, que ela usa com meias.

— Esse é o seu. Seu pai pediu o maior e ele fica lá em cima...


Vamos ter que subir um pouco mais.
Observo o cômodo amplo quando a porta se abre.

As paredes são brancas e parecem ter sido pintadas há pouco


tempo.

A cama de madeira no centro é de casal e no canto há um


guarda-roupa marrom com as portas abertas, completamente vazio.

— Vou deixar a mala aqui em cima da cama. Depois guardo


minhas coisas. Estou morrendo de fome!

— Ah, então vamos logo, menina. Depois você vê direitinho. A

roupa de cama está nas gavetas, tá bom?

Concordo e faço o que ela disse, deixando minhas coisas

sobre a cama e saindo do quarto, seguindo a mulher escada acima.

Quando chegamos no corredor do último andar, vejo apenas


uma porta. Claro que meu pai iria exigir algo mais privativo.

Ela a abre e noto que o cômodo é bem maior que o em que


entramos antes.

Há uma sala adjacente, mobiliada e até um espaço pequeno


que serve de cozinha, a julgar pelo frigobar antigo e um fogão de
duas bocas, além do banheiro.

— Vou deixar as coisas dele no sofá.


Com isso saímos do quarto, enquanto dona Ilda vai
descrevendo as delícias que preparou para o jantar.

Ouço meu estômago roncar ao ouvir os detalhes, e a risada da


senhora segue o primeiro barulho.

— Vamos logo — ela diz. — Quem tem fome tem pressa...


— Vem logo, mãe! Vou começar sem a senhora — ameaço

para ver se isso a acelera.

Ouço os passinhos leves atrás do sofá em que estou sentado


e me viro, antes mesmo que ela suba pelas minhas costas.

— A mãe disse que já tá vindo. Mas ela também falou que se

soltar o filme antes, vai jogar um quilo de sal na sua pipoca.

Lalá me encara com os olhinhos azuis muito sérios.

— Ô, Lalá, fica na sua e vai lá lembrar a mãe de trazer nosso


suco.

Bagunço os cabelos loiros dela e a vejo fazer uma careta de

desdém.

Lavínia se acha muito esperta do alto dos seus sete anos, mas
geralmente não discute comigo.

Eu a observo se afastar na direção da cozinha, por isso estou

bem atento quando a vejo dar um encontrão com nossa mãe no

caminho, fazendo-a derrubar algumas pipocas pelo tapete.


— Menina! Já não disse que não pode ficar nessa correria?

— Mas mãe, o Levi falou que quer suco... — Lavínia resmunga

se justificando.

— Ele que pegue! Virei empregada dele agora?

Abro um sorriso ao ouvir o tom nervoso dela e me levanto.

— Tá bom, mãe. Senta aí que eu busco o suco, mas não é pra

começar o filme.

Passo por ela, que me dirige um olhar de afronta, como se


planejasse mesmo aquilo.

— Nunca vi! Olha só... Tirou o lençol todo do sofá... — Ouço


sua reclamação.

Abro o armário velho de madeira e pego três copos de plástico,

empilhando-os. Em seguida abro a geladeira marrom e tiro de lá a


jarra de suco de laranja.

— Eu que nunca vi. Pra que pôr um lençol aí? — respondo.

Volto para a sala e vejo que minha mãe já se acomodou em

sua poltrona preferida. Uma dessas que chamam de poltrona do

papai, aqui em casa o velho Joaquim não teve chance, virou

poltrona da mamãe mesmo.


— Não viu que tem um rasgo aí? Chega visita e fica essa coisa
horrorosa... — ela justifica.

Entrego um copo de suco a ela e outro pra Lalá, antes de

tomar meu lugar outra vez — agora com o lençol no devido lugar.

— Mãe, cadê o pai? — pergunto mais por curiosidade. Ele não

liga muito pra filmes e televisão.

— Cuidando do bezerrinho... — Ouço a resposta meio abafada

já pelo monte de pipoca que enfiou na boca. — Já viu como ele fica
com qualquer animal novo por aqui. Nem a Lavínia foi tão

paparicada quando nasceu.

Dou risada do comentário, mas sei que é uma meia verdade.

Apesar de ele ter dado muita atenção a Lavínia, os animais tem

mesmo um lugar especial no coração do velho, assim como nosso


sítio.

— Sei. Quando o bezerro dormir ele vem... — brinco.

Lalá se senta do meu lado, já com sua coberta sobre as

pernas.

— Qual filme você pegou hoje?


— Hoje vamos ver E.T, produção do Steven Spielberg —

respondo a pergunta feita por minha mãe, antes de apertar o botão


para iniciar.

— Um filme de E.T? Mas não estamos seguindo a tal lista dos


filmes pra ver antes de morrer? Esse não parece muito clássico... —

ela contesta com uma cara feia.

— Vamos ver os cem filmes da lista e esse está entre eles.


Não tem só filme preto e branco não, dona Maria. Vamos
modernizar isso aí... Nem só de Mazzaropi vive a TV brasileira.

— Deixa de ser bobo, Levi! É que não gosto de E.T. Você

sabe...

Abro um sorriso ao ver a expressão dela, um tanto quanto

amedrontada. Minha mãe foi criada aqui na roça, assim como eu,
mas ela é cheia de crenças em coisas sobrenaturais e vive

contando umas histórias aterrorizantes da sua infância.

— Esse E.T é bonzinho. Mas agora chega de papo, vai

começar...

Realmente, no decorrer do filme ela esquece a apreensão e se


concentra na história. Talvez nossa TV pequena de tubo dificulte
que ela tenha receio, ou quem sabe seja apenas a carinha bonitinha

do tal alienígena.

Lalá, por outro lado, não deu a mínima para a história e


adormeceu engalfinhada no meu braço.

Um pouco depois ouvimos a porta da frente se abrir e meu pai


entrar, batendo as botas pesadas no chão.

— Boa noite, família — ele saúda, enquanto segura a porta


para que Al, um dos nossos cachorros, entre também. — Vou tomar

um banho antes de sentar aí com vocês. Tô fedendo mais que o


curral...

Minha mãe encara as roupas sujas dele e assente.

— Vai, Joaquim... O filme já vai acabar e aí eu esquento a


janta...

Ele balança a cabeça, concordando e Al se joga no tapete


diante da porta com alguns resmungos e logo fecha os olhos,

cansado.

— Ah, Levi — meu pai para no caminho para o quarto. — O


padre Fernando veio aqui hoje, disse que te conseguiu uma vaga no
curso de verão na cidade.
Apenas aceno concordando, sem desviar o olhar da televisão.
A cidade a que ele se refere, fica a poucos minutos da nossa casa.

Costumo ir a cavalo até lá todos os dias ou na velha C10 do


meu pai. Para a escola, quando ainda estava tendo aulas ou para

comprar o que precisamos e vender os queijos que minha mãe faz,


além de duas vezes na semana ir na locadora pegar filmes para
nossas noites, logo, a questão não é a distância.

O problema é que meus pais incentivaram que eu me

inscrevesse no curso, mas ainda assim não o fiz. Quando


descobriram, eu disse que havia perdido o prazo, me esquecido,
mas a verdade é que não faz o menor sentido fazer um curso

preparatório para o vestibular, se não posso cursar uma faculdade.

Meu pai está ficando velho, os dois estão. Minha mãe já não
era nova quando engravidou da Lalá e sua saúde apenas piorou de
lá para cá e meu pai tem quase sessenta anos, logo vai precisar se

aposentar.

Eu o ajudo no sítio, a tocar as coisas e sei que logo vou acabar


por substituir boa parte dos afazeres dele e isso me impossibilita de
me afastar daqui, não tenho outra pessoa a quem passar a

responsabilidade. Ela é minha.


Mas eles parecem preferir ignorar todas as circunstâncias e ter
fé de que alguma coisa possa ser feita. Prefiro não os entristecer,
então acabo concordando com as ideias que os dois têm.

Ouço os passos dele se distanciando e foco minha atenção no

desenrolar do filme.

— Lê... Vamos dar um jeitinho, tá bom? Você vai ser diferente

de nós, vai ter uma profissão e dar conforto pra sua mãe velha —

ela diz e solta uma gargalhada.

Mas não consigo achar engraçado. Era tudo que eu queria,


poder dar uma vida melhor para os dois do que já tiveram até aqui.

Aquiesço outra vez. Quem sabe um dia...


-

O sonho era bom.

Seja lá com o que estava sonhando, sei que era bom porque

não acordei com a sensação sufocante do choro e a tristeza

esmagando meu peito. Acontece algumas vezes.

Hoje, não. Na verdade, é bem provável que eu perdesse a


hora, já que meu celular não despertou — maravilha. Mas tenho um

pequeno despertador humano, que nesse momento desfere, sem

muito cuidado, cutucões seguidos em meu rosto.


Os dedinhos gorduchos encontram minha narina e abro os

olhos, assustada.

— Mamãe... Acoda, mamãe.

— Hum... — Me viro, tentando fugir do alcance de suas


mãozinhas.

— Acoda, acoda, acoda, acooooooda, mãe.

Coloco o travesseiro sobre a cabeça, minha última tentativa de


dormir uns minutos a mais. Óbvio que nada adianta quando está

determinado. Ele sobe na cama e parece ter tomado como missão

descobrir meu rosto.

— Mããããe... Tá na hora de acodar, dorminhoca.

Eu sorrio, reconhecendo as mesmas palavras que costumo

usar todas as manhãs para arrancá-lo da cama e, por fim, desisto

do sono e descubro o rosto. Me sento e encontro dois olhinhos


verdes me encarando.

— Bom dia, Minduim! — Ele sorri diante do apelido que lhe dei

logo que descobrimos sua alergia a amendoim, quando ele tinha

apenas dois anos.

— Quero o cereal do erefante mãe, eu não alcanço.


Claro que ele não alcança. Coloquei propositalmente na
prateleira mais alta do armário na cozinha, do contrário Bernardo

comeria tudo de uma vez.

Fito a carinha dele, os olhos praticamente implorando, o pijama

de leãozinho com direito a touca com juba e tudo, e não resisto.

Como sempre.

Me levanto e alongo os braços, antes de calçar as pantufas ao

lado da cama e seguir até a cozinha.

Começo a preparar o cereal enquanto vejo Bernardo se

pendurando na banqueta até conseguir subir. Ele tem quatro anos,

mas ainda é bem pequeno, apesar de muito esperto.

— Hoje eu vou pa escola?

Ergo os olhos para ele outra vez.

— Minduim, você está de férias. A mamãe já explicou que

vamos nos mudar de cidade por causa do trabalho da mamãe e


para ficar perto da vovó. Você vai pra uma escola nova, assim que

as férias acabarem.

Vejo que os olhinhos dele se acendem. Bernardo é apaixonado

pela minha avó.


Desde que minha vida mudou há quase cinco anos atrás, me

vi sozinha, sem pai ou mãe, sem Derek, grávida e em luto, então eu


e minha avó nos aproximamos muito e moramos juntas por algum

tempo.

Mas a idade avançada e a morte de seu filho cobraram um

preço na mente fragilizada dela. Quando as confusões e os


esquecimentos começaram, percebemos logo e ela mesma decidiu

se mudar para uma casa de repouso.

Não era o que eu ou Bernardo queríamos, mas infelizmente a

alternativa não existia. Eu não podia deixar de trabalhar para cuidar


dela, porque preciso sustentar meu filho, vovó não podia ficar mais

sozinha e dinheiro para cuidadores simplesmente não existia.

Dessa forma, a casa de repouso veio a calhar. Ela se mudou

para uma cidade vizinha e Bernardo e eu ficamos sozinhos.

Desde então, deixo meu filho na escola todos os dias em


período integral e trabalho como atendente em uma joalheria no

shopping.

Por sorte — não posso dizer que achei ruim — a empresa está

em constante expansão, e com a abertura de uma filial em Lagos fui


transferida para lá. O que é bom, não temos mais ninguém aqui e

poderemos ficar perto da vovó Rute.

O pensamento me faz lembrar que há outra pessoa que mora


em Lagos. Alguém que prefiro não reencontrar.

— Hein, mãe???

Só então percebo que me perdi e não ouvi o que disse.

— O que perguntou, Bê? — questiono, colocando a tigela de

cereal com leite na sua frente.

— Vovó Rute disse que minha outa avó mora lá. Vou conhecer
ela?

Ela, a outa avó, já tentou uma reaproximação milhares de


vezes, ligações, mensagens e aparições esporádicas no meu

trabalho. Todas ignoradas.

Minha mãe nos deixou e vive em Lagos. A atitude dela resultou

no incidente com meu pai e impediu que meu filho conhecesse o


seu. Minha vida mudou completamente em cinco minutos.

Todos os projetos da moça recém formada deixaram de existir,


meus planos foram moldados outra vez, porque de repente só o que

importava era o bebê que carregava em meu ventre. Tudo mudou


por uma decisão egoísta da parte dela e por isso mesmo, evitei a
todo custo que soubesse da existência do neto.

— Não, querido. Vovó Rute não devia ter falado disso com
você, ela sabe que não vai acontecer. Além disso, você já tem duas

avós e um avô, pra que precisa de mais? — falo, me referindo aos


pais do Derek, que apesar de morarem em outro estado, vez ou
outra aparecem para ver o neto.

Bernardo apenas dá de ombros enquanto enche uma

colherada e coloca na boca. Graças a Deus, ele ainda não


consegue entender muito bem tudo isso e dá pouca importância.

— Você vai ficar na Mari, tá bom? A mamãe te pega depois do


trabalho. Come tudinho aí enquanto eu vou me vestir.

Deixo-o comendo e caminho na direção do quarto, mais


irritada que dez minutos antes. Odeio ter que falar na minha mãe.

Abro o guarda-roupas e tento me decidir entre um vestido

cinza, largo e longo ou um conjunto social preto. Sempre me visto


com seriedade e com o máximo de discrição possível para não atrair
atenção, na verdade, os óculos enormes que uso e o coque preso

são minhas ferramentas usuais para afastar qualquer interessado.


Quando tudo aconteceu e eu tive alta do hospital, fui morar
com minha avó, que me acolheu naquele momento tão difícil. Ela
também sofreu muito e nós nos demos apoio em meio à tragédia. A

casa em que morava com meu pai não era nossa e, apesar de muito
trabalhador, não nos deixou nada além de alguns trocados no

banco, que ajudaram muito quando precisei comprar as coisas para


um bebê totalmente inesperado.

Perdi muita coisa naqueles dias. A mãe — porque, infelizmente

para todos nós, eu a culparia sempre por tudo que veio depois da

sua partida — e os dois homens que eu amava. Algo assim, tão

doloroso, faz com que algumas mudanças sejam necessárias.

Eu tenho alguns colegas no trabalho, mas não falo sobre o

passado e com certeza não me envolvi emocionalmente com mais

ninguém depois do Derek. Não é algo que eu queira pra mim e pro

Bernardo, estamos bem sozinhos e prefiro que as coisas continuem


assim.

Não estou pronta para mudar isso e já tenho meus vinte e sete

anos. Sendo bem honesta, acho que nunca vou estar.


Depois de muitas horas de pé trabalhando e mais uma

reprimenda básica do meu chefe, do tipo "você não é uma


funcionária ruim, mas poderia se vestir melhor", saí do trabalho

direto pra buscar meu filho.

Mari é minha melhor amiga, uma das poucas com quem

realmente converso e que sabe um pouco mais sobre mim do que a


maioria. Ela tem um emprego flexível em uma firma de recrutamento

e seleção e, com isso, acaba passando boa parte do dia em casa, o

que me ajudou muito nessas férias.

Sentada diante dela, com uma xícara de café na mão e um


pedaço de bolo diante de mim, ouço Bernardo narrar todos os

acontecimentos do dia, do seu jeitinho engraçado.

Do mesmo modo empolgado com que ele começa, logo

interrompe a narrativa e corre para a sala, quando ouve a música de


um de seus desenhos preferidos começando.

— Mari, eu não sei o que fazer... — externo alguns

pensamentos que têm me perturbado a semana toda. — Devemos


nos mudar na quinta-feira e não encontrei um lugar para morarmos

até agora. O aluguel no centro da cidade é muito caro e não posso

morar muito longe do trabalho e da escola que consegui pro


Bernardo. Principalmente porque não conheço a cidade direito...

