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A Gaivota
(UFU), digitalizado para fins de preservação por meio do projeto Biblioteca Digital de Peças Teatrais
(BDteatro). Este projeto é financiado pela FAPEMIG (Convênio EDT-1870/02) e pela UFU. Para a
A GAIVOTA
Uma comédia em quatro atos de Anton Tchekov, apresentada pela primeira vez em São
Petersburgo a 17 de outubro de 1896.
PERSONAGENS:
IRINA NIKOLAYEVNA - Madame Treplev - Uma atriz
KONSTANTIN GAVRILOVITCH, seu filho, um rapaz
PIOTR NICOLAYEVITCH SORINE, seu irmão
NINA MIKHAILOVNA, uma moça - filha de um rico latifundiário
ILIA AFANASSIEVIEVITCH SHAMRAEV, Tenente reformado, administrador de Sorine.
PAULINA ANDREYEVNA, sua mulher
MASHA, sua filha
BORIS ALEXEYEVITCH TRIGORINE, homem de letras
EVGUENI SERGUEYEVITCH, médico
SEMION SEMIONOVITCH MEDVEDENKO, mestre-escola
JACOV, trabalhador
UM COZINHEIRO
UMA COPEIRA-ARRUMADEIRA
A ação se desenrola na casa e no Jardim de Sorine. Entre o terceiro e o quarto atos um
Intervalo de dois anos.
PRIMEIRO ATO
PARTE DO PARQUE DA PROPRIEDADE DE SORINE.UMA LARGA ALDEIA
CONDUZ, AFASTANDO-SE DA PLATÉIA PARA AS PROFUNDIDADES DO PARQUE
EM DIREÇÃO AO LAGO, PORÉM ESTÁ INTERDITADA POR UM TABLADO
PROVISÓRIO, ERIGIDO PARA UM ESPETÁCULO DE TEATRO AMADOR, DE MODO
QUE O LAGO NÃO FICA VISÍVEL À DIREITA E À ESQUERDA DO TABLADO
TUFOS DE ARBUSTOS. ALGUMAS CADEIRAS, UMA MESINHA.
O SOL ACABA DE POR-SE. JACOV E OUTROS TRABALHADORES ESTÃO
TRABALHANDO NO TABLADO POR TRÁS DA CORTINA; HÁ RUÍDOS DE TOSSES
E MARTELADAS. MASHA E MEDVEDENKO ENTRAM À ESQUERDA, VOLTANDO
DE UM PASSEIO.
MEDVEDENKO: Por que é que você está sempre de preto?
MASHA: Estou de luto por minha vida. Eu sou infeliz.
MEDVEDENKO: Por que? (REFLETINDO) Não compreendo... Você tem boa saúde; seu pai
não é rico, mas vive bem. A minha vida é muito mais dura do que a sua. Eu só ganho vinte e
três rublos por mês, fora o desconto para aposentadoria, mas nem por isso ando de luto.
(SENTA-SE).
MASHA: Não é dinheiro o que importa. Um homem pobre pode ser feliz.
MEDVEDENKO: Na teoria, mas na prática: lá em casa somos minha mãe, minhas duas
irmãs, meu irmãozinho e eu, e eu só ganho vinte e três rublos. A gente tem de comer, não é? É
preciso comparar chá e açúcar. E é preciso comprar tabaco. Experimente só para ver se é fácil.
MASHA: (OLHANDO O TABLADO ATRÁS DELA) - O espetáculo vai começar daqui a
pouco.
MEDVEDENKO: É. Com a Zaretchnaia numa peça de Konstantin Gavrilovitch. Os dois
estão apaixonados, e hoje suas almas vão se unir no desejo de produzir uma única imagem
dramática. Enquanto que a sua alma e a minha não tem nada em comum. Eu te amo, a
saudade me arranca de casa, todo dia eu ando uma légua para chegar aqui e outra para voltar,
e a única coisa que encontro em você é indiferença. Eu compreendo. Não tenho meios de
subsistência e tenho uma família enorme... Quem haveria de querer se casar com quem não
tem sequer dinheiro para comer?
MASHA : Não é isso que importa. ( TOMA UMA PITADA DE RAPÉ ). O seu amor me
comove, mas eu não consigo corresponder; é só isso. (OFERECE A ELE A CAIXA DE
RAPÉ). Sirva-se.
MEDVENKO : Não estou com vontade. ( PAUSA )
MASHA: Está abafado, acho que ainda vai cair uma tempestade hoje. Você está sempre
fazendo discursos filosóficos ou então falando de dinheiro. Para você não existe maior
infelicidade no mundo do que a pobreza, mas eu acho que é melhor andar coberta de andrajos
e pedindo esmolas do que...
(PELA DIREITA ENTRAM SORINE E TREPLEV)
SORINE: ( APOIANDO-SE EM SUA BENGALA ) - Fique sabendo, meu rapaz, que esta
história de viver no campo não combina comigo, e ou nunca hei de me habituar a isto aqui.
Ontem eu me deitei às dez horas e hoje acordei às nove, com a impressão de que o cérebro
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A Gaivota
tinha grudado no crânio de tanto dormir, e assim por diante (RI). Depois do almoço, assim
como não quer nada, tornei a adormecer, e agora estou descadeirado sentindo-me no meio de
um pesadelo, enfim...
TREPLEV: É; você foi feito mesmo para a cidade. ( VENDO MASHA E MEDVENKO ) -
Por que é que vocês estão aqui? Quando estiver na hora eu mando todo mundo. Por favor, vão
embora.
SORINE: ( À MASHA ) - Maria Ilinitchna, quer fazer o favor de dizer a seu pai que solte o
cão, para ele parar de uivar. Minha irmã passou a noite em claro.
MASHA: Fale o senhor mesmo com ele, porque eu não vou dizer nada. Com licença ( A
MEDVEDENKO ). Vamos!
MEDVENKO: ( A TREPLEV ) - Então mande nos chamar quando for começar.
( SAEM OS DOIS )
SORINE: O cão vai uivar a noite inteira de novo. É muito engraçado, mas no campo eu nunca
consegui que as coisas fossem feitas a meu modo. Antigamente eu tinha férias de vinte e oito
dias e vinha para cá descansar, e coisas assim, imediatamente todos começavam a me deixar
exausto com ninharias as mais absurdas do modo que desde o primeiro dia eu só conseguia
pensar numa coisa, fugir daqui. ( RI ). Eu sempre fui embora daqui. Com grande prazer... Mas
agora, que afinal das contas me aposentei, não tenho mais para onde ir. Queira ou não queira,
é aqui que eu tenho de ficar...
JACOV: ( A TREPLEV ) - Konstantin Gavrilovitch, nós vamos tomar banho.
TREPLEV: Muito bem; mas estejam de volta dentro de dez minutos. ( OLHANDO AS
HORAS) Daqui a pouco vai começar.
JACOV: Sim, senhor. ( SAI )
TREPLEV: ( INSPECIONANDO O TABLADO COM OS OLHOS ) - Aí temos nosso teatro.
A cortina, o primeiro rompimento, o segundo, e ao fundo - um espaço aberto. Nada de
cenário. A vista abre diretamente para o lago e o horizonte. O pano vai subir exatamente às
oito e meia quando a lua nasce.
SORINE: Perfeito.
TREPLEV: Se a Nina se atrasar estraga todo o efeito. Ela já devia ter chegado. O pai e a
madrasta a controlam incessantemente, e é tão difícil ela sai de casa quanto fugir de uma
prisão. ( ELE AJEITA A GRAVATA DO TIO ). Seu cabelo e sua barba estão todos
arrepiados. Acho que precisava aparar um pouco, ou sei lá o que...
SORINE: ( ALISANDO A BARBA ) - É a tragédia da minha vida. Até mesmo quando eu era
moço sempre tive aspecto de alcoólatra contumaz, e coisas assim. Sempre fui um fracasso
com as mulheres. (SENTANDO-SE). Por que é que minha irmã está de mau humor ?
TREPLEV: Por que? Está entediada. ( SENTA-SE PERTO DE SORINE ). Está com ciúmes.
Já se botou contra mim e contra o espetáculo e contra a peça, porque é Zaretchnaia que
trabalha, e não ela. Ela não conhece a minha peça, mas já detesta.
SORINE: ( RINDO ) - Você tem cada uma!...
TREPLEV: Ela já está irritada porque nesse palanquinho aí é Nina quem vai fazer sucesso, e
não ela. ( OLHA AS HORAS ) Minha mãe é uma curiosidade psicológica. Eu sei que ela tem
talento e inteligência, que é capaz de soluçar lendo um livro, ou de se esvaziar em Nekrassov
NINA: Shhhhhh...
TREPLEV: ( OUVINDO PASSOS ) Quem está aí? É você Jacov?
JACOV: ( ATRÁS DO TABLADO ) - Às suas ordens.
TREPLEV: Já preparou o álcool? E o enxofre? No momento em que aparecem os dois olhos
vermelhos é preciso que haja cheiro de enxofre. ( A NINA ) Vai, que está tudo pronto. Está
nervosa?
