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Versão eletrônica do livro

HARMONIZAÇÃO
MENTAL
O CASO DE BEATRIZ

Autor
© Guilherme Tavares, 2021

Edição e revisão: Cláudia Rezende


Projeto gráfico e capa: Overleap Studio e Rikearaujo
Ilustrações: Rikearaujo

Este livro não pode ser reproduzido,


no todo ou em partes, sem a prévia
autorização do autor.

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"Volte seus olhos para dentro, contemple suas próprias
profundezas, aprenda primeiro a conhecer-se! Então,
compreenderá por que está destinado a ficar doente e, talvez,
evite adoecer no futuro."

Sigmund Freud

Você pode escutar o audiobook completo deste livro em

SUMÁRIO
APRESENTAÇÃO ....................................................................................................... 3
BEATRIZ .................................................................................................................... 4
RECORDAÇÕES ......................................................................................................... 9
ANSIEDADE ............................................................................................................ 16
FOBIA ..................................................................................................................... 21
RICARDO ................................................................................................................ 25
TRAIÇÃO ................................................................................................................. 30
DESEJO ................................................................................................................... 36
MARIA .................................................................................................................... 41
BLOQUEIO .............................................................................................................. 45
PLÍNIO .................................................................................................................... 49
PERDÃO .................................................................................................................. 53
CULPA..................................................................................................................... 57
RESSIGNIFICAÇÃO .................................................................................................. 61

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APRESENTAÇÃO
Um dia você acorda, abre os olhos e percebe que tudo mudou. Não
sabe bem o motivo dessa sensação, mas sente que a sua mente não
comporta mais os velhos hábitos.
Beatriz está cansada, desiludida. Não entende por que, depois de
anos casada, hoje está com a cama vazia. Nem seria por falta de opção,
jovem, ela ainda atrai o olhar de muitos homens. No entanto, é sempre
tudo igual, vazio.
Ao vasculhar o passado em busca de respostas, acaba sentindo-se
aflita, redescobrindo segredos guardados na mente. Revive emoções do
passado, ao recordar a infância, o início de tudo que marcou a vida dela.
A sensação de abandono após relatar ter sido molestada e não perceber
uma atitude do pai para defendê-la.
Ao engolir a frustação, ficou revoltada por anos, e isso a tornou
uma pessoa mais dura com os outros e consigo mesma. Desorientada,
rodeada de culpa, rancores e remorsos, Beatriz se vê sem saída, até que
a dor foi maior que o medo da mudança, e ela buscou ressignificar a
própria vida.
A história de Beatriz, contada neste livro, serve como base para que
possamos nos conectar a nossos traumas. Entender como fatos
marcantes em nossa vida servem como base para todas as atitudes que
tomamos.
Ao enxergarmos a dificuldade do outro, refletida em nós mesmos,
podemos lançar um olhar mais racional sobre os nossos atos. É preciso
compreender melhor as nossas aflições, os nossos medos e desejos
ocultos, para, assim, podermos nos libertar de toda a culpa inconsciente
que carregamos.
O objetivo deste livro é libertar o leitor de suas amarras mentais,
possibilitando o autoperdão e a ressignificação.
Harmonizar é o ato de tornar mais belo, mais equilibrado, aquilo
que você tem, é um refinamento. Sendo assim, busco auxiliar no seu
despertar, lançando e motivando você a um novo olhar sobre a sua vida.
Que você possa utilizar as percepções levantadas aqui como mais um
impulso transformador.
Uma excelente leitura!
Um grande abraço, Guilherme Tavares

3
BEATRIZ
Eu tinha 8 anos quando tudo aconteceu. Morávamos eu, minha
irmã mais velha, Berenice, minha mãe, Maria, e meu pai, Francisco, em
uma cidadezinha no interior de Minas Gerais. Dona Maria Flor, como
minha mãe era conhecida, fazia os melhores doces da região. Ela era puro
amor, lembro-me de acordar de manhã e sentir aquele cheirinho gostoso
de café com pão de queijo fresquinho, feito por suas habilidosas mãos.
Sempre que podia, eu ajudava na fabricação dos doces. A demanda
estava aumentando e preenchia todo o meu tempo livre, mas não me
incomodava. Diferentemente da minha irmã, que às vezes reclamava, eu,
na verdade, até gostava de estar ali, na pequena cozinha industrial, era
um ambiente muito acolhedor.
Meu pai era carpinteiro, um homem muito justo, às vezes meio
“cabeça-dura”, mas com um grande coração. Lembro-me que, mesmo
chegando tarde a nossa casa após o trabalho, sempre arrumava tempo
para nos abraçar, com um grande sorriso no rosto.
Estava tudo perfeitamente bem, mamãe com várias encomendas e
papai com meses de trabalho garantido na igreja, até aquele fatídico dia.
Eu e a Berê éramos responsáveis por levar as encomendas. Mamãe
cuidava da casa, enquanto nós cuidávamos da entrega dos doces. Mas,
na véspera da Páscoa, era diferente. Sempre foi. Muitas entregas para
fazer, e, daquela vez, eu precisei ir sozinha. Era uma grande encomenda
feita pela paróquia da cidade. Como meu pai estava por lá, minha mãe
pediu para que eu fizesse a entrega, enquanto a Berê seguia outra rota.

Chegando à igreja, dei um abraço no meu pai e falei que


estava com os doces. Ele me disse que o padre estava na
casa paroquial e pediu para que entregasse lá. O padre era
um senhor muito respeitado, bati na porta, e ele me atendeu.
“Entre, minha filha, já te atendo”. A casa tinha cheiro de
naftalina e muitos móveis antigos de madeira.

O padre veio, sentou-se no sofá e começou a perguntar como estava


minha mãe, disse que estava muito satisfeito com o trabalho do meu pai.
Aí, me perguntou se eu já era mocinha, achei estranho, mas respondi que
não. Então começou a me fazer várias perguntas, algumas que me

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deixaram muito constrangida, até que ele levantou e colocou a mão sobre
meu ombro. Nesse momento, eu simplesmente saí correndo dali. Fiquei
com medo e comecei a chorar.
Chegando em casa, imediatamente, falei com a minha mãe. Contei
que senti algo ruim ali, sozinha com o padre, com aquelas perguntas,
com o jeito como ele se encostou em mim. Minha mãe pediu para que eu
não contasse nada a ninguém, disse que ela resolveria o problema e
contaria para meu pai. Fiquei chorando no meu quarto o restante do dia,
minha irmã se aproximou, perguntou o que tinha acontecido, mas eu não
quis contar nada.
Meu pai chegou, como sempre, veio e me deu um beijo, viu que eu
estava triste. Eu disse que estava um pouco doente, ele me abraçou e
falou que tudo iria melhorar. Não consegui dormir direito naquele dia,
com a raiva que eu fiquei.
A Páscoa chegou, e fomos, como todos os domingos, à igreja
naquela manhã. Pensei: “agora este padre vai escutar poucas e boas!”. Já
estava com nojo de ir à igreja. A missa transcorreu normalmente, e, ao
final, fomos para casa. Nada, absolutamente nada aconteceu de
diferente.
Assim que consegui um momento sozinha com a minha mãe, fui
logo desabafando. “Mãe! Por que o papai não xingou o padre?”. Eu queria
uma atitude, era meu direito! Então, ela me respondeu: “falei com seu
pai, minha filha, ele disse para não tocarmos nesse assunto e para você
não fazer mais entregas sozinha”.

Como fiquei decepcionada! Chorei novamente, com raiva agora do


meu pai. Ele era meu protetor, meu herói. Como podia deixar alguém se

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encostar em mim sem fazer nada? Desde então, nunca mais a nossa
relação foi a mesma. Senti que, a cada ano, íamos nos afastando mais.
Eu ainda o amava, mas algo havia mudado em mim.
O tempo passou, eu continuei ajudando a minha mãe com os
doces. Fiz Administração de Empresas na capital. Saí de casa cedo, para
morar sozinha, comecei a vender doces também na faculdade, trabalhei
muito e comecei a conquistar cada vez mais destaque. Na faculdade, eu
conheci o Ricardo, e começamos a namorar.
Em pouco tempo, ele veio morar comigo, me ajudava com algumas
tarefas na casa e na pequena produção de doces que eu fazia. Em certos
dias, também pegávamos a estrada para a minha cidade natal e
abastecíamos o nosso estoque. Ricardo era bom companheiro, não posso
falar que foi um amor de novela, mas estávamos bem com a nossa
relação. Confesso que às vezes sentia-me um pouco frustrada com a falta
de proatividade dele, mas, como sempre foi prestativo, acabou me
ajudando bastante no início da minha carreira.
Com o passar do tempo, a pequena empresa de doces começou a
vender para o Brasil inteiro. Após me formar em Administração,
investimos pesado na fábrica. E, logo em seguida, casei-me com Ricardo.
Porém, nunca me senti preenchida de verdade. Via histórias de amor
fantásticas, mas, para mim, eram isso, nada além de histórias.
Achei que era por falta de filhos, Ricardo queria, e eu deduzi que
esse grande amor viria com a chegada de Mariana. Minha filha virou todo
o meu objetivo de vida. Meu foco agora era a minha filha e o meu trabalho.
Sentia a responsabilidade e o peso de cuidar de tudo. E, infelizmente,
Ricardo foi ficando cada vez mais em segundo plano, admito.

Às vezes, sentada sozinha na minha sala, pensava: “será


que realmente existem relações verdadeiras?”. Eu não
conseguia lidar muito bem com os homens, mesmo os
funcionários da fábrica. Sentia certo frio na barriga ao dar
ordens, principalmente para homens mais velhos.

Aquele vazio foi aumentando, eu me sentia cada vez mais


sobrecarregada, sozinha. Até que um dia descobri que o Ricardo estava
me traindo com uma das funcionárias, no setor em que ele trabalhava,
na minha própria fábrica. Foi a gota d’água. Com sete anos de casamento,
nos divorciamos.

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Eu ainda era jovem, estava com meus 29 anos, então comecei a
sair com as amigas para me distrair. Sentia-me viva, saí com alguns
caras, mas nunca consegui estabelecer uma conexão verdadeira e, em
pouco tempo, estava solteira novamente. Minha filha era o meu porto
seguro. Na empresa, as coisas começaram a desandar, eu não conseguia
mais dar o foco de antes.
Até que comecei a fazer terapia. Junto à terapeuta, fui buscando
resgatar todas as memórias da minha vida, inclusive aquele caso do
padre na minha infância, do qual eu, hoje, aos 32 anos, nem me lembrava
mais. À noite, passei a ser atormentada por minhas memórias. Meu pai
havia falecido há cinco anos, e, depois que me mudei para a capital,
poucas vezes pude ir vê-lo. Nunca pude deixar de pensar: “Como meu pai
foi covarde!”. Foi terrível para mim, eu o amava muito, mas sentia por ele
um desgosto tremendo.
Até que fui orientada a conversar com a minha mãe sobre isso. E
assim eu fiz, viajei para a minha cidade natal, fiquei sozinha com a minha
mãe e, quando estávamos tomando café com pão de queijo, perguntei.
“Mãe, você lembra quando eu fui entregar os doces sozinha lá na casa
paroquial?”. Ela me disse: “Sim, minha filha. Mas por que você quer
mexer com o passado agora? Isso foi há muito tempo”. “Eu sei, mãe, mas
não posso deixar de pensar em como o papai foi omisso. Ele devia ter feito
algo”.
Então, ela me disse: “Filha, eu menti. Na verdade, nunca disse
nada para o seu pai”. Meu mundo caiu. “Como você pôde fazer isso,
mãe?”. Ela completou: “Minha filha, me perdoe. Mas eram outros tempos,
o padre era muito respeitado na cidade, poderíamos ser julgados da
forma errada. Além do mais, seu pai tirava grande parte do sustento da
nossa família trabalhando para a igreja e, como conhecia o jeito dele,
resolvi não incomodá-lo”.

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O que eu fiz! Infelizmente, julguei mal o meu pai por todo esse
tempo e agora já não posso mais pedir desculpas pelos anos de
afastamento. No entanto, eu senti que estava no caminho certo. “Pai,
onde o senhor estiver, reconheço que cometi um erro. Mãe, eu te perdoo”.
O que ela podia fazer como uma simples doceira de cidade pequena? Eu
sei que a minha mãe buscou proteger a família.
Hoje, continuo, dia após dia, a minha caminhada. Às vezes,
errando feio, às vezes, sentindo-me abençoada, sempre na esperança de
poder me tornar um ser humano cada vez melhor. Essa é a minha
história, e meu nome é Beatriz.

