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O URSO - ANTON CHEKHOV

Apresentação

Mais uma Oficina de Tradução da Casa Guilherme de Almeida concluída. Desta vez, o trabalho
coletivo envolveu a tradução da peça em um ato O urso (1888), de Anton Chekhov, que teve
como base duas traduções disponíveis em inglês. Considerando algumas divergências entre
esses dois textos, procuramos resgatar – recorrendo ao melhor bom senso – o (provável)
sentido do original russo. Uma vez que nosso conhecimento da língua russa é inexistente e
seguimos as traduções inglesas, esperamos ter obtido mais acertos do que erros nessa
empreitada de ‘terceira’ via.

A peça de Chekhov envolve uma conturbada relação entre uma viúva, senhora Popov, e um
proprietário de terras, senhor Smirnov, que certo dia a visita para cobrar uma antiga dívida
deixada pelo senhor Popov. Um crescente entrevero entre ambos, mediado por um criado,
acaba tendo final feliz.

Trazer a obra dramática de Chekhov ao alcance do leitor brasileiro foi o principal objetivo dessa
Oficina de Tradução, somado à experiência sempre enriquecedora de praticar tradução literária
em seus vários gêneros. (Começamos com uma pequena coletânea de contos; depois foi a vez
do romance Ruth Hall; retornamos aos contos, desta vez reunindo textos de humor, ironia e
sátira; em seguida passamos para a tradução de peças teatrais, incluindo, além de O urso, a
peça de Oscar Wilde, O leque de Lady Windermere.)

Um dos maiores e mais influentes contistas da literatura universal, Chekhov destacou-se


também por suas peças, entre as quais incluem-se A gaivota, As três irmãs, Tio Vânia e O
jardim das cerejeiras.

Esperamos que leitor encontre em O urso, uma das mais bem-sucedidas e encenadas peças
curtas da literatura russa, momentos prazerosos e reveladores da alma humana.

Alzira Allegro
Coordenadora da Oficina

Tradutores participantes:
Alzira Leite Vieira Allegro
Amanda Moura da S. Santos
Carlos David de O. Soares
David dos Santos Silva
Dóli de Castro Ferreira
Eliana Stella P. Pires
Maria Heloisa M. Parolim Gardil
Maria Leonor da Costa Cione
Thelma Squillante

O URSO

Comédia em um ato

Anton Chekhov

(1860-1904)

PERSONAGENS

HELENA IVANOVNA POPOV, jovem viúva, dona de uma propriedade rural

GRIGORI STEPANOVITCH SMIRNOV,proprietário rural

LUKA, criado da senhora Popov

Um jardineiro
Um cocheiro

Vários serviçais

CENÁRIO

Propriedade da senhora Popov

PERÍODO

Final do século XIX

(Sala de visitas bem mobiliada na residência da senhora Popov, que guarda luto profundo pelo
finado marido. Sentada em um sofá, ela contempla fixamente um retrato. Luka também está
presente.)

LUKA

Isto não está certo, madame. A senhora está se acabando! A criada e a cozinheira estão
colhendo frutas silvestres no campo; tudo o que respira está contente da vida; até o gato sabe
ser feliz – corre de um lado pra outro no pátio, caçando passarinhos – e a senhora enfurnada
dentro desta casa, como se estivesse num convento. Pra dizer a verdade, nos meus cálculos,
faz um ano inteirinho que a senhora não sai de casa.

SENHORA POPOV

E nunca sairei daqui. – Por que deveria? Minha vida acabou. Ele jaz em seu túmulo e eu entre
estas quatro paredes. Ambos mortos.

LUKA
Lá vem a senhora de novo! Não gosto nem um pouco de ouvir isso; é terrível! Nikolai
Michailovitch está morto; foi a vontade do Todo-Poderoso; ele ganhou a paz eterna. A senhora
já chorou muito a morte dele; agora basta! Já está na hora de parar. Não dá pra ficar de luto e
chorando pra sempre! Minha mulher morreu faz alguns anos. Fiquei de luto por ela e chorei um
mês inteiro – depois acabou. Será que a gente precisa ficar lamentando pra sempre? Isso é
mais do que seu marido merece! [Suspira.] A senhora se esqueceu dos vizinhos. Não sai mais
de casa e não recebe ninguém. Com o perdão da palavra, madame, estamos vivendo feito
aranhas que nunca veem a abençoada luz do dia. Os ratos corroeram todo o meu uniforme. A
senhora está agindo como se não existisse mais gente boa nesse mundo! Mas isso não é
verdade! A vizinhança está cheia de gente boa. Tem um regimento aquartelado em Riblov –
cheio de oficiais... tudo uma beleza! Toda sexta-feira tem baile e a banda militar toca todos os
dias. Ah, minha prezada... minha cara senhora..., jovem e bonita como é, se ao menos
procurasse se divertir um pouco... vá viver a vida! A beleza não dura pra sempre. Dez anos
passam rápido; saia e vá conhecer os oficiais! Se não fizer isso agora, depois será muito
tarde...

