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No Natal existe amor em SP

Giulia Russomanno
Copyright © 2021 Giulia Russomanno

Grafia atualizada segundo o Acordo Ortográfico da Língua Portuguesa de 1990, que


entrou em vigor no Brasil em 2009.

Os personagens e as situações desta obra são reais apenas no universo da ficção, não se
referem a pessoas e não emitem opinião sobre elas.

Russomanno, Giulia No Natal existe amor em SP/ Giulia Russomanno. São Paulo - Giulia
Russomanno, 2021.

Capa @arda.arts - Eduarda Oliveira

Preparação e revisão @may.revisa - Maytê Moreira

ISBN: 978-65-00-35759-2
[2021]
Contents
Title Page
Copyright
Nota da autora
Dedication
Débora 1
Fernanda 2
Débora 3
Fernanda 4
Débora 5
Fernanda 6
Débora 7
Fernanda 8
Débora 9
Fernanda 10
Débora 11
Fernanda 12
Débora 13
Fernanda 14
Débora 15
Fernanda 16
Débora 17
Fernanda 18
Débora 19
Fernanda 20
Débora 21
Fernanda 22
Débora 23
Fernanda 24
Débora 25
Fernanda 26
Débora 27
Fernanda 28
Débora 29
Fernanda 30
Débora 31
Fernanda 32
Débora 33
Fernanda 34
Débora 35
Fernanda 36
Débora 37
Fernanda 38
Débora 39
Fernanda 40
Débora 41
Fernanda 42
Débora 43
Fernanda 44
Débora 45
Fernanda 46
Débora 47
Fernanda 48
Débora 49
Fernanda 50
Débora 51
Fernanda 52
Débora 53
Fernanda 54
Débora 55
Fernanda 56
Débora 57
Fernanda 58
Débora 59
Epílogo
Agradecimentos
Books By This Author
Nota da autora
Oii, quem não ama clichê de Natal? Já que não estou vivendo um
vou aumentar todas minhas expectativas e as suas também!

Boa leitura! Qualquer surto me chama! @bookgiuliarsf

Boas festas!
Com muito amor mesmo, Giulia <3

Indicado para maiores de 16 anos.


Linguagem informal.
Gatilhos: Racismo e Xenofobia.
Esse livro teve leitura sensível e foi revisado.
Papai Noel, que você traga um romance assim para cada leitore...
Débora 1
Toda sexta tomamos café juntos, minhas três irmãs, eu e
meus pais. Minha mãe faz todas as guloseimas em que somos
viciadas, e meu pai recheia os pães de queijo com Nutella. Mesmo
assim, eu gosto de passar na padaria que fica no caminho da
faculdade, lá tem os melhores doces de São Paulo — na minha
humilde opinião —, é sempre bom sentar lá enquanto leio e devoro
uma fatia de bolo gelado.
Antes de me juntar à barulheira na cozinha, tenho que
alimentar o Macarujá (quando ele chegou, eu não sabia falar, ok?),
meu cachorro, ele é um Golden. Também tenho que limpar a gaiola
do Sr. Dentinho, meu hamster, acho que não preciso explicar o
porquê do nome dele. Eu amo bichinhos, e foi um sacrifício enorme
pra minha mãe aceitar esses dois. É, eu ainda não saí de casa aos
23 anos.
— Bom dia, filha! — Minha mãe me oferece uma colher da
cobertura do bolo de limão.
— Bom dia, cadê as meninas? Ouvi tanto barulho, não
começou a falar sozinha, né? — Me sento em uma das cadeiras na
cozinha.
— Não sou você, dona Débora. — Sra. Maria come a
cobertura que ofereceu. — Sua irmã tá muito estranha hoje.
— Qual delas? — pergunto.
— A Ana Júlia — papai diz, segurando a forma de pão de
queijo —, quase certeza que é um namorado.
É claro que elas não me chamaram pro clube da fofoca sobre
relacionamentos. Nunca tive um, e sempre fica um climão quando
tocam no assunto na minha frente. Nem faz sentido todo esse
“segredo” que elas fazem, qual é o problema em não ter se
apaixonado? Não é todo mundo que consegue se conectar com as
pessoas facilmente.
Eu e minhas irmãs somos muito unidas. Éramos mais quando
nenhuma de nós tinha desenvolvido sentimentos amorosos, mas
ainda nos divertimos muito. Só que hoje fico de fora das fofocas e
dos conselhos de garotas. Argh. E outra, minha irmã mais nova diz
que tá saindo com alguém, e eu também posso falar... Ninguém iria
acreditar, mas posso.
— Gente — anuncia minha irmã mais velha, Melissa —,
nossa Aninha vai trazer um boyzinho pro Natal.
Pro Natal? Tipo namoro sério?
Minha irmã está vermelha de vergonha, Aninha sempre foi
reservada com os sentimentos. Ela acabou de fazer 18 anos e é
uma menina muito linda, tem o cabelo ondulado quase liso, a pele
castanha como a minha, olhos verdes como os de mamãe e muita,
mas muita bunda. Abençoada e afins.
— E é sério? — minha mãe pergunta, Ana assente. — Qual o
nome dele?
— Felipe, ele é da minha sala. — Minha irmã tá no último ano
da escola, já eu, no penúltimo da faculdade de medicina veterinária.
— E esse Felipe é quietinho ou bagunceiro? — meu pai
pergunta.
— Um pouco dos dois? — ela responde.
— Bem parecido com você, Fábio. — Meu pai começa a se
defender, dizendo que nunca foi da turma da bagunça.
Minha irmã conta cada detalhe da vida do garoto, não parece
que eles estão namorando e sim que ela o está investigando. Eles
começam a discutir o jantar de Natal. Melissa é casada, então é
certo que ela venha acompanhada. Minhas outras irmãs disseram
que é praticamente certeza que vão trazer acompanhantes.
E é lógico que o assunto iria morrer quando eles notassem
uma figura agarrada a um pão de queijo.
— E você, filha? — minha mãe começa. — Vai trazer algum
esse ano? — Eu finjo achar graça, eu sei que ela não faz por mal,
pois acha que eu gosto da brincadeira, mas na verdade é tão sem
“tompero”.
— Ah, vocês sabem, penúltimo ano da faculdade é
complicado pra arrumar um relacionamento. — Minha irmã mais
velha finge uma tosse, ela “achou” o marido no último ano de
engenharia. — A pressão das provas, essas coisas, não dá muito
tempo pra... Vocês sabem...
— Entendo totalmente — meu pai me consola —, a faculdade
é um caos. Logo sua vida vai ficar mais tranquila.
— Espero. E desculpa, vou ter que ir, tô atrasada pra uma
aula superimportante. Vou aproveitar pra estudar no metrô.
Dou um beijo da bochecha de cada um e pego minha bolsa.
Antes de sair pela porta, escuto minha Aninha sussurrando:
— Só espero que ela não adote gatos, tenho alergia.
— Pare com isso, que feio! — Minha mãe começa a dar uma
bronca nas meninas, mas não fico pra escutar.
Fernanda 2
A padaria, no começo de dezembro, fica um caos. Efeitos do
Natal. Tenho que confirmar a entrega com os fornecedores e testar
as receitas. Ainda bem que a decoração vai ficar por conta da Duda
e do Gabriel — a gente muda a decoração de Natal quando chega
perto da data. Meus melhores amigos trabalham comigo, e isso é
ótimo, até a gente discordar de alguma coisa na vitrine... Mas eu
amo cada intriga boba que a gente tem, sempre acaba na risada.
Farinha, farinha e farinha. Eu não aguento mais pegar tanto
peso, nem vou pisar na academia hoje. Depois de tanto peso,
subindo e descendo escadas, vou ficar trincada. Trabalhar em uma
padaria não é fácil, ainda mais quando é um negócio familiar.
— Fer, já ligou pro fornecedor dos corantes? — minha mãe
surge do nada perguntando, é tão pequena que consegue se
esconder tranquilamente no estoque.
— Sim, senhora. — Ela cerra os olhos, estreitos como os
meus. Minha mãe nasceu no Japão e se mudou pra São Paulo
quando era adolescente, veio a família toda e meu pai, mas ele
faleceu em um acidente quando eu era pequena. — Vai chegar hoje
à tarde, muito vermelho, verde e amarelo.
— A Duda tá fazendo um trabalho ótimo lá na fachada,
depois vai lá ver.
— Vou, sim, só vou terminar aqui.
Finalmente terminei a saga da academia no trabalho.
Ligações feitas. E agora a parte de que eu mais gosto, a confeitaria.
Confeitar é uma espécie de arte, além do gosto divino, tem os
detalhes mais bonitos da vitrine de uma padaria. No Natal, posso
abusar muito dos corantes e do glitter, os clientes amam,
principalmente as crianças.
— Fefê... — Gabriel, que é meu melhor amigo e meu primo, e
que sabe que eu odeio esse apelido, mas me acostumei com ele
querendo me provocar. — Tem um garoto aí pedindo pra falar com
você.
— Gabs, fala pra ele mandar um zaperson.
— Zap até é aceitável, mas zaperson? — Dou de ombros
enquanto peso o açúcar na balança. — Enfim, o problema é que ele
já mandou mensagem... E você não respondeu.
— Eu respondi, sim, não o que ele queria, mas respondi que
“não quero ir no rolê hoje, valeu, deixa pra próxima”. Mais que isso?
— Se eu fosse você, desenharia, pois o cara tá muito na sua.
— Ele faz um coração no ar.
— Já terminou, pestinha? Vai ajudar a Duda vai — respondo.
— Não tá mais aqui quem falou, mas, pelo amor de Deus, tira
aquele ser do meio do salão ou minha mãe vai cobrar o espaço que
ele tá ocupando. — Como eu disse, o ambiente de trabalho junto
com familiares é um verdadeiro estresse.
Na verdade, eu nem lembrava o nome do garoto direito, tive
que olhar como salvei o nome dele antes de sair da cozinha. Eu
>sempre< deixo bem mais do que claro que só vamos sair uma vez,
no máximo duas, que não quero nenhum relacionamento sério
agora. Não é egoísmo, pois eu realmente explico que nunca vai dar
namoro. E eu gosto muito da minha companhia, e não quero lidar
com as responsabilidades de um namoro. Eu quero focar em mim
antes. Todo mundo tem o seu tempo, e eu só estou vivendo o meu.
Débora 3
Um metrô e dois ônibus da Mooca até a USP. Estou juntando
um dinheiro para montar minha clínica veterinária daqui uns anos.
Preferi investir no meu sonho do que em um carro, e, mesmo se
tivesse um, teria que passar o mesmo tempo no trânsito... Só que
com mais conforto. Pelo menos estou ajudando o meio ambiente.
Se eu fingir eu posso acreditar nisso, sem problemas.
E outra, eu sempre consigo banco durante as viagens, o que
é ótimo pra leitora obsessiva que sou. Leio porque, pelo menos
entre as folhas e palavras, posso sentir que fiz parte de alguma
história, enquanto minha vida se resume a ir, voltar, estudar, comer
e dormir. Usar os livros como refúgio foi uma das melhores escolhas
que eu fiz, jamais nenhum personagem me julgou, como todos os
meus conhecidos e desconhecidos.
Comecei a ler “Os sete maridos de Evelyn Hugo”, estou no
comecinho da história, mas queria ter 1% da coragem dela. Dar a
cara a tapa sem medo de levar de volta. Nesse começo, já aprendi
que não ter vergonha na cara pode ser a chave pra todas as portas
da sua vida.
Saí bem mais cedo do que o necessário de casa, não
aguentava mais aquela conversa e também queria passar na minha
padaria favorita, que fica no meio do meu caminho. A dona da
padaria sempre coloca mais chantily no meu café, ela é uma
senhorinha muito fofa.
O único defeito daqui é essa catraca que fica na entrada,
meu quadril é bem mais largo do que os das modelos do insta. Pego
a minha comanda e entro na padaria, que está sendo redecorada
pro famoso Natal. Eu amo essa época do ano, o cheiro de panetone
se espalha pelos quarteirões, os doces ficam todos decorados...
Tenho até dó de comer.
Por isso eu amo esse lugar, tudo aqui é preparado nos
mínimos detalhes, e tem um preço ótimo pro bolso do universitário.
— Vai querer mais um café? — a Sra. Akemi me pergunta,
estendendo um biscoito colorido. — Acabou de sair da cozinha,
experimenta.
— Isso tá perfeito, precisa estar na vitrine agora — falo, com
a boca cheia. — Sério!

Chegando na faculdade, eu lembro do café da manhã com


minha família, regado de pura pressão. Eu só queria ser simpática e
padrão o suficiente pra que as pessoas simplesmente brotassem na
minha DM do insta. Falando nisso, já faz uns três meses que não
atualizo minhas fotos nas redes. Não que alguém ligue, mas acho
que é bom mostrar que estou viva de vez em quando.
Hoje eu vou tentar ser mais sociável, com as garotas e com
os garotos. Falar com alguém é uma puta forçação de barra pra
mim. Parece que uma conversa drena toda minha energia, e sempre
acho que a pessoa se sentiu tão constrangida quanto eu.
Fernanda 4
Minha mãe assalta a cozinha toda vez em que estou testando
receitas, ela leva tudo pra os clientes favoritos dela. A Sra. Akemi
tem uma péssima memória pra nomes, mas decora todos os rostos
e faz com que as pessoas comam e falem todos os defeitos, pra que
possa ser melhorado.
Terminei uma fornalha de biscoito de polvilho, sempre
colocamos como amostra lá no balcão. Tem sempre um espertinho
que só compra o café e agarra a cesta de polvilho. Mas é melhor
nem discutir, deixo essa tarefa pra minha tia Sara.
— Ei, aquela menina vive aqui na padaria, né? — Meus olhos
seguem pra onde Duda aponta — Tem dia que ela vem pela manhã
e pela tarde.
Nunca tinha reparado na garota, que está segurando um livro
como se fosse o seu mundo. Ela parece tantos rostos, mas é como
se só ela ficasse perfeita com os traços. Os cabelos escuros com
ondas abertas rebeldes, a pele castanha reluzente, e os olhos
escuros, que devoram cada página do livro.
O que ela está lendo? Vou colocar uma cesta dos polvilhos
num balcão perto da mesa dela — ela faz a discrição dela. Puta que
pariu. Ela tá lendo “Os sete maridos”, de Evelyn Hugo??? A vontade
de se sentar na mesa com e conversar sobre essa obra de arte é de
matar! Infelizmente não posso, minha mãe me proibiu de conversar
com os clientes que aparentam ter minha idade... Vamos dizer que
eu já causei alguns problemas amorosos por aqui.
Então fico admirando, na verdade, babando, enquanto ela
vira as folhas. Assistir a alguém ler um livro que você já leu é muito
bom, pois você já sabe as reações que aquelas malditas folhas de
papel vão causar. Finjo estar organizando a vitrine de doces, que
está impecável, pois eu a arrumei todinha mais cedo. Acho que a
garota chegou numa parte não muito feliz, seus olhos brilham, e
acho que ela fecha o livro com medo de chorar em público. Não
julgo, mas é melhor chorar do que ficar retorcendo as pernas. Enfim,
a exposição.
— Nem vai rolar, Fefê. — Gabs inclina a cabeça na direção
da garota de quem não sei o nome. Ainda. Ele continua: — Ela é do
tipo que quer um relacionamento, certeza.
— Ah, lógico, todo mundo vem com uma etiqueta dessas na
testa, né? — Meu primo dá de ombros.
— Basta uma analisada em você pra saber que é puro golpe.
— Ah, sim, e basta uma olhada em você pra saber que se
apaixona a cada dois segundos. — Ele concorda comigo, roubando
uma tortinha da vitrine.
— Hmmm, então temos etiquetas ou não? — Respondo com
uma careta, e ele ri.
Débora 5
E é claro que não deu certo a tentativa de me enturmar com o
pessoal da faculdade, e nem é culpa deles. Sou uma completa
estranha naquele lugar, que nunca falou com ninguém e que sempre
sobra nos trabalhos em grupo. Mas, na real, isso nunca me
incomodou. Estou bem, no meu mundinho, sou feliz aqui dentro,
minha companhia é suficiente dentro da minha bolha.
O problema não sou eu, e sim a sociedade, que acha que, só
porque nascemos nela, temos que viver dentro dos padrões que são
atirados na gente todos os dias. É mais complicado quando os mais
próximos de você não entendem. Eu amo mais do que tudo a minha
família, mas não, eu não os amo quando me julgam. Mesmo que
não queiram magoar, palavras machucam e nos mantém acordados,
pensando por que não podemos ser simplesmente aceitos.
Estou no final do livro que estava lendo. Seria tão bom ter um
Harry Cameron pra me apoiar e me entender. Minha madrugada é
regada a lágrimas e soluços.
Nenhuma história é apenas um final feliz, todas elas têm
precipícios, e se jogar em um deles é uma regra.