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RECORDAÇÕES
Que satisfação poder falar mais uma vez com você, caro leitor. Meu
nome é Guilherme Tavares, sou analista de sistemas computacionais,
administrador de empresas e psicanalista. Esses conhecimentos, ao
longo dos anos, me possibilitaram não só escrever este livro, que é o meu
segundo — o primeiro, A ciência do medo, foi lançado em 2019 —, como
também criar o método de reprogramação pessoal chamado
Harmonização Mental.
Antes de prosseguirmos, gostaria de começar falando um pouco
sobre o que estuda a psicanálise, fundada por Sigmund Freud, um
neurologista austríaco, em 1899.
Um dos principais desafios da psicanálise é explicar o
funcionamento da mente humana através de uma investigação analítica
da psique, palavra que vem do grego e significa “respiração”, mas que
Freud utilizou para descrever a relação entre os desejos ocultos das
pessoas e a forma como esses desejos afetam os comportamentos
humanos ao longo da vida.
A psicanálise é uma ciência que busca compreender as motivações
implícitas do indivíduo, ou seja, aquelas que não estão claras para ele,
mas que influenciam diretamente no modo como ele age. O objetivo dessa
ciência é conceder um novo significado àquilo que causa desconforto à
pessoa ou que possa estar lhe impedindo o crescimento, pessoal ou
profissional.

Como diria Freud, a psicanálise não é uma investigação


científica imparcial, é uma medida terapêutica. A essência
dela não é provar nada, mas, sim, simplesmente alterar
alguma coisa.

Vejamos a história de Beatriz. No inconsciente, ela passou a ter a


concepção de que os homens poderiam ser indignos, como o padre, ou
poderiam, em algum momento, desampará-la, como o pai.

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O reflexo disso fez com que ela, sem se dar conta, passasse a intuir
que todos os homens, especialmente os mais velhos, eram pouco
confiáveis. Algo que prejudicou os relacionamentos pessoais e
profissionais que Beatriz desenvolveu ao longo da vida, fazendo com que
ela questionasse as próprias atitudes. Isso ocorria quando ela
questionava a si mesma sobre a possibilidade de as conexões entre as
pessoas serem reais.
Quando criança, o nosso cérebro não está completamente formado,
e o medo daquilo que ainda não vivenciamos, ou seja, não conhecemos,
cria traumas em nós. Esses traumas, ou feridas, são gravados em nossa
mente com uma intensidade que irá variar de acordo com a carga
emocional envolvida no momento em que a situação aconteceu.
A nossa mente, então, junta este grupo de percepções: “Quais
pessoas estavam envolvidas?”, “Em qual ambiente eu estava?”, “Quais
sentidos foram ativados?”, “Qual foi a carga emocional do momento?”. A
partir disso, a mente cria um contexto simbólico e une esse conjunto de
sensações (sentimentos e emoções), em busca de dar um significado ao
que vivenciamos.
Para Beatriz, a carga dessa história fez com que ela passasse a
acreditar que nunca poderia se entregar verdadeiramente a uma relação
amorosa, pois jamais deveria confiar em homens.
Quando uma simbologia boa, prazerosa, é criada, a mente desejará
repeti-la. No entanto, se a simbologia é ruim, a mente buscará dar uma
vazão à angústia gerada, ou seja, colocar para fora, limpar, expurgar.

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O problema ocorre quando isso não acontece, a sensação fica
reprimida, e você faz o que a psicanálise chama de introjeção, que é o ato
de absorver, engolir aquela angústia.
A sua mente, buscando amenizar esse sofrimento, cria um enredo,
uma história, para justificar o ocorrido, e isso afeta diretamente os seus
comportamentos.

Lembre-se de uma coisa: a mente sempre trabalha a seu


favor, por um desejo consciente ou não. O nosso cérebro
busca eficiência e economia de energia. Então, sempre irá
repetir os padrões simbólicos criados por nós quando
acontecer algo que ele julgar similar ao ocorrido
anteriormente.

Por isso, falamos que 95% das nossas ações são obras do
inconsciente, porque foram automatizadas pelo nosso cérebro, evitando,
assim, um novo processamento mental para cada evento do dia a dia.
A utilização da parte racional do cérebro humano, chamada
neocórtex, demanda um gasto energético muito maior. Sendo assim, para
o nosso cérebro, pensar, só quando for estritamente necessário.
Em razão disso, a psicanálise fala que, em nosso cotidiano, grande
parte das ações acontece em modo de repetição. Existe, de certa forma,
uma compulsão cerebral em fazer isso, repetir. Essas ações comandam a
nossa vida.
Voltando à Beatriz, a mesma simbologia que a fez ter problemas de
relacionamento fez com que ela criasse uma atitude mais proativa em
busca da independência.
Uma conclusão lógica da mente, “se eu não posso confiar no outro,
preciso buscar a sobrevivência por minhas próprias mãos”, algo que ela
programou no cérebro aos 8 anos e continua a fazer até os dias de hoje.
A todo instante, nós também avaliamos a situação na qual nos
encontramos. Se ela nos remete a uma simbologia de prazer, ok,
continuamos, mas, se ela nos remete a uma simbologia de angústia,
ativamos o nosso modo de defesa.
Descrita nos estudos da psicologia como mecanismos de defesa ou
de ajustamento, essa proteção da mente reflete as nossas atitudes de
negação, formação reativa, projeção, identificação, racionalização,
introjeção, isolamento, anulação, transferência emocional, idealização,

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conversão, regressão e sublimação. Esses são assuntos que eu abordo de
forma mais detalhada no meu livro A ciência do medo.
No caso de Beatriz, mesmo sem a conhecer, podemos identificar
possíveis defesas egoicas que ela carrega. Coisas de que gosta ou não.
Café com pão de queijo, doces, cheiro de café e cozinhar são lembranças
boas que carrega consigo. Da mesma forma, podemos acreditar que
Beatriz detesta o cheiro da naftalina, que a casa dela não tem móveis
antigos de madeira, que provavelmente ela não vai à igreja e que a
primeira impressão que tem sobre homens mais velhos talvez não seja
boa.
Outro ponto importante é que o segredo de Beatriz precisou ser
guardado, e isso é uma das causas mais frequentes de doenças
psicossomáticas. As doenças psicossomáticas têm origem no estresse
causado por acúmulo de problemas emocionais e estão diretamente
ligadas à saúde mental e física da pessoa.

Quando um sofrimento psicológico não é trabalhado, de alguma


forma, ele acaba causando ou agravando uma doença física. É como se o
inconsciente, que trabalha sempre a nosso favor, tentasse agilizar o
processo de morte do indivíduo.
Para o inconsciente, se o ser está em sofrimento, a melhor opção é
acabar com a vida. Como essa não é uma atitude racional, quando uma
carga de estresse se transforma em uma doença, a pessoa acaba levando
um grande susto.
Em resumo, todo segredo pode causar um adoecimento.
Adoecemos porque não nos damos conta de que a angústia tem prazo de

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validade. Ela pode ficar escondida por anos, mas terá o cheiro ruim de
um queijo apodrecendo dentro da geladeira.
Você já abriu a porta da geladeira e sentiu aquele cheiro ruim, que
não sabe de onde veio? É algo nesse sentido que acontece com as nossas
angústias reprimidas. Às vezes, o cheiro é fraco, você sabe que tem algo
ruim ali, mas não o incomoda, no entanto, em certos casos, o cheiro é
forte, e abrir a geladeira sem antes fazer uma limpeza fica cada vez mais
difícil.
O resultado desse processo de limpeza é o equilíbrio. Para existir,
o ser humano possui três pilares de sustentação: em primeiro lugar, a
saúde física e mental, seguida pela percepção de prosperidade e, por
último, os relacionamentos afetivos.
Se estiverem em equilíbrio, esses três pilares indicam que a pessoa
está funcional, ou seja, está com a estrutura livre o suficiente para que
ele tenha uma vida equilibrada. No entanto, se há desequilíbrio em
alguma das bases, a essência da pessoa passa a ficar tensionada,
causando desconforto.

Durante a vida, é normal passarmos por várias situações que


geram desconforto, que nos deixam frustrados, mas somente no início da
infância, época em que somos mais emocionais que racionais, é que a
mente trabalha bem com os mecanismos de defesa.
No entanto, à medida que crescemos, começamos a lidar com a
vida em sociedade, e isso acaba sendo muito estressante. A mente
trabalha para que nós não desanimemos, sendo assim, às vezes, passa a
disfarçar a realidade dos fatos, buscando criar uma narrativa a nosso
favor. Estratégia que, convenhamos, é muito boa.

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Dentro dessa estratégia do cérebro de criar narrativas a favor do
indivíduo, podemos entender que, no caso de Beatriz, um impacto
resultante seria ela considerar mais “fácil” dizer que não vai à igreja —
representação de uma simbologia ruim para ela — porque não gosta de
religião que assumir que não vai porque, no passado, foi molestada por
um padre.
Outra coisa também poderia acontecer, caso ela identificasse que
não era tão boa doceira como a mãe. Se ela percebesse, na infância, que
cozinhar não traz reconhecimento, muito provavelmente teria
empreendido em algo completamente diferente.
A verdade é que essas narrativas criadas pela mente influenciam
diretamente todos os aspectos da nossa vida, principalmente os
relacionamentos, não só com os outros, mas também com nós mesmos.

Mascarar a realidade, camuflando-a com as percepções só


daquilo que nos convém, sempre criará efeitos colaterais. A
nossa verdade nem sempre é absoluta, e o reconhecimento
disso é um grande passo para o início do processo de
Harmonização Mental.

A realidade é que todo procedimento de reconstrução, seja físico,


seja mental, é inevitavelmente doloroso. Claro que cada um irá sentir
essa dor de uma maneira, mas sempre o indivíduo acaba traumatizado
de um jeito ou de outro.
Os problemas começam a aparecer porque, à medida que ficamos
mais velhos, começamos a aprender mais sobre o mundo e, então,
percebemos que certas estratégias passam a não funcionar tão bem
quanto antes.
Assumir que aquela narrativa criada por você, que é a sua verdade
absoluta, pode não ser tão verdadeira assim é um processo que
dificilmente a pessoa aceita sem já estar extremamente desgastada.
O seu cérebro e a sua mente tentaram esconder essa angústia bem
lá no fundo da “geladeira”, no entanto, às vezes, você abre a porta, e o
personagem, criado por você, começa a se incomodar, a compreender que
há algo errado em você, por ter feito tantas escolhas ruins, e que não dá
para ficar culpando o outro sempre.
A sua mente não queria isso, ela fez todo o possível para criar uma
narrativa perfeita, no entanto há aspectos da vida que não conseguimos
controlar e que trazem luz à nossa consciência. Quando isso acontece,

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as nossas defesas começam a falhar e acabam expondo um pouco
daquele ser irracional que lutamos tanto para esconder.
É para isso que a psicanálise existe, para poder auxiliar as pessoas
na ressignificação de suas memórias traumáticas. Fazendo essa limpeza
na “geladeira”.
Talvez, certos cheiros ruins continuem, mas o processo de
diagnóstico, de entendimento do porquê de escolhas repetitivas tão ruins,
já traz um grande alívio para toda essa pressão sentida pela alma.
Vamos continuar analisando a história da Beatriz no decorrer deste
livro. Espero que, nesta leitura, você possa ter diversas associações com
as suas histórias, afinal recordar é viver!

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ANSIEDADE
Dentro do nosso cérebro, existe um local que a mente utiliza para
armazenar todas as nossas simbologias, programando, assim, os nossos
padrões comportamentais.
Entenda a simbologia como um atalho para esse conjunto de
sensações ao qual a mente recorre quando fazemos qualquer coisa. Isso
acontece o tempo todo, em cada ação que tomamos no dia a dia. É assim
que os nossos padrões de comportamento são criados.
Esse verdadeiro armazém de sensações faz com que o inconsciente
esteja conectado a uma parte mais primitiva do nosso cérebro, a uma
porção mais irracional, o sistema límbico, o nosso “cérebro mamífero”.

Entre a emoção sentida e a conexão racional com o neocórtex,


existe um pequeno atraso de 0.007 m/s no processamento. Sabe quando
levamos um susto? Existe a reação instintiva de defesa, depois um
processamento emocional e finalmente uma conclusão racional.
É importante lembrar que, antes de sermos humanos e, portanto,
considerados seres racionais, somos mamíferos. Como tal,
compartilhamos grande parte da mesma estrutura cerebral dos demais
animais deste grupo. Sendo assim, em todos nós, no profundo da mente,
o principal impulso da vida é o da autopreservação.
A vida, essa energia da qual somos feitos e que pulsa em nós a cada
respiração, tem um objetivo, o de não se esgotar, ou seja, de não morrer.

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Para isso, a vida utiliza nossos instintos básicos, os quais, por sua
vez, seguem duas regrinhas simples. Em primeiro lugar, a obtenção de
energia, que, em nosso caso, vem na forma do alimento que ingerimos.
Em segundo lugar, a reprodução. Como seres biológicos, todos temos
“prazo de validade”, então, a única forma de darmos continuidade à
espécie é nos reproduzirmos.
Naturalmente, todo ser vivo busca realizar esse processo da forma
mais eficiente possível, quer dizer, gastando o mínimo de energia. Sendo
assim, instintivamente, buscamos nos alimentar enquanto aguardamos
a preparação do corpo para a reprodução, em ambiente limpo, ameno,
confortável e protegido.
Para ter sucesso nessa empreitada, motivação é fundamental.
Afinal, para ter o desejo de viver, é preciso ter vontade para continuar
buscando energia. O nosso cérebro, então, trabalha com processos de
compensações. Se uma sensação lhe trouxe prazer, ela é boa! Repita-a.
Se a sensação lhe causou desconforto, evite-a.
A vida basicamente pulsa em busca do prazer, e isso nos motiva a
viver um universo de sensações boas. Mas existe um inconveniente em
ser da espécie humana, um desafio na verdade: o nosso cérebro precisa
conciliar o desejo instintivo de satisfação imediata com o alto nível de
inteligência evolutiva que adquirimos.

