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O ANJO EXTERMINADOR

de Luís Buñuel

Personagens:
EDMUNDO DE NÓBILI, anfitrião
LUCÍA DE NÓBILI, anfitriã
CORONEL ÁLVARO, seu amante
LETÍCIA, a virgem furiosa
JULIO, mordomo
SILVIA, a artista
CHRISTIAN GALDI, seu empresário (?)
RITA, sua esposa grávida
CARLOS, médico
LEONORA, sua paciente
EDUARDO, o noivo
BEATRIZ, a noiva
BLANCA, a pianista
ALBERTO ROCCO, o maestro
ALICIA, sua mulher
LEANDRO GOMES, recém-chegado dos Estados Unidos
RAUL, um inconveniente, de bengala
SÉRGIO RUSSI, que não gosta de brincadeiras
ANA MAYNAR, a maledicente
FRANCISCO, jovem impaciente
JUANA, sua irmã (incestuosa)
PABLO, cozinheiro velho
COZINHEIRO JOVEM
COPEIRA

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CAMILA, ajudante de cozinha
COPEIRO 1
COPEIRO 2
LUCAS, criado
COMANDANTE
ENGENHEIRO
Grupo de CIVIS
PADRE
QUATRO CRIANÇAS, filhos de Christian e Rita
DOIS VELHOS
GUARDA
DOIS PADRES
FIÉIS

Cena 1 (Igreja. Música sacra.)

Cena 2 (placa) RUA DA PROVIDÊNCIA


(Rua. Noite. Carros passando. O casarão de Lucía. Ext. Portão se abre, sai Lucas. Julio,
mordomo, vem atrás.)
JULIO - Ei! Aonde está indo?
LUCAS - Volto já. Vou dar uma volta.
JULIO - Temos 20 pessoas para o jantar. E vai dar uma volta?
LUCAS - Não tinha pensado nisso. Mas volto rápido.
JULIO - Não vá.
LUCAS - Por favor, senhor Julio, deixe-me ir.
JULIO - Pode ir, mas não volte a pôr os pés nesta casa.
(Julio fecha o portão.)

Cena 3 (Sala de jantar. Copeiro traz candelabro para a mesa. Outro ajeita a mesa ao lado.)
JULIO - Lucas foi embora. Teve problema com algum de vocês?
COPEIRO 1 - Não. Nem disse que ia embora.

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COPEIRO 2 - Nós nos dávamos bem. É um bom rapaz.
JULIO - Se não estava bem, é melhor assim. Há muitos Lucas no mundo.
COPEIRO 2 - Questão de gosto. Quem sabe?
(Os copeiros trocam olhar cúmplice.)

Cena 4 (Cozinha. Camila traz bandeja de copos para a mesa. Copeira enxuga copos. Um
cozinheiro jovem e um velho, Pablo, estão em seus afazeres.)
COPEIRA - Camila? O que vamos fazer?
CAMILA - O que quiser, mas logo. Não vejo a hora de sair.
COPEIRA - Sinto o mesmo, mas para onde ir a uma hora destas?
CAMILA – É tarde e a noite está feia.
COPEIRA - Tenho uma amiga que nos deixará dormir na casa dela.
COZINHEIRO JOVEM - Se quiserem, as acompanho. Vou longe e posso levá-las de táxi para
onde vão.
PABLO - Vai ficar e me esperar.
(As duas saem da cozinha, despindo seus uniformes.)
COPEIRO 2 - Ainda não fez o caviar?
PABLO - É depois. A senhora quer que se sirva o guisado antes.
COPEIRO 1 - E encarregou a mim.
COPEIRO 2 - De ser o palhaço.

Cena 5 (Ext. mansão. Chegam os convidados em seus carros. Alguns estão no jardim.)

Cena 6 (Cozinha. As duas criadas aparecem, vestidas para sair. Passam pelo cozinheiro velho
que olha para elas.)

Cena 7 (Elas estão passando pelo hall da casa, quando ouvem os convidados e patrões
chegando. Roupa de gala. Escondem-se. O anfitrião se adianta, procurando o criado.)
EDMUNDO - Lucas! Que estranho, não está. Subam para tirar os casacos. Subam, por favor.
(Escondidas, as criadas ouvem pela porta)
COPEIRA - Ouve alguma coisa?
CAMILA - Já devem estar em cima.
COPEIRA - Não está certo irmos embora assim.
CAMILA - Devia ter pensado antes. Fique, se quiser.

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COPEIRA - Vamos.
(As duas fogem pela porta da frente.)

Cena 8 (Cozinha. Pablo está depositando caviar no cisne transparente – gelo?, com a ajuda do
cozinheiro jovem.)

Cena 9 (Sala de jantar. Julio passa ao copeiro 1 garrafa de bebida, para servir. Todos à mesa.
Os dois copeiros servem.)
ÁLVARO - Não, nunca provei isso.
BLANCA - Então, o coronel mais jovem do exército não é um herói.
ÁLVARO - Blanca, odeio o ruído dos canhões.
BLANCA - Então, o que é a pátria?
ÁLVARO - Um conjunto de rios que dão no mar.
BLANCA - O que é morrer?
ÁLVARO - Sim, morrer pela pátria.
LUCÍA - Álvaro, Edmundo quer dizer algo.
(Edmundo ergue um brinde.)
EDMUNDO - Pela deliciosa noite que nos ofereceu nossa amiga Silvia... com sua nova criação
da Noiva Virgem da Bermuda.
(Silvia agradece.)
GOMES (para Ana) - Noiva, ainda passa, mas virgem?
ANA - Virgem ficaria melhor em Valquíria. (olha para Letícia)
GOMES - Valquíria?
ANA - Sim, a Letícia. Ainda é virgem.
GOMES - Virgem? Você acredita?
ANA - Dizem que ainda conserva este objeto. Talvez seja uma perversão.
(Edmundo ergue novamente o brinde, mas ninguém lhe dá ouvidos. Todos conversam.)
EDMUNDO - Pela noite deliciosa que nos ofereceu nossa amiga Silvia... e por sua estupenda
criação da Virgem da Bermuda. (senta-se, frustrado, encabulado)
LUCÍA - Perdoem-me se mudei a ordem do cardápio. Vamos começar com um guisado
maltês... que segundo o costume da ilha, se serve como entrada. Parece que abre o apetite.
É servido com amêndoas e molho.
ALBERTO - Delicioso. Provei em Capri, após um concerto que dirigi há anos.
LUCÍA - Como no teatro: "Está chegando agora".

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(O copeiro 1 vem trazendo a bandeja, tropeça e cai, sujando a alguns convidados. Muitos riem,
acham que é uma piada. Clima leviano.)
RAUL - Delicioso, Lucía. Realmente inesperado.
FRANCISCO - É maravilhoso.
BLANCA - Lucía tem um charme especial. Nem todos sabem fazer esse tipo de surpresa.
RUSSI - Eu não achei graça.
(Blanca e todos riem. Lucía levanta-se e vai até a copa. O copeiro 2 vem trazendo nova
bandeja, e olha preocupado para a patroa.)

Cena 10 (Copa. Lucía entra.)


LUCÍA - Cheguei a tempo. (vemos um urso na copa) Não o deixe sair, Julio. O Sr. Russi não
gosta de brincadeiras. Leve-o ao jardim.
JULIO – A senhora me tranqüiliza com essa medida, porque há assuntos graves que exigem sua
atenção.
LUCÍA - Aconteceu algo?
JULIO - Estão acontecendo coisas muito estranhas. Venha comigo. E os cordeiros?
LUCÍA - Também para o jardim.
(Três cordeiros vivos sob a mesa. O urso preso a um móvel.)

Cena 11 (Cozinha. Dois cozinheiros, vestidos para sair, vêm entrando. Lucía e Julio aparecem.)
LUCÍA - Aonde vão?
PABLO - Senhora?
LUCÍA - O que significa isso, Pablo? Também vão embora?
PABLO - Preciso ir depressa para ver a minha irmã.
LUCÍA - Pare. Sua irmã está doente?
PABLO - De manhã não estava bem e receio que agora...
LUCÍA - Que loucura! É um insulto! Como vão sair? Os convidados acabam de sentar à mesa.
PABLO - Perdão, mas está tudo pronto para servir.
LUCÍA - Paciência, meu Deus! O que não está bom aqui?
PABLO - Ao contrário, trabalho há cinco anos e... levarei boas lembranças.
LUCÍA - E então?
PABLO - Desculpe-me.
LUCÍA (ao cozinheiro jovem) - E você, aonde vai?
COZINHEIRO JOVEM - Acompanhar o Sr. Pablo. Voltaremos amanhã cedo.