Todo sábado minha família e eu vamos no parque aqui perto


de casa, levamos o Macarujá e tomamos um açaí cheio de leite em
pó.
Chegando no parque, eu já quero me sentar no banco mais
próximo. Levar o Macarujá pra passear não é tarefa fácil, nunca vi
tanta energia em um ser.
— Não vai ficar sentada aí, né, filha? — Dona Maria, minha
mãe, tenta tirar a grama que já está no pelo do cachorro.
— Por mim ficaria, mas esse bonito não pra de puxar. —
Macarujá late em resposta.
— Aproveita pra dar uma olhada nos bonitões sem camisa
que ficam correndo por aí. — Minha mãe dá uma piscadela muito
mais que exagerada.
— Você é péssima! —respondo. Ela ri, me puxando do
banco.
Tá, até que não foi horrível admirar a bela paisagem que
corria sem camisa.
Eu tentei, falei com um cara, que o Macarujá começou a
cheirar e a pular em cima. Ele era lindo, era alto, mas também
qualquer um fica alto perto de mim... Tenho meus privilégios. E eu
realmente flertei com ele, e sim, só eu flertei, pois o cara meteu uma
de que precisava “buscar uma encomenda”, tinha desculpas bem
melhores do que essa. Quem busca encomenda em pleno sábado?
Tem como voltar pra hora em que eu estava sentada no
banco e não tinha me humilhado só porque não quero ser a única a
sobrar no jantar de Natal? Eu estou voltando pro banco, porém
humilhada, e tá tudo bem.
A Aninha com certeza está em algum lugar, se esfregando
com o famoso e recém-namorado. Já a mais nova, Larissa, está
andando com a melhor amiga da escola pra todo lado. Elas vivem
juntas, nunca tive isso na escola. Tive mais amigos, eles eram mais
fáceis de lidar quando eu tinha oito anos, depois foi uma vida
escolar solitária. Minhas supostas amigas só apareciam na hora do
trabalho em grupo ou quando tinham dificuldade em alguma
matéria.
Fernanda 6
Às vezes acho que, quando durmo, meu corpo recarrega a
bateria de um ano. Ter tanta energia é ótimo, mas requer muita
atividade. Tem dia em que leio 400 páginas de um livro, tranquilo.
Falando nisso, já faz um tempo que não leio nem um livrinho. Ando
tão ocupada, que minha mente não aguenta mais nada.
Não faço faculdade, meu sonho é ir pra escola de
gastronomia Le Cordon Bleu, mas custa meu rim. Pra conseguir o
dinheiro, trabalho noite e dia na padaria da minha família. Quero
estudar confeitaria. Já que hoje não posso pagar pelo curso dos
meus sonhos, tento aprender de outras formas. Tem vários canais
no Youtube que são incríveis e passam dicas preciosas, e cursos
online, mas quero mais do que isso. Quero abrir minha confeitaria.
Hoje é uma manhã de sábado, significa que é minha folga e
que posso fazer o que quiser. Decido ir correr no parque, sempre
me ajuda a limpar os pensamentos desnecessários. Corro, corro e
corro com o fone no máximo, um pouco de tudo. Sempre me canso
do mesmo estilo de música. Paro pra relaxar os pés e me sento no
gramado. E aquela é a garota da padaria, a garota. Ela está tão
linda em um vestido cheio de florezinhas, mano... Por que tão gata?
E se eu for falar com ela? Mas o que eu vou falar? “Ah, oi,
reparei em você pela primeira vez na padaria e achei você muito
linda”? É, acho que ela vai me achar uma completa estranha e
acabar sumindo da padaria com medo de que eu a ataque.
Ela está conversando, flertando, com um cara. Um cara. É,
mas isso não significa nada, ela pode gostar de mulheres mesmo
assim. Eu sou pansexual. É, mas acho que ela estar flertando com
um homem significa alguma coisa... Sei lá, ele pode ser o namorado
ou ficante, não sei. Não fico pra assistir a garota mais bonita que já
vi flertar com outra pessoa que não seja eu.
Volto pra casa correndo, é estranho correr pelas ruas, eu
nunca me acostumo. No parque senti o cheiro das árvores, e é só
sair dele pra sentir o cheiro de poluição que São Paulo emana.
Fumar pra que, né?
Meu sábado se resume em pensar na garota da padaria,
imaginar inúmeras possibilidades sobre aquele homem musculoso
com quem ela estava conversando. E, não menos importante, fazer
um bolinho de cenoura com muito, mas muito brigadeiro.
Sinta inveja.
Débora 7
Obrigada, Evelyn Hugo, não vou conseguir ler por um bom
tempo. Eu sei que o inimigo do leitor é o tiktok — cara, aquele app é
um inferno. Você entra pra descontrair uns dez minutinhos e,
quando vê, já completou 84 anos. Complicado. Só que, quando eu
não consigo ler, dou uma olhada lá, sempre tem indicações boas e
tretas. Essa última parte eu acompanho fielmente.
E é claro que eu entrei no ticoteco, já falei que odeio
propagan... Aplicativo de namoro? Hmm. Não, eu não vou baixar
isso. Me recuso. Mas, e se eu achasse alguém pra um rolo de
Natal? Seria bem Netflix, mas me salvaria de um jantar de climão.
Deve ter alguém que curta passar o Natal na casa dos outros. Um
verdadeiro banquete de graça. Se envolvesse comida, eu iria sem
reclamar. Com certeza tem algum ser que pensa assim nesse
negócio.
Nunca tinha baixado isso antes, fiz o cadastro. Chegou a
hora de falar um pouco sobre mim, o que eu coloco? “Viciada em
livros e nada sociável”? Vou inventar algo melhor do que isso. É pra
isso que tenho imaginação, certo?
Preciso colocar uma foto. Pego uma que postei há um tempo.
Beleza. Uau, tem gente bonita ao redor da minha casa? Por essa eu
não esperava.
EU NÃO QUERO VER SEU PAU, HOMEM INFELIZ!!!
Depois de muitos idiotas, achei uns dois carinhas, eles
parecem ser decentes... Um deles estuda direito, o que me dá um
pouco de medo, eles sempre querem saber de tudo. Marquei um
encontro com esse, lá na padaria, me sinto segura lá e posso dizer
que tem alguém pra me vigiar se algo der errado, a Sra. Akemi.
Não vou falar disso com meus pais, eles não iriam gostar e
fariam eu desmarcar o encontro, dizendo que eu não preciso disso.
Eles não entendem o tamanho do meu desespero.
Fernanda 8
Não é novidade que eu esteja trabalhando em pleno domingo
à noite. Isso já se tornou natural. Hoje o Gabriel tá de folga, então só
sobrou a Duda pra eu atormentar. A novidade é a garota da padaria
estar na padaria com um cara, mas não o cara do parque. O da
corrida era moreno, esse é loiro e não parece ser fã de academia
como o outro. Interessante... Isso quer dizer que eu ainda posso
tentar?
Discretamente, arrumo os sachês de açúcar das mesas que,
por coincidência, ficam a 1 metro de onde eles estão. Então eu
escuto tudinho, infelizmente.
— Você quer ver como você tá me deixando? — o loiro
sussurra, pegando a mão da garota.
— Como assim? — Ele leva a mão dela pra calça dele. — Ah
meu deus! Não, obrigada. É... legal, legal.
Por que tem homem que é assim? Faltou algum neurônio,
certeza.
Não posso deixar isso rolar, eu estou vendo o
constrangimento da garota, estou vendo que ela não sabe como sair
dessa e que o idiota está forçando a barra.
— Mariana? — Encosto na mesa deles. — Nossa, como você
tá diferente! Faz quanto tempo que a gente não se vê? — Ela
parece confusa, mas piso no pé dela e dou um sorriso bem maior
que minha boca.
— Vitória! Mulher, faz uns três anos. Eu amei o seu cabelo
curto, ficou perfeito em você! — Estou gostando disso.
— Cortei no impulso e deu certo, ufa! — Gesticulo demais pra
ser muito, mas muito inconveniente, a ponto de constranger o
babaca. — Você tá estudando?
— Tô sim, medicina veterinária na USP — universitária e tal
—, tá sendo ótimo, me formo ano que vem.
E, quando o assunto chega nas aulas práticas, o serzinho
resolve se levantar, diz no cabelo ondulado dela “vou no banheiro
pra você sabe o que” e pisca. ECA, ECA, ECA.
— Espero que ele não volte! — Ela faz uma careta na direção
do banheiro. — E obrigada, Vitória?
— Fernanda, e você é Mariana?
— Sou Débora.
— Então, Deb, saiba que, nesse aplicativo só tem caras
assim. Você não sabe como funciona os encontros, né?
— Lógico que sei. — Ela tenta parecer convincente. —
Espera, como você sabe que era um web date?
Por que quem, em sã consciência, sai com um boylixo
daquele?
Débora 9
Ok, essa foi a pior ideia que eu tive. O que o medo de um
jantar de Natal pode causar? Me submeti a um encontro com um
cara que nem conheço e preferia nem ter conhecido. Assim, não
teria sido horrível se eu estivesse procurando a mesma coisa que
ele... Sinceramente, acho que ele não vai conseguir ir pra cama com
ninguém, um homem que parece um adolescente pervertido, mas é
um homem nojento.
E só não estou em uma situação ainda mais deplorável
porque Fernanda apareceu. É óbvio que eu já a tinha visto
trabalhando aqui antes, mas mulheres bonitas me intimidam. Não
consigo nem formular uma frase direito sem me perder nos meus
pensamentos.
— Acho que você não vai achar o que tá procurando com
esses encontros — ela diz, recolhendo a sujeira da mesa, mas eu
só consigo prestar atenção no seu delineado...
— Mas você não sabe o que tô procurando. — Os olhos
escuros dela encontram os meus.
— Acho que posso te ajudar se quiser. — Ela pra de falar, se
senta na mesa e bebe meu suco de laranja. — Sim, vocês faziam
um casal lindo! — Oi?
— O que você tá fazendo? — pergunto, e ela aponta o queixo
pra entrada do banheiro.
— Ele ou eu, quer que eu saia daqui?
— Não. — Um sorriso surge no canto da boca de Fernanda.
O cara passou pela mesa me encarando, mas eu estava tão
entretida no olhar da garota em minha frente, que não consegui
desviar pra me despedir. Perdi o ritmo da minha própria respiração.
Ela é uma das mulheres mais bonitas que eu já vi, deve ter 1.70 de
altura, cabelo liso curtinho, olhos estreitos e um delineado perfeito;
ela é magra e usa calças jeans coloridas, na temática do Natal, que
apertam suas coxas e ficam largas nos tornozelos.
— Acho que você merece um docinho depois do desastre
dessa noite. — Conta como desastre sentir o maior bi panic da
vida?
Ela me deixa, na mesa, sozinha, e o tempo passou tão rápido
que a maioria dos clientes já foram embora. A padaria é toda
fechada por vidraças, então fico um bom tempo observando o
trânsito, as luzinhas coloridas de Natal piscarem nas varandas dos
prédios enormes...
— Nossa, que lindo! Eu não tinha visto ele na vitrine —
Fernanda trouxe um panetone decorado com corações de açúcar
vermelhos e dourados. Isso é tão Natal gringo, tirando o calor
infernal, que me fez escolher um vestido curtíssimo pra conseguir
respirar no ar seco.
— Ele é recheado com brigadeiro e... — Ela meche no
cabelo, colocando-o atrás da orelha várias vezes.
— Dona Fernanda, não perturbe minha florzinha! — a Sra.
Akemi surge de trás do balcão, fazendo eu e Fernanda girarmos
rapidamente pra acompanhar a senhorinha, que marcha na direção
da nossa mesa.
— Mãe...
— Sem mãe, sem pai, sem tia. Já conversamos sobre isso.
— Ela franze as sobrancelhas pra filha. — Ela tá enchendo o seu
saco?
— Na verdade, ela estava me ajudando, Sra. Akemi —
respondo, enquanto ela gesticula pra Fernanda voltar ao trabalho.
— Menos mal, querida. O que está fazendo tão tarde aqui?
— Já basta a filha dela saber do meu desastre.
— Tive que resolver alguns probleminhas da faculdade e
resolvi jantar aqui.
— Adoro ver você aqui, tem sempre um ar de paz em volta
de onde você está. Isso é muito bom, espero que aí dentro, — ela
indica meu coração —, você sinta essa tranquilidade também. —
Quem dera...
— É o que eu mais quero.
— Nem todos os dias são um balde de tranquilidade, flor.
Precisa entender que tudo tem seu tempo, e querer arrumar as
coisas só faz com que elas se tornem ainda mais desorganizadas.
Já dizia o Grupo Revelação “deixe acontecer naturalmente”. — Ela
aperta minhas mãos e me deixa ali sozinha, encarando a vidraça,
cheia de bolinhas vermelhas.

Nunca mais quero ver UMA propaganda desse aplicativo de


relacionamentos... Era óbvio que não iria dar certo. Poderia ter dado
se eu estivesse interessada na diversão de uma noite, mas não era
isso que eu queria. Eu até gostaria, mas só saí com um garoto uma
vez, quando tinha dezesseis anos, e, sério, foi horrível. Os livros que
eu leio não são tão realistas, sempre romantizam demais a primeira
vez. Então passaria vergonha com aquele cara... E sei lá, já deu de
constrangimento por hoje.
Vou de Uber pra casa, mesmo sendo perigoso pra uma
mulher, é melhor do que andar de transporte público e fazer
baldeação em ruas desertas. Felizmente o motorista é daqueles que
nem olham na sua cara direito, primeiro você fica com medo dele,
mas depois você percebe que o cara só quer ir pra casa o quanto
antes.
Chego em casa, tentando fazer nenhum barulho, e a porta da
sala decide ranger, alertando qualquer um de que eu cheguei.
— Onde você foi? — Minha mãe aparece secando um prato,
o rosto dela muda de preocupação pra um sorriso medonho. —
Algum namoradinho?
— A gente já falou sobre isso, mãe.
— Eu só queria saber se você se divertiu. — Ela abre o
micro-ondas, pegando um prato de arroz com feijão e carne de
panela. — Conta pra mim como foi, vai.
— Aconteceu que eu fui na padaria encontrei um cara. — O
rosto dela se ilumina, e não quero lidar com a frustração que vai
surgir. — Foi legal, a gente jantou e conversou bastante.
— Nenhum beijinho? — Reviro os olhos.
— Prefiro não comentar. — Ela sorri.
— Tudo bem, posso viver com migalhas.
Ainda bem que todo mundo já foi dormir, e só tive que
inventar uma história pra minha mãe. Sou péssima com mentiras e,
quanto mais perguntas fazem mais evidente eu deixo que não se
passa de uma desculpa esfarrapada.
Dou boa noite pra minha mãe e subo pro meu quarto.
Moramos em um sobrado, meu quarto e os das minhas irmãs ficam
no andar de cima, e meus pais dormem no térreo. Isso nunca me
incomodou, sempre foi bom dividir um andar só com as minhas
irmãs. É uma loucura as guerras que a gente promove aqui em
cima.
Acho que minha noite poderia ter sido muito pior se a linda
filha da Sra. Akemi não tivesse me resgatado. Fernanda disse que
“posso te ajudar se quiser”, mas...??? Acho que ela estava falando
sobre o panetone, ou eu posso ter me perdido no que ela falava, eu
só conseguia prestar atenção nos lábios dela, não no que saía
deles... Ela me coisou.
Fernanda 10
E minha mãe cortou todo o clima que tinha rolado de alguma
forma. Tinha construído toda uma conexão com Débora, mas,
graças à minha fama de arruinadora de possíveis clientes, fui
mandada pra trás do balcão. É, como eu disse, meu histórico de
relacionamentos não são dos melhores, e não sou permitida a me
envolver com clientes justamente por causa disso.
— Onde estava com a cabeça, mocinha?
— Mãe, não precisava daquilo, eu já tenho 21 anos, sei o que
tô fazendo. Simplesmente tava ajudando a garota a se livrar de um
babaca. — Minha mãe nega com a cabeça.
— Sim, mas acha que não vi o olhar que você tava jogando
pra cima dela? — Espero que não.
— Não teve nada disso, eu tava sendo legal. — Ela cerra os
olhos, e eu completo: — Só isso.
— Aham, vou fingir que acredito. — Ela gesticula na direção
de Gabriel. — Não se esqueçam de trancar as janelas. Até amanhã,
pestinhas.
Já deixou de ser constrangedor minha mãe me pegar
flertando com alguém. É algo natural, não tenho como fugir. E ela
lida bem com isso, o que foi ótimo pra eu de quinze anos. Era uma
adolescente sem limites, e não os encontrei até hoje.
Só não sei que limite eu cruzei quando falei pra Débora que
poderia ajudá-la. Cara, eu nem sei do que ela precisa. Foi um ato de
impulsividade, uma forma de tentar me dar a oportunidade de
conhecê-la.
Quando me assumi pan, eu tinha meus dezenove anos, e foi
meio complicado explicar pra minha mãe que eu posso me atrair por
todos os gêneros. Mas logo ela entendeu que isso não mudava
exatamente nada em um relacionamento, eu simplesmente vou
amar meu parceire, e é isso que importa no final. Só que sempre fui
uma pessoa que gosta de ser livre... Relacionamentos trazem
problemas que precisam ser resolvidos pra que o casal continue
junto. E, às vezes, os problemas que aparecem são irreversíveis, e
não há como fazer as coisas voltarem a como eram antes.
Minha mãe sofreu muito quando meu pai morreu, eu tinha
oito anos. Foram tão difíceis aqueles dois primeiros anos após a
morte dele... Até que minha tia, Sara, teve a ideia de montarmos
uma padaria... A “Doce de Esperança”, clichê e brega, mas ajudou
minha mãe a seguir em frente. Ela se dedicou intensamente aos
estudos de administração, e de alguma forma isso fez bem a ela e a
mim. Só que, diferente dela, eu assisti à minha família, que era tão
feliz desmoronar. Assisti à minha mãe definhar no quarto, enquanto
passava a tarde com meu primo. Teve dias que eu não podia voltar
pra casa, pois ela não tinha condições de se responsabilizar por
mim naquele momento.
A padaria mudou nossas vidas, nos uniu e nos deixou mais
fortes. Tem traumas que a gente pode até superar, mas não
esquece, e o medo cria raízes que não podem ser simplesmente
cortadas. Eu tenho medo de amar tanto alguém a ponto de não
conseguir viver se esse alguém não estiver ao meu lado pra
sempre.
O medo nos reprime, escolhe nossas ações e como vamos
viver. E não, não é fácil viver sem medo. E ele escolheu que eu não
consigo estar submersa de amor, apenas fico na beira da praia,
onde as ondas são fracas, mas ainda molham os pés.
— Ei, chatas, vamos no barzinho? — Gabriel me tira do fundo
do poço.
— Eu fecho — Duda reponde da dispensa.
— Tô precisando relaxar e dançar um pouco, me espera lá na
frente, que eu vou fechar tudo aqui.

O bar em que a gente gosta de ir é todo ao ar livre, cheio de


mezinhas e tem uma quase pista de dança com aqueles fios de
luzes que ficam no alto e decoram todo o espaço, e não são de
Natal, pois ficam ali o ano todo. Acho que a única coisa que eles
resolveram colocar na temática do Natal foi os uniformes dos
funcionários, que usam um avental como se fossem um dos elfos do
Papai Noel.
— Desde quando vocês estavam usando essas roupas no
trabalho? — Gabs pergunta, assim que nos sentamos.
— Sempre tenha uma peça de roupa pra um possível rolê,
priminho.
— Mas fala aí, você viria com uma combinação de calça
jeans e uma camiseta geek igual a essa, não? — Duda provoca.
— Olha aqui, eu não viria com uma camiseta surrada do
capitão américa, ok? Eu iria colocar uma do Han Solo com o
Chewbacca, puro estilo.
— Ah sim, você iria fazer sucesso como influenciador de
moda... Não sei por que ainda não começou sua carreira — digo, e
ele faz uma careta pra mim.
— Tudo bem, eu sei que meu gosto é o melhor e por isso vou
pagar a primeira rodada.
— Shot de vodca?
— Óbvio, até um de nós começar a cantar Bohemian
Rhapsody fora do ritmo. — Eles assentem.
A gente tem essa tradição em que, antes da noite realmente
começar, tomamos rodadas de vodca até desafinarmos o refrão de
algum hino.
Quem embaralhou a letra foi a Duda, vamos dizer que entre
nós ela é a mais fraca pro álcool. E felizmente o Gabs é o mais
forte, a nossa sociedade é tão machista que a única garantia de que
não seremos assediadas, ou alguma coisa pior, é estar na
companhia de um homem. Foda.
— Duvido você cantar no caraoquê comigo. — Duda encara
Gabriel.
— Tá duvidando da pessoa errada, gatinha, você sabe muito
bem que pra mim desafio dado é desafio cumprido.
— Sem melação na minha frente, aqui é só amizade cinza,
nada de colorida. — Só pra me irritar eles dão um selinho um no
outro, olhando pra mim quando sobem no palco.
E os bonitos escolhem “Amor de Que”, da Pabllo, e cantam
olhando pra mim. A canção me define. Vamos dizer que os dois
fazem uma bela dupla de gralhas com microfone, eles têm sorte de
todos aqui estarem bebendo e dançando o suficiente pra não se
importarem com as belas vozes que saem da caixa de som.
Enquanto observo eles cantarem a terceira música, um
homem se senta na minha mesa. Parece tímido, mas nem tanto,
pois tomou a iniciativa de se sentar aqui. A gente estava se olhando,
ele estava sentado no balcão que fica do outro lado da pista. Os
cabelos ruivos com cachos caem pela testa, as bochechas estão
rosadas com o calor.
— Sempre quis ser ruiva, mas acho que não combina comigo
— começo a quebrar o gelo.
— Posso garantir que você ficaria linda até careca. — Ele
bebe o resto da caipirinha que estava segurando.
— Já pensei nisso, mas agora queria dançar, você quer?
Não precisei esperar nem um minuto pra ele estar segurando
minha mão e me levando pro meio do bar. Começamos dançando
só olhando um pro outro, mas logo as mãos dele estão em meus
quadris. Ele cheira tão bem, o perfume dele me lembra o do cabelo
de Débora ...
Droga, não posso estar fazendo isso enquanto danço com
outra pessoa.
— Qual o seu nome? — pergunto, tendo que gritar por conta
da música.
— David e o seu? — Não dou meu nome pro garoto.
— Desculpe, David, mas não tô no clima hoje, vou ter que ir...
— Ele assente, e eu tento sorrir pra tornar a situação menos
embaraçosa.
“Não tô no clima”, que ódio. Por que eu não posso ficar no
clima? Era tudo que eu precisava hoje.
Débora 11
Passei a tarde toda finalizando meu último trabalho do ano da
faculdade, foram os últimos ajustes. Foi um verdadeiro inferno esse
ano. E não vou conseguir me enturmar com a galera agora, faltando
apenas algumas semanas pra concluirmos o semestre... Enfim
fadada a ser a titia dos gatos, o que literalmente eu amaria, imagina
ter vários gatinhos em casa...

