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© 1965 – HELIO DO SOVERAL

Capa de Benicio
Digitalizado por Carlos Natali
530411

Publicado no Brasil pela


Editora Monterrey Ltda.
SÓ PARA LEMBRAR

Já somos velhos conhecidos. Meu nome é Brigitte


Montfort. Minha mãe, Giselle, foi uma heroína da
Resistência Francesa do tempo da ocupação nazista, e meu
pai — ó ironia do destino! — um estrategista de Hitler, Fritz
Bierrenbach, talvez assassinado pelos próprios
companheiros da Gestapo.
Vivi toda a infância na América, eduquei-me em Nova
Iorque, trabalhei no famoso matutino “Morning News” ao
lado do “velho” Miky Grogan e ingressei no serviço secreto
pelas mãos do misterioso Inspetor Pitzer do FBI. Mais tarde
transferi-me para a França, pois as estrofes da Marselhesa
ainda vibram na minha alma. Tenho participado de
arriscadas operações de espionagem e contraespionagem,
sempre sob a tutela teleguiada do ranzinza “Monsieur
Nariz”, chefão do Deuxième Bureau (que vocês sabem, é o
Serviço Secreto francês), meu amigo e admirador,
companheiro de minha mãe na época aventurosa da
Resistência.
Quem leu minhas aventuras nos livros O Olho Da Morte
E O Trono Escarlate1 não esqueceu o famoso agente secreto
inglês, “Mr Fantasma”, ou seja, o boa pinta John Pearson.
Faço um pedido especial ao leitor: não revele a ninguém
minhas ligações afetivas com ele. John e eu fizemos um
pacto: nenhum de nós jamais revelará à sua organização de
espionagem a identidade do outro. Por quê? Para que todos
os anos, por somente quinze dias deliciosos de férias, os
rivais de tantas aventuras se encontrem.
L’amour a des raisons...
1
Edições 12 e 13 desta coleção. Já digitalizado e disponível gratuitamente em
“savajo.blogspot.com”. NR
Bem, é melhor que eu conte logo nossa última aventura,
realmente das mais movimentadas que temos vivido. Tudo
começou...

CAPITULO PRIMEIRO
Onde recebo um convite novo e me ponho numa velha jogada
Monsieur Nariz não acredita em risco calculado — A sequência