NINA: Apavorada. Sua mãe ainda vá lá, não tenho medo dela - mas Trigorine está aí...
Representar para ele me assusta, fico com medo... Um escritor famoso... Ele é jovem?
TREPLEV: É.
NINA: Como os contos dele são lindos!
TREPLEV: ( FRIO ) - É possível; eu nunca li.
NINA: Sua peça é muito difícil de interpretar. Os personagens não são gente de verdade.
TREPLEV: Gente de verdade. Não se deve representar a vida como ela é nem como vai ser, e
sim como ela aparece em nossos sonhos.
NINA: E quase que não há ação, são só falas e falas. E além disso eu acho que em toda a peça
deve existir amor... ( DESAPARECEM AMBOS POR TRÁS DO TABLADO ).
( ENTRAM PAULINA ANDREIEVNA E DORN )
PAULINA: Está ficando um pouco úmido. Não acha melhor voltar e enfiar as galochas?
DORN: Eu estou com calor.
PAULINA: Você nunca se cuida. É médico e sabe muito bem que a umidade não lhe faz bem,
mas faz questão de me fazer sofrer; ontem, ficou a noite inteira no terraço de propósito...
DORN: ( CANTAROLANDO ) - "Não venha dizer que a juventude se foi".
PAULINA: Você está tão fascinada com a conversa de Irina Nikolaievna que nem sequer
percebeu que estava fazendo frio. Confesso que ela o agrada...
DORN: Eu tenho cinquenta e cinco anos...
PAULINA: Cinquenta e cinco anos para um homem não é nada. Você está bem conservado, e
ainda agrada muito às mulheres.
DORN: Em suma, o que é que você quer?
PAULINA: Diante de uma atriz você fica pronto a cair de joelhos. Todos ficam!
DORN: ( CANTAROLANDO ) "Eu volto sempre a ti..." Se gostamos dos artistas, e se em
sociedade eles são tratados do modo diverso de, digamos, negociantes, é porque isso é natural.
É uma questão de idealismo.
PAULINA: As mulheres sempre te adoraram e sempre se atiraram a seus pés. Isso também é
idealismo?
DORN: ( DANDO DE OMBROS ) E daí? No que as mulheres sempre sentiram por mim
houve muita coisa de bom. E o que amavam em mim eram sobretudo as minhas excelentes
qualidades de médico. Há dez ou quinze anos trás, é preciso que se lembre, eu era o único
parteiro de confiança de toda esta região. E além disso eu sempre fui um homem honesto.
PAULINA: ( TOMANDO-LHE A MÃO ) Meu querido!
nuvens, enquanto que suas almas se fundiram numa única alma. Essa alma coletiva, universal,
sou eu... Sou a alma de Alexandre o Grande, e de César, e de Shakespeare, e de Napoleão, e
da última das sanguessugas. Em mim a consciência de bom homem confundiu-se com o
instinto do animal e eu me lembro de tudo, tudo, tudo, e vivo de novo cada uma das vidas que
existem em mim. ( APARECEM FOGOS FÁTUOS )
ARKADINA: ( A MEIA VOZ ) - É uma dessas coisas decadentes.
TREPLEV: (SUPLICANDO, MAS EM TOM DE REPRESSÃO) - Mamãe !
NINA: Estou só. Abro os lábios de cem em cem anos, falo, e minha voz ecoa tristemente no
vazio; sem que ninguém me ouça... Nem vós tampouco, chamas pálidas, me ouvis... Na
madrugada vós nasceis dos pântanos estagnados para dançar até a aurora, sem pensamentos,
sem vontade, sem um frêmito de vida. Temendo que eu fizesse tremular em vós, o diabo, pai
da matéria eterna, provoca em vós um fluso de átomos semelhantes ao das pedras e das águas,
para que vós transformeis incessantemente. Em todo o universo é o espírito permanece
imutável. ( PAUSA ) Qual um prisioneiro atirado em poço profundo e vazio, não sei a onde
estou nem o que me espera. Só uma coisa me é dado conhecer: que na luta desesperada e cruel
contra o demônio, fonte das forças materiais, serei vitoriosa. E então matéria e espírito hão de
se confundir numa única e admirável harmonia, para que comece o reinado da liberdade para
o universo vontade cósmica. Isso só acontecerá muito lentamente, após uma interminável
cadeia de milênios, quando a lua e a brilhante Sirius e a terra se tiverem transformado em
poeira... Mas até então tudo será o terror, o terror... ( PAUSA, AO FUNDO DO PALCO
APARECEM DOIS PONTOS RUBROS ) Eis que se aproxima meu poderoso inimigo, o
diabo. Vejo seus olhos terríveis, que são rubros...
ARKADINA: Está cheirando a enxofre. É de propósito ?
TREPLEV: É
ARKADINA: ( RINDO ) Em matéria de efeito, faz muito efeito !
TREPLEV: Mamãe !
NINA: Ele se entedia sem os homens...
PAULI NA: ( A DORN ) Você tirou o chapéu. Bote de novo, senão vai se resfriar.
ARKADINA: O doutor, tirou o chapéu ante o diabo, que é o pai da matéria universal.
TREPLEV: ( INDIGNADO, GRITANDO ) - A peça acabou ! Basta ! Baixem o pano !
ARKADINA: Por que é que você se aborreceu.
TREPLEV: Chega ! Cortina ! Abaixem a cortina ! ( BATENDO COM O PÉ ) Cortina ! ( A
CORTINA BAIXA ). Eu peço que me perdoem ! Eu tinha esquecido que só é permitido a uns
pouquíssimos eleitos escrever peças ou pisar num palco. Eu infringi o monopólio. Quanto a
mim... ( ELE AINDA QUER MAIS ALGUMA COISA, PORÉM FAZ UM GESTO DE
MÃO E SAI PELA ESQUERDA ).
ARKADINA: Mas o que é que ele tem?
SORINE: Irina, como pode tratar assim o amor-próprio de um jovem !
ARKADINA: Mas o que foi que eu disse?
SORINE: Você o magoou.
ARKADINA: Mas foi ele mesmo que disse que a peça não passava de uma brincadeira, e eu a
tomei como tal.
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A Gaivota
DORN: É, para lhe fazer justiça é preciso admitir o papaizinho dela é uma boa bisca.
SORINE: ( ESFREGANDO AS MÃOS PARA ESQUENTA-LAS ) - Como é, que tal nós
também entrarmos, que está fazendo frio. Minhas pernas estão me incomodando.
ARKADINA: Você as arrasta como se fossem de pau. Vamos, vamos, meu pobre velho.
CHAMRAEV: ( OFERECENDO O BRAÇO À MULHER ) - Madame...
SORINE: Escutem só: o cão começou a uivar. ( A CHAMRAEV ) Quer fazer o favor, Ilia
Afanassievitch, de dar ordens para que ele seja solto.
CHAMRAEV: Impossível, Piotr Nikolaievitch, tenho medo que entrem ladrões no celeiro,
que está abarrotado de trigo. ( A MEDVEDENKO QUE ESTÁ CAMINHANDO A SEU
LADO ) - Isso mesmo, uma oitava abaixo: "Bravo, Silva !" E não era nem cantor, só corista
de igreja !
MEDVEDENKO: Quanto ganha um corista de igreja? ( SAEM TODOS MENOS DORN )
DORN: ( SÓ ) - Não sei, pode ser que eu não entenda nada disso, ou que tenha ficado louco,
mas gostei da peça. Há qualquer coisa nela. Quando aquela menina começou a falar da
solidão e, depois quando apareceram os olhos do diabo, fiquei tão excitado que minhas mãos
tremiam. É novo ingênuo... Acho que ele está voltando. Preciso dizer a ele como eu gostei.
TREPLEV: ( ENTRANDO ) - Já se foram todos.
DORN: Eu ainda estou aqui.
TREPLEV: Mashenka está me procurando por todo o parque. Que criatura insuportável !
DORN: Konstantim Gavrilovitch, sua peça me agradou profundamente. Ela tem qualquer
coisa estranha, e não compreendi o final, mas mesmo assim me deixou tremenda impressão.
Você tem talento precisa continuar. ( TREPLEV APERTA-LHE FORTEMENTE A MÃO E
TOMA-O NOS BRAÇOS COM ENTUSIASMO ). O que é isso? Como você está
perturbado? Com lágrimas nos olhos... O que é que eu ia dizer? Você buscou um tema
abstrato. E é isso que precisava ser feito, porque uma obra de arte deve expressar uma idéia
grande. Só é belo o que é sério, como você está pálido !
TREPLEV: Quer dizer que você acha que eu devo insistir?
DORN: Acho... Mas não retrate jamais nada que não seja importante e eterno. Vou te dizer
uma coisa: vivi minha vida plenamente saboreei-a, e sinto-me satisfeito; mas se algum dia
experimentado a exaltação do artista quando cria, tenho a impressão de que teria desprezado o
meu invólucro material, e tudo o que a ele tente, para me elevar muito acima de tudo o que é
terreno.
TREPLEV: Perdão, mas onde está Nina?