Estou assistindo Brooklyn Nine-Nine na sala com a minha


irmã, a gente literalmente idolatra essa série. O capitão Holt tem
meu coração, e nunca vou superar Jake Peralta, ele sempre vai ser
minha meta como ser humano.
— Deb, pausa, acho que o Felipe chegou. — Ela abre a porta
tão rápido que nem sei se me escuta.
— Mas, Ana, você avisou a mamãe que ele iria vir aqui?
Estamos sozinhas em casa, meus pais foram trabalhar,
minha irmã mais nova, a Larissa, está na escola, e minha outra irmã
não mora com a gente. E a Ana Júlia sabe muito bem que a mamãe
ou o papai iriam gostar de saber que o primeiro namorado dela veio
aqui em casa.
— Ah, relaxa, a gente só tava assistindo uma besteira. — Ela
segura a mão do garoto, que me cumprimenta sem jeito. — Deixa
eu te mostrar meu quarto. — Olho pra ela questionando sem falar
nada. — O que foi? Meu namorado precisa conhecer onde eu moro,
Deb.
— Tá, só, por favor, não façam barulho.
Já tive experiências horríveis com minha irmã mais velha,
Melissa. Ela é dois anos mais velha que eu, então tive que ouvir
muitas das noites em que ela e o namorado, atual marido,
passavam no quarto, trancados, enquanto meus pais viajavam.
E não dá outra, dez minutos depois, os barulhos começam. E
não, não tem coisa pior do que isso.
Já falei que do lado da padaria tem uma livraria. Se não estou
tomando café, estou babando nos livros. O ar tem cheiro de livro
novo, eu amo revestimento de livraria, nunca faz barulho. E hoje não
está um completo silêncio. Como de costume, tem um Papai Noel
no centro da seção infantil, diferente dos de shopping, ele está
contando histórias pras crianças que o rodeiam.
Às vezes o Natal faz eu acreditar na humanidade. Seres tão
pequeninos, tão inocentes, são capazes de acreditar na magia do
polo norte. Se você parar pra pensar, isso só se torna impossível
quando crescemos e achamos que sabemos de tudo, e que magia
não existe. Talvez ela só exista pra aqueles que não a subestimam.
A questão agora é, vendo meu rim no caixa ou assalto a
livraria?
— Eu amo esse livro, decorei meu apartamento com post-its
por um bom tempo.
A garota da padaria, Fernanda, brota e me fita, quase me
deixando pelada. Não seria má ideia, mas acho que o Papai Noel
não iria curtir muito.
— É, quem sabe na próxima eu levo. — O silêncio de quase
estranhos mas nem tanto é complicado. — Obrigada pelo panetone
aquele dia, tava muito bom, eu acabei com ele quando cheguei em
casa. — Ela ri com um sorriso no rosto magro.
Como alguém consegue ficar tão linda em um uniforme?
Fernanda 12
Fui na livraria pra entregar o café de uma amiga que trabalha
lá. O destino faz seu papel ao colocar duas pessoas no mesmo
lugar. E eu só fui embora daquela festa ontem porque senti o cheiro
de um perfume que lembra o de Débora.
E agora ela está na minha frente, usando uma blusinha
branca, que tem um decote pro qual eu me seguro pra não olhar. Os
cabelos têm duas tranças finas, fazem uma coroa em volta da
cabeça.
— Que bom que você gostou! Eu tava fazendo mais dele
agora. — As bochechas dão tanta vontade de apertar. — E, falando
neles, tenho que voltar pra padaria antes que minha mãe venha me
caçar.
— Eu tô indo pra lá também, vou deixar o livro pra outro dia.
— Se você quiser, eu posso te emprestar. — Esse nível de
intimidade eu nunca tive com ninguém, emprestar um livro pode ser
assustador.
— Eu iriar adorar e eu cuidar dele como se fosse meu filho.
— Ela é muito fofa. Abro a porta pesada da livraria, indicando pra
ela passar primeiro.
Andamos lado a lado na calçada apertada. Tão estreita, que
nossas mãos se encontram em determinado ponto, mas logo somos
separadas por um poste que fica bem no meio do caminho.
Sinto que ela não se sente totalmente confortável comigo.
Não nos conhecemos, e isso pode ser um bom motivo pra não se
sentir à vontade perto de alguém. O problema é que eu me sinto
leve, como se pudesse voar ao redor dela, fazê-la sentir a brisa...
Essas coisas melosas.
Passamos pelo boneco de neve inflável, o mais icônico disso
é que o boneco está usando um short de praia. Apenas Brasil. Já
falei tanto pra minha tia que essa catraca é constrangedora de tão
estreita... Só que ela não entende que nem todo mundo tem o corpo
igual ao dela, que passa livremente nesse aperto. E é o que
acontece com Débora, mas acho que ela está tão acostumada com
a padaria, que já tem a prática pra não esbarrar. Não deveria ser
assim.
— É... Você quer que eu pegue um café pra você?
— Obrigada — ela nega com a cabeça —, vou dar uma
passada no banheiro.
— Tá bom, qualquer coisa me chama. — A gente anda
sincronizadamente e fica naquela indecisão de qual lado devemos ir,
ela fica toda vermelha, e não consigo conter o sorriso que surge no
meu rosto.
Ela demora pra caramba no banheiro, devo me preocupar?
Por que deveria? A que ponto eu cheguei. Decido mandar um
panetone com corações pra mesa em que ela deixou a bolsa.
Débora vai entender o recado, eu acho.
Débora 13
Vou no banheiro porque pessoas hidratadas sofrem e
também pra fazer um delineado... Eu disse que nunca mais iria usar
aquele aplicativo, mas sou uma boa pessoa e dou segundas
oportunidades pra todos, às vezes dou oportunidades demais. No
desespero de ser inclusa nesse inferno de Natal, minhas chances
estão sendo distribuídas com mais frequência.
Eu marquei um encontro com um cara.
Saio do banheiro, e ele está perto da mesa em que deixei
minha bolsa. Ele tem quase minha altura, uns 1,68 no máximo, a
pele negra e cabelo raspado. Tem um cheiro ótimo.
— Oi, sou a Débora. — Ele abre um sorriso.
— Você é mais bonita pessoalmente, sou o Antônio — diz
ele, me cumprimentando com um beijo na bochecha.
— Ah, obrigada. Meu deus, eu estava louca pra comer esse
panetone, como adivinhou? — Ele vacila o olhar por um momento.
— Quem não ama panetone de corações em um pleno
encontro perto do Natal?
O cara não é péssimo, ele não me desrespeitou nem nada.
Muito educado aliás, e tem um ótimo senso de humor. O problema
é...
— Minha ex costumava usar o cabelo igual ao seu, eu
sempre gostei de tranças. — O problema é que ele não superou a
ex dele.
— Eu sempre gostei também. — Ele continua mastigando a
esfiha de queijo. — E, falando em cabelo, tinha esquecido
completamente que marquei um horário no salão hoje, ainda bem
que você tocou no assunto. — Dou uma risada sem graça.
— Hm... — Ele engole a comida. — Quer que eu te leve?
Minha ex ia num salão muito bom, se você...
— Não, tudo bem, é bem pertinho daqui, dá pra ir andando.
— Pego minha bolsa, que estava pendurada na cadeira. — E,
Antônio, acho que você deveria tentar conversar com sua ex... Acho
que vocês dois têm muito pra conversar ainda.
Eu o deixo na mesa, sem me despedir muito. É, acho que
tenho que tomar vergonha na cara e desistir desse rolê de aplicativo
de namoro. Talvez eu devesse tentar sair com alguém da
faculdade?
Eu não deveria fazer isso, cara, eu simplesmente sou
solteira. Não tem nada de errado nisso, não me sinto mal por isso,
não é uma necessidade minha estar em um relacionamento. Estar
bem com a própria companhia não deveria ser motivo da
preocupação dos outros.
Me recuso a me submeter a esse papel que passei hoje
novamente. Que se foda o jantar do Natal, que a família toda saiba
que eu sou solteira e que vou continuar até que não esteja mais.
Fernanda 14
Ela insistiu nesse negócio? Fala sério. Já deu pra perceber
que ela não quer nada casual, então não faz nenhum sentido ela
continuar marcando esses encontros.
E aquele babaca ainda disse foi que ele quem pediu o
panetone. Isso que dá tentar ser romântica. Nem sei direito por que
estou fazendo isso, é como se todas as minhas ações fossem feitas
pra impressioná-la, que saco.
— Oi, me vê um café gelado, por favor — ela pede, no
balcão, pro atendente.
— A noite foi boa dessa vez? — Assumo o pedido.
— É, você sabe como é, deve ter assistido a todo o meu
mico. — Assinto, e ela rola os olhos.
— Café gelado sabor Natal?
— O que é um “sabor Natal’? — ela pergunta como se eu a
tivesse pedido em casamento.
— Café, baunilha, gengibre, chocolate e chantilly — Débora
demora a escolher.
— É, vou querer um desse. — Enquanto faço o café, ela
come os biscoitos de amostra do balcão.
— Eu te disse antes que posso te ajudar. — Ela franze a
testa, tentando entender do que eu estou falando. — Você não
precisa desses encontros, eu posso te ajudar, se quiser.
— Só que você nem sabe o que eu quero — ela diz, abrindo
o sachê de açúcar.
Na minha mente, ecoa “mas eu sei o que quero”. Só que eu
não digo isso, minha mente vem pensando coisas involuntárias, que
são muito inconvenientes nesse exato momento.
— Gosto de ajudar as pessoas. — Quê? Alguém me tira
daqui.
— Eu tava procurando alguém pra ir no jantar de Natal com a
minha família. Ainda não decidi muito bem se parei de procurar —
ela diz, mais pra si mesma do que pra mim.
— E esse alguém tem que ser um homem? — Ela tira os
olhos do café e me fita em uma velocidade que eu não consigo
acompanhar.
Por um momento, acho que ela está encarando minha boca.
Ela tem muita sorte de ter um balcão separando a gente.
— Bom, não faz muita diferença, na verdade.
— Isso facilita muito as coisas, Débora. — Ela respira como
se tivesse se esquecido de como puxar o ar.
Débora 15
Eu sei que sou bissexual, mas eu nunca fiquei com uma
mulher... E me sinto atraída por algumas, tipo... Esquece, a vida da
fanfiqueira não tem limites. Eu não me assumi bi pra ninguém ainda,
tenho tantas dúvidas. Nessas horas eu queria uma amiga pra
conversar sobre a vida.
— Não vejo o fato de conseguir conquistar uma mulher como
algo mais fácil. — Fernanda coloca uma mecha de cabelo atrás da
orelha.
— Mas você quer algo sério?
Um dia, quem sabe...
— Longe disso, seria impossível em tão pouco tempo.
Fernanda assente, e um cliente aparece no balcão. Enquanto
ela pega os pães e os frios que o senhor pediu, fico observando
cada ela movimento que faz, meus olhos não conseguem desgrudar
dela... Mas me forço a encarar o café, que derreteu todo chantili.
Fernanda se apoia com os cotovelos no balcão, em minha
frente, estamos na mesma altura agora, ela é alta, e eu, ainda
sentada na banqueta, fico na mesma altura que o olhar dela.
— Me conta, por que você quer fazer isso?
— Por pura pressão social. — Ela aperta os olhos. —Tenho
três irmãs, uma delas é casada, e as outras duas acabaram de
entrar em relacionamento. E elas resolveram que, no jantar de Natal
da família, vão levar os garotos.
— Ah, mas tá tudo bem não estar namorando em uma data
em que todo mundo fica melancólico.
— Eu sei, mas eu odeio as perguntas dos meus pais
“conheceu alguém na faculdade?”, odeio que minhas irmãs tenham
começado a me excluir das conversas só porque não entendo nada
sobre brigas e sedução, odeio que elas façam encontros de casais,
odeio não poder ser só eu e eu. — Meus olhos ardem com as
lágrimas que se formaram.
— Você pode. A sociedade nos faz achar que nunca somos
suficientes pra nós mesmos. É sobre aceitar que é suficiente, que é
o bastante e que, se for ter alguém ao seu lado, não vai ser pra se
completarem, e sim pra trocarem seus aprendizados da vida. — A
mão de Fernanda quase toca a minha, mas o cliente volta a chamá-
la.
Tenho tempo suficiente pra me recompor antes de começar a
chorar na frente de uma ex-estranha.
Fernanda 16
Sempre tem alguém que estraga meu momento com essa
garota. Eu gosto de conversar com ela, mesmo que seja por dois
míseros minutos. Nunca me senti do jeito que ela se sente,
pressionada por conta da família. Minha mãe sempre entendeu que
eu tinha meus próprios limites e que, se eu estivesse disposta a
cruzá-los, cruzaria.
Finalmente o senhor a quem estava atendendo vai pro caixa
e não volta, dessa vez. Débora ajeita o cabelo na câmera do celular,
enquanto me aproximo de volta.
— Acho melhor eu chamar um Uber, tá ficando tarde, já.
— Onde você mora? — pergunto.
— Na Mooca, é rápido pra chegar em casa. — Assim que ela
termina frase, eu tenho uma ideia.
— Eu posso te levar — não tenho carro, mas minha mãe tem
—, meu primo me pediu carona pra lá hoje. — Ela olha da tela do
celular pra minha boca.
— Ah, eu adoraria. — Ela guarda o celular. — Lógico, se não
for incomodar.
— Acho seria o oposto disso.
Procuro por Gabriel no mesmo instante em que ela aceita.
Saio correndo atrás dele, que já estava indo embora com Duda.
Fofinhos. Eles são uma loucura, e eu prefiro não entender.
— Ei!! — Os dois se viram pra mim. — Por favor, digam que
vão e algum barzinho da Mooca.
— Quê? — Gabs tem traço japoneses, como todos de nossa
família, e hoje está vestido com uma roupa que não é de super-herói
ou de banda.
— Eu preciso dar uma carona pra vocês, ok? — pergunto, e
eles pedem pra eu repetir. — Eu quis dizer que vou pagar uma pizza
pra vocês dois lá na Mooca.
— Hmm, você é muito caloteira, Fefê — Gabs diz, passando
o braço em volta de Eduarda.
— Aceitamos se você fizer um pix pra mim antes de
entrarmos no carro — Duda diz.
— Fechado, mercenários.
Felizmente eu tirei carta de motorista, e sempre dirijo pra
levar minha mãe a algum lugar, então estou em forma pra levar essa
galera. Peço a chave do carro da mamãe dizendo que vou na
pizzaria com meus amigos, ela não iria gostar de saber que eu
estava levando Débora pra casa.
Débora 17
Eu poderia muito bem ter recusado a carona que Fernanda
me ofereceu, mas, além de a viagem estar um absurdo de caro pro
bolso de uma quase ex-universitária, também não consegui dizer
não. O fato de passar poucos minutos conversando com ela me
deixa tão nervosa, mas tão animada.
Fico esperando-a voltar, Fernanda disse que iria pegar as
chaves do carro e avisar o primo que já estava de saída.
— Vamos? — Ela surge atrás da banqueta.
Eu a até o estacionamento da padaria, que fica nos fundos.
Seu primo já está esperando por nós, encostado na porta do carro
com uma garota de cabelos castanho-claros e pele branca. Ela
parece ser tão fofa, os cílios são gigantes de dar inveja, fazem os
olhos marrons se destacarem.
— Essa é Duda e Gabriel, eles vão com a gente — Fernanda
diz, abrindo a porta do carro.
— A gente tá indo pra uma pizzaria, quer ir? — Fernanda
arregala os olhos pra Gabriel.
— Pode ir na frente, é mais fácil pra você dar as direções pra
Fer. — Duda sorri pra mim.
Coloco o cinto de segurança e fico escutando a conversa dos
pombinhos no banco de trás. Melosos demais, mas fofos.
— Não liga pra eles, sempre são chatos assim — Fernanda
diz, olhando pro espelho do carro.
— Ei, somos muito legais, tanto que você roubou nossa
personalidade. — Gabriel fica no meio dos bancos.
— Ah, claro que eu ia roubar sua personalidade, que é
baseada em Star Wars e Marvel, Gabs, pode acreditar.
— Eu amo os filmes da Marvel — digo, e Gabriel bate
palmas.
— Tá vendo só? Não sabe o que você tá perdendo, dona
Fefê. — Ele liga o rádio do carro. — Vou colocar a trilha sonora de
Guardiões da Galáxia. — Fernanda e Duda riem.
Tocam umas três músicas antes de chegarmos na pizzaria
em que eles vão ficar. O carro para e eles descem mandando beijos
até entrarem no restaurante.
Ele não fez isso não, né? Os altos falantes do carro param
por um instante, antes de fazer o silêncio ensurdecedor.
E toca “I wanna be your girlfriend”, de Girl in Red.
“Oh, Hannah
Just look at me the same
I don't wanna be your friend, I wanna kiss your lips
I wanna kiss you until I lose my breath
I don't wanna be your friend, I wanna kiss your lips
I wanna kiss you until I lose my breath”
— Então — ela limpa a garganta —, onde você mora?
— Ah, claro, vou colocar no maps.
Essa música não tem fim, ela só pode estar repetindo, não é
possível.
— O Gabriel vive esquecendo o celular dele no carro, pelo
menos ele tem bom-gosto.
— Concordo, a seleção dele foi ótima.
Silêncio, Silêncio. Silêncio.
Quando as mãos de uma mulher no volante se tornaram tão
interessantes?
Minha casa não fica longe, mas nem percebo quanto tempo
passei encarando as mãos de Fernanda, caralho?!
— Chegamos!
— Foi rápido, né. — Ela dá uma risadinha.
— Se eu não tivesse errado a rua quatro vezes teria sido
mais rápido. — Que bom que ela errou, então.
— Acontece na primeira vez. — Ela me encara intensamente.
— Bom, até amanhã então... — Fernanda se estica pra perto
de mim.
Ela chega perto demais do meu rosto antes de beijar minha
bochecha. Ela passa o braço por minha cintura, tentando abrir a
porta.
— Acho que o verão tá levando a sério esse negócio de
derreter as pessoas — ela diz, colocando o cinto.
— Obrigada por hoje — digo, ela sorri em resposta.
— Sempre que você precisar.
Fernanda 18
Eu juro que eu vou cair morta de tão confusa que essa garota
me deixa. Eu não sei se ela corresponde o que estou sentindo, que
também é uma grande confusão... Como eu cheguei nessa
situação?
Eu preciso correr, mas correr muito. Me ajuda a esclarecer os
pensamentos. Ou eu posso ir atazanar meus melhores amigos, que
fizeram o clima no carro ficar bem tenso... Eles merecem que eu
estrague o date deles.
Eu os deixei em uma das melhores pizzarias de São Paulo, o
lugar é lotado, estacionamento mais caro que o carro, fila até o fim
da calçada. Enfim achei uma vaga dando sopa na rua de trás.
Passo pelo pessoal da fila me sentindo ótima por não ter que
encarar duas horas em pé só pra comer três fatias de pizza.
Encontro eles recebendo a pizza que o garçom serve.
— Olá, pestinhas.
— Isso não é nada bom — Duda diz pro Gabs, fingindo que
está cochichando.
— Nosso plano não funcionou, e agora?
— Confisquei seu celular, Gabriel, você não sabe usar e
sempre esquece, é melhor deixar com um responsável.
— Isso que dá tentar ser cupido — ele diz, tascando ketchup
na pizza.
— Já falei pra você que isso é nojento, mano. — Duda odeia
que a gente ponha de tudo na pizza.
— Ai, vou no banheiro — Gabs se levanta —, e não ouse tirar
o ketchup da minha pizza, Eduarda.
— Não rolou nem um beijinho? — Duda pergunta.
— Depois daquela música não rolou nem respiração, amiga.
— Você tá apaixonada? Quando foi a última vez que isso
aconteceu?
Nem eu sei, na verdade. Acho que me apaixonei várias
vezes, mas nunca deixei o sentimento seguir seu caminho, sempre
dei um jeito de me afastar. Sentia tanto medo de amar, que fingia
não sentir nada até isso se tornar verdade. Mas sempre foi mentira.
— Vamos falar de você, gatinha, tá apaixonada por aquela
coisa? — Ela para de comer.
— Com todo respeito, mas seu primo é um gostoso e muito
fofo.
— Pensando bem, eu esqueci meu celular no carro.
Não, eu me recuso a falar do boy sendo que ele é meu primo.
Eca. A gente cresceu junto, ele é meu irmão. Desculpa, mas eu
tenho limites pra fofocas sobre relacionamentos e ficantes e todas
as outras nomenclaturas.
Débora 19
Se vergonha matasse, eu teria morrido cinco dias atrás,
dentro daquele carro. Será que o primo dela estava zuando com a
minha cara? Ou será que ele estava querendo dizer que eu estou
dando muito na cara? Eu nunca mais flertei depois daquele único
garoto, e nem posso chamar aquilo de flerte, ele mais me
convenceu de que já era hora de a gente dar um passo a mais na
ficada. Enfim, foi uma merda, não me arrependo, mas foi sem graça
e monótono.
Então eu não faço ideia se eu deixei escrito na minha testa
“nossa, como você é gostosa”, e não sei dizer se a Fernanda gostou
de conversar comigo ou se ficou com tanta dó da minha situação,
que resolveu me ajudar de alguma forma. Isso pode explicar o
porquê da carona até minha casa. Mas também teve aquela hora
em que ela passou o braço bem perto da minha cintura, só que
pode ter feito isso só pra abrir a porta do carro. Sou muito
inconveniente... A vergonha, meu pai.
Estou saindo da faculdade pra pegar um ônibus lotado de
adolescente que não sabe usar desodorante, não aguento mais isso
não. E é lógico que não consigo um banco, existe banco em lata de
sardinha, por acaso? Antes de chegar no metrô, tenho que andar
um pouco, e o caminho passa pela padaria. Nunca nesses anos de
universitária fiquei tantos dias longe de lá, me sinto até uma traidora
da Sra. Akemi.
E, assim, eu estou morrendo de fome. Agora o Natal está
cada vez mais próximo, ou seja, o buffet está cheio de pratos com
uvas-passas. Eu gosto, ok? Sem frescura por aqui! E eu preciso
almoçar, é uma questão de necessidade, não há vergonha que faça
eu não entrar nessa padaria pra comer aquela farofa com bacon,
cebola e uvas-passas.
Aqui é sempre cheio, movimentado, mas organizado. Não sei
como é possível as pessoas se respeitarem aqui, mas ocorre de
uma forma que faz eu ser viciada em ficar aqui, fazendo
absolutamente nada ou lendo.
Não dá tempo nem de eu olhar o que tem na promoção, a
Sra. Akemi aparece no meio dos bolos.
— Por onde você andou, minha flor? Arrumou outra padaria,
foi? Senti sua falta — Cruza os braços.
— Como vou encontrar uma padaria melhor que a Doce
Esperança? — Ela sorri.
— Então o que houve? Está tudo bem?
— Tá tudo bem sim, eu só tive — um surto de vergonha —
que colocar em dia minhas provas, essas coisas.
— Entendi, você deu tanta sorte que a farofa já terminou
duas vezes, mas outra acabou de ficar pronta, uma bem fresquinha.
Ela é fofa demais, e eu não sei lidar.
Pego minha bandeja e sigo pegando batata frita, strogonoff,
arroz e farofa. Vou pra uma mesinha que fica mais escondida, longe
da parte dos doces. Não sei se quero me encontrar com Fernanda e
ser a garota que não sabe o significado da palavra limites de novo.
Fernanda 20
Pelo jeito Débora não contou pra minha mãe que eu a levei
pra casa aquela noite. Pois, se tivesse, minha mãe já estaria no meu
pescoço perguntando o que eu fiz pra garota.
A real é que tinha um garoto que era um cliente muito fofo, e
minha mãe o amava. Só que a gente resolveu começar a sair um
dia, lá pelos meus dezessete anos. Ele frequentava a padaria com a
mãe frequentemente. A mãe do garoto nunca fez questão de me
conhecer, até depois do dia em que saí com o seu filho, quando ela
arrumou um barraco na hora do expediente, me acusando de ter
iludido o garoto. E óbvio que eu não tinha, tanto é que a gente
estava tendo uma amizade colorida e, às vezes, só amizade.
Enfim, minha mãe me defendeu. Esse não foi o problema, e
sim que todos os clientes da padaria tiveram que parar pra observar
o espetáculo que aquela mulher fez. Desde então, minha mãe não
quer que eu me relacione com os “clientes amorecos dela”.
Completamente errada não está, mas foi há quatro anos, e eu era
uma adolescente que não ligava muito pras consequências.
E ver Débora na mesa do canto faz eu me animar muito,
depois do dia da carona esperei que ela fosse aparecer no outro dia
pra, sei lá, conversar sobre nada, ou eu descobrir se tenho uma
chance. Mas ela não apareceu por cinco longos dias, eu ficava
olhando a porta toda vez que alguém entrava. Não importava se
estivesse na cozinha, ao escutar o som dos sinos de Natal, eu vinha
pro balcão principal.
E saber que ela voltou faz eu me sentir mais leve, acho que
ela está se escondendo de mim, talvez eu tenha falado muita
besteira, acho que me intrometi demais na vida dela. Tenho esse
péssimo hábito de achar que sou próxima de uma pessoa que
acabei de conhecer.
Mas uma tentativa eu preciso fazer, não posso viver com
essa dúvida toda vez em que ela aparecer. Tenho que fazer alguma
coisa e ir falar com ela.
— Tem mesmo. — Parece que eu falei em voz alta, pois
Duda está me encarando com uma pilha de pratos nos braços.
— E o que sugere, espertinha?
— O óbvio, é bem simples, na verdade. — Ela coloca os
pratos na mesa.
— Ah claro, como fui esquecer. — Ela ri.
— Amiga, só vai falar com ela. — Nego com a cabeça.
— Não posso, se eu fizer isso, eu tenho certeza de que ela
vai arrumar uma desculpa pra não falar comigo.
Minha alma imatura nunca vai se tonar adulta, tenho total
noção disso. A primeira e última ideia que vem em minha mente é o
famoso bilhetinho escrito “SIM ou NÃO”.
— Fernanda, você sabe que poderia muito bem andar até lá,
né? — Duda diz, segurando o papel que entreguei.
— Lógico que não, qual seria o tempero disso? — Ela
suspira, desistindo de argumentar.
— Tá bom, mas eu falo que você escreveu?
— Não precisa, ela vai saber.
Débora 21
Me recusei a pedir um suco de laranja, pois se fizesse, teria
que chamar um garçom, e no caso a Duda é garçonete, então
preferi ficar no Guaraná. Mas como nada nessa vida sai do jeito que
a gente planeja, faz uns cinco minutos que estou segurando um
guardanapo que ela me entregou, que diz só “Oi” com um sorriso e
bochechas vermelhas.
“Quer ir num encontro comigo?”
QUÊ???
A Duda tá me chamando pra sair???
Eu não estou entendendo mais nada, releio o papel mais de
dez vezes, procuro o rosto da garota pelo salão lotado de mesas,
vozes e tilintar de talheres.
Quando acho que vou ter uma explicação de Duda, me
deparo com Gabriel levantando a sobrancelha várias vezes,
enquanto estende o braço segurando o pedaço de papel.
— Olá, Deb. — Ele volta pelo caminho sorrateiro por qual
veio.
“Não precisa ser um encontro de verdade se preferir.”
É... Eu não curto muito essa ideia não. E, sério, como
presumiram que eu gostaria de um encontro a três? Fala sério, isso
só pode ser sacanagem. Me levanto em direção ao balcão de
bebidas, onde Eduarda e Gabriel estão descansando, apoiando as
costas na parte mais alta do balcão.
— Oi, bom, eu não sei por que vocês acharam que eu
gostaria de ter um encontro com vocês dois. — Eles arregalam os
olhos. — Nem vou agradecer, pois vocês devem ter achado que, só
porque eu falei pra Fernanda que gosto de garotas — eu não falei
exatamente assim, mas acho que foi o que eles entenderam —,
vocês têm o direito de me convidar pra um ménage?
— O quê??? Não foi isso que... — Dou as costas e acho que
não quero nunca mais voltar nesse lugar.
— Espera! — Uma voz, na qual não paro de pensar ecoa
pela padaria, fazendo os clientes olharem em minha direção por um
momento antes de voltarem pras suas refeições.
— Eu falei, era bem menos catastrófico você simplesmente
falar com ela — Duda diz. — Debora, em momento algum
pensamos isso, podemos ter dado a entender que era convite
nosso, mas, bem... Acho que a Fer pode explicar melhor.
— Gente, acho melhor vocês conversarem lá fora, temos
muitos clientes cuidadores de vida alheia por aqui — Gabriel diz,
olhando pra uma mulher loira que está muito interessada no
cardápio ao meu lado, pena que ela não colocou os olhos nele nem
por um segundo. — E desculpe pelo transtorno.
— Desde quando você sabe usar esse vocabulário? — Duda
diz, empurrando-o.
— Ah, gatinha, eu não vivo só de programar computador não,
viu?
Fernanda para em minha frente e acena com a cabeça lá pra
fora. Eu a sigo, tenho que apressar o passo, as pernas dela são
bem maiores do que as minhas.
— Oi — ela começa —, é, fui eu que mandei os dois bilhetes.
Pensei que você iria saber que fui eu que mandei, mas não pensei
direito. Desculpa.
— Eu achei que você não quisesse mais me olhar na cara
desde aquele dia... — Ela dá uma daquelas risadas sem som.
— Difícil. — O que ela quer dizer com isso? — Mas, e aí, o
que acha de um encontro?
— Eu não sei por que você não falou antes — digo animada.
— Bom, eu não tinha certeza de que... — interrompo ela
antes que mude de ideia.
— Você viu meu nível de desespero, mas não sabia que iria
querer passar o seu Natal fingindo ser minha namorada. — Ela
franze os lábios.
Fernanda 22
Ok, não esperava por isso não. Mas, assim, um namoro falso
de Natal inclui todo o combo de um namoro verdadeiro? Não vou
perguntar, vai que estrague minhas chances...
— Adoraria — respondo, sem pensar muito. — Acho que isso
vale como algum tipo de encontro. — Falo essa parte mais baixo.
— Minha família é bem grande, então vai rolar muita
pergunta, tudo bem pra você? — ela pergunta. Onde eu fui me
meter?
— De boa, mas o que a gente faz agora? — Ficamos em
silêncio, enquanto ela olha alguma coisa na tela do celular.
— Acho que a gente precisa tirar umas fotos, fazer as coisas
parecerem reais — ela diz, levantando o celular pra uma foto, mas
eu abaixo o braço dela.
— Não acha que devemos ter nossas primeiras fotos juntas
no nosso primeiro encontro? — Ela assente.
— Sim! Perfeito... — Ela olha no meus olhos. — Por que você
tá fazendo isso? A gente nem se conhece direito. — Deb ri, sem
graça.
Ah, porque eu criei uma obsessão por você e quero ser sua
amiga, e bem mais que isso, na verdade.
— Faz tempo que eu não passo uma vergonha. — Ela ri e
desvia o olhar. — Amanhã à noite, o que acha?
— De você passar vergonha? Ou do encontro?
— Dos dois. — Ela balança a cabeça.
— Amanhã à noite é tranquilo pra mim.