Diga-me, leitor amigo, como se sente você quando vai


entrando em casa, com a chave ainda sendo girada na
fechadura, e escuta o tilintar insistente do telefone, lá dentro,
.prenunciando um aviso?
Eu confesso que o toque do telefone sempre me
emociona. É alguém que deseja se comunicar comigo, trazer-
me uma alegria ou me dar uma notícia impressionante. É a
mensagem!
Estou agora mesmo assim, na porta do meu apartamento
girando a maçaneta, e o telefone toca insistentemente. Corro
para ele procurando adivinhar a origem do chamado.
— Alô!
Uma voz familiar do outro lado da linha:
— Brigitte! Preciso falar com você. É urgente!
Não é uma grande alegria nem sequer uma notícia
trepidante que me anuncia essa voz. Vem de Monsieur
Nariz, o chefe durão, o único homem que me olha sem
segundas ou terceiras intenções.
— Quer que eu vá aí ao seu escritório? — perguntei, em
tom profissional adequado.
— Não — fez ele, monótono. — Prefiro que me espere
em casa. Vou imediatamente.
E desligou.
Soltei o casaco nas costas duma poltrona e dirigi-me ao
banheiro. Tirei a roupa e abri o chuveiro sobre mim ha
cabeça, calculando que Monsieur Nariz ainda tardaria um
pouco a chegar. Tinha tempo de sobra para a volúpia de um
banho morno.
Já diante do espelho do meu quarto, a enxugar-me
devagar, considerei a beleza do corpo que Deus me deu. Por
que me teria ele feito assim? Um desafio ou uma bênção?
Dizem que a beleza é uma graça divina que tantas vezes por
mau uso de quem a detém chega a se transformar numa
espécie de maldição. No meu caso a beleza tem sido um
instrumento de trabalho, uma espécie de habilitação
profissional, uma luz que me ilumina os caminhos. Por ela os
homens se batem, se envaidecem e — quase sempre —
fazem o que eu desejo. Menos mal.
John, que não é ciumento, aconselha-me a cuidar da
minha beleza como quem faz a manutenção de uma boa peça
de artilharia.
Estou usando agora os cabelos mais curtos, porque está
na moda. Os homens gostam das mulheres atualizadas, não
sei por que. É uma pena que John não me possa ver agora,
no melhor de mim. Mas uma espiã — quero dizer — um
agente secreto, não pode estar sempre na companhia de
quem deseja.
Ando com muita simplicidade atualmente. Blusas
discretamente decotadas, com recursos para, em poucos
minutos, perderem essa discrição. Saias não muito justas que
dão a ilusão de o serem. Sapatos rasos de saltos elegantes,
que me favorecem as linhas dos tornozelos e das pernas.
Equipamento necessário.
A simplicidade não afasta o feitiço. Gosto de champanha,
mas sei tomar uma bebida vulgar, qualquer, sem perder a
linha. A França me paga bem e não devo ser mau negócio,
pois Monsieur Nariz sempre dá um jeito de me transferir
suas verbas secretas. Serei eu a melhor agente do mundo?
Não. Não sou assim tão pretensiosa. Sei que meu rival, o
famoso Mister Fantasma, o John Pearson que só eu, o leitor
e o MI-52 conhecemos, leva alguma vantagem sobre mim.
Mas confio nos meus próprios métodos. Simplesmente.
E volto à descrição anterior. Enquanto esperava Monsieur
Nariz ia-me deixando enlanguescer pela tepidez do
ambiente. Calor!
Ao sair de Paris, há um mês, o tempo era chuvoso e frio,
e agora encontrava a primavera em tom de verão. Abri todas
as janelas e comecei a desfazer a maleta. Os três toques
habituais de Monsieur Nariz soaram no momento em que eu
guardava a última peça de roupa no armário.
Juro que não teria coragem de recebê-lo “au naturel”.
Seria uma falta de respeito e uma provocação desnecessária.
Vesti meu robe de chambre de seda rosa shocking e corri a
abrir a porta. Atrás do nariz imponente surgiu a figura
cerimoniosa do meu chefe. Logo percebi sua irritação.
Passou por mim sem lançar um só olhar malicioso, o peito
erguido e a careca brilhando. Vinha sem capa nem
sobretudo, embora seu terno fosse de casimira grossa. Sua
elegância impecável exigia-lhe certos sacrifícios diante da
meteorologia.
Trazia nas mãos o chapéu londrino e uma bengala muito
delgada, com o c as tão de prata lavrada. Procurava aparentar
uma juventude profissional e uma saúde agressiva que eu
sabia inexistentes, pois era homem achacoso, medroso de
resfriados e de correntes de ar. Como sempre, aproveitei suas
fraquezas. Fui em seu encalço e apoiei as mãos nos seus
2
Seção de espionagem do Ministério do Exterior inglês. NE
ombros magros, lançando-lhe meu melhor olhar provocante.
O azul de meus olhos mergulhou no cinza-esverdeado dos
seus, com uma unção que a melhor atriz do mundo invejaria.
E dizer-se que meus dotes histriônicos estão fadados a
permanecer no anonimato!
— Meu caro — exclamei, com profunda admiração. —
Você é um assombro: cada vez que o vejo parece-me mais
moço,
— Pelo tempo que passou desde a última vez que me viu,
eu deveria ter o aspecto de Albert Schweitzer em seu leito de
morte.
Gostei da transformação. Com bons modos, cerimonioso,
bem-humorado. Beijei-lhe a face.
— Meu querido — sussurrei, emocionada o suplicante —
sou uma pobre garota sempre em perigo, com raros
momentos de paz e nenhuma felicidade. É tão imperdoável
que tenha tirado umas férias de poucos dias?
— Temos uma missão dura e...
Deixei-o falar à vontade sobre a dureza da missão que a
pátria nos confiava até que esgotou o repertório. E então
comecei a encaminhá-lo para o assunto que me interessava.
— Não seja cruel! Você tem um lar, uma família, vida
social. Eu só tenho esta velha solidão, o perigo, o olhar para
a morte... Perdoe-me o breve descanso. Foi tempo roubado à
França!
O melodrama, acompanhado de outro beijinho na face,
agora perigosamente próximo da sua protuberância nasal, fez
efeito. Monsieur suspirou. Desfechei-lhe o golpe de
misericórdia:
— Você será sempre jovem e bem apessoado, como
agora. E eu envelhecerei cedo, com os nervos esgotados pela
guerra continua, se uma bala não encontrar meu caminho...
Afastei-me até à janela, lentamente, pois em cada caso há
um modo de andar aconselhado. E os raios do sol poente
convertiam o tecido do meu robe em gaze transparente aos
olhos de Monsieur Nariz.
— Não sou um soldado. Sou apenas uma moça, sozinha
no mundo. Mas não deserto; estrangulo os sentimentos e
volto sempre à luta. Eis-me aqui, às suas ordens!
E coroei a cena voltando-me para ele, os ombros lançados
para trás, a cabeça alta.
— Tem razão, Brigitte. Peço-lhe perdão: compreendemos
que esteja abatida e necessite um descanso. O caso do Trono
Escarlate3 foi difícil e perigoso. Não era assunto para uma
mulher e sim para um regimento completo. Apesar do pouco
êxito que obteve, sabemos apreciar o que fez pela pátria.
Mas agora já descansou um pouco, e queremos dar-lhe novas
instruções.
O querido idiota estava em seu ambiente. Quando
começava a falar na primeira pessoa do plural, a Marselhesa
musicava suas palavras. Eu ri intimamente. Se ele soubesse
como me consolara do fracasso do Trono Escarlate naqueles
dias... Deixei-o falar, enquanto ele estendia atrás de suas
palavras uma nova rede de perigos em que eu me envolveria.
Aproximou-se do armário e apanhou uma calcinha
rendada que eu deixara cair ao chão ao ouvir seu toque na
campainha. Com a peça íntima na mão, voltou-se para mim:
— Perdeu seu tempo, desfazendo a bagagem. Vai
arrumá-la outra vez, pois terá de viajar imediatamente. A não
ser que tenha de escolher trajes mais próprios para o calor
que se acentua.
— Meus trajes servem para qualquer estação e local —
sorri. — O calor e o frio não me põem em dificuldade.
3
Como já vimos, a aventura de número 13, desta coleção. NE