SENHORA POPOV[resoluta]

Por favor, não vamos mais tocar nesse assunto! Você bem sabe que desde a morte de Nikolai
Michailovitch minha vida perdeu o sentido. Você acha que eu estou viva, mas é só aparência,
compreende? Ah! Que a alma de meu finado marido possa ver como eu o amo! Eu sei que não
é nenhum segredo para você... muitas vezes ele foi cruel e injusto comigo; e também não foi
fiel..., mas eu serei fiel até o túmulo e mostrarei a ele como sou capaz de amar. Lá, no Além,
ele me verá como a mesma mulher que fui até sua morte.

LUKA

Em vez de ficar dizendo todas essas palavras, a senhora devia dar um passeio no jardim ou
mandar atrelar o Tobby ou o Welikan e ir visitar seus vizinhos.

SENHORA POPOV [choramingando]

Oh! Oh!

LUKA

Madame, minha cara madame, o que está acontecendo? Em nome de Deus!


 

SENHORA POPOV

Ele gostava tanto do Tobby! Era seu cavalo preferido quando ia visitar os Kortschagins ou os
Vlassovs. Que cavaleiro maravilhoso ele era! E com que elegância ele controlava as rédeas!
Tobby, Tobby – mande dar a ele uma ração extra de aveia hoje!

LUKA

Sim, madame. [A campainha toca alto.]

SENHORA POPOV[estremece]

Quem será? Não estou para ninguém.

LUKA

Pois não, madame. [Ele sai, pelo centro.]

SENHORA POPOV[contemplando o retrato de Nikolai]

Você verá, Nikolai, como sou capaz de amar e perdoar! Meu amor morrerá somente quando
meu pobre coração parar de bater. [Sorri por entre as lágrimas.] E você, não se envergonha?
Continuo sendo uma esposa fiel e bondosa. Enclausurei-me aqui e permanecerei fiel até a
morte; e você... você... você não se envergonha, meu querido monstro! Brigava comigo,
deixava-me sozinha durante semanas... [Lukaentra, muito agitado.]

LUKA

Madame, lá fora tem um homem; ele está insistindo que quer ver a senhora...

SENHORA POPOV
Mas você não disse a ele que desde a morte de meu marido não recebo ninguém?

LUKA

Eu disse, sim, mas ele não quer saber; diz que é um assunto urgente.

SENHORA POPOV

Não estou para ninguém!

LUKA

Foi o que eu disse pra ele, mas ele é um grosseirão; foi logo xingando e forçando a entrada na
sala. Agora, ele está na sala de jantar.

SENHORA POPOV [agitada]

Pois muito bem. Traga-o aqui! Quanta insolência! [Luka sai, pelo centro.]

SENHORA POPOV

Como as pessoas são inconvenientes! O que querem de mim? Por que vêm perturbar meu
sossego? [Suspira.] É... acho que eu deveria ir para um convento. [Pensativa.] É isso mesmo –
um convento. [Smirnov entra, seguido de Luka.]

SMIRNOV [para Luka]

Seu idiota, você faz muito barulho! Você é um imbecil! [Dá-se conta da Senhora Popov...adota
um tom educado.] Madame, tenho a honra de me apresentar: Tenente da Artilharia, reformado,
proprietário rural, Grigori Stepanovitch Smirnov! Sinto-me obrigado a incomodá-la a respeito de
um assunto extremamente importante.

 
SENHORA POPOV[sem estender-lhe a mão]

O que o senhor deseja?

SMIRNOV

Seu finado marido, que tive a honra de conhecer, deixou-me duas promissórias num total de
mil e duzentos rublos. Como tenho de pagar amanhã os juros de um empréstimo do Banco
Agrário, venho pedir-lhe, madame, que a senhora pague hoje o que me deve.