Desenvolvemos uma capacidade única, que é a percepção


consciente de tempo, o conhecimento da existência do futuro.
Isso nos diferencia de qualquer outro animal e possibilita que
tenhamos um planejamento premeditado de nossos atos.
Essa capacidade, até então inexistente no reino animal,
surgiu com a evolução do nosso cérebro, com o aumento de
tamanho do neocórtex.

Os animais irracionais vivem o aqui e o agora, eles armazenam as


sensações como nós, no entanto não se preocupam com nada além do
determinado pelo instinto. São diferentes dos seres racionais, que
precisam lidar com o fato da morte, com a ideia de que o fim
inevitavelmente chegará um dia.

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Para entender melhor esse processo, Freud separou a psique
humana em três camadas, o inconsciente, que comanda cerca de 95% de
nossas ações; uma camada intermediária, o pré-consciente, que é uma
parte da mente que conseguimos acessar, porém precisamos “gastar” um
pouco mais de energia para utilizá-la. É como a agenda do seu celular,
se precisar buscar informações sobre alguém, você sabe onde encontrá-
las, mas necessitará de um pequeno esforço de pesquisa. E, finalmente,
o consciente, que nada mais é que essa energia vital que tem
conhecimento da própria existência. A consciência nos possibilita pensar
e planejar.

Além das camadas da psique, Freud também identificou uma


estrutura na mente, como se existissem três “eus” (vontades) compondo

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um ser humano, todas em busca de realizar os próprios desejos. Se essa
convivência está harmônica, há equilíbrio entre a vontade de viver
(pulsões) e os conflitos (traumas).
O primeiro “eu”, ele chamou de ID, que vem da identificação dessa
força vital em nós. O ID é a nossa vontade instintiva, em busca da
satisfação imediata, o nosso animal interior.
O segundo “eu” é o Superego. Ele é o filtro ético e moral que
pondera sobre as nossas regras mentais, indicando o que culturalmente
é aceito ou não. Afinal, o ID precisa ser controlado, pois a vida em
sociedade demanda certo grau de regras e costumes: morais e éticos.
E, finalmente, o terceiro “eu”, talvez o mais famoso, o Ego, que
tenta arquitetar um modo de intermediar as vontades do ID com o filtro
cultural imposto pelo Superego.

Voltando à história de Beatriz, a percepção instintiva dela poderia


estar correta, e o padre, ao se enxergar naquela situação com a Beatriz
criança, ativou em si uma “simbologia” que fez despertar o animal interior
que havia nele. Talvez o ID do padre gritava pelo desejo sexual de tê-la
para si como mulher.
O ID quer ter o próprio desejo, como o impulso do desejo sexual,
atendido naquele instante, independentemente da vontade de terceiros.
A liberação da energia do ID, chamamos de libido.
O Superego bloqueia o impulso, pois o ato sexual não é permitido
socialmente sem que haja o consentimento do outro. O Ego, então, cria
“válvulas de escape” para essa frustração, buscando modos de extravasar
o desejo, visando atender o ID, mas sem quebrar as regras do Superego.

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Em certos momentos, talvez pequenas doses de desejos
transformados em ações aceitas socialmente sejam suficientes, e o ID se
conforma. O padre, no caso em análise, somente sorriu e tocou no ombro
da menina, ativando, assim, tanto nele quanto nela, uma simbologia que
pode ser interpretada de forma positiva ou negativa por parte de cada um
deles.
Quando o padre recebeu Beatriz em casa com um sorriso, ela
reconheceu nele uma autoridade. Como homem respeitado, mais velho,
ela se sentiu segura para entrar, uma vez que relacionou essa simbologia
com a do seu pai, carinhoso e receptivo.
No entanto, essa simbologia foi duramente golpeada quando, na
percepção dela, algo pareceu moralmente errado. O Superego e o ID de
Beatriz entraram em conflito, e a única maneira que o Ego encontrou
para resolver a situação naquele momento foi “gritar”: “corra!”.
Muito provavelmente, até os dias de hoje, Beatriz não se sente
confortável ao estar em uma sala fechada com um homem mais velho. No
entanto, ela pode não lembrar mais o motivo disso.
Como empresária, ela precisa estar em reuniões com muitos
homens. Hoje ela é uma mulher forte, mas pode ter dificuldade para
fechar acordos comerciais por não estar à vontade para falar em um
ambiente que remeta a eventos do passado.

Assim, de simbologia em simbologia, na busca de apaziguar


o ID e confortar o Superego, nós traçamos toda a convivência
com os outros e com nós mesmos, determinando as ações que
tomamos em nossa vida.

E você, o que pensa disso tudo? Como será o desenrolar desta


história? O padre molestou Beatriz ou não? De quem á culpa? Da mãe,
que não contou nada para o pai? Do padre, que se aproveitou da
situação? E Ricardo, o marido de Beatriz, foi um grande traidor?
Acompanhe nas páginas do próximo capítulo!

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FOBIA
Um grande sábio disse uma vez: “conheça a verdade, e ela vos
libertará”1. Mas como eu sei o que é verdade? Não teria a verdade várias
faces? A verdade é que sempre vou elaborar só o que for mais conveniente
para mim, bem como também escutar só o que se encaixa no meu padrão
de crenças. Sendo assim, tomo a minha verdade como absoluta.
Esse é um problema dos nossos sistemas sociais, culturais e
religiosos. As bases fundamentais dificilmente são questionadas. Se
sempre foram assim, é porque funcionam e não devem ser alteradas. No
entanto, foram criadas por quem? Por homens carregados de traumas e
desejos instintivos.
A verdade deve ser buscada, mas com a mente aberta, de forma
imparcial e livre de preconceitos. Isso irá acontecer, querendo você ou
não, pois faz parte da evolução natural de cada um de nós. Não há como
impedir que o conhecimento, a experiência e a maturidade cheguem até
você um dia.
A questão é que, se você tem um Superego muito rígido, embasado
em um monte de crenças limitantes, o trabalho do Ego ficará cada vez
mais difícil. A cada nova descoberta, os argumentos mentais criados por
você passarão a ser questionados e não serão mais satisfatórios para o
ID.
Por isso, na busca da sua verdade, você deve também saber
reconhecer que o Superego pode ter falhado algumas vezes e que as
regras que você vem seguindo podem não ser mais aplicadas a sua vida.

Conceitos que funcionavam quando você era criança hoje não


funcionam mais. Da mesma forma que conceitos sociais
enraizados por décadas podem ruir em pouco tempo. Se você
não estiver mentalmente aberto para entender o que está
acontecendo de verdade, poderá ser manipulado em algum
momento.

1 Passagem bíblica em que Jesus fala aos judeus que o seguiam. Livro de João,
capítulo 8, versículo 32.

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Nem tudo em que você acredita é verdade, nem tudo que você ouviu
é real, essas ideologias vêm carregadas de simbologias que você
desconhece, pertencentes a outras pessoas.
É importante ressaltar que o seu pulsar vital precisa de você
motivado e feliz. Para garantir isso, no decorrer da vida, a sua mente
subjugou algumas emoções e sensações, o que levou você a algumas
escolhas erradas, a conflitos internos e externos, situações que esgotam
a sua energia e tiram o foco do que realmente importa, a sua felicidade.
O mais louco é que cabe à mente ter consciência das próprias falhas e
buscar uma reprogramação para solucioná-las.

Na psicanálise, utilizamos um processo chamado associações


livres, que consiste em uma abordagem sem filtros, no qual você tem a
liberdade de expor os seus pensamentos e angústias, sem restrições ou
julgamentos. No caso de Beatriz, a mãe a proibiu de falar do ocorrido,
fazendo com que ela “engolisse” a sensação de desamparo que sentiu por
parte do pai.
Para corrigir isso, é preciso realizar a liberação das memórias
traumáticas, expondo as emoções reprimidas. Isso acontece quando
contamos a alguém os nossos segredos, aquelas memórias que nos
visitam toda vez em que abrimos a “geladeira”.
Entretanto, em alguns casos, a simbologia está tão bem-camuflada
em nossa mente que o evento origem do trauma fica difícil de ser
acessado. Então, as associações livres buscam burlar essa proteção da
mente e fazer com que a pessoa consiga relembrar os eventos até ali
esquecidos, sem a necessidade de procedimentos como a hipnose.

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Isso representou um grande avanço no acompanhamento dos
casos de traumas mentais sofridos por nós, porque, ao fazermos as
associações livres, descobrimos uma trilha que leva a lembranças cada
vez mais profundas.
Com o caminhar investigativo, acabamos encontrando lembranças
ocultas pela mente e conseguimos dar novo significado às sensações que
vivemos. Geramos, assim, pequenos processos de ressignificação.
Ao expor os seus pensamentos e sentimentos, você revive as
sensações. Com isso, uma nova camada de racionalidade é adicionada às
memórias antigas, pois o seu inconsciente é atemporal.
Quando você abala as estruturas das suas simbologias, torna
possível fazer uma “faxina” na mente, o que permite que você coloque
para fora, sensações que foram reprimidas e que geraram frustração.
A nova simbologia vem reescrita de forma mais elaborada,
deixando o ID mais confortável e reduzindo o conflito interno entre o ID,
o Superego e o Ego.
Como resultado, as suas escolhas passam a ser mais conscientes,
isso não evita que você erre, mas o deixa capaz de diagnosticar a origem
dos erros. Saber o diagnóstico já é um grande passo para o seu
crescimento pessoal.
Essa é a grande contribuição da psicanálise para a melhoria da
qualidade de vida do ser humano. A possibilidade de liberação dessa
carga emocional, às vezes, contida por anos.
Freud deu o nome de “catarse” a esse processo, que nada mais é
que a limpeza e a purificação da mente. Então, o importante não é saber
quem está com a razão, e sim entender que, se você não estiver aberto
para a realização de uma revisão nos seus sistemas de crenças, ficará
preso em um jogo mental que só fará mal a você mesmo.
Beatriz viveu presa, durante sete anos, ao casamento com Ricardo,
uma pessoa que tinha qualidades que ela não admirava. Ela o enxergava
mais pacato, romântico e sem ambição. Talvez essa tenha sido uma
avaliação errada por parte dela ou talvez fosse somente o medo dela de
se entregar.

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O importante é analisar que, se você não está bem, a mente criará
“válvulas de escape” para dispersar a energia vital do ID, a libido, seja no
trabalho, seja com os filhos, seja na academia. No caso de Beatriz, ela o
fazia com a empresa, trabalhando até tarde, chegando em casa cansada
e evitando, assim, momentos ociosos que poderiam trazer à tona
realidades duras de lidar.
Ricardo não passou pelos mesmos traumas que Beatriz, sendo
assim, não ativou esse senso de desconfiança com os demais. Confiando
nos outros, ele sempre contava que tudo ia dar certo, que sempre alguém
estaria ali para ajudar, fato que causava nela desconforto e esfriava a
relação dos dois.
A desconfiança vinha da própria Beatriz, o contexto de vida de
Ricardo era diferente, mas, por medo, ela ficou anos presa a algo que a
incomodava, até que o Ego encontrou uma “válvula de escape”, a filha do
casal.

A energia vital do ID pulsa em nós todos os dias. Essa libido


precisa ser extravasada, e o Ego, sempre a nosso favor,
buscará um meio de fazer isso acontecer.

Ao deslocar todo o amor para a filha, em busca da sensação de ser


reconhecida como necessária, Beatriz acabou negligenciando a relação
que mantinha com Ricardo. Mas, cá entre nós, o que é o amor? Ou, pelo
menos, o que a sociedade considera como amor? Não fique curioso, no
próximo capítulo, tem mais sobre esse assunto.

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RICARDO
Sabe aquela história do amor impossível? Bem-vindo à minha
história, o meu nome é Ricardo, e eu me apaixonei perdidamente por uma
estudante de Administração.
Nasci em uma família bem tradicional, hoje moro na capital
paulista, mas os meus pais são do interior de São Paulo. Somos uma
família muito unida. Lembro-me que todos os anos fazíamos uma grande
festa no Natal. A casa da minha avó estava sempre cheia de gente. Cada
um ajudava com o que podia. Quantas recordações das risadas soltas
pelo ar…

O meu desejo era construir uma família como a dos meus


pais, grande, com muitos filhos, e ter uma casa aberta,
sempre pronta para receber os amigos.

Comecei a estudar Engenharia, como meu pai, mas confesso que a


grande influenciadora foi a minha mãe. O meu pai trabalhava em uma
construtora, ganhava muito bem, nos levava sempre para viajar.
Enxergar o olhar de admiração da minha mãe toda vez que ele chegava
em casa fazia com que eu pensasse: “quero essa vida para mim”.
Quando entrei para a faculdade, sentia o orgulho pular dos olhos
dela. “Que felicidade!”, dizia a minha mãe. Ela chorou, fez um jantar
comemorativo, convidou a parentada toda. O meu pai também gostou,
falou que, em breve, conseguiria me indicar como estagiário na empresa.
Até que, em um belo dia, andando pelo campus, vi uma menina
correndo com um cesto de brigadeiros na mão. “Como ela é linda!”,
pensei. Estava toda agitada, porque tinha perdido o tempo de intervalo e
chegaria atrasada à sala de aula.