Ele olhou para o que tinha nas mãos e soltou-o
repentinamente, como se lhe queimasse os dedos.
Enrubesceu um pouco — a começar pelo nariz — pigarreou
e entrou decisivamente no assunto:
— Bem. Fomos solicitados a colaborar com a NATO4.
Há qualquer coisa que é de interesse comum a nações
ocidentais. Serão destacados três agentes, um de cada país. E
nós escolhemos você.
Aquilo não me agradou. Aproveitei a pequena paina que
fez para sentar-me na melhor poltrona de minha sala e
interromper o curso de seu relato:
— Um momento! Eu sempre trabalho sozinha. Monsieur.
Só você conhece minha condição de agente especial. Se eu
me apresentar ao pessoal da NATO como membro do
“Deuxième Bureau”, a identidade da melhor espiã do mundo
estará revelada. E pobre de mim, no futuro...
Ele levantou as mãos, pedindo que o deixasse falar.
— Espere, por favor. Até onde você é a melhor agente do
mundo não sabemos: esquece o misterioso “Mister
Fantasma”? Concordamos que você é um dos melhores, no
ramo. Mas a nossa organização não tem rival; tem armas
para todas as circunstâncias. Fingimos que o assunto não nos
interessa, e demos mesmo a entender que o consideramos
uma farsa ridícula. Nosso plano é enviá-la como novata,
funcionária burocrática sem experiência, por considerarmos
o caso irrelevante. Entendeu?
Eu não tinha gostado, mas deixei-o continuar. Monsieur
Nariz pôs-se à vontade, julgando que conquistara minha
aquiescência.
— Vejamos então: a França quer participar da tarefa, que
nos pode ser de vital importância. Mas nós decidimos que
4
Conhecido por nós como OTAN: Organização do Tratado do Atlântico Norte. NE
somente o agente americano vai conseguir resultados
positivos, por inépcia de nossa agente. Teremos dois
proveitos: os americanos gastarão o dinheiro enquanto nós
não despenderemos praticamente nada, para desmontarem o
que o Oriente está preparando contra o Ocidente. E nós
teremos a informação completa, deixando para os outros
uma solução falsa.
— Se eu aceitar a missão, que deverei fazer com o
terceiro agente; parecer boboca, como para o americano?
— Exatamente, Brigitte. Boboca, incompetente. Uma
novata, enfim. Como se tivéssemos enviado, apenas para
cumprir o convênio, uma datilógrafa protegida dos chefes do
Ministério, para conhecer um pouco do mundo por conta da
nação...
Afinal! A sordidez de sempre. Gastariam alguns milhares
de francos comigo e receberiam em troca informações que
valem milhões. Mas ainda não estava convencida da
segurança do plano. Os outros poderiam perceber que
Brigitte Montfort era o melhor...
— Sim — continuou Monsieur, cortando minhas
divagações. — Você se fará de boba para todo o mundo. Se
os americanos não puserem seus dólares em ação,
providenciaremos para que os ingleses ponham suas libras.
Aquela revelação me alterou o ritmo do pulso, mas
simulei um bocejo de tédio. Claro que devia ter adivinhado
qual seria o terceiro país naquela missão. Inglaterra
significava o MI-5, e MI-5 significava John Pearson.
— Quem será o agente que a Inglaterra vai destacar? —
perguntei com indiferença. — Conheço alguns,
perfeitamente convenientes aos nossos interesses. Não
poderíamos conseguir que o escolhido seja um desses
incompetentes?
— Oh, não! — Monsieur Nariz sacudiu a cabeça com
energia. — O MI-5 também vai enviar um esperto metido a
boboca. Não tenha dúvida,
Brigitte, de que virá o melhor de que a Inglaterra
disponha.
— Então — sorri, deliciada, sem esconder minha alegria.
— Concordo! Venha de lá o assunto.
Monsieur olhou-me com desconfiança. Minha decisão
repentina não estava em seus cálculos. Eu concordara, sem
ao menos saber do pagamento! Isso era inusitado, e
Monsieur Nariz desconcertou-se. E claro que ele não podia
saber que o motivo de minha decisão era a certeza de que eu
teria por colega de missão o meu querido Mister Fantasma,
braços amorosos ao meu dispor. Trabalharíamos juntos, e
não como adversários, o que era uma certeza de que o
despiste seria garantido. Ninguém saberia da nossa condição
de agente secreto — os dois mais malandros do mundo.
Comecei por despistar o próprio Monsieur Nariz, que
permanecia calado, sem saber como reagir à notícia de que
eu aceitara a missão sem pedir aumento de salário devido à
carestia do caviar.
— Então? Esqueceu-se de que eu ainda não sei qual é a
missão? .
— Ah, é verdade! — suspirou ele, sem perceber que
estava sendo dirigido à meta que eu determinara. — Vou
dizer-lhe. Conhece o projeto ORCA? Ouviu falar nele
alguma vez?
— Sim. Quem não o conhece?
Naturalmente estou sempre a par do que acontece no
mundo. O que não sai publicado nos jornais e revistas,
estudo-o no “Deuxième Bureau”, na sala privada de
Monsieur Nariz, que põe à minha disposição regularmente os
seus dossiês para estudo. Minha cabeça não é boa só por
fora. Tenho um magnífico arquivo dentro dela.
— Pois as raposas moscovitas já começaram a semear a
coisa nas nossas costas, e parece que também nas
americanas. Alguém vai trazer-nos os mapas dessas
semeaduras, e precisamos protegê-lo. Tememos que
suspeitem dele e o sigam. E isto é tudo.
Ficou muito sério, a olhar-me por sobre as mãos postas
como em oração. Monsieur Nariz granjeara fama de bravo na
Segunda Guerra e na Indochina, mas o talento histriônico
não era o seu forte. A ansiedade com que esperava minha
reação era visível, palpável, mesmo.
Sentei-me a seu lado, apoiando um cotovelo em seu
ombro, e fiz uma cócega muito leve em seu queixo.
— Isso vai custar duzentos e cinquenta mil...
— Ora, o trabalho é fácil, Brigitte! — sorriu amarelo. —
Esperar um agente da NATO e copiar uma informação que
ele lhe fornecerá... Fazer-se de boba...
— Ah, é? Poupar à França da destruição de milhões de
vidas por uma nuvem radioativa, proteger um homem contra
centenas de pistolas ansiosas, conservar nos cofres do Banco
de França vários milhões que seriam gastos na busca das
bombas do raposão moscovita... Arriscar-me a ter a
identidade desvendada... E tem mais, querido: olhe bem para
este bombom. Talvez os vermes o comam antes que esse
trabalhinho tão fácil termine.
Monsieur Nariz não olhou, tentando resistir aos meus
argumentos. O bombom continuou ao seu lado, tentando-o
com tua simples presença. Mas ele estava derrotado, e sabia
disso. Não pudera esconder a ansiedade que o caso lhe
despertava.
Suspirou e sacudiu a cabeça para cima e para baixo várias
vezes, como se o nariz lhe pesasse muito. Bem, devia pesar
mesmo...
— Você é ambiciosa, Brigitte. Sempre pede mais, e me
convence. Muito bem. Amanhã às dez horas será apresentada
ao general John F. Wilde, em particular. Vá ao apartamento
B do prédio número vinte da Rua Petitroy, com este cartão.
Como vê, não pus nome nenhum: você escolherá o que lhe
aprouver.
— Oh, que beleza! — repliquei, prendendo o cartão nas
mãos juntas diante do peito, coisa que não é muito fácil por
motivos óbvios, e sorrindo com a inocência das jeunes filles.
Que emoção! Igualzinho aos filmes! Vou realizar meu
sonho: trabalhar como espiã, seduzir generais inimigos, pôr
narcótico no champanha, usar nome suposto, fazer olhares de
mulher fatal e ser fuzilada ao amanhecer, ao toque
melancólico de um clarim soluçante... Obrigada pela
oportunidade, coronel!
Monsieur Nariz me olhou, pôs-se de pé, olhou-me
novamente, caminhou para a porta, olhou-me mais uma vez,
bufou, olhou-me ainda e exclamou:
— Já que sua missão está iniciada, digo-lhe adeus. Passe
bem, Mata-Hari!
CAPITULO SEGUNDO
Dois espiões desajeitados — Interlúdio amoroso
O primeiro contato e o “affaire".