Mari me fita pensativa.

— Por que não diz ao seu chefe que não pode ir? Podiam

enviar alguém sem filhos, pra quem fosse mais fácil toda essa

transição, Robin. O bolo está ruim?

Suspiro, desanimada e faço que não. Mesmo que esteja. Ela


deixou passar do ponto e está ressecado e esfarelando.

— É que, apesar dessa complicação toda, de certa forma vai

ser bom. Eu recebi uma ligação da casa de repouso em que minha

avó mora, eles vão reformar o prédio e precisam que os familiares


hospedem os moradores por alguns dias... Seria bom se ela

pudesse ficar com a gente em definitivo. Infelizmente não tenho

como tomar conta dela, mas por uns dias seria ótimo.

— Como vai fazer, então? Durante os dias que ela vai ter que
ficar com você? — Mari pergunta, preocupada.

— Bom, vai ser durante as férias do Bernardo. Vou ter que

pagar alguém pra ficar com ele em meu horário de trabalho, então já
peço pra que fique de olho nela, também.

— Mas como vai pagar por isso? Vai ter que arcar com o
aluguel e a mudança...

Realmente, não vai ser nada fácil.

— Eu tenho um pouco de dinheiro. Não é muito, mas deve

cobrir o primeiro e o segundo mês de aluguel, e o pagamento de

quinze dias de trabalho pra uma babá. Depois disso vamos ficar no
vermelho, mas logo eu já devo receber de novo e aí aguentamos

mais um mês, e assim por diante...

Mari acena concordando, mas sei que está nervosa por mim.

Eu também estou.

— O que você precisa mesmo, Robin, é de alguém pra dividir o


aluguel. Seria muito melhor pra você agora, com o pouco dinheiro

que tem e várias despesas... Já pensou nisso?

— É uma péssima ideia! A menos que esteja se voluntariando,

eu não posso simplesmente escolher alguém aleatório para morar


na mesma casa que eu e meu filho, Mari. É perigoso e além disso,

sabe que não lido bem com qualquer pessoa.

Vejo quando o rosto dela se ilumina e me permito uma pequena


dose de esperança. Quem sabe ela tenha uma ideia que me tire

desse impasse?

— Vou te ajudar a achar alguma coisa. Mas sabe com o que

você realmente deveria se preocupar? Arrumar um namorado! Você


só vive pro Bernardo e pro trabalho, um trabalho aliás que você nem

gosta...

Ah não, essa conversa outra vez.

— Mari, já disse que não estou procurando um

relacionamento, temos um assunto muito mais importante, se não


notou. Vou ter que morar em um lugar péssimo, com psicopatas à

espreita e traficantes como vizinhos.

— Já sei! Tenho a pessoa ideal pra você, Robin!

Até meu corpo rejeita a ideia, me trazendo um arrepio. O maior

problema dessa alternativa é que provavelmente as únicas pessoas


que vou encontrar, dispostas a dividir um aluguel, serão jovens

estudantes, desocupadas e festeiras.

— Mari, não dá! Tenho o Bernardo e as coisas são mais

complicadas pra mim... Deixa que eu me viro.

Ela balança a cabeça, recusando minha negativa.


— Você precisa! Já passou da hora de deixar de ser teimosa,

sabia? Não confia em mim? Não vou colocar um psicopata na sua


vida. Eu acho que vocês vão se dar super bem, sabe que eu não

faço escolhas ruins.

Penso por um momento na ideia. Apesar da minha recusa

inicial, ter alguém com quem dividir as contas não seria mesmo
ruim, poderia ficar mais tranquila e comprar algumas coisas pra

casa, móveis... O Bernardo também precisa de sapatos novos e

algumas calças, porque deu uma crescida e perdeu várias roupas.

— Bom, se for alguém que você conhece, vou me sentir mais


tranquila quanto à ideia — me pego respondendo e nem sei por que

estou cogitando essa loucura. — Quem é?

Mari dá de ombros com aquela cara de quem diz que sim, é a

melhor amiga do mundo.

— Seu nome é Dominic, está de mudança pra Lagos, como


você. Acredito que se darão muito bem. Vou te passar o contato e aí

vocês poderão conversar, e quem sabe combinam algo? Pode dar

certo...

Nem posso acreditar em uma coincidência como essa. Uma


amiga da Mari, de mudança para Lagos e precisando de alguém
para dividir o aluguel.

Obrigada, Deus, por se lembrar de mim.


— Perfeito! Com certeza, vou ficar com esse apartamento. Se

eu puder alugar o cômodo embaixo também, claro.

A corretora abre um sorriso contente e eu torço para que não


precise chamá-la pelo nome, mesmo porque não consigo me
lembrar qual é.

— Claro, senhor Duarte!

Tento soar gentil e não aparentar irritação.

— Eu prefiro que me chame de Dominic, apenas.

O sorriso da mulher aumenta. Olhando direito, ela até é bem

bonita quando sorri.

Claro que pensa que estou dando intimidade por algum motivo

qualquer; ninguém entende que eu simplesmente não quero que me


associem ao meu pai. Não no momento, quando ele parece rejeitar
todas as minhas escolhas, se não houverem antes sido escolhidas

por ele mesmo.

— Claro, Dominic. Então quer alugar o apartamento e o


cômodo comercial. O que pretende abrir ali?

A moça se aproxima um pouco e pelo brilho nos olhos dela, sei

que suas intenções não são muito profissionais.

— Estou transferindo meu consultório particular pra cá. Vou

trabalhar em uma clínica, atendendo como psicólogo, mas quero

também manter um lugar para atender fora de hora, quando


necessário.

— Certo... — A mulher corre os olhos pela grande sala vazia.

— Se preferir, temos outro apartamento nesse prédio, um pouco


menor. Dois quartos...

— Mas não com essa vista, tenho certeza. Prefiro ficar com

esse.

— A vista aqui é mesmo fantástica... — A voz dela adquire um

tom rouco, sedutor.

Retribuo seu olhar com menos ânimo do que deveria. Eu

realmente me referia a vista das janelas, do alto da cobertura posso


ver toda a cidade de Lagos e, mesmo que seja um município
pequeno, ainda assim é uma visão incrível. Amo esse lugar.

Quando ela percebe que não respondi seu comentário,

prossegue retornando ao modo profissional.

Ótimo. Não estou no clima. Aguentar minha madrasta ao

telefone, dizendo pela décima vez que preciso me reconciliar com

meu pai, me tira o apetite. Inclusive o sexual.

— Bom, costumamos alugar esse local para estudantes


justamente pela quantidade de quartos, eles gostam de dividir o

aluguel. Mas se o senhor o prefere, por mim, ótimo.

Me volto para a corretora pensando no que acabou de dizer.

— Sabe, não seria má ideia dividir o aluguel com um amigo.

Mesmo porque vou ter que arcar com o contrato do cômodo

também.

A moça aquiesce concordando, apesar de não conseguir


disfarçar o olhar intrigado que me direciona. E é bem óbvio o

porquê.

Sabendo quem eu sou, ou mais precisamente quem é meu pai,

fica difícil acreditar que eu teria motivos para cogitar a possibilidade


de dividir o aluguel ou que tenha dificuldades em arcar com os dois

imóveis. Mas a verdade é bem diferente do que era um tempo atrás.

Como alguém com influência política e com investimentos nos

mais variados tipos de negócios, era natural que meu pai desejasse
que seu legado fosse transferido um dia para o herdeiro de tudo

aquilo que ele almejou e alcançou.

O problema é que convivendo de perto com aquele jogo de


interesses de todo mundo a sua volta e as outras fontes de renda
dele durante minha vida toda, soube que não era pra mim e mais

tarde descobri o que queria fazer. Seu Henrique, meu pai, não
aprovou minha decisão pela psicologia e, em uma atitude no mínimo

insensata, decidiu que não apoiaria mais meus planos e nem


mesmo os financiaria, ao menos não até que eu voltasse à

realidade, em suas palavras, e retornasse para os negócios da


família.

Isso não aconteceu. Cursei psicologia fora da cidade, contando


minhas moedas, e estudei muito para chegar onde estou hoje.

Trabalhei algum tempo na própria universidade, onde adquiri


alguma experiência.
Agora, retorno à Lagos com pouco dinheiro, que vou investir

nos móveis que faltam para a casa e o consultório, e no aluguel.


Mas até que eu receba meu primeiro pagamento na clínica, alguém

com quem dividir as contas viria a calhar.

Os meus rendimentos serão bons e pretendo atender alguns

pacientes particulares, de modo que logo vou conseguir equilibrar


minhas finanças, e o melhor, sozinho, por mérito próprio. Além

disso, sempre posso vender meu carro se precisar.

— E então? Podemos assinar o contrato? — pergunto ansioso.


— Pretendo me mudar ainda essa semana se tudo der certo.

— Claro, vou cuidar dos papéis necessários para o contrato.


Pode me procurar amanhã mesmo com seus documentos para

assinar e pegar as chaves, precisa também transferir para o


proprietário o depósito.

Deixamos o prédio e sigo em direção ao hotel em que estou


hospedado até a mudança, gastando o que não devia para não ter

que encarar minha complicada relação pai e filho e ficar com minha
família até arrumar um lugar definitivo.

Me decido por um banho rápido, antes de poder me jogar na


cama e dormir algumas horas. Entro no chuveiro e deixo que a água
quente escorra por meu corpo enquanto penso na possibilidade de
realmente dividir o apartamento. Mas com quem? A maioria dos
meus amigos acabou se mudando e com os outros perdi o contato

totalmente.

O vidro do box já está embaçado e ainda não pensei em uma


opção viável. Acho que não existe. Não dá pra colocar um anúncio
nas redes sociais procurando um colega de quarto. Eu não sou um

adolescente de mudança pra faculdade.

Quando fecho o chuveiro e saio do banho, pego o celular para


ver se tenho alguma chamada perdida e me deparo com uma
mensagem no WhatsApp de um número desconhecido.

"Boa noite, Dominic. Uma amiga em comum me passou seu

contato. Parece que está procurando alguém com quem dividir o


aluguel em Lagos... É isso mesmo?"

Pelo visto a corretora foi rápida em espalhar minha intenção.

"Bom, sim. Qual seu nome?"

Procuro pelo nome da pessoa no status, mas tudo que

encontro é uma frase que deve ser de algum filme e a foto de um


céu muito azul.
Isso deve ser um indicativo de que se trata de um cara
reservado e isso é muito bom. Alguém que com certeza vai saber
respeitar limites, o que torna a convivência mais fácil.
-

Ela respondeu! Tomara que Dominic ainda não tenha


encontrado alguém. É segunda-feira e seguimos sem moradia até

agora.

Apesar do pavor que sinto em me arriscar em algo assim, as

garantias de Mari são suficientes. Além disso, se ela for muito

espaçosa, festeira ou algo pior, podemos nos mudar quando eu


começar a receber.

Respondo com o máximo de informações possível para

assegurar a necessidade urgente.


"Meu nome é Robin. A empresa em que trabalho me transferiu

para Lagos e preciso me mudar na quinta-feira, mas ainda não


consegui um apartamento. Procuro por alguém de confiança para

isso e me indicaram você..."

A resposta chega instantes depois.

"Bom, Robin, não vou dizer que não me sinta desconfortável

em dividir a casa com alguém que não conheço. Mas a ideia não

parece ruim, levando em conta as despesas e os cinco quartos..."

Se ela se sente assim em dividir o espaço, será que vai aceitar


fazer isso com alguém que tenha um filho? Sei bem como crianças

tendem a ser bagunceiras.

Bernardo já está dormindo no sofá-cama ao meu lado. Passo a


mão por seus cabelos claros e suspiro, um pouco desanimada.

Acho difícil Dominic estar disposta a isso.

Como será que ela é? A foto no perfil é o brasão de psicologia.

Tomara que não seja cheia de frescuras, porque com certeza não
daríamos certo.

"Claro. Também acho estranho tudo isso, mas te garanto que

sou alguém fácil de lidar e conviver. Só que tem uma coisa... Não

sei se tem alguma ressalva, mas meu filhote vai comigo. O Bernardo
precisa de um lugar separado também, sei que em um apartamento,
um quintal para correr e brincar seria pedir muito, mas o espaço

geral é bom? Você teria problemas em ceder um quarto pra ele?"

Dessa vez a resposta demora a vir e já estou roendo as unhas

de ansiedade quando vejo que ela começou a digitar.

"Sem problemas. Posso inclusive preparar o cantinho dele pra

te dar uma mão. Vamos precisar depositar o valor referente a três

aluguéis, para segurar o imóvel. É um valor que podemos resgatar

ao final do contrato, acha que consegue enviar a metade?"

Huuum. Não sei se o que eu tenho guardado pode suprir isso e

mais os móveis, e ainda durar o mês todo. Mas antes metade que

tudo.

"Acredito que sim. Até que eu receba meu primeiro salário vou
estar um pouco sem dinheiro, mas tenho algumas economias para o

aluguel e móveis novos. Preferi vender os antigos por aqui e

comprar aí, para não ter que lidar com mudança de uma cidade para

outra."

Nem acredito que esteja mesmo acontecendo. A Mari é um

anjo. Além de todo apoio de sempre, ainda me arrumou uma pessoa

confiável e compreensiva, quando eu mais precisava.


"E se você pagar o valor dos aluguéis no total e eu comprar os

móveis para a casa? Mesmo porque já estou em Lagos e posso


preparar tudo pra quando chegar."

Ai meu Deus! Mais uma santa na minha vida.


Só de pensar que vou chegar e tudo vai estar pronto, sinto que um

peso foi retirado de mim.

Apesar que... E se for um golpe? Eu deposito o dinheiro e essa


mulher some no mundo? Em questão de segundos estou enviando
uma mensagem pra Mari, perguntando outra vez se Dominic é

mesmo confiável.

Ela não demora um segundo para responder:

"Já te coloquei em enrascadas? Confia em mim!"

Suspiro, entre aliviada e resignada.

"SERIA ÓTIMO! Não sabe como me sinto mais leve com isso,
agora. A Mari foi ótima em nos unir; vamos nos dar muito bem."

"Ah! Então o nome dela é Mari..."

Será que isso foi uma brincadeira? Talvez não. Ela pode não
saber quem foi que indicou, mesmo porque eu não disse. Eu deveria

ter começado dizendo isso...


"É... Acho que é a primeira coisa que eu deveria ter dito, né?"

"Com certeza, cara! Mas então está certo. Vou te passar os

dados do locador para depósito e amanhã, quando estiver


comprando as coisas, te mando fotos. Até mais Robin, estou na
expectativa dessa nossa aventura!"

Cara? Pelo menos, não me parece ser uma garota mimada e

fresca. Não é o tipo de gíria que alguém assim usaria.

Menos mal. Eu e Dominic vamos nos dar bem.

Dominic parece mais empolgada que eu com a mudança, o

que é compreensível pelo que me contou acerca do apartamento e


do prédio. Continuamos nos falando pelo celular e acredito que

vamos conseguir conviver bem. Ela vai poder morar e trabalhar no


mesmo lugar e as comodidades realmente são atraentes: piscina e

academia.

Não que eu planeje aproveitar qualquer uma delas.


Bernardo, por outro lado, parece um tanto inquieto com todas
as novidades. Morar em outra cidade, estudar em uma escola
diferente e ainda dividir o espaço com alguém desconhecido.

— Filho, precisamos morar com ela pelo menos um tempo até

a mamãe conseguir um dinheiro pra um lugar só nosso. Tenho


certeza de que vamos nos dar bem, vai ser como com a tia Mari...

Ele acena concordando, mas percebo que está ansioso. O que


é normal, afinal eu também estou. Pelo pouco que temos

conversado, ela me parece ser uma pessoa tranquila, não é de falar


muito e não me fez perguntas muito pessoais. É uma situação
chata, mas no momento a única que atendeu minha urgência.

Termino de fechar mais uma caixa com os brinquedos dele —

não sei de onde saiu tanta coisa — mas acho que vai caber tudo no
carro. Indo para a cozinha, começo a empacotar meus antigos
instrumentos de trabalho, mas que ainda utilizo muito no dia-a-dia.