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No dia seguinte, comecei a comprar os brigadeiros dessa moça,
mesmo não sendo muito fã de chocolate. O objetivo não era comer os
doces, era conseguir conhecer mais sobre ela.
Conversa vai, conversa vem, descobri que tinha vindo
recentemente do interior e, claro, me ofereci para mostrar a cidade. Ela
relutou por algumas vezes, até que acabou aceitando.
Foi o maior ato de coragem que eu já fiz. Começamos a sair, a
namorar. Nunca pude mensurar o quanto estava apaixonado. Não
conseguia me focar em mais nada.
Com o tempo, comecei a ajudar na produção dos brigadeiros.
Ficava mais na casa dela que na minha, então decidimos que me mudar
para lá seria a melhor opção.
Quanto mais próximo pudesse ficar de Beatriz, melhor. Os anos
foram se passando, ela acabou se formando em Administração, e eu
decidi largar a Engenharia. Nós nos dedicamos de corpo e alma à
expansão da pequena indústria de doces da família dela.

Beatriz era mais racional que eu. Às vezes, eu a sentia fria e


distante, mas não me importava. A sensação de estar ao
lado dela suprimia qualquer falta de afeto. Eu precisava dela
para mim!

Havia dias em que me sentia inseguro, não conseguia entender se


a estava sufocando, se estava tudo bem, no caminho certo. Então, senti

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um forte impulso de ser pai. Passava dias imaginando como seria
maravilhoso um filho nosso. Ela relutou um pouco no início, como de
costume, até que um dia o mais extraordinário presente da minha vida
chegou: a nossa filha, Mariana.
No começo, foi tudo perfeito, até eu perceber que a minha ideia
acabou resultando em um grande problema para a nossa relação. Eu
procurava Beatriz à noite, mas ela estava sempre cansada,
sobrecarregada com o trabalho e com a atenção à nossa filha.
Se antes já não havia um relacionamento tão carinhoso, como eram
os dos meus pais, na parte sexual, o negócio literalmente desabou. O foco
de Beatriz foi tornar-se mãe em tempo integral, empresária nas horas
vagas, e eu acabava como coadjuvante.

Acabei perdido entre a tristeza de viver em segundo plano e o amor


que tinha pelas duas. Eu e Beatriz começamos a discutir com mais
frequência. Nesses momentos, ela aproveitava para jogar na minha cara
“toda essa falta de atitude”, que passou a virar o mantra dela.
Falta de atitude? Eu sempre estive ao lado dela, sempre apoiei as
decisões que tomava, sempre a coloquei no mais alto patamar.
Na visão de Beatriz, a empresa só chegou aonde chegou pelo pulso
firme dela, que esse era o jeito dela e que eu já deveria saber disso. Eu
sabia, ela tinha um gênio forte, mas achava injusto não reconhecer que
eu também estava ali, trabalhando todos os dias no chão da fábrica.
Trabalhava na Gerência de Matérias-primas e controlava a
qualidade dos doces. Sempre tive o carinho e a admiração dos
funcionários, dentre eles, Valéria, uma estagiária de Engenharia
Alimentícia.

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Ficávamos horas debatendo sobre diversos assuntos. No início,
eram coisas mais relacionadas à fábrica, no entanto assuntos mais
pessoais sempre vinham à tona.
Num belo dia, percebi que havia começado a reparar Valéria com
um olhar diferente. Trabalhar todos os dias passou a ser um grande
prazer para mim. O meu humor mudou, a minha disposição mudou, até
as brigas com a Beatriz deram um tempo. Não foi nada planejado, quando
vi, havia me apaixonado por Valéria.

Fiquei muito confuso, eu amava Beatriz e, ao mesmo tempo,


não conseguia parar de pensar no olhar de Valéria,
principalmente quando eu falava de minhas experiências
profissionais.

Então, uma força que não consegui controlar me levou à atitude da


qual eu mais me envergonho, a traição. A destruição de tudo que era puro
para mim, a família. Não gosto de falar muito sobre os detalhes dessa
história, mas, para resumir, fomos descobertos por Beatriz em um
descuido, dentro da própria empresa.
Eu me afastei de Valéria, mas o estrago já havia sido feito. Não
houve reconciliação com Beatriz. Aquele cristal se quebrou, e sei que
nunca mais voltaria a ser o mesmo. Ela ficou furiosa, falou que não
confiava mais em mim, que todo homem era igual. Precisei vender a
minha parte na empresa e retornei para a casa dos meus pais. Como
minha mãe está doente, hoje eu ajudo a cuidar dela.
Em alguns dias, me pego pensando no passado: “será que deveria
ter continuado na Engenharia? Será que realmente me acomodei com a
situação, acreditando na segurança que havíamos estabelecido em
nossas vidas?”.
Não sei se consigo emprego em outra indústria. O dinheiro da
venda da minha parte, ao menos, me deixou um pouco mais seguro. No
entanto, hoje tudo é meio sombrio. O que me dá força é Mariana, a minha
filha, que faz com que eu não desanime de vez.
Aprendi que a vida é um processo de idas e vindas, tenho ciência
dos meus erros, carrego a vergonha de ter destruído a minha família,
fardo com que eu sei que precisarei lidar. O amor? O amor se tornou algo
inexplicável para mim.
Hoje não sei mais o que pensar. O amor seria essa dependência
emocional que eu ainda tenho de Beatriz? Seria essa sensação de ser

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admirado que percebi em Valéria por mim? Qual é a origem dessa força
tão intensa que quebrou todos os meus conceitos morais e fez com que
eu traísse quem eu mais amava? Sinceramente, não sei.

__

E agora, leitor? Ricardo é um traidor? Beatriz é culpada? Depende.


Na verdade, sempre irá depender de quem gerou mais significação para
você. Normalmente, acabamos tendo empatia por um dos lados. Talvez
você tenha passado por algo parecido ou vivenciou a situação de alguém
muito querido que sofreu de forma similar. Vamos entender um pouco
mais sobre a verdade no próximo capítulo, aguardo você lá!

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TRAIÇÃO
Lembra que basicamente seguimos os nossos instintos e
mascaramos isso com “verdades” utilizadas para justificar os nossos
atos? Bem, das fragilidades que buscamos esconder do mundo, talvez a
maior delas seja a solidão.
Você pode imaginar o quão traumático foi quando você descobriu
que dependia de outro ser para viver?
Ao longo da vida, acabamos gerando uma dependência muito
grande de afeto. A necessidade de socialização acende em nós um alerta:
“preciso ser amado e reconhecido como necessário pelo outro” (mesmo
que você não admita isso).
Não adianta esconder essa dependência. Nós nascemos
dependendo do outro, para sermos alimentados, protegidos, aquecidos,
limpos, e acabamos morrendo dependendo do outro também.
Assim, desde o início da vida, começamos a nossa corrida pelo
amor. Não pelo amor ao próximo, mas pela percepção de sermos amados.
Afinal, “se eu não convencer que sou necessário, que precisam de mim,
como terei êxito na minha sobrevivência?”.
Com isso, toda a sua biologia entra em cena, e você passa a buscar
por um laço, uma conexão com qualquer ser que lhe proporcione as
sensações de segurança e prazer necessárias à sua automotivação.
Afinal, o que é bom deve ser mantido, e qualquer ação minha que resultar
em algo que me traga satisfação deverá ser repetida.
Contanto que você receba atenção, que se sinta importante, está
tudo bem. Sim, o nosso amor é egoísta, ou pelo menos o que chamamos
de amor. Ele, de certa forma, resume-se à interdependência entre
consciências. Você precisa de mim, e eu preciso de você, e, enquanto essa
equação estiver ao meu favor, eu me sentirei reconfortado.

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Na verdade, você não se preocupa com o outro, não nos
relacionamentos pessoais, você o ama condicionalmente. Então,
demanda uma condição.
Eu amo você enquanto perceber que sou importante para você e
enquanto isso me trouxer segurança. Posso também amar a necessidade
que gerei a respeito de você (mesmo que eu afirme o contrário, ou como
você acha que podem existir relações abusivas?).
A mente humana cria laços tão elaborados que a percepção
racional fica praticamente impossível. Há casos em que a criança
identifica a relação violenta entre os pais com a forma como ela entende
o amor.

A mente sente falta do que viveu, independentemente de a


simbologia ter sido positiva ou negativa. Isso faz com que,
inevitavelmente, o ciclo seja muito difícil de ser rompido.

Se eu convivi com pais violentos, há uma grande chance de eu me


tornar violento também, porque foi dessa forma que aprendi. Eu poderia
também ter uma atitude contrária e acabar buscando alguém que me
violente das mais variadas maneiras possíveis.
Claro, isso não é uma regra, é uma tendência e acontece porque é
a forma como a pessoa se identifica com o amor, algo difícil de
compreender e, principalmente, de aceitar.

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Dói, dá medo perceber que, relação após relação, você escolhe o
mesmo tipo de pessoa e que a culpa não está no seu “dedo podre”, na sua
má sorte com o outro, mas, sim, no seu desejo inconsciente de repetir a
forma de amor que você significou na infância. Afinal, é lá que
começamos a aprender, a entender o mundo que nos rodeia. Já imaginou
o impacto que isso tem na sua vida?
Simbologias podem ser criadas quando adultos, acontece o tempo
todo, entretanto, como eu disse, demanda maior processamento mental.
Então, só acontece quando necessário.
É o que experimentamos quando aprendemos a dirigir. No início, o
carro o domina, você precisa analisar cada movimento. Depois, você vai
encontrando equilíbrio e, com o tempo, nem lembra mais o que está
fazendo, pois fica tudo automatizado no seu cérebro.
A simbologia criada para o amor, a dependência, vem da infância.
Na verdade, essa deve ser uma das primeiras — se não, a primeira —
simbologia criada por nós. O aconchego de ter um corpo colado ao nosso,
doando-se a nós, tratando-nos como o mais precioso dos presentes…
Convenhamos, isso deve marcar bastante.
A maturidade dos anos ajuda a filtrar os impactos das frustrações
diárias, coisa que não acontece muito bem na fase infantil. Freud usava
a fase infantil para explicar essas repetições de padrões comportamentais
na vida adulta, algo que faz total sentido.
Na psicanálise, falamos que a mente sente falta do que viveu.
Guarde bem isso, você só sente falta do que sabe que existe,
independentemente de essa vivência ter sido boa ou má.

Podemos dizer que todas as relações que temos com os


gêneros feminino e masculino foram criadas na infância, bem
cedinho, e que, a partir dessa simbologia, desse modelo,
comandamos todos os nossos relacionamentos até hoje.

Veja o caso de Ricardo, que se apaixonou por Beatriz porque


reconheceu nela algo que o remeteu à referência que ele tinha de amor
feminino, a própria mãe.
Talvez tenha identificado a mesma mulher forte que ele sempre
amou e, desse modo, ocorreu uma conexão pessoal, tão intensa que o
fazia comer chocolate — algo de que declaradamente ele não gostava —,
a fim de conquistar a atenção de Beatriz.

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Por outro lado, ela se via solitária em uma grande cidade, sem
amigos, insegura. De alguma forma, também passou a ver Ricardo como
ponto de apoio, um companheiro.
Motivações bem diferentes. Não havia admiração mútua, já que,
pelo menos por parte de Beatriz, esse sentimento não existia. O que havia
entre os dois, biológica e mentalmente falando, basicamente não passava
de pura conveniência.
Ricardo buscava o reconhecimento de Beatriz, mas esse
reconhecimento nunca viria, porque o conceito que ela tinha dele já havia
sido formado. Para Beatriz, ele sempre seria um cara pacato demais
(mesmo que não o fosse). Ela já tinha formada a imagem do que Ricardo
era para ela. O ID de Beatriz, por outro lado, lutava por liberdade. O Ego
trabalhava para que ela demonstrasse, de maneira sútil até mesmo para
ela, que Ricardo não se encaixava ali.
O Ego de Ricardo, por mais que entendesse os sinais inconscientes
de Beatriz, lutava por aprovação. Em um processo constante de
reafirmação, ele a colocou como objetivo de vida. Ricardo estabeleceu
como meta conquistar verdadeiramente o coração de Beatriz, era como
ele encontrava o motivo para se relacionar com ela.

As coisas foram assim até que o corpo respondeu a um estímulo


instintivo maior e começou a sabotar a mente de Ricardo, ativando os
hormônios da paixão e forçando o ID para outra “válvula de escape”.
Ricardo estava triste, possivelmente deprimido, e esse conjunto de
fatores, incluindo agora o próprio Ego, fez Ricardo ser descoberto com
outra mulher por Beatriz, na fábrica. Isso, de certa forma, tirou-o dessa
situação entendida pelo Ego como de desconforto.