O velho café morria de aborrecimento. Um casal a um


canto parecia asfixiado, e não se movia há mais de dez
minutos. Junto ao janelão outro par já sucumbira ao tédio,
pois desde minha chegada, meia hora antes, permanecera na
mesma posição. Mas enquanto o primeiro casal mantinha os
lábios unidos num beijo interminável, o segundo apenas
olhava o vácuo, homem e mulher gordos e quarentões.
Noutra mesa, dois vigorosos carecas bocejavam. Mulher
de aparência duvidosa ia de quando em quando ao telefone,
atendê-lo ou fazer alguma ligação. Certo grandalhão, de capa
preta, surrada, entrou pela terceira vez, percorrendo, com o
olhar míope e vago dos entediados, todos os cantos da
espelunca. Seus ombros caídos, sua boca entreaberta,
deixando ver uma fileira de dentes grandes e amarelados, a
boina negra e sebosa, davam-lhe uma aparência
ridiculamente sinistra.
Uma garota gorducha cruzava e descruzava
repetidamente as pernas, enquanto fumava um “Gauloises”
malcheiroso numa piteira longuíssima, sem conseguir atrair a
atenção sequer dos carecas.
Em outra mesa, com um livro grosso nas mãos, a ruiva de
cabelos mal pintados e óculos de bibliotecária, blusão de cor
indefinível, saia muito comprida e pregueada, molhava os
dedos com saliva ao passar as páginas. Tinha os dentes
saltados como um limpa-trilhos e usava sapatos de saltos-
sola. Mulher de idade indeterminada, de corpo indistinto, de
cérebro inescrutável.
Parece mentira, mas essa mulher era eu. Para os leitores
afeitos a histórias de espionagem, este disfarce parecerá
perfeito. E o era, mas os meus melhores êxitos foram obtidos
de biquíni. Estou pensando seriamente em adotar as
transparências, para certos fins particulares
Mas, como ia dizendo, o homem da capa enorme e
surrada havia entrado no bar pela terceira ou quarta vez,
correndo um olhar vago pela sala quase vazia. Que idiota!
Como se não bastasse enfiar a cabeça na porta para ver que a
pessoa procurada não estava lá. Tive pena dele e chamei-o
com uma flexão do dedo indicador.
Aproximou-se de mim, sorrindo com seus dentes
amarelados, e piscou um olho.
— Bem, Brigitte... Vejo que me reconheceu — sussurrou.
— É, John... Você percebeu quem sou — respondi.
Rimos. Convidei-o a sentar-se. Não fez cerimônia e logo
passou o braço em redor de minha cintura. Encostei-me em
seu corpo, com o calor a percorrer minhas veias ao seu
contato.
— Que diabo! — disse ele. — Você sabia que era eu, e
não me seguiu. Entrei e sai umas quantas vezes, e nada...
— E eu esperava que você percebesse quem sou e se
aproximasse.
— Quanto tempo perdemos, meu bem. Vamos sair, sim?
Por favor...
“Por favor”... A única expressão que denunciava sua
nacionalidade. Repetia-a, como o seu “please” quando falava
inglês. Meu coração bateu feliz ao escutá-lo. O melhor
agente secreto do mundo — depois de Brigitte Montfort, é
claro — pedia-me “por favor”. Mister Fantasma para mim;
John Pearson, jornalista inglês, para o mundo em geral.
Ele me telefonara duas horas antes. Ambos conhecíamos
os números dos telefones privados e secretos que cada um de
nós possuía em Londres e Paris, respectivamente. Como
profissionais, só nos conhecemos na qualidade de agentes
adversários e, às vezes, inimigos. No plano pessoal, somos
íntimos... Duas horas antes John me havia dito ao telefone:
— Tenho a impressão de que a rainha da moda e o rei do
jornalismo, por um desses obscuros desígnios da sorte, vão
trabalhar juntos sem caráter oficial pela primeira vez. Diga-
me se estou enganado, por favor.
— Não está enganado. Sabe que eu já estava a ponto de
telefonar para você? Mademoiselle Fantasma está
emocionada e impaciente, com essa perspectiva.
— Mister Fantasma também está. Espere-me, daqui a
uma hora e meia, no Café Cercassonne. Sabe onde é?
Conheço todas as esquinas do mundo, das mais luxuosas
às menos atraentes. Como não iria saber onde fica um café
de Paris? Mas tive a ideia de adotar o disfarce, para qualquer
emergência,
Uma peruca raiva, uma dentadura superposta, óculos,
trajes de solteirona intelectualoide... Fácil de pôr e fácil de
tirar, como o disfarce elementar que John adotara.
Ao sair do café, caminhando lentamente pelas ruas
sombrias de Paris, abraçados como um par de namorados —
e não o éramos? — John me dizia que lhe ocorrera a mesma
ideia que a mim. Seu chefe, o famoso Mister Arame, lhe deu
as mesmas instruções que eu recebi de Monsieur Nariz.
O casal, tão feio que despertou a curiosidade risonha de
um ou outro passante, dirigiu-se ao apartamento de John. Ele
tirou a capa e os elementos do disfarce e aparecei aos meus
olhos em todo o seu esplendor. Fazia apenas quatro dias que
nos separáramos, depois das deliciosas férias que tiramos por
conta própria ao terminar o caso do Trono Escarlate. Nossas
epidermes ainda conservavam o calor mútuo que as animara
naquela temporada de emoções.
— Enfim, sós, outra vez... — sorriu ele. — Prevejo que
esta missão será a mais agradável de minha vida. Você é
uma colaboradora adorável.
Acerquei-me e abracei-o como só eu sei fazer, sorrindo:
— E quero começar a colaborar desde este momento...
John me afastou delicadamente, mas com energia,
afetando um arreganho de repulsa cômica. Franziu o nariz,
ante o meu assombro, e apontou para o espelho às minhas
costas.
— Olhe-se ao espelho, meu bem. Creio que pelo menos
na intimidade será mais agradável prescindirmos dessa
palhaçada.
Ri-me diante de minha imagem. Ao lado de John, parecia
uma bruxa abraçada ao Príncipe Encantado. Ele, bronzeado
de sol, atlético em seus trinta anos de idade, com um ar
simpático e levemente cafajeste, causava chiliques nos
brotos. E, no entanto, estava afagando, naquele momento, a
cintura duma solteirona ridícula e dentuça.
Tirei rapidamente o disfarce e voltei-me para ele. Agora
eu era novamente a Brigitte que John conhece.
— Não vou tirar este blusão porque não tenho nada por
baixo dele, John.
— Não quero que você fique com complexos de
inferioridade diante de mim.
Dito isso, ele tirou o paletó. Eu tomei a sorrir. E permiti
que me beijasse.
— Não vamos descer para o jantar? — perguntou-me,
depois de algum tempo de muito carinho.
— Seus trajes é que vão atrapalhar.
— Sempre tenho recursos, querido. Lembrete de que sou
uma espiã eficiente.
Eu levava uma bolsa de mão incrivelmente prática, onde
cabem implementos os mais variados para ocasiões como
aquela. Tirei dela um par de sapatos de Charles Jourdan que
causam inveja a qualquer grã-fina, uma blusa de nylon que
cabe em uma carteira de cigarros e uma saia de tergal
dobrada numa caixa de lenços. Vesti tudo aquilo e fiz a
maquilagem, após o que me voltei para John:
— Que tal?
— Oh, meu Deus! — respondeu ele, fechando os olhos.
— Meu entusiasmo por sua colaboração cresce a cada
instante. Mas perdi a vontade de jantar.
— Saí correndo para o corredor, perseguida por Mister
Fantasma. Sei destruir a fleuma de um inglês, mas sei
também que para certos assuntos oficiais deve haver uma
mesa de permeio, e muitas testemunhas, para que os assuntos
tratados sejam direitos.
— Deveríamos ter ido a qualquer restaurante simples.
Mas agora já estamos aqui... — disse ele, quando nos
serviram o “consommé” no salão luxuoso do Tour d’Argent.
— Que acha de nosso trabalho? Será tão fácil como nos
quiseram fazer crer?
— Não creio. Meu chefe concordou logo com o preço
que pedi...
— O meu também. Mas em meu caso há motivo mais
importante do que o dinheiro: você. Monsieur Nariz é
compreensivo?
— Muito. Basta-me usar de alguns truques para obter o
que quero.
— Já sei — John sorriu. — Você veste uma blusa igual a
essa, para tratar de negócios com ele. Tenho uma lista de
pessoas que precisarão de dentista quando eu deixar a
profissão...
— Eu também tenho minha lista de mulheres que
precisarão de peruca e plásticas corretivas, pelas mesmas
razões. Continue, John.
— Se o assunto fosse fácil, não nos leriam escolhido. O
pobre-diabo que vai trazer a informação deve estar em
apuros. Creio que teremos muito trabalho para enganar os
inimigos e ainda o colaborador da CIA, o general Wilde,
Mister Arame, Monsieur Nariz... Sei lá quantos serão.
— Ainda bem que não estaremos em campo opostos,
querido.
— Nem precisaremos atirar um no outro...
Suspirei. Em outras oportunidades, lealmente, eu me vira
a braços com a ideia de dar-lhe um beijo de despedida nos
lábios hirtos depois de convertê-lo em cadáver com minhas
próprias mãos. Mas agora...
— Talvez seja pior do que isso, John. Se para cumprir a
missão eu tiver de deixá-lo morrer...
— Oh, isso são cavacos do ofício — replicou sorridente.
— Enquanto não chegar essa hora, não pensemos nisso, por
favor.
Efetivamente, não devíamos pensar em lutas, perigos,
mortes naquela noite. Tínhamos uma trégua até a manhã
seguinte. E aquela noite era somente nossa.
Levantamos as taças cheias de champanha borbulhante
como nossos sentimentos. E nossos olhares se fixaram
profundamente.
— Por nossa colaboração — murmurei
— Por nossa colaboração — repetiu ele, muito sério.
***
Quase não fomos pontuais. Chegamos apressado à Rua
Petitroy, com nosso disfarce da noite anterior e nos
separamos antes de atingirmos o número vinte. John me
cedeu a prioridade.
Subi em um elevador pequeníssimo e apertei a campainha
do apartamento B. Já passavam dois minutos das dez horas.
Um homem cinquentão abriu a porta. Era enxuto de
carnes e comprido, com cara de cavalo e cabelo branco
cortado rente. Seu traje berrante, de enorme axadrezado.
— O general Wilde? — perguntei com voz guinchante e
deixando a boca aberta depois de falar.
O pobre homem enrubesceu e gesticulou pedindo-me