SENHORA POPOV

Mil e duzentos rublos… e a que se refere essa dívida de meu marido para com o senhor?

SMIRNOV

Eu lhe vendi aveia.

SENHORA POPOV[com um suspiro, dirige-se a Luka]

Luka, não se esqueça de dar a Tobby uma porção extra de aveia. [Luka retira-se.]

SENHORA POPOV [para Smirnov]

Se Nikolai Michailovitch tinha uma dívida para com o senhor, eu certamente pagarei, mas
infelizmente não tenho essa quantia hoje. Amanhã, meu administrador retornará da cidade e
pedirei a ele que pague o que lhe é devido, mas até lá não posso atender ao seu pedido. Além
do mais, hoje faz justamente sete meses que o meu marido faleceu, e não estou disposta a
discutir questões financeiras.

SMIRNOV

Eeu estou disposto a dizer um lindo adeus à vida, se não puder pôr as mãos nesse dinheiro
amanhã. Vão confiscar as minhas terras!
 

SENHORA POPOV

O senhor terá seu dinheiro depois de amanhã.

SMIRNOV

Preciso do dinheiro hoje, não depois de amanhã!

SENHORA POPOV

Sinto muito, mas hoje é impossível.

SMIRNOV

E eu não posso esperar até depois de amanhã.

SENHORA POPOV

Mas o que posso fazer se não tenho o dinheiro?

SMIRNOV

Então a senhora está me dizendo que não pode pagar?

SENHORA POPOV

Não, não posso.

SMIRNOV
Humm! É sua última palavra?

SENHORA POPOV

É minha última palavra.

SMIRNOV

Tem certeza?

SENHORA POPOV

Tenho certeza.

SMIRNOV

[Dando de ombros.] E ainda esperam que eu tolere isso tudo e fique calmo! O coletor de
impostos que acabei de encontrar na estrada me perguntou por que estou sempre irritado. Por
que, em nome de Deus, eu não haveria de estar? Preciso muito desse dinheiro; estou com a
corda no pescoço. Ontem, pela manhã, saí de casa e visitei cada um dos meus devedores. Se
pelo menos um deles tivesse pagado o que me deve! Já fiz tudo o que pude! Só mesmo o
diabo sabe em que raios de espelunca passei a noite: num cômodo com um barril de vodca! E,
agora, quando finalmente chego aqui, a setenta verstas de casa, esperando receber um
dinheirinho, tudo o que ouço a senhora dizer é que não está “disposta”. – Por que eu não
deveria me exasperar?

SENHORA POPOV

Pensei ter deixado bem claro que quando meu administrador voltar da cidade o senhor terá o
seu dinheiro.

SMIRNOV
Não vim aqui para falar com o seu administrador; vim para falar com a senhora. Com o perdão
da palavra, que diabos tenho eu que ver com o seu administrador?

SENHORA POPOV

Francamente, meu senhor, não estou habituada a esse tipo de linguajar e nem a esses modos
grosseiros! Não tenho mais nada a tratar com o senhor. [Ela se retira, pela esquerda.]

SMIRNOV

Que tal isso? Não estou “disposta”! Já faz sete meses que o marido morreu! Tenho ou não
tenho que pagar os juros? Repito a pergunta: tenho ou não tenho que pagar os juros? O marido
está morto e coisa e tal; o administrador... que o diabo o carregue... está viajando sei lá por
onde. Agora, me diga: o que devo fazer? Escapar dos meus credores num balão? Ou bater a
cabeça contra a parede? Procuro Grusdev e ele manda dizer que “não está em casa”;
Iaroshevitch simplesmente se escondeu; briguei com Kurisin e quase o atirei pela janela;
Masutov está doente, e esta mulher não está “disposta”! Nenhum deles quer me pagar! E tudo
porque fui gentil demais com eles, porque sou um choramingas, um moleirão! Fui sempre um
coração mole. Mas vocês não perdem por esperar! Ninguém vai me fazer de bobo; para o
inferno todos! Vou ficar aqui e não me arredo daqui enquanto ela não me pagar! Diabos! Que
ódio! Estou furioso! Todos os músculos do meu corpo estão tremendo de tão furioso que estou!
Mal consigo respirar! Estou passando mal! [Grita.] Criado! [Lukaentra.]

LUKA

O que o senhor deseja?