DORN: E tem mais. Uma obra deve expressar uma idéia clara, precisa. Você precisa saber
por que escreve, senão acaba enveredando por caminhos pitorescos mas sem objetivo preciso,
acaba se perdendo, e o seu talento é que será sua perda.
TREPLEV: ( IMPACIENTE ) Onde está Zaretchnaia?
DORN: Já foi para casa.
TREPLEV: ( DESESPERADO ) O que é que vou fazer? Eu quero vê-la. Eu preciso vê-la...
Eu vou até lá... ( ENTRA MASHA )
DORN: ( A TREPLEV ) Acalme-se, amigo.
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Anton Pavlovitch, Tchekhov
SEGUNDO ATO
CAMPO DE "CHOQUET". AO FUNDO, A CASA COM UMA GRANDE VARANDA: À
ESQUERDA VEMOS O LAGO, NO QUAL SE REFLETE UM SOL FULGURANTE.
CANTEIROS DE FLORES. MEIO DIA. CALOR. PERTO DO CAMPO, À SOMBRA DE
UMA VELHA TILIA, SENTADOS NUM BANCO, ESTÃO ARKADINA, DORN E
MASHA. HÁ UM LIVRO SOBRE OS JOELHOS DE DORN.
ARKADINA: ( A MASHA ) Levante-se. ( AMBAS LEVANTAM-SE ) Fique em pé bem
aqui a meu lado. Você tem vinte e dois anos, e eu quase o dobro. Evgueni Sergueievitch, qual
de nós duas tem ar mais jovem?
DORN: Você é claro.
ARKADINA: Aí está... E por que ? Porque eu trabalho, vivo, estou sempre me agitando,
enquanto que você passa o tempo todo parada, sem um mínimo de vida... Além do que tenho
por princípio jamais pensar na velhice nem na morte. O que tem de ser tem de ser e
acabou-se.
MASHA: Pois eu sinto que já nasci há tanto tempo, há tanto tempo; arrasto minha vida como
uma cauda interminável... E muitas vezes não tenho a menor vontade de viver. ( SENTA-SE )
Mas isso não tem a menor importância. Eu preciso me sacudir, me libertar.
DORN: ( CANTAROLANDO ) "Leva-lhe carinho, leva-lhe meu carinho..."
ARKADINA : E mais ainda, sou tão organizada quanto um inglês. Mantenho-me sempre,
como se diz, em perfeita forma, sempre vestida e penteada comme il faut. Jamais me permiti
sair de casa, nem que fosse só para chegar até o jardim, de peignoir, ou sem estar penteada.
Sou bem conservada porque nunca fui desleixada, porque nunca me abandonei, como fazem
tantas outras... ( COM AS MÃOS NAS ANCAS, DÁ ALGUNS PASSOS PELO CAMPO ).
Apreciem só ! Uma franguinha ! Boa para fazer papéis de meninotas de quinze anos.
DORN: Bem, mas mesmo assim espero que permita que eu continue. ( TOMA O LIVRO ).
Nós paramos no dono do armazém e os ratos...
ARKADINA: E os ratos. Leia. ( SENTA-SE ). Ou melhor, dá o livro aqui que é minha vez. (
TOMA O LIVRO, PROCURA O TRECHO COM OS OLHOS ) E os ratos... Está aqui... ( LÊ
) "Na verdade, é tão perigoso para gente de sociedade festejar e atrair romancistas quanto
seria para um dono de armazém criar ratos em armazém. E no entanto eles são sempre
mimados. Assim, quando uma mulher lança os olhos para um escritor que deseja conquistar,
ela se lança ao ataque por meio de elogios, de bajulações, de favores...". Pode ser que na
França seja assim, mas aqui nunca acontece nada com essa premeditação. Aqui antes de
conquistar um escritor, a mulher já está apaixonada por ele, envolvida até o pescoço. Sem ir
muito longe, vejam Trigorine e eu... ( ENTRA SORINE, APOIADA EM SUA BENGALA; A
SEU LADO, NINA; ATRÁS DOS DOIS, MEDVEDENKO, QUE EMPURRA UMA
CADEIRA DE RODAS ).
SORINE: ( EM TOM DE QUEM FALA COM UMA CRIANÇA ) - Então? Estamos
contentes? Até que enfim hoje estamos contentes! (À IRMÃ ) Estamos felicíssimos ! Pai e
madrasta foram para Tver, e temos três dias inteiros de liberdade.
NINA: ( SENTA-SE AO LADO DE ARKADINA E PASSA OS BRAÇOS EM VOLTA
DELA ) - Eu estou tão feliz ! Agora eu pertenço a vocês.
que continue ainda hoje com uma vontade danada de viver. Você fala de barriga cheia, e é por
isso que pode ficar bancando o filósofo, enquanto que eu... eu tenho vontade de viver, e é por
isso que tomo o meu xerez, e fumo meus charutos, etc, etc.
DORN: A vida deve ser levada a sério, e, desculpe, mas ficar se cuidando aos sessenta anos, e
ficar se lamentando de não ter gozado a vida na juventude, é bobagem.
MASHA: ( LEVANTANDO-SE ) - Já deve ser hora do almoço. ( SAI COM PASSO
ARRASTADO, DIFÍCIL ) - Minha perna está dormente. ( SAI ).
DORN: Lá vai ela tomar seus bons goles antes do almoço.
SORINE: Coitada, ela não é feliz.
DORN: Tolice, Excelência.
SORINE: Você fala como um homem que teve tudo o que quis.
ARKADINA: O que é que pode haver de mais aborrecido do que a encantadora monotonia do
campo ! Faz calor, é tudo calmo, ninguém faz nada, e todo o mundo fala... Eu me sinto muito
bem aqui, entre amigos, e gosto de ouvir o que dizem, mas... bom mesmo é ficar trancada
num quarto de hotel decorando um papel !
NINA: ( EXALTADA ) - Ai que maravilhoso ! Como eu compreendo !
SORINE: Claro que a cidade sempre é melhor. Fica-se sentado no escritório, o criado não
deixa entrar ninguém sem ser anunciado, há telefone... e na rua há carruagens por todo lado,
etc. etc.
DORN: ( CANTAROLANDO ) "Eu eu só penso neles, eu só penso neles..." ( ENTRA
CHAMRAEV, E PAULINA ANDREIEVNA )
CHAMRAEV: Todo mundo aqui. Bom dia ! ( BEIJA A MÃO DE ARKADINA, DEPOIS
NINA ). Fico muito contente em ver que estão todos com saúde. ( A ARKADINA ) Minha
mulher disse que as duas estão pensando em ir à cidade hoje. É verdade?
ARKADINA: Estamos, sim.
CHAMRAEV: Hum... Perfeito, mas com que meio de transporte estava contando, prezada
senhora? Hoje dia de colheita, e todos os criados estão ocupados. E, se me permiti perguntar,
que cavalos a senhora pretendia usar?
ARKADINA: Que cavalos? E como é que eu vou saber que cavalos?
SORINE: Mas nós temos os cavalos da carruagem.
CHAMRAEV: ( AGITADO ) Da carruagem ! E atrelar com que? Onde é que eu vou
descobrir com que atrelar os tais cavalos? É um fenômeno ! É incrível ! Prezadíssima senhora
! Peço mil desculpas, tenho veneração pelo seu talento, estou disposto a lhe dar dez anos da
minha vida, mas não posso ceder os cavalos.
ARKADINA: Mas eu preciso ir à cidade ! É muito engraçado !...
CHAMRAEV: Prezada Senhora ! A senhora, de agricultura, não entende nada.
ARKADINA: ( ESTOURANDO ) - É sempre a mesma história ! Pois nesse caso eu volto
para Moscou hoje mesmo. Faça o favor de mandar alugar cavalos na aldeia, senão eu irei a pé
mesmo para a estação !
CHAMRAEV: ( ESTOURANDO ) - Pois nesse caso, eu peço demissão ! Tratem de arranjar
outro administrador! (SAI)
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Anton Pavlovitch, Tchekhov
ARKADINA: Todo verão é a mesma coisa, todo verão eu venho aqui para ser insultada!
Nunca mais boto os pés nesta casa!
( ELA SAI NA DIREÇÃO DA ESQUERDA, ONDE SE DEVE ENCONTRAR A CABANA
PARA BANHOS; UM INSTANTE MAIS TARDE VEMO-LA ENTRANDO NA CASA
COM TRIGORINE CAMINHANDO ATRÁS DELA CARREGANDO CANIÇOS, E UM
BALDE DE MADEIRA ).
SORINE: ( ESTOURANDO ) - Que insolência ! Como é que ele se permite uma coisa
dessas? Mas basta ! Mandem atrelar imediatamente todos os cavalos!
NINA: ( A PAULINA ANDREIEVAN ) Recusar alguma coisa a Irina Nikolaievna, a uma
atriz! Será que qualquer desejo dela mesmo que seja um capricho, não é mais importante do
que a agricultura dele? É incrível !
PAULINA: (COM DESESPERO) E o que é que eu posso fazer? Ponha-se no meu lugar: o
que é que eu posso fazer?