Batedeira, formas dos mais variados tipos, alguns ingredientes

que sempre tenho à mão, vasilhames diversos e mais formas:


pequenas, médias e grandes, para bolos e tortas, para cupcakes e
cookies com desenhos diferentes, enfim, embalo aquilo tudo que um
dia foi meu sonho e que hoje, ainda me consola nos momentos em
que me sinto mais sozinha.

Sempre que me sinto triste, faço um bolo. Quando estou


furiosa, asso biscoitos — o contrário também acontece — e quando

estou feliz... bom, sempre asso alguma coisa.

De repente, sinto meu celular vibrar no bolso. É Dominic

mandando a foto de um conjunto de sofás pretos de courino e em

seguida, um outro de tecido, mais bonito e elegante e que, com


certeza, não vai sobreviver ao meu pequeno aventureiro e o monte

de comida que ele deixa cair por onde passa.

Sua mensagem reflete exatamente o que pensei sobre os dois:

"Praticidade ou beleza? Eu voto em evitar a sujeira para não

termos que limpar. A propósito, o que acha de contratar uma


faxineira?"

Abro um sorriso diante da ideia. Claro que eu adoraria não ter

que me preocupar com limpeza quando chegasse em casa, depois

de já trabalhar o dia todo, mas não posso pagar.

"Praticidade, com certeza. Não posso pagar por uma

faxineira... Eu cozinho e você limpa. Ou paga alguém pra limpar se

preferir."
Sua resposta chega instantes depois:

"Ah, sabe cozinhar? Adoro a modernidade. Como está o


processo pra mudança? Chega aqui hoje ainda?"

Modernidade saber cozinhar? Não deveria achar que sou

antiquada? Dou de ombros para o comentário estranho e olho ao

meu redor para as várias caixas e sacos com roupas. Está quase
tudo pronto.

"Sim, antes de anoitecer. Estou encaixotando uns

brinquedinhos do Bernardo."

"Legal, falando nele, já arrumei seu cantinho. Quer ver?"

Que pergunta! Óbvio que eu iria querer ver o que ela aprontou

no quarto do meu filho.

"Claro! Manda foto..."

"Assim que estiver no apê eu mando."

Penso finalmente em algo que vem me incomodando muito.

Apesar de Mari ter me garantido que Dominic é confiável e tudo

mais...

"Falando nisso, devia me mandar uma foto sua. Não acha

estranho ainda não termos nos visto? hahaha"


"Bobagem, Robin. Falando igual uma menininha... Te garanto

que sou muito sexy."

Dou risada e vejo meu filho me encarando, sem entender

nada. Não é como se eu não risse nunca, é?

— É a Dominic, Minduim. Ela é meio engraçada...

Pensando nisso, ainda sinto outra vez aquele desconforto com

a situação. Talvez tenha me precipitado e essa mudança não seja o

melhor pra nós, mas não posso de modo algum perder o emprego e

bom, por mais que eu pense muito não encontro alternativa.

"Mari... Tem certeza sobre Dominic? Acha que vamos nos dar

bem?"

Decido ler sua confirmação mais uma vez. Já deve estar

cansando de mim e minhas bobagens.

Minha amiga sempre esteve ao meu lado. Mesmo que não


saiba tudo sobre mim, ela ainda me conhece melhor que a maioria e

sabe que não gosto de pessoas muito invasivas e de nada que me

deixe em situações constrangedoras. Não acredito que me colocaria


em qualquer coisa que fosse prejudicial a mim ou meu filho.
"Absoluta! Me espanta que tenha finalmente me escutado. O

que deu em você? Mas tenho certeza de que vão se dar bem."

Sempre me sinto mais aliviada quando leio suas palavras com

tanta convicção. Afinal de contas, a moça é legal, está disposta a

comprar os móveis e a ficar responsável pela limpeza. Não pode ser

tão ruim...

"Tenho certeza de que sim. Estou de mudança hoje, Mari,


quando chegar em Lagos te mando foto de tudo. Muito obrigada!"

"E vai morar onde? Deu tudo certo então?"

"Sim, tudo certo! Já paguei e estou encaixotando as coisas..."

Recebo um emoji sorridente como resposta e me volto outra

vez para as caixas.


Entrar em lojas e comprar móveis para casa. Apesar de nunca


ter precisado fazer isso antes, porque primeiro morava com meu pai

e depois aluguei um apartamento mobiliado e minúsculo na época


da faculdade, é bem mais divertido do que imaginei. Depois de
escolher um conjunto de sofás e a geladeira, fui procurar por uma

cama. Eu já tenho a minha e os móveis do meu antigo quarto foram


trazidos para cá e levados para o endereço novo, então não preciso
me preocupar com isso.

Escolhi uma cama de casal pra Robin, porque afinal, um


homem solteiro precisa de espaço tanto quanto um casado... Ou

não, mas espaço é sempre bom.

— Qual o próximo item? — O vendedor me pergunta e checo o


papel na minha mão, antes de responder.

— Fogão e forno.
— E como prefere? Quatro bocas ou cinco? Também temos

alguns modelos de seis... Pode ser cooktop e um forno elétrico, ou


os dois a gás em um modelo único. Prefere um forno de embutir?

Caralho. O rapaz me leva para a área em que os produtos

estão dispostos e uma fileira interminável de fogões está ali, além

de fornos, coifas e outras coisas.

Simplesmente travo na hora dessa escolha. Se for optar por

algo bonito eu ficaria com o forno de embutir, mas realmente não sei
se é a opção mais prática.

Vou pedir a opinião do Robin outra vez. O cara é quem vai

cozinhar, então ele que decida.

— Só um minuto... — peço ao vendedor, enquanto já digito


uma mensagem.

"Robin... Fogão de quantas bocas? Com forno a gás ou

prefere tudo separado? Me ajuda aí..."

Ele demora um pouco a responder e decido ligar para saber,

mas antes de sair da tela do WhatsApp vejo que está digitando.

"Estamos querendo economizar ou está dentro do planejado?

Porque se puder ser qualquer um, eu escolheria o forno elétrico,


seja de embutir ou não. É mais rápido pra assar bolos..."

Bolos? Além de comida o cara me fala que faz bolos. Será que

ele é gay? Não que isso signifique alguma coisa, mas acho que é

bom saber, pra caso desça do carro de peruca e chegue aos

ouvidos da minha família que agora moro junto com um namorado.

Vai saber...

"Robin, posso fazer uma pergunta indiscreta?"

"Claro, mas escolho responder ou não."

Ok. Pode ser que ele não responda.

"Certo, você é gay?"

A resposta vem logo em seguida, com uma enxurrada de risos

de duas formas: Emojis e palavras para demonstrar a risada e

depois finalmente ele digita palavras compreensíveis:

"Que pergunta mais aleatória! Não, não sou gay. Eu tenho o

Bernardo, lembra?"

O que isso tem a ver? Será que acha que é uma raça de

cachorro muito hétero? É muito grande realmente, mas pra mim não

faz sentido nenhum. Cada coisa...

"Só perguntei por perguntar. Curiosidade."


A próxima mensagem dele, no entanto, me pega de surpresa.

"Olha só, sei que vamos morar no mesmo apartamento. Me

desculpe por dizer isso assim, mas como estou de mudança hoje

preciso que fique claro. Eu sou hétero e vou continuar assim,


mesmo que não saia com outras pessoas..."

O quê? Parabéns Dominic, agora o cara pensa que você está

interessado nele. Idiota.

"Não, cara. Não viaja, perguntei por curiosidade só..."

"Tudo certo, então. E o fogão? Pode ser o cooktop e o forno

elétrico?"

"Pode, sem ser o de embutir porque assim já podemos usar."

— Decidido — digo para o vendedor que me espera

pacientemente.

Finalizo as compras e deixo a loja com tudo acertado. Farão a

entrega em poucas horas e acredito que tudo esteja no lugar até a


noite. Aproveito a saída para já comprar algumas coisas que tinha

esquecido para o São Bernardo. Estou preocupado por ser um


cachorro que fica muito grande e torcendo para que seja bem
treinado, ou então as coisas podem se complicar um pouco.
Verifiquei se o prédio aceitava animais, mas mesmo que

tenham dito que sim, um cachorro desse porte não é a mesma coisa
que um Poodle, mesmo ainda sendo um filhote e se tivermos

problemas com isso não sei como Robin vai lidar. Não creio que dar
ou vender o cão esteja em seus planos.

Cacete. Devia ter pensado nisso direito, o cachorro fica


imenso.

Passo no supermercado antes de retornar para casa e compro

algumas coisas básicas para abastecer a despensa. Acho que


Robin acabou gastando muito com os aluguéis, então estou fazendo
o possível para equiparar as coisas.

Claro que móveis são caros, mas muitas coisas eu já tinha e

mantive, como a televisão e a mesa de cozinha. Já armários e


guarda-roupas fazem parte do mobiliário planejado do apartamento.

Quando chego na nova casa, começo a arrumar as coisas e


logo o local vai tomando cara de lar de verdade. Os entregadores

chegam um pouco depois e já colocam as coisas no lugar, montam


a cama e me deixam com a organização pesada que tenho pela
frente.
Os sofás pretos na sala, uma mesa de centro que já
presenciou muitos copos de cerveja e a televisão fixada em um
painel, isso me faz sentir que foi feito algum avanço. Logo depois,

leio o manual de instruções para ligar o fogão e coloco o forno no


lugar.

Quando me dou conta de que finalmente terminei o trabalho,


percebo também que já escureceu e que Robin deve estar

chegando por aí. Aproveito e mando uma mensagem.

"Já estão em Lagos?"

Dessa vez sua resposta demora um pouco mais e imagino que

esteja dirigindo, mas pouco depois, meu celular vibra com a


notificação:

"Em uns dez minutos... Está no apartamento?"

"Sim, vou tomar um banho. Sua chave está na portaria, pode


pegar e subir."

"Ok! Nos vemos daqui a pouco."


-

Deixamos nossa casa, a cidade de Cordilhéus e poucos


amigos para trás quando o sol ainda estava se pondo. A viagem não
será muito longa e logo que pegamos a estrada, me vejo pensando

em todas essas mudanças e em como isso tudo pode ser


desastroso.

Mas logo Bernardo, que está sentado em sua cadeirinha no


banco traseiro do carro, me pede para ligar o som. Enquanto as

músicas infantis, animadas e repetitivas enchem o ar, nós cantamos


juntos e eu esqueço por um tempo toda a apreensão.

Criar um filho sozinha é muito difícil. Não simplesmente por

não ter o pai dele ao meu lado, mas por não ter ninguém. Todas as

decisões são minhas, todas as obrigações também e,


principalmente, toda a responsabilidade da vida dele está nas

minhas mãos. Mas olhando-o agora, alegre enquanto canta,

percebo que tenho feito um bom trabalho.


Talvez não com a minha vida e minhas escolhas, mas ao

menos com ele.

— Mamãe, a gente zá chegou? Já, mamãe? — pergunta


agitado.

— Ainda não querido, mas estamos quase lá... — respondo

observando pelo GPS do celular que realmente estamos perto.

Instantes depois, quando olho pelo retrovisor — hábito de mãe

— vejo sua cabecinha inclinada para o lado e os olhos fechados. É

sempre assim, ele pula, brinca, se agita e de repente é vencido pelo


cansaço.

Meu celular se acende com a notificação de uma nova

mensagem de Dominic e paro no acostamento, tomando o cuidado


de ligar o pisca-alerta para ler.

"Já estão em Lagos?"

Aproveito para verificar outra vez a distância.

"Em uns dez minutos... Está no apartamento?"

Espero que esteja. A parte mais complicada e difícil será esse


primeiro momento, então o melhor a se fazer é passar por ele logo.
"Sim, vou tomar um banho. Sua chave está na portaria, pode
pegar e subir."

Perfeito!

"Ok! Nos vemos daqui a pouco."

Digito rapidamente a última mensagem e logo voltamos para a

rodovia.

Troco de música no som e abaixo o volume, outra vez volto

meus pensamentos para o novo.

E bem, tudo é novo...

Uma nova casa, emprego, escola, rotina, uma nova amiga. A

chance de estar perto da minha avó. Poder aproximar ela e


Bernardo também é uma mudança, e uma muito bem-vinda.

Tudo isso me faz pensar na minha mãe, não que eu queira,

mas é inevitável me lembrar de que anos atrás ela fez esse

caminho. Se mudou para essa cidade e recomeçou sua vida do


zero. Anulando a antiga.

Tenho receio de encontrá-la pelas ruas, mas sem que saiba

que me mudei, não deve acontecer. Apenas precisarei manter suas

tentativas de aproximação o mais distante possíveis.


Talvez ela nem descubra que estamos aqui...

Talvez descubra e não se importe.

As luzes da cidade começam a surgir e logo estamos na


avenida principal, seguindo em direção ao centro.

O trânsito não está intenso e o trajeto todo leva poucos

minutos, avisto o prédio alto e bonito um pouco antes de ouvir a voz


robótica do GPS me informando que cheguei ao meu destino.

Enfim, em casa.

Entro com o carro no estacionamento do prédio e encontro


uma vaga; pego minha bolsa e abro a porta de trás, retiro Bernardo
ainda dormindo. Depois que colocar ele na cama, vou voltar para

buscar as caixas.

Encontro a portaria e dentro de uma cabine, um senhor


assistindo televisão totalmente concentrado.

— Boa noite... — falo, atraindo sua atenção. — Meu nome é


Robin, sou a nova moradora do 901, me disseram para pegar a

chave aqui.

Os olhos do homem se voltam para mim e ao ver que estou

com meu filho adormecido nos braços, ele logo se levanta


apressado e pega a chave de um painel na parede atrás de sua

mesa.

— Boa noite! Aqui está a chave, meu nome é Antônio, sou o


porteiro do prédio. Qualquer coisa que precisar pode ligar aqui e me
pedir.

Os olhos do velhinho parecem sorrir ao olhar de mim para

Bernardo.

— Que bela família vocês formam!

Bom, uma família um pouco pequena, mas é a que eu tenho.

Aceno agradecendo o comentário gentil.

— Obrigada, seu Antônio. Vou subir e colocar esse menino na

cama. Boa noite!

Me viro em direção as escadas, mas o senhor deixa sua


cabine e me guia até o elevador, aperta o botão do último andar e
depois se afasta.

Quando as portas se abrem diante do pequeno hall, saio com

meu filho ainda adormecido e me dirijo até a porta que dá acesso ao


apartamento. Com apenas uma das mãos, consigo com algum
esforço destrancá-la.
Passo por ela e a fecho em seguida. Uau! Está realmente
incrível.

Ouço o barulho do chuveiro e decido colocar Bernardo em um


dos sofás, antes de sair procurando o quarto. Coloco-o recostado

sobre algumas almofadas e sigo pelo corredor, abrindo as portas


uma a uma.

A primeira porta que testo está fechada e é de lá que vem o


som do chuveiro. Imagino que seja o quarto da Dominic e sigo

adiante. Abro a porta seguinte e vejo um quarto muito bem


organizado e limpo, nenhuma peça de roupa à vista, então deduzo
que este seja o meu.

Continuo me distanciando pelo corredor e entro no quarto

depois desse, preparada para encontrar o que ela organizou para


meu filho.

Mas o que é isso?

Entro e fecho a porta atrás de mim. Acho que temos um


problema...

Dominic tem um cachorro em um apartamento? Será que não


é proibido? Dou uma olhada ao redor. Não tem uma casinha, mas

uma espécie de colchonete no chão.


Me aproximo mais e vejo também os vasilhames, um cheio de
ração e o outro de água. Definitivamente um cachorro. Minha
expressão de desagrado é automática, não pelo cachorro em si,

mas pelo nome gravado nas vasilhas... Bernardo! Que horror, o


cachorro tem o mesmo nome do meu filho.

Isso é... bizarro.

— Tem alguém aí? — ouço uma voz chamando. Uma voz de

homem, aqui, dentro do apartamento. — Tem um menino no sofá!


Olha, eu estou armado!

Armado? Ai, meu Deus do céu! Meu filho sozinho com um

bandido. Senhor Deus, me ajuda, protege meu Minduim. E Dominic!