silêncio. Olhou para ambos os lados do corredor. Empurrou-
me para dentro do apartamento. Lá, numa sala modestamente
mobiliada, vi um jovem graúdo afundado numa poltrona Era
louro e saudável como um anúncio de academia de
halterofilismo, mas tinha numa das mãos um cigarro e na
outra um copo de uísque “on-the-rocks”. Não se moveu,
limitou-se a cumprimentar-me com um aceno do cigarro.
— Bem — disse o general, que se mantivera atrás de
mim. — Quem é a senhorita?
— Um momento... — disse eu, rebuscando na bolsa.
— Espere — interrompeu-me.
A campainha soara. O general abriu a porta e deu entrada
a John, que vinha arrastando os pés e a gabardina. Com seu
ar míope, cumprimentou desajeitadamente.
O general Wilde e o jovem da poltrona ficaram a olhar-
nos com estupefação.
— Continue — disse Wilde, voltando-se para mim,
depois de recuperar o autodomínio.
Tomei a enfiar a mão na bolsa e puxei dela minha pistola,
apanhando-a pelo cano. Hesitei, cheia de dedos, e passei a
arma para a outra mão, remexi novamente na bolsa e
encontrei o cartão. Entreguei-o ao general.
— Natalie Dupont — leu o homem. — Bem, você foi
enviada pelo “Deuxième Bureau”. Tem experiência?
— Oh, sim! — disse, precipitadamente. — Muita.
Trabalho nisso há quase seis meses.
O jovem louro engasgou-se com o uísque. Wilde,
suspirando, devolveu-me o cartão e se voltou para John. Este
lhe entregou também um cartão, assegurando que também
tinha uma pistola e que se chamava James, embora o cartão o
referisse como Peter.
Desconsolado, Wilde voltou-se para o jovem do uísque,
com quem trocou um olhar significativo. O louro sorriu e
pôs-se de pé. Olhou-nos com expressão divertida e dirigiu-se
a Wilde:
— Que há? — perguntou alegremente. — Não está tudo
em ordem?
— Creio que o “Deuxième Bureau” e o MI-5 não nos
levaram a sério. Não sei se você os considerará úteis...
— Como não? — respondeu o jovem, piscando um olho.
— Serão muito úteis. Lembre-se de que os satélites precisam
de foguetes para levá-los ao espaço...
O general compreendeu. E nós também, é claro. Aquele
jovem era o agente americano. E dissera a seu chefe que
John e eu seriamos as iscas para o inimigo enquanto ele fazia
o trabalho.
Voltou-se para nós e apertou fortemente nossas mãos. Até
então faláramos em francês, mas agora ele empregou a
infernal gíria americana.
— “Hello”, meus amigos. Eu sou Red Carson, da CIA.
Creio que nos daremos muito bem. Eu sou um bichão nesses
assuntos, e vai ser sopa. Venham, vamos tomar um gole,
querem?
Havia uma porta entreaberta. Foi então escancarada, e por
ela apareceu outro homem, talvez da mesma idade de Wilde,
mas com aspecto mais jovial. Seus cabelos eram de um louro
platinado, e tinha o tronco rijo, queixo quadrado, pele rosada
e expressão simpática. Seu olhar parecia despedir chispas de
malícia inocente. Wilde apresentou-o:
— General Hans Von Slassen, da Alemanha Ocidental.
Está adido à NATO e a mim, para este assunto que nos
ocupa.
Percebi que Wilde e Carson tratavam o alemão com uma
espécie de condescendência desdenhosa. Hans Von Slassen
nos apertou as mãos e disse a Wilde:
— Continuamos sem notícias, general. Ouvi as
apresentações da distinta senhorita e do cavalheiro. Volto
para o rádio.
Apontou para a porta que havia deixado aberta. Vimos
um quarto de dormir, sobre cuja cama estava montada uma
pequena estação de rádio. Mas Wilde o deteve.
— Sente-se, general. Podemos ouvir daqui, se o aparelho
chamar. Vamos explicar aos recém-chegados-como estão as
coisas.
Sentamo-nos, todos munidos de cigarros c copos de
uísque “on-the-rocks”. Diverti-me intimamente com o
espanto dos três — porque John apenas fingia espanto —
quando me engasguei com a fumaça e lacrimejei ao beber o
uísque.
Wilde estendeu a John e a mim cópias de plantas dos
arredores de Nice, Calais e das fronteiras da Alemanha nas
imediações de Gostar. Em seguida informou:
— Os senhores devem saber que os Estado Unidos estão
aperfeiçoando os estudos do professor Teller: cargas
atômicas muito poderosas encerradas em recipientes
metálicos (“containers”), que podem ser semeados nos mares
inimigos. Em caso de guerra, bastaria apertar-se um botão
para que todas explodissem. As nuvens radioativas, então
destruiriam a agricultura inimiga, e em seguida as próprias
populações. Aviões de bombardeio, foguetes balísticos, tudo
isso se tomou obsoleto diante dessa arma.
— Espantoso! — suspirou John, boquiaberto.
— Sim, espantoso — sorriu Von Slassen, olhando-nos
divertido.
— Mas o doutor Teller — prosseguiu. Wilde — planejou
isto há mais de dez anos. Nós só há pouco tempo começamos
a desenvolvê-lo. E fomos informados de que a Rússia se
antecipou de muito e já espalhou dez “containers” nas costas
europeias.
— Que honor! — suspirei eu, boquiaberta, em grau mais
superlativo do que o que John adotara.
— É um horror, mesmo — disse Carson, olhando-me
com compaixão.
— Sim, um horror — comentou Voa Slassen, olhando
para Wilde e Carson. — Parece mentira...
— Um homem conseguiu saber os lugares em que foram
estacionados os “containers”, e vai trazer-nos a informação.
Precisamos destruir esta ameaça ao mundo livre, sem que
Moscou saiba que o fizemos. Quando o descobrir, também
teremos nossos “containers” que neutralizarão sua vantagem
inicial. E como no caso das bombas atômicas tradicionais e
das de hidrogênio, o equilíbrio impedirá que qualquer facção
use armas tão devastadoras. É evidente que espero que
conservem o que ouviram no maior segredo.
— Juro que não conto pra ninguém — disse eu. — Mas
não sei onde é que eu entro nesta história.
— Chegaremos lá, senhorita. O lugar onde estão os
"containers” só é conhecido por um número muito limitado
de pessoas: o Primeiro Ministro soviético, o chefe do
Exército Vermelho e os dois engenheiros que instalaram o
sistema. Além desses, apenas o homem que vai trazer-nos a
informação.
— Um agente americano? — perguntou John.
— Não. Um polonês.
— Ah! — exclamei.
— Que quer dizer com isso? — perguntou Carson, rindo.
— Não sei — disse eu, ruborizada. — Eu só falei “ah!”...
Como Von Slassen se divertia! Mas não era à nossa custa,
e sim de Carson e Wilde, que o fazia. Era evidente que o
segredo não era mesmo segredo para ele. John e eu
precisávamos de uma entrevista reservada com aquele
homem.
— E os que semearam os “containers”? — perguntou
John.
— Foram dez homem, num barco pequeno. Todos
morreram, ao fim da missão. O polonês, Pedro Ploskow, no
entanto, sabe o ponto exato em que está cada um deles. É um
homem que trabalha há vinte anos como “attaché” de seu
país junto ao governo soviético, fingindo-se comunista. Na
realidade, tem um motivo pessoal para a traição aos russos. E
agora tem a oportunidade ideal. Vai fugir, e...
— E os russos nem vão desconfiar que trará consigo a
informação — interrompi.
— Não, porque ignoram que ele a tem.
— E como é que o senhor sabe disso? — perguntou John.
— Bem, em realidade, eu não sei... Pedro Ploskow teve
uma entrevista secreta com nosso embaixador em Moscou...
Continuou explicando que aquele encontro fora realizado
por uma circunstância casual que dificilmente se apresentaria
de novo, pois Pedro Ploskow não podia arriscar-se a
despertar suspeitas. Naquela oportunidade, o polonês expôs
sucintamente ao embaixador americano o plano dos
“containers”, que iam ser depositados pouco depois.
Ploskow assegurou ao americano que saberia o lugar
exato de cada “Container”. E informou que dentro de dois
meses faria uma viagem oficial ao estrangeiro, com um
pequeno grupo de líderes comunistas da Rússia, Alemanha
Oriental e Polônia. Visitariam vários lugares distantes, e
entre eles, com segurança, estes três: a fronteira das duas
Alemanhas, por Magdeburgo; o porto de Dubrovnik, na
Iugoslávia; e Klaipieda, na Lituânia.
Combinaram, então, que dois meses depois daquela
entrevista haveria um barco de pesca em ambos os portos, à
sua espera. Igualmente, enviaríamos agentes para recebê-lo
em Calais, em Nice e em Gostar, para proteger-lhe a fuga se
os russos o perseguissem.
— Os tripulantes dos navios de pesca serão marinheiros
americanos. Não sabemos em qual Ploskow embarcará, ou se
sairá pela fronteira seca das duas Alemanhas. Mas o barco
que o conduzir deixá-lo-á num bote de borracha, nas
proximidades de Nice ou de Calais, depois de avisar pelo
rádio aos nossos agentes, se houver perigo. Se não houver,
entrará com ele no porto. Ploskow usará um radiotelefone de
campanha para comunicar-se com os agentes que o esperam,
pois não queremos que os tripulantes do pesqueiro saibam
quem é o seu passageiro, nem qual é seu destino.
Calou-se para observar-nos. Eu me admirei da riqueza de
cuidados.
— Quantas precauções! Até parece cinema...
— Convença-se, senhorita — disse Carter — de que está
vivendo uma realidade perigosa, e todas as precauções
podem ser poucas.
— Mas, e nós? — insistiu John. — Onde é que entramos
nesta história?
— Vocês — disse Wilde — são a última e principal peça
do jogo. Os agentes que esperarão o fugitivo também não
sabem quem é ele. Vocês dois e Carter irão rapidamente para
o lugar onde o homem der à costa, e tomarão conta dele.
— É fácil — disse eu.
— Talvez o seja. Carter poderia fazê-lo sozinho,
provavelmente. Mas é um caso da NATO, e por isso
pedimos a colaboração das países signatários. Parece fácil,
mas não esqueçam: o perigo começará no momento em que
Ploskow desembarcar. Se Moscou desconfiar de suas
intenções, mesmo sem saber que nos traz essa informação,
enviará um enxame de agentes para cá. E trarão ordens de
matar, entenderam? De matar!
CAPÍTULO TERCEIRO
Um agente que não é tão ingênuo como parecia
A visão loura no bar — Traço de armadilha