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LUCÍA – Não se preocupe. Se forem agora, estão despedidos.
PABLO - Faria tudo para agradá-la. Peço que nos perdoe. Com licença. (Saem)
LUCÍA - Isso foi combinado. Mas por quê?
JULIO – Com sua permissão, os serviçais domésticos estão cada dia mais impertinentes.
LUCÍA - Com sua habilidade, poderá continuar o serviço... com os dois ajudantes.
(Saem Lucía e Julio. Aparecem os dois copeiros, prontos para partir.)
COPEIRO 2 - Vamos pegar o resto.
COPEIRO 1 - Agora não, vamos logo. Buscaremos amanhã.
COPEIRO 2 – Amanhã não vão nos deixar entrar. Vou fazer uma maleta, num instante.
Espere-me lá fora.
(Copeiro 1 está bebendo vinho, antes de ir.)

Cena 12 (Sala de jantar. Letícia sozinha à mesa, dobrando um guardanapo. Alguém toca piano
na sala ao lado. Ela pega um cinzeiro e atira numa das janelas, quebrando o vidro.
Convidados se espantam.)
GOMES - Algum vadio que passava.
RAUL - Não, foi a Valquíria.
GOMES - Que mulher interessante.
(Casal passa dançando.)
EDUARDO - Como é seu nome?
BEATRIZ - Beatriz e você?
EDUARDO - Eduardo.
BEATRIZ - Idade?
EDUARDO - 30.
BEATRIZ - Profissão?
EDUARDO - Arquiteto.
BEATRIZ - Solteiro?
EDUARDO - Até sábado. Como você.
BEATRIZ - Faltam cinco dias.
(Leonora conversa com o médico, Carlos, que estão tomando café, servidos por Julio.)
LEONORA - Hoje me sinto muito bem. Comi bem. Seu tratamento me transformou.
CARLOS - Não há méritos. Sua doença é insignificante.
LEONORA - Dança, doutor?
CARLOS - Nunca tentei.

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LEONORA - É pena, queria que me tomasse em seus braços.
CARLOS - Fico orgulhoso que minha paciente se mostre tão cordial...
(Leonora dá um beijo na boca de Carlos.)
CARLOS - Transferência?
LEONORA - Faz tempo que queria satisfazer este desejo.
(Outro casal: Rita e Cristiano.)
RITA - Você está bem?
CARLOS (se aproxima) - O que foi?
RITA - Nada, obrigada, doutor. Eu avisei. Não coma tanto, Christian, a úlcera não perdoa.
RAUL - Christian, quero lhe apresentar um grande amigo recém-chegado à nossa cidade.
Leandro Gomes, Christian Galdi.
GOMES - Muito prazer.
CHRISTIAN - O mesmo. Com licença?
RAUL - Naturalmente.
(Christian se retira. Raul puxa doutor Carlos para um canto. Leonora passa.)
LEONORA - Vamos ouvir a Blanca?
RAUL - Já vamos. (num canto) Por que esse beijo tão apaixonado? (Carlos ri.) Pobre Leonora.
Como está seu câncer? Há esperanças?
CARLOS – Infelizmente, nenhuma. Não lhe dou três meses para que fique completamente
calma.
RAUL (com ar de sorriso) - E em uma boa cova.
(Christian pega um copo d’água na bandeja de Julio, e toma remédio. Christian vai até
Leandro Gomes, e o cumprimenta como se o visse pela primeira vez. Rita, que estava próxima,
se afasta.)
CHRISTIAN - Leandro!
GOMES – Querido amigo, Christian.
CHRISTIAN - Leandro, que prazer! Achava que estava em Nova York.
GOMES - Fiquei por aqui. É melhor enfrentar as dificuldades.
CHRISTIAN - Precisamos nos ver mais.
GOMES - Não faltará oportunidade.
(Russi passa e os observa.)
GOMES - Venha amanhã em casa e lhe darei uma caixa.
CHRISTIAN - Cuidado, não estamos sós. Eu vou lhe apresentar... ao Sr. Sergio Russi.
(Russi e Rita estão por perto.)

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RUSSI - Não se preocupem. Continuem se apresentando. Eu não estou para brincadeiras.
Com licença. (se afasta)
CHRISTIAN - Este Russi é um excêntrico.
GOMES - Deve ser homem de letras.
RITA - Vamos ouvir a Blanca? (passam para a outra sala)

Cena 13 (Sala de música. Blanca toca ao piano. Convidados fumam, ouvem. Álvaro olha no
relógio de pulso. Leonora fuma. Raul boceja. Christian faz um sinal para Alberto, como um
código, sobre o peito. Alberto responde com o mesmo gesto. Ana abre sua bolsa para pegar um
lenço. Vemos uma ave morta dentro de sua bolsa. Blanca termina. Aplausos.)
GOMES - Bravo. Muito bem.
EDMUNDO - Magnífica, Blanca. Como sempre.
SILVIA - Que interpretação maravilhosa.
EDMUNDO - Que pena não ter um cravo, ficaria perfeito.
RAUL – Agora toque Scarlatti, Blanca, por favor.
BLANCA - Peço que me dispensem. É tarde e estou cansada.
EDMUNDO - Tarde? Mas estamos no momento mais agradável da noite.
(Casal de irmãos se aproxima.)
FRANCISCO - Maravilhoso, Blanca.
JUANA – Parabéns, de verdade.
LUCÍA - Excelente, Blanca.
(Outro ponto da sala.)
CHRISTIAN - O diretor de orquestra, de fama internacional irá...
ALBERTO (tom de segredo) - Terei prazer de conhecê-lo sob um aspecto tão fraterno.
CHRISTIAN - Quando?
ALBERTO - Na manhã do dia 21.
CHRISTIAN - Com um grau sublime.
GOMES - Maestro, me agradaria saber sua opinião sobre o pizzicato que acabamos de escutar?
ALBERTO - Sonata, senhor. Sonata. Permita-me apresentar-lhe o senhor Galdi. Seu nome, por
favor?
GOMES - Leandro Gomes. Encantado.
CHRISTIAN (sério) - Muito prazer. Ficará muito tempo aqui?
GOMES - E você?
CHRISTIAN - Diga você antes.

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GOMES - Não, você.
CHRISTIAN - Eu vivo aqui.
GOMES - Já imaginava. (se afasta rápido)
(Russi e Letícia olham e se olham.)
EDMUNDO - Julio, disponha o guarda-roupas.
JULIO - Sim, senhor.
(Alicia está deitando Alberto num divã. Edmundo se aproxima.)
ALICIA - Desculpe, ele exagerou. Fazia tempo que não bebia... e talvez estivesse cansado.
EDMUNDO - Admirável a resistência de Alberto. Já o vi dirigir. Não sei como agüenta as
horas de tensão e atividade.
ALICIA - À noite, quando descansamos depois do concerto, ele tenta. Não tenho o que queixar,
ao contrário, devo elogiar.
EDMUNDO - Deixe-o descansar. Vai tentar alguma coisa?
ALICIA - Não, Edmundo. Não acho que ele ousaria.
EDMUNDO - Não, claro. Não me expressei bem.
(Outro ponto. Christian traz Rita exausta até um pequeno sofá. Juana e Silvia erguem-se para
que ele a sente.)
CHRISTIAN - Não é nada, é só cansaço. Em seu estado, é natural.
LUCÍA (aproxima-se) - É um bom sintoma. Parabéns.
JUANA – Já é o quarto, não é?
CHRISTIAN - Já perdi a conta.
JUANA - Tem certeza da paternidade?
CHRISTIAN - Como?
JUANA - Quero dizer...
CHRISTIAN - Isso não é pergunta.
RITA (rindo) - A ciência decidirá.
(Lucía, um pouco incomodada, vai até Blanca parada perto do arco que separa esta sala da
contígua. Blanca está ali, ao lado da Ana e de Raul.)
LUCÍA - Blanca, pensei que já tivesse ido.
BLANCA - Fiquei mais um pouco. Raul nos explicava sobre a fauna da Romênia.
RAUL - Por causa do clima...
BLANCA - Já falamos muito. Vou indo. Onde coloquei meu xale?
LUCÍA - Um momento.

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(Lucía vai em busca do xale, passa por Álvaro, troca um olhar com ele e vai até um canto. Ele
a segue, a beija atrás de uma cortina.)
ÁLVARO – Que acontece que não vão embora? São quase 4h.
LUCÍA - Questão de minutos. Aproveite a confusão da despedida e espere por mim.
ÁLVARO – E Edmundo?
LUCÍA - Se aparecer, direi que devia lhe mostrar algo.
ÁLVARO - Boa idéia. (beijam-se)
(Gomes boceja e tira a gravata. Pessoas estão com sono ou perambulando pela sala, sem muito
objetivo. Lucía leva o xale a Blanca.)
BLANCA - Muito obrigada. (Raul ajuda-a a vestir-se.)
(Lucía senta-se perto de Edmundo.)
EDMUNDO - Esteve tudo perfeito, Lucía, apesar de... (repara na boca de Lucía manchada de
baton) Nestas horas, até a cor dos lábios desvanece. O problema é cuidar de nossos amigos.
Devem estar pouco à vontade. (diminui a luz do ambiente. Christian passa bocejando;
Edmundo coloca as mãos sobre seus ombros.) Gosto da espontaneidade desta situação.
(aproximam-se de Silvia e Álvaro) Se quiserem passar a noite aqui, preparemos os quartos. Vejo
que está vivo o velho espírito da improvisação.
ÁLVARO – Você é o anfitrião ideal... mas não quero abusar de sua hospitalidade.
SILVIA – Tenho uma apresentação à tarde...
CHRISTIAN – E uma gravação em 4 horas.