Dominic vai sair do banho e dar de cara com o bandido...

— Não toque no meu filho! Pode levar, leve o que quiser, mas
deixe meu filho em paz! — grito em resposta ao ladrão, torcendo

para que seja apenas isso, um roubo.

— Levar? Quem é você? — o homem pergunta e deixo o

quarto o mais rápido que posso. Preciso proteger meu filho com
minha própria vida, se necessário.

Com as mãos erguidas, sigo na direção da sala. Quando

passo pela porta do quarto de Dominic, percebo que o chuveiro foi


desligado, ela deve estar apavorada lá dentro.

— Dominic! — grito. — Não saia do banheiro! Tem um ladrão


armado aqui... — aviso, torcendo para que ela tenha levado o

celular junto e possa ligar para a polícia.

Celular. Deixei o meu no carro... Droga.

Quando finalmente paro na sala, o que vejo me deixa estática.

Primeiro: o homem está armado com uma panela. Sério isso?

Segundo: ele só usa uma toalha enrolada na cintura, muito à


vontade.

E terceiro, mas que não deveria sequer ser registrado aqui,

noto que o corpo dele é bastante atraente... Roubar casas tem lhe

feito muito bem.

Os olhos castanhos me fitam curiosos e seu rosto transmite

confusão. Quem está confusa aqui sou eu! Os cabelos molhados

pingam sobre o tapete e escorrem sobre a pele, sobre os braços e

ombros fortes, o abdômen marcado... Meu olhar acompanha as


gotinhas, contra meu bom senso, mas não é todo dia que um

homem seminu e molhado invade minha casa.


Ele não deveria ser um pirralho magrelo e feio? O homem

também me encara sem dizer nada, mas ao contrário de mim, seu

olhar não desce pelo meu corpo que está extremamente coberto
pelo blusão e as calças.

— Pode me dizer o que está fazendo aqui? — pergunta,

parecendo irritado.

Noto um movimento no sofá e vejo Bernardo, que esfrega os

olhos e se senta, assustado.

— Mamãe? — me chama com a voz chorosa.

— Estou aqui, Bê. — Corro para o lado dele e o abraço forte e

apenas então, olho outra vez para o homem de pé. — Eu moro

aqui... Você por outro lado está invadindo. Dominic! — grito outra

vez.

— Pode parar de gritar meu nome como se eu não estivesse

na sua frente?

Ai. Meu. Deus...


Levanto da cadeira, apressado e recolho meus materiais, jogo

o lápis e as canetas dentro do bolso da bermuda que estou usando


e pego o caderno nas mãos.

Deixo a sala, doido para chegar em casa, mas logo na porta

meus amigos me alcançam.

— Bora dar um peão? — João Vitor me dá um encontrão,

enfatizando o convite.

— Hoje não, cara. Minha mãe tá esperando... — falo,


pensando na primeira desculpa que vem à cabeça.

Ele ri, porque foi mesmo uma péssima justificativa.


— Deixa de ser besta. Sua mãe nem vai perceber que não

chegou ainda, bora lá na pracinha com os caras.

O portão da escola já está aberto, e saímos por ele em um


bando, como todos os dias depois da aula.

— Não é minha mãe — admito, encarando o mala do João

Vitor —, eu tenho que fazer umas coisas em casa.

Aprendi, tem um tempo, que quando falo a verdade, que vou

estudar, viro alvo de zoação, então prefiro dar outras desculpas.

Além disso, realmente não gosto de deixar minha mãe sozinha com
o novo namorado.

— Vai fazer o quê? — quem pergunta é outro dos moleques, o

que chamamos de Pneu, porque ele roda a cidade toda. — O


Marquinhos disse que conseguiu um lance pra gente. Mas temos

que ir na pracinha.

— Dessa vez eu passo.

A verdade é que apesar de fazer parte da turma e já ter

fumado muita maconha com eles, ultimamente os meninos têm

levado a coisa pra outro nível e eu prefiro não ir além.


O exemplo claro que eu tenho em casa me mostra que essas
merdas não levam ninguém a lugar algum e, se quero chegar onde

planejei, preciso de outro meio de transporte, que não as viagens

que são oferecidas.

— Certeza que vai pra casa? O Marquinhos chamou umas

meninas, acho que vai rolar um fervo brabo, mano — João insiste.

— Brabo sou eu, que vou jantar e dormir. Dá sossego, cara, já

falei que não vou.

Despeço-me erguendo o dedo do meio pros três e viro na

esquina, seguindo para casa como o planejado.

Pulo duas poças de água suja e subo na calçada desviando de

uma bicicleta sem freio. O cara ainda grita me alertando, mas fui

mais rápido e escapei por um triz. Continuo meu caminho


cantarolando uma música, enquanto batuco com os dedos na capa

do caderno.

Estou quase chegando em casa quando vejo minha mãe sair

pelo portão. Ela tranca o cadeado pelo lado de fora, sem perceber
que estou perto.

— Manhê! — grito, tentando chamar sua atenção, mas ela está

rindo de alguma coisa que o babaca do namorado dela falou e não


escuta. — Mãe, deixa destrancado — tento outra vez.

Começo a correr para conseguir alcançá-la, mas os dois

sobem em uma moto vermelha e desaparecem em segundos.

Merda. Estou suado e cansado quando chego diante do

portão, o cadeado parece rir da minha cara, porque vou ter que
pular o portão se quiser entrar.

Eu devia ter ido com os meninos...

Isso já aconteceu tantas vezes que tenho minhas manhas, os


lugares certos para me apoiar e escalar para cima do muro. Coloco

a ponta do pé no buraco pequeno da parede cimentada e pego


impulso, então ergo a outra perna e consigo me firmar no alto do
muro.

De dentro da casa vizinha, dona Marieta me sonda, sentada no

sofá enquanto assiste a televisão.

— Chegou, menino? Sua mãe te trancou de novo?

Abro um sorriso sem jeito, porque estou sempre pulando sobre

o muro. A velha poderia achar que quero bisbilhotar suas coisas se


não soubesse como minha mãe é.

— Levou a chave de novo, mas logo ela volta.


A mulher balança a cabeça e seus cabelos brancos sacodem

junto, reprovando. Não sei bem se é comigo ou com minha mãe,


mas prefiro não perguntar.

Pulo para dentro de casa e, por sorte, encontro a porta


destrancada. Entro na sala e jogo o caderno em cima do sofá, bem

irritado.

Meus tênis ficam no caminho para o quarto e logo já arranco


as meias também, minha parte preferida de chegar em casa é me

livrar das roupas.

Pego um short mais solto no amontoado de roupas do lado da

cama. Elas estão limpas, só não dobrei ainda e não dá para esperar
que minha mãe vá fazer isso.

Visto a bermuda e volto para a sala, olhando o relógio da


cozinha no caminho. Já são seis horas, então decido que vou

estudar um pouco e esperar minha mãe voltar para comermos


juntos.

Abro o caderno e minha prova cai de dentro dele, exibindo


meu dez azul em matemática. Se minha mãe voltar sã, vai gostar de

ver minha nota, acertei todas as questões na avaliação, mas não


tenho muita esperança de mostrar para ela hoje. Talvez amanhã,
antes de ir para a aula, eu consiga falar com ela.

Eu devia fazer comida... — penso por um momento. Posso


estudar depois que deixar alguma coisa pronta para quando ela

voltar. Minha mãe sempre volta da rua doida de fome e, se vier com
o Tininho, vai ser pior ainda.

Abandono a ideia de estudar, deixo minhas coisas no sofá e


vou pra cozinha ver o que tem pra fazer. No armário acho um resto

de arroz e coloco em cima da pia. Abro a geladeira e o congelador


para procurar o feijão, mas não tem nada, só gelo e mais gelo.

Na porta, encontro dois ovos. Tininho que se lasque comendo


arroz puro, aquele folgado.

Refogo o arroz do jeito que dona me ensinou, com Marieta


alho. Apesar da vizinha ser um pé no saco algumas vezes, pelo

menos me ensinou a me virar na cozinha, e com isso não passo


fome.

Pego a água da pia mesmo e jogo no arroz, ouvindo o chiado


quando ela atinge o fundo da panela e sentindo o cheiro bom do

tempero.
Tampo a panela e frito os ovos. Quando tudo fica pronto,
desligo o fogão e volto para a sala, finalmente para poder estudar
um pouco. Minha mãe sempre disse que eu preciso ir para a escola,

aprender e ser alguém na vida. Alguém diferente dela. E para dar a


nós dois um futuro melhor. Como se pudesse ser muito pior...

Mas é o que eu quero, sair desse lugar ferrado, levar minha


mãe para longe do Tininho e das cópias dele e também das merdas
que ela vive usando. Tenho certeza de que quando formos só nós

dois, em outro lugar, ela vai melhorar.

Vai ficar mais em casa, feliz. Ela sempre diz que só usa essas

paradas porque não tem nada de bom na vida, porque seus dias
são tristes. Mas, se nós conseguirmos, se eu me formar e trabalhar

duro, vou comprar uma casa para nós dois em outro canto, um

carrão importado... Ela vai ter muitos motivos pra ficar alegre sem

precisar se drogar.

Fecho os olhos por um instante, imaginando todas as coisas

que quero fazer. Vou ser professor... Não, professor ainda ganha

mal. Vou ser arquiteto ou um empresário fodido e aí vou comprar

uma Porsche ou uma Ferrari.


Um Legacy. Fechando os olhos quase consigo me visualizar

dentro dele, minha mãe do meu lado, bonita. Usando um daqueles


vestidos caros e limpa, saudável e nós dois cortando o céu.

— Voltei! — A voz dela me alcança ao mesmo tempo que a

porta da sala bate na parede, fazendo um barulho alto, me

arrancando do sonho e trazendo de volta para a realidade.

— Que susto, mãe... — Ergo os olhos e a vejo entrar, seguida

pelo Tininho.

— E aí moleque?

Aceno com a cabeça, porque nem consigo disfarçar que não

gosto dele.

— Fiz a janta, mãe.

Ela se abaixa, e seus cabelos pretos caem um pouco sobre o

rosto, enquanto ela bagunça os meus com a mão.

— Você é foda, filhão. Tô numa fome que comeria as paredes!

— ela fala, gargalhando alto.

Pelo som estridente da sua risada, que faz minha coluna


arrepiar, eu sei que está chapada.

— Fez pra mim também? — o babaca pergunta.


— Tem arroz pra você — respondo, abrindo um sorrisinho pra

parecer educado.

Os dois seguem rindo de alguma besteira que não dá para

tentar entender, indo para a cozinha.

Resolvo esperar que eles comam primeiro para depois comer,


mas os dois apenas pegam o prato com os ovos e vão juntos para o

quarto.

Droga.

Corro até a cozinha e vejo que deixaram só o arroz para trás.


Abro a geladeira outra vez, só para ter certeza, mas não tem mesmo

mais nada para fazer.

Eu devia ter saído com os caras...

Não consigo estudar e nem comer e, pelo visto, vou dormir no

sofá de novo.

A música vem pouco depois. O som alto com umas músicas


eletrônicas não ajuda em nada e não consigo me concentrar,

também não dá para ligar a televisão porque não vou conseguir

ouvir nada.
Deito no sofá e encaro o teto. As telhas colocadas sobre os

pedaços de madeira que mantém tudo no lugar estão com alguns


buraquinhos e, se chover, vai molhar tudo.

A música não me deixa pensar. Jogo uma almofada sobre a

cabeça para abafar um pouco o barulho e, aos poucos, o som

começa a sumir e sinto o sono chegar.

Acho que dormi mesmo, porque de repente acordo com os


gritos do Tininho e me sento, assustado. Ele deve estar batendo

nela, já aconteceu antes.

Esfrego os olhos meio sonolento, tentando me localizar, e

encontro Tininho parado em pé à minha frente.

— EU TÔ FALANDO PRA ACORDAR, PORRA!

— Que foi? — Olho para o lado, procurando minha mãe, mas

não a vejo. — Por que tá gritando?

— A vagabunda da tua mãe, aquela doida! Ela tá muito

esquisita lá na cama, eu vou me mandar, moleque. Sabe que se os


cana me acharem aqui, vai dar ruim.

— Os canas? — repito, tentando entender. — Que que

aconteceu com a minha mãe? Você bateu nela? — Levanto,


procurando com os olhos alguma coisa para jogar na cabeça dele.

Consigo ouvir o som do meu coração acelerado enquanto

assisto ao Tininho me dar as costas e sair da sala. Corro aos

tropeços para o quarto, gritando por ela que, como sempre, não
responde.

— Mãe? Manhê?

Abro a porta, o som ainda está no último e aqui dentro parece

que vai estourar as paredes. Ela está deitada sobre a cama, os

olhos arregalados e uma gosma amarela escorrendo de sua boca.

— Mãe! Que foi? — Seguro os braços dela e tento fazer com


que se sente, mas ela está muito pesada e não consigo erguer seu

corpo.

Ela não se mexe.

Ela não pisca.

Ela não respira.

— MÃE! — grito outra vez, mas não tenho resposta. —


Tininho, chama a ambulância!

Sinto o ar me faltar, meus olhos se enchem de água enquanto

no fundo da minha mente registro o que está diante de mim, ainda


que eu não aceite.

Um bolo de dor, pesado, se forma no meu estômago.

Deixo o quarto e volto correndo para a sala, mas o desgraçado


não está mais aqui. Sumiu, como o bom filho da puta que sempre

foi.

Corro para fora de casa, gritando minha vizinha no portão ao

lado. Grito e choro tão alto, que em menos de um minuto ela


aparece na porta, com os olhos arregalados pelo susto.

— O que foi, menino? — Dona Marieta olha para os lados,

procurando a fonte do meu desespero.

— É minha mãe... Ela tá passando mal e não responde.

Chama uma ambulância, dona Marieta.

— Ai, meu Deus do céu.

A mulher volta correndo para dentro de casa e eu faço o

mesmo.

Chego ao quarto, desesperado para ver minha mãe sentada

na cama, mas ela nem se mexeu.

Fecho os olhos e faço aquilo que nunca fiz. Uma oração para
que Deus cuide dela, para que tudo fique bem, mas no fundo do
meu coração, eu sei que nada mais vai ser como antes e que estava
errado quando disse que as coisas não poderiam piorar.

Dói tanto, que o ar que entra pelas minhas narinas e enche

meus pulmões parece arder, sinto como se algo dentro de mim, no

meu peito, estivesse em chamas.

Enquanto peço a Deus por ela e choro, os minutos se passam

sem que eu perceba e um pouco depois, consigo ouvir a sirene da

ambulância, cada vez mais perto.

Levanto do chão, onde tinha me ajoelhado, e corro para abrir a


porta para que os paramédicos entrem, indicando o caminho. Tudo

vai ficar bem. Eu orei e, quando as pessoas oram, Deus atende.

Dona Marieta entra também e fica de pé ao meu lado,

enquanto aguardamos que digam o que minha mãe tem. Vejo os


dois homens se olharem e um deles balançar a cabeça.

O quê? O que ele quer dizer com isso?

O barulho do meu coração disparado fica mais alto.

— Você mora só com a sua mãe, garoto? — Um deles se


abaixa à minha frente.

Faço um gesto com a cabeça, afirmando.


— Tudo bem, então. A senhora mora aqui ao lado?

— Moro, sou vizinha deles... — dona Marieta responde,


percebo que ela está a ponto de chorar.

Também não é pra tanto, ela e minha mãe nem são amigas,
não precisa tanta preocupação só porque ela desmaiou. Ela
desmaiou — afirmo pra mim mesmo outra vez.

— A senhora pode ficar com o menino? Vamos levar a mãe


para o hospital e damos notícias. Mas...

Dona Marieta afirma com um gesto, e ficamos os dois parados,


assistindo enquanto colocam minha mãe em uma maca branca.
Nenhum de nós está ansioso pelo que ele diria depois do “mas”.

Eles saem carregando a maca, e eu tranco tudo, indo com


nossa vizinha para sua casa, esperar por qualquer notícia que eles

possam dar.

Assistimos a um pouco de televisão enquanto fico olhando o


tempo todo para o telefone fixo, em um canto da sala, esperando

ansioso que ele toque e que tenha boas notícias.