SMIRNOV

Traga-me um Kvas ou uma água! [Luka sai.] Bem, o que fazer? Ela não tem o dinheiro aqui?
Que tipo de lógica é essa? Um camarada está com a corda no pescoço, precisa de dinheiro,
está a ponto de se enforcar e ela não vai pagar porque não está “disposta” a discutir questões
financeiras. Típica lógica feminina! É por isso que jamais gostei de falar com mulheres e é por
isso que não gosto nem um pouco de fazer isso agora. Prefiro sentar-me num barril de pólvora
a falar com uma mulher. Raios! Estou fervendo de ódio! Esse assunto já está me dando nos
nervos! Basta eu ver uma criatura romântica como essa, mesmo que de longe, e fico tão
furioso que começo a suar frio de tanto ódio! Isso é o bastante para fazer alguém gritar por
socorro! [Entra Luka.]
 

LUKA [servindo a água]

A madame não está se sentindo bem e não quer recebê-lo.

SMIRNOV

Desapareça da minha frente![Lukaretira-se.] Não está se sentindo bem e não quer ver
ninguém! Pois muito bem! Não precisa. Também não verei ninguém! Vou me sentar e ficar aqui
até receber meu dinheiro. Se ela passar uma semana indisposta, vou ficar aqui uma semana.
Se passar um ano, vou ficar aqui um ano. Com o céu por testemunha, vou conseguir o
dinheiro! Suas lamúrias não me atingem... nem suas covinhas. Conheço muito bem essas
covinhas! [Grita pela janela.] Simon, desatrele os cavalos! Vamos demorar para ir embora.
Ainda vou ficar aqui por um tempo. Diga lá no estábulo para darem uma ração de aveia a eles.
O cavalo da esquerda enroscou-se na rédea novamente. [Caçoando dele.] Pare! Eu lhe mostro
como fazer. Pare! [Afasta-se da janela.] Que situação horrível! Um calor insuportável, sem
dinheiro, não dormi a noite passada, e ainda por cima… vestida de luto e “não está disposta”.
Ai! Que dor de cabeça! Acho que vou beber alguma coisa. É isso mesmo! Preciso de uma
bebida. [Chamando.] Criado!

LUKA

O que o senhor deseja?

SMIRNOV

Traga-me alguma coisa para beber [Lukasai. Smirnov senta-se e examina suas roupas.] Droga!
Que bela figura! Não há como negar. Cheio de poeira, botas sujas, sem banho, despenteado,
palha no colete... provavelmente a madame me tomou por um salteador. [Boceja.] Foi um
pouco indelicado de minha parte me apresentar neste estado. Ah! Ora bolas! Não estou
prejudicando ninguém. Não estou aqui como convidado. Estou aqui como credor. E credores
não precisam de nenhum traje especial.

LUKA [entrando com um copo]

O senhor é muito atrevido!


 

SMIRNOV [irritado]

            O que foi que você disse?

LUKA

SMIRNOV

Com quem pensa que está falando? Cale-se!

LUKA [irritado]

Que bela trapalhada! E esse sujeito não vai embora! [Retira-se.]

SMIRNOV

Deus do céu! Que ódio! Estou com tanto ódio que poderia fazer o mundo virar pó! Estou até
passando mal! Criado! [A Senhora Popov entra, cabisbaixa.]

SENHORA POPOV

Meu senhor, na solidão em que vivo, desacostumei-me da voz humana; não suporto quando
falam em voz tão alta. Peço-lhe, por favor, que não perturbe o meu sossego.

SMIRNOV

Pague-me o que me deve e irei embora.

SENHORA POPOV
Já lhe disse claramente uma vez, em sua própria língua nativa, que não tenho esse dinheiro
comigo agora; espere até depois de amanhã.

SMIRNOV

Eu também já tive a honra de informá-la, em sua própria língua nativa, que preciso do dinheiro
hoje, não depois de amanhã. Se a senhora não me pagar hoje, serei obrigado a me enforcar
amanhã.

SENHORA POPOV

Mas o que posso fazer, se não tenho esse dinheiro?

SMIRNOV

Quer dizer então que a senhora não vai me pagar imediatamente? É isso?

SENHORA POPOV

Não posso!

SMIRNOV

Então vou ficar sentado aqui até conseguir o dinheiro. [Ele se senta.] A senhora vai me pagar
depois de amanhã? Ótimo! Fico aqui até depois de amanhã. [Levanta-se de um pulo.]
Pergunto-lhe: tenho ou não tenho que pagar os juros amanhã? Ou a senhora acha que estou
brincando?