Cena 14 (Sala contígua. Julio recorre a louça num carrinho, e olha para convidados e patrões
que não saem da outra sala. Ele apaga as luzes. Na sala de música, Carlos, Russi e Álvaro
olham para o mordomo, sem ultrapassar o arco.)
CARLOS – Agora é sério. Apagam as luzes.
RUSSI – Chegou a hora da decisão. Vamos ou não? Se os outros estão loucos, que fiquem.
(Álvaro vê que todos vão se acomodando como podem. Gomes tira a casaca. E vai tirando
suspensório, colete etc.)
ÁLVARO (num sussurro, para Carlos) – Mas isso é incrível. Se não fosse o respeito por nossos
anfitriões... daria uma lição neste sujeito.
GOMES (para Christian, que cochilava) – Esta roupa é boa para bonecos, não para homens.
Ainda mais às 5 da manhã.
(Christian despe o fraque.)
LUCÍA (para o marido) – Tiraram o fraque. Não acha que estão se excedendo?

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EDMUNDO – Não esqueça que Leandro viveu nos EUA. E é nesta hora que o corpo alcança
sua depressão máxima. E com esta temperatura tão agradável...
LUCÍA – Estou certa que quando pensarem em sua conduta, ficarão com vergonha.
EDMUNDO – É mesmo, gostaria de lhes evitar esse dissabor. Vamos nos igualar, para atenuar
a sua incorreção. (despe a casaca)
(Ambos se afastam. Ana senta-se na poltrona que eles abandonaram. Boceja. Gomes se ajeita
no chão, fazendo o casaco de almofada. Na sala ao lado, Julio tira o casaco e dorme
debruçado sobre a mesa de jantar. A sala de música parece um campo de guerra, com todos
deitados, dormindo pelos cantos, nas poltronas, no chão, sobre almofadas improvisadas, aos
montes. Lucía, ainda perturbada, perambula pela sala. Passa por Álvaro, olham-se. Tosses.
Lucía vai deitar-se no chão. Christian se levanta.)
CHRISTIAN – Por favor, Lucía, ocupe o meu lugar.
(Eduardo e Beatriz levantam-se e vão para um canto, semi-escuro.)
EDUARDO – Nossa primeira noite juntos.
BEATRIZ – Por que estamos aqui? Por que não fomos embora?
EDUARDO – (enquanto passa as mãos pelo corpo dela, por seus seios) Todos quiseram ficar.
BEATRIZ – Não acho natural.
EDUARDO – A vida é divertida e estranha. (passa a mão pela bunda de Beatriz)
BEATRIZ – Não consigo ficar em pé.
EDUARDO – Vamos dormir. (Deitam-se no chão, perto do piano. Ele tira a gravata.)
(Russi ainda não deitou, anda de um lado a outro, perto do arco, sem compreender. Leva a mão
ao peito, senta-se numa cadeira, tira os óculos. Suspira, aflito, a mão sobre o peito. Fade-out.)

Cena 15 (Manhã seguinte. Externa da mansão, com os portões arreganhados. Na sala de


jantar, Julio penteia os cabelos ao espelho, veste-se e observa a sala de música. Lá alguns
estão despertos, outros se levantando. Tosses, bocejos, pessoas vão acordando. Silvia e Ana se
aproximam de Rita.)
SILVIA – Bom dia, Rita. Dormiu bem?
RITA – Não vai acreditar. Não acordei nem uma vez.
ANA – Nem eu. Que noite! Nem no descarrilamento do expresso de Nice... senti tantas dores.
(Silvia ajeita os cabelos da Ana.)
RITA – Você já descarrilou? Que interessante!
SILVIA – Tinha que ser o expresso! (riem. O aspecto delas é desarrumado, mas tentando ainda
manter certa elegância.)

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EDMUNDO (aproxima-se de Lucía, que se ajeita diante do espelho) – Estou confuso! O que
houve? Não sei como chegamos a isso. Tudo tem limites.
LUCÍA – Não sei o que dizer, mas agora temos de oferecer o café da manhã. Depois deverão ir
para as suas casas.
EDMUNDO – Claro. Confio em sua discrição.
ANA – Eu ia feito louca de um lado para o outro. Um vagão de terceira classe cheio de gente
do povo. Parecia uma sanfona. (aproxima-se Letícia) Dentro, que carnificina! Devo ser
insensível, porque a dor daqueles infelizes não me comoveu.
LETÍCIA – Estou com fome.
SILVIA – Insensível, como se estivesse frente ao cadáver do príncipe Lurcat?
ANA – Que comparação! Ninguém fica indiferente diante da morte... daquele príncipe
admirável que foi nosso amigo. Que nobreza!
LETÍCIA – Nesta casa não se come?
RITA – Acho que o povo é menos sensível à dor. Já viu um touro ferido? Insensíveis!
SILVIA – Vou me retocar um pouco. Estamos todas com um ar cansado.
ANA – Isso é divertido.
(Juana olha o irmão, amorosa. Ela fuma, ele parece exasperado.)
JUANA – Dormiu bem?
FRANCISCO – Por que me olha assim? Devo estar horrível.
JUANA – Está mais interessante que nunca. Fica bem desalinhado.
(Ele se afasta. Beatriz está limpando a boca do noivo com um lenço. Ele a admira.)
BEATRIZ – Por que me olha assim? Devo estar horrível.
EDUARDO – Está mais interessante que nunca. Fica bem desalinhada.
FRANCISCO (que está próximo a eles) – Tem bom ouvido.
(Carlos está examinando o pulso e o peito de Russi, que parece dormir. Vários deles por perto.)
LETÍCIA – Passou mal à noite. Vi ao amanhecer.
EDMUNDO – Por que não avisaram? Vamos levá-lo a um hospital.
CARLOS – Não vamos movê-lo. Vejamos o que podemos fazer por ele. Cubram-no.
LETÍCIA – Sim.
JUANA – À noite, o achei estranho.
ALBERTO – Não deve ser nada. Já teve muitos ataques.
LEONORA – Como ele está, doutor?
CARLOS – Dentro de umas horas, completamente calmo.
LEONORA – Não entendi.

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CARLOS – Restam-lhe poucas horas de vida.
LEONORA – Você nunca falha em suas previsões. Também não estou bem.
CARLOS – Bobagem. (Ela beija a mão dele.)
(Lucía vai até o arco, mas não consegue passar. Julio se aproxima.)
LUCÍA – Julio, preciso de um café da manhã para os convidados.
JULIO – Desculpe, ainda é cedo. Os fornecedores não vieram.
LUCÍA – Nem o leiteiro?
JULIO – Nem ele, e isso é estranho.
LUCÍA – Sobraram frios do jantar. Traga-os e café bem quente.
(Julio se afasta. Lucía anda, tentando manter as aparências. Rita e Ana a encontram.)
RITA – Lucía, onde podemos nos refrescar um pouco?
LUCÍA – Imediatamente. Desculpem por não ter pensado nisso antes. Vamos ao toalete?
(As três vão até o arco, mas não passam. Álvaro, Eduardo e Raul as observam.)
ÁLVARO – Aposto que não vão sair. Estão vendo? Que acham?
RAUL – Na verdade, não sei. Parece-me inverossímil. Ou normal.
EDUARDO – Estranho é ninguém fazer estas perguntas.
ÁLVARO – Por que não foi embora à noite com a namorada?
EDUARDO – Não sei, fiquei como todos. E você?
ÁLVARO – Não sei. E isto é o que me preocupa. À noite, depois da festa, ninguém se esforçou
para voltar para casa. Por quê? Parece natural termos passado a noite nesta sala, falhando nos
mais elementares deveres de etiqueta? E que a tenhamos transformado em um acampamento de
ciganos?
ANA (se aproxima) – Achei original. Adoro sair da rotina.
SILVIA – Eu percebi e não gostei da idéia. Não disse nada por educação.
GOMES (calçando o sapato) – Vamos, senhores. Nada de traumas. Estávamos todos
encantados. A música, a conversa cordial, o bom humor. Não há o que estranhar. Meus pés
incharam.
CARLOS – Por exemplo, quer nos dizer, nossa querida amiga Lucía, por que pediu ao
mordomo que nos servisse o café aqui... e não na sala de jantar?
LUCÍA – Não sei. Como estávamos reunidos aqui, achei que...
RAUL – O doutor gosta de brincar de Sherlock Holmes. Não acham os senhores?
BLANCA (aflita) – Preciso voltar pra casa. Meu marido, meus filhos devem estar preocupados.
Vou agora.