Chegou a noite do encontro, e eu simplesmente não sei o


que vestir! Acontece isso comigo toda vez em que fico nervosa,
mas, em dias normais, eu sempre sei muito bem como me
comportar, o que vestir e o que não vestir. Só que eu vou sair com
Débora e eu não sei o que esperar dela. Eu não tenho a mínima
ideia de onde isso vai dar, e sim, isso influência totalmente minha
escolha de roupa.
Se eu for com uma calça, ela pode entender que não quero
assunto. Short jeans significa que não tirei um segundo do dia pra
me preparar. Saia simplesmente não é meu estilo. Vestido é algo
ousado, e eu gosto disso, mas não sei, e se parecer demais? Posso
usar a desculpa de que é pro encontro ficar mais real, só que, pra
mim, é exatamente isso.
Meu telefone vibra com uma mensagem, é ela: “Oi, já tô aqui
na frente”.
Caralho, não posso descer de calcinha e sutiã, que droga.
Então respondo: “Pode subir, te liberei na portaria, décimo andar, ap
20”.
Coloco o short do pijama e uma regata preta, espero o
barulho do elevador ansiosamente. Quando escuto a campainha,
ando um pouco devagar, pra não demonstrar tanta ansiedade.
Abro a porta, e lá está ela, com um vestido de cetim rosê
justíssimo. Como ela é gostosa. Não dá pra não olhar ela de cima a
baixo menos de três vezes.
— Oi — sorrio —, você tá muito linda. — Ela agradece. —
Quer entrar pra comer?
Comer?! A gente vai num restaurante! Eu perco todo o meu
raciocínio perto de mulher bonita e muito cheirosa. Alguém me dê
forças pra não ser idiota essa noite. Por favor.
Débora 23
O apartamento não é um símbolo de organização, mas
também não é uma zona, só significa que alguém mora ali e está
confortável. Na sala, pinturas de cerejeiras e templos japoneses, e
não consigo deixar de notar a estante lotada, e, pelas lombadas,
são vários romances de capas fofinhas ilustradas.
Eu estou começando a achar que me arrumei demais,
Fernanda me olha de cima a baixo tantas vezes, que creio que
tenha algo errado no meu vestido. Sinto meu rosto quente pra
cacete, não dá pra ficar perto dessa mulher e me sentir normal.
Shortinho de pijama é pra torturar...
— Comer? Acho melhor guardar espaço pra pizza. — Ela ri,
encarando as unhas.
Me sento no sofá, que fica ao lado da varanda, na esperança
de que o ar me relaxe, mas o verão nessa época do ano é terrível, o
ar fica mais seco que tudo, ainda mais em São Paulo, onde a
poluição vem de brinde.
— A real é que eu não sei o que vestir, e eu já revirei meu
armário — ela diz, apontando pro monte de roupa jogada no sofá.
— Posso dar uma olhada?
— Com certeza. Se você achar algo, te dou um beijo de
prêmio!
Tenho a sorte de estar andando atrás dela quando ela diz
isso, pois meu sorriso não se contém. Droga, eu deveria entender
que é só um modo de falar, e não o sentido literal da coisa.
O armário dela é lotado de roupas incríveis, e ela tem um
corpo incrível. Como ela ousa dizer que não achou nada por aqui?
— O que você acha desse vestido aqui? — Fernanda
arregala os olhos e assente.
Fernanda 24
Debora achou algo, e eu não estava brincando sobre o beijo.
Nem um pouco.
Ela escolheu um vestido vinho que imita couro, cobre todo
meu colo, é curto e justo. Não sei como me esqueci dessa peça, ela
é simplesmente perfeita.
Agora me lembro muito bem por que meus olhos não
quiseram identificar essa roupa. Estou no meu quarto sozinha
tentando fechar a desgraça do zíper, que está na metade das
costas. Minhas mãos não alcançam, e não existe manobra pra
fechar isso!
— Debora? Pode vir me ajudar aqui? — Ela bate na porta
antes de entrar e dar de cara com as minhas costas nuas.
— Ah, claro! — Ela segura minha cintura pra alinhar o
vestido, suas mãos estão tão leves, que sinto cócegas. Quando me
acostumo com as mãos dela nos meus quadris, ela toca de raspão
os dedos na minha pele. Ela é tão quente que, mesmo quando o
zíper sobe, continuo a sentir seu toque. Ela arrasta meus fios de
cabelo pela nuca, e eu tenho que conter um tremor. — Com todo
respeito, mas você tá a maior gostosa que eu já vi. — Ergo as
sobrancelhas, e ela se arrepende de ter falado, mas eu não...
— Só posso dizer o mesmo sobre você. — Passo a mão no
ombro dela — Ainda quer o seu prêmio? — Ela ia dizer algo, mas
escolhe novas palavras.
— Meu prêmio? — Aham. — Eu aceito uma esfiha de
chocolate com morango.
Débora 25
Não quero mentir, o primeiro prêmio era muito mais
interessante. Mas não posso abusar da boa vontade da garota, ela
está doando o tempo dela pra resolver meus problemas. Não quero
que comece a achar que realmente me apaixonei por ela, ou que
pense ter o dever de lidar com uma maluca de encontros de Natal.
Estamos trancando o apartamento quando ela tira os sapatos
e entra de volta. Fico guardando o elevador, que acabou de chegar.
— Quase esqueci deles! — Ela aponta pros brincos, que
imitam pisca-piscas coloridos.
Entramos no elevador.
— Ai, que graça, você realmente gosta do Natal, né? — Ela
pega o celular pra chamar um motorista.
— Não do Natal em si, mas as pessoas parecem ficar mais
nostálgicas e ter esperança nessa época. E também tem...
— Os presentes! — Fernanda ri, fechando os olhos
apertados.
Fernanda 26
Entramos no carro, ela fica no meio e eu na janela, atrás do
motorista, que me olha com uma carranca pelo espelho. Ele pode
olhar o que quiser, desde que não abra a boca pra falar abobrinha,
aí eu vou ter que resolver do meu jeito.
— Quem eu estou tentando enganar? Presentes são a
melhor parte, sem dúvida! — Débora se anima ao escutar sobre
presentes.
— Eu amo comprar presentes, os que eu mais gosto de
passar horas escolhendo são pro Macarujá. — Ela liga o celular, e lá
está um cachorro dourado, na tela de bloqueio.
— Oh, tinha esquecido completamente que você cursa
medicina veterinária.
— Queria ter mais bichinhos em casa, mas vou precisar me
mudar da casa dos meus pais primeiro — ela diz, com a voz triste.
— Eu morro de medo de cachorro e de abelha, pronto, falei...
— Débora ri sem fazer muito barulho.
— O que aconteceu pra odiar essas coisinhas fofas?
— Sem chance, não conto não, muito vergonhoso pra uma
mulher de 21 anos.
Ela pega o celular e abre uma pasta na galeria cheia de fotos
dela agarrada com o tal do Macarujá, e um hamster. Várias fotos
brincando, abraçada, e do doguinho aprontando. Fofos. Na foto, são
fofos.
— Você vai querer ter um cachorro só de olhar essas fotos, e
vai me contar sua história extremamente secreta! — ela zomba de
mim.
Débora 27
Depois de uns vinte minutos de trânsito, minha galeria com o
Macarujá ainda não acabou. E quando eu acho que já cansei a vista
da Fernanda, ela pega o celular da minha mão e começa a passar
as fotos enquanto eu escolho uma mesa na pizzaria.
O restaurante é lindo, é ao ar livre, o que é ótimo. Eu amo
procurar as estrelas, mesmo que seja quase impossível encontrá-las
da cidade. Elas são uma ótima companhia quando você tem que
recarregar sua bateria social.
Uma coisa de que eu sempre vou achar graça é a decoração
de Natal com presentes falsos. Quando era pequena, implorava pra
minha mãe me deixar abrir uma delas, pois eu tinha certeza de que
iria encontrar um brinquedo ali dentro. Enfim, a obsessão por
presentes vem desde cedo.
Nos sentamos, e Fernanda continua com meu celular,
fazendo carinhas fofas pra tela. É muito bom assistir a pessoas
vendo fotos de pets. Tem fotos muito boas ali, certeza de que fariam
sucesso se eu as postasse, mas tenho ciúme de meu bebê ir parar
no celular de outra pessoa. Um relacionamento tóxico saudável, ok?
Fernanda tira os olhos escuros da tela e me encara com um
pouco de vergonha.
— Ok, quando eu tinha meus treze anos, eu fui fazer carinho
no cachorro que foi visitar a escola num evento, e todo mundo
estava me olhando. Então eu resolvi brincar com ele, mas passei a
mão rabo dele. Eu nunca tinha brincado com um cachorro antes! Ele
me mordeu e me derrubou...
— Uau, acho impossível você superar esse trauma, é um
caso muito complicado.
— Sim, eu sei... — Ela entorta a cabeça, cerrando os olhos.
— Você tá zuando meu trauma?
— Lógico que não, é um trauma muito relevante, é que eu
passei por isso esses dias, eu só não toquei no rabo do cachorro,
sabe? — Mostro a mordida na minha mão pra ela.
— E como consegue ficar perto daquelas coisas de novo?
— Não fala assim, eles são serezinhos com emoções, poxa.
— Emoções e dentes muito fortes! — ela diz, enquanto
chama o garçom.
Pedimos uma pizza inteira de pepperoni e duas taças de
vinho. Não demora muito pro pedido chegar, e começarmos a
devorá-lo. Pizza tem tudo que eu amo, comeria o dia todo.
— Você tem que conhecer o Macarujá — digo, puxando o
queijo.
— Nem pensar, linda.
— Sábado de manhã no parque, então? — Se ela disser não,
eu não sei onde vou enfiar minha cara.
Fernanda 28
Não posso recusar um encontro pro qual >ela< me convidou.
Tá, não é um encontro, mas ela simplesmente quer me mostrar o
Macarujá. E esse é o problema, e se ele me estranhar? Tudo bem,
acho que uns vídeos poderiam me ajudar a aprender como me
comportar perto de um cachorro, né?
— Beleza, mas diga ao seu Maracujá pra não me morder.
— Ele não vai. — Arqueio uma sobrancelha. — Juro, mas ele
vai te lamber.
— Duvido, e, olha, eu vou mais cedo pra correr, quer ir
comigo?
— Não — ela ri —, só de pensar já começo a suar.
Pagamos a conta e saímos pra chamar o motorista. Acabo de
perceber que amanhã é sábado. Amanhã. Puta que pariu, como vou
me preparar emocionalmente?
— Ei, a gente esqueceu da foto!
Débora 29
A gente tirou uma foto bem genérica de casal na frente do
restaurante, apenas sem o beijo.
Eu a chamei pra ir no parque amanhã, só que acabei de
lembrar que isso envolve meus pais. Senhor... Como fui esquecer
disso? Eu devia ter lembrado antes. Agora não tem mais jeito, não
posso dar bolo em algo que eu marquei.