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Ao perceber uma conexão simbólica entre Ricardo e Valéria, o Ego
encontrou ali um objeto transitório perfeito e necessário para uma
mudança da dependência emocional que Ricardo tinha de Beatriz,
fazendo-o se apaixonar por Valéria, ao menos por um período.
Um objeto transitório é uma artimanha mental. Naquele contexto,
foi criada para retirar Ricardo daquela situação, tanto que, depois que o
Ego concluiu o objetivo, a paixão dele por Valéria imediatamente acabou.
Beatriz tinha a mesma artimanha elaborada a seu lado. Ao focar a
libido na criação de Mariana, deu brecha para que pudesse reafirmar a
própria “verdade”, de que nenhum homem é digno de confiança, pois
qualquer um pode abusar de você ou te abandonar quando mais precisar
de apoio, proteção…
A eficiência cerebral busca repetir padrões. Quando associamos
eventos presentes a outros já registrados no passado, torna-se plausível
pensar que você só se relaciona com mulheres e homens da mesma forma
com que se relacionava com as suas figuras representativas materna e
paterna.
Então, pode haver uma atitude mais submissa por parte da pessoa
que busca a figura paterna ou a materna nos relacionamentos, porque,
na infância, para ela, foi identificado que, agindo assim, receberia mais
atenção. Desse modo, continua buscando a mesma recompensa, até hoje,
nas relações afetivas.
Também pode haver uma identificação mais dominadora, em que,
em vez de demonstrar submissão com relação às pessoas à sua volta, o
sujeito passa a “imitar” a atitude do amor que o dominava, mantendo
bem lá no fundo um desejo de ser dominado.
A compreensão desse paradoxo é um dos pilares da psicanálise. As
suas figuras materna e paterna irão influenciar toda a sua trajetória de
vida, principalmente a relação com o outro. No fundo, você só se relaciona
com essas duas figuras, que são as simbologias representativas criadas
por você de amor.
Quer um exemplo? Se não reconheceu a autoridade paterna como
dominante na relação que você percebeu entre os seus pais, dificilmente
um homem em uma posição superior lhe trará credibilidade, e você
buscará confiar mais em mulheres.

É como um bloco de mármore, cada impacto sentido na sua


vida desenha ranhuras na sua mente. Essas ranhuras viram
caminhos padronizados para cada atitude que você toma no

34
dia a dia. Imagine agora como isso influencia nos seus
relacionamentos com companheiros, amigos, nos ambientes
de trabalho e até mesmo na escolha da profissão.

A busca do reconhecimento, do amor, norteia as nossas escolhas,


a sua formação acadêmica, os seus parceiros sexuais, a forma com que
você gerencia as suas frustrações, as perdas e as recompensas. Está tudo
conectado às simbologias criadas na sua infância, e esse não é o
problema, isso é comum a todos nós. O problema é quando a elaboração
das simbologias conflita com a formação das crenças pessoais.
A sua vida começa a ser impactada quando o seu sistema de
crenças ¾ pessoais, filosóficas, religiosas, etc. — entra em atrito com
modelos mentais simbólicos, criados por você desde o seu nascimento.
Às vezes, a rigidez do Superego é muito grande, e o Ego fica sem
opções para poder trabalhar pelo ID. Acabamos dando uma importância
irreal aos fatos que ocorreram no passado. Sendo assim, eles precisam
ser ressignificados. Expurgados da mente, traumas reprimidos de
qualquer época abrem espaço para novos conceitos, novas emoções e
ajudam a reescrever novas simbologias.
Qual é a origem das crenças? De onde vêm esses desejos que
tomam conta da nossa vida? Para conhecer mais sobre a história de
Beatriz, veja, no próximo capítulo, qual é a origem dos nossos desejos.

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DESEJO
E Deus disse: “Faça-se a luz!”2. E a luz foi feita. Quando nascemos,
somos frutos de alguém que nos deu à luz. A própria origem do universo
remonta ao início da dispersão dessa luz em todas as direções. O que é a
luz? A luz é uma onda eletromagnética visível, uma energia, como tudo o
que compõe o universo.
Somos feitos da mesma energia, que continua o movimento de
expansão, evoluindo através do espaço e do tempo. É como Carl Sagan,
cientista e astrônomo norte-americano, disse: “Somos uma maneira do
universo de conhecer a si mesmo”3.
Estamos imersos no universo e somos parte dele. É impossível não
filosofar. Qual será, então, o nosso papel nisso tudo, nesse grande
movimento energético que é a vida?

Acredito que, da mesma forma que os astrônomos vasculham


o passado para compreender o presente e o futuro, nós
precisamos investigar as nossas origens, para entendermos
o porquê de nossas atitudes no agora. Só assim podemos
construir um futuro menos prejudicial para nós mesmos.

Como foi a educação que os nossos antepassados tiveram, quais


dogmas e circunstâncias originaram os possíveis bloqueios e limitações
criados por nós?
Livrarmo-nos de nossas amarras mentais é o único caminho para
que possamos saber aonde ir. Esse é o ponto de partida para a sua
jornada de autoconhecimento.
Fazer uma autoanálise, compreender que você faz parte de um todo
muito maior que você mesmo, isso vai além das crenças religiosas criadas
pela sociedade. A questão é física, cada átomo do seu corpo foi forjado
por essa energia. Acredite, você é a prova viva da consciência do universo.
Ao percorrer o caminho do autoconhecimento, você passará a
entender que não existe mágica, mas que, ainda assim, tudo é mágico. A

2 Gênesis, capítulo 1, versículo 3.


3 Fala proferida no “The Shores of the Cosmic Ocean [Episode 1]”, Cosmos: A
Personal Voyage, PBS, 28 September 1980.

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vida é uma obra incontestavelmente bela, tão forte e pulsante e, ao
mesmo tempo, tão frágil e divina.
Quando penso que somos um fragmento do universo, como uma
célula do nosso corpo, que, enquanto vive a própria independência,
compõe uma consciência maior, vejo o quanto a vida é extraordinária.

A energia nunca acaba, ela se transforma. Não há


desperdício na natureza, só a mudança de estados físicos da
energia. Uma hora você é uma estrela supermassiva, na
outra, trilhões de átomos reunidos, tendo consciência de si
mesmo.

Graças a essa contínua mudança de estado físico, a nossa


capacidade cognitiva chegou a um ponto evolutivo capaz de questionar o
universo no qual está inserida. Só então passamos a ponderar sobre o
nosso objetivo nisso tudo.
Claro que isso é importante, no entanto vale ressaltar aqui a
própria conquista da consciência em si. Como foi marcante esse passo de
chegar à autoconsciência. Opa! Eu existo! Por quê?
O porquê, talvez nunca saibamos, mas a percepção da
autoconsciência é um ponto muito relevante, pois isso nos difere dos
outros animais. Os animais irracionais estão conectados à natureza de
uma maneira diferente, talvez até mais profunda, pois, para eles, não há
dúvidas, só existe o momento, e isso já basta. Nós não, nós
questionamos.
Buscamos formas de justificar o porquê, de medir as
possibilidades, para negar ou confirmar que tudo não seja puramente
obra do acaso. E acabamos criando um monte de crenças e histórias só
para validar algo muitas vezes simples.

37
Talvez você só esteja aqui como parte representativa da energia que
o criou, para manter esse eterno movimento de transformação e evolução.
Para aprender, principalmente com os seus erros, sem que eles
efetivamente indiquem que você está errado. O erro faz parte do
aprendizado, faz parte da evolução.
Então, não crie tantas histórias para justificar os seus erros,
aceite-os como algo natural, inevitável. Compreenda que talvez estejamos
perdendo um pouco da conexão com algo maior por gastarmos tempo
demais nos punindo por erros que, tecnicamente, não existem. Acabamos
desperdiçando a nossa energia vital com algo que é relevante, somente,
como ponto de aprendizado e nada mais.

Por defendermos as nossas verdades absolutas, nos


esquecemos do que realmente importa, a nossa conexão com
a energia que nos criou e da qual fazemos parte.

Não esqueça que você é energia viva, autoconsciente e


interconectada a tudo e a todos. Não interrompa o fluxo dessa energia
remoendo coisas do passado, ao invés disso, agradeça. As barreiras foram
criadas para possibilitar o seu crescimento.
Fazemos parte de algo maior, que extrapola a ordem cerebral com
a qual estamos acostumados. Algo que talvez ainda esteja no início dos
estudos por parte da ciência, mas que você sente, está dentro de você.

38
Não é preciso nenhuma crença para justificar isso. Você é parte da
natureza do universo e, como tal, deve continuar o seu fluxo de
transformação.
Para melhorar o seu estado de espírito, evite entrar nesse conflito
do individualismo e aceite o seu desejo instintivo de crescimento
universal.

Falo de crescimento universal como crescimento de toda a


coletividade da qual você faz parte. Pensar no outro é pensar em você
mesmo, porque nós somos um, somos seres sociais.
No entanto, o nosso egocentrismo, disfarçado de racionalidade, vive
pelo prazer imediato da recompensa, mascarando a nossa verdadeira
essência e rompendo a conexão com a nossa origem.
Convenhamos, não há como manter a carga energética alta se você
anda desconectado, concorda?

Lembre: você, como produto da natureza, pode escolher como


deseja passar por essa existência. Quanto mais rapidamente
você remover os “queijos podres”, causados pelos traumas,
de dentro da sua “geladeira” mental, mais rapidamente
poderá lidar com as frustrações que pesam tanto a sua alma.

Beatriz, por exemplo, passou anos carregando uma relação vazia,


que ela buscava preencher com trabalho, depois, com a filha, até o ponto

39
em que perdeu o relacionamento afetivo que mantinha há mais de sete
anos.
Como nunca se relacionou verdadeiramente, acabou vivendo ao
lado de alguém de forma impessoal. E você, lembra que o inconsciente
sempre trabalhará ao seu favor?
Não adiantou Beatriz esconder, através de autoafirmações, que
estava tudo bem. Nas entranhas da mente, o ID precisava extravasar a
libido, e o Ego fez isso, utilizando fugas inconscientes, como fazendo-a
passar cada vez mais tempo com a filha, quem sabe até dormindo com
ela, para evitar dormir com o marido; passar horas extras intermináveis
no trabalho, situação que representava para ela mais prazer que
aproveitar os momentos com a família. Faz parte dos nossos desejos mais
ocultos, o desejo de sentir-se vivo, em movimento.
Que tal, então, entendermos um pouco mais sobre a origem dos
traumas de Beatriz? Talvez a mãe da nossa protagonista nos forneça mais
detalhes, acompanhe a história de Maria Flor no próximo capítulo!

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MARIA
Venho de uma família rural, sem instrução, gente simples mesmo.
Gente do campo, que se orgulha das tradições e costumes. A minha mãe,
imigrante italiana, era uma católica muito devota à Nossa Senhora.
A família chegou ao Brasil fugindo da guerra, passando fome,
navegando dias pelo mar até chegar aqui. Minha mãe dizia que nunca
mais veria o mar e que trabalharia para nunca mais passar fome. Meus
avós imigraram para o interior de Minas Gerais, onde começaram uma
pequena lavoura de café.
Nasci ali, naquela fazenda. Minha mãe nunca deixou faltar nada
em casa, tomou as rédeas da família. Ela era uma mulher forte.
O meu pai era um lavrador, a família dele era de uma cidade
próxima. Era um homem pacato, do campo, que trabalhava o dia inteiro.
Não tínhamos uma ligação muito forte, mas eu sabia que ele era um bom
homem.
Com a minha mãe, aprendi a arte de fazer doces, algo que, me
orgulho em dizer, é responsável pelo sustento das minhas filhas e netas.
Sou Maria das Flores, uma caipira simples, que está sempre disposta a
ajudar o próximo, como o Nosso Senhor ensinou.
Sou a filha do meio. A minha irmã Tereza e eu sempre ajudávamos
em casa, enquanto o meu irmão mais novo, o Pedro, desde cedo,
acompanhava o nosso pai na roça de café.

Como grande devota de Nossa Senhora, minha mãe sempre


nos colocou no caminho do Senhor, então venho tentando
cumprir esse papel. Mesmo pecando, busco levar a família
para a igreja. Infelizmente, tenho uma filha que ainda não
encontrou o caminho do bem, Beatriz.

Na igreja, conheci o meu marido, Francisco, um homem honesto,


trabalhador, que foi bom companheiro. Ajudou a criar as meninas. Nunca
arrumava confusão, trabalhava como carpinteiro e não bebia. Que Deus
o tenha em bom lugar. Ele morreu quando as meninas tinham por volta
dos 25 anos e já estavam criadas. Foi logo após o nascimento da minha
neta Mariana.