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ALBERTO – Alicia e eu vamos juntos. Isso é um absurdo. Vamos! (pega no braço de Alicia, e
vai com decisão, Blanca os acompanha, param perto do arco para se ajeitar. Rita está ali, em
pé.)
BLANCA – Você vem, Rita?
RITA – Ainda, não. O que vão fazer na rua a estas horas?
BLANCA – Rita, por Deus, você também tem filhos que estudam.
RITA – Eles têm professor em casa. O abade Simson. Um homem culto e fino. E perdoem o
exagero. Parece um santo. Até Christian acha, não é?
ALBERTO – Não queremos saber de abades. Agora queremos... Vamos! (vão sair, mas Julio
que entra com o carrinho de chá lhes intercepta a saída)
JULIO – Com licença, senhores.
ALBERTO – Depois de tudo, não custa tomar um café. Estou sem fumar porque estou com o
estômago vazio.
ALICIA – Eu também gostaria. Acompanha-nos, Blanca?
(Blanca não vai. Desaba numa cadeira perto do arco, está aflita. Alguns se servem do
desjejum: Letícia está entre eles.)
JUANA – Parece histérico o ambiente de alarme que se está criando.
RAUL – Não é a primeira vez que vejo uma festa assim, às 8 da manhã.
ALICIA – Lucía, não há colheres para servir o açúcar.
LUCÍA – O pobre Julio não agüenta tudo sozinho. Traga as colheres.
JULIO – Sim, senhora.
(Julio vai até o arco, mas não consegue sair, tampouco. Constrangido volta-se para Álvaro e
Carlos que estão por perto.)
JULIO – Os senhores querem algo, um café, um pouco de carne?
ÁLVARO – Nada, Julio, faça o que mandaram.
JULIO – Vou esperar que terminem para levar o carrinho.
LUCÍA – O que foi, Julio, não me ouviu? Pedi que traga as colheres.
JULIO – Sugeri que...
LUCÍA – Chega. Cumpra as minhas ordens.
(Julio vai até o arco de saída, mas não consegue. Fraco, senta-se.)
LUCÍA – O que foi? Não está bem? (avista Blanca) O que aconteceu? Posso ajudar?
(Blanca chora. Álvaro e Carlos a um canto.)
ÁLVARO – O que acha sobre o que aconteceu?

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CARLOS – Estranha a resistência do mordomo para cumprir as ordens. Confirma as minhas
observações. Desde à noite, nenhum de nós conseguiu sair. O que está acontecendo, amigo
Aranda?

Cena 16 (Noite. Chove torrencialmente. Externa da casa. Lá dentro, escuro. Clima de suspense,
quase. As pessoas vagam. Blanca dedilha ao piano. Letícia se aproxima, furiosa.)
LETÍCIA – Há um doente muito grave. (Fecha a tampa do piano)
(Carlos sai de perto de Russi.)
ALBERTO – Como ele está?
CARLOS – Não tenho porque esconder a verdade. Está entrando em coma. Se eu tivesse
coramina ou óleo canforado. (vai até Christian) Christian, por simples humanidade, precisamos
fazer uma força para parar este processo, levá-lo daqui para onde possa ser atendido.
(Christian vai até Raul e Francisco.)
CHRISTIAN – O médico tem razão. Temos que fazer um esforço. Quem de vocês se atreve a
tentar?
RAUL – E por que não tentam vocês mesmos? Todos iremos atrás.
FRANCISCO – É inútil. (vai até Juana) Estamos perdidos. Por que me trouxe aqui, irmã? Por
quê?
JUANA – (com carinho) Não seja cruel. Foi você que me obrigou a vir. Calma. Calma.
(Letícia vai até um dos armários, tira a chave de fora, coloca-a por dentro e entra lá. Vêem-se
vários vasos de porcelana dentro do armário. Beatriz vai servir-se de água no carrinho de chá,
mas o vaso está vazio.)
BEATRIZ – Não tem água. Me dê um pouco de café. Estou morta de sede.
JULIO – Desculpe. Acabou.
(Eduardo aproxima-se, tira as flores de um vaso com água e oferece.)
EDUARDO – Só há um pouco no jarro. A água cheira mal, mas não é problema. Um pouco de
limão vai tirar o gosto.
BEATRIZ (cheira a água do vaso) – Não, obrigada, Eduardo. Prefiro esperar.
(Raul está falando ao grupo de convidados.)
RAUL – Na verdade, não compreendo. Deve haver alguma solução. (para Ana) Olhe-me.
Não estamos loucos.
BLANCA – Estamos aqui há 24 horas e ninguém apareceu. Fomos esquecidos.
ALBERTO – A atitude dos que estão fora me preocupa mais... que a nossa situação. Alguém já
deveria ter tentado.

15
ÁLVARO – Só se todos estão mortos na cidade... e somos os únicos sobreviventes.
LEONORA (num ataque histérico) – Alguém venha nos buscar.
RITA – Calma! Não perca a cabeça.
(Certa histeria coletiva.)
RAUL – Vamos ficar aqui até a noite.
CARLOS – Por favor, tenham calma!
JUANA – Mantenham a calma!
SILVIA – Vamos abrir a porta.
ALBERTO – (tirando gravata) Isso tem a ver com os criados terem saído. Por que partiram?
EDMUNDO – Por favor, não elaborem teses alarmantes. Os criados devem ter suas razões para
irem embora.
RAUL – Sim, as mesmas razões que têm os ratos... quando sentem que o navio vai afundar.
JULIO – Com licença. Eles pareciam sair sem saber por quê. Uma hora antes de sua chegada
estavam contentes.
CHRISTIAN – Nada explica nada. É inacreditável.
CARLOS – Calma! O pânico é o pior de tudo. Uma situação como esta não pode durar
indefinidamente. Não estamos enfeitiçados. Este não é o castelo de um bruxo. Se analisarmos o
que está acontecendo... enfrentaremos a nossa impotência.
EDMUNDO – Façamos o seguinte. Calemo-nos. Façamos um esforço supremo. Um ato da
vontade com o propósito de sair daqui. De conseguir...
RAUL – Cale-se. É o melhor que tem a fazer. Você nos meteu nesta armadilha... nos fez vítimas
desta brincadeira.
EDMUNDO – Eu? Por tê-los convidado a jantar e oferecer a minha casa?
RAUL – Chamou um a um para jantar depois da ópera. Um convite amável, que nos deu muita
honra etc. Cada um poderia ir dormir na sua casa... ou em um prostíbulo, que seria melhor que
aqui. Por que um convite tão súbito?
EDMUNDO – Súbito, por quê? Todos adoraram. Você mesmo agradeceu a recepção cordial.
RAUL – Pois retifico e declaro que aqui não há mais que um culpado... por esta situação
degradante. Você.
EDMUNDO – Eu? Você perdeu a cabeça, Raul.
LETÍCIA – Edmundo tem razão, você é um louco.
RAUL – Se não fosse uma dama...
(Letícia dá dois tapas na cara de Raul, com força. Gomes o leva para longe. Alberto sai do
“armário-banheiro”.)

16
CARLOS – O mordomo não vai trazer água?
BLANCA – Estou com dor de cabeça.
CARLOS – Não, Blanca.
(Leonora chora diante do arco. Francisco está desesperado.)
FRANCISCO – O que os homens estão fazendo para resolver isso? Falam como rameiras.
Silvia, pense em algo para sairmos todos. Nunca mais ponho os pés neste bordel.
ANA - Não reparem no nervosismo dele. É mais sensível que uma menina. Tenho certeza que a
nenhum de nossos amigos esta situação afeta tanto assim.
FRANCISCO – Não é isso, não são meus nervos. Não quero ouvir ninguém. Quero ficar só.
(Russi delira. Carlos se aproxima.)
RUSSI – Contente... não pelo extermínio.
(Beatriz se aproxima de Eduardo.)
BEATRIZ – Não me importaria morrer, mas não assim... sem poder estar sozinha com você.
EDUARDO – É o meu martírio. Não podermos estar a sós.
BEATRIZ – Tem um modo de nos separarmos dos outros.
EDUARDO – Não é possível. Como?
BEATRIZ – Direi quando todos estiverem dormindo. Se dormirem. (beijam-se na boca, ao lado
de Gomes, que se levanta, incomodado)
(Silvia sai do armário-banheiro e comunica a Ana, Rita e Blanca.)
SILVIA – Ergui a tampa e vi um precipício... e as águas claras de um rio.
ANA – E antes de sentar, uma águia cruzou perto de mim.
RITA – O vento me jogou folhas no rosto.
BLANCA – Estou com frio.

Cena 17 (Noite. O relógio soa as horas. Quase todos dormem. Tosses. Gomes sai do
armário-banheiro, ajeita-se no chão, no espaço que sobra. Russi morreu. Carlos cobre seu
rosto com o casaco. Carlos vai até Álvaro, que fuma.)
CARLOS – Está consumado.
ÁLVARO – Já? Não está certo. Ao morrer, devíamos nos evaporar.
CARLOS – Amanhã, quando o virem vão se desmoralizar.
ÁLVARO – Em vez dele, podia ter sido Rocco. Seria um maestro a menos.
CARLOS – Que fazemos?
(Silvia sai do armário, com uma calcinha na mão. Eduardo entra no armário, deita-se ao lado
de Beatriz que já estava lá dentro.)