Mas quando finalmente a melodia preenche a sala e dona

Marieta atende à ligação, me arrependo de ter ficado tão ansioso.


Eu preferia que ela não tivesse atendido ou que nem tivesse tocado.

Eu deveria ter saído com os caras... Teria feito alguma

diferença?
O vidro do carro que me separa do motorista é abaixado, e
vejo Borges me encarar pelo retrovisor. O trânsito está caótico, mas

pelo cenário lá fora, estamos quase em casa.

— Estamos chegando, chefe. Pra onde devo ir?

Desvio os olhos dele para encarar a moça seminua sentada ao

meu lado no banco da limusine.

Merda, não lembro o nome dela, mas também, depois de um


voo de mais de dez horas, seria esperar muito que me lembrasse o
nome da aeromoça que me deu as boas-vindas de volta a São

Paulo.

— Vamos deixar a senhorita no hotel...

Deixo o nome do hotel em aberto, esperando que ela conclua.


Vejo quando a moça ergue a sobrancelha bem desenhada e me fita,

percebendo que nosso momento acaba de passar.

Provavelmente esperava que eu a convidasse para minha

casa, mas isso nunca iria acontecer.

— No Clinton, por favor — responde, cobrindo os seios com a

saia.

Borges aquiesce e sobe o vidro outra vez, dando privacidade


para se vestir, não que ele estivesse olhando, decência é o

sobrenome dele, do contrário nem trabalharia para mim.

Aproveito o momento para ajustar minha gravata e dar uma


olhada em meu reflexo no espelho.

— Então, Teseu... — ela diz, usando meu nome como se fosse

um gemido sensual. — Seria demais esperar que me ligasse? — A

moça veste a saia com agilidade, erguendo o quadril para subir a

peça de roupa.
Abro um sorriso ao perceber que ela é mais esperta que a
maioria. Encaro os olhos azuis e os lábios grossos. Ela é um

espetáculo, não seria nada mal, mas infelizmente as diretrizes que

sigo em minha rotina são muito rígidas, firmadas por mim mesmo.

— Seria — respondo, me divertindo com o biquinho que ela faz

em uma tentativa de sensualizar —, mas não me leve a mal. Não é


nada pessoal, o sexo foi ótimo.

— Então? — insiste, querendo saber meus motivos, vestindo a

camisa branca que abraça os seios com perfeição.

— Não tenho tempo — explico, com sinceridade. — Quem

sabe nos encontramos em outro voo no futuro? Como deve saber,

trabalho muito e não posso me dedicar a você como merece.

E é isso. Não minto sobre minhas intenções, realmente tempo


não é algo que eu tenha de sobra e, o que me resta, passo em casa

com minha família.

Administrar um conglomerado de oitenta e sete lojas

espalhadas pelo país não é tarefa fácil e se quiser, e eu quero,


atingir a marca de cem lojas até o final do ano, com certeza preciso

abdicar de relacionamentos e de lazer desnecessário.


No momento, preciso otimizar meu tempo para tudo, até para o

sexo. Então por que não comer a aeromoça durante o voo e na ida
pra casa?

— Claro que sei, o CEO mais jovem do nosso país tem muitas
responsabilidades — responde, abotoando a camisa até em cima e

passando uma mão pelos cabelos revoltos.

Aquiesço, sorrindo educadamente. Elogios também não


funcionam comigo. O carro para em frente ao hotel e percebo que
ela ainda hesita por um instante.

— Foi um prazer te conhecer — digo, dando a deixa que ela

precisa para finalmente descer do carro.

— Se mudar de ideia... — A aeromoça coloca um cartão no

banco, ao meu lado e só então abre a porta para sair.

Faço um aceno afirmativo e pego o cartão.

— Claro, te ligo — respondo, enquanto assisto a Borges

descer e retirar a mala dela.

Ela sorri, confiante, afinal o sexo no banco de trás do carro foi


mesmo muito bom, mas no fundo nós dois sabemos que isso não
vai se repetir.
Não é nada contra as mulheres ou relacionamentos, não sou

um homem que sofreu uma desilusão amorosa e por isso não quer
se envolver. Não, as desilusões que sofri não são relacionadas a

mulheres, mas às rasteiras da vida, que nunca me deu cartas boas


para o jogo. Então hoje, sou apenas uma pessoa com objetivos

profissionais bem definidos e que sabe que não se pode ter tudo ao
mesmo tempo.

Borges se distancia com o carro e me fita pelo retrovisor outra


vez.

— E agora?

— Agora vamos pra casa.

Seguimos com o carro na direção de casa, e aproveito o

momento para checar meus e-mails e mensagens e me colocar a


par de qualquer novidade, mas sempre desvio os olhos para o vidro

do carro, me situando da distância em que estamos. Consigo


visualizar as ruas e percebo quando entramos no meu bairro.

Moro em um dos condomínios fechados mais caros de São


Paulo, com meu avô e meu irmão, mas acabo passando menos

tempo em casa do que gostaria. As calçadas arborizadas tornam as


ruas mais escuras, e isso traz um aspecto mais reservado ao bairro,
o que de fato ele é.

Borges não precisa parar na guarita, quando o vigia avista os


faróis da limusine, abre os portões imediatamente, e passamos por

eles.

O condomínio se estende por várias ruas e sobe uma colina

até o topo, onde ficam as casas ainda mais reservadas, como as de


celebridades, por exemplo. As mansões aqui são bem distantes

umas das outras, de modo a oferecer privacidade aos moradores,


mas a minha é a última da rua, no pico da colina, o que é ainda
melhor e, claro, tenho meus motivos para me manter isolado assim.

Chegamos diante do portão branco de casa e ele se abre.

Borges entra com o carro para a garagem subterrânea e estaciona


ao lado dos outros carros. Abro a porta e pego minha pasta com os
documentos, enquanto Borges se encarrega da minha mala.

— Deixa isso em qualquer lugar — falo pra ele —, vou subir.

Obrigado e boa noite.

Deixo-o na garagem e abro a porta lateral que conduz ao

quintal.
A lua brilha sobre a água da piscina e posso ver o leve
farfalhar das folhas das árvores. Está começando a esfriar.

Entro pela porta dos fundos e sigo pelos cômodos, procurando


por meu avô.

As luzes da cozinha estão apagadas, assim como as da área


gourmet, a sala de jantar está totalmente organizada, o que indica

que já comeram horas atrás.

— Vô?

Afrouxo um pouco a gravata apertada e sigo na direção da


sala de televisão. Posso escutar alguns sons vindos de lá.

— Música com a letra P... — Ouço a voz do meu avô e abro

um sorriso,

— Estão jogando stop de novo? — questiono, entrando na

sala.

Ele e meu irmão param as canetas no ar e erguem os olhos ao

ouvir minha voz.

— Teseu! Filho, você não disse que voltaria hoje — o velho

comenta, contente.
— Quis fazer uma surpresa. — Caminho até onde ele está,

sentado à mesa e me inclino um pouco para dar um beijo em sua


testa já enrugada.

— Estávamos com saudades, não é, Ares?

Meu irmão meneia a cabeça, se divertindo.

— De jeito nenhum. Estava ótimo aqui sem você.

— Babaca — respondo, ao mesmo tempo em que ele se

levanta para me abraçar.

Ares e eu somos um pouco parecidos, ambos temos os olhos

castanhos e os cabelos escuros, embora eu seja um pouco mais

alto e alguns anos mais velho. Mas ao contrário de mim, os traços

do rosto dele mostram claramente sua herança oriental, assim como


os de Hélio.

— Como foi em Nova Iorque? — ele pergunta, voltando a se

sentar e puxando uma cadeira para que eu me sente.

— Cansativo. Continuem o jogo de vocês que vou subir e


tomar um banho. Daqui a pouco desço e conversamos melhor.

Deixo a sala e, enquanto subo as escadas para o andar

superior, onde fica meu quarto, ouço os sons indicativos de que


retomaram o jogo de onde tinham parado.

Meu avô adora jogar stop desde que o conheço e, no mínimo

uma vez na semana, obriga Ares a entrar no jogo. Eu consigo

escapar mais facilmente, mas de vez em quando me vejo no meio


da brincadeira, sem chance de fuga, ele também é um contador de

histórias determinado, mas de um tempo pra cá parece ter desistido

de encontrar um conto que nós ainda não tenhamos ouvido.

Esse é um lado meu que reservo apenas para os dois, meu


lado mais humano, como um homem que ama a família e que gosta

de, quando possível, passar mais tempo com eles.

As pessoas de fora não conhecem essa minha versão, apenas

o Teseu implacável, que gere com punho de ferro a empresa, que


não perdoa preguiça e desordem e que leva as próprias regras

muito a sério. Não sou desumano ou mal-educado, mas também

não aceito corpo mole e nem proximidade, sendo os dois, as únicas

pessoas que me conhecem de verdade, que sabem quem eu sou e


de onde vim.

Foi assim que construí meu império, sendo reservado e

metódico e é assim que o mantenho. Poucos amigos, zero

intimidade, mas muitos aliados, afinal as pessoas não precisam


gostar de você, mas precisam te respeitar, e é isso que busco em

meus parceiros de negócios. Respeito mútuo, lucros vantajosos e


progresso.

Tudo começou com a compra de uma loja de brinquedos, mas

depois de muito trabalho duro a transformei em referência no nicho

e abri mais oitenta e seis iguais a ela. Assim, carrinho a carrinho,


boneca a boneca, transformei a Pic-Pega na maior rede do país

quando se trata de brinquedos, e nossas sacolas brancas com a

logo em vermelho e amarelo, são o sonho de consumo de toda


criança e de muitos adultos também, assim como foi o meu sonho,

quando pequeno.

Já no quarto, retiro os sapatos e sinto meus pés se afundarem

no tapete que se estende por todo o chão. As cortinas estão abertas


e me permitem ver o brilho das luzes da cidade, lá embaixo. Adoro a

vista daqui e foi um dos motivos principais por ter me apaixonado

pela casa, porque do alto dessa janela, me sinto no topo do mundo.

Retiro o paletó e jogo sobre a cama, seguido da gravata e sigo


para o banheiro, ligando o chuveiro e deixando a água cair,

enquanto tiro o resto das roupas.


Já sem camisa, fito meu reflexo no espelho, notando a barba

que está por fazer e as olheiras, que deixam claro o quão pouco

dormi nos últimos dias. Não é como se eu tivesse tempo sobrando

pra gastar dormindo.

Entro debaixo do jato quente e deixo a água atingir minhas

costas, relaxando meu corpo quase de imediato, mesmo assim, meu

cérebro não se desliga e enquanto ensaboo o corpo, começo a

pensar no que ainda preciso fazer antes de me permitir cair na cama


e dormir por algumas horas.

Preciso comer, não posso pular refeições, essa é uma das

minhas próprias regras, que levo muito a sério. Não ignoro os

horários de comer e não desperdiço alimentos.

Depois tenho que conversar um pouco com Ares e vovô e

contar a eles sobre o projeto para a filial em Nova Iorque, nossa

primeira loja no exterior e, depois disso, vou dormir um pouco.

Fecho o chuveiro e me enrolo na toalha branca. Deixo o

banheiro com o corpo ainda pingando água, indo de volta para o


quarto.

Vou dormir até as cinco da manhã. Preciso acordar cedo e

correr um pouco antes de ir para a empresa e é o único horário que


vou ter livre amanhã, porque, depois de quinze dias fora, as coisas

na matriz devem estar precisando de uma atenção especial.

Visto uma calça de pijama e desço as escadas outra vez,


voltando para a sala.

— Tomou um banho, filho? Senta aí — vovô instiga,

provavelmente me querendo no stop.

— Vou pegar alguma coisa pra comer e já venho.

Ares aponta para o prato na ponta da mesa, saindo fumaça.

— De onde saiu? — pergunto, sentando na cadeira diante do


prato.

— Esquentei pra você — responde, ainda rabiscando suas

respostas na folha branca.

— Que amor de irmão — brinco, e vejo a careta dele ao me


ouvir.

Mas é assim, desde que estamos juntos, somos uns pelos

outros. Ares e o velho Hélio não trabalham efetivamente na

empresa, ainda que tenham suas ações, mas participaram de cada


etapa, desde a compra da primeira loja — e antes disso —,

passando pelas primeiras filiais e todo o progresso.


Meu irmão preferiu trilhar o próprio caminho e por mais que
tenha me apoiado em tudo, decidiu cursar medicina, que sempre foi

seu sonho e que lhe dá os próprios rendimentos, ainda assim, não

tomo decisões sem consultar aos meus dois maiores incentivadores.

— E então? Como foi lá? — pergunta, curioso.

— Ótimo. Eles estão interessados e acho que vamos fechar o

negócio e finalmente vamos avançar para o exterior.

— Vai se mudar por um tempo? Até a loja começar a dar

retorno? — Ares questiona, mas a verdade é que ele sabe minha


resposta.

— Não. Vou mandar alguém, não posso me ausentar da matriz

tanto tempo e vocês sabem que tenho coisas a cuidar aqui, que não

posso me afastar ainda.

Os dois aquiescem. Nós sabemos que meus objetivos não são

simples, mas os dois me conhecem, sabem como comecei do zero


e cheguei até aqui e, hoje, não duvidam mais que eu consiga
qualquer coisa que me disponha a fazer.

— Vai descansar amanhã? — meu avô pergunta.


Sei que é apenas preocupação. Ele sabe que estou cansado,
do mesmo modo que também sabe que não descanso.

— Vou descansar quando morrer — respondo, abrindo um

sorriso para os dois.


Entro no refeitório cantarolando e sou recebida por vários
rostinhos sorridentes. Cumprimento todas as crianças, uma a uma,
com beijos estalados nos rostinhos delas.

Depois, sigo até nosso buffet — sim, chamo assim para causar
um impacto mais positivo nos dias que só nos resta mingau —, e
pego uma maçã da cesta.

A diretora está do outro lado, na última mesa, acompanhada

das duas funcionárias que também trabalham aqui. Somos nós


quatro, dezesseis crianças entre oito e quinze anos e um mundo
injusto que acabou por colocá-las aqui.

Caminho até a mesa dos adultos e me sento entre Pietra e


Laís, que encaram dona Beth enquanto ela conta alguma coisa às

duas, gesticulando bastante.

— E eles já vem amanhã, podem acreditar?

— Quem vem? — pergunto, tentando me informar das

novidades.
— Hoje à tarde vão chegar duas crianças, um menino e uma

garotinha e acredita que já tem um casal esperando pela menina?


Vão vir amanhã, querem conhecer.

— Hum, é novinha? — questiono, já imaginando a resposta.

As crianças com mais de seis anos dificilmente são adotadas,

a maioria dos futuros pais estão doidos pela ideia de ter um bebê

em casa ou uma criança que não vá ter lembranças do passado. E

eu entendo, juro que sim, mas não é muito justo com os maiores.

Uma dura realidade que aprendemos aqui: o mundo não é


justo.

Nenhuma delas me responde de imediato, mas noto pelos

olhares que tem algo errado.

— O que foi? Algum problema com a menina?

— Não, não... — Beth meneia a cabeça, dispensando meu


comentário. — Só me assusto com a rapidez desse povo quando se

trata de crianças pequenas assim. Ela tem um mês, Lívia.

Paro a maçã a caminho da boca, chocada. Faz tempo que não

recebemos aqui um bebê tão novinho e é, na verdade, bem natural

que tenha alguém interessado, que tenha uma fila, até.


— Não vai ficar aqui por muitos dias, então — respondo.

— Não — ela responde. Sua expressão deixa claro que ainda

tem algo a dizer, mas ela hesita um instante, antes de assumir a

verdade —, é bom que não tenham chegado muitos bebês, nossa

situação não está nada fácil, os doadores não estão ajudando muito

e bebês dão muito gasto.

Laís concorda, parecendo tão derrotada quando Beth.

— Conseguimos leite para o mingau, mas o dia das crianças


está chegando... Só espero que nenhum deles se lembre, porque

não temos condições de comprar nada.

— Não se preocupem com isso, vamos dar um jeito. Sempre

damos — respondo, voltando a comer e aproveitando para olhar no

relógio. — Inclusive, tenho uma entrevista de emprego agora, se


tudo der certo, vou trabalhar por meio período e usar o dinheiro para

ajudar aqui. Me desejem sorte!