Permanecemos um bom espaço de tempo calados, porque


o telefone soara e Wilde foi atendê-lo. Ao desligar, olhou-
nos com expressão de desalento.
— Nada ainda — suspirou.
— Nada de que, por favor? — perguntou John.
Wilde não se dignou responder. Foi servir-se de outro
uísque. Entretanto, o simpático Slassen nos informou:
— A embaixada americana avisou há oito dias que Pedro
Ploskow saiu de Moscou com a missão cultural comunista. E
estamos à espera de alguma notícia sobre o ponto aonde se
dirigiu.
— Em nosso setor — continuou John perguntando —
quantas pessoas sabem qual é a missão de Ploskow?
— Nós, o presidente dos Estados Unidos, o diretor da
CIA, o Primeiro Ministro britânico, o MI-5, o chanceler
alemão, o presidente francês e o “Deuxième Bureau”. E, é
claro, o embaixador americano em Moscou.
Era muita gente, mas apenas o número imprescindível. E
todos de confiança. Se o tal de Ploskow não cometera
qualquer estupidez...
— Por que não se comunicam com os barcos de pesca?
Talvez Ploskow já esteja a bordo de um deles — sugeri eu.
— Eles receberam ordens de não se valerem do rádio
antes de atingirem a proximidade do ponto de chegada. Nos
mapas que lhes forneci veem-se todos os pontos prováveis,
assinalados também os lugares exatos onde encontrarão os
agentes de ligação que se acham à espera.
Eu olhava para o ponto de Nice. Vi que, com efeito, havia
três cruzes marcadas a lápis, separadas cinco quilômetros
entre si, sobre a estrada costeira, ficando Nice entre a
primeira e a segunda.
— Agora o general Slassen lhes dará as senhas de
comunicações, aparelhos de rádio e instruções para manejá-
los.
Passamos com o general alemão para o quarto contíguo.
Von Slassen fechou a porta e olhou-nos com ar risonho.
Carson e Wilde haviam ficado na sala, tomando seu uísque e
provavelmente maldizendo nossa incompetência.
— Senhorita Natalie e senhor Peter — ele em voz baixa.
— É uma pena que nossos três governos tenham mandado
seus piores agentes para esta missão. A senha é outra idiotice
inventada pelos americanos: “uísque trinta-e-três”. E aqui
estão os aparelhos de rádio: não lhes explico seu manejo
porque decerto não serão capazes de aprendê-lo.
O homem fazia força para não desatar a rir. E nós, muito
sérios, apanhamos os aparelhos, um milagre da técnica
eletrônica. Não eram maiores do que os rádios
transistorizados que andam em todas as mãos, e estavam
providos de fones de ouvido semelhantes aos usuais naqueles
aparelhinhos. Claro que já sabíamos como manejá-los.
— É melhor que não nos ensine — disse John, com a
expressão mais alvar que pôde aparentar. — Assim não os
estragaremos.
— Perfeitamente — ajuntou Von Slassen. — Eu também
não quero que meu país arque com a despesa do
recolhimento dos “containers”. Creio que esta preocupação é
o elo que nos une.
Voltamos à sala. Wilde tornou a falar:
— Agora, vamos separar-nos. Deem-me seus números de
telefones.
— Eu estou hospedado no Ritz — disse John, muito
orgulhoso. — Registrei-me com o nome de Peter Hamilton.
— Eu também vou hospedar-me lá — completei, com ar
de quem não quer ficar para trás.
— Muito bem. Não saiam do hotel, e não falem um com
o outro. O serviço já começou. Levem os planos, aprendam
de memória as indicações e destruam depois. Podem ir,
acompanhados por Carson. Confiem nele, que é muito
experiente. Ponham-se de acordo, os três. Bom dia.
Saímos. Eram onze horas. O louro, mascando seu chicle
com displicência, parou no corredor e convidou-nos:
— Há um barzinho aqui defronte. Podemos tomar
qualquer coisa lá, e conversar calmamente. Feito?
— Feito! — aceitei com entusiasmo.
E enfiei o braço no seu, ternamente aconchegada.
Carson não deu mostras de ter ficado muito envaidecido
com a conquista que fizera. Pelo contrário, parecia
encabulado. Quando atravessávamos a rua, precisei fazer
ginásticas incríveis para manter-me agarrada a ele.
Para conseguir livrar-se de meu abraço, desculpou-se
com a necessidade de dar um telefonema, ao entrarmos no
bar. Adiantou-se pelo corredor, enquanto nós nos
instalávamos a uma ponta do balcão e pedíamos três
“pernods”. Havia poucos clientes, e todos eram
desinteressantes, mas o hábito fez-nos examinar cuidadosa e
disfarçadamente cada um deles.
— Creio que Wilde nos escondeu algum detalhe da
história — disse eu. — O perigo deve ser grande, John. Não
nos revelou tudo, temendo apavorar-nos.
— Já vamos saber — confirmou ele. — Mas penso que
será mais fácil se você desistir da conquista desse “cowboy”
transviado.
Seus ciúmes me encantaram, mas eu tinha outras ideias.
— Estou planejando uma armadilha, para ele, que nos
beneficiará muito, querido. Opa, John! Se eu tirar a peruca e
a blusa, essa jovem lhe parecera um esqueleto...
Não era tanto assim. A jovem que acabava de entrar, alta,
loura, de grande classe, não viera ao bar para beber. John
cravara seus olhos nela, esquecido de minha presença. Vestia
um “tailleur” elegantíssimo, cuja saia deveria ter sido
fabricada em algum laboratório farmacêutico, pois era mais
estimulante do que um vidro de dexamil.
Iluminada pelo sol que entrava pelas janelas, ela brincava
nervosamente com a bolsa e percorria o local com olhar que
passou desinteressadamente por sobre nós. Não tomou
conhecimento da presença de John, que a perfurava com os
olhos. Hesitou, suspirou, fez um muxoxo de impaciência e
virou-se para a porta, caminhando apressadamente. Carson
assobiou, atrás de nós. E murmurou:
— Que material! Digam-me como é, vista de frente, meus
amigos. Não cheguei a tempo de ver.
— Não se preocupe — sorri. — Como o nosso amigo
inglês gostou muito do que viu, tirei uma fotografia da
jovem para oferecer-lhe.
E mostrei discretamente a minúscula máquina fotográfica
que usara enquanto John suspirava pela loura.
— Oh, é muita gentileza sua! Mas não seria necessário
fotografá-la, pois eu jamais esquecerei essa jovem.
Carson mostrou seu assombro:
— Será tão bonita para despertar tanto interesse? Pelo
que consegui ver, ela é ótima, mas existem milhares
melhores do que ela.
— Envolvidas no caso dos “containers”, também? —
perguntei, cuidando para não deixar os dentes postiços
caírem no copo de “pernod”.
— Como? — Carter estava desconcertado. — Que é que
essa loura tem a ver com nosso caso?
— Pensei que você tivesse notado — repliquei.
— Mas pergunte ao inglês, que lhe explicará por que foi
que ela fugiu.
— Não a conheço — disse John. — Mas creio que estava
nervosa, e...
Carson riu, aliviado.
— Acho que vocês têm lido muitas novelas de
espionagem. Só nós três, o diretor da NATO, o general Von
Slassen e o embaixador americano sabemos onde é o nosso
quartel-general. E quando o general Wilde nos telefonar, já
terá mudado para outro local. Essa loura decerto anda atrás
do namorado, e não tem nada a ver com o caso. Vocês são
principiantes, e é natural que vejam um espião em cada
canto, mas confiem em mim. Eu lhes apontarei cada inimigo,