17
BEATRIZ – Viram você?
EDUARDO – Não sei. Tanto faz. (beija-a)
(Álvaro tira um violoncelo do armário. Ele e Carlos carregam o corpo de Russi para dentro do
armário. Eduardo e Beatriz em silêncio, após o amor. Quando Carlos vai fechar o armário,
ouve vozes, poéticas.)
ELE (EDUARDO) – Aqui desemboca o mar. Desce mais. Agora o rito horrível.
ELA (BEATRIZ) – Meu amor.
ELE (EDUARDO) – Morte minha. Oh, ardil!
(Ana acorda, pega algo para comer sem sair de sua “cama”. Vê o braço de Russi caindo pela
abertura da porta do armário. Assusta-se. Sacode Letícia que está deitada sobre seu colo, mas
desmaia. Letícia acorda e não vê quem a sacudiu.)

Cena 18 (Manhã seguinte. Exterior da casa. Confusão. Guardas, familiares, crianças, padres.
Carros chegam: autoridades. Um comandante do Exército vai até o engenheiro.)
COMANDANTE – Nada, engenheiro.
ENGENHEIRO – O que quer que façamos?
COMANDANTE – Não sei, mas não podemos ficar assim sempre.
ENGENHEIRO – Há quatro dias, o prefeito considerou como principal obter contato com os
exilados e pediu que eu instalasse alto-falantes para que, se estiverem vivos, ouçam nossas
instruções. Desistiram quando entenderam que a idéia é absurda.
COMANDANTE – Absurda por quê? Parece-me muito plausível.
ENGENHEIRO – Mais fácil que instalar alto-falantes é entrar na casa, já que nada nos impede.
E ninguém entrou ainda.
COMANDANTE – Absolutamente certo. Ontem, à tarde, enviamos homens com equipamento
completo. Às 21 h, voltaram ao quartel, sem que nem um homem tivesse entrado na casa.
ENGENHEIRO – Tentaram entrar, comandante?
COMANDANTE – Não. E isso é que é grave neste caso.
(Um grupo de civis tentar romper a barreira militar para se aproximar da casa.)
CIVIL – Queremos ver lá dentro. Deixem-nos entrar.
(Conseguem romper a barreira. O comandante e o engenheiro estão entre eles e o portão.
Chegam todos perto do portão, mas ninguém consegue passar.)

Cena 19 (Sala de música. Julio está marretando um cano na parede, enquanto todos os outros
aguardam, ansiosos.)

18
JULIO – Um... dois... três, quatro.
BEATRIZ – Bata mais depressa. O que está acontecendo?
(Gomes pega a marreta para fazer o serviço.)
ANA – Deixem-me passar, estou com febre.
BEATRIZ – Eu também.
JUANA – Espere sua vez.
(Beatriz empurra Letícia.)
BEATRIZ – Malditos sapatos apertados.
EDUARDO – O que foi? Por que reclama tanto?
GOMES – Só falta terem cortado a água.
BEATRIZ (para Eduardo) – Vá ajudá-los.
RAUL – Com licença. (pega um objeto doméstico pesado, quebra-o, e com uma das partes
bate com força no cano d’água. A água começa a esguichar. Julio é o primeiro a meter a boca
no cano. Gomes vem em seguida.) Saiam, saiam. As mulheres primeiro!
ÁLVARO – Fiquem em fila!
CARLOS – Um copo cada um. Na segunda vez, beberão quanto quiserem. A falta de contenção
pode ser perigosa. Principalmente para os doentes.
ÁLVARO – Com moderação, por favor. (Francisco se aproxima com copo do cano.) Não ouviu
que as mulheres são antes? Volte para seu lugar.
JUANA (lhe oferece seu copo d’água) – Beba. (pega Álvaro pelo colarinho) Não permito que
destrate meu irmão.
(Letícia dá um copo d’água para Leonora, que está deitada, enferma.)
LEONORA – Que gostosa. Como está gelada.
(Letícia leva outro copo para Ana, que delira.)
ANA – Fome. Fome. Não me deixem só.
(É a vez dos homens encherem seus copos. Alicia dá de beber a Alberto, deitado, doente.
Carlos se aproxima.)
ALICIA – Dois dias sem falar. Com os olhos fechados e separado de todos. Até de mim. Não
sei mais o que pensar.
CARLOS – Repito, Alicia, devido à sua idade isso o afetou mais que aos outros.
(Mulheres se aproximam do cano e passam nas mãos, no rosto, na nuca: Silvia, Blanca, Lucía,
Beatriz, Juana.)
SILVIA, JUANA? (OFF) – Minhas mãos parecem folhas secas. Como seria bom se não
tivéssemos vindo. Está insuportável!

19
(Julio faz umas trouxinhas de papel e come. Beatriz se aproxima.)
BEATRIZ – O que está fazendo? O que está comendo?
JULIO – É papel, senhorita. Não é gostoso, mas engana a fome.
BEATRIZ – Isso me dá nojo.
JULIO – O sabor do papel não é desagradável, senhorita Beatriz. Meus amigos e eu comíamos
quando éramos pequenos... quando nos cansávamos da aula. Estudei com os jesuítas. Gente
boa. Todos nós nos aborrecíamos. O papel é bom. Dizem que é feito com folhas e casca tenra
das árvores. Não pode fazer mal. Se digna a provar?
GOMES – Julio, venha aqui.
JULIO – Com licença.
(Gomes está tentando amarrar o cano para estancar o furo.)
GOMES – Ponha este trapo aí.
ANA (delirando) – Não vão embora! Não me deixem só! Príncipe, salve-me. O pacto.
(Letícia, ao seu lado, bebe um copo d’água. Francisco está fazendo a barba com barbeador
elétrico como um autômato. Raul tira o fio da tomada, e Francisco nem percebe. Silvia penteia
apenas parte de seu cabelo, repetidamente. Quando o fio da tomada toca em suas costas, é que
ele se dá conta. Beatriz está comendo as trouxinhas de papel. Silvia vai até o espelho,
penteando sempre o mesmo lado da cabeça.)
FRANCISCO (para Juana) – Não posso mais, juro! Não agüento vê-la penteando meia cabeça.
Eu a odeio. Prefiro a fome e a sede a ter de vê-la.
(Juana vai até Silvia.)
JUANA – Por que não se penteia direito? (pega o pente e penteia o cabelo de Silvia) Assim!
Assim! Até embaixo! (Francisco pega o pente das mãos de Juana.) Não podemos suportar as
suas manias! (Francisco quebra o pente, furioso.)
RITA – Beatriz, desculpe. Não viu uma caixa de prata com umas cápsulas brancas?
BEATRIZ – Uma caixa? Não, Rita, desculpe.
RITA – É o remédio de Christian. Estava bem guardado, mas... estamos com a cabeça um
pouco...
BEATRIZ – Vou procurar. (se afasta)
RITA – Julio, estou com fome. Naquela vasilha, na mesa, não tem um torrão de açúcar?
JULIO – Lamento. Desde anteontem não há mais nada.
(Rita vai até Christian.)
RITA – Está melhor? Agüente firme, vão aparecer.
CHRISTIAN – Tenho certeza que encontraram a caixa e a esconderam para que eu morra.

20
RITA – Não diga isso.
CHRISTIAN – Sabe, estou pensando. Sempre pensando. O que estarão fazendo agora?
RITA – Também não os esqueço. Pobres filhinhos. Meu consolo é que o abade cuidará deles
com amor.
CHRISTIAN – O que mais me preocupa é que meus filhos... estejam nas mãos deste hipócrita.
RITA – Não seja injusto!
CHRISTIAN – Nega que ele a corteja? Estou usando um eufemismo, mas prefiro me calar.
RITA – Não se cale. Fale! (Raul presta atenção à discussão.)
CHRISTIAN – Está muito interessado no que estamos dizendo?
RAUL – Vocês e seus problemas conjugais me enojam.
CHRISTIAN – É um insolente. Não percebeu que o desprezo desde que chegamos aqui?
RAUL – Tanto faz. Eu os desprezo faz tempo.
EDMUNDO – Senhores, as atitudes de vocês. Não entendo. Estamos na mesma situação. Não
temos nada a perder se nos tratarmos com cortesia.
CHRISTIAN – Cale-se!
RAUL – Concordo, precisa ser cínico para dar conselhos às suas vítimas.
(Alicia está colocando grampos na cabeça de Letícia.)
EDMUNDO – Minhas vítimas. Mas por que, Raul? Explique. Vou ficar aliviado se me der uma
boa razão.
RAUL – Cansei de repetir.
ÁLVARO – Edmundo, venha. Não fale, nem se irrite mais. Sente-se.
EDMUNDO – Sente-se do meu lado, por favor. (Álvaro senta-se entre Edmundo e Lucía, que já
estava ali, com olhar distante.) É meu amigo. Eu juro que daria a vida para acabar com esta
situação. Odeio a desgraça. Procurei aliviá-la. Como podem crer que eu...
ÁLVARO – Está tudo bem. Calma.
(Lucía volta-se para o amante e suplica, sem se preocupar com a presença de Edmundo.)
LUCÍA – Álvaro, estou com fome. Fome. Tenha alguma idéia para sairmos deste pesadelo.
ÁLVARO – Só um milagre pode nos tirar daqui. Por que não fazemos um rosário coletivo?
LUCÍA – Prometemos, de todo o coração, organizar um "Te Deum" coletivo... se a divina
providência nos livrar disso. (olha para os armários) E esse cheiro insuportável? É espantoso!
ÁLVARO – Estamos tentando eliminá-lo.
(Eduardo e Gomes estão calafetando as portas dos armários.)
ANA – Não vão. Não me deixem só.