As três abrem sorrisos sinceros, sei que estão torcendo por

mim. Apesar de ajudar muito no dia a dia, uma renda vinda de fora
hoje, ajuda mais que minhas mãozinhas aqui, pegando no batente.

— Vai dar tudo certo, menina, mas não acho justo trabalhar

fora e colocar tudo aqui — Beth remexe o próprio prato,


desanimada.

— Não tem outra coisa mais justa. Eu fiquei aqui por anos,

sendo sustentada por você e pelos doadores, não foi? Depois saí e

voltei exatamente por isso, porque quero ajudar essas crianças,


assim como me ajudaram um dia, e é o que vou fazer. Esse lugar é

meu lar, Beth. Devo tudo a vocês, se hoje me formei e posso


conseguir um emprego melhor, foi porque todas vocês me apoiaram,

trabalharam dobrado pra que eu pudesse estudar... Nada é mais


justo que isso.

A diretora tem lágrimas nos olhos. Beth já está velhinha e se


lembra de quando cheguei aqui, tantos anos antes, sem uma família

e fui acolhida por esse lugar, que acabou se tornando especial para
mim.

— E onde é a entrevista? — Pietra pergunta, ela é um pouco


mais velha que eu e trabalha como voluntária no orfanato, meio

período todos os dias.

Laís e eu trabalhamos integralmente e dormimos aqui e, em


teoria, recebemos um salário, mas a verdade é que deixamos
praticamente tudo aqui mesmo.
— Em uma firma de contabilidade, lá na Paulista — respondo,

me levantando. — Acham que estou bem-vestida?

— Está linda, Lívia. A vaga é para administrar a firma?

— Ainda não, Pietra. Mas eu chego lá, por enquanto, se der

certo, vou trabalhar como assistente, mas vou ganhar experiência e


o salário não é muito ruim. Eu ligo pra contar assim que acabar, tá

bom?

Pego minha bolsa, que coloquei sobre a mesa, e arrumo o

conjunto social que estou usando. É a mesma roupa que usei no dia
da formatura e ficou guardada desde então, mas é o que tenho de

mais sério e apresentável e acho que passa uma boa imagem, me


faz parecer mais velha.

Tenho vinte e três anos, não é como se fosse uma criança,


mas muitas pessoas nesse ramo são mais conservadoras e podem

me achar jovem demais.

Como em todas as vezes que preciso ir um pouco mais longe,


pego o metrô, o modo mais econômico e rápido. Às vezes, preciso
lidar com uma galera que esquece o desodorante. Isso pode

prejudicar minha apresentação aromática na entrevista? Com


certeza. Mas não tenho a menor condição de pegar um Uber com a
grana que pode render um quilo de salsicha para as crianças.

Depois é só economizar para o pão e o molho e tcharan!


Podemos ter um cachorro-quente no fim de semana.

Desço na estação da Consolação e sigo a pé, caminhando


para o endereço que anotei no celular.

A rua está abarrotada de pessoas, andando de um lado para o

outro, e percebo o prédio alto, antes de me dar conta do número. É


esse.

Aproveito o vidro de um carro estacionado à minha frente para


prender uma mecha dos cabelos claros que se soltou do coque

rígido, e passo um batom clarinho nos lábios. Abro um sorriso para


a minha imagem e, então, entro no prédio, torcendo para que hoje
seja um dia bom.
Eu tinha quatro anos quando cheguei ao orfanato, e meu irmão
Otávio tinha quatorze.

Passamos por um período difícil antes disso e por outros

tantos, depois. Nossos pais haviam morrido em um acidente de


moto, pouco depois que nasci. Desde então, fomos criados por

nossos avós maternos, mas quando meu avô faleceu, minha avó
não durou muito, os dois eram apaixonados, e ela sentiu sua falta

de tal forma que acabou não resistindo.


E então veio o conselho tutelar, que era tudo o que nos

restava. Apesar de Otávio ser bem mais velho que eu, ainda não
tinha dezoito anos e fomos encaminhados para o mesmo orfanato.

Lembro como se fosse ontem.

— Então vocês são Lívia e Otávio. É um prazer receber vocês

aqui! — A diretora nos encarava com um sorriso imenso no rosto.

Nessa época, Beth era mais jovem, mas já tinha os cabelos

grisalhos que ostenta bem branquinhos hoje em dia.

— É Lili — respondi, baixinho.

— Lili? Prefere ser chamada assim, meu bem?

Afirmei com um gesto de cabeça, amedrontada com o lugar, as


pessoas desconhecidas e com o que viria dali em diante.

Otávio apertou minha mão bem forte, e me senti mais calma.

Meu irmão sempre havia sido protetor comigo, mas desde que
anunciaram que seríamos mandados ao orfanato, ele não saía mais

do meu lado.

Ele me olhou, transmitindo segurança em seus olhos azuis e

gentis, iguais aos meus. Otávio era um menino lindo, se parecia

com um anjo e realmente agia como um.


— Muito bem. Vamos esperar um pouquinho mais e já levo os
dois até seus quartos, temos um outro rapazinho chegando — Beth

disse.

Ela saiu de trás de sua mesa e se colocou à nossa frente,

enquanto esperávamos e, realmente, poucos minutos depois, outro

garoto passou pela porta, acompanhado de uma mulher que se


vestia toda de preto.

— Bom dia, Beth — a mulher cumprimentou —, esse é o

Jonas, ele foi encaminhado para cá.

Entregando uma pasta preta nas mãos da diretora, ela se

voltou para o garoto que devia ter a idade de Otávio ou um pouco

menos e sorriu.

— Muito bem, Jonas. A Beth vai cuidar muito bem de você,


esse lugar é ótimo e tenho certeza de que vai acabar gostando.

A cara dele não parecia das mais animadas e acho que

também queria chorar, assim como eu, mas se manteve firme,

apesar das lágrimas que enchiam os olhos pretos dele.

A mulher deixou a sala e ficamos a sós. A diretora e nós três.


— Bom, esse é o Jonas — ela informou, mas já sabíamos

disso —, e, Jonas, essa é a Lili e o irmão dela, Otávio.

Otávio cumprimentou o menino com um gesto de cabeça,

enquanto eu apenas me escondi atrás dele.

— Vocês têm quase a mesa idade, então vão ficar no mesmo


quarto. A Lili vai para um quarto com outras duas meninas.

— Ela não pode ficar comigo? — meu irmão insistiu, e senti


ainda mais vontade de chorar.

— Separamos os quartos das meninas, Otávio. Sei que você

entende que não é bom para sua irmãzinha, ficar no mesmo quarto
que outros rapazes, mas fiquem tranquilos, podem passar o tempo
de vocês juntos e se separarem apenas na hora de dormir. Além

disso, esse lugar não é tão grande. Vão estar sempre perto.

Otávio olhou para mim e então se abaixou à minha frente,


apoiando as mãos nos joelhos para ficar da minha altura.

— Não se preocupe, Lili. Vou sempre cuidar de você.

E realmente cuidou. Desse dia em diante, Otávio e Jonas


estavam sempre juntos, se tornaram melhores amigos e onde eles
iam, eu os seguia de perto; não apenas meu irmão fazia o possível
para cuidar de mim, como Jonas também me protegia de todas as

formas possíveis.

O orfanato se tornou meu lar e, com ele, nossa família


aumentou. Nós éramos inseparáveis, fazíamos tudo na companhia
uns dos outros, incluindo nossos planos para o futuro, mas, em um

dado momento, as coisas saíram do nosso controle e eu os perdi.

Agora, tantos anos depois, me vejo diante de duas crianças


recém-chegadas ao orfanato e outra vez tenho que controlar as

lágrimas para não chorar.

— Por que não me disse? — pergunto, encarando Beth no

escritório a portas fechadas.

— Não encontrei um modo de dizer, sabia que iria reagir

assim.

Desvio os olhos dela para encarar as criancinhas. A bebê, tão


pequenininha, segura o dedo do irmão com mais força do que

qualquer um julgaria possível, mesmo no sono.

— Mas... São muito novinhos. Tem certeza de que não têm

uma avó? Uma tia, talvez.

— Tenho, Lívia. São só os dois.


Fito a bebezinha adormecida no carrinho e o garotinho sentado
no banco ao lado dela, quietinho. Ele nem mesmo chora e parece
não entender bem como sua vida acaba de mudar tão

drasticamente.

— Quantos anos ele tem?

— Faz três em dois meses.

Meus olhos se enchem um pouco mais. Os dois são mais

novos do que eu era quando cheguei e já não foi fácil para mim.

— Em dois meses aquele casal que você disse já vai ter

adotado a bebê e deixado ele aqui, sozinho. Isso não é certo. Vão
separar os dois!

Beth suspira alto, mas seu olhar é resignado, ela já se


conformou.

— Sei como isso é pessoal pra você, Lívia. Mas é uma coisa

que cabe ao juiz decidir, não podemos forçar uma decisão dele,
tampouco obrigar o casal a adotar os dois.

— E nem devemos. São crianças, se os pais não as quiserem


de verdade, não vai ser uma família. Mas não tem um jeito de
esperar um pouco mais? Talvez surjam outras pessoas que vão
querer os dois.

— Ainda não tem nada certo. O casal está na fila de adoção,


são os próximos, mas ainda não foram devidamente analisados, vão

vir aqui apenas para conhecer a menininha.

Bato o pé no chão, encarando as duas crianças à minha frente,

tentando pensar em alguma maneira de os ajudar para que fiquem

juntos. Assim, ainda que não tenham a família mais amorosa do


mundo, terão sempre um ao outro, mas separados, vão perder o

único laço de sangue que possuem.

— Eu vou para a entrevista — aviso, de repente me dando

conta da hora —, mas ainda vou pensar sobre o assunto, não posso
me atrasar.

— Não tem o que pensar, Lívia. Isso não cabe a nós decidir. —

Ela me fita com ternura, mas então parece se dar conta do que eu

disse. — Você não foi à entrevista ontem? Como não disse nada,
presumi que não tivesse dado certo e nem quis perguntar.

— Acredita que o cara que ia me entrevistar tinha saído? Pediu

para que voltasse hoje depois do almoço.

— Então vai...
Olho mais uma vez para as criancinhas, hesitando.

O garotinho tem uma chupeta na boca e me fita com os


olhinhos verdes, curiosos. Ele tem os cabelos claros como eram os

do meu irmão.

— Ai, Beth... São tão fofos. Tem leite aí?

— Tem um pouco, mas a bebê vai precisar de fórmula. Vou

comprar com o que ainda temos em caixa.

— Tá bom, na volta eu fico com eles um pouco.

Ela não me responde, não deve achar uma boa ideia, então

pego minha bolsa e saio antes que decida me dizer isso.

Hoje o dia não está ensolarado. Na verdade, está chovendo

muito e, no curto trajeto que faço até a estação de metrô, molho


meu cabelo quase que completamente.

Aproveito o tempo para rearrumar o coque de um jeito que

pareça aquele molhado natural — Nossa, acabei de sair do banho!

—, e seco, com as mãos, o blazer e a saia, que por sorte são


pretos, o que facilita para não parecerem tão úmidos.

Quando deixo o metrô e saio para a rua, a chuva ainda não

parou, mas ao menos diminuiu. Então sigo a passos rápidos para o


prédio, antes que fique encharcada ou que perca o horário.

E é então que três coisas acontecem.

Se ontem o dia parecia bom, o de hoje foi criado para o caos

absoluto, ou talvez sejam só coincidências absurdas, ou, ainda, meu

azar decidiu que hoje é dia de reinar sobre a sorte e a calmaria.

Piso na faixa de pedestres para atravessar, mas um carro

preto desses caríssimos, decide que tem prioridade e passa na

minha frente. O maldito espirra água para todos os lados, mas de

alguma forma a água parece determinada a me usar de foco e cai


toda em cima de mim.

Abro a boca, com a surpresa e acabo engolindo parte da água

tão limpa quanto a de esgoto e olho para minhas roupas,

completamente arruinadas.

Estou ensopada, suja e desgrenhada, mas não adiantou

absolutamente nada para o carrão, porque o semáforo fechou e a

maldita Porsche teve que parar.

Caminho alguns passos até estar no meio da rua e começo a


gritar com ele, esperando que me ouça. Não que seja uma atitude

muito madura, mas estou irritada, e o dia já começou muito mal

desde que abri os olhos.


— Seu idiota, olha o que fez! Jogou água em mim, cretino! Seu

carro caro tem prioridade na faixa de pedestre? Babaca!

O sinal abre e, temendo ser atropelada, corro para o outro lado

da rua, mas mal piso na calçada e consigo a proeza de enfiar o salto

em um buraco, quebrando-o em meio à avenida Paulista.

Inferno! Como eu vou para a entrevista assim? Sem sapato e

molhada da cabeça aos pés?

Puxo o sapato, tentando me soltar do buraco, mas o maldito

não sai. Tento uma, duas e na terceira tentativa consigo me soltar,

mas me desequilibro e, adivinhem? Caio em cima de uma garota,

que tem nada menos que um copo de café na mão.

A água ainda podia passar, mas como vou me livrar da

mancha de café?

— Ah, nossa! — a menina grita.

Faço um gesto indicando que não precisa se desculpar, mas

ela franze o cenho e me olha irritada. Enquanto isso, tento


desgrudar a blusa do corpo, evitando me queimar por muito pouco.

— Você derrubou todo o meu café! — Emburrada, ela me dá

as costas e volta pelo caminho que veio, antes que eu me ofereça


para pagar pelo café.

Graças a Deus, porque eu não tinha mesmo dinheiro se ela

aceitasse.

E então, descabelada, suja, molhada, cheirando a café e com

um pé de sapato na mão, me vejo diante de um impasse. Ir à


entrevista e com certeza perder a vaga, ou tentar remarcar?

E é então que percebo onde estou, diante da Pic-Pega, a

matriz da rede de lojas de brinquedos, e não só isso, um dos

lugares que mais amo no mundo.

Choramingando, passo pelas portas duplas, altas e sinto


imediatamente meu corpo ser envolvido pelo calor do ambiente. É

tão lindo, tão aconchegante e nostálgico, que quase choro de

verdade ao pisar dentro da loja.

Uma vendedora caminha na minha direção, mas acho que


desiste ao constatar meu estado, então tiro o outro sapato, porque

fico melhor andando descalça do que mancando em cima de um

sapato só, e caminho por entre as prateleiras intermináveis de


brinquedos.

Ah, esse lugar é mágico. Amo caminhar por entre os

corredores desde que eu era criança e não podia comprar nada.


Não que essa parte tenha mudado, ainda não posso comprar. A

matriz da Pic-Pega tem um significado tão forte para mim que a loja
já é tão minha quanto do dono, ele só não sabe disso.

Dentro da bolsa, alcanço meu celular e digito o número da

firma para qual estava indo, antes do desastre total.

— Oi — cumprimento assim que atendem —, aqui é a Lívia.

Eu tenho uma entrevista marcada com vocês em... — Olho o relógio


fixado na parede da loja. — Quinze minutos, mas aconteceram

alguns imprevistos, com a chuva e tudo. Será que existe a

possibilidade de remarcar?

Ouço por alguns instantes a secretária discursar sobre como


minha presença é imprescindível, caso queira o emprego, e que na

próxima semana a vaga já terá sido preenchida.

E então não ouço mais muita coisa. Diante de mim está ele,

Teseu Demetriou, o homem mais incrível dessa cidade e talvez, do


país.

É claro que o reconheço de imediato, não apenas pela

presença física, porque o homem é um tremendo gato, o pecado

ambulante, mas porque é o dono da Pic-Pega e o mais jovem CEO


do Brasil, ao menos de acordo com a última entrevista dele a que
assisti. Vi até o final, por mais de uma hora, apenas pela trama,
claro.

Lógico que não teria melhor dia para encontrá-lo, causar boa

impressão no dono da loja que eu mais amo no mundo.

— Por que isso está exposto aqui? — Ele não está falando
comigo, na verdade nem me notou ainda, o que é um feito e tanto

considerando que pareço uma doida que invadiu a loja com

intenções nada dignas.

— Eu... Não sei, senhor — a pobre vendedora gagueja —,


onde deveríamos colocar?