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Sempre fiz a maior parte do serviço de casa, às vezes me sentia
sobrecarregada. Mesmo tendo duas filhas, para me ajudarem, era aquele
sufoco. Nem sei como Beatriz conseguiu morar sozinha na capital, aquela
menina não ajudava em nada. Se não fosse eu, nem sei. Ela sempre foi
mais arteira, diferente da Berenice. Berê era mais calminha, ajudava sem
reclamar, gostava de ir à igreja.
Eu me lembro do dia em que pedi para as meninas me ajudarem
na entrega das encomendas de Páscoa. Pedi para Beatriz ir à igreja, mais
próximo aqui de casa, enquanto Berenice, que era mais velha, foi para a
casa da família Duarte, um pouco mais longe.
Acredita que Beatriz, aquela malandrinha, chegou aqui chorando
e falando que o padre Plínio havia feito safadeza com ela? Não acreditei
no que ela havia inventado! Só não bati em Beatriz naquele dia porque
eu estava com muita coisa para resolver. Mas a coloquei de castigo! Onde
já se viu falar algo assim? Essa menina não tem juízo.
Depois disso, começou a não querer mais fazer as entregas, ficava
só na cozinha. Para evitar confusão, acabei falando com Francisco para
arrumar um rapaz que pudesse fazer as entregas, engraçado que ele nem
me perguntou o porquê, também, graças a Deus, os pedidos estavam
muito bons.
Dei aquele assunto como encerrado, mas a diabinha veio com o
mesmo papo depois da missa. “Mãe, o pai precisa xingar o padre!”, dizia
ela.
Agora eu pergunto pra você, como? Como eu iria acreditar em uma
criança arteira como Beatriz e causar esse alvoroço na cidade? Imagina
o falatório que seria com o meu nome: “Dona Maria Flor, a doceira, falou
que o padre fez ‘coiso’ com a filha dela”. A menina não ficou nem 2
minutos lá, como pode ser tão mentirosa, isso só pode ser obra do diabo.
Além do mais, se eu falasse algo assim com Chico, iria escutar uma
bronca, porque tinha deixado a menina andar sozinha por aí, ele poderia
querer tirar satisfação com o padre e quem sabe até perder o trabalho.

Já imaginou um bafafá desse chegando ao ouvido do santo


bispo? Ninguém na cidade compraria mais meus doces, a
nossa família ficaria falada. Eu não ia permitir isso, não na
minha família.

Precisei mentir, falei para ela que o pai estava sabendo de tudo e
já tinha resolvido, que ele disse para não tocarmos mais no assunto.

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Um belo dia, Beatriz, já com a filha no colo, veio me questionar
sobre essa história. Falei: “Minha filha, para de revirar o passado, deixa
ele quietinho lá, que é lugar dele. Tem vezes que a gente acha coisas que
nem são… Vai por mim”.
Mas ela insistiu, falando que tinha ficado chateada com o pai, e o
coitado nem estava lá mais para se defender. Acabei falando a verdade,
que eu não tinha contado nada para ele, e ela ficou brava comigo.

Dá pra ver que, mesmo moça velha, ainda não sabe nada da vida.
Isso é falta de Deus, é o diabo colocando coisas naquela cabecinha de
vento.
Falei para ela começar a ir à igreja. Tem uma do lado da casa dela,
lá na cidade. Mas não, é abusada. O marido não aguentou, trocou ela por
uma moça mais nova. Olha o rumo que essa menina está tomando na
vida.
Ainda bem que Berê é diferente. Não me dá trabalho, nunca deu!
Mora a duas quadras aqui de casa, vai à igreja todo domingo, vem aqui
em casa sempre e tem uma família unida. A outra está perdida, separada
do marido, na vida mundana e querendo arrumar confusão. Deus sabe a
cruz que sempre carreguei por essa família!
Mas quer saber? Na graça de Deus, eu sou feliz. Ainda cozinho
meus doces e tomo todo dia o meu cafezinho. Paz, não é isso que importa?
___

É, caro leitor, esta trama daria um belo filme, mas a minha praia é
a análise, melhor deixar isso pra lá, ou não? Netflix, olhe eu aqui! Agora

43
falando sério, o que dizer da dona Maria Flor? Qual a sua opinião sobre
tudo?
Ela, uma protetora da família e dos bons costumes, vai saber os
segredos que guarda e os bloqueios que criou… Normalmente a vida
prega umas peças na gente, às vezes as coisas parecem ciclos
intermináveis, concorda? Continuamos o desenrolar desta história nos
próximos capítulos, onde iremos analisar como os bloqueios e os segredos
que guardamos podem nos prejudicar. Espero você lá!

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BLOQUEIO
Já reparou como a vida é feita de círculos, assim como a Terra
girando ao redor do Sol? A nossa vida parece girar sempre em torno de
um eixo, como uma espécie de carma, do qual é difícil se desvencilhar.
Não há como afirmar isto, mas talvez a própria dona Maria Flor já
tenha passado por algo similar ao que foi vivido por Beatriz, para ter
ficado tão incomodada com a história da filha, a ponto de colocá-la de
castigo. Isso, nunca iremos saber.
No entanto, é possível identificar uma forte crença em Maria. Não
entrarei em aspectos religiosos, esse não é o intuito. Na minha visão, toda
crença é importante e deve ser respeitada, pois ela acaba se tornando
uma grande “válvula de escape” para nossas frustrações. Isso não quer
dizer que não devemos sempre buscar reavaliar os nossos conceitos.
Ficar preso a dogmas morais, religiosos ou culturais impede que você
tenha as próprias convicções. Infelizmente, não mudar o jeito de ser é
muito conveniente para o indivíduo.
Muitos pensam que, se foi predeterminado por alguém ou se
sempre foi assim, então não precisam procurar outras possibilidades.
Afinal, pensar demanda muita energia vital, e o nosso cérebro vai sempre
em busca da eficiência.
Nos relatos de Beatriz e de Maria, é importante observar a
discrepância nas percepções das duas, entre o que Beatriz acha que é
para Maria e o que Maria acha realmente de Beatriz.
Beatriz vê a própria figura quando criança como prestativa, que
ajudava nas entregas e na feitura dos doces, que não reclamava do tempo
livre perdido, para aproveitar mais o tempo com a mãe.
Já Maria tem uma visão completamente diferente em relação à da
filha. Enxerga Beatriz como uma pessoa difícil de lidar, que não
demonstra, desde criança, muito afeto e que possivelmente era
mentirosa.
Podemos compreender melhor esses julgamentos recorrendo ao
conceito desenvolvido pelos pesquisadores Joseph Luft e Harrington
Ingham, em 1955, denominado a “Janela de Johari”. Os dois ponderavam
sobre a seguinte questão:

Será que a percepção que eu tenho de mim é igual à


percepção que os outros têm de mim?

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Joseph e Harrington perceberam que nem sempre a atitude que
nós tomamos com um intuito é entendida pelo outro da mesma forma.
Imagine um armário, sei que eles chamaram de “janela”, mas avalio
que o armário pode ilustrar melhor a situação. Nesse armário, você tem
quatro gavetas. Em cada gaveta, há uma particularidade.
A primeira gaveta é aberta, não tem trancas. Ali, o que você passa
para as pessoas é justamente aquilo com o que elas concordam sobre
você. Por exemplo, você se considera pontual, e essa característica
também é percebida pelos outros. As pessoas dizem: “O Guilherme é
sempre pontual, nunca vi ele se atrasar para uma reunião!”. E eu
reafirmo isso a mim mesmo com frases como: “Eu sempre chego no
horário! Acho uma falta de respeito chegar atrasado”.
Nessa gaveta, encontramos a nossa maior zona de conforto,
porque, se a imagem que eu gostaria de passar sobre mim corresponde à
imagem que o outro enxerga de mim, fica tudo certo.
A segunda gaveta representa tudo o que eu não sei que expresso
para as pessoas, mas que as pessoas enxergam sobre mim. Essa é uma
gaveta fechada para mim, a chave está com os outros com quem me
relaciono no dia a dia.
Então, pode ser que eu queira passar uma imagem de honestidade,
sendo metódico, mas acabo visto pelos outros como uma pessoa
paranoica e chata.
Tanto Maria Flor quanto Beatriz tinham uma visão de que
Francisco não aceitaria bem o ocorrido e reagiria de alguma forma, no
entanto a percepção delas sobre ele pode ser algo que talvez não refletisse
a real personalidade do marido e pai. Vai saber.

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A terceira gaveta é aquela da qual só você tem a chave e onde você
guarda seus segredos. É nela que você oculta aquilo que ninguém deve
saber e que só você sabe sobre você.
Maria sabia que tinha mentido para a filha e para o marido, tanto
que guardou isso na “gaveta” por mais de 20 anos. A sensação a
incomodava, pois ela não esqueceu o fato e entrou em conflito com a filha
quando o assunto veio à tona. O segredo da mentira estava lá, “cheirando
mal” na gaveta da geladeira.
Maria criou um sistema de proteção muito bom, que lhe permitiu
manter o segredo guardado nessa gaveta. Ela usou um processo de
reafirmação para se justificar, afirmando a si mesma ter feito a melhor
escolha ao não contar o ocorrido para o marido, para continuar
protegendo a família.
Quando ela finalmente pôde contar a verdade, mesmo sem
perceber, acabou deslocando o segredo para a gaveta aberta, atitude que
certamente a aproximará um pouco mais daquela paz que ela tanto
busca.
A quarta e última gaveta está trancada. Nem você nem os outros
têm a chave. É onde o inconsciente guarda os eventos que contêm tanta
carga emocional para você que não puderam nem ser guardados na
gaveta dos segredos. A mente então os prende, escondendo a chave.

Percebe o porquê de nem sempre sermos entendidos? Em


certos momentos, a imagem que passamos para as pessoas
não condiz com a imagem que desejamos passar. Isso não é
percebido por nós, mas nos caracteriza no grupo de pessoas
com que convivemos.

Um conflito pode ocorrer porque existem características minhas


desconhecidas para mim, mas que a pessoa ou o grupo enxergam como
“coisas minhas”.
Isso acontece em todos os ambientes, nos familiares, no trabalho,
na escola, etc. Criamos personagens ou padrões de comportamento em
busca de demonstrarmos um modelo ideal de nós mesmos, mas que às
vezes não reflete quem somos de verdade, e essa falha acaba sendo
percebida pelos outros.
Da mesma forma, na gaveta dos segredos, existem coisas que eu
sei sobre mim, mas que eu não compartilho com ninguém. Segredos que

47
às vezes nos machucam, mas que preferimos esconder, com medo dos
julgamentos dos outros.
De acordo com a Janela de Johari, é na gaveta trancada para mim
e para os outros que ficam guardados os eventos que assombram o
inconsciente, que causam incômodos, podendo se refletir no corpo com
reações psicossomáticas que a mente consciente não consegue acessar
diretamente.
Em geral, só nos sentimos totalmente confortáveis com a gaveta
aberta, quando o que eu penso que sou é igual ao que o outro pensa que
sou, e isso está em sintonia com o que eu penso que o outro pensa que
sou.
Porém, cá entre nós, quem não tem segredos? Quem nunca passou
por situações constrangedoras, que deveriam ser esquecidas? E o padre?
Qual a história de vida dele?
Está gostando das análises? Você já tem uma opinião sobre o
culpado da história? Ela continua. Veja o que o padre Plínio tem a dizer,
no próximo capítulo.

48
PLÍNIO
Será que Deus realmente existe? Sei que, como padre, essa é uma
pergunta absurda, quem sabe até blasfêmia. Lembro, como se fosse
ontem, toda a dor e toda a vergonha pelas quais passei. Pensava: “será
que Deus existe mesmo? Por que Ele permite que eu sofra tanto?”.
Morávamos em São Paulo, eu, minha mãe, Judite, e meu pai,
Antenor. Meus pais eram comerciantes, tinham uma loja de tecidos na
cidade. O meu pai era muito violento, viciado em jogo. Por causa disso,
acabamos perdendo tudo, e ele começou a chegar em casa cada vez mais
bêbado.
Brigava com a minha mãe, batia muito nela. Até que um dia ela
tropeçou com um empurrão que ele deu, bateu a cabeça na quina da
cadeira e não resistiu.
Eu tinha 8 anos quando isso aconteceu. Morria de medo de morrer
como minha mãe, mas não tinha como sair de casa com aquela idade. Se
eu contasse para alguém, quem iria acreditar? Fiquei em silêncio,
comecei a ler a Bíblia, escondido no quarto, evitando ao máximo qualquer
tipo de diálogo com o meu pai.
Buscava entender Deus, queria encontrar uma resposta para isso
tudo. A revolta morava no meu corpo, eu não a deixava sair. Comigo
sozinho em casa, meu pai passou a me violentar.
Eram visitas frequentes, eu já não tinha reação. Pensei em me
matar algumas vezes, fugir, mas não achava justo isso. Por que comigo?
Por que eu não poderia ter uma vida comum, digna? Não sabia mais o
que fazer, foi então que encontrei na igreja um refúgio.
Aos 12 anos, passei a participar de qualquer atividade disponível
na igreja, para sair do inferno em que eu vivia. Assim, quando tive a
oportunidade de me tornar seminarista, de sair da cidade, não pensei
duas vezes.

Apeguei-me à igreja, me recolhi aos estudos e às orações.


Aquele foi o lugar onde encontrei a paz que nunca tinha
experimentado na vida. Finalmente tinha material suficiente
para encontrar a minha resposta à pergunta “Deus existe?”.