quando houver. E enquanto isso, voltem para casa e esperem
lá. Vou deixá-los agora, pois tenho um encontro com um
broto bárbaro.
Forneceu-nos um número de telefone, que conservamos
na memória, o que o fez rir, certo de que o esqueceríamos.
Saiu apressadamente.
Eu não concordava com a ideia de que a loura não tivesse
vindo examinar-nos, e estava segura de que John pensava
como eu. E pelo mesmo motivo que me fez fotografá-la com
minha máquina, John a havia fotografado na retina. Parecia
um rosto conhecido, e estranhava-me que o parecesse aos
dois. Onde a poderíamos ter encontrado antes, John e eu?
Juntos ou separados? E o mais desconcertante não era esse
detalhe, porém o fato de que eu houvesse esquecido a quem
pertencia aquele rosto rosado de boneca. Esquecera-o,
simplesmente.
John e eu fomos para o hotel. Sem os absurdo disfarces,
almoçamos no salão luxuoso, depois de eu ter enviado a
Monsieur Nariz o negativo da fotografia que apanhara.
— Que será que Wilde nos ocultou?
Discutimos essa interrogação, sem resultados.
— Onde será que vi aquela loura? Quando? Quem é ela?
Outra dúvida não esclarecida, por mais que
especulássemos.
A refeição terminou. Tomávamos café, quando decidi
chamar a atenção de John para um fato que observara todo o
tempo:
— Tenho um admirador, John. Está sentado à minha
frente, duas mesas adiante. Você não pode vê-lo. É o tipo
clássico do conquistador rococó, da década de vinte.
Realmente. O homem encarnava o tipo do galã
“démodé”, com sua aparência de Valentino. Elegância de
manequim em um terno cinza-pérola muito cintado, camisa
branca e alfinete de rubi na gravata. Completavam a
impressão as têmporas grisalhas e um anel de brilhante no
dedo mínimo da mão esquerda. Um bigodinho negro, uma
flor na lapela e uma expressão indefinida de indolência
tornavam ainda mais exagerado o tipo donjuanesco que
adotara.
E ele conhecia bem seu papel, sem dúvida
cuidadosamente estudado. Olhares lânguidos; gestos de gula,
como se eu fosse um acepipe que antegozava; cofiar de
bigodes com o dedo indicador; um brinde dissimulado, ao
levantar o copo de vinho... Todos os gestos que se
encontravam nos melodramas vaudevillescos. Senti vontade
de aplaudir sua representação.
— Você o conhece? — perguntou John.
— Não. Tenho certeza de que não o conheço.
— Anime-o, por favor. Vamos ver o que acontece.
Animei-o. Também desempenhei a contento papel. Franzi
os lábios como se estivesse refrear um sorriso, cerrei os
olhos com languidez e iniciei um brinde disfarçado com o
licor. Acendi coquetemente meu cachimbinho municiado
com o fumo inglês que John me presenteara. Esta é a minha
arma mais espetacular: um cachimbo muito longo e delicado,
de porcelana. O fornilho minúsculo cor de areia queimada, e
a boquilha de vinte centímetros de comprimento, cor de
marfim. Serve mais para “esnobar” do que para fruir-se a
delicia do fumo, pois em três baforadas se esgota a sua
capacidade. O efeito é sempre espetacular, e o foi naquela
ocasião.
O seguidor retardatário da arte de Adolphe Menjou
sorriu, deliciado, para mim, e cofiou nervomente o
bigodinho. Para rematar, apanhei uma flor do pequeno jarro
que havia sobre a mesa e aspirei seu perfume, roçando-a com
os lábios. Soltei-a ostensivamente a um canto da mesa,
quando nos levantamos.
— Pronto? — perguntou John, que no interim, falava de
assuntos sem importância para movimentar a conversação.
— Sim — respondi. — O homem quase desmaiou.
Vamos saindo, antes que ele tenha uma congestão.
Ao sairmos do salão, perguntei;
— Você pôde vê-lo bem?
— Claro. E também tenho certeza de que não o conheço.
Mas já o incluí naquela lista do dentista...
Espiei discretamente para trás. O conquistador apanhava
minha flor como se a quisesse comer.
— Está conquistado — disse a John. — Quando quer que
eu comece a dissipar sua fortuna?
— Você não vai ter tempo para isso — resmungou ele. —
Não se esqueça dos “containers”. Mais tarde, se ele insistir,
enviá-lo-ei logo ao dentista.
A voz de um “boy” nos deteve no vestíbulo.
— Senhor Hamilton! Telefone para o senhor Hamilton!
Fomos até à cabina. Era a voz de Carson, falando alto o
bastante para que eu escutasse as palavras, apesar de John ter
o fone colado ao ouvido. Estava excitado. Queria que
fôssemos imediatamente ao seu encontro na esquina de uma
rua próxima ao hotel. Tinha um carro consigo, para que nos
dirigíssemos a Wilde, que reclamara nossa presença com
urgência.
Dez minutos depois, atravessamos novamente o
vestíbulo, mas com os disfarces de turistas desajeitados. Meu
galã antiquado estava montando guarda numa poltrona, mas
nem sequer nos olhou.
Saímos. A temperatura subira, o que me fez pensar que
precisávamos alterar os disfarces, deixando de lado o blusão
e a gabardina. Um risco, pois sem a capa seria difícil a John
ocultar seu corpo atlético e bem proporcionado. E eu, sem o
blusão...
O calor era quase insuportável, pois vestíramos os trajes
de espiões principiantes sobre os que usávamos antes. Se
precisássemos viajar imediatamente para Nice, as
perspectivas não eram muito animadoras.
Resignamo-nos. Carter, com sua aparência juvenil
exacerbada pelo entusiasmo, mascava chicle sentado à
direção de um bonito Volkswagen conversível com a capota
arriada.
— Já mudamos de local — disse, arrancando com o
carro. — Estão preparados? Trouxeram as armas, os rádios?
Talvez tenhamos de viajar, e não haja tempo de apanharmos
bagagem...
Estávamos prevenidos. Eu nunca me preocupe, muito
com bagagens. Basta levar dinheiro que os problemas
desaparecem. Compro o que for necessário pelo caminho.
Red Carson, a toda a velocidade, encaminhou o Volks
para os arredores da cidade. Tomou por uma estrada e Paris
ficou para trás.
— Bem... — disse-lhe. — Que aconteceu?
— Não sei dizer — respondeu. — Parece que um dos
agentes de ligação recebeu notícias de Ploskow. O general
nos dirá, agora, para onde nos dirigiremos.
— Que general? Von Slasser? — perguntou John em seu
tom inocente.
— Não. Wilde, é claro. Von Slasser já vai chegar. Eu
mesmo o avisei, como avisei a vocês.
Diminuiu a marcha para atravessar um desvio. Alguns
trabalhadores faziam uma refeição à beira da estrada, ao lado
de um forno de asfalto. Em seguida apertou novamente o
acelerador. Três quilômetros além, desviou o carro para
entrar numa estradinha que terminava à frente de uma “vila”
de campo.
A porta estava aberta, coisa que sempre me provoca um
arrepio na espinha. Mas Canon enfiou a cabeça dentro de um
pequeno vestíbulo e gritou:
— Ô de casa!
— Entrem! — ouviu-se a voz de Wilde.
Mas era uma voz insegura, quase trêmula. A suspeita
aguçou-se em meu cérebro. Olhei para John que me indicou
as janelas da casa. Compreendi que sentira o mesmo que eu,
e me estava advertindo. Fugir poderia ser um convite a que
nos alvejassem pelas costas.
A solução era a mais aventurosa: entrar na ratoeira.