— Em algum lugar que dê mais destaque. Conferi as vendas

ontem mesmo e não vi saída, sendo que uns anos atrás elas eram

nosso produto que mais vendia.

Fito a prateleira a qual ele se refere e me deparo com bonecas

enormes, aquelas que são feitas para se parecerem com crianças


em tamanho real e que um dia já foram mesmo meu sonho de
consumo, caríssimas e totalmente fora do meu alcance.

O problema é que elas não fazem nada. Não falam, não


cantam ou andam e os brinquedos modernos tem milhares de
funções, o que acaba atraindo mais. Deixar as bonecas escondidas
também não ajuda.

— Senhorita Lívia? — a mulher chama ao telefone. — Se não

estiver aqui em quinze minutos, não precisa vir.

Ouço o som do telefone sendo desligado na minha cara e


suspiro olhando para a rua. A chuva voltou a cair forte e se eu sair

agora vou chegar lá pingando água. Não tenho a menor chance.

— As meninas não querem mais, senhor Demetriou, elas não

fazem nada... — a vendedora tenta explicar.

Fito o perfil magnífico do homem e o analiso por um instante.

Já perdi mesmo a entrevista, posso me dar ao luxo de secar o


bonitão para melhorar meu dia, nunca o tinha visto assim, ao vivo e
a cores, e a realidade parece mais impactante que a versão das

câmeras.

Os cabelos escuros são bem aparados na altura da nuca, mas


são maiores em cima. A barba está crescendo e molda o queixo

dele, deixando seu rosto mais sério. Não posso ver seus olhos, mas
já os vi na televisão algumas vezes e sei que são escuros.
Ele está usando terno, perfeitamente alinhado ao corpo. E que
corpo! Seus ombros fortes parecem a ponto de rasgar o tecido do
paletó e a calça... Meu pai amado, que calça é essa?

Volto os olhos para cima, determinada a ver os olhos dele, e


me deparo com as duas jabuticabas fixas em mim, me encarando

com curiosidade.

— Você está bem? — ele pergunta, olhando para os meus pés


descalços.

— Ah... Sim — respondo, lutando para não gaguejar. — Tive


uns probleminhas na rua, com a chuva.

Nunca me senti tão envergonhada na vida.

— Probleminhas? É um eufemismo.

— Hum, acho que sim — concordo.

A vendedora aproveita a distração para fugir, e me sinto


incomodada com a forma como ele me encara. Não é com desejo,

longe disso, seria muito melhor que fosse, mas como se eu fosse
realmente a doida que invadiu a loja.

— Eu não sou louca — me apresso a explicar e vejo sua


sobrancelha se erguer, esperando.
— Não disse que era.

— Eu estava indo para uma entrevista de emprego e quando

fui atravessar a rua, um babaca passou em uma Porsche na faixa


de pedestre, acredita?

Ele agora tem o cenho franzido.

— Não sei por que, mas acredito.

— Pois é, passou em uma poça de água e me molhou toda.

O homem apenas aquiesce, sério, ainda me olhando de um


jeito que deveria ser proibido.

Por que tão lindo enquanto eu pareço o monstro de uma


mansão mal-assombrada?

— Imagino que tenha arrancado os sapatos para jogar nele...

— Não! Claro que não. Corri para a calçada e meu salto


prendeu, se quebrou e caí em cima de uma moça.

— Não parece ser seu dia de sorte.

— Como pode ver pelo estado da minha roupa, a garota

estava com café nas mãos — concluo.


Não sei por que estou contando tudo assim, ele nem mesmo

parece interessado em ouvir, mas sinto que devo uma explicação


antes que eu seja expulsa daqui e proibida de voltar.

— Sinto muito — Teseu responde e então se vira outra vez

para a prateleira, me ignorando.

Ele parece procurar a vendedora com os olhos, mas não a

encontra por perto.

Por algum motivo, o homem continua ali, fitando as bonecas,


pensativo. Parece que se importa mesmo com o fato de não

venderem mais tão bem.

— Sabe, quando era criança, eu amava essa boneca...

Ele me olha de esguelha, mas não responde nada, como se


perguntasse o que ainda estou fazendo aqui.

— As garotas adoravam saber que podiam ter uma amiga do

seu tamanho, em casa. Vocês fazem comerciais na televisão, não


é?

Dessa vez ele ao menos balança a cabeça, concordando.

— Então, deveriam incluir os brinquedos antigos em uma


campanha, mostrar como são divertidos. Tenho que certeza de que
vão voltar a vender. Talvez possam falar sobre o poder da
imaginação das crianças para criar cenários incríveis e histórias
fascinantes, e isso pode estimular os pais a comprarem. Pais

gostam que seus filhos se desenvolvam, mas os brinquedos novos


entregam tudo muito fácil.

Isso chama a atenção dele, que pousa aqueles olhos incríveis

sobre mim outra vez e vou dizer, se eu já não tivesse um amor


eterno, me apaixonava agorinha.

— Você já trabalhou com brinquedos?

— Não — respondo, dando de ombros.

— Como entende tanto sobre eles?

— Eu adoro brinquedos e, além disso, lido com crianças todos


os dias.

— É professora, então?

— De certa forma, mas sou formada em administração de

empresas. Tinha uma entrevista até... Você sabe. — Aponto para as


roupas outra vez.

— Eu tenho uma vaga temporária — ele diz, assim, de

supetão. — Cheguei de viagem e encontrei isso aqui de ponta


cabeça e minha assistente entrou de férias sem que os idiotas
arrumassem alguém pra ficar no lugar dela. Mas é só por um mês.

— Está me oferecendo o trabalho? — pergunto, arregalando


os olhos.

Como assim, gente? Contratam as pessoas agora sem nem

perguntar o nome?

— Bom, eu preciso de alguém com urgência, suas ideias foram

boas, se você está dizendo a verdade sobre a faculdade, então tem


as qualificações necessárias e além disso, é só um mês. Não dá pra
bagunçar tanta coisa nesse prazo, suponho.

— É, mas... Eu estou descalça, você não fez nenhuma


entrevista comigo e isso parece um milagre. Por que você daria um
emprego a alguém completamente encharcada e suja?

— Porque fui eu que a deixei assim e gosto de fazer milagres.

— O quê? — Esse homem pode ser lindo e milionário, mas

não parece bater muito bem da cabeça.

— Prazer — Ele coloca as duas mãos nos bolsos da calça e

quase sorri —, sou Teseu Demetriou, CEO da Pic-Pega e


proprietário de um Porsche preto nas horas vagas.
ASHTON

Está muito quente aqui. Estou suando e, honestamente, não

me sinto muito bem.

Ao abrir meus olhos, percebo que a luz do sol escaldante entra


pela janela e inunda o cômodo, a cama e todo meu corpo. Aí está a

fonte de tanto calor.

Quem abriu a cortina a esta hora? Olho ao meu redor e só

então percebo que não reconheço o quarto. Não estou na minha


cama e com certeza esta não é minha casa.
Viro-me de frente e observo que os móveis são sofisticados,

mas bastante impessoais. Provavelmente estou em um hotel e, se


estou aqui, alguém se deitou na cama comigo. Só não faço ideia de

quem. Tento encontrar minha companhia deixando que meus olhos

percorram o cômodo, mas minha cabeça dói exageradamente.

Que porra de ressaca infernal é essa? Nunca tive igual.

Enquanto tento me lembrar de onde estou ou de como vim

parar aqui, percebo um movimento sutil, não ao meu lado, mas


embaixo do lençol.

Tem alguém se aproximando do meu bem mais precioso.

Levanto a ponta do tecido apenas para confirmar suas

intenções e vejo um sorriso se abrir no rosto perfeito. Tenho certeza


de que já vi esses cabelos loiros e essa boca sexy, mas quando

tento me concentrar para recordar seu nome, ela envolve meu pau

com sua boca gostosa. Uma das maiores vantagens de ser um astro

do rock é que tem sempre alguém disposto a satisfazer seus

desejos, sejam lá quais forem.

Apoio minha cabeça, que está rodando um pouco, no encosto

da cama e instintivamente levo minha mão para os cabelos fartos.


Enrolo a cascata dourada em meu pulso e impulsiono a mulher para
me levar cada vez mais fundo, direto para a garganta.

Se existe maneira mais agradável de despertar, eu

desconheço. Seria melhor se eu me lembrasse de quem ela é ou se

minha cabeça não parecesse um vulcão prestes a implodir, mas

mesmo assim não vou dizer que não é bom.

A gostosa sabe exatamente como fazer e me suga cada vez

mais forte, lambendo enquanto solta grunhidos de satisfação. Estou

fodendo sua boca. Ao que parece, meu pau é doce.

Ela aumenta o ritmo, subindo e descendo rapidamente, toca a

cabeça do meu pau com a língua e em seguida desce até a base,

para logo depois abocanhá-lo outra vez.

Poderia esperar um tempo, divertir-me com ela um pouco, mas


a dor de cabeça está tirando minha concentração, então resolvo

acabar com isso logo e me derramar em sua boca rápido.

Brinco com seus seios, que se balançam para frente e para

trás enquanto ela chupa, e me preparo para gozar gloriosamente.


Infelizmente, sou interrompido.

Um homem irrompe pela porta gritando e agarra a mulher

pelos mesmos cabelos que antes eu segurava, atirando-a no chão.


Eu o reconheço instantaneamente. Esse rosto eu jamais

esqueceria. Já recebi inúmeros prêmios de congratulações e


diversas honrarias das mãos dele. Muitas vezes partilhei de cafés

agradáveis e de jantares sociais em sua companhia.

Ele é o prefeito da porra da cidade. E a gostosa que tinha meu

cacete na boca? A primeira dama.

Neste momento, tenho apenas três certezas.

A primeira é que nunca mais serei convidado para passeios de

fim de semana no iate do prefeito.

A segunda é que não sou traíra. Perdi as contas de quantas


investidas ela havia feito e eu heroicamente rejeitei todas elas.

E a mais surpreendente de todas é que a filha da puta


finalmente conseguiu me pegar de alguma maneira. Se minha

cabeça estacionasse de uma vez, eu conseguiria me lembrar do que


aconteceu.

Candice! Agora me lembro do nome. Já é alguma coisa.

Perco alguns segundos analisando minhas possibilidades e


percebo que não existem muitas.
Levanto-me da cama para encará-lo e a situação fica ainda

pior quando percebo que seu olhar recai sobre meu membro duro. O
que ele esperava? Cubro-o rapidamente com o lençol maculado

pelo pecado dessa vadia.

— Joseph, vamos conversar. Eu sei que parece difícil

acreditar, mas não faço ideia de como vim parar aqui…

Tento justificar, porém, as palavras são muito vagas diante da


cena que ele acaba de presenciar.

— Sério, Ashton? Achou que se ela te chupasse ajudaria a se


lembrar? E você, Candice? É isso que queria? Um homem que não

tem mais espaço limpo no corpo para se tatuar e que se mete em


tudo que é buraco?

Certo e errado. Eu deveria mesmo ter reconhecido a boca


nojenta. Gostosa, mas nojenta. Só que ainda tenho algum espaço

vago e muitas ideias para novas tatuagens. Além disso, essa


história de que me meto em tudo que é buraco é exagero dos

paparazzi, pois na verdade sou bem seletivo.

Joseph, por outro lado, é todo certinho; o terno alinhado e os

sapatos lustrados. Não vou dizer que o cara é feio, ele até é bonitão,
mas somos completamente diferentes. É até estranho pensar que
uma mesma mulher se interesse por nós dois.

— Não, eu… não sei o que está acontecendo aqui. Quer dizer,
sei exatamente o que é, mas eu não me lembro de ter vindo até

aqui. Cara, eu sou canalha, admito, mas nunca cheguei a esse


ponto. Nós somos amigos.

Ele não aceita mais explicações, até mesmo porque seria um


imbecil se acreditasse em uma palavra do que eu estou dizendo, por

mais sincero que eu esteja sendo neste momento.

O primeiro soco é dele e me atinge com força no queixo. Por

mais que eu dê toda razão ao prefeito e entenda que é necessário


que ele defenda sua honra, não posso apanhar sem me defender.

É como se fosse mais forte que eu. Jamais dispenso uma boa
briga e explodo sempre que sou minimamente provocado. As

pessoas dizem que tenho pavio curto, já eu diria que ele nem existe.
Por mais que queira ficar na minha e mereça mesmo apanhar, não

consigo ficar parado enquanto o vejo despejar todo o ódio que está
sentindo sobre mim. É só pelo meu orgulho que revido.

Infelizmente, quando o azar vem, parece que a desgraça entra


na fila.
Ele é lançado para trás com meu soco. Merda, acho que bati
muito forte. A porta se abre com o impacto do corpo dele contra ela.

Eu me aproximo do homem sem saber mais quais minhas


intenções, se soco o cara ou se o ajudo a se levantar, mas Joseph

ainda não desistiu. Ele me dá um chute no saco. Que tipo de


homem dá um chute no saco de alguém que está pelado? Isso é
golpe muito baixo.

Como o merda que me sinto neste momento, eu me encolho


de dor e tropeço na porra do lençol, caindo de cara no chão do

corredor do hotel.

Claro que algum idiota tinha que ter chamado a imprensa.

É assim que Ashton Ray conquista mais um tabloide. Não

preciso nem perguntar, isso é grande demais para que aceitem


qualquer suborno.

O vocalista da Dominium, pelado no corredor de um hotel

qualquer, engalfinhando-se com o prefeito da cidade porque fodeu a

primeira dama. Jamais iriam abafar o caso.


Estamos reunidos no escritório. O assunto se tornou sério o

bastante para forçar até mesmo Tray a se levantar antes das três da
tarde e estar presente. Nosso agente, Carter, está de pé na minha

frente e sua expressão demonstra toda a insatisfação que sente

com minhas últimas façanhas.

Sentados ao meu lado no enorme sofá de couro branco estão


Tray e Josh. Juntos, nós somos uma das mais famosas bandas de

rock atual. Todos sabemos que meu deslize pode causar muitos

inconvenientes.

Minha irmã mais nova, Anelyse, está de pé perto da janela.


Não sei exatamente quem a chamou até aqui e nem por que sua

presença é necessária. Talvez tenham pensado que eu fosse me

envergonhar das minhas atitudes caso ela estivesse presente. A


verdade é que no último caso não há muito do que me envergonhar.

Eu não levei aquela desgraçada para cama, tenho certeza disso.

Como vou provar isso já é outra história.

— Ashton — Carter começa e já sei que o sermão terá início


—, essa não é a primeira manchete sua nesta semana.

Tento lhe oferecer meu melhor sorriso.

— Isso é bom, certo? Precisamos nos manter em destaque.


Ele continua sério.

— Isso não pode nem remotamente ser considerado algo bom.

Quem sabe se estivesse salvando um filhotinho de uma árvore? Ou

resgatando uma jovem de um incêndio? Até mesmo lotando um


estádio para um show! Mas todas as suas últimas doze manchetes

incluíram atos ilegais ou imorais, ou no mínimo inadequados.

Tray abafa uma risada com a reprimenda. Ele adora quando a

bronca é para mim.

— Carter, eu nunca peguei a mulher de ninguém. Deixo as


comprometidas pro Tray. Não seria agora que eu iria começar,

certo?

— Sempre tem uma primeira vez para tudo. Sem falar que

ninguém vai acreditar em você com seu histórico.

Começo a ficar irritado.

— Com meu histórico? Claro que todo mundo vai preferir

acreditar na doce primeira dama. Aquela vaca me fodeu, cara! Eu

não sei como, mas ela armou pra mim.

Tray me olha e sorri com sarcasmo. É incrível como ele leva


tudo na brincadeira.
— Acontece que você é o vocalista de uma banda de rock. De

rock, cara.

— Sério? Acho que não tinha percebido ainda.

— Não tá me ouvindo, Ash — Tray continua falando. —

Enquanto você é uma estrela do rock, ela é a esposa do prefeito.

Sempre faz caridade e tem o rosto de um anjo. Eles são

considerados o casal mais incrível na política atual.

Josh finalmente se pronuncia e não ajuda em nada.

— Você está ferrado, Ash. Ela é o retrato da inocência.