SORINE: ( A NINA ) - Vamos lá com minha irmã... Vamos pedir para ela não ir, não é? (
OLHANDO NA DIREÇÃO NA QUAL SAIU CHAMRAEV ). Ele é insuportável. Um
tirano!
NINA: ( IMPEDINDO-O DE LEVANTAR-SE ) - Fique sentado, o que é isso? Nós
empurramos sua cadeira... ( ELA E MEDVEDENKO EMPURRAM A CADEIRA ). Ai, foi
tudo tão desagradável...
SORINE: Isso mesmo, foi horrível... Mas ele não vai embora nada. Daqui a pouco eu falo
com ele.
(SAEM. FICAM SÓS. DORN E PAULINA ANDREIEVNA)
DORN: Ai, como as pessoas são cansativas, é insuportável; esse seu marido devia ser posto
na rua, mas no fim das contas vão ser os dois, o covardão do Piotr Nikolaievitch e a irmã, que
vão pedir perdão a ele... Você vai ver!
PAULINA: Ele mandou os cavalos da carruagem para o campo. E todo dia eles se
desentendem. Se você soubesse como tudo isso me faz mal ! Fico doente! Olhe só, estou
tremendo toda... Eu não suporto mais grosseria. ( SUPLICANTE ) Evgueni, meu amor, me
leva embora daqui com você... O tempo está passando, nós não somos mais moços, e se pelo
menos no fim de nossa vida pudéssemos deixar de nos esconder, de mentir... ( PAUSA )
DORN: Eu estou com cinquenta e cinco anos; é muito para mudar de vida.
PAULINA: Eu sei, você não quer ir comigo porque ainda há outras mulheres na sua vida. E
não pode levar todas para viver com você. Eu compreendo. Desculpe, sei que está cansado de
mim.
( NINA APARECE PERTO DA CASA. ESTA COLHENDO FLORES )
DORN: Não é nada disso.
PAULINA: É o ciúme que me tortura. Eu sei que você é médico, e não pode evitar as
mulheres. Eu compreendo...
DORN: ( A NINA, QUE SE APROXIMA ) - Como é que estão indo as coisas por lá ?
NINA: Irina Nikolaievna está chorando e Piotr Nikolaievitch está tendo um ataque de asma.
DORN: É melhor eu ir lá dar gotas de valeriana a todo mundo...
catalogar tudo no meu cofre-forte ( esconderijo ) literário particular; quem sabe um dia não
poderei aproveitar alguma coisa? Quando acabo de trabalhar, corro para o teatro ou vou
pescar; chegou enfim o momento de descansar, de relaxar; mas, não - uma espécie de bola de
ferro, pesadíssima, já começou a rodar na minha cabeça: é um assunto novo. Já me sinto de
novo atraído para a mesa de trabalho, sinto que tenho de recomeçar a escrever, e a escrever, e
a escrever, a toque de caixa. E é sempre a mesma coisa, não dou a mim mesmo um momento
de alívio. Sinto que estou devorando minha própria vida, e que para conseguir o mel que dou
a não sei quem, que vive não sei onde, estou saqueando o pólen de minhas melhores flores,
arrancando as próprias flores, destruindo tudo a raiz. Será que não estou louco? Será que
meus amigos e conhecidos me tratam como se trata alguém são, normal? "O que é que está
escrevendo agora? O que é que está preparando para nós?" Sempre a mesma coisa, a mesma
coisa, e eu tenho a impressão que o cuidado que todo mundo tem comigo, os elogios, a
admiração, tudo não passa de uma farsa monumental, e que sou enganado como se engana um
doente; já cheguei mesmo a ter medo que alguém venha me agarrar pelas costas para me levar
( como Popristchine ) para o hospício. E antigamente, quando comecei a escrever, era um
sofrimento ininterrupto. Um escritorzinho, particularmente quando não tem muita sorte, tem
sempre a impressão de ser desastrado, canhestro, inútil; e está com os nervos sempre tensos, à
flor da pele. Ele não consegue se impedir de rondar todo o mundo que é metido em literatura
ou arte e, desconhecido e ignorado, tem medo de encarar as pessoas. É como um jogador
viciado que não tem dinheiro para jogar. Eu não conhecia o meu leitor, mas o imaginava, não
sei por que, como um ser hostil e desconfiado. Tinha medo do público, ele me assustava, e
quando estreada minha primeira peça, tive a impressão que todos os morenos da platéia me
odiavam, que todos ou louros eram glacialmente indiferentes, como era horrível ! Que
sofrimento !
NINA: Mas o momento da inspiração, o próprio processo de criação não lhe trouxe momentos
de intensa felicidade?
TRIGORINE: Trouxe. Enquanto escrevo me sinto feliz. E me sinto feliz quando leio provas,
mas... a partir do dia em que o livro sai, não suporto mais; vejo que não era nada daquilo, que
foi tudo um engano, que não devia ter escrito uma só palavra, daquelas, fico revoltado,
repugnado... ( RINDO ) E o público lê e diz: "É; é agradável, tem muito talento... É
encantador, mas fica longe de Tolstoi", ou "É excelente, mas não é tão bom quanto Pais e
Filhos de Turgenev..." E vai ser assim até eu morrer: tudo não vai passar nunca de agradável,
e talentoso, agradável e talentoso - e pronto. Quando eu morrer, todo o mundo que me
conheceu, ao passar perto do meu túmulo, vai dizer: "Aqui jaz Trigorine. Bom escritor, mas
não tão quanto Turgenev".
NINA: Desculpe, não compreendo. Seu problema é sucesso demais.
TRIGORINE: Que sucesso? Isso é um gosto que nunca senti. Eu não gosto de mim mesmo
como escritor. E o pior é que vivo como que em estado de embriaguês, e muitas vezes não sei
o que estou escrevendo... Eu amo essa água, essas árvores, esse céu; eu sinto a natureza, que
provoca em mim um desejo irresistível de escrever, mas eu não sou apenas um pintor de
paisagens, sou também um cidadão; amo minha pátria, meu povo, e sinto que, já que sou
escritor, é meu dever falar do povo, de seus sofrimentos, de seu futuro, falar da ciência, dos
direitos do homem, assim por diante. Então, falo de tudo, sempre apressado, fustigado por
todos os lados, atordoado. Saio correndo como uma raposa perseguida por um bando de cães,
vejo que a vida e a ciência avançam cada vez mais, e que eu vou ficando cada vez mais para
trás, como um mujik que perde o trem. E no final das contas, sinto que só sei mesmo
descrever a paisagem e que fora isso, tudo o que escrevo é total e absolutamente falso.
Texto digitalizado para o projeto BDTeatro da UFU. 20
Anton Pavlovitch, Tchekhov
NINA: Você trabalhou demais e não teve tempo nem vontade de tomar consciência de seu
valor. Você pode estar insatisfeito consigo mesmo, mas, para os outros, você é importante e
maravilhoso ! Se eu fosse um escritor como você, eu dedicava minha vida inteira à multidão,
mas teria consciência de que não haverá maior felicidade para essa do que se elevar até a
mim, e me puxar num carro triunfal.
TRIGORINE: Agora já tenho até carro triunfal... Lembre-se que ainda não sou bem
Agamemnon ! ( AMBOS SORRIEM ).
NINA: Pela felicidade de ser escritora, ou atriz, eu enfrentaria a hostilidade da minha família,
a pobreza, as decepções; podia morar em qualquer lugar, comer pão dormido, suportaria o
descontentamento comigo mesma, consciente de minhas imperfeições, mas - em troco -
exigiria a glória... glória verdadeira, esplendorosa... ( COBRE O ROSTO COM AS MÃOS )
Eu fico até tonta... Uff !
VOZ DE ARKADINA: ( VINDO DA CASA ) - Boris Alexeivitch !
TRIGORINE: Estão me chamando... Acho que tenho de ir fazer as malas. Não tenho a menor
vontade de sair daqui. ( OLHA O LAGO ) Que paraíso... Aqui é tão bom !
NINA: Está vendo aquela casa com jardim lá na outra margem?
TRIGORINE: Estou.
NINA: É a casa da minha mãe, que já morreu. Foi lá que eu nasci. Passei a minha vida inteira
nas margens do lago, e não há um só ilha que eu não conheça.
TRIGORINE: Como a gente se sente bem aqui ! ( NOTA A GAIVOTA ) O que é isso?
NINA: Uma gaivota. Foi Konstantin Gavrilovitch quem matou.
TRIGORINE: Que bonita ! Eu realmente estou sem a menor vontade de ir embora. Será que
você não podia convencer Irina Nikolaievna a ficar? ( ANOTA QUALQUER COISA NO
CADERNINHO ).
NINA: O que é que você está escrevendo?
TRIGORINE: Nada. Tomando notas... Idéia para um assunto... ( GUARDA O
CARDENINHO NO BOLSO ) Para uma pequena novela: uma jovem vive desde a infância
perto de um lago, uma moça assim como você; ela ama o lago como uma gaivota, é feliz e
livre como uma gaivota. Mas aparece um homem que a vê, a assim à toa, só por falta do que
fazer, tira-lhe a vida, como se ela fosse uma gaivota. ( ARKADINA APARECE EM UMA
DAS JANELAS)
ARKADINA: Boris Alexeievitch, onde é que você se meteu?