49
Foram anos de trabalho, missas, aconselhamentos, casamentos,
anos de dedicação e doação à comunidade, na ajuda aos mais
necessitados. Porém, nem todo esse tempo foi suficiente para eu
encontrar, com clareza, resposta à minha pergunta de criança.
Talvez, tenha me tornado tão pecador, tão sujo e indigno, que Deus
tenha decidido não falar comigo.
Será que nem todos esses anos foram suficientes para lavar a
minha alma? Porque ainda acordo atormentado com as lembranças do
passado. Como se aquele garoto de 8 anos ainda estivesse escondido
dentro de mim.
Achei que estava protegido, dentro do ambiente sagrado da igreja,
mas o diabo um dia veio me visitar. Senti o calor do inferno no meu
pescoço, a vergonha aflorou em mim como uma chama sem controle.
Era uma tarde como outra qualquer, estava cheio de afazeres na
igreja com os eventos da Páscoa, estressado com os preparativos, quando
a campainha da casa paroquial tocou.
Era uma menina linda, um verdadeiro anjo, na mão, uma caixa de
chocolates que ela mal podia carregar. Tão carinhosa e ingênua, como eu
era aos 8 anos. Me enxerguei naquele anjo, me identifiquei com tudo que
aconteceu há mais de 50 anos. Senti inveja de toda a inocência ali
intacta, enquanto a minha havia sido arrancada tão cedo.
Dentro de mim, começaram a surgir cenas de nojo, que mexeram
comigo de uma maneira ruim, algo impensável para um homem de Deus
como eu.
Pensamentos pecaminosos surgiam como sussurros do diabo em
meus ouvidos. Então, decidi pedir para a menina ir embora, me levantei
e toquei no ombro dela.

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Talvez por ser tão pura, aquela criança de alguma maneira
conseguiu enxergar o monstro sujo que estava dentro de mim e
subitamente saiu correndo.
Eu nunca ia fazer nada contra aquela garotinha, mas confesso o
meu pecado. Não em atos, mas em pensamentos, algo que nunca havia
acontecido comigo.

Eu me orgulho dos meus anos de servidão fiel a Deus, nunca


quebraria isso, mas considero esse dia um alerta. Foi o dia
em que o diabo me visitou, e eu pude perceber o quanto
devemos estar próximos de Deus.

Sem jeito, fui até a igreja. O pai dela era carpinteiro e estava
trabalhando na reforma dos bancos. Ele era um homem muito bom,
tranquilo, trabalhador e dedicado ao serviço.
Falei: “Senhor Francisco, boa tarde. Sua filha veio entregar os
doces aqui, na casa paroquial. Conversei um pouco com ela e acabei
fazendo algumas perguntas que talvez tenham sido mal-interpretadas.
Acabei deixando-a constrangida. Perguntei se já era mocinha, para que
pudéssemos orientar você e Maria, mas senti que ela se ofendeu e saiu
chorando. Então, resolvi vir contar ao senhor, pedir desculpas caso tenha
faltado com o respeito. Não foi a minha intenção”.
Seu Francisco riu, disse: “Esquenta não, padre Plínio, criança é
tudo doida assim mesmo. Eu confio na integridade do senhor, o

51
acompanho há tanto tempo aqui na igreja. Sei que tudo não passou de
um mal-entendido. Beatriz chora à toa, é muito emotiva. Mas é uma boa
menina, e tudo há de se acertar”.
Agradeci a ele mais uma vez e dediquei aquela tarde inteira a uma
intensa oração. Me senti melhor, mais leve.
Aqueles pensamentos nunca mais voltaram. Hoje, com quase 80
anos, ainda busco por respostas. Será que Deus nos dá a vitória ou a
oportunidade de lutar?
___

Impactante, não, caro leitor? Que história! Sinto o peso da


autopunição que esse padre vem aplicando a si mesmo. Ele se sente
culpado de alguma forma pelo que aconteceu na infância dele, sente-se
impuro. Isso é muito ruim, mas muito comum a todos nós. Ele passou a
vida buscando um perdão, um perdão para si mesmo. Perdão, esse é um
assunto que abordarei no próximo capítulo, espero você lá!

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PERDÃO
Já parou para imaginar que a água que você bebe hoje é a mesma
que os dinossauros bebiam há milhões de anos? Olhe que substância
fantástica, que poder de transformação possui essa fonte de vida!
A água é o catalisador de tudo o que conhecemos como vida e
compõe mais de 75% dos nossos corpos. Pode estar suja, impura, ácida,
mas preserva a condição de retornar ao estado mais puro após passar
por um processo de filtragem.
O padre Plínio nunca se perdoou. E olhe que acredito que, na visão
da maioria, o culpado era o pai dele. Por que, então, ele carrega toda essa
culpa? Por que o trauma sofrido por ele o deixou com uma sensação de
impureza tão grande que a única escolha que ele teve foi abandonar todo
e qualquer projeto biológico de reprodução?
Ser padre se tornou uma escolha perfeita. Nunca mais poderia
tocar ou ser tocado por alguém. Plínio acabou extravasando a libido nas
orações, nos sermões e na ajuda ao próximo. O objetivo de vida dele
passou a se tornar digno, não para Deus, mas para ele mesmo.

A grande ironia é que, em um minuto de fraqueza, ele passou


a representar para uma garotinha tudo aquilo que ele mais
odiava, mas que de alguma forma continuava a habitar
dentro dele, como uma cicatriz de queimadura incomodando-
o todos os dias ao se olhar no espelho.

Perdão. O perdão não é para o outro, o perdão é algo que fazemos


para nós mesmos, que demanda uma pesquisa mais aprofundada na
história da nossa vida. Significa vasculhar locais que talvez já tenhamos
abandonado há muito tempo, mas que estão fedendo dentro de nós, como
aquele queijo podre dentro da geladeira.
O perdão abrange algo muito maior, significa reconhecer que há
traumas que não estão ao nosso alcance, que extrapolam a nossa
compreensão. Ao buscarmos perdoar verdadeiramente alguém,
reconhecemos que nem sempre o culpado tem consciência da própria
culpa.

53
Claro, é praticamente impossível que nesse processo não haja
muita mágoa e ressentimentos envolvidos.
Perdoar é um ato de libertação sem precedentes, mas só acontece
quando você se entrega a uma autoanálise profunda, com dedicação.
Para o pesquisador Frederick Luskin, da Universidade de Stanford4, nos
Estados Unidos, existem nove pontos importantes para quem deseja
seguir essa jornada.
Primeiro, saiba exatamente como você se sente com o acontecido,
quais emoções estão envolvidas. Lembre-se que o seu cérebro infantil
guardava informações em contextos diferentes, e isso é importante para
você entender o impacto real do evento que causou o trauma.
Segundo, crie um compromisso com você mesmo de ir fundo em
seus sentimentos e emoções, para que você efetivamente se sinta melhor.
Terceiro, o perdão é para você e mais ninguém. O perdão não
significa a reconciliação com a pessoa que o magoou nem indica que você
tolerou a atitude dela. O que você busca na verdade é a sua paz interior.
Quarto, tenha a perspectiva correta sobre o ocorrido. Reconheça
que grande parte do que te ofende reside em você, em suas simbologias
primárias. O perdão ajuda a curar os seus sentimentos feridos.
Quinto, quando você se sentir chateado, busque formas simples de
controlar o estresse. Pode ser fazendo algo para aliviar a carga hormonal
do seu corpo, como alguma atividade física.

4 Luskin é criador do Projeto da Universidade de Stanford para o Perdão, onde


realizou pesquisas e investigações sobre o tema. Ele apresenta os novos pontos no livro
O poder do perdão, de 2002.

54
Sexto, não fique esperando que os outros reconheçam as próprias
falhas, cada um vive um momento de vida diferente.
Sétimo, não desperdice a sua energia vital remoendo repetidamente
o evento que o magoou. Transfira essa energia para meios de alcançar
cada vez mais os seus objetivos pessoais.
Oitavo, lembre-se de que uma vida bem vivida é a melhor
“vingança” que você pode ter. Dar foco ao que o feriu acaba gerando uma
atenção que alimenta o Ego do outro. Aprenda a valorizar os momentos
de paz, com harmonia e bondade. O perdão é seu poder pessoal.
Nono, acabe com as lamentações e queixas sobre como os outros
vivem magoando você e comece a se focar em suas escolhas. Pare de
culpar os outros por seus problemas e acorde para um novo momento de
redescoberta e ressignificação.
___

Nas quatro histórias, fictícias, contadas neste livro, todos tinham


pecados, todos magoaram alguém da mesma forma que foram magoados.
É tudo parte desse ciclo de transformação.

Nós acabamos transferindo para o outro a ferida que reside


em nós, como se essa ferida fosse o nosso carma, o nosso
destino, e, por consequência, nos ferimos cada vez mais.

Um grande passo para trabalhar a sua harmonização mental é


buscar compreender sempre um contexto maior do que o percebido no
momento.
Busque o porquê por trás de cada ato do outro, principalmente
quando você se sente ferido, humilhado ou subjugado. Se algo que
alguém lhe falou o feriu, ativou em você um processo de autodefesa do
Ego, é porque tem história não resolvida ali.
É preciso realizar um resgate, correr atrás da história, saber o
porquê das coisas, esse é o ponto. Ou você acha que Beatriz também não
se sente indigna? Ela se sente tocada pelo pecado, criado por ela, por
suas convenções morais. Ela sentiu que errou quando se expôs, ao
reconhecer no padre uma figura paterna, como a de Francisco, o pai dela,
mas os sentimentos são diferentes entre um pai e um homem até então
estranho.

55
Assim, ela se culpa até hoje pela “falha”, algo que na visão dela a
torna indigna, fazendo-a criar uma máscara de mulher forte e
batalhadora, que domina.
No entanto, isso acaba atraindo para Beatriz homens que se acham
igualmente indignos de alguma maneira, como Ricardo, que não
consegue se desvencilhar da mãe, mesmo na vida adulta.
Ao se perdoar, você acaba se livrando de uma grande carga de
estresse acumulado. Com base nos ensinamentos do professor Luskin,
podemos entender que, quando não conseguimos perdoar, passamos a
ver a vida com mais amargura. Acabamos desconfiando mais dos outros
e nos ofendendo mais facilmente.
A força de se perdoar irá ajudá-lo a entender que errar faz parte do
processo de aprendizado, que é natural. Se você erra, os outros também
têm esse direito. Lidar com a nossa dor nos torna mais empáticos com o
outro.
Além do mais, para Frederick Luskin, o perdão carrega outros
benefícios, como reduzir a pressão sanguínea ocasionada pelo estresse,
amenizar a tensão muscular, diminuir o risco de doenças do coração,
melhorar o sistema imune do corpo e reduzir a depressão.
Quanto mais culpa carregamos, mais aumentamos a possibilidade
de que doenças psicossomáticas se manifestem. A angústia nos
incomoda a ponto de desenvolvermos sintomas físicos relacionados a
traumas mentais. Atrapalha a nossa convivência com o outro, tornando-
nos solitários.
E você, já parou para pensar em quem você culpa? Vamos ver um
pouco mais sobre a culpa no próximo capítulo.

56
CULPA
Quero filosofar um pouco. Agora que estamos chegando ao final do
livro, já conquistei a sua atenção a ponto de poder compartilhar com você
alguns dos meus devaneios.
Imagine se vivêssemos em uma simulação, bem ao estilo do filme
Matrix. Que a sua existência neste plano fosse obra de uma programação
bem detalhada feita por você mesmo. Que cada perrengue que você
passou na vida e cada desafio que moldou a sua personalidade tenham
sido programados por você, o “deus” da sua existência. Tudo isso com
um objetivo bem claro, torná-lo um ser humano melhor, mais evoluído,
mais maduro.
Falo aqui de maturidade como serenidade, para com os outros, em
um entendimento maior do amor supremo que está em todos os aspectos
de nossa vida.

Talvez tenhamos vindo a este mundo para buscarmos


exclusivamente a cura para os nossos medos, medos esses
que impedem o nosso crescimento evolutivo como parte de
um conjunto maior. Maior que nós mesmos. Universal.

Já pensou se a sua vida fosse o resultado de uma programação


desenvolvida por você, ou em conjunto com você, feita nos mínimos
detalhes, para que pudesse enfrentar justamente o que mais tem
dificuldade e, por isso, irremediavelmente acabasse atraindo exatamente
o que mais teme?
Se o medo fosse o da solidão, precisaria aprender a conviver
consigo mesmo, talvez não se vinculando a ninguém sem antes aprender
o seu próprio valor. Ou se o medo fosse o da falta de controle, viveria na
dependência dos outros, até entender que você só controla seus próprios
atos.
Em vários aspectos, quando você escuta que atrai aquilo que mais
pensa, acaba vivenciando esses medos, tantas vezes forem necessárias
em sua vida (ou quem sabe vidas), como se isso fosse resultado de um
planejamento feito por você antes mesmo de nascer.
Eu, como programador por formação, não posso deixar de
questionar que, se tudo fosse programado e se a vida fosse somente uma

57
simulação criada para nós, visando ao nosso crescimento pessoal com o
enfrentamento de nossos medos, poderia então o mal realmente existir?
Você pode se perguntar: “mas e todo o mal que existe no mundo?
E as barbaridades que aconteceram comigo?”. E eu respondo: “elas não
o fizeram mais forte de alguma maneira?”. Quantos impactos traumáticos
serviram como gatilho para as grandes vitórias da humanidade? Então,
não posso deixar de concluir: na minha humilde opinião, o mal não
existe.
Talvez seja uma afirmação difícil demais de compreender, mas,
como nas quatro histórias contadas neste livro, normalmente, só
conhecemos um pequeno fragmento da verdade. Temos a visão de fatos
isolados por nossa capacidade cognitiva. No entanto, se acrescentarmos
que somos os responsáveis por todo esse planejamento, por esses
obstáculos, a conexão entre a vida e o processo evolutivo de cada um de
nós passa a se encaixar perfeitamente.
Então, onde está o erro? Que mal alguém pode me fazer na
realidade?
Por diversas vezes, eventos tomados como ruins à primeira vista se
mostram benéficos em longo prazo. Beatriz, por exemplo, sofreu um
grande trauma, que gerou dificuldade, mas que também possibilitou a
ela grandes conquistas, além de uma filha. Será que ela voltaria ao
passado para evitar o trauma, com o risco de alterar totalmente o próprio
futuro ou deixaria tudo exatamente como aconteceu?