21
(Julio recolhe os restos de tijolos do buraco da parede, na área do cano e joga o entulho do
lado de fora da sala, no cômodo ao lado. Raul se aproxima e pega uma guimba de cigarro no
chão, no lixo, com a ponta da bengala. Letícia espreme uma espinha.)
ANA – Estou com frio. Estou com frio. Estou com frio.
(Raul cavuca algo que pensa ser uma caixa de fósforo, mas é a caixa de comprimidos de
Christian. Fecha a caixa, olha com intenção para dentro da sala onde estão e joga a caixa
longe, do lado de fora da sala. Blanca, como autômato, arranca tufos de cabelo da cabeça.
Carlos se aproxima.)
CARLOS – Blanca, seus cabelos. Lembre-se do que lhe disse.
SILVIA (para Carlos) – O que podemos fazer? A coitada está sofrendo muito.
(Alicia está cobrindo Leonora.)
LEONORA – Não agüento mais, doutor. Por que não me mata de uma vez?
CARLOS – Não diga bobagem. Passou muito bem esta noite. (volta-se para Edmundo) Os
analgésicos já são tão necessários quanto os alimentos. Não temos nem uma aspirina.
LEONORA – Não me deixe. Sua presença me reconforta. Se sairmos daqui e eu me curar,
quero ir para Lourdes. Prometa que me levará.
CARLOS – Prometo.
LEONORA – Vamos nos prostrar aos pés da Virgem. Porque é ela quem vai nos tirar daqui.
CARLOS – Não fale, não se emocione. Isso pode afetá-la.
LEONORA – Quando formos a Lourdes, quero que me compre uma imagem. Comprará?
(fecha os olhos, exausta. Carlos a acomoda nas almofadas.)
EDMUNDO – Carlos! (os dois homens se afastam. Edmundo leva-o até um armário, de onde
tira uma caixa que abre e apresenta a Edmundo)
CARLOS – Como você tem isto?
EDMUNDO – Nós o chamávamos de paraíso na terra. Nos reuníamos entre amigos. Passamos
horas inesquecíveis. (Francisco está por perto, e observa os dois.)
CARLOS – Por que não me disse antes?
EDMUNDO – Pelas circunstâncias. E se os outros souberem?
CARLOS – O que serviu para o prazer, pode servir para mitigar a dor. Isso tem laudanina,
codeína e morfina.
FRANCISCO – Morfina, onde? (afasta-se, e senta perto de Juana)
JUANA – O que era?
FRANCISCO – Não te interessa.
JUANA - O que estavam escondendo?

22
FRANCISCO - Vai provar quando estiverem dormindo.
(Gomes está limpando uma faca.)
ANA – Tenho fome.
JUANA – Silêncio. É demais. Um pouco de consideração.
(Blanca senta-se perto de Francisco. Ele sente o mau cheiro dela.)
FRANCISCO – Fique longe.
BLANCA – O que disse?
FRANCISCO – Que fique longe!
BLANCA – Como se atreve? Por que me ofende?
ÁLVARO – Devia ter vergonha de falar assim. Devemos cair com dignidade.
(Juana se aflige com o mau comportamento de Francisco.)
FRANCISCO – Por que se assusta com a verdade? Ela cheira mal. Como todos. Vivemos em
uma pocilga. Como porcos. Vocês me dão nojo. Eu os detesto.
JUANA – (para Blanca) Não ligue para ele. Está muito nervoso.
(Álvaro se aproxima de Lucía e Edmundo.)
ÁLVARO – Isso vai acabar muito mal, querida.
EDMUNDO – Desde criança é o que mais odeio... a grosseria, a violência, a sujeira... que são
agora nossas companheiras inseparáveis. (Álvaro toma a mão de Lucía entre as suas e a beija.)
É preferível a morte a esta promiscuidade.
(Ana delira, em hebraico. Semi-escuridão. Ela desperta, suada. A sala está vazia. Ouvem-se
ruídos. Ela parece um pouco melhor. A porta do armário se entreabre, e dele sai uma mão, que
se arrasta sozinha pelo chão. Ana a olha apavorada, enxuga o suor com o xale e o joga sobre a
mesa. A mão desaparece sob a mesa, e reaparece debaixo do xale. Aproxima-se dela. Ana pega
um objeto pesado para “matar” a mão. Persegue a mão munida do objeto. Coloca o peso
sobre a mão. Volta para o divã. O relógio bate as horas: 3h da madrugada. A mão começa a
subir pelo corpo de Ana, chegando até o seu pescoço. Ana se livra da mão estranguladora,
pega um punhal e tenta apunhalar a mão. Mudança de plano: ambiente iluminado, cheio de
pessoas. Alicia grita como se tivesse levado um golpe na mão. Ana está com o punhal entre as
mãos. Alicia chora.)
LETÍCIA - O que ela fez?
EDUARDO - Não percebe?
GOMES - Temos de prender as mãos dela.
SILVIA - Temos de tirá-la daqui.
GOMES - Chamem uma ambulância.

23
CARLOS - Está com muita febre. (para Letícia) Ponha compressa de água fria... na testa, e
troque a cada 5min.
BLANCA (consolando Alicia) - Já passou. Vão cuidar de você para que isso não se repita.
(Carlos tira da caixa de drogas embrulhada com um lenço uma bolinha que entrega a
Christian, abatido, na poltrona. Rita está perto.)
CHRISTIAN - É a 2a., doutor.
CARLOS - Mas melhorou a dor. Poderá dormir esta noite.
(Raul apaga o abajour. Eduardo entra sorrateiro no armário, onde Beatriz já o espera
deitada.)
EDUARDO - Que dia é hoje?
BEATRIZ - Como?
EDUARDO - Há quanto tempo estamos aqui? Mais de um mês, não é?
BEATRIZ - Nem tanto. Não resistiríamos sem comer.
EDUARDO - Parece que sempre estivemos aqui.
BEATRIZ - Sinto o mesmo.
EDUARDO - E que ficaremos sempre aqui... a menos que...
BEATRIZ – Que?
EDUARDO - Que fujamos juntos, que nos percamos nas sombras. Não responde?
BEATRIZ - Irei para onde você for.
(Noite. Todos dormem. FRANCISCO traz a caixa das drogas embrulhada num lenço para perto
de Juana.)
FRANCISCO - Olha, nunca imaginamos.
(Juana abre a caixa e cheira. Raul se aproxima, de gatinhas.)
RAUL - O que é isso?
(Francisco fecha a caixa. Juana volta a se deitar. Raul recua para sua “cama”. Alberto
desperta, sai do sofá sorrateiro e vai por cima de Letícia. Ela, dormindo, o espanta. Alberto
tenta outra, beija Rita, que acorda assustada.)
GOMES - O que está acontecendo?
RAUL - Silêncio.
RITA - Alguém me passou a mão.
ÁLVARO - O que houve?
RITA - Acho que estava sonhando.
CHRISTIAN (para Álvaro) - Não sou cego, senhor.
ÁLVARO - Que diabo está dizendo?

24
CHRISTIAN - Sua conduta não é digna.
RITA - Calma, está sendo ridículo.
ÁLVARO - Contenha sua língua.
(Alguém acende as luzes.)
CARLOS - Calma, senhores.
EDMUNDO - O que foi, agora?
CHRISTIAN - O coronel, como os ladrões, aproveita as sombras. Canalha! É melhor terminar
isso. Desafio-o a um duelo.
(De dentro do armário, Eduardo e Beatriz observam.)
ÁLVARO – Está certo.
GOMES - Que manicômio! Não se pode descansar!
RAUL - Sempre metido em confusão. É um sujo.
RITA - Está doente do estômago!
CARLOS - Isto é uma loucura. Acalmem-se e depois falem. Tudo menos brigar. É indigno de
nós. Lembrem-se de quem são. Como foram educados.
RAUL - Quero saber quem provocou isso.
GOMES - Saiba que conosco não se pode brincar mais.
EDMUNDO – Senhores, prefiro não responder.
RAUL - Até que nos esgote a paciência.
LUCÍA (para Rita) - Tente acalmá-lo. Explique.
RITA - Não vou perdoar nunca, Lucía. Fiquei muito ofendida.
ALICIA (para Álvaro) - Em vez de brigar, vamos comer.
ÁLVARO (empurrando Alicia no chão) - Me deixe em paz!
CARLOS - Álvaro, como é possível?
BLANCA - Todos, até os melhores, começam a perder a cabeça.
LEONORA – Por favor, tenham compaixão de mim.
CARLOS – Com todos os problemas, é claro, é difícil ficar calmo.
BLANCA - Não vejo nada claro.
ÁLVARO (se aproxima de Alicia) - Peço perdão a todos. Não entendo. Estava fora de mim.
Perdão. Perdão de novo.
EDMUNDO - Vou dar uma idéia. Espero que pareça adequada. Não acha que para evitar coisas
lamentáveis... as mulheres devem dormir de um lado da sala... e os homens do outro.
GOMES - Estamos entre cavalheiros.
RAUL - É um degenerado. Quer nos insultar.