SENHORA POPOV

Meu senhor, eu lhe imploro, não grite! Não estamos em um estábulo!

 
SMIRNOV

Não estou falando de estábulos; estou lhe perguntando se tenho ou não tenho que pagar os
juros amanhã.

SENHORA POPOV

Definitivamente, o senhor não sabe como tratar uma dama.

SMIRNOV

Ah, sim, sei muito bem!

SENHORA POPOV

Não, o senhor não sabe. O senhor é uma pessoa mal-educada e grosseira. Pessoas
respeitáveis não se dirigem a uma dama dessa forma.

SMIRNOV

Que coisa extraordinária! Como é que a senhora deseja que lhe falem? Quem sabe em
francês! Madame, je vous prie! Perdoe-me por tê-la aborrecido. O dia está tão agradável hoje!
[Faz uma reverência profunda e cerimoniosa, com ar de zombaria.]

SENHORA POPOV

Não acho a menora menor graça! É vulgar demais!

SMIRNOV [imitando-a]

Não acha a menorgraça? É vulgar demais? De modo algum! Não sei como me comportar em
companhia de senhoras! Madame, no decorrer de minha vida, conheci mais mulheres do que a
senhora já viu pardais. Três vezes duelei por elas, doze eu rejeitei e nove me rejeitaram. Houve
um tempo em que banquei o tolo, usei linguagem doce, curvei-me e me anulei. Amei, sofri,
suspirei para a lua, derreti-me em tormentos de amor. Amei com paixão, amei loucamente,
amei em todos os sentidos, tagarelei como uma matraca sobre a emancipação feminina,
sacrifiquei metade da minha fortuna por conta de ternas paixões, mas agora o diabo sabe que
foi o bastante. Este seu obediente servo não se deixará mais conduzir pelo cabresto. Basta!
Olhos negros, olhos apaixonados, lábios de coral, covinhas nas bochechas, sussurros à luz do
luar, suspiros suaves e discretos... por tudo isso, madame, eu não daria um copeque! Não
estou me referindo à senhora em especial, mas às mulheres em geral; da mais insignificante à
mais notável, são convencidas, hipócritas, tagarelas, odiosas, dissimuladas da cabeça aos pés;
vaidosas, mentirosas até o último fio de cabelo; mesquinhas, cruéis, donas de uma lógica
ensandecedora, e [Agride a própria testa com um soco.] quanto a isto, queira perdoar minha
franqueza, mas um pardal vale dez dessas filósofas de saia que mencionei. Quando um
homem se encontra diante de uma dessas criaturas românticas, imagina estar diante de um ser
sagrado; um ser tão maravilhoso que um único alento seu é capaz de dissolver o pobre coitado
num oceano repleto de encantos e delícias; mas se ele olhar dentro de sua alma... não há nada
ali a não ser um crocodilo qualquer. [Pega uma poltrona e quebra-a em duas partes.] Mas o
pior de tudo é que esse crocodilo imagina ser uma obra-prima da criação; acha que tem o
monopólio de todas as doces paixões. Que o diabo me enforque de ponta-cabeça se há algo
que se possa amar nas mulheres! Quando uma mulher está apaixonada, tudo que ela sabe
fazer é reclamar e se debulhar em lágrimas. E se o homem sofre e se sacrifica, ela se mostra
indiferente, presunçosa e tenta conduzi-lo pelo cabresto. A senhora teve o infortúnio de nascer
mulher e naturalmente conhece a natureza feminina; diga-me, sinceramente: em toda sua vida,
a senhora conheceu uma mulher que fosse realmente honesta e fiel? Nunca! Só as velhas e as
decrépitas são honestas e fiéis. É mais fácil encontrar um gato de chifres ou um corvo branco
do que uma mulher fiel!

SENHORA POPOV

Mas permita-me perguntar-lhe: então, quem é honesto e fiel no amor? Os homens, por acaso?

SMIRNOV

Claro!Os homens! Sem dúvida alguma!