Você, caro leitor, voltaria ao seu passado e removeria os seus


traumas? Qual impacto você imagina que isso teria no seu eu de hoje se
não tivesse passado por tudo que passou?

58
“Não julgueis para que não sejais julgados”5. A maioria de nós já
ouviu essa passagem bíblica, e ela nos chama a buscar entender as
coisas sob outro olhar, sem julgamentos. A todo instante, cada evento
que ocorre com você é um chamado para esse novo olhar em busca da
evolução pessoal. Aprender a lidar com ela é o motivo pelo qual você veio
a esta existência.
Se pensarmos em tudo como uma simulação, o espaço e o tempo
não existem como imaginamos. Se assim o for, podemos nascer em eras
diferentes, em períodos diferentes e, talvez, diversas vezes no mesmo
período, até que o aprendizado seja concluído e possamos passar para a
próxima fase.
Seria tudo parte desta escola da vida? Ao fim de cada jornada,
somos recepcionados com o amor universal do qual fazemos parte? Se
nós é que escolhemos criar a nossa própria realidade, seria correto
afirmar que nada de errado acontece conosco, está tudo exatamente
como deveria ser. Cada brisa em nosso rosto, cada lágrima em nossos
olhos. Tudo acontecendo com extrema perfeição.
Para mim, a vida é perfeita, inclusive com as imperfeições que ela
possui. Talvez você esteja passando por momentos ruins, questionando-
se: “será que eu mesmo planejei uma vida tão miserável para mim? Será
que eu mereço sofrer tanto, sem nem ao menos entender o motivo para
tudo isso?”. E eu lhe respondo: claro que não. Sua vida foi planejada para
ser vivida plenamente, de forma feliz. O que você deve se perguntar é:
estou realmente aprendendo com os meus erros? Estou feliz com a
condução que tenho dado para a minha vida?
Se a resposta for “não”, cabe, então, somente a você a possibilidade
de mudar isso, de perceber que precisa resolver os seus problemas de
outra forma e que só você tem o poder para mudar a vida que tem levado.

Se você quer um futuro melhor, escolha companhias


melhores, que também queiram isso. Perdoe-se, pare de se
martirizar com escolhas que boicotam a sua felicidade. Pare
de evitar enxergar os seus erros, negando-os em uma busca
desenfreada por culpados ou, quem sabe, escondendo-se de
si mesmo ao resolver o problema dos outros.

5 Passagem do livro de Mateus, capítulo 7, versículo 1.

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Respeite a programação de cada um, isso é um ponto muito
importante. Como diria o Pequeno Príncipe: “tu te tornas eternamente
responsável por tudo aquilo que cativas”6. Consegue entender a
profundidade dessa frase? Ela diz que, ao interferir na programação de
vida de outro, no processo de aprendizado dele, você acabará absorvendo
parte do sofrimento que deveria ser exclusivo para o crescimento pessoal
do outro, ou seja, você acaba sofrendo os efeitos colaterais de interferir
no crescimento evolucional de outras pessoas.
Temos dentro de nós o sentimento de que, para sermos “salvos”,
precisamos salvar o máximo de almas possível, para termos paz, sermos
dignos de redenção. Mas, nesse processo, acabamos absorvendo a
consequência de tais atos.
Isso causa em nós uma grande frustração, porque, como seres
humanos, que viemos a este mundo para aprender com os nossos erros,
acabamos interrompendo o nosso aprendizado, distraindo-nos com o
caminho dos outros.
Claro que carinho, empatia, caridade e amor ao próximo nunca
devem ser descartados, muito pelo contrário. Porém, o esforço deve partir
do outro, e não de você, e isso faz uma enorme diferença.
Se estudarmos a história dos grandes mestres da humanidade,
seres de luz que nos ensinaram o melhor caminho, veremos que eles
nunca interromperam o processo evolutivo de ninguém, mas estavam
disponíveis a ajudar quando eram chamados.
Tínhamos que subir aos montes para encontrá-los, ou seja,
precisávamos nos doar de alguma forma ao processo, sendo necessário
percorrer um caminho, nem sempre tão fácil, para adquirir a sabedoria
necessária para compreender a mensagem deles.
É isso que nós devemos fazer em nossa vida, percorrer o caminho
que às vezes traz dor, mas que também é repleto de alegrias, visando
enxergar aspectos diferentes em cada passo dessa descoberta. Quanto
mais rápido você entender isso, que, se não há erros, também não há
culpados, mais plena a sua existência nesta vida se tornará.
Se você quer entender melhor como transformar a sua vida e
encontrar o equilíbrio necessário para o seu real crescimento pessoal,
venha comigo à leitura do último capítulo nesta jornada de harmonização
mental. Vamos ressignificar os nossos traumas, para, assim, podermos
nos reconectar à nossa verdadeira essência.

6 SAINT-EXUPÉRY, Antoine. O Pequeno Príncipe. Tradução de Marcos Barbosa.


Editora Harpecollins Brasil, 1952.

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RESSIGNIFICAÇÃO
Por que sofremos tanto? Caro leitor, como você pôde ver ao longo
do que foi exposto neste livro, a sua intenção em determinada situação
pode ser genuinamente boa, mas o resultado das ações que você toma no
seu dia a dia provém de verdades mascaradas que você esconde até de
você mesmo.
É como dizem: o problema é que você é “bonzinho demais”. Por
exemplo, em nossa visão de amor, buscamos evitar que alguém de que
gostamos sofra. Só que isso interfere na evolução dessa pessoa. Ao evitar
que ela passe pelo processo de aprendizado, você acaba absorvendo parte
daquilo para você.
Se você seguir uma linha mais religiosa, como no caso da pergunta
de Plínio algumas páginas para trás, em que o padre busca resolver a
questão da existência de Deus e o porquê de Ele permitir que tanta coisa
ruim aconteça no mundo, e usar um pouco da filosofia que eu disse no
capítulo anterior, você pode chegar à conclusão de que a permissão
divina para a existência do sofrimento é a maior demonstração de amor
que podemos ter. Quer dizer, tudo age para o nosso bem.
Inclusive, o próprio gatilho de dor e sofrimento pode ter sido uma
solicitação sua, em seu planejamento de vida. Concorda que crescer dói?
Quando, “por amor”, você interfere na dor do outro ou, pior, não permite
que ela ocorra, você passa também, de alguma forma, a se
responsabilizar pelos efeitos colaterais futuros para essa pessoa.
O que acontece é que buscamos a nossa própria redenção tentando
ser “salvadores”. A ideia é válida, mas esconde uma real intenção. Se eu
quero salvar alguém para me sentir digno, eu estou fazendo isso pelo
outro ou por mim mesmo?

Será que somos melhores que o criador? Será que realmente


“salvar” o mundo é nossa missão de vida? Talvez a grande
verdade seja que, nesta existência, a única pessoa que você
pode realmente salvar é você mesmo. Só você tem o poder de
se transformar em um ser humano melhor, mais evoluído. O
restante das pessoas que você ama precisa despertar por
elas mesmas.

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Sei que isso pode ser difícil de compreender. Como assim? Deixar
quem eu amo sofrer deve ser o caminho? No entanto, quando chegamos
à conclusão de que o mal não existe, percebemos que, quando alguém
que amamos está sofrendo, é preciso que venha dela o passo em busca
da salvação. Se ela ainda está em negação sobre o processo evolutivo
pessoal que está perfazendo, a sua proteção só fará com que ela demore
mais para entender que a mudança deve acontecer dentro dela.
É similar ao caso da pessoa que tem vício e não consegue enxergar
a cura para o problema — às vezes, tão fácil e óbvia para quem está
acompanhando a situação —, porque vive presa a um mundo só dela,
com seus traumas, suas simbologias e o seu processo de autoafirmação,
para justificar a busca por satisfação imediata.
Os medos da pessoa o atormentam, a dor e o sofrimento dela fazem
parte do seu dia a dia. Talvez você esteja ali, acompanhando, aflito,
culpando-se também, sentindo-se a pior pessoa do mundo por não
conseguir ajudar, e realmente não irá. O “resgate” só efetivamente
acontece se o “doente” aceitar a própria condição e buscar a mudança.
Se o seu filho não repetir o ano letivo porque você deu um ultimato
à escola, ele não será um bom profissional. Mesmo que você evite o atraso
dele na entrada para a faculdade, se não sentir a dor, a vergonha e não
puder trabalhar isso internamente, ele se tornará um adulto fraco,
sempre aguardando ser salvo por alguém. E quando esse alguém não
existir mais? Como proteger realmente alguém se você não permite, “por
amor”, que esse alguém lide com os próprios problemas?
Muitas pessoas ficam “presas” a um processo de lamentações, em
busca de vingança contra o mundo e, pior, contra elas mesmas, por não
entenderem que devem agradecer a cada oportunidade de aprendizado.
Buscam fugas, extravasam o ID em outras direções, desfocando-se dos
problemas pessoais, internos, com a desculpa de estarem salvando o
outro. Salvando-o de problemas muitas vezes criados por nossas
percepções, com base em medos que nós mesmos construímos com as
nossas simbologias trincadas.
Isso faz com que a pessoa tome sempre atitudes precipitadas,
agindo mais por impulso instintivo que por atos conscientes. Você acaba
não tendo o real controle de nada, no entanto, paradoxalmente, você é o
único e grande responsável por todas as respostas que dá frente aos
desafios da vida.
E a principal lição que eu posso deixar aqui para você, caro leitor,
é que você é o único responsável pela forma como conduz a sua vida,
pelas mágoas e pela culpa que carrega. Não deixe que o medo, o remorso
e o autoflagelo tomem conta de você.

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A sua missão nesta existência não é salvar o outro, é salvar a si
mesmo. Claro, se, nesse processo, puder estender a mão para uma alma
que busque ajuda, faça-o com todo o amor possível. Porém, lembre-se de
respeitar principalmente o momento de vida de cada um, permita que
esse ser humano aprenda pelas próprias perspectivas.

Nunca se culpe por não conseguir “salvar” alguém, nem o


mais sábio de todos conseguiria. Salve-se, cure-se, e, só
assim, com uma vida plena e saudável, você poderá
verdadeiramente ajudar as pessoas que você ama, chegando
ao fim dessa jornada que chamamos de vida com a paz e a
tranquilidade de ter feito todo o possível.

Ao chegar ao final deste livro, chamo a atenção para o fato de que


o processo de ressignificação demandará de você muito perdão, muito
desapego e muito luto.
Ao passar pelo luto, você vivencia alguns ciclos de negação, em que
não acredita que aquilo está realmente acontecendo com você, de raiva,
em que busca um culpado para tudo pelo que está passando; de
negociação, o que faz com que você busque formas de amenizar o
sofrimento, postergando a aceitação dos fatos.
Depois você começa um processo mais depressivo e triste, em que
se vê desanimado com tudo que está a sua volta, sente-se perdido. Esse
ciclo tem idas e vindas dos sentimentos de negação, raiva, negociação e

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depressão. O mais importante é você entender que isso é normal. Faz
parte do nosso processo de crescimento.
Só lembre que o peso que você dá para cada situação frustrante na
sua vida é somente seu. Você determina isso. Sendo assim, só você tem
a chave para mudar o quadro, para aceitar o que acontece. Quando
perceber a força que tem, que tudo não passa de armadilhas mentais
criadas por suas simbologias, golpeadas pelos traumas e precisando ser
ressignificadas, vai perceber que tudo está como deveria estar, pois não
existem erros na perfeição da sua existência. Tudo talvez tenha sido
planejado por você mesmo, para lhe ensinar, a cada lágrima, o caminho
verdadeiro da sua redenção.
Aproveite para colocar para fora toda a sua angústia acumulada.
Escreva, fale, expurgue. Compreenda realmente a profundidade da
origem de suas escolhas. Faça a sua catarse. Limpe a sua “geladeira”,
pois, como diria Freud: “A principal tarefa de uma existência é
compreender a própria mente”.
Encerrando a nossa jornada, agradeço pela sua companhia e
espero ter contribuído para o seu despertar. Para a sua harmonização
mental.
Um grande abraço do seu amigo Guilherme Afonso Tavares Ribeiro.

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