25
LETÍCIA - Edmundo tem razão.
EDMUNDO - Acho que no bem de todos...
CARLOS – Edmundo, não continue falando... Não entende?
(Ouvem-se os balidos das ovelhas que circulam pela casa. Todos olham do umbral. O urso
também circula pela casa e faz sons. As ovelhas se aproximam. As pessoas fazem um cerco às
ovelhas.)

Cena 20 (Manhã. Exterior da casa, movimentado. Um padre compra balões de gás,


acompanhado de quatro crianças e paga ao vendedor, recebendo o troco.)
PADRE - Obrigado. Agora, já sabem. Muito cuidado. Vamos.
GUARDA - Aonde vão?
PADRE – É a família de Christian Galdi. Simplesmente para ver. Só para que as crianças vejam
a casa onde estão os pais.
GUARDA - Podem ir.
PADRE - Vamos.
UM VELHO - Pode entrar. Falar com eles se estiverem vivos... e contar a situação.
OUTRO - Tem certeza do que diz?
VELHO – Tire à prova.
OUTRO - Venham.
VELHO - Não quer ouvir minha proposta? Vamos chamar a imprensa. (O guarda se aproxima
dele) Os poderes públicos. Preciso ser ouvido. Tenho absoluta certeza que sei resolver o
assunto.
OUTRO (comentando com alguém) - Outro louco.
(Tumulto diante dos portões da casa. Um dos garotinhos, segurando seu balão de gás, é
estimulado pelas irmãs, padre e outros a seguir andando e conseguir entrar nos jardins da
casa.)
MENINA - Johnny, não fique parado!
PADRE - Por que parou? Continue.
MENINA - Ande, Johnny.
PADRE - O importante é que continue. Continue.
CIVIL - Continue, garoto.
(Johnny solta o balão, e volta para o grupo, correndo.)
PADRE - Por que não continuou? Pense nas crianças.
UMA SENHORA - Ande, tente outra vez!

26
PADRE - Vamos embora.
(O padre parte, com as crianças. O grupo se dispersa.)

Cena 21 (Sala de música. Fumaça. Estão fazendo um churrasco das ovelhas, usando os móveis
da casa. Gomes está quebrando mais alguns móveis. Muitos tossem. Gomes destrói o
violoncelo para aumentar a fogueira. Alicia corta as unhas dos pés.)
CARLOS - Se não quisermos descer ainda mais baixo... devemos manter a limpeza e a ordem.
Hoje organizaremos uma equipe de limpeza.
(Edmundo, com a cabeça enfaixada, caminha pela sala. Lucía, abraçada a Álvaro, o
intercepta, preocupada.)
LUCÍA - Como está?
EDMUNDO - Bem. É só a cabeça. (para Álvaro) Se não fosse você e Letícia. São uns
selvagens. (para Edmundo) Nunca agradecerei o bastante o que defendeu.
(Letícia passa baton. Ana, parecendo melhor, está ajoelhada com Blanca e Silvia.)
ANA - Tive um pressentimento. Antes de ir ao teatro aquela noite... ouvi uma voz que me dizia,
insistente: "Leve as chaves. Leve as chaves".
BLANCA - Chaves?
ANA - Objetos mágicos que podem abrir as portas do desconhecido. (tira o frango morto da
sua bolsa, dá uma pata para Blanca) Agora, Blanca, segure bem. Assim. (entrega outra pata
para Silvia) E você, Silvia, o contrário.
(Blanca segura a pata para cima, e Silvia para baixo. Ana segura as mãos de ambas e começa
a orar em hebraico.)
ANA – (em hebraico) Louvar-te-ei, ó adonai, entre os povos; cantar-te-ei entre as nações.
Declararei o teu nome, adonai, aos meus irmãos; louvar-te-ei, adonai, no meio da
congregação... Porque o malkhut é de adonai, e ele domina entre as nações.
(Enquanto oram, Raul passa o barbeador na perna. Gomes retira da tomada. Letícia se
aproxima de Edmundo, que está perto da última ovelha amarrada ao piano. Letícia arranca a
faixa de gaze da cabeça de Edmundo.)
ANA - Adonai, grande provedor e governador de todas as criaturas, tu que estás mais perto de
todas as coisas criadas, preenche-me com vigor e força.
LETÍCIA - Destino!
(Letícia entrega o punhal a Edmundo e venda os olhos da ovelha.)
ANA - Cura-me das moléstias do corpo, da mente e da alma. Cura os que são menos
afortunados do que eu, especialmente os que sofrem de doenças mortais que podem encurtar

27
suas vidas. Ó adonai, leva-me para mais perto de deus a cada dia. Concede-me a tua sabedoria,
para que eu possa lidar sabiamente com todas as coisas que colocaste sob os meus cuidados.
(joga algumas penas para cima) Não posso ler. Falta sangue inocente. Temos que esperar o
sacrifício do último cordeiro.
(Francisco está próximo aos armários e percebe sangue por baixo da porta. Vai até a irmã que
cochila.)
FRANCISCO - Juana?
JUANA - O que foi?
FRANCISCO - Veja. No armário!
(Juana abre o armário. Olha para dentro. Afasta Francisco.)
JUANA - Senhores! Amigos!
GOMES - O que foi?
JUANA - Eduardo, Beatriz... Doutor! Aí dentro.
(Carlos abre o armário. Vários se aproximam.)
GOMES - O que acontece?
(Silvia tem um ataque de riso, quando vê.)
CARLOS - Leandro, coronel, ajudem-me. Retirem-se todos.
JULIO - Como ela está?
CARLOS - Não importa. Retirem-se!
(Eduardo e Beatriz, muito calmos, deitados, mortos.)

Cena 22 (Sala. Todos caminham, trôpegos, sem parar, como num passeio. Um pequeno grupo
se aproxima do arco. No outro aposento, o urso faz sons e escala uma coluna da sala. O urso
passeia pela sala. Francisco tem um ataque de riso.)
GOMES - O que foi?
FRANCISCO – Estava pensando que cara faria se o empurrasse... e o enfiasse no salão.
GOMES - Atreva-se e o mato!
(Francisco continua rindo. Christian grita para o outro cômodo, como se pedisse socorro.)
CHRISTIAN – Adonai!
LUCÍA - O que significa?
ÁLVARO - Deve ter perdido o pouco juízo que lhe restava.
CARLOS - É o grito maçom de socorro. Ao ouvi-lo, outro maçom deve acudir o que grita. Mas
aqui, não sei se adianta.
(Alberto levanta-se, ao ouvir o pedido. Parece fora de si. Vai até Christian.)

28
ALBERTO - Christian, chegou o momento. A palavra impronunciável.
CHRISTIAN - Sim.
ALBERTO - "H".
CHRISTIAN - O quê?
ALBERTO - "H".
CHRISTIAN - "H".
ALBERTO – “O”.
(O urso caminha pela sala. O pequeno grupo se dispersa. Francisco continua rindo, passa
atrás de Gomes e o empurra para a outra sala. Gomes lhe dá um bofetão. Juana ataca Gomes.
Algumas mulheres vêm defendê-la, mas Raul as empurra. Juana e Gomes caem no chão,
atracados. Carlos, Álvaro e Julio os separam. Francisco segue rindo. Seu riso vira choro.)

Cena 23 (Leonora dorme, perto dela Silvia. Francisco está sério. O relógio bate as horas.
Todos deitados, cansados, abatidos. Ouve-se um grito de mulher, mas ninguém se abala. São
sonhos, delírios. As vozes são em off, enquanto personagens dormem.)
LEONORA - Fechem as janelas! Salve-se quem puder!
RAUL - Em um momento, haverá milhões no salão.
(Grito lancinante de mulher.)
RITA - Já é tarde, filho. Venha deitar.
JOHNNY - Não tenho sono.
ANA - Que multidão!
VOZ DE HOMEM - Morreu o pecado mortal. (Canto gregoriano)
(Letícia está acordada, observando Edmundo também acordado. Ruído de serra, imagens de
Raul entre nuvens. Gemido de mulher.)
BLANCA - Filho de minha alma! Nunca mais o verei!
(Imagem de cume de monte.)
HOMEM - Veja, é o cume.
ANA - O papa!
HOMEM - Sim. Solene em sua majestade! Um guerreiro.
(Trovões. Um violoncelo sendo serrado. Raul apavorado.)
RITA - Vou ajeitá-lo. Boa noite, filho.
JOHNNY - Boa noite, mamãe.