SENHORA POPOV

Os homens! [Ri com sarcasmo.] Os homens! Honestos e fiéis no amor! Vejam só! Temos
uma grande novidade aqui! [Em tom amargo.] Como é que o senhor pode afirmar tal coisa? Os
homens – honestos e fiéis! Já que estamos falando disso, posso dizer também que de todos os
homens que conheci, meu finado marido foi o melhor; amei-o intensamente, com toda a minha
alma, como só uma mulher jovem e razoável o faria; dei a ele minha juventude, minha
felicidade, meu destino, minha vida. Eu o idolatrei como uma selvagem. E o que aconteceu?
Ele, que era o melhor dos homens, me traiu de todas as formas possíveis. Depois de sua
morte, encontrei sua escrivaninha repleta de cartas de amor. Em vida, deixava-me sozinha por
meses a fio... é terrível pensar nisso... ele cortejava outras mulheres descaradamente na minha
presença, gastava meu dinheiro e zombava de meus sentimentos... e, apesar de tudo, eu
confiava nele e lhe era fiel. Mais do que isso: ele está morto e ainda lhe sou fiel. Enterrei-me
dentro destas quatro paredes e vou usar luto até o túmulo.

SMIRNOV [com uma risada desrespeitosa]

Luto! Por quem a senhora me toma? Como se eu não soubesse por que a senhora usa essa
capa preta e por que se enterrou dentro destas quatro paredes! Grande segredo! Que
romântico! Quem sabe um cavaleiro ainda há de passar pelo seu castelo, mirar as janelas e
pensar consigo mesmo: “Aqui vive a misteriosa Tamara, que, por amor ao marido, enterrou-se
entre quatro paredes”. Ah! Conheço muito bem essas artimanhas!

SENHORA POPOV [levantando-se de um salto]

Como é que é? O que o senhor quis dizer com isso?

SMIRNOV

A senhora enterrou-se viva aqui dentro e, no entanto, não se esquece de empoar o nariz!

SENHORA POPOV

Como ousa falar comigo dessa maneira?

SMIRNOV

Por gentileza, não grite comigo! Não sou seu administrador. Permita-me dar nome aos bois.
Não sou mulher e estou acostumado a dizer o que penso. Portanto, peço-lhe a gentileza de
não gritar.

 
SENHORA POPOV

Não sou eu quem está gritando! É o senhor! Por favor, retire-se! Eu lhe imploro!

SMIRNOV

Pague-me o que me deve e irei embora.

SENHORA POPOV

Não vou lhe pagar!

SMIRNOV

Não vai? A senhora não vai me pagar?

SENHORA POPOV

Não me importa o que o senhor faça. Não vai conseguir um copeque de mim! Retire-se!

SMIRNOV

Como não tenho o prazer de ser seu marido nem seu noivo, por favor, não faça escândalo.
[Senta-se.] Não suporto escândalos.

SENHORA POPOV [enfurecida]

O senhor vai se sentar?

SMIRNOV

Já me sentei.
 

SENHORA POPOV

Queira fazer a gentileza de se retirar.

SMIRNOV

Quero odinheiro.

SENHORA POPOV

Não quero conversa com homens insolentes! [Pausa.] Não vai se retirar?

SMIRNOV

Não.

SENHORA POPOV

Não?

SMIRNOV

Não.

SENHORA POPOV

Pois, então, muito bem. [Toca a sineta. Entra Luka.]

SENHORA POPOV
Luka, conduza este cavalheiro até a porta.

LUKA [dirigindo-se a Smirnov]

Senhor, por que não sai quando lhe pedem pra sair? O que mais o senhor quer?

SMIRNOV [levantando-se de um salto]

Com quem você pensa que está falando? Vou reduzi-lo a pó!

LUKA [põe a mão no coração]

Deus do céu! [Cai numa cadeira.] Oh! Estou passando mal! Não consigo respirar!

SENHORA POPOV

Onde está Dascha? [Chamando.] Dascha! Pelageja! Dascha! [Toca a sineta.]

LUKA

Elas já saíram. Estou passando mal! Água!

SENHORA POPOV [para Smirnov]

Saia! Fora daqui! Já!

SMIRNOV

Seja gentil. Tenha um pouco mais de educação!

 
SENHORA POPOV [com as mãos em punho e batendo os pés]

O senhor é um grosseiro! Um brutamontes! Um urso ensandecido!

SMIRNOV

O que foi que a senhora disse?

SENHORA POPOV

Eu disse que o senhor é um grosseiro! Um brutamontes! Um urso ensandecido!

SMIRNOV[dando alguns passos rápidos na direção dela]

Permita-me perguntar-lhe: com que direito a senhora me insulta?

SENHORA POPOV

E insulto mesmo! E daí? Por acaso acha que tenho medo do senhor?