TRIGORINE: Já vou ! (SAI, VOLTANDO-SE NA DIREÇÃO DE NINA. SOB A JANELA,
A ARKADINA) O que foi?
ARKADINA: Nós vamos ficar. (TRIGORINE ENTRA NA CASA)
NINA: ( DESCE ATÉ A RIBALTA. APÓS UM MOMENTO DE DEVANEIO ) - É um
sonho !
TERCEIRO ATO
SALA DE JANTAR DA CASA DE SORINE. PORTAS À DIREITA E À ESQUERDA. UM
BUFFET. UM ARMÁRIO COM REMÉDIOS. AO CENTRO DA PEÇA, UMA MESA.
MALAS E PACOTES; PREPARATIVOS DE PARTIDA. TRIGORINE ALMOÇA;
MASHA ESTÁ DE PÉ JUNTO À MESA.
MASHA: Estou contando tudo isso a você como escritor. Pode se servir. Estou dizendo a
verdade: se ele tivesse se ferido seriamente eu não conseguia viver nem mais um segundo.
Mas apesar de tudo, sou corajosa, e tomei uma decisão irrevogável: vou arrancar esse amor de
meu coração pela raiz.
TRIGORINE: Como?
NINA: Vou me casar. Com Medvedenko.
TRIGORINE: O Professor?
NINA: É.
TRIGORINE: Não vejo o que é isso vai adiantar.
MASHA: Amar sem esperança, esperar anos a fio, esperar por que?... Se eu me casar vou ter
mais em que pensar; e preocupações diferentes acabam sufocando o passado. E, de qualquer
modo, eu também hei de mudar. Quer outro?
TRIGORINE: Não é um pouco demais?
MASHA: O que é isso? ( ELA SERVE OS DOIS COPOS ). Não precisa me olhar assim. As
mulheres bebem com muito mais freqüência do que se pensa. Umas poucas abertamente,
como eu, e, a maioria, escondido. É e é sempre vodka ou cognac. ( BATE SEU COPO NO
DELE ) À sua ! Você é um homem sem complicações; é uma pena que esteja indo embora.
TRIGORINE: E não tenho a menor vontade de ir.
MASHA: Peça a ela para ficar.
TRIGORINE: Não; agora ela não fica mais. O filho tem se comportado com uma falta de tato
inacreditável. Primeiro tentou se matar, e agora parece que está querendo me desafiar para um
duelo. Não sei para que tudo isso. Fica emburrado, prega formas novas. Mas há lugar para
todo mundo, tanto para os novos quanto para os velhos - para que ficar emburrado?
MASHA: E não se esqueça do ciúme. Mas isso não é problema meu. ( PAUSA. JACOV
ATRAVESSA A CENA DA ESQUERDA PARA A DIREITA COM UMA MALA NA
MÃO; NINA ENTRA E PARA PERTO DA JANELA ).
MASHA: Meu professor não é muito inteligente mas é bem pobre, e me ama muito. Tenho
pena dele. E da mãe dele, que é muito velhinha. Bem; eu lhe desejo tudo de bom. Não guarde
lembranças de mim. ( APERTA-LHE FORTEMENTE A MÃO ) Muito obrigada por sua
compreensão. Mande-me seus livros, sem esquecer a dedicatória. Mas não diga
"Respeitosamente", por favor. Diga só "Maria, a orfã que vive sem saber por que". Adeus - (
SAI ).
NINA: ( ESTENDENDO NA DIREÇÃO DE TRIGORINE SUA MÃO FECHADA ) Par ou
ímpar?
TRIGORINE: Par.
nunca vou saber que razão Konstantin tentou se matar. Eu acho que foi ciúme, de modo que
quanto mais depressa eu tirar Trigorine daqui, melhor.
SORINE: Sim e não. Havia outras razões, também, é compreensível... um rapaz jovem,
inteligente, vivendo no campo, no meio do nada, sem dinheiro, sem posição, sem futuro. Sem
ter o que fazer. Ele sente medo e vergonha de ser um desocupado. Eu gosto muito dele, e ele
acha que é demais na casa, que é um parasita, só mais uma boca para comer. Compreende-se
que seu amor-próprio...
ARKADINA: Ah, que preocupação. ( SONHADOR ) E se ele entrasse para o serviço
público?
SORINE: ( ASSOVIA, DEPOIS DIZ TIMIDAMENTE ) - Eu acho que o melhor era... dar um
pouco de dinheiro a ele. Para início de conversa ele precisa se vestir de modo mais
conveniente, etc, etc. Olha só para ele: há três anos que usa o mesmo casaco, e nem sequer
tem um sobretudo. Além disso o rapaz precisa arejar um pouco, o que não vai lhe fazer
nenhum mal... ir para o estrangeiro, por exemplo... não custa tanto assim.
ARKADINA: Agora também... eu posso comprar uma roupa para ele, mas ir para o
estrangeiro... Não no momento, nem mesmo a roupa eu posso. ( DECIDIDA ) Eu não tenho
dinheiro ! ( SORINE RI )
ARKADINA: Não tenho !
SORINE: ( ASSOVIA ) Está bem, está bem. Desculpe, querida, não precisa ficar zangada. Eu
acredito... Você é uma mulher nobre e generosa.
ARKADINA: ( ATRAVÉS DAS LÁGRIMAS ) Eu não tenho dinheiro !
SORINE: Se eu tivesse, eu mesmo dava, é claro; mas eu não tenho nada, nem um vintém.
(RI) O administrador pega toda a minha aposentadoria para investir em plantações, e gado, e
abelhas, e o dinheiro some sem adiantar nada para ninguém. As abelhas morrem, as vacas
morrem, e eu nunca consigo que me deixem usar os cavalos...
ARKADINA: Eu tenho dinheiro; mas eu sou atriz, só em roupa tenho de gastar uma fortuna.
SORINE: Você é boa, e gentil... Eu gosto muito de você... E, sim... Eu estou me sentindo
mal... ( CAMBALEANDO. ) Estou tonto. ( AGARRA-SE À MESA ) Estou me sentindo mal,
etc, etc.
ARKADINA: ( ASSUSTADA ) Petrushka ! ( TENTA SUSTENTÁ-LO ) Petrushka, meu
querido !... ( GRITA ) Socorro ! Socorro !... Me ajudem...
( ENTRA TREPLEV, COM CABEÇA BANDADA, E MEDVEDENKO )
ARKADINA: Está passando mal !
SORINE: Não é nada... ( SORRI E BEBE ÁGUA ) Já acabou, etc,etc.
TREPLEV: ( À MÃE ) Acalme-se, mamãe, não é nada de mais. Isso é coisa muito freqüente.
( AO TIO ) Você devia se deitar um pouco, meu tio.
SORINE: Um pouco está bem. Mas mesmo assim eu vou à cidade. Vou me deitar um pouco,
e depois saio... Estamos entendidos... ( AFASTA-SE, APOIANDO-SE NA BENGALA )
MEDVEDENKO: ( AJUDANDO-O A CAMINHAR ) O senhor conhece a charada de manhã.
Anda de quatro, ao meio dia às duas, e à tarde de três...
SORINE: É isso mesmo. E, de noite, de costa. Muito obrigado; mas eu posso muito bem
andar sozinho...
Texto digitalizado para o projeto BDTeatro da UFU. 24
Anton Pavlovitch, Tchekhov
TREPLEV: Verdadeiros talentosos ! ( FURIOSO ) Pois, fique sabendo eu tenho mais talento
que vocês todos juntos. ( ARRANCA O CURATIVO ). Vocês, os cabotinos, tomaram o
poder nas artes e acham que só vocês tem o direito de viver, e que só o que vocês fazem é
válidos; tudo o mais vocês tratam de suprimir, de sufocar ! Mas eu não reconheço o poder de
vocês, nem o seu, nem o dele !
ARKADINA: Decadente!
TREPLEV: Vai para o seu teatro, vai representar as porcarias das suas pecinhas idiotas!
ARKADINA: Eu nunca representei peças idiotas! Você é incapaz de escrever um simples
vaudeville, por mais medíocre que seja ! Pequeno burguês de Kiev ! Parasita !
TREPLEV: Avarenta !
ARKADINA: Vagabunda ! ( TREPLEV SENTA-SE E CHORA BAIXINHO ) Nulidade. (
ELE ANDA DE UM LADO PARA O OUTRO, AGITADO ). Não chore. Para de chorar... (
ELA CHORA ) Para de chorar... ( ELA BEIJA A CABEÇA DELE ) Meu filhinho querido,
me perdoa... Perdoa sua mãe culpada. Perdoa, que ela é uma infeliz !
TREPLEV: ( TOMANDO-A NOS BRAÇOS ) Se você soubesse. Eu não tenho mais nada.
Ela não me ama, agora nem consigo mais escrever. Não tenho mais nenhuma esperança...