Acordo, prendo o cabelo pela metade, coloco uma legging e


um camisetão. Acho que uma regatinha vai ficar melhor hoje.
Alimento os dois serezinhos que vivem neste quarto, Dentinho e
Macarujá.
Pego a coleira do cachorro, uma bolsa com biscoito, água e
sacolinha, caso ele faça caca no meio do parque.
— Bom dia, estão prontos? — confirmo pra minha mãe.
Entramos no carro e Macarujá ocupa o maior espaço,
fazendo minha irmã se encolher pra colocar o cinto especial pra ele.
Hoje só vai eu Larissa e meus pais. Minhas outras irmãs
tiveram os relacionamentos pra cuidar.
Entramos no parque, e eu vou caminhar com meu
companheiro, ver se encontro Fernanda na pista de corrida. Não
demora muito pra eu avistar uma mulher com cabelos curtos usando
legging, um tênis de corrida e um top enxarcado de suor. Ela está
suada pra caralho. E o dia está tão ensolarado, que parece que ela
é uma fada das Winxs.
— Bom dia! — Ela sorri, com medo do dog mais brincalhão
do mundo.
— Oi! É, deixa eu olhar bastante antes de me fazer passar a
mão, ok?
— Medrosa. — Ela faz uma cara fingindo espanto.
— Não, isso é apenas precaução!
Fernanda 30
Macarujá é diferente, parece tão calmo. E Débora deixou
bem claro que não era pra eu apertar o rabo dele. Achei ofensivo,
poxa, só estava brincando com o bichinho, ele deveria ter deixado
claro que não gostava.
A gente fica andando pelo gramado com o cachorro na
coleira ainda.
— Ele quer passear — digo, apontando pra coleira.
— Na verdade, ele quer pular em você.
— Macarujá é educado, não fale assim dele. — Débora me
olha querendo rir.
— Não era você que abominava esse serzinho?
— As estações mudam.
Assim que Macarujá fica livre, sinto minhas costas no chão.
Meu deus, como ele é forte e pesado. Não estava preparada pra um
abraço desse. Ele começa a me lamber desesperadamente,
enquanto Débora tenta controlar o doguinho ansioso.
— Meu deus, como ele é bagunceiro!
Ela joga um brinquedo pra ele pegar, e, assim que ele sai de
cima de mim, sinto o peso de outro corpo desmoronar em meu
peito. Débora. Ela está em cima de mim, e minha respiração trava,
sinto o corpo dela quente contra o meu. Ah, isso me faz imaginar
muitas coisas. Tento ajudá-la a se levantar segurando sua cintura...
O olhar dela encontra o meu assim que eu minhas mãos a tocam,
vejo o peito dela subir e descer mais rápido. Ah, eu só posso estar
alucinando.
— Filha, por que não me contou que ia se encontrar com sua
amiga aqui? — A mãe de Debora está com um sorriso capaz de
fazer as bochechas caírem.
Débora sai de cima de mim em um pulo, como se minha
ajuda tivesse sido apenas um pretexto pra tocá-la. Não digo nada,
apenas sorrio pra mulher eufórica na minha frente.
— Mãe, essa é Fernanda, minha amiga. — Amiga, bom, de
repente as coisas esfriaram em meu peito.
— Foi com ela que você saiu ontem? — Ela olha pra mim,
ainda sorrindo. — Sou Maria, é um prazer te conhecer, Fernanda!
— O prazer é todo meu, e sim, saímos juntas ontem. —
Débora acha muito interessante encarar o gramado.
Dona Maria leva Macarujá com ela, e deixa eu e Débora em
um silêncio que eu nunca tinha ouvido. Amiga? Eu não estou
entendendo mais nada.
— Ei, tava querendo ler Teto pra dois, você ainda tem?
— Aham, vamo lá em casa que eu te entrego. — Ela assente.
Vamos andando pro meu apartamento, enquanto falamos dos
carros que correm pelas ruas, das motos que fazem um barulho
insuportável, do calor que não combina com o Natal... Menos do que
rolou no parque.
Débora 31
Me sinto tão livre ao lado de Fernanda. Ela meio que me
acolhe só de estarmos no mesmo ambiente. Mas esse silêncio no
elevador não tem nada de confortável. E eu sei por que o clima
mudou drasticamente entre a gente. Eu sei que eu a confundi. Pedi
que ela fingisse ser minha namorada e dei a ela o título de “amiga”
na frente da minha mãe.
A porta do elevador abre, assim como a porta do
apartamento. Fernanda vai direto pra estante, mas, quando me
aproximo, ela se vira pra mim.
— Então, eu vou ser a “amiga”? — Ela diz, sem olhar nos
meus olhos.
— Eu deveria ter dito antes, mas... Eu não me assumi ainda.
— Ela pisca ao encontrar meu rosto. — Eu não tive coragem de
ouvir que eu não era o que eles esperavam.
— Bom, isso muda o que eu pensei... Me sinto péssima.
— Não tinha como você adivinhar. — Olho pra estante,
tentando desviar do assunto.
— Olha, eu não vou te emprestar o livro que você pediu.
Você precisa de “Conectadas”, da Clara Alves, prometo que não vai
se arrepender. Elas se descobrem, e ver isso acontecendo mexe
com algo dentro da gente.
Fico segurando o livro em minhas mãos, duas garotas na
capa. Não sei se rio ou se choro de emoção. Fernanda está dando o
seu melhor jeito pra me ajudar. Um livro. Uma história pra abrir seu
coração. Um caminho.
— Eu sou bissexual — digo.
— Eu sou pan — ela diz, sorrindo.
— Faz tanto tempo que eu queria dizer isso em voz alta.
— Eu sei! Dá vontade de colocar ela em todas as roupas e
paredes.

Cheguei em casa e já tomei um banho. Coloquei o pijama pra


ficar o resto do dia na cama lendo e sair do quarto apenas pra
comer. Vou acabar com a minha coluna, mas vou terminar este livro
hoje.
Estou no meu quarto com o ventilador ligado, um café e um
pote de pipoca na cama. Minha mãe aparece na porta, toda
animada.
— Filha, adorei sua amiga, falei dela pra sua avó — ô língua
solta —, e ela quer que você a leve no churrasco amanhã.
— Quê? Mãe, só pode tá brincando, né?
— Ah, para, isso só vai fortalecer a amizade de vocês. — E
ela sai do quarto.
Não é um churrasco que vai fortalecer a amizade, não.
Deixo de lado as besteiras da minha família e embarco na
leitura. Dá oito horas da noite e faltam vinte páginas pra acabar o
livro. Esse livro acabou comigo, aquela sensação de ter encontrado
vários pedaços seus em meio às palavras enche meu peito.
— Deb, chamou tua amiga? A mãe tá perguntando. —
Larissa se pendura na porta.
— A mamãe é maluca! — Minha irmã assente.
Pego o celular e encaro o telefone de Fernanda. O que eu
vou dizer pra ela? Se eu pensar muito, vou acabar não ligando.
Aperto o círculo verde, e minhas mãos ficam inquietas de
ansiedade. Ela atende.
— Oi, Fer. — Eu nunca tinha chamado ela assim. — É...
Minha mãe tá insistindo pra você vir no churrasco amanhã...
— Boa noite, dona Débora. — Sinto a risada dela pelo
telefone. — Como vai a leitura?
Sua voz é tão boa de se escutar, é tão bom saber que
alguém sabe quem você é. Alguém especial.
— Tô quase terminando.
Fernanda 32
Do nada, um convite pra eu conhecer a família toda dela. Eu
só tenho alguns segundos pra saber como reagir a ele.
— E o que você descobriu até agora?
— Que eu tô me escondendo de mim mesma e que, no final
do dia, sou só eu e minha consciência latejando, querendo explodir.
— Eu sei, e você não precisa se jogar da sua zona de
conforto — digo.
Sair da zona de conforto pode ser bom, mas correr dela é
dolorido. Ainda mais quando se trata do armário que é tão acolhedor
e ao mesmo tempo tão sufocante.
— Então, só sua mãe quer que eu vá?
— Sim, minha avó também. — A ligação fica muda com a
respiração de Débora. — Espera. Meu deus, eu sou muito idiota,
desculpe. Eu também quero que você venha.
— Hm, não me convenceu, me senti usada! — Ela se
desespera, tentando se desculpar, mas eu só estava brincando. —
Tem alguma coisa que devo saber sobre sua família antes de pisar
nessa cova?
— Eles são bem irritantes, mas são ótimas pessoas.
— Ok — ela é fofa —, isso parece bom. A que horas tenho
que chegar?
Débora 33
Hoje vai ser o terceiro dia seguido ao lado de Fernanda, nos
víamos na padaria todos os dias, mas não desse jeito, não com
essa energia — na verdade, só a via no balcão repondo os doces.
Com ela as coisas ficam mais leves, tranquilas, fáceis. Fiquei tão
nervosa quando liguei ontem e, na primeira palavra que ela disse,
eu já me acalmei, fui transportada pra um lugar cheio de risinhos. Eu
teria ficado naquela ligação pra sempre.
O churrasco vai ser na casa da minha tia, como de costume.
Então a gente leva farofa e muita bebida, pois essa família vive à
base de álcool e briga política. Fico sentada na cadeira do quintal,
vigiando a tela do celular e esperando qualquer sinal de Fernanda,
que não apareceu ainda.
— Filha, sua amiga vai vir ainda?
— Sim, ela só teve um contratempo — respondo, sendo que
não tenho a mínima ideia do que está acontecendo com Fernanda.
— Falei dela pra todo mundo — ela bate palminhas —, ela
parece ser legal. Onde vocês se conheceram?
Eu amo minha mãe, mas, sinceramente, alguém controla a
boca dessa mulher, por favor.
— A gente se conheceu na padaria, e ela é bem legal sim.
Minha mãe é chamada na cozinha, e eu to uma pilha de
nervos, onde essa garota foi parar?
Meu telefone vibra com uma mensagem: “Tô chegando!
Passei na padaria pra pegar um bolo e acabei me atrasando aaaa”.
Eu: “Tava quase indo te caçar, juro hahaha”.
Ela: “KKKK Qual é? Tem um tapete vermelho pra quando eu
chegar, né?”.
Eu odeio estar sorrindo tanto pra um telefone.
Fernanda 34
Eu não poderia chegar na casa de alguém sem nada nas
mãos, minha mãe iria me matar. Então ontem, assim que Débora
me chamou pro churrasco, corri pra cozinha da padaria e fiz um bolo
de brigadeiro com morango. Deixei gelando lá, então tive que ir
buscar antes de ir encontrar Débora. Só que eu não imaginava que
teria tanto trânsito na volta, e o motorista que está me levando
parece não saber como usar um freio. Capaz desse bolo chegar
destruído lá.
Débora me passou o endereço por mensagem, mesmo assim
fico insegura de tocar a campainha do sobrado, cor de areia, com
um ipê na calçada. Dou uma espiada na casa pelo buraco do
portão, e lá está ela, com uma calça jeans que me faz parece uma
tarada.
Não toco a campainha, apenas bato no portão, e ela abre,
sorrindo.
— Oi! Você sabe que quase tive um infarto te esperando, né?
— Mas eu trouxe bolo, acho que compensa, né?
— Só se você tiver feito...
— Jamais iria trazer um bolo de um concorrente! — Ela ri e
me leva pra sala da casa.
Não é uma casa enorme, mas também não é pequena, e eles
estão ouvindo pagode no último volume. Eu amo reuniões de
família, principalmente a parte em que eles começam a brigar por
conta de alguma coisa de dez anos atrás.
— Gente, essa é Fernanda minha... — Ela olha pra mim.
— Somos amigas, obrigada pelo convite — digo, enquanto
eles me analisam.
— Seja bem-vinda! Quer pão de alho? Tá quentinho. — Um
homem de meia idade, pele negra e cabelos escuros me oferece,
estendendo uma bandeja.
Sem dar tempo suficiente de eu responder o homem, a
senhora Maria aparece com uma mulher velhinha.
— Mãe, essa é a amiga da Débora, ela é muito bonita, né?
— Muito bonita mesmo. — A senhora mais velha pisca pra
Débora. O que foi isso?
— Ai, como vocês são, hein! Deem um tempo pra ela
conhecer vocês antes, de se assustar — Débora diz, brincando,
enquanto me arrasta pra um canto mais silencioso.
— Obrigada por aquilo, eu quero me assumir pra eles, eu só
preciso de um pouco de coragem interior, sabe? — Ô se sei.
— Leve o tempo que precisar, posso ser sua namorada a
hora que quiser. — Os olhos escuros dela fixam nos meus, e vejo
suas bochechas corarem.
Ela olha ao redor da cozinha e puxa uma garota que está
acompanhada.
— Essa é minha irmã Ana Júlia e Felipe, essa é a Fernanda
— diz Débora, nervosa, a irmã tenta se equilibrar do puxão que
levou.
— Nossa! Que sorte a minha — diz Felipe, acho que ele é o
namorado —, precisava mesmo de alguém que me ajudasse com
física. Quanto você cobra nas aulas particulares?
Eu não sei se estou delirando ou se realmente ouvi isso.
— O que você disse? — pergunta Débora bruscamente pro
garoto.
Débora 35
Eu não sei mais o que está acontecendo aqui, só sei que não
gostei nem um pouco desse garoto e das merdas que ele está
insinuando.
— Não entendi — diz Fernanda, cruzando os braços. — O
que eu tenho com isso, garoto?
— Sei lá, imaginei que você gostasse de exatas e que
pudesse me ajudar — ele responde, com um sorriso irritante no
rosto.
— Ah, claro! Só porque sou amarela, você automaticamente
me associa a estudos e pensa que, com minha bondade e gentileza
sobrenatural, estou aqui pra servir você, né?
Ah, esse garoto... Ele ri da irritação de Fernanda.
— Qual a graça? — Chego mais perto dele, sendo que sou
bem mais baixa.
— Para, né, eu só pensei que ela poderia me ajudar!
— Suponho que, nessa sua cabeça pensante, não haja um
cérebro capaz de realizar simples sinapses, não quero mais escutar
sua voz. Ana, leva esse ser pra longe por favor — peço pra minha
irmã, que já está olhando feio pra ele.
Fico esperando Felipe se afastar, mas ele começa a discutir
com minha irmã em voz alta.
— Eu vou dar uma volta, vem, Anaju.
E minha irmã foi. De mãos dadas e chorando, ela foi.
— Não acredito que ela foi com ele! — digo pra mim mesma.
— Relacionamentos são complicados demais, e esse é o
problema deles. — Fernanda está com o olhar triste, frustrado e
irritado. E com total razão.
Ela sai pro quintal e olha pro céu por um bom tempo.
Ninguém na casa ouviu a discussão na sala, pois o volume da
música é capaz de derrubar as paredes.
— É... Não gosto desse garoto, desculpe.
— Pode retirar as desculpas, eu não o suporto nem um
pouco.
Fernanda 36
Eu não pensei que o estrago poderia chegar a essas
proporções, sinceramente, me sinto péssima. Odeio esse
sentimento, queria falar tanta coisa pra aquele moleque. Essa
discussão vai perdurar em minha mente por meses, e só então terei
argumentos pra acabar com qualquer migalha de ego que aquele
ser tinha.
Débora já pediu desculpas um milhão de vezes, e a culpa
nem foi dela. A culpa foi somente de Felipe, e não tem por que ela
se desculpar por um babaca completo. Mas, mesmo assim, é bom
ver que ela se importa comigo.
— Deb, tá tudo bem. — Ela dá um sorriso sem mostrar os
dentes. — E obrigada por me defender, eu fiquei sem reação.
— Não teria como não te defender.
Fico um pouco mais com ela, entramos para comer algo, mas
eu simplesmente não consigo comer nada, não me sinto bem e sei
que esse nó na garganta não vai passar antes de uma noite de
sono. Preciso ir para minha casa e relaxar um pouco.
Me despeço da família de sua antes de sair pelo portão
sentindo um peso que não queria sentir. Situações assim fazem
nossos dias se tornarem pesados.