29
Cena 24 (Sala. Francisco engatinha, abre um armário, está à procura de algo. Encontra a
caixa de drogas. Está vazia. Ele a joga no lixo, à margem do arco.)

Cena 25 (Externa. Noite. Carros. Curiosos, parentes,autoridades, os criados da casa.)


PABLO - Nada. O mesmo de sempre. Parece um túmulo.
COZINHEIRO JOVEM - E a bandeira amarela?
PABLO - Colocaram a casa em quarentena, como se fosse uma epidemia.
COZINHEIRO JOVEM - Prefiro o tifo.
CAMILA – Pablo!
PABLO – Caramba! O que fazem aqui?
CAMILA - O mesmo que você, cozinheiro. Alguma notícia?
COZINHEIRO JOVEM - Parece que morreram todos.
COPEIRA - Acredita?
COZINHEIRO JOVEM - Dizem que chega na rua um ar de podridão.
PABLO - Talvez tudo o que deixamos na cozinha tenha apodrecido.
(Confusão. Os policiais prestes a atirar no urso, que ronda pelo jardim.)
LUCAS - Não atirem! Não o matem! É manso. Trabalho nesta casa.
(Na outra calçada, os dois copeiros, como espiões.)
COPEIRO 1 - O cozinheiro e as criadas. Pediu que viessem?
COPEIRO 2 - Eu? Nenhuma palavra.
COPEIRO 1 - E o que fazem aqui?
COPEIRO 2 - Não sei.
COPEIRO 1 - Vamos saber. Deve haver alguma novidade.

Cena 26 (Sala. Raul toca nos ombros de Gomes, faz um sinal para Juana. Juana confirma,
coloca a mão sobre o ombro de Francisco. Os quatro se aproximam, num canto. Parece um
levante. Julio está dobrando panos. Em outro canto, Blanca, Silvia e Leonora confabulam. O
doutor Carlos perambula pela sala, desconfiado do motim que se aproxima.)
BLANCA - Raul disse que morrendo o senhor Nóbili, isto termina.
SILVIA - Morta a aranha, a teia se desfaz.
LEONORA - Se tivesse dignidade saberia o que fazer.
BLANCA - Escondeu-se com Letícia.
CARLOS - Peço que calem-se. É o mais decente a fazer. (para o quarteto que sussurra) E os
senhores, falem em voz alta para que saibamos o que tramam.

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RAUL - Queremos exterminar com ele.
CARLOS - Exterminar com ele? Ficaram loucos? É irracional!
FRANCISCO - Não queremos razões, queremos sair daqui.
ÁLVARO (empurrando Francisco) - Se querem briga, vão achar.
(Álvaro está à frente de um cortinado, parecendo proteger um forte.)
GOMES - Álvaro, afastem-se! Nada queremos com vocês.
JUANA - A necessidade justifica a nossa ação!
LEONORA - Matem-no!
RITA – Matem!
(Gritaria, confusão.)
CARLOS - Ficaram loucos!
ANA (abraçada a Alicia) - Matem o doutor também! Por que ele se opõe?
CARLOS - Pensem nas conseqüências do que farão. Este atentado não será o único. Pensem
que o fim da dignidade humana é converterem-se em bestas.
RAUL - Afaste-se ou não respondo pelo que pode acontecer!
GOMES - Chega de conversa! Peguem-no!
(Briga coletiva. Raul com Carlos; Francisco com Álvaro; Gomes com Julio. Juana se joga por
cima de Álvaro, querendo livrar Francisco.)
CARLOS - Chega, Raul! Não complique mais as coisas!
RAUL – Mato-os os dois.
(Christian pega um punhal sobre a mesa. Rita tenta impedi-lo de fazer algo. A cortina se abre:
saem Edmundo e Letícia. Confusão geral. Edmundo fala, parece a abertura do pano num
teatro.)
EDMUNDO – Senhores, a violência não é necessária. É inútil lutar por algo que é tão fácil
conseguir. (beija a mão da Letícia) Obrigado, Letícia.
(Edmundo atravessa a sala, vai até um pequeno armário, tira uma pistola e guarda no bolso;
caminha para o sacrifício.)
LETÍCIA - Edmundo, não se mexa.
CARLOS - O que foi, Letícia?
LETÍCIA - Não sei. Ou melhor, sim. É tão extraordinário. Quanto tempo estamos aqui? Não
sei, perdi a conta. Mas as mudanças que ocorreram em cada um... durante esta horrível
eternidade... Pensem nas mil combinações de xadrez que fomos... inclusive os móveis.
Mudamos de lugar cem vezes. Agora, nos encontramos todos... pessoas e móveis na posição e

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lugar exatos... em que estávamos naquela noite. Ou é outra alucinação? Diga, Álvaro!
Digam-me todos.
CHRISTIAN - Realmente, eu estava aqui. E você a meu lado, Rita. E à minha esquerda?
SILVIA – Eu, igual a agora.
ALICIA - Sim, neste canapé estávamos. E eu estava com sua mão entre as minhas. (pega a mão
de Alberto, quase inconsciente)
ALBERTO - Você se lembra?
BLANCA - Depois do jantar, sentei-me ao piano, como agora. E você estava aí.
ÁLVARO - É verdade.
RAUL - Está bem. Mas o que importa?
LETÍCIA - Estava tocando, Blanca. Lembra o quê?
BLANCA - Perfeitamente. O que toquei foi uma sonata de Paradis.
LETÍCIA - Toque só o final. Não me ouviu? Toque.
(Blanca vai tocar.)
JUANA (a Francisco) - Você estava de pé, atrás de mim. Levante-se. (Francisco levanta-se.
Blanca toca. Letícia debruça-se sobre o piano. Todos ali, onde estavam quando ela tocou, sem
esperança, desolados, cansados.)
LETÍCIA - Aplaudiram. Blanca, você descia daí. Alguns amigos vieram. Quem começou a
falar? Façam um esforço de memória. Lembrem.
SILVIA (levanta-se e vai até Blanca) - Interpretação deliciosa.
LETÍCIA - Responda, Blanca. O que você respondeu?
BLANCA – Sim, sim...
EDMUNDO - É pena não termos um cravo... teria sido perfeito.
RAUL - Agora algo de Scarlatti, Blanca, por favor.
LETÍCIA - É muito tarde para continuar tocando, não é Blanca? São 3 da manhã.
BLANCA - Peço que me desculpem. É tarde, estou cansada.
LETÍCIA - Todos estamos. É muito tarde. Queremos ir embora. (Todos se agitam. Parecem um
milagre as palavras de Letícia. Todos se levantam, decididos a ir embora. Histeria coletiva.
Letícia, parada sob o arco, chama a todos) Sigam-me todos! Sigam-me!
(Letícia consegue sair, todos a seguem, trôpegos, no escuro do outro aposento. Alguém acende
a luz.)
JULIO - Por aqui, senhores. Por aqui. (saem todos os vivos)

Cena 27 (Externa da casa. Várias pessoas. Pablo passa uma bebida para Copeiro 1, que bebe.)

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COPEIRO 1 - É da casa?
PABLO - Restaram duas garrafas.
(A luz do portal se acende.)
LUCAS - Vejam! Luz!
PABLO - Camila, venha! Olhe, a luz. São eles!
CAMILA - Virgem Santa!
PABLO - Vamos entrar!
COPEIRO 1 - Entre você antes.
(Cozinheiro jovem se precipita, entra. Outros o seguem. Os lá de dentro começam a sair. Os
grupos se cruzam.)

Cena 28 (Igreja. Canto gregoriano. Missa. Vários fiéis. Termina a celebração. Fiéis [alguns
convidados da jantar] começam a se retirar. Os três padres deixam o altar, não conseguem sair
da nave para os fundos da igreja. Uma força invisível impede que eles passem pelo umbral da
porta.)
PADRE 1 - Por que não saímos depois dos fiéis?
PADRE 2 - Depois? Por quê? Pois...
(Confusão entre os fiéis. Parece que não estão conseguindo sair da igreja.
PADRE 3 (o mesmo que foi com as crianças à casa) - Padre, venha ver. Está acontecendo
alguma coisa.
FIEL 1 - Devíamos esperar que todos saiam.
FIEL 2 - Você quem diz.
FIEL 3 - Esqueci meu missário.
FIEL 4 - Por que não saem?
FIEL 5 - Deixem-me passar.
FIEL 6 - Eu lhe explico.
FIEL 7 - Saia você antes.
FIEL 8 - Não tenho pressa.
FIEL 9 - Essa é boa. Vamos.
(Os padres se olham. Ninguém sai.)

Cena 29 (Exterior da igreja. Fade-out. Os sinos tocam. Bandeira da quarentena na igreja.


Tiroteio na rua. Policiais contra civis. Cavalaria. Confusão geral. Muitas ovelhas entram no

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átrio da igreja. Dirigem-se ao interior do templo, como se se oferecessem em sacrifício. Gritos
lá dentro.)

FIM

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