ARKADINA: Não se desespere... Tudo se resolve vai embora, e ela vai te amar de novo. (
ELA ENXUGA-LHE AS LÁGRIMAS ). Basta já fizemos as pazes.
TREPLEV: ( BEIJANDO-LHE AS MÃOS ) - Eu sei mamãe.
ARKADINA: ( TERNAMENTE ) - Faça as pazes com ele. Nada de duelos... Está bem?
TREPLEV: Está só não quero encontrar com ele. Isso é demais... é acima das minhas forças (
ENTRA TRIGORINE ) Aí está... Eu vou embora... ( ARRUMA APRESSADAMENTE OS
REMÉDIOS E ATADURAS NO ARMÁRIO ). O doutor faz o curativo.
TRIGORINE: ( PROCURANDO NUM LIVRO ) Página 121... linhas 11 e 12... Ah, está
aqui... ( LÊ ) "Se algum dia precisar de minha vida, venha e tome-a". ( TREPLEV PEGA O
CURATIVO NO CHÃO E SAI )
ARKADINA: ( OLHANDO A HORA ) Os cavalos já vêem.
TRIGORINE: ( PARA SI MESMO ) "Se algum dia precisar de minha vida, venha e tome-a".
ARKADINA: Espere que suas malas estejam prontas.
TRIGORINE: ( IMPACIENTE ) Claro... ( SONHADOR ) Por que será que há tanta tristeza
no apelo dessa alma pura, por que será que meu coração sente um aperto tão doloroso... "Se
algum dia precisar de minha vida, venha e tome-a". ( A ARKADINA ) Vamos ficar mais um
dia ! ( ARKADINA FAZ QUE NÃO COM A CABEÇA )
TRIGORINE: Vamos ficar !
ARKADINA: Meu querido, eu sei o que o prende aqui, mas você precisa se controlar. Você
está um pouquinho embriagado, e precisa ficar sóbrio.
TRIGORINE: Então seja lúcida você também, seja inteligente, razoável... ( TOMA-LHE A
MÃO ) Você é capaz de sacrifício. Seja amiga, e me deixe ficar livre de novo...
ARKADINA: ( PERTUBADA ) Mas você está tão envolvido assim?
TRIGORINE: Ela me atrai ! Pode ser que seja isso que eu preciso.
despedir. Vamos, não pensem muito mal de nós. ( A JACOV ) Eu dei um rublo ao cozinheiro.
É para os três. ( SAEM TODOS PELA DIREITA, A CENA FICA VAZIA. AO FUNDO
OUVE-SE O RUÍDO DA PARTIDA. A EMPREGADA ENTRA CORRENDO PARA
PEGAR A CESTA DE AMEIXAS E TORNA A SAIR )
TRIGORINE: ( VOLTANDO ) Esqueci minha bengala. Acho que está ali na varanda. ( VAI
SAINDO NO SENTIDO DA PORTA DA ESQUERDA, E ENCONTRA NINA, QUE VEM
ENTRANDO ) É você? Nós estamos indo embora.
NINA: Mas eu sabia que ainda íamos nos ver. (AGITADA) Boris Alexeievitch, já resolvi.
Vou me dedicar ao teatro. Vou embora amanhã, vou deixar meu pai, deixar tudo para começar
vida nova. Como vocês... eu vou para Moscou. Lá nos veremos.
TRIGORINE: ( DANDO UMA OLHADA PARA TRÁS ) - Vá para os "Slavyansky
Batchanovka, Casa Grokholski... Eu tenho de ir correndo... ( PAUSA )
NINA: Só mais um instante...
TRIGORINE: ( A MEIA VOZ ) - Você é tão linda !... Que alegria pensar que daqui a pouco
vamos nos ver de novo. ( ELA ENCOSTA A CABEÇA NO PEITO DELE ) Vou ver de novo
esses olhos maravilhosos, esse sorriso tão terno e tão lindo, esses traços tão doces, essa
expressão angelical... Minha querida...
( BEIJAM-SE LONGAMENTE )
CORTINA
ENTRE O TERCEIRO E O QUARTO ATOS HÁ UM INTERVALO DE DOIS ANOS.
QUARTO ATO
UM DOS SALÕES DA CASA DE SORINE, QUE TREPLEV TRANSFORMOU EM
GABINETE DE TRABALHO. À DIREITA E À ESQUERDA PORTAS QUE LEVAM A
OUTROS APOSENTOS. AO FUNDO UMA PORTA QUE DÁ PARA A VARANDA.
ALÉM DO MOBILIÁRIO HABITUAL DE UM SALÃO UMA ESCRIVANINHA FOI
INSTALADA NO CANTO DIREITO DA PEÇA, E, PERTO DA PORTA À ESQUERDA
HÁ UM GRANDE DIVAN TURCO, UMA ESTANTE, E LIVROS NOS PEITORIS DA
JANELA E SOBRE AS CADEIRAS. É NOITE. A PEÇA SÓ ESTÁ ILUMINADA POR UM
ÚNICO LAMPEÃO COM ABATJOUR. SEMI-PENUMBRA. OUVE-SE O BARULHO
DAS ÁRVORES E O VENTO QUE ASSOVIA NA CHAMINÉ. UM GUARDA-NOTURNO
DÁ BATIDAS EM MADEIRA AO PASSAR. ENTRAM MEDVEDENKO E MASHA.
MASHA: ( CHAMANDO ) Konstantin Gravilovitch ! Konstatin Gravilovitch ! ( OLHA POR
TODO LADO ). Ninguém. O velho fica perguntando a toda hora, onde está Kostia, onde está
Kostia... Não pode viver sem ele.
MEDVEDENKO: Tem medo da solidão. ( DE OUVIDO ALERTA ) - Que tempo horrível ! E
dois dias, já !
MASHA: ( AUMENTANDO A LUZ DA LAMPADA ) - Há ondas imensas no lago.
MEDVEDENKO: O jardim está um breu. Era preciso desmontar aquele tablado. Fica ali todo
descoberto, como um esqueleto, e o vento sacodindo a cortina. Ontem à noite, quando eu
passei por lá, tive a impressão que havia alguém chorando.
MASHA: E essa agora... ( PAUSA )
MEDVEDENKO: Vamos, Masha; vamos para casa !
MASHA: ( SACUDINDO NEGATIVAMENTE A CABEÇA ) Eu vou dormir aqui.
MEDVEDENKO: ( SUPLICANDO ) Vem, Masha ! O menino deve estar com fome.
MASHA: Não começa. Matriona dá comida a ele. ( PAUSA )
MEDVEDENKO: Fico com pena dele. Há três noites que não vê a mãe.
MASHA: Ai, como você é cacete. Antigamente pelo menos você gostava de filosofar, mas
agora é sempre a mesma coisa: o menino, vamos para casa, o menino, vamos para casa.
MEDVEDENKO: Vamos, Masha.
MASHA: Vai você.
MEDVEDENKO: Seu pai não me dá um cavalo.
MASHA: Mas é claro que dá. É só pedir que ele dá.
MEDVEDENKO: Bom, vou tentar. Amanhã você vai?
MASHA: Amanhã eu vou. Não me amola.
ENTRAM TREPLEV E PAULINA ANDREIEVNA; TREPLEV TRAZ TRAVESSEIROS E
UM COBERTOR, PAULINA ANDREIEVNA TRAZ LENÇÓIS; DEPOSITAM TUDO NO
DIVAN, DEPOIS TREPLEV VAI ATÉ SUA ESCRIVANINHA E SENTA-SE.
MASHA: Para que tudo isso, mamãe?
PAULINA: Piotr Nikolaievitch para ficar aqui.
Texto digitalizado para o projeto BDTeatro da UFU. 30
Anton Pavlovitch, Tchekhov
tentei ir vê-la, e Maria Ilinitchna também, mas ela não recebe ninguém. Semionovitch diz que
ontem de tarde a viu num campo a meia légua daqui.
MEDVEDENKO: É; eu encontrei com ela. Ia na direção da aldeia. Eu a cumprimentei e
perguntei por que não vinha nos ver. Ela disse que vinha.
TREPLEV: Não vem, não. ( PAUSA ) O pai e a madrasta recusam-se reconhecê-la. Puseram
guardas por toda a propriedade, para impedir que ela passe por perto. ( VAI COM O
MÉDICO PARA PERTO DA ESCRIVANINHA ). Como é fácil filosofar no papel, doutor;
mas na realidade...
SORINE: Era uma moça encantadora.
DORN: Perdão?
SORINE: Estou lhe dizendo que era uma moça encantadora. Sorine, o Conselheiro do Estado,
chegou mesmo a ficar apaixonado por ela durante algum tempo.
DORN: Mas conquistador nessa idade? ( OUVE-SE O RISO DE CHAMRAEV )
PAULINA: Acho que já estão todos chegando da estação...
TREPLEV: É; acho que estou ouvindo a voz de mamãe.