SMIRNOV

E a senhora acha que porque é uma criatura romântica, pode me insultar e ficar impune? Pois
eu a desafio!

LUKA

Deus de misericórdia!Água!

SMIRNOV

Então vamos duelar!

 
SENHORA POPOV

E o senhor acha que seus punhos fortes e seu pescoço de touro me metem medo?

SMIRNOV

Não admito que ninguém me insulte! E não vou abrir exceção porque a senhora é mulher e
pertence ao “sexo frágil”!

SENHORA POPOV [tentando menosprezá-lo]

Urso ensandecido! Brutamontes, troglodita!

SMIRNOV

Já está mais do que na hora de acabar com a velha crença de que só os homens são
obrigados a dar satisfação. Se é para ser igual, que haja igualdade em tudo. Há um limite para
tudo!

SENHORA POPOV

O senhor quer duelar? Muito bem! Vamos duelar!

SMIRNOV

Imediatamente!

SENHORA POPOV

Imediatamente! Meu marido tinha algumas pistolas. Vou buscá-las. [Sai apressadamente e
retorna.] Ah! Com que prazer vou cravar uma bala em sua cabeça petulante! Que o diabo o
carregue! [Retira-se.]

 
SMIRNOV

Vou acabar com ela com um tiro! Não sou nenhum principiante, nenhum cãozinho sentimental.
Para mim, não existe essa história de sexo frágil!

LUKA

Oh, senhor! [Cai de joelhos.] Tenha dó de mim, sou velho; vá embora! O senhor está me
matando de medo e agora quer se bater em duelo com a patroa!

SMIRNOV [sem prestar qualquer atenção]

Um duelo. Isso é que é igualdade, emancipação. É assim que os sexos se tornam iguais. Vou
atirar nela por uma questão de princípio. O que se pode dizer a uma mulher dessas? [Imitando-
a.] “Que o diabo o carregue! Vou cravar uma bala em sua cabeça petulante!” O que dizer
disso? Ela se enfureceu, seus olhos faiscaram; ela aceitou o desafio. Palavra de honra, é a
primeira vez em minha vida que vejo uma mulher desse tipo!

LUKA

Oh! Senhor, vá embora! Vá embora!

SMIRNOV

Isso sim é que é mulher! Posso compreendê-la. Uma mulher de verdade. Sem fricotes ou
chiliques... é puro fogo, pólvora e explosão! Seria uma pena atirar numa mulher como essa.

LUKA [choramingando]

Oh, senhor! Vá embora! [Entra a Senhora Popov.]

SENHORA POPOV
Aqui estãoas pistolas. Mas... antes de começarmos nosso duelo, o senhor poderia me mostrar
como se atira? Nunca segurei uma arma antes!

LUKA

Deus nos acuda! Vou buscar o jardineiro e o cocheiro. Por que está acontecendo esta
desgraça? [Retira-se.]

SMIRNOV [examinando as pistolas]

Como a senhora pode ver, há armas de diferentes tipos. Estas são pistolas de pederneira,
especiais para duelos, mas estes são revólveres de percussão Smith & Wesson; excelentes
pistolas! Um par destas custa no mínimo noventa rublos. É assim que se segura um revólver.
[Fica de lado.] Que olhos, que olhos! Uma mulher de verdade!

SENHORA POPOV

Assim?

SMIRNOV

É; assim mesmo. Depois puxe o cão para trás – assim – em seguida, mire – ponha a cabeça
um pouco mais para trás. Estique o braço, por favor. Assim... em seguida, aperte aqui com o
dedo, e pronto. O mais importante é: não fique ansiosa, não mire apressadamente, e tome
cuidado para não deixar tremer a mão.

SENHORA POPOV

Não fica bem duelar aqui dentro. Vamos para o jardim.

SMIRNOV

Sim, mas vou lhe dizer uma coisa: vou atirar para o alto.
 

SENHORA POPOV

Isso já é demais! Por quê?

SMIRNOV

Ora, porque... porque... Isso é problema meu.

SENHORA POPOV

O senhor está com medo! É isso mesmo. A-h-h-h! Não, senhor! Nada disso, caro senhor! Nem
pense em desistir! Por favor, siga-me. Não terei sossego enquanto não fizer um buraco nessa
testa tão detestável. O senhor está com medo?

SMIRNOV

Sim, estou.

SENHORA POPOV

Que grande mentira! Por que não quer duelar?