A porta do elevador abre e dou de cara com meu primo,


sentado na frente da porta, com uma caixa de cerveja no colo. Ele
não está alcoolizado, mas está querendo ficar... E eu também.
— Briguei com a Duda — ele anuncia, com a cara
emburrada, quase chorando. Esses dois são gato e rato.
— Minha tarde não foi nada boa também, Gabs.
— Que merda aconteceu?
Abro a porta, e, em menos de um segundo, ele já
esparramou seu corpo enorme no sofá. Eu amo esse idiota.
— Aconteceu que tive que lidar com um babaca, que
estragou todo o clima que tava rolando, ele acabou com meu dia.
— Quer dar mais detalhes ou não se sente confortável?
— Nem vale a pena falar sobre isso, agora eu quero relaxar,
meu cérebro é que não para de latejar por conta dessa criatura —
digo, abrindo uma garrafa gelada.
—Tudo bem, mas eu posso desabafar? — Assinto. — Eu não
entendo a Duda, ela diz que não quer algo exclusivo, mas, quando
ouve rumores de que eu saí com outra pessoa, fica toda emburrada.
E só pra deixar claro, eu não saio com ninguém a não ser ela.
— Ai, Gabs, nunca vi dois serezinhos tão enrolados pra dizer
o que querem um pro outro.
— E se eu falar e ela não quiser mais nada comigo? — ele
diz preocupado.
— Não acho que isso vá acontecer, ela gosta muito de você.
— Odeio que vocês sejam melhores amigas.
— Odeio que vocês sejam meus melhores amigos. — Ele
mostra a língua igual uma criança.
— Mas me diz, você gosta dessa garota mesmo?
— Eu acho que sim, é tão confuso, nunca senti isso antes. —
Ele olha pra mim com um sorrisinho bobo. — Vou colocar isso aqui
na geladeira, cerveja quente é horrível.
Passo na frente do espelho e percebo que estou parecendo
um galo suado, um banho rapidão antes de dormir vai cair bem.
Lavar o cabelo e senti-lo fresquinho é tão bom.
Volto pra sala com uma garrafa gelada.
— Que porra de pijama é esse? — Gabriel diz, segurando
meu celular, apontando pra meu pijama velhinho e confortável.
Débora 37
São 22h e eu estou com o cabelo molhado do banho. Sei que
desperdicei creme, mas o cheiro de fumaça de churrasco estava
insuportável, e eu precisava lavar hoje, antes de começar a
maratonar programas de reforma. Eu sou puramente viciada em
reformas, mas só na TV, odeio acordar com o barulho de furadeira
na casa do vizinho.
Macarujá fica deitado na cama comigo, ocupa um espação da
cama, mas não me importo, eu gosto dele ao meu lado. Minha mãe
até lhe comprou uma caminha, mas eu não suporto a ideia de que
ele fique tão longe de mim enquanto estamos no mesmo quarto.
Quase não vejo a tela do celular se iluminar. Lá está... Uma
mensagem de Fernanda: “Deb, quer vir aqui em casa pra gente
conversar?”.
Conversar. Estou preocupada. Será que ela está bem? Eu
preciso ir hoje, não amanhã nem depois. Agora. “Estou indo já” —
respondo a mensagem.
Não posso pedir um carro no aplicativo a esse horário, é
muito arriscado, mesmo sendo poucos minutos até a casa de
Fernanda. Então peço a chave do carro dos meus pais. Não dirijo
superbem, mas dirijo, e é isso que importa agora. As ruas estão
vazias na noite de domingo, o que me deixa mais tranquila. Dirigir
em noites solitárias é libertador.
Estaciono na frente do prédio e vejo Gabriel sair pela portaria.
O que está acontecendo? Desço pra falar com ele, mas ele já entrou
em um carro e partiu.
O porteiro libera meu acesso, e eu entro no elevador
querendo que as portas metálicas se abram logo. Por fim elas se
abrem. O apartamento de Fernanda está aberto, ela está apoiada
no batente, usando um camisetão que não chega nem até metade
da coxa.
Fernanda 38
Débora aparece com um rosto preocupado, um cabelo
molhado, mas assim que percebe que estou inteiramente bem, fica
confusa. Eu juro que vou matar meu primo, aquele desgraçado
chamou Débora enquanto eu tomava banho! Eu não tive nem tempo
pra me trocar! Ele é uma pestinha.
— Tá tudo bem?
Na verdade, eu to bem nervosa, e não tenho ideia do que
falar agora, é como se todos os assuntos possíveis tivessem se
evaporado da minha mente.
— Trouxe meu livro? — NÃO! Por que eu comecei o assunto
assim?
— Se você tivesse falado mais que uma frase, talvez eu
tivesse lembrado antes de sair de casa — ela diz, parada em minha
frente.
— Eu só não queria ficar sozinha, precisava de uma boa
companhia, sabe? — Ela sorri.
— E eu sou uma?
— Poderia ser bem melhor. — Viro antes que ela possa ver a
vergonha escrita na minha cara.
Entro em casa, e ela me segue, consigo sentir seu perfume
se espalhar pelo ambiente.
— O que você quer dizer com isso?
— Hmm, sabe a gente poderia assistir a um programa de
confeitaria, né? — Ela se senta no canto do sofá, que não é nada
grande.
— Você gosta tanto assim? — Ela indica a TV com a cabeça.
— Sim, eu amo. — Eu realmente amo confeitaria.
Débora 39
Fernanda me conta sobre todos seus planos pra confeitaria e
quando pretende realizar seu sonho de ir pra Le Cordon Bleu. Ela
tem tudo programado, só precisa guardar dinheiro suficiente pra
começar.
— Não quero fazer faculdade agora, quero focar no meu
sonho e estudar as inúmeras técnicas que existem — ela diz, sem
preocupação.
— Também quero viver meu sonho, às vezes é tão cansativo,
mas vale a pena por aqueles serezinhos. — Ela assente.
— É engraçado saber que cada pessoa nesse mundo tem
algum sonho, que cada um é o protagonista da sua própria vida, que
existem tantas histórias que nunca vão ser contadas.
— Uau, momento reflexivo demais!
— Eu gosto de pensar nessas coisas, elas fazem com que eu
me sinta mais humana, menos egocêntrica.
— Tudo bem, acho que pra eu chegar no seu nível de
pensamento, precisaria fumar um — declaro, rindo.
— Fico imaginando pra onde um baseado poderia me levar.
— Ela ri, se levantando. — Vou pegar alguma coisa pra gente
comer.
— Posso pegar água? — pergunto, e Fernanda faz uma
careta.
— Que pergunta é essa? — diz ela, querendo rir.
O apartamento tem uma cozinha pequena, e Fernanda lotou
as bancadas com equipamentos culinários. Vou pra frente do filtro, e
ela abre um armário, que fica logo acima. Estamos a um pé de
distância quando ela me entrega o copo.
— Por que você me chamou aqui? — pergunto, tentando
desviar o olhar da boca dela.
— Eu não chamei — ela diz, me fitando, acho que o oxigênio
está acabando.
— Então o que foi aquela mensagem? — Ela pisca e respira
fundo.
— Posso te explicar depois?
Fernanda 40
Eu não consigo aguentar mais. Não consigo olhar pra elar
sem querer sentir os lábios dela. Não posso mais reprimir isso, e eu
sei que ela também quer. Não tenho certeza, mas eu meio que sinto
que ela também sente isso.
Ela está aqui na minha frente, segurando o copo que eu
entreguei, e meu rosto está queimando, tenho que controlar meu
olhar pra não ficar analisando cada detalhe do seu corpo. E não é
só isso, ela tem alguma coisa que faz com que eu revele todos meu
pensamentos, alguma coisa que faz eu querer saber tudo que passa
na cabeça dela.
— Depois do quê? — ela pergunta, fazendo eu tomar uma
atitude.
Dou um passo pra mais perto. Ela não recua. Minhas mãos
sobem pro pescoço dela, ela congela, mas continua me encarando
no mesmo lugar. E quando o olhar dela desce pra minha boca...
Não respondo mais por mim. Eu a beijo, e ela retribui. Minhas
mãos descem pelo seu corpo e param na cintura, a puxando pra
mais perto, até eu sentir nossos corpos se encaixarem.
Débora sobe os dedos pelo meu cabelo curto, e eu sinto
minha alma sair do corpo. O beijo estava suave antes disso, mas
agora é diferente, é intenso, cheio de vontade. Ela, de alguma
forma, foi parar sentada no balcão. Estou no meio de suas pernas,
ela me aperta com a parte interna das coxas. Minhas mãos deslizam
pra dentro da camiseta dela, sobem as costas. Ela segura minha
nuca enquanto beijo seu pescoço...
E alguém toca a campainha. Deve ter tocado errado, sempre
confundem com a do vizinho. Passa dez segundos e toca de novo.
— Só vou sair daqui se tocarem mais uma vez — digo à
garota que está me levando à loucura.
Dessa vez não é o som da campainha, e sim de batidas na
porta. Eu não estou acreditando nisso.
— Acho melhor você ir, antes que derrubem a porta — ela
diz, relaxando a perna.
Estou bem puta, ainda mais quando abro a porta.
— Gabriel?
— Boa noite, princesa, esqueci minha carteira. — Ele aponta
pro rosto dele. — Sabe como é, né, ninguém acredita que tenho
dezoito anos, a moça da adega não quis me vender sem identidade,
dá pra acreditar?! — Gabriel passa esbarrando em mim.
Antes de atacar meu primo pelas costas, eu respiro fundo.
Me acalmo e vejo Débora saindo da cozinha com os cabelos
desarrumados...
Débora 41
Tudo bem, está tudo bem! Esse calor que eu estou sentindo
tem que passar, a sensação da boca de Fernanda na minha tem
que desaparecer antes que eu morra de vergonha na frente de
Gabriel.
Ele está no meio da sala desviando o olhar entre mim e
Fernanda, com um sorrisinho no canto da boca. Ele sabe, e não é
ruim, só é diferente.
— Por que você não falou, Fer? — ele diz, em um tom baixo,
mesmo sabendo que eu consigo escutar.
— Porque você quase destruiu a porta! — Fernanda
responde irritada.
Ele procura a carteira pelo sofá da sala. Quando acha,
confere se a identidade está lá dentro.
— Boa noite, meninas, se comportem! — Ele pisca pra
Fernanda e fecha a porta do apartamento.
Fernanda cruza o espaço e para em minha frente, fazendo
carinho nos meus ombros.
— Eu acho que vou indo. — Sorrio pra ela.
— Não! Por favor, fica... — Ela implora com as mãos.
— Tudo bem, mas só se você falar o que ia dizer antes de me
agarrar. — Ela cerra os olhos e me puxa pro corpo dela.
— E fiz alguma coisa errada? — Fernanda me beija. — Acha
que eu deveria parar? — Nego, e ela desce a mão pelas minhas
costas.
— Hmm, só vou ficar se me contar. — Ela revira os olhos.
— Promete que não vai ficar brava? — Ergo as sobrancelhas.
— Não fui eu quem chamou você aqui hoje, foi o Gabs, ele pegou
meu celular quando não estava olhando e mandou uma mensagem
pra você. — Ela coloca o cabelo atrás da orelha, e eu começo a rir
da carinha que ela está fazendo. — Por que você tá... — Eu a beijo,
nos jogando no sofá. — Eu queria tanto isso — ela diz contra minha
boca.
— Por que não falou antes? — Deito no colo dela.
— Porque... Na verdade, não sei, não queria que você
achasse que eu tava forçando, sabe?
— Sei, foi exatamente o que eu tava pensando. — Ela engole
seco.
— Eu forcei? Ah, me desculpe!
— Não! Quis dizer que também achei que poderia estar indo
além dos seus limites. — Ela sorri. — Posso dormir aqui? Tô em
péssima condição pra voltar pra casa assim. — Aponto pro meu
cabelo.
— Você tá linda, sempre tá — ela desfaz um dos meus
cachos úmidos —, mas é óbvio que pode ficar.
Dormimos no sofá. Passo a noite entrelaçada nos braços
dela, por mim eu não me levantaria, mas o alarme não para de tocar
e vem do meu telefone. Nem sei por que ainda tem alarme no meu
celular, estou oficialmente de férias. Só que ainda preciso resolver
uns negócios na faculdade.
— Bom dia — Fernanda diz entre meus cabelos.
— Bom dia. — Me viro pra ela e sinto o volume sob a
camiseta dela. — Acho que você tá atrasada. — Ela se senta
rapidamente.
— Ah, não! Minha mãe vai me matar, eu tenho uma
encomenda hoje! — Fernanda coloca a mão no meu rosto. — Eu
até te chamaria pra um banho, mas tô tão atrasada, que não
compensaria. Mas juro que vai rolar, óbvio que vai. — Estou rindo
do desespero dela. — Isso, ri mesmo do desejo dos outros! — Ela
me traz pro colo, mas de alguma forma fomos parar no chão, e eu
acho que bati a cabeça.
— Pode ir me soltando! A senhora Akemi vai me matar se eu
atrasar a confeiteira dela. — Saio de cima de Fernanda e vou pra
cozinha. — Pode ir tomar banho, eu vou fazer um café. — Ela passa
a mão na minha bunda. — Ei! Dona Fernanda, o que isso significa?
— Ela entra no banheiro.
— Que você é uma gostosa! —diz, com a porta se fechando.
A gente toma café, mas literalmente só o café, pois ela está
muito atrasada, e eu ofereci carona até a padaria. Depois vou
passar, pela última vez no ano, na porta do inferno, mais conhecido
como >faculdade<.
Ela entra no carro, e eu já explico que não sou lá essas
coisas no trânsito, então ela que não invente de se maquiar, pois é
bem capaz de ficar cega. O apartamento não fica tão longe, e esse
horário as ruas estão mais tranquilas, todo mundo já chegou no
trabalho, então as ruas são pros atrasados.
Estaciono pertinho da padaria, e ela tira o cinto, mas não sai
do carro. Surge uma dúvida enorme, como eu me despeço? Com
beijo ou sem beijo? Então ela me dá um beijo, mas na bochecha, e
percebo que ela também não sabe o que fazer. Fernanda sai e dá
um tchauzinho fofo quando já está quase lá dentro.
Fernanda 42
Eu estou pronta pra acabar com a vida do Gabriel. Primeiro,
ele faz eu entrar em pânico, e depois, ele atrapalha o quer que
seja... Estava sendo ótimo, e meio que ele queria que aquilo
acontecesse, e ele mesmo atrapalhou.
Vou ter que inventar uma desculpa pra minha mãe, ela é bem
rigorosa com horários, principalmente se a pessoa sou eu. E ela
está certa, não posso me atrasar, se chego tarde grande parte do
funcionamento da padaria também atrasa.
Passei por ela, que deu apenas uma bronca. Eu nunca me
atraso, então ela deixou passar. Vou direto pra cozinha atrás
daquele serzinho simpático, encontro Duda no corredor estreito, e
ela sorri quando me vê, como se eu estivesse usando uma máscara
de palhaço.
— Que glow é esse Fefê? — Ela me cutuca.
— Se chama “vontade de matar meu primo”.
— Ou uma foda boa... — Duda diz.
— Eca! Não fala isso dela, eu não quero pensar nisso! —
Olho furiosamente pra Gabriel, que brotou no corredor.
— Quem dera fosse isso, Duda. — Continuo o encarando.
— Qual foi? Fui eu quem chamou ela, você deveria me
agradecer, sabia?
— Ele tá certo, Fer. — Duda se alinha ao lado dele.
— Você tá falando comigo agora? — Ela revira os olhos pra
ele. — Fala que sim, por favor, Duda...
Deixo os dois discutirem, odeio que briguem, sempre tenho
que escutar ambos os lados e resolver o a briga bobo que tiveram.
É péssimo quando seus melhores amigos parecem criancinhas
namorando, mas é muito fofo quando eles se resolvem, o Gabriel
sempre corre atrás dela igual um cachorrinho.
Eu coloquei toda minha confusão sentimental nas costas de
Gabriel, mas esse não é o meu problema, meu primo sempre foi
assim, e isso nunca me incomodou, ele é simplesmente ele. Todo
esse circo foi só pra não lidar que eu beijei Débora. E ela me beijou,
e não foi só atração física. Houve um momento em que eu me perdi
nela e que ela se perdeu em mim. E eu não quero superar isso, não
quero deixar esse sentimento pra trás, não quero deixar Débora. Eu
a quero em todos os aspectos. Quero muito.
Débora 43
Resolvi todas minhas pendências na faculdade, me estressei
na secretaria, mas deu tudo certo. E agora aqui estou eu voltando
pra casa, com a cabeça pensando sobre ontem, sobre o corpo de
Fernanda em minhas mãos, sobre minha boca junto à dela, sobre o
cheiro do cabelo dela... Controle-se, Débora.
Mas agora o que somos? Falsas namoradas com benefícios?
Ai, que nome ou título feio, ou bonito? AAA eu vou surtar. Paro o
carro numa rua tranquila e ligo pra ela.
— Alô? — ela atende.
— Oi, você quer ir no shopping comigo? Preciso comprar os
presentes de Natal e almoçar.
— Beleza, eu consigo uma hora livre, tudo bem?
— Ok, chego em dez minutos.
Ela está no mesmo lugar em que a deixei, usando uma calça
jeans preta larguinha e uma camiseta que vai até as coxas finas.
Tão gata.
— O que a gente vai comer? — ela pergunta ao colocar o
cinto.
— Hambúrguer! E batata, muita batata!
— E se eu comer sua batata?
— Ah acho que você não vai poder contar essa história pra
ninguém — digo em tom ameaçador.
— Eu me amarro no estilo Jude Duarte, faz mais — ela diz
me olhando, e não posso desviar da estrada.
— Tente chegar perto da minha comida e terá sua Jude. —
Sinto o olhar dela sob mim ainda. — É... Sobre ontem...
— Foi muito bom, ótimo, na verdade. — Um sorriso surge em
meus lábios ao ouvir isso. — Teve só meu primo, que você sabe.
— É, foi muito bom! E sobre seu primo, deveríamos
agradecer a ele, afinal ele foi o tal do cupido.
— Se foi tão bom assim, vamos repetir quando? — Minhas
bochechas estão queimando, e sei que Fernanda está vendo isso.
— Você tá tirando minha concentração, sabia? — Ela ri do
meu desespero.
Fernanda 44
O bom de morar nessa parte de São Paulo é que tudo fica
perto, pode ser estressante, mas logo estamos dentro do
estacionamento do shopping. E assim começa o real desespero do
paulista, caçar uma vaga. O pior pesadelo é ficar rodando os
mesmos corredores e não achar uma única vaga disponível!
Quando conseguimos, o sentimento de que vencemos na
loteria é reconfortante. Juro, tem coisas que são simples, mas que
depois de uma carga enorme de estresse se tornam mágicas.
Débora ainda não desceu do carro, ela está mexendo na
bolsa, mas consigo ver seus olhos em minha direção.
— Por que você trocou de roupa? — ela pergunta.
— Você pode até achar feia, mas eu não vou por outra não —
respondo, e ela revira os olhos.
— O problema é que ela não é feia, e te deixa mais bonita
ainda. — Meu sorriso surge involuntariamente.
— Então isso não é um problema real, né?
— Lógico que é, não posso ficar babando por você a todo
instante nesse shopping! — Começo a rir. — Você pensou besteira
né?
— Não é culpa minha! É isso que dá conviver com o Gabriel,
nunca mais terei uma mente saudável. — Ela abre a porta do carro.
— Eu gosto da sua mente assim. — Fecho os olhos e tento
reprimir a vontade de beijá-la loucamente no estacionamento.
Primeiro almoçamos, e eu pego muita batata frita, que
infelizmente acaba rápido, então tenho que roubar da garota bonita
ao meu lado.
— Eu não vou permitir isso de jeito nenhum! — Ela dá um
tapa na minha mão assim que pego umas três batatas.
— Nem um pouco? – Faço cara de cachorro pidão.
— Você tem que entender que sou mais velha e que tenho
que comer mais que você.
— Sugar mommy?
— Ei, eu tenho vinte e três anos, ok? No máximo dois anos
mais velha que você. — Eu assinto.
— Mas posso te chamar de sugar mommy? Posso, né?
— Não! — Começo a rir da cara dela. — Você fala mal das
esquisitices do seu primo, mas você é uma coisinha má igual a ele.
— Hmm, eu sou tão boazinha. — Dou um beijo na bochecha
dela. — Vamo comprar esses presentes logo!
A gente entra em várias lojas, mas ela escolhe ficar em uma
que tem de tudo. Todas os produtos são fofinhos, tem pelúcia
demais aqui, e to com medo da minha rinite atacar.
— Por que você gosta tanto de dar presentes?
— Ah, porque dar sempre é... — Ela para e me lança um
olhar mortal, enquanto contorço os lábios segurando uma risada. —
Você tem que voltar pro quinto ano! É uma droga gostar de você,
sabia?
— Tudo bem, eu vou me comportar! Mas, me diz, como que é
o jantar na casa de vocês? Preciso saber como é pra não falar
besteira.
— A meus tios adoram falar besteira, então não se preocupe
com isso.
Débora 45
Às vezes esqueço que não sei quase nada sobre Fernanda,
até algumas horas atrás não sabia a idade dela. Mesmo assim, sinto
como se fôssemos próximas demais, íntimas demais. Sentir isso por
alguém que você acabou de conhecer é libertador e assustador ao
mesmo tempo.
Ela fica tagarelando sobre os natais catastróficos que a
família dela já teve. Pelo jeito que ela falou, sempre passam na casa
da avó, e de alguma forma ela e Gabriel arruínam sobremesas que
qualquer criança sabe fazer.
— Lá em casa o Natal é mais uma festa de confraternização
da família, então não espere pessoas cultas e afins, e sim bêbados
que cantem no caraoquê. — Fernanda se anima.
— Tenho certeza de que sei muito bem como me comportar,
então.
— Eu quero me assumir antes do Natal, anunciar isso no
jantar seria uma surpresa e tanto. – Fecho os olhos só de imaginar.
— Entendi, você tem mais ou menos uma semana. — Ela
segura minha mão. — Acha que consegue?
— Vou tentar amanhã no café da manhã.
Fernanda 46
Ela está confiando esse momento superimportante de sua
vida a mim. E eu não consigo tirar o sorriso do rosto, não consigo
soltar a mão dela até ela perceber que eu vou estar aqui se precisar,
e se não precisar também.
Se assumir pra pessoas que você ama é um caminho sem
volta, pode tomar rumos muito diferentes. Lidar com os rostos de
decepção, com as perguntas carregadas de preconceito e com a
rejeição não é fácil. Por isso muitos ficam calados, reprimem quem
são e vivem escondidos só pra continuarem a ser amados. Mas será
que vale a pena vestir uma personagem todos os segundos de
nossas vidas só pra nos sentirmos amados? Creio que não. É difícil
se pôr em primeiro lugar, mas é só assim que sua vida vai ser o que
você deseja.
— Vai dar tudo certo, e se não der, pode correr pra minha
casa. — Passo o polegar nas bochechas dela.
— E eu posso correr pra lá mesmo que tenha dado tudo
certo? — ela pergunta, passando a língua nos lábios.
— Você sabe a resposta, linda.
Com todos os presentes comprados, voltamos pro
estacionamento do shopping. Ela guarda as compras no porta-
malas, enquanto eu entro no lugar do passageiro na frente.
Débora parece tão tranquila com nosso não relacionamento,
será que ela já teve outros? Não sei se ela já namorou ou coisa
assim. Ela entra no carro, e minha cara estampa um ponto de
interrogação.
— O que foi? —ela pergunta.
— Você já namorou?
— Assunto traumático, mas não. — Ela dá de ombros. —
Parece que nunca sou o suficiente pras pessoas ou que elas
esperavam mais... Então nada de relacionamentos.
— Quê? Que papo é esse? — Minha voz deve ter saído um
pouco alta, pois ela me olha bem confusa. — Você é mais que
suficiente pra mim, você é linda, fofa, inteligente, engraçada e — eu
travo aqui — muito gostosa...
Ela desiste de ligar o carro, tira o cinto e parece prestes a sair
do banco, mas para e diz:
— E se eu falar que ninguém nunca falou isso pra mim
antes?
— Vou dizer que falaram sim, você que não deve ter
escutado!
— Péssimas notícias — franzo o cenho —, você não pode
ser coach motivacional!
Cruzo a mínima distância que nos separava e a beijo, não
estou nada confortável do pescoço pra baixo, mas quando se trata
dela eu não me importo muito com as consequências, e estou
falando sobre as dores nas costas e no pescoço que virão.
Ela me empurra de volta pro meu banco e sobe no meu colo,
fico entre seus joelhos. Ela está usando uma saia daquelas que
voam com o vento, minha mão não para de acariciar a pele que está
no limite do tecido. Ela segura minha nuca e me beija
desesperadamente. Meus pensamentos estão acelerados e eu
quero fazer tudo com ela, mas, de repente, me situo sobre onde
estou.
— Linda — digo em seus lábios, enquanto ela solta um som
que faz eu repensar se quero mesmo acabar com esse momento —,
a gente não pode fazer isso aqui.
— E por que não? — Ela vai me matar, eu não vou
conseguir... Débora pega minhas mãos e afasta o tecido da saia
fazendo eu sentir a pele quente dela...
— Porque é um estacionamento com câmeras? Espera —
digo, e ela para um instante —, esse carro é dos seus pais? — Ela
assente. — Ah não, desculpa, gata, mas eu não posso de forma
alguma fazer as coisas que quero fazer sabendo que esse carro é
da sua família.
Débora 47
Fernanda disse que ainda tem quarenta minutos antes de
voltar para o trabalho. Então dirijo loucamente para o apartamento
dela, pra que sobre ao menos quinze minutos.
Tenho certeza deque o elevador sabe da nossa situação e faz
questão de demorar. Quando as portas metálicas se abrem,
Fernanda procura suas chaves que de alguma forma se perderam
no fundo da bolsa.
A porta destranca, e as mãos dela já estão em minha cintura,
me levantando pra seu colo, enquanto ela me leva pro sofá. Minha
saia sobe quando me encosto no almofadado, e Fernanda já está
presente onde o tecido já não está.
Ela brinca com os dedos em minhas coxas, eu tento tirar a
blusa dela, mas ela para minhas mãos e agarra minhas coxas, me
coloca em cima dela. Minha saia já não está mais no meu corpo, e
eu agradeço por ela ter sumido.
A necessidade que tenho de ela estar além de minhas pernas
começa a surgir com intensidade. Estou em seu colo e começo a
me mexer.
— O que você está fazendo? — Não consigo responder, e é
aí que as mãos dela entram em minha calcinha.
Ela me acaricia com a velocidade e a intensidade certa,
fazendo meu corpo se contorcer. Sinto minha respiração acelerar,
meu corpo formigar e minha garganta produzir sons que eu não
conhecia.
— Você tá tão linda assim — ela diz em minha boca,
enquanto meu corpo desmorona totalmente em seus braços.
— Eu não consigo sair daqui — digo, e ela ri em meu
pescoço. — Mas você precisa ir, e a gente precisa conversar sobre
isso.
— A gente pode esperar até o Natal? — ela pergunta,
mexendo nos fios soltos do meu cabelo.
— Tudo bem, até o Natal. — Me afasto e a encaro, ela está
com os olhos brilhando de um jeito que eu nunca tinha visto.
Fernanda 48
Depois do Natal é melhor, não quero que isso acabe só por
causa de um rótulo idiota. Não quero que isso se estrague só
porque o destino talvez tenha reservado um acidente. Não quero
que isso termine nunca, mas o Natal está tão perto, e parece que a
magia dele só vai durar até meia noite. Eu não quero que seja
assim.
Sentir Débora em minhas mãos hoje me deixou fora de mim.
Ouvir cada som que ela fazia não acalmou minha mente, e sim a
deixou barulhenta, cheia de vontades e desejos, mas o trabalho me
espera ainda hoje.
Débora está me levando pra padaria e estou atrasada
novamente. Pelo menos, dessa vez, posso dizer que tive que
resolver um assunto com o fornecedor. Eu ia fazer isso durante o
almoço e fiz, mas por mensagem, e não demorou nem cinco
minutos. O que tomou meu tempo foi a deusa que estava em meu
colo.
Débora estaciona o carro perto da entrada da padaria e me
olha, arrumando os cachos que eu desfiz.
— Você é tão linda, é mais do que já sonhei minha vida
inteira — digo, sustentando sua nuca enquanto dou um selinho de
despedida.
— Fer, eu tô com vergonha e não sei retribuir elogios, ainda
mais vindos de você — ela diz, corando as bochechas.
— Muito boba! — Rio. — Espera um minuto aqui que eu já
volto! — Saio do carro.
Entro na padaria correndo e vou atrás de Duda, peço pra ela
fazer um café especial de Natal lotado de chantily, que ela faz com
uma velocidade impressionante e que minha mãe vai amar. Volto
andando com cuidado, pra não tropeçar e derrubar toda a bebida.
— Ai, eu queria tanto um desse, como sabia? — ela diz,
lambendo o chantily.
— Acho que você gastou muitas energias hoje, sabe? —
Pisco, apoiada na janela aberta do carro.
— E como sei. — Droga, droga, droga! Meu cérebro tem que
esquecer, por pelo menos algumas horas, o corpo dela se
despedaçando no meu mais cedo...
— Ei, quando for contar pra seus pais, me liga depois, ou
antes, ou os dois! — Ela assente, e eu desgrudo do carro.