( ENTRAM ARKADINA, TRIGORINE E, ATRÁS DELES, CHAMRAEV )
CHAMRAEV: ( ENTRANDO ) Todos nós envelhecemos e nos deterioramos com a ação dos
elementos, menos a senhora, prezada senhora, que fica sempre jovem... A roupa clara... a
vivacidade... a graça...
ARKADINA: Como o senhor é cacete. Isso traz mau olhado !
TRIGORINE: ( A SORINE ) Bom dia, Piotr Nikolaievitch ! Ainda está doente? Assim não
pode ser ! ( VENDO MASHA, MUITO SATISFEITO ) Maria Ilinitchna !
MASHA: Lembra-se de min? ( APERTA-LHE A MÃO )
TRIGORINE: Como é; casou-se?
MASHA: Há muito tempo.
TRIGORINE: E está feliz? ( CUMPRIMENTA DORN E MEDVEDENKO, DEPOIS
APROXIMA-SE HESITANTE, DE TREPLEV ) Irina Nikolaievna disse que você esqueceu o
passado e não está mais zangado. ( TREPLEV ESTENDE-LHE A MÃO )
ARKADINA: ( AO FILHO ) Boris Aleixeievitch trouxe a revista que traz o seu último conto.
TREPLEV: ( TOMANDO A REVISTA DAS MÃOS DE TRIGORINE ) Muito obrigado. Foi
muita gentileza sua. ( SENTAM-SE )
TRIGORINE: Seus admiradores mandam cumprimentos... Estão todos muitos interessados
por seu trabalho tanto em Moscou quanto em Petersburgo, e estão sempre me perguntando
como você é, que idade tem, se é louro ou moreno. Não sei porque, todos acham que você não
é jovem. E ninguém sabe o seu nome; só conhecem o pseudônimo. Você é tão misterioso
quanto o Máscara de Ferro.
TREPLEV: Você pretende ficar aqui por algum tempo?
TRIGORINE: Não; devo ir amanhã para Moscou. Tenho de voltar logo. Há um romance que
tenho de acabar muito rápido, e prometi uma colaboração a uma revista. Enfim, sempre a
mesma coisa.
TRIGORINE: O que é?
CHAMRAEV: Konstatin Gavrilovitch matou uma gaivota, e o senhor pediu que
mandássemos empalhar.
TRIGORINE: Não me lembro, não. ( PENSANDO ) Não me lembro mesmo.
MASHA: Sessenta e seis ! Um !
TREPLEV: ( ABRE A JANELA DE PAR E ESCUTA ) - Como está escuro ! Eu não sei por
que estou tão inquieto.
ARKADINA: Kostia, fecha a janela, que assim fica uma corrente de ar horrível. ( TREPLEV
FECHA A JANELA )
MASHA: Oitenta e oito !
TRIGORINE: Víspora, meus senhores !
ARKADINA: ( ALEGRE ) Bravo ! Bravo !
CHAMRAEV: Bravo !
ARKADINA: Nunca vi ninguém ter sempre tanta sorte em tudo ! ( LEVANTA-SE ) Agora
vamos jantar. O nosso grande homem ainda não almoçou. Depois nós continuamos. ( AO
FILHO ) Kostia, larga essa papelada e vem jantar.
TREPLEV: Obrigado, mamãe; não estou com fome.
ARKADINA: É como quiser. ( ACORDA SORINE ) Petrushka, vem jantar ! ( TOMANDO
O BRAÇO DE CHAMRAEV ) Agora vou lhe contar o sucesso que eu fiz em Kharkov...
( PAULINA ANDREIEVNA APAGA AS VELAS QUE ESTÃO SOBRE A MESA, DEPOIS
COMEÇA A EMPURRAR A CADEIRA DE SORINE JUNTO COM DORN. SAEM
TODOS PELA PORTA DA ESQUERDA; TREPLEV, SENTADO À ESCRIVANINHA,
FICA SÓ EM CENA ).
TREPLEV: ( PREPARANDO-SE PARA ESCREVER; PASSA OS OLHOS NAS LINHAS
ANTERIORES ) - Eu falava tanto em novas formas, mas aos poucos vou escorregando e
ficando tão convencional quanto os outros. ( LÊ ). "O cartaz no muro proclamava... Um rosto
pálido emoldurado com cabelos negros..." Proclamava emoldurado... que coisa mais surrada...
( APAGA ). Vou começar com o barulho da chuva que acorda o protagonista, e cortar todo o
resto. A descrição da noite está comprida, elaborada. Trigorine encontrou um estilo próprio,
agora tudo fica fácil para ele... Para ele o gargalo de uma garrafa quebrada reluz perto da
represa, a roda do moinho lança uma sombra escura, e a noite de luar fica pronta enquanto que
eu sempre tenho uma luz trêmula; estrelas que cintilam, e a sonoridade longínqua de um piano
que morre no ar doce e perfumado... É uma tortura. ( PAUSA ). Cada vez me convenço mais
que a questão não tem nada com formas novas ou antigas, e sim com o que flui livremente do
coração, sem qualquer preocupação de forma. ( ALGUÉM BATE À JANELA DO
ESCRITÓRIO ) Quem será? ( OLHA PELA JANELA ) Não se vê nada... ( ABRE A PORTA
COM VIDROS QUE DÁ PARA O JARDIM ) Tem alguém descendo a escada correndo. (
CHAMA ) Quem está aí? ( SAI; OUVE-SE SEUS PASSOS RÁPIDOS NO TERRAÇO,
PASSA-SE UM MEIO MINUTO E ELE VOLTA COM NINA ZARETCHNAIA ) Nina !
Nina ! ( NINA POUSA A CABEÇA NO PEITO DE TREPLEV E SOLUÇA EM SILÊNCIO
).
TREPLEV: ( EMOCIONADO ) Nina ! Nina ! É você... você... É como se eu tivesse tido um
pressentimento; passei o dia inteiro tão agitado, tão angustiado ( ELE TOMA-LHE O
Texto digitalizado para o projeto BDTeatro da UFU. 37
A Gaivota
CHAPÉU E A PELERINE ). Ah, minha querida, meu tesouro; ela veio ! Mas não chora, não
chora.
NINA: Tem gente aí...
TREPLEV: Não tem ninguém.
NINA: Tranca tudo à chave, para ninguém entrar.
TREPLEV: Não vem ninguém.
NINA: Eu sei que Irina Nokolaievna está aí. Fecha as portas.
TREPLEV: ( FECHA A CHAVE A PORTA DA DIREITA, E VAI PARA A DA
ESQUERDA ) Está aqui não tem chave. Mas eu tranco com uma poltrona. ( EMPURRA
UMA POLTRONA DE ENCONTRO À PORTA ) Não precisa ter medo; não entra ninguém.
NINA: ( OLHANDO-O COM ATENÇÃO ) - Deixa eu olhar para você. ( DÁ UM OLHAR À
SUA DIREITA ) Está tão bom aqui, quentinho... Antigamente isto era uma sala, não era? Eu
mudei muito?
TREPLEV: Mudou... Emagreceu, e seus olhos ficaram ainda maiores. Ai, Nina, como é
estranho ver você. Por que você sempre se recusou a me ver? Por que não veio antes? Eu sei
que você chegou já faz quase uma semana... Não sei quantas vezes por dia eu fui até a cidade
para ver se te encontrava, e ficava debaixo de sua janela como um mendigo.
NINA: Tinha medo que você me odiasse. Toda noite, eu sonho que você olha para mim e não
me reconhece. Se você soubesse desde que cheguei que eu tenho andado sempre rondando por
aqui... perto do lago. Cheguei perto da casa uma porção de vezes, mas nunca tive coragem de
entrar. ( SENTAM-SE ). Vamos sentar e conversar. Conversar muito. Aqui está tão gostoso,
aconchegado... Está escutando o vento? Turgenev diz em algum lugar: "Felizes daqueles que
em noites como essa tem um teto sobre a cabeça, tem um canto quente". Eu sou uma gaivota...
Não, não é isso. ( ELA ESFREGA A TESTA ) O que é que eu estava dizendo? Já sei...
Turgenev... "Que Deus ajude a todos os que erram sem abrigo..." Deixa para lá... ( ELA
SOLUÇA )
TREPLEV: Nina, o que é isso, não recomeça... Nina !
NINA: Não é nada, mas me alivia... Há dois anos que eu não choro. Ontem de noite, já bem
tarde, fui até o jardim para ver se o nosso teatro ainda continuava lá. E continuava. E comecei
a chorar, pela primeira vez em dois anos. Foi como se dentro de mim um nevoeiro finalmente
levantasse. Viu não estou mais chorando. ( ELA TOMA-LHE A MÃO ) Então você agora é
um escritor e eu atriz... Nós dois também fomos engolidos pelo redemoinho... Eu vivia alegre
como uma criança, de manhã, quando acordava começava a cantar, eu te amava, e sonhava
com a glória e agora? Amanhã, logo cedinho tenho de ir para Leletz, de terceira classe... com
os camponeses; e em Leletz tenho que aturar galanteios dos negociantes alfabetizados. A vida
é uma coisa suja.
TREPLEV: Mas por que Leletz?