SMIRNOV

SENHORA POPOV [rindo, enfurecida]

Ele gosta de mim! Ele ousa dizer que gosta de mim! [Apontando para a porta.] Saia!

 
SMIRNOV [coloca o revólver sobre a mesa sem fazer ruído, pega o chapéu e vai na direção da
porta, onde para por um momento e olha para ela em silêncio; em seguida, aproxima-se dela,
hesitante]

Ouça bem o que vou lhe dizer. A senhora ainda está zangada? Eu estava doido como o
demônio, mas, por favor, me compreenda... como posso me expressar? O fato é que as coisas
são... [Elevando o tom de voz.] bem... é culpa minha que a senhora me deve dinheiro? [Agarra
com força o encosto da cadeira, que se quebra.] Que diabo de mobília fraca a senhora tem! Eu
gosto da senhora! A senhora compreende? Eu... eu estou quase apaixonado!

SENHORA POPOV

Retire-se! Eu odeio o senhor!

SMIRNOV

Santo Deus! Que mulher! Nunca em minha vida encontrei uma mulher como esta. Estou
perdido, arruinado! Fui apanhado como um rato na ratoeira.

SENHORA POPOV

Saia ou eu atiro!

SMIRNOV

Atire! A senhora não imagina que felicidade seria morrer contemplando esses lindos olhos, ser
morto pelo revólver que está nessas pequenas mãos de veludo! Estou enlouquecido de amor!
Pense bem e decida-se logo, pois se eu sair por aquela porta, nunca mais nos veremos.
Decida-se... diga alguma coisa... Sou um nobre, um homem respeitável, tenho renda de dez mil
rublos, consigo acertar uma moeda em pleno ar com um tiro. Possuo alguns belos cavalos. A
senhora aceita ser minha esposa?

SENHORA POPOV [balançando o revólver, furiosa]

Vou atirar!
 

SMIRNOV

Minha mente está confusa... não consigo compreender nada. Criado! Água! Apaixonei-me
como um rapaz. [Toma a mão dela e ela chora copiosamente.] Eu amo a senhora! [De joelhos.]
Eu amo a senhora como nunca amei nenhuma outra mulher antes. Rejeitei doze, nove me
rejeitaram, mas a nenhuma delas amei como eu amo a senhora. Rendo-me, estou perdido,
caio a seus pés como um tolo e imploro sua mão. Vergonha e desgraça! Faz cinco anos que
não me apaixono. Agradeci a Deus por isso e agora estou atrelado à senhora como um vagão
se atrela a outro. Suplico por sua mão! Sim, ou não? A senhora me aceita? Está bem!
[Levanta-se e dirige-se rapidamente para a porta.]

SENHORA POPOV

Espere um momento!

SMIRNOV

E então?!

SENHORA POPOV

Não é nada. Pode ir. Mas... espere um pouco. Não, pode ir, pode ir. Eu odeio o senhor. Ou
melhor..., não, não vá! Oh! Se o senhor soubesse como eu estava irritada! [Joga o revólver na
cadeira.] Meu dedo inchou por causa dessa coisa. [Em sua fúria, rasga o lenço.] Por que o
senhor está parado aí? Retire-se!

SMIRNOV

Adeus!

SENHORA POPOV

Sim, pode ir [Gritando.] Por que o senhor está indo embora? Espere... não, vá! Ah! Que ódio
estou sentindo! Não se aproxime muito, não chegue tão perto – humm... pare aí!
 

SMIRNOV[aproximando-se dela]

Que raiva estou sentindo de mim mesmo! Apaixonado como um garotinho de escola, caindo de
joelhos. Que arrepio estou sentindo! [Em tom de voz forte.] Eu a amo. Que beleza!... Era só o
que faltava! Eu me apaixonar! Amanhã, tenho que pagar os juros, a colheita já começou e
então me aparece a senhora! [Toma-a nos braços.] Jamais vou me perdoar por isso.

SENHORA POPOV

Vá embora! Tire suas mãos de mim! Eu o odeio – odeio o senhor – tudo isso é... [Um longo
beijo. Entra Luka com um machado, o jardineiro com um rastelo, o cocheiro com um forcado, e
serviçais segurando estacas de pau.]

LUKA [olhando para o casal]

Deus seja louvado! [Longa pausa.]

SENHORA POPOV[baixando os olhos]

Diga lá no estábulo que Tobby não precisa mais ganhar ração extra.

Desce o pano.

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