A tarde toda eu passo preparando massas, recheios,


coberturas. E preciso repor o panetone recheado, que tem saído
demais esses dias. Quanto mais me concentro no trabalho, mais
consigo me desligar do toque dela, mas continuo preocupada com
como ela vai lidar ao contar pra sua família... Eu queria estar com
ela, não sei se iria ajudar muito, mas eu queria ter tido alguém pra
me dar um grande empurrão quando foi minha vez.
— Que cara é essa, Fefê? — Duda agarra minha cintura por
trás.
— Cara de quem fez coisa safada e nojenta — Gabriel diz,
enquanto me analisa com uma careta.
— Gabriel, cresce! — ela responde rindo.
— Ué! É uma imagem que não gosto de ter quando se trata
da minha prima! — ele diz exaltado.
— E quem você gosta de imaginar, hein? — ele sorri quando
Duda o encara.
— ECA! Na minha frente não! Já ouço muita intimidade de
vocês dois, mas, ao vivo, me recuso! — digo, soltando as formas na
bancada.
— Ai, como vocês são infantis, todo mundo sabe, não adianta
fingir, gracinhas! — Duda diz, aperta a minha bochecha e a do meu
primo e nos deixa sozinhos.
Gabriel pode ser infantil em muitos momentos, mas ele sabe
quando ser o cara responsável, ou pelo menos algo parecido com
isso.
— Mas, tirando todo esse rolê de pegação, vocês estão
namorando? — Gabriel diz baixinho.
— A gente vai deixar como está até o Natal rolar e depois vai
conversar.
— E o que você quer, Fefê?
— Segurança, não sei direito...
— Princesa, nada é seguro, isso é grande parte da graça da
vida. — Ele me dá um beijo na bochecha e sai atrás de Duda.
Débora 49
Eu poderia ser a pessoa mais sábia desse mundo, e ainda
acredito que os sentimentos de nervoso, angústia e esperança
estariam todos misturados em meu estômago. Não é fácil se
assumir, nunca será pra alguém. Mesmo nas melhores
circunstâncias, sempre vai existir aquele frio na barriga que congela
todos os órgãos.
Treino a noite toda na frente do espelho, decoro as falas,
debato perguntas que podem ser feitas, especulações que podem
surgir. Mas não adianta, eu estou ansiosa, minha cabeça não
consegue descansar. Eu não vou conseguir dormir, hoje, por nada.
Olho o relógio que fica ao lado da minha cama e vejo que
fiquei ensaiando uma conversa, um monólogo, até cinco da manhã.
Falta uma hora e meia pra todos acordarem. Pego o telefone e ligo
pra Fernanda.
— Alô?
— Fer, eu tô morrendo de nervosismo, não consegui dormir.
— Oh, minha linda, eu também tô nervosa.
— Sabia que eu liguei pra você me dar apoio? — Escuto ela
se sentar.
— Certo! Desculpe, é que eu acabei de acordar e demorei
pra segurar minha língua.
— Eu esqueci que estava dormindo, posso ligar mais tarde?
— Não! Quer dizer, pode, claro. Só que eu disse pra me ligar
antes e depois, e eu quero te apoiar.
— Tá bom, obrigada! — O que eu fiz pra merecê-la?
— Ok, como você tá se sentindo? Acha que tá pronta?
— Eu sinto que sim, mas tô com medo de abrir a boca, e as
palavras não saírem...
— Vão sair, eu sei que vão. — Ouço a respiração dela na
ligação. — Meu amor, saiba que eu vou estar te esperando aqui, pra
chorar, pra festejar, pra gritar e pra te apoiar.
Meu amor.
Eu adormeci na ligação, mas parece que só se passaram
cinco minutos pro despertador tocar. Me levanto e tomo um banho
gelado. Está um calor insuportável, e a água gelada me relaxa um
tanto. Desço as escadas pego uma xícara de café, mas não tomo.
Não vou tomar nada até falar o que tenho pra falar. Saber que posso
destruir tudo em apenas segundos me deixa louca, mas eu me
sento, respiro fundo e me lembro do que treinei a noite inteira.
— É... — começo, meus pais param a conversa matinal que
havia pra me ouvir. — Então, como eu posso dizer...
— Está tudo bem? — meu pai pergunta.
— Fale, Deb, estou ficando preocupada — minha mãe diz em
tom baixo.
— Eu sou bi — eles se entreolham —, sou bissexual. Era
isso...
Já segurou algo com tanta força a ponto de temer quebrar em
seus dedos? Pois é isso que está acontecendo com essa xícara de
café. Um breve silêncio reina na cozinha, não vou falar mais nada,
já disse o que precisava dizer pra me libertar. Escuto a voz da minha
mãe.
— Bom, ficamos felizes que tenha nos contado — minha mãe
diz com um olhar cauteloso.
— Exato, só tenho que me situar, mas fico feliz que tenha se
aberto pra nós, minha filha — meu pai diz com um sorriso nervoso.
Estou tão leve. Tão bem. Foi melhor do que eu imaginei, eles
ficaram surpresos, mas isso é normal, e eu já esperava por essa
reação. Tudo é um processo quando se trata de uma novidade. Eu
precisei do meu tempo pra lidar comigo mesma, meus pais foram
mais rápidos, só que agora eles vão ter que me enxergar como eu
realmente sou, e isso pode levar certo tempo, como tudo na vida.
Quero que eles me vejam como eu sou.
Fernanda 50
Escuto a campainha tocar e me animo pra me levantar do
sofá. Abro a porta no entusiasmo de encontrar Débora, quero tanto
abraçá-la, quero dizer o quão orgulhosa dela eu estou. Mas dou de
cara com minha mãe.
Ela está com uma cara nada amigável e me olha como se
pudesse ver tudo que eu fiz ontem. Entra sem dizer uma palavra, se
senta na poltrona e me observa, esperando que eu diga mais que o
oi que disse ao abrir a porta.
— Você achou que eu não iria descobrir? Que não escuto as
fofocas da padaria? — Fico confusa. — Há quanto tempo isso tá
acontecendo?
— Não tem nada acontecendo, mãe. — ela balança a cabeça
em negação.
— Você não vê que esse é o problema, filha? Por que não
pode ter nada acontecendo?
Fico calada por um bom tempo encarando a varanda. Cada
memória voltando, meus medos e receios sobre relacionamentos
surgem em minha garganta. Em pé, sem andar nem um passo, mas
com a respiração acelerada como um carro numa rodovia.
Não, eu não quero pensar nisso. Eu não quero mais me
prender a esse medo. Isso não pode mais me acorrentar. Meu medo
é o destino e o que ele pode fazer com as pessoas que você ama.
Lágrimas escorrem. Débora surge em minha frente.
Como ela veio parar aqui? Onde está minha mãe?
— Oi — ela diz, secando minhas lágrimas com o polegar. —
Tá tudo bem? Toquei a campainha, mas a porta tava destrancada...
O que houve?
Respiro, ela segura minhas mãos e as beija.
— Nada com que valha a pena se estressar, linda.
— Você tava chorando... Por quê? — Encontro seus olhos
preocupados.
— Porque eu quero ser sua, mas não quero que um dia isso
se quebre.
Débora 51
Ela está tão pálida, tão distante. Eu a direciono pra se sentar
no sofá da sala, e me sento ao seu lado, ainda segurando suas
mãos. Ela não me olha nos olhos e até agora consigo ver as
lágrimas caírem pelo seu rosto. Seguro seu queixo, fazendo com
que olhe pra mim.
— Me diz o que pode quebrar? — pergunto suavemente.
— O destino... — ela diz, no mesmo tom que eu.
— Temer o destino nos consome, e ele tem suas razões e
seus caminhos... — respondo, ela joga a cabeça pra trás. — E eu
também quero ser sua, Fernanda.
Ela agora sorri em meio às lágrimas, eu me aproximo um
pouco mais, puxo lentamente seu pescoço e a beijo, passo a mão
pelas suas lágrimas e as seco, enquanto ela sorri entre meus lábios.
Subo no colo dela, a empurro pra trás e exploro seu pescoço com
as mãos.
As mãos dela me seguram por baixo das minhas pernas, ela
impulsiona o corpo e fica em pé, me sinto uma criança em seus
braços firmes. Estamos em seu quarto, ela me coloca na cama.
— Você não deveria estar trabalhando? — pergunto
enquanto ela se encaixa.
— Hoje é dia pra comemorar — ela ronrona no meu ouvido,
fazendo eu arrancar sua blusa.
Não precisei tirar seu sutiã, pois ela não estava usando um.
Sinto o peito dela em minhas mãos, sinto ela tirar meu macacão,
seus dedos percorrem meus seios, minhas coxas...
— Eu quero fazer isso, Fernanda — digo, com a respiração
cortada.
— Isso o quê? — de alguma forma paro em cima dela, tiro as
peças de roupa que faltavam pra mim, e ela me olha, com uma
ferocidade no olhar, que faz eu me sentir em chamas. Meus peitos
são agarrados...
Ela passa a língua quente pela minha pele sensível, eu me
acomodo entre suas pernas nuas, estou nervosa... Começo
devagar.
— Tá tudo bem, você tá ótima, linda — ela sussurra, e segura
em meus cabelos. Eu a escuto gemer, suas mãos agarram o lençol.
— Linda, eu... — Ela treme em meus lábios. Ela se derrama em
mim. E eu quero continuar aqui até ela não aguentar mais.
Fernanda 52
Passamos a manhã entrelaçadas por toda parte. Ela quer ser
minha. Quando ela disse isso, não pude reprimir nenhum
sentimento, precisei dela em minhas mãos, em meus braços, pernas
e na minha boca.
Deitadas sem peça alguma de roupa. Ela está deitada em
cima de mim, colando nossos seios. Ai, que tentação.
— É muita maldade você agir naturalmente, como seu eu não
tivesse doida por eles! — Ela levanta o tronco pra me dar uma visão
melhor, e acho que vou desmaiar.
— Vou colocar uma blusa, então. — Eu a puxo de volta pro
meu corpo.
— Não vai a lugar nenhum, linda. — Passo os dedos até a
base de sua coluna e retorno pra lateral dos seios.
— Ainda vamos conversar sobre isso depois do Natal, né?
— Falta quatro dias. — Ela se encaixa em uma de minhas
coxas.
— Já comprou meu presente? — pergunta.
— É tão difícil, linda, mas ainda tenho tempo. — Débora
começa a se movimentar contra minha perna, a esfregar seus peitos
contra os meus.

Depois de uma manhã muito, mas muito boa, Débora teve


que resolver algumas coisas em casa, mas, por mim, eu faria o que
ela quisesse onde quer que ela quisesse. Só que a ideia de que eu
ainda não tenha comprado um presente me faz ficar ansiosa. Mando
uma mensagem no grupo de “casal gostoso+Fefê” e chamo os dois
bonitos pra irem escolher um presente comigo.
Eles são péssimos, mas é só eu precisar que eles estão a
caminho, e não é diferente dessa vez. Tenho que aguentar as
palhaçadas do meu primo e as broncas de Duda, sem eles eu não
seria eu mesma. Não gostaria de viver em um mundo sem meus
melhores amigos. Eles me apoiam em tudo, e também me situam da
burrada em que estou me metendo.
Hoje eles não param de falar sobre “como o amor é lindo,
sente o cheiro”. Como eu disse: péssimos.
— Princesa, chama sua gata pra ir numa festa hoje — meu
primo diz, enquanto prova as roupas que Duda escolheu.
— Por favor, chama! — ela concorda, esses dois são loucos
por uma festa.
Débora 53
Eu estou viciada naquela mulher. Ela vive em minha mente a
cada segundo. Só falei sobre o presente naquele momento porque
precisava respirar, eu precisava me parar, e não consegui....
Eu já comprei o presente dela faz um tempo, desde que ela
anunciou aqueles brincos com pisca-pisca, eu me senti na
obrigação de comprar brinco de bolo. Sim, miniaturas de fatias de
bolo como brincos. É tão fofo. E comprei um livro também... Esse é
surpresa.
Embalagem de presente é uma outra obsessão minha. Eu
amo fitinhas brilhantes. Enquanto embalo, vou rolando os vídeos na
tela do celular, e me deparo com duas garotas fazendo um desafio
de não se beijarem até o fim do vídeo. Uma delas é minha irmã, e a
outra é a melhor amiga dela.
Ok, eu vou esperar ela estar preparada. Aliás, eu não sei de
nada, só estou supondo e criando ideias por causa de um vídeo de
quinze segundos.
Meu celular toca, e o nome de Fernanda aparece na tela.
— Oi! —ela diz animada. — Tô passando na sua casa pra
gente ir numa festa, se arruma, até já, linda. — E desliga, sem
deixar eu dizer nada.
Como “se arruma pra uma festa”? Eu não posso lavar o
cabelo agora, não vai dar tempo de secar! Tudo bem dá pra fazer
uma espécie de penteado. Vestido? Short? Tá, deixa eu pensar em
um básico, mas que me valorize e me deixe bem gata.
Fernanda 54
Estou dirigindo o carro do meu primo, enquanto uma trança
no cabelo de Duda. Gabriel já teve o cabelo bem longo, então sabe
fazer vários penteados. Hoje ele usa aquele clássico dividido meio
que todo gringo usa.
Quando chego na casa de Débora, ela já está no portão. A
rua é escura, e não consigo ver muito bem o que ela está usando,
mas sei que é curto. Assim que ela entra no carro, me cumprimenta
com um selinho.
— Owwwn! — meus melhores inimigos exclamam juntos.
— Oi, gente! — Débora diz enquanto coloca o cinto. — Como
é essa festa?
— Festa temática Papai Noel, então não se assuste se
alguém te pedir de presente — Duda diz, me cutucando.
— A única que vai receber ela de presente sou eu! — digo, e
acelero pela rua deserta.

Entramos no clube fechado, cheio de refletores e pisca-


piscas coloridos. Fumaça é o que não falta! E é claro que está
tocando um tradicional da música brasileira, um funkão que faz sua
cabeça estourar, mas essa coisa anima a festa de um jeito que
nenhum brasileiro sabe explicar.
Assim que passamos pelos seguranças e os refletores
encontram Débora, e eu vejo o vestido vermelho que reluz, a ele
acentua todas as suas curvas e expõe a pele que o mundo precisa
admirar. Eu estou apaixonada. Nunca pensei que esse dia iria
chegar, que eu iria assumir isso pro meu coração. Mas estou
perdidamente apaixonada por cada átomo dessa mulher.
— Vestidinho vermelho, linda? — Eu a agarro pela cintura.
— Amou?
— Muito, e vou gostar ainda mais de ver ele no chão. — Ela
se vira de frente pra mim.
— Quer que eu tire a roupa aqui? Eu não frequento muito
festas, mas isso é novidade! — Começo a rir.
— Não, bobinha, em outro lugar, só eu e você. — Sustento a
maçã de seu rosto.
Duda e Gabriel chegam com uma garrafa de bebida, Duda já
está virando como se fosse água.
— Podem beber, meninas, eu fico no volante na volta hoje —
Gabriel diz, tirando a garrafa das mãos de Duda. — Mas não quero
que ninguém entre em coma, ok?