NINA: Assinei um contrato para toda a temporada de inverno. E agora está na hora de ir.
TREPLEV: Nina, eu te maldisse, te odiei, rasguei suas cartas e suas fotografias, mas nunca
deixei saber de que meu coração te pertencia para sempre. Não te amar é acima das minhas
forças, Nina. Desde que eu te perdi e comecei a conseguir publicar o que escrevo minha vida
ficou insuportável - eu me sinto mal... De repente minha juventude desapareceu e eu tenho a
impressão de já ter vivido uns oitenta anos. Eu te chamo, eu beijo a terra onde você pisou,
Texto digitalizado para o projeto BDTeatro da UFU. 38
Anton Pavlovitch, Tchekhov
vejo o seu rosto aparecer na minha frente, com esse sorriso terno que iluminou os melhores
anos da minha vida...
NINA: ( PERTUBADÍSSIMA ) Por que é que você está dizendo essas coisas? Por que é que
ele fica dizendo isso tudo?...
TREPLEV: Eu estou sozinho no mundo, sem um afeto que me aqueça. Sinto frio como num
calabouço, e tudo o que escrevo é seco, duro e negro. Fica aqui, Nina, eu te imploro que fique
ou então permita que eu vá com você !
( NINA COLOCA PRECIPITADAMENTE O CHAPÉU E A PELERINE ) Por que, Nina?
Pelo amor de Deus, Nina... ( ELE A OLHA ENQUANTO SE PREPARA )
NINA: Meus cavalos estão perto da porta do lado. Não me acompanhe; eu sei ir sozinha... (
ATRAVÉS AS LÁGRIMAS ) Me dá um copo de água...
TREPLEV: ( SERVINDO A ÁGUA ) - Para onde você vai agora?
NINA: Para a cidade. ( PAUSA ) Irina Nikolaievna está aí?
TREPLEV: Está. Meu tio passou mal na quinta feira, e nós mandamos um telegrama.
NINA: Por que é que você diz que beijava a terra onde eu pisei? Gente como eu se mata ! (
APÓIA-SE NA MESA ) Estou tão cansada ! Se eu pudesse descansar... descansar!
(LEVANTA A CABEÇA). Eu sou uma gaivota... Não, não é isso. Eu sou atriz. Eu sei que sou
! ( OUVE OS RISOS DE ARKADINA E TRIGORINE, ESCUTA, DEPOIS CORRE ATÉ A
PORTA DO LADO ESQUERDO E OLHA PELO BURACO DA FECHADURA ). Ah, ele
também está aí. ( VOLTANDO ATÉ TREPLEV ) Mas é claro... Não tem importância... É...
Ele não acreditava em teatro, ria de todos os meus sonhos, e, aos poucos, eu também fui
deixando de acreditar, e perdi a coragem... Isso, e mais todas as angústias de amor e ciúme, a
eterna preocupação com o neném... Eu não sabia mais o que fazer com os braços, não sabia o
que fazer em cena, não sabia mais usar a voz. Você não imagina o que é saber que se está
representando vergonhosamente mal. Eu sou uma gaivota? Um homem que passou por acaso
e pegou, e tirou-lhe a vida, assim por falta do que fazer. Não parece enredo de romance?...
Mas é isso... ( ELA ESFREGA A TESTA ). O que é que eu estava dizendo? Ah, sei; estava
falando do teatro. Agora tudo mudou... Agora eu já sou uma atriz de verdade; eu trabalho com
alegria, com êxtase, em cena eu fico como que embriagada, e tenho a impressão que fico
linda. E agora, nesses dias aqui, e eu tenho a impressão que cada dia estou ficando um pouco
mais forte... Agora eu sei, Kostia, agora eu compreendo que o essencial em nossa profissão
tanto faz que seja no palco ou na literatura - o essencial não é a glória, nem a fama, nem nada
daquilo com que eu sonhava, e sim saber agüentar com paciência... Saber carregar a cruz e ter
fé. Eu tenho fé, e já não sofro tanto; e quando penso em minha vocação, não tenho medo da
vida.
TREPLEV: ( TRISTEMENTE ) - Você encontrou seu caminho, você sabe para onde vai,
enquanto que eu continuo a boiar num caos de sonhos e imagens, sem saber por que escrevo,
nem o que é que isso pode adiantar a quem quer que seja. Não tenho fé nem sei qual é a
minha vocação.
NINA: ( DE OUVIDO ATENTO ) Shh... Eu já vou. Adeus. Quando eu for uma grande atriz,
venha me ver. Promete? E agora ( APERTA-LHE A MÃO ) Já é tarde. Eu não me agüento
mais em pé... estou exausta, e com fome...
TREPLEV: Fica um pouquinho, eu vou buscar alguma coisa...
NINA: Não, não... Não me acompanhe, eu sei o caminho... Meus cavalos estão ali... Quer
Texto digitalizado para o projeto BDTeatro da UFU. 39
A Gaivota
dizer que ela o trouxe com ela? Tanto pior. Quando estiver com Trigorine, não diga nada a
ele. Eu o amo. Acho que o amo ainda mais do que amava... Isso dava um pequeno conto... Eu
o amo, eu o amo apaixonadamente, eu o amo desesperadamente. Como era bom antigamente,
Kostia ! Você se lembra? Como a vida era clara, quente, alegre, pura, como os sentimentos
lembravam flores ternas e graciosas... Você se lembra? ( DECLAMA ) "Homens, leões,
águias e perdizes, cervos galhados, peixes silenciosos, habitantes da água, estrelas do mar, e
todos aqueles que os olhos não percebem - enfim, toda forma de vida, toda forma de vida,
tendo completado seu ciclo de sofrimento, está extinta... Há já milhares de séculos que a terra
não carrega um único ser vivo, e a pobre lua acende em vão sua lanterna. As cegonhas não
gritam mais ao despertar nos prados, não se ouve mais os besouros de maio nas tílias... ( ELA
SE ATIRA NOS BRAÇOS DE TREPLEV, DEPOIS SAI CORRENDO PELA PORTA
ENVIDRAÇADA).
TREPLEV: ( APÓS UMA PAUSA ) - Espero que ninguém a veja no jardim e vá correndo
contar a mamãe. Mamãe podia sofrer com isso... ( DURANTE DOIS MINUTOS ELE
DESTROI, SEM DIZER UMA PALAVRA, TODOS OS SEUS MANUSCRITOS, DEPOIS
OS JOGA DEBAIXO DA MESA. NO FINAL, ABRE A PORTA E SAI PELA DIREITA ).
DORN: (TENTANDO ABRIR A PORTA DA ESQUERDA) - Que coisa esquisita. Dá a
impressão que a porta está trancada a chave... ( ENTRA E RECOLOCA A POLTRONA EM
SEU LUGAR ) - É uma corrida de obstáculos. ( ENTRAM ARKADINA, PAULINA
ANDREIEVNA, ATRÁS DELAS JACOV, TRAZENDO GARRAFAS, E MASHA, DEPOIS
CHAMRAEV E TRIGORINE ).
ARKADINA: Põe o vinho tinto e a cerveja de Boris Alexeievitch aqui na mesa. Nós vamos
jogar e beber. Senhores, tomem seus lugares.
PAULINA: ( A JACOV ) - Traga logo o chá. ( ACENDE AS VELAS E SENTA-SE À
MESA DE JOGO ).
CHAMRAEV: ( LEVANDO TRIGORINE ATÉ O ARMÁRIO ) - Olhe, é disso que eu estava
falando há pouco... ( TIRA DO ARMÁRIO UMA GAIVOTA EMPALHADA ). Aí está sua
encomenda !
TRIGORINE:( OLHANDO A GAIVOTA ) - Não me lembro. ( PENSA UM MOMENTO ).
Não me lembro mesmo!
( À DIREITA, NOS BASTIDORES, OUVE-SE UM TIRO. TODOS SE SOBRESSALTAM
).
ARKADINA: ( ASSUSTADA ) - O que foi isso?
DORN: Não foi nada. Vai ver que explodiu um dos meus vidros de remédio. Não se
preocupe. ( SAI PELA PORTA DA DIREITA E VOLTA DAÍ A MEIO MINUTO ). Está
tudo em ordem. Foi uma garrafa que explodiu. ( CANTAROLA ) "Eis-me aqui novamente
enfeitiçado"...
ARKADINA: ( SENTANDO-SE À MESA ) - Ai, que susto que eu levei. Me deu a impressão
de... ( COBRE O ROSTO COM AS MÃOS ). Ficou tudo preto na minha frente.
DORN: ( FOLHEANDO UMA REVISTA ) - Há dois meses eu vi um artigo... Uma carta,
vinda da América, e eu queria perguntar a você... ( TOMA TRIGORINE PELA CINTURA E
DESCE COM ELE ATÉ A RIBALTA )... Já que a questão me interessa muito... ( MAIS
BAIXO, A MEIA-VOZ ) Quer me fazer o favor de levar Irina Nikolaievna daqui. A verdade é
que Konstantin Gavrilovitch se matou...
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Anton Pavlovitch, Tchekhov
FIM
ass. dez. 81.