Olho para os dois, assustado. Parece que ficaram loucos.

— Um anjo? Retrato da inocência? A mulher é o diabo! Ela

tem me perseguido há meses e eu resisti bravamente, mas aí


aquele capeta deu um jeito de fazer isso tudo e agora o culpado sou

eu.

Tray gargalha.

— Sinto muito, Ash. Você parece um cordeirinho em apuros,

mas não vai convencer.

Estou definitivamente ficando preocupado.


— E o que acontece agora? Já passamos por polêmicas antes,

por que estão tão preocupados?

Carter balança a cabeça negativamente e sei que as notícias

serão desanimadoras.

— Porque ele está te processando, Ray. Um processo do


prefeito da cidade. Eu sei que seu sucesso é muito maior que

Seattle, mas a repercussão desse caso será péssima para a banda.

Diante do público, o homem vai pintar você como um demônio.


Nossa melhor chance para salvar a imagem da Dominium é

conseguir um acordo e, para que isso aconteça, você terá que se

tornar um santo. Vou pedir um toxicológico e torcer para que

encontrem mesmo alguma droga no seu organismo.

Observo Tray e Josh atentamente, esperando que eles

comecem a rir ou algo assim, porque obviamente isso é uma piada.

Só que ninguém está rindo além de mim.

— O quê? Tá falando sério? O Joseph está me processando

pelo que exatamente? Faz anos que adultério deixou de ser crime e,
mesmo que ainda fosse, eu não sou casado com ele.

— Tem razão, mas o processo dele é por danos morais. Ele

alega que você manchou a imagem pública dele, o humilhou diante


de todos com sua virilidade e agora tem que arcar com o prejuízo de

seus atos. A indenização que ele pede é de cem mil dólares.

Agora é um bom momento para que alguém grite “peguei


você!”, porém, isso não acontece. Carter está olhando o documento

do processo e lendo enquanto fala.

— Não estão brincando? Ele não pode acreditar que vai

ganhar esse processo ridículo! Eu fui jogado no corredor de um


hotel, pelado na frente das câmeras, e ele é quem se sente

exposto? Não tá mesmo escrito virilidade aí, tá?

Minha irmã me olha pela primeira vez e percebo decepção na

expressão que ela exibe. Caralho! Não é possível que não


acreditem em mim.

— Ash, ele foi humilhado. Era a mulher dele na cama com

você — ela solta.

— Humilhado por ela! Que processe aquela bruxa, então! Ela

fez alguma coisa comigo. Querem que eu jure?

Josh se vira para me olhar e penso que irá colocar mais sal na

ferida, mas ele é o Josh, o mais centrado de nós. Ele é o que mais

conhece os outros.
— Não precisa jurar, eu acredito em você — diz para o
restante. — A Candice estava andando atrás do Ash tinha algum

tempo já. O Joseph deveria saber que uma mulher como ela só

estava interessada na posição de ser casada com o prefeito. Se era


status e dinheiro que ela queria, estaria muito mais bem servida com

o Ash. Caramba, gente, se nem vocês acreditam no cara, as

chances dele no tribunal são nulas.

Ao menos eles tiveram a decência de parecerem


envergonhados.

— É isso, eu tenho quase certeza de que não transei com ela,

a menos que ela tenha feito tudo sozinha. Eu estava dormindo e não

me lembro de nada antes de acordar e vê-la colocando meu…

— Ei, ei, ei — Josh me interrompe. — Anelyse está aqui.

Claro, ele tem razão. Minha irmã não precisa ouvir nada disso.

— Certo, então… Ele me processa e continua casado com


ela?

— Claro que não, o prefeito não é estúpido. Os dois vão se

divorciar.

Estou rindo, mas a situação não tem a mínima graça.


— Olha só, ela fode com a vida dele e com a minha e ainda sai
levando metade de tudo que ele tem. Alguém mais percebe como
isso é errado?

Carter suspira pesadamente.

— Isso não importa, Ashton. Nem os cem mil na verdade,


porque ninguém venceria um processo ridículo como esse, ainda

mais contra você. O problema é a imagem negativa que estão


pintando na imprensa. Você agora é um destruidor de lares, pois

separou o casal de ouro que se amava. Você seduziu Candice e


humilhou Joseph. Isso irá prejudicar a imagem da banda.

Finalmente entendo que não é apenas sobre mim, mas sobre

nosso trabalho e tudo que construímos juntos. É nisso que as


pessoas vão pensar e se lembrar quando ouvirem o nome da
Dominium.

— Tudo bem, o que eu faço?


JULIA

— Olha isso aqui! Esse Ashton é um babaca! Brigas no


trânsito toda semana, algumas mais sérias que outras. Alguém sabe

dizer por que ele espancou o garçom desse restaurante aqui?

Tenho nas mãos os jornais que mostram as últimas façanhas


do astro mimado do rock que querem que eu vigie.

Klaus, meu chefe, olha para mim entediado, como se estivesse

preparado para meu chilique. Sentado confortavelmente em sua


poltrona caríssima, vestindo seu terno de corte impecável, ele alisa
os cabelos grisalhos. Meu chefe com certeza já viu cenas mais

interessantes que a que faço agora. Ele me responde com muita


calma.

— Dizem que o molho que veio para acompanhar a carne


estava frio.

Reviro os olhos.

— Isso não pode ser verdade. Não consigo acreditar que

alguém possa ser idiota nesse nível.

Ele me olha com piedade.


— Julia, eu sei que está tentando sair fora, mas quanto mais

cita as excentricidades dele, mais se torna óbvio que ele precisa de


supervisão.

— E eu lá sou babá agora? Sou advogada. Esse homem

precisa de um assessor, de alguém que lhe diga o que fazer.

— Sim, você é estagiária aqui. Escolheu iniciar a pós e

continuar estagiando, então é isso. Nossa firma pegou o caso e irá

nos dar um destaque absurdo, mas não podemos perder essa


causa em hipótese alguma. Por mais que já pareça ganha, ele é um

rockstar e eles têm a tendência de ser impulsivos e fazer coisas

estúpidas. Pode colocar tudo a perder e não podemos permitir isso.

— Isso é inacreditável! Nunca ouvi nada tão surreal. Se é

mesmo necessário, quero saber exatamente o que preciso fazer e o

que não posso permitir que a estrela faça.

Noto que Klaus solta o ar que estava prendendo, aliviado; ao

que parece não estava tão certo de que eu aceitaria. Como se fosse

possível que eu recusasse algum caso, arriscando uma demissão e

perdendo meu estágio, que é o que financeiramente possibilita que


eu continue os estudos.
— Você irá trabalhar como em qualquer outro caso; vai
conversar com o cliente, ouvir a versão dele, encontrar a melhor

forma de defendê-lo e repassar para nós para que juntos possamos

decidir o que fazer. Como extra, vai garantir que ele não faça

nenhuma bobagem. Será uma espécie de guarda-costas disfarçada.

— Quando ele for sair e a banda for se apresentar, terei que ir


junto? Por quanto tempo?

— Na verdade, vai ficar na mansão da Dominium o dia todo,

até a noite, pelos próximos meses. Pode dormir em sua casa, mas

eu não aconselho. Eles se ofereceram para providenciar um quarto


para que fique por lá. Sabemos bem que a noite é o momento mais

apropriado para que Ashton apronte alguma e bem… é o seu

trabalho que está em jogo aqui.

— Quer dizer que, se eu falhar, perco meu emprego? Sabe


que estou grávida, certo? Não posso ficar desempregada agora e

nem deveria passar por essa situação tensa.

— Sim, sei que está grávida de poucas semanas, então não há

nada que a impeça de ir até lá e fazer seu trabalho. Além disso, se

falharmos, todos podemos nos considerar desempregados. Como


fez questão de deixar claro, ele é uma estrela do rock. A mídia vai

nos destruir se perdermos o caso.

Finalmente entendo como isso é grande.

— Por que aceitou?

— Porque as chances de ganharmos são muito maiores do

que as de perdermos. Caso ganhemos, teremos apenas casos


grandes daí em diante.

— Mas independente do resultado, ganharemos a


animosidade do prefeito.

Ele dá de ombros.

— Isso não importa. Ele não pode se reeleger, portanto, está


com os dias contados.

Apesar de toda a situação me irritar, não é mesmo como se


fosse algo que eu pudesse escolher. Além disso, passar um tempo

fora de casa vai ser bom por outros motivos; por exemplo — e
principalmente — me esconder de Eric, meu ex-namorado.

Resignada com meu destino, peço licença e saio da sala, no


alto dos meus saltos, tentando parecer no controle da minha vida
apesar de tudo o que o acaso insiste em colocar em meu caminho

para me tirar do eixo.

Agora precisarei preparar minha mudança temporária e torcer


muito para que Ashton Ray ao menos não seja tão insuportável
quanto parece. Para que não seja eu a me tornar alguém que

exerce a violência e acabe em alguma manchete.

“Grávida louca ataca estrela do rock”.


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RITMO SENSUAL – AMOR & RITMO 2


Josh Nicols é o baterista da Dominium, mas apesar de todas

as loucuras advindas disso, é um homem sensato e que pesa muito


bem cada uma de suas decisões.

Um passado doloroso, uma família destruída…

Tudo isso apenas serviu de material para moldar quem ele é e


em cada um dos momentos difíceis que viveu, Ashton Ray, seu

grande amigo, esteve ao seu lado e a família dele se tornou a sua

própria.

Por isso, nada fica fácil quando Josh começa a sentir-se


atraído por Anelyse Ray, a irmã virgem de seu melhor amigo e a

garota por quem sempre jurou sentir apenas afeto fraternal.

Mas, Anelyse o conhece como ninguém e nada pode ser mais

inevitável, que uma mulher decidida.

O que fazer quando os dois lados da balança têm o mesmo

peso?

Quando a distinção do certo e do errado, não é mais tão visível

e o desejo se torna mais forte que o senso de lealdade?


Venha descobrir o amor com Josh Nicols e seu Anjo impuro e
infernal.
RITMO IMPERFEITO – AMOR & RITMO 3

O guitarrista da Dominium está sempre sob os holofotes e tem

seus dias regados à farra, irresponsabilidade e sexo.


Jasmim é responsável e prioriza família e trabalho duro.

Apesar de hoje serem muito diferentes, nem sempre foi assim.

Os dois já foram os melhores amigos um do outro e, apesar de


terem se distanciado, nem mesmo a fama mudou esse fato. Mas

agora, Jasmim esconde segredos e Tray não vai descansar até

descobri-los.

O grande problema é que alguns mistérios, quando revelados,

podem colocar amizades à prova e trazer sentimentos adormecidos


à tona.

Tray Anders pode ser considerado um deus do sexo e o maior astro

da guitarra, mas quanto mais alto o sucesso, maior pode ser a


queda.
RITMO DAS ARÁBIAS - AMOR & RITMO SPIN OFF

Azal Patel, milionário, figurão do petróleo e, nas horas vagas,


anfitrião das melhores festas, está com problemas familiares, já que

os pais pretendem casá-lo com uma prima e os irmãos estão em pé


de guerra.

Andy não sabe o que aconteceu, mas de repente se viu literalmente


enjaulada em Abu Dhabi, longe da Dominium e de toda sua rotina.

Os dois então se veem na mesma casa e sem uma solução

imediata para seus problemas. E a única maneira de despistar a

família de Azal é criando um falso noivado, que garanta a ela, além


de um lugar para ficar, férias espetaculares, e a ele, um escape para

o casamento arranjado.

Felizmente para os dois, as coisas fogem muito ao plano inicial

e, em meio a situações inusitadas, invasões musicais e muitos

animais selvagens, o desejo irá ditar as regras. Em um país


desconhecido e longe de tudo que ela conhece, Andy vai descobrir

o amor, e que, talvez, apenas o homem mais exótico do mundo

tenha o poder de colorir sua alma.

Ashton, Josh e Tray estão de volta, preparados para assistir de

camarote a queda do amigo, em um show único, no ritmo das

arábias.
O OGRO E A LOUCA - PAIXÕES IMPROVÁVEIS 1

Mathew Calston, o marquês de Wheston vive recluso em sua

mansão no campo desde que acontecimentos em seu passado o


fizeram repensar a vida e mudar completamente sua visão do

mundo e das pessoas.

A senhorita Nicole Smith, aceita o cargo de governanta na


mansão, porém ela não esperava que houvesse tanto trabalho para

tão poucos criados.

Também não esperava conhecer o patrão em circunstâncias

impróprias que o levassem a crer que ela era uma louca,

desvairada.

Mas foi o que aconteceu.

Agora, com a pior impressão possível um do outro, eles terão


que aprender a conviver, superando a aversão inicial e descobrindo

um desejo incontrolável que aumenta a cada embate entre eles.

Será que a linda governanta conseguirá colocar ordem, tanto

na casa quanto no coração desse marquês turrão?

E ele, poderá manter seu juízo diante dessa mulher que o tira

do sério com tantas loucuras?

Venha conhecer o marquês ogro e sua governanta louca e se

apaixonar por este casal.


O HIGHLANDER E A DEVASSA - PAIXÕES IMPROVÁVEIS 2

A senhorita Juliette Smith sempre se orgulhou de seguir seus

instintos e desejos.
Convencida de que nunca se casará ou poderá desfrutar dos

prazeres dentro da proteção de um matrimônio, ela decide conhecê-


los com ninguém menos que Lorde Gregor MacRae, o libertino mais

viril e belo no qual já pôs os olhos.

Porém, contrariando as expectativas da moça, um belo dote

lhe é cedido e junto com ele a oportunidade de se casar.

Agora ela precisará atrair a atenção de um cavalheiro disposto

a se comprometer, o que pode não ser nada fácil quando se tem a


lembrança de olhos azuis e selvagens para assombrá-la.

Lorde Gregor é imprudente e adora ostentar suas conquistas

amorosas, mas não essa. Se possível levará o segredo para o

túmulo para não perder os amigos que tanto estima.

Mas então, ela decide se casar e a mera ideia de que todo

aquele fogo indomado estará nos braços de outro homem faz com

que o guerreiro highlander que habita nele, desperte.


O DUQUE E A FUGITIVA - PAIXÕES IMPROVÁVEIS 3

Maryelen Lorena Somerset, filha do distinto duque de Beaufort,

cresceu sob a mão rígida de seus progenitores e foi preparada


desde o berço para um casamento político que tornaria sua família

ainda mais poderosa.

Sebastian Cavendish, o filho mais novo do duque de


Devonshire surge em sua vida e ao vê-lo Maryelen sente que

encontrou alguém especial.

Em meio ao florescer dos sentimentos, descobrem que uma

união entre os dois não é bem quista pela família da jovem e o

destino com suas intempéries os separa em uma sucessão de


tragédias.

Agora, anos depois, Sebastian é o novo duque de Devonshire

e um reencontro inesperado o coloca frente a frente com a moça

que acreditava estar morta ou algo ainda pior.

As circunstâncias não são adequadas e a mulher que agora

atende pelo nome de Helen não é mais a menina que um dia

conheceu, mas uma fugitiva que forjara a própria morte

impiedosamente.

Após um acidente que poderia ter fatalmente lhe tirado a vida,

Sebastian tem um novo objetivo, um motivo para persistir: encontrá-

la e descobrir quais outros segredos oculta e por quais razões o

deixou.
UM BÁRBARO DE JOELHOS – SPIN OFF DE PAIXÕES

IMPROVÁVEIS

Lorde Ian MacRae não é exatamente o que se espera de um

nobre. Com um desprezo transparente por regras da alta sociedade,


o escocês prefere a vida nas highlands, acompanhado de seu bom

whisky e sua família.


Apenas poucos britânicos conseguem sua confiança e boa vontade,

mas em um ato generoso no passado, livrou a tímida Lady Mariane

Stanford das garras de sua progenitora.

No entanto, seu gesto isolado de cavalheirismo ocasionou uma


série de situações em que se viu vítima de perseguição e obsessão,

por parte da jovem dama.

Ou não seria paixão, o real motivo pelo qual a irrepreensível

Lady passou a vasculhar seus pertences e analisá-lo com mais

atenção que o adequado?

Mistérios, romance e muitas reviravoltas. Nesse jogo, quem se

ajoelhará primeiro?
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