Estamos nós quatro dançando juntos de um jeito meio


estranho, do nosso jeito. Débora passa a mão em mim uma hora ou
outra e provoca meus sentidos. Duda rebola no meio da roda que
fizemos e puxa Débora. Elas dançam, eu só tenho olhos pra ela, e
ela só tem olhos pra mim. Cada movimento é um aperto no meu
coração...
— A Duda é gostosa, né? Tira o olho! — Gabriel diz.
— Com certeza, mas não é ela que meu coração pede...
— Tá romântica demais, bebeu quanto?
— O suficiente pra estar louca pra ir no banheiro!
Saio da cabine e dou de cara com o espelho, jogo uma água
no rosto, meu cabelo tem uns fios suados, mas não tem o que fazer
agora. Vou em direção ao corredor que retorna à festa e me deparo
com um ser que eu preferiria não encontrar. Felipe. O namorado da
irmã de Débora. Ele e... Uma garota que não é Ana Júlia, a garota
está em pé entre suas pernas, enquanto ele está apoiado na
parede. Ele a beija, uma garota loira e muito branca, que não é a
namorada dele.
Tiro uma foto. Volto pra pista sem olhar pra trás.
— Linda, eu... — Mostro a foto pra Débora.
Ela dá zoom várias vezes, olha ao redor procurando o garoto.
— O que eu faço agora? — diz franzindo a testa.
— Acho melhor você ir pra casa e conversar com sua irmã —
digo, e envio a foto pro celular dela.
— Quer que eu dê um soco nele? Acho que resolve em
grande parte... — Gabriel oferece sério.
— Oh meu deus, vamos embora antes que meu primo se
transforme no Hulk! — puxo o grandão pelo braço.
Débora 55
Gabriel me deixa em casa, no carro especulamos sobre tudo,
várias teorias, mas a que prevaleceu foi: ele é um babaca. E eu sei
que é verdade, sinto isso, o jeito como ele fala, como anda... Não
sei explicar, só sei dizer que não estou tão surpresa ao descobrir
isso da parte dele.
Agora eu estou aqui fora abrindo a porta da sala. Sei que
minha irmã está em casa, pois todas as vezes em que ela saiu
depois de começar a namorar foi com Felipe, e ele não está com ela
agora. Será que isso já aconteceu mais vezes? Com certeza! É a
primeira vez que vou numa festa e já recebo essa, imagina se eu
fosse toda semana. Como eu vou contar pra Ana Júlia?
Vou até o quarto dela, que está com a porta aberta. Ela está
deitada na cama, com um balde de pipoca, assistindo a algum filme
brega. Isso poderia muito bem ser uma cena de término, mas é
comum ver minha irmã assistindo a romances clichês.
— Oi — entro no quarto —, você tá bem?
— Onde você foi? Tá arrumada pra uma festa?
— Pois é — digo rindo —, fui com a Fernanda e os amigos
dela. — Ela assente, eu continuo: — Então, tenho uma foto do
Felipe... Com outra garota. — Ela pede pra ver, e observo seus
olhos encherem de lágrimas, mas nenhuma cai.
— A gente terminou ontem. — Ontem?
— O que houve?
— Não sei, ele disse que não tava dando mais certo.
— E como você tá?
— Vou ficar bem, eu acho... Vou tomar um banho e
recomendo que você tome um também. — Ela me deixa sentada na
cama sozinha.

Fernanda está me ligando por videochamada, e Duda está do


seu lado. As duas parecem estar deitadas em um quarto cheio de
roupas jogadas por todo lado que, com certeza, não é o dela.
— Oi! — Duda diz.
— Ei, como foi? — Fer pergunta.
— Ou, por que vocês não me chamaram pra fofoca? — A voz
de Gabriel ecoa, e ele se aperta no meio delas.
— Ela disse que terminaram ontem!
— Ontem? — eles dizem juntos.
— E depois deu a desculpa de ir tomar banho e não
comentou mais nada até agora.
— Já falei que odeio esse cara? — Gabriel diz, pegando o
celular de Fernanda.
— Acho que todos nós concordamos com isso, Hulk — ele
coloca o celular na mesa e mostra os bíceps.
— Ai, tô até animado agora, te amo! — ele diz, brincando
com os músculos, e desliga.
Fernanda 56
Não vi minha mãe desde aquele dia. Não consigo ficar sem
falar com ela por muito tempo, por isso estou aqui na frente da casa
dela. É uma daquelas casas de portão baixo, e minha mãe colocou
um Papai Noel inflável, que sobrou da decoração da padaria, no
quintal.
A campainha está quebrada, então recorro às famosas
palmas. Ela aparece na janela, é tão baixinha que seria possível eu
nem perceber que ela me avistou pela vidraça. Escuto o chaveiro
girar na tranca.
— Minha filha, entre, eu fiz um bolo de pizza.
Nunca morei nessa casa, não tenho lembranças de minha
infância por aqui e agradeço por isso. Minha mãe se mudou pra cá
assim que eu fui morar sozinha.
— Eu amo esse bolo — digo, sentada e agarrada ao pedaço
de comida.
— Me desculpe pelo nosso último encontro, fui insensível.
Não me importo com quem você esteja e, ao saber que se tratava
de Débora, de início me animei pensando em vocês duas juntas,
mas aí depois lembrei que não seria tão fácil pra você. Fui em sua
casa e a tratei de uma forma que não tinha planejado...
— Tudo bem, mãe, aquele dia fez eu perceber muitas coisas,
e uma delas é quero estar com Débora, quero que seja algo. Meio
que estou apaixonada por ela. — Minha mãe sorri e me abraça.
— Estou tão feliz por você, meu anjo.
— E vim aqui justamente pra dizer que esse ano vou passar
o Natal com ela, tudo bem? — ela me abraça mais forte.
— Tudo maravilhoso!

Gabriel entra pela porta da cozinha com um monte de roupas


que estava no varal. Minha mãe chama eu e meu primo pra recolher
e estender roupas todas as semanas.
— Menino mais lindo da tia! — Ela bagunça o cabelo dele. —
Eu vou ali no mercado e já volto.
Minha mãe sai e deixa eu e meu primo dobrando roupas. Ela
deixou um mochi na mesa, um doce colorido em formato de bolinha
para comemorar algumas datas..
— Então vai passar o Natal com a Deb?
— Vou sim, era meio que parte do acordo no início.
— Sabe, Fefê, eu sei que você tá com medo, que é novo e
que se arriscar com o amor é difícil pra você. Mas aquela garota
mexe com você, vejo as trocas de olhares de vocês duas... Acho
que vale todo o risco.
Débora 57
A véspera de Natal é amanhã, e ainda tenho que ligar pra
Fernanda e dizer que vai ser na minha casa. Sempre é na casa da
vovó, mas esse ano teve um problema no encanamento de lá, e
vamos ter que adaptar aqui pra casa.
Ela tentou arrumar essa semana, mas não rolou, então agora
estamos como loucos, puxando móveis de um lado pro outro e
colocando cadeiras em tudo que é lugar. Todo Natal surge um primo
novo, vamos dizer que a família adora ter um bebê em mãos.
— Oi, o jantar amanhã vai ser aqui em casa, às 19h,
consegue chegar?
— Como eu tenho que ir? Eu tenho um leve problema de
indecisão com roupas nessas datas...
— Você quer que eu vá pra sua casa? Posso te ajudar.
— Hmm, não sei, não gosto muito de você, sabe?
— Tá legal, passo aí às 17h!
— Que convencida, linda! Te espero. — Ela desliga e me
deixa morrendo de saudade da sua voz.

Ah, o Natal é maravilhoso! Só pra visita! Pois nós, meros


moradores, precisamos arrumar até guardanapo! Mas tudo bem,
desde que eu fique só com o pavê e arrumação, já estou feliz. Só de
imaginar ter que limpar um peru... — Se o Gabriel estivesse em
minha mente, tenho certeza de que iria encarnar a quinta série.
O pior é que minha irmã, Ana Júlia, sumiu desde de manhã,
então estamos só eu e Lari na arrumação final. Minha tia está
enchendo o saco da minha mãe na cozinha, essa não é minha tia
preferida, porque é daquelas que transforma a vida dos outros em
jornal... Não curto muito, não. Minha avó chega daqui a uma hora, e
é lógico que ela vai fazer comentários fofos, mas sei como ela tem
ciúme do Natal na casa dela, então me preparo pro “se fosse lá em
casa...”, a família brasileira.
Terminei o pavê e coloquei pra gelar! Minha avó não chegou
ainda, estranho ela se atrasar, mas melhor assim do que justificar
minha saída agora.
— Mãe, vou buscar a Fernanda, tá?
— Você falou que ela vinha? — ela diz, tentando lembrar se
eu falei ou não.
— É... Não, eu esqueci, mas tudo bem, né?
— Sim, claro! Tem bastante comida, só avisa ela que sua
família tem sérios problemas em falar alto demais o tempo todo.
— Essa é a Fernanda do churrasco? — Minha avó surge na
cozinha.
— Ela mesma. — Dou um beijo nela. — Vou indo, é rápido.
Fernanda 58
Ela é tão fofa escolhendo roupa, é como se fosse um
joguinho de vestir bonecas. E, no caso, eu sou a boneca. Ela já tirou
roupa de quando eu tinha quinze anos daquele armário. Débora
mexe no cabideiro lotado, para, encara o armário e me olha.
— Esse. — Ela pega um vestido dourado, tomara que caia e
bem longo.
— Como eu esqueci da existência desse vestido?
— Eu jamais me esqueceria dele, é tão brilhante... — ela diz,
passando a mão pela parte áspera do vestido.
— E você, o que vai usar?
— Um conjuntinho branco com salto prata, e eu sei que não é
ano novo ainda, mas eu gostei e vou usar.
— Ah, você fica linda com qualquer cor, sabia?
— Assim eu fico mais apaixonada. — Ela para, e eu congelo.
— Você disse que tá apaixonada por mim, linda? — Chego
mais perto dela.
— Na verdade, eu tô apaixonada por você faz um tempo,
mas agora eu tô muito! — Ela agarra meu pescoço, faz com que eu
fique na altura dela, e me rouba um beijo.
— Débora, eu queria ter falado primeiro! — digo quando ela
me solta.
— Acho que isso não importa muito quando é correspondido,
sabe? Agora coloca logo esse vestido, tenho um namoro falso pra
anunciar hoje ainda! — ela diz, indo pra sala buscar a bolsa.
Quanto volta pro quarto, estou tendo dificuldade com o
vestido, por que o zíper fica em um lugar tão ruim pra fechar?
Ninguém nunca pensou que nos arrumamos sozinhas às vezes?
Débora segura na base da minha coluna, o toque dela não é
novidade, mas toda vez que o sinto, acho vou entrar em combustão.
Ela fecha o vestido e me olha de cima a baixo.
— Você tem noção de quão foda você tá nesse vestido?
— Sua família vai me achar uma doida!
— Relaxa! Minhas tias acham que estão indo pro Met Gala.
— Então não estou digna pro Natal? — pergunto, puxando
sua cintura pra minha.
— Você tá fazendo eu sentir coisas que não posso sentir
agora, pois nos atrasaríamos demais... — ela diz, enquanto passa
as pontas dos dedos no meu decote.
Queria viver nesse momento para sempre, queria ver ela me
olhar assim pela eternidade... Cada respiração perto de Débora me
deixa tonta.
— Posso te dar seu presente agora? — Ela me tira do meu
mundo feito só por ela.
— Só se eu puder dar o seu também. — Ela pega a bolsa e
tira duas embalagens, uma com certeza é um livro.
— Abre a pequena primeiro. — Eu tiro o lacinho da
embalagem.
— Meu deus! Eu amei! Posso usar hoje? Eu vou usar!
— Não vai combinar com o vestido, é muito chique.
— Lógico que vai! É um presente seu, eu amei. — Ela sorri
de orelha a orelha enquanto abro a outra embalagem — Eu não
acredito. — Começo a rir e pego o livro que comprei pra ela. —
Abre!
— Fernanda! A gente tá muito em sintonia! — Ela comprou o
mesmo livro que eu, a dose extra e feliz do kit gay, “Enquanto eu
não te encontro”.
— Pedro Streets iria amar saber dessa troca de presentes. —
Ela ri e concorda. — Eu tenho outro presente, mas não sei se você
vai aceitar.
— Aceito tudo de você.
— Bom saber que a partir de agora você é minha namorada,
então. — Ela me olha confusa.
— Você me pediu em namoro? — Assinto, mexendo em seu
cabelo.
— Isso mesmo, e você aceitou. — O grito que eu tô dando
internamente e externamente, meu povo.

A gente saiu do apartamento depois de uns beijos... Estamos


aqui, na frente da casa dela, com as mãos dadas, encarando a
porta. O barulho vem forte lá de dentro, e já estou imaginando o
silêncio que vai ficar quando ela disser.
— Tô pronta, eu acho — ela diz, apertando minha mão.
— Vou estar aqui com você, e, só pra aliviar o clima, hoje é
meu aniversário. — Faço palmas de teatro enquanto ela pisca várias
vezes.
— E você só diz isso agora? Como você aceitou sair com
uma estranha em pleno aniversário?
— Você não é uma estranha mais!
— Meu deus, Fernanda, e agora onde a gente compra velas?
Bolo? Presente?
— Não precisa de nada disso, eu quis passar meu
aniversário com você e acabei ganhando uma namorada linda. —
Ela faz cara de choro.
— A gente vai comemorar amanhã! E vai ter bolo e tudo
mais, sim! E o presente eu posso te dar hoje à noite ainda. — Ela
pisca.
— Pode ser panetone de brigadeiro? — Ela passa a língua
nos lábios. — Você tá muito safada, eu gosto. — Seguro a cintura
dela.
Ela abre a porta, e lá estão as tias, com vestidos que
conseguem ser mais brilhantes que o meu de alguma forma. Débora
caminha até o centro da sala, ainda segurando em meus dedos.
Eles nos notam, diminuem o barulho aqui dentro.
— Fernanda! Você está magnífica! — uma das tias, de que
não sei o nome, mas que vi no churrasco, comenta. Eu agradeço.
— Gente, essa é minha namorada. — Agora o silencio é
brutal.
— Eu disse! — A senhorinha com cabelos brancos e pele
escura diz. — Falei que elas não eram amigas! Minha neta não é
boba não, deixar passar um mulherão desse? — Todo mundo na
sala dá risada, e elogia como somos um casal bonito.
— Obrigada — digo à senhora.
— Sou Neide — ela segura a mão de Débora —, e cuide de
minha neta!
A sala dá uma esvaziada e fica mais calma, enquanto lá fora
a galera está eufórica debatendo alguma coisa.
— Preparada pra conhecer meu tio conservador?
— Uma noite de emoções!
Vamos pro fundo da casa, e lá estão eles, discutindo
ferozmente por que o Brasil está como está.
— O Brasil tá desse jeito por causa dos corruptos! — um
homem branco e alto diz.
— Exatamente! Por exemplo, nosso presidente de brinquedo!
— a mãe de Débora diz, enquanto coloca a maionese na mesa.
Essa família é literalmente uma bagunça, mas eles são
felizes, tem um ou outro que destoa, mas são boas pessoas, me
receberam muito bem. Sério, eles estão me oferecendo comida a
cada cinco minutos, e óbvio que estou aceitando tudo. Eu adoraria
fazer parte disso aqui. Débora está conversando com a irmã mais
nova, Larissa, mas ao me notar encarando, vem em minha direção.
— O que foi? — ela pergunta, com o sorriso que não tira do
rosto desde que eu a pedi em namoro.
— Nada não, só tava pensando que tenho a namorada mais
bonita do mundo. — Ela se senta no meu colo.
— Eu também fiquei pensando nisso, mas eu pensei na
minha namorada cantando “Evidências” comigo.
— É literalmente nós. — Dou um beijo nela, e nos
levantamos em direção ao caraoquê.
E cantamos, cantamos muito, a nossa voz é engolida pelo
pessoal, eles cantam juntos, levantam as mãos como se fosse um
show. Eu vou morrer de amor.
— Que show vocês deram, hein? — Um senhor se aproxima
de mim. — Sou Fábio, pai da mocinha aqui. — Ele bagunça o
cabelo da filha. — Fico contente em saber que você faz minha filha
feliz, seja bem-vinda.
— Ela me traz muita alegria também, e obrigada! — Ele pisca
e volta pra churrasqueira.
Terminamos a música e vamos tomar uma jarra de água e
mais um pouco. Se não gritar no caraoquê, não está valendo. Minha
garganta seca novamente quando vejo Ana Júlia entrar com um
sorriso no rosto, de mãos dadas com Felipe.
— Sua irmã tá com o Felipe? — pergunto.
— O quê? — Débora quase cospe a água.
Débora 59
Eu não posso acreditar no que estou vendo. Não é possível
que aquele garoto tenha dado um jeito de voltar pra vida da minha
irmã. Será que ela não percebeu o quão babaca ele foi?
— Ana, o que ele tá fazendo aqui? — pergunto de canto.
— Ele é meu namorado, Débora.
— Mas...
— Ele me explicou por que eu o estava chateando, e ficou
tudo bem agora. — Ela sorri. — Sério.
Ah. Eu sei o que está acontecendo aqui, e sei que não vai
adiantar eu encher a cabeça dela com minhas opiniões hoje.
— Ele é tão baixo! Vou conversar com ela, ela tem que me
escutar, Fer.
— Ela vai, uma hora ela vai. — Fernanda segura minha mão.
A gente sai um pouco da muvuca que está no quintal e vai
pro meu quarto, Fernanda se senta na minha cama, e eu me jogo,
pra relaxar as costas. Logo ela se deita comigo, e a gente fica
encarando o teto. Nos viramos ao mesmo tempo pra nos olharmos.
— Amanhã você continua minha namorada — ela diz.
— Amanhã você continua sendo minha namorada também.
— Ela toca meu rosto, meu nariz, minha bochecha, meus lábios e
me beija.
Um beijo suave, despreocupado, sorridente e cheio de
alegria. Um beijo apaixonado.
— A gente podia tirar uma foto do nosso primeiro Natal
juntas, né? — eu digo.
Tiramos nossa foto juntas, bem agarradinhas, na cama.
Depois descemos, pois começaram burburinhos na sala sobre a foto
em família.
Fernanda tirou foto com a família toda, com todas as irmãs e
primos. E com minha avó, que ficou no meio de nós duas fazendo
um coração. Dona Neide é uma fofa.
— Por você, eu acho que existe amor em SP, sabia? — ela
sussurra no meu ouvido, no meio da foto.
— O Natal tem suas magias — respondo sorrindo. — Faz um
pedido!
— Já tenho você, não tem por que eu pedir mais do que isso.
Epílogo
16 de fevereiro

É Carnaval, faz dois meses e pouco que Fernanda se tornou


minha namorada — de verdade. A gente já quis se matar, a gente já
fez muito amor, a gente já bebeu até falar inglês, a gente já viajou
pra praia... Foram tantas coisas. Tantos momentos.
Estamos num bloquinho de rua, ou seja, a cerveja já caiu em
todo mundo aqui, tacaram glitter onde ninguém quer ter, mas quem
sou pra julgar, né?
Minha irmã, Ana Júlia, veio com a gente, mas está com suas
amigas. Finalmente ela terminou com o namorado, e parece estar
decidida a não voltar mais com ele.
Eu e Fernanda viemos fantasiadas de Aisha, eu e ela de
Musa. Já nossos amigos, Gabriel e Duda, vieram usando um sutiã
gigante, que imita um peito enorme. Já falei que a mentalidade
deles é de doze anos?
Todos nós bebemos hoje, mas não ao ponto de nos
perdermos, responsáveis, eu diria.
— Ei — Fernanda diz, me segurando em sua frente. — Eu te
amo, e eu não to falando isso porque eu bebi. — Ela tira um
pedacinho de papel do bolso. — Eu escrevi aqui antes de sair de
casa, eu te amo, linda.
Eu estou sem palavras, mas eu sei exatamente o que eu
sinto:
— Eu também te amo, meu milagre de Natal.

Fim

Leitore, a Anaju tem história para contar!


Te vejo em outras páginas :)
Peço para que me ajude avaliando aqui na amazon, obrigada! S2
Agradecimentos
Acho que o mês de dezembro é sobre isso, é sobre agradecer e
aqui estou eu.

Eu sinceramente amo todos os personagens desse livro, todos


eles têm um pouquinho de mim, coisas boas e ruins, mas que fazem
parte de quem eu sou.

Vou agradecer aos meus leitores que me incentivaram


absurdamente a escrever qualquer que fosse o texto, vocês são
incríveis :)

Esse livro foi escrito em meio de muitos surtos e eu tinha que


dividir esse processo com alguém. Je você simplesmente sempre
faz tudo, sou grata pelas bookredes, pois sem elas eu não iria
conhecer uma pessoa que sempre me apoia...

Sou grata por minha família, que está comigo em tudo.

Se você gostou da história da Débora e da Fernanda, só digo que


vem muito aí! Anaju está esperando eu contar sobre o amor da vida
dela pra vocês.
E por último peço para avaliar a leitura ;)

Muito obrigada, nos vemos em outras páginas.

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Books By This Author
Almas opostas
Ciaran é a princesa do império, e ao completar dezenove anos seu
pai vai obrigá-la a casar-se contra sua vontade.
No dia do aniversário ela decide que vai fugir e se algum dia ela
decidir retornar, não vai ser com um marido ao seu lado.
A noite da festa chega e ela conhece dois garotos, dois piratas, Ezra
e Milo. Eles vão encorajar e ajudar Ciaran a escapar do império.
O que eles não esperavam, é que os segredos daquele mundo iam
virar suas vidas de cabeça para baixo…

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