CAPÍTULO QUARTO
Das vantagens da inexperiência
A primeira produção da fábrica de mudos
A grande surpresa da Carson

O “experiente" Red Canon entrou alegremente com


absoluta desenvoltura. Os “novatos” Peter Hamilton e
Natalie Dupont entraram prevenidos, confiando na velha
facilidade com que contam para escaparem das situações
embaraçosas. Não saia de sua mente o aviso do general John
Wilde:
— Os sabujos comunistas trarão ordens de matar,
entenderam? De matar!
Atravessamos o pequeno vestíbulo e afastamos uma
cortina. Atingimos uma sala maior do que aparência externa
da casa fazia supor. Muito grande e dotada de variedade
imensa de implementos: um grupo de poltronas, um bar a um
canto, televisor, duas mesas. Uma dúzia de pares poderia
dançar naquela sala. Eu pensei que provavelmente haveria
baile ali, mas com outra música...
Notei que John se mantinha afastado de mim, o que
prenunciava sua disposição de lutar. Os soldados abrem a
formação ao se aproximarem do inimigo.
Lamentei estar vestida com aquele blusão deformante. Se
ia morrer, preferiria fazê-lo bem vestida, como as espiãs da
“belle-époque”.
O general Wilde sentado a uma poltrona, tentando sorrir
com naturalidade. Os cubinhos de gelo de seu copo de
uísque convertiam-no em campainha, batendo
desordenadamente nas bordas.
— Então, general? — mascou Carson através do chicle.
— Tudo bem — balbuciou o general, gesticulando. —
Sentem-se e esperem.
John protestou, com a ingenuidade peculiar ao
personagem que adotara:
— Mas Carson disse que era urgente...
— Precisamos esperar — insistiu Wilde, apertando os
maxilares.
John me olhava, dando volta por trás da poltrona de
Wilde. Olhava-me fixamente. Ambos sabíamos que havia
armas apontadas contra nós atrás das cortinas do vestíbulo,
às minhas costas; pistolas atrás das cortinas que cobriam
outra porta, às costas de John... E atrás do balcão do
barzinho, do biombo ao outro canto...
Sabíamos que qualquer tentativa de resistência seria vã,
pois seriamos fuzilados impiedosamente. Mas não haviam
começado ainda.
— Mas eu quero começar a trabalhar de uma vez! —
teimava o inglês. — Vamos indo.
E em seus olhos li o desejo de que eu me opusesse à sua
ideia. O truque que planejara revelou-se repentinamente à
minha imaginação. Pareceu-me genial.
— Ora, Peter! Quem dá as ordens é o general. Vamos
ficar à espera, como ele disse.
Carson e Wilde nos olhavam com assombro maior do que
de costume. Nossa discussão fez com que um deles se
esquecesse de mascar e o outro de tremer. Wilde
empalideceu ao ver que John insistia:
— Vocês podem fazer o que quiserem, mas eu vou
andando.
Avançou um passo. E eu recuei um, enquanto afundava a
mão na bolsa e puxava a pistola com um movimento
instantâneo. Apontei-a para eles, exclamando:
— Mãos para cima! Ninguém sai daqui. E não se movam!
Carson e Wilde converteram-se em estátuas horrorizadas.
E li nos olhos de John a alegria que minha compreensão de
seus desejos causava.
— Levante as mãos, inglês idiota!
Os americanos já haviam esticado os braços para o ar.
John imitou-os, à minha ordem. E eu me dispus a continuar a
comédia.
— E agora — disse-lhes com truculência — podem dar
por terminada sua ridícula intervenção neste assunto. Você
disse que devíamos esperar, não é, meu velho? Deve ter
chamado seu amigo alemão. Pois bem: vamos esperá-lo, e
assim eu terei a turma toda em meu poder. E não hão de
demorar muito os meus amigos... Já deveriam estar aqui.
— Traidora! — gemeu John.
— Seus amigos já estão aqui — suspirou Wilde. — Pode
guardar essa pistola, pois eles já estão nos encurralando.
Olhei em redor e pronunciei umas palavras em russo. É
outra de minhas especialidades: falar vários idiomas com a
perfeição de uma nativa. Não se pense que a clássica avareza
da velha França seja afrouxada somente porque sou esperta,
corajosa e... um pedaço de mulher. Entendo de rádio,
eletrônica, armas de fogo, explosivos... E John também.
Minhas palavras surtiram efeito. Um homem, com os
olhos brilhando de fanatismo, pôs-se de pé atrás do balcão,
empunhando uma pistola dotada de silenciador. Falou-me
em russo, porque o era:
— Quem é você? Quem a mandou aqui?
— Alegro-me de que vocês não tenham falhado —
repliquei, sempre em russo, com voz de sargento mal-
humorado. — Sua competência não é muito reconhecida...
Sou Nadia; não me conhece? Tenho ordem de verificar que
vocês cumpram suas tarefas com eficiência. Que estavam
esperando?
— Ora — resmungou o homem. — Que vocês
chegassem! E se você não tivesse falado, teria levado
chumbo juntamente com os outros. Não nos avisaram que...
— Alguma coisa não está funcionando muito bem —
disse eu, irritada. — Bem, podem sair dos esconderijos.
As últimas palavras foram pronunciadas em francês, pois
imaginei que os outros houvessem permanecido escondidos
por ignorarem o russo. E quatro outros inimigos surgiram
das cortinas e do biombo. Um era indubitavelmente francês e
os demais argelinos. Todos fanáticos ou mercenários, mas
inexoráveis. Via-se que eram homens de disparar as armas
sem hesitações.
Comecei a comandar o grupo. Minha decisão era
tamanha, que nenhum deles pensou em opor-se às ordens
que dei. Estavam atemorizados com a categoria que eu
insinuara ter na escala hierárquica soviética. Carson e Wilde,
naturalmente, tiveram a mesma impressão.
Eu ansiava por saber se todos os agentes inimigos
estavam dentro da sala, mas uma pergunta denunciaria
minha verdadeira situação. Para prevenir qualquer
eventualidade, muni minha pistola de um silenciador,
enquanto ordenava aos homens:
— Guardem suas armas e revistem os prisioneiros!
Dois deles obedeceram e começaram a revistar John e
Carson. Mas ainda havia três inimigos de armas em punho.
Eu não esperava que o russo tivesse tanta pressa, de modo
que não pude impedir o que aconteceu. O homem disse
inesperadamente:
— Será melhor terminarmos logo com o assunto.
Podemos revistá-los depois.
Apontou para Wilde, que permanecera sentado, e
disparou duas vezes. As detonações convertidas em estouros
abafados pelo silenciador tiveram um efeito impressionante.
Wilde deu um salto na poltrona e caiu de lado, pendurado ao
encosto do braço. Agi apressadamente.
— Pare! — gritei. — Quem lhe mandou fazer isso?
— A ordem que recebi foi para acabar com eles! —
respondeu o russo, baixando a arma que já começara a
apontar para John.
— Pois a que eu dei foi para revistá-los primeiro — rugi.
— Precisamos interrogá-los também.
Acercou-se de mim, abrindo os braços num gesto
impaciente.
— Escute, camarada Nadia — começou. — Diga-me...
Não falei. Deixei que minha pistola o fizesse. Apertei o
gatilho e senti o recuo da arma ao mesmo tempo que fazia
um ruído semelhante ao espocar de uma rolha de
champanha. Os tiros com silenciador deixam-me eufórica,
pois parecem emocionantes festejos com champanha.
O caso é que aquele festejo foi muito animado. O russo
dobrou-se sobre o estômago atingido, enquanto os outros
dois homens que tinham as pistolas nas mãos voltaram-nas
para mim.
E John entrou em ação. Descarregou o canto da mão
direita contra o pescoço do homem que o revistava. O pobre
Carson não teve tempo de tomar qualquer providência, pois
não entendia nada do que se passava.
Quando eu atirei pela segunda vez, visando um dos que
apontavam as pistolas, apareceu outro inimigo atrás do
balcão do bar. Senti um arrepio: haveria ainda ali uma
coleção de agentes russos, na reserva?
Não tínhamos outro recurso, por isso continuamos o
festejo trágico. Enquanto minha segunda vítima caía, saltei
para trás de uma poltrona, acompanhada por uma bala que
atingiu a parede sobre minha cabeça. Tudo fora rápido e
silencioso, até então. Mas ouvia-se um novo instrumento na
orquestra: o disparo de uma arma explodindo sem
silenciador dentro da sala.
Compreendi que John Pearson entrara em ação. Dei uma
olhada e vi Carson e seu adversário esforçando-se para se
estrangularem mutuamente. Seus rostos tomavam um
alarmante tom de roxo. John se havia entrincheirado atrás do
sofá, e seu segundo tiro rompia pela segunda vez o silêncio
da sala e fazia a quarta vítima do dia. O russo do bar
desesperava-se, não sabendo como alvejar Carson sem
atingir seu companheiro. Decidiu-se então por John, que
ainda não o havia visto.
Dei um grito de aviso, e ao mesmo tempo disparei minha
pistola. O russo desapareceu atrás do balcão, mas percebi
que o havia ferido apenas no ombro. Continuei apertando o
gatilho, visando o local provável de seu corpo no balcão, até
que a munição terminou.
John, calmamente, saiu de sua trincheira e apanhou do
chão uma das pistolas com silenciador. Aproximou-se dos
lutadores e enfiou o cano nas costelas do inimigo. Ao ver
que não soltava o americano, premiu o gatilho por duas
vezes, e o homem desabou para o solo. Carson, sentindo-se
livre, tratou de recuperar o fôlego.
— John! — grilei. — Cuidado!
Era o ferido que se ocultara atrás do balcão. Saiu
correndo, a cambalear, disparando sua arma. Meu grito
fizera John e Canon lançarem-se ao chão. Os projéteis do
russo zumbiram no ar e ricochetearam nas paredes,
inofensivos.
O homem fugiu pela porta aberta. John logo saltou atrás
dele, enquanto eu verificava as baixas havidas e Carson
continuava a fazer sua ginástica respiratória para refazer o
fôlego. O americano pouco a pouco recuperava a cor
saudável do rosto.
John voltou em seguida, dizendo:
— Fugiu... É um jovem magro e muito ágil.
— Sim — respondi. — Vi bem a cara dele. Quem nos
interessa agora é aquele ali.
Apontei para um homem de cabelos castanhos, rosto
muito pálido e olhos assustados, que se apoiava contra a
parede. Tinha o ombro direito ensanguentado, mas via-se
que o ferimento não era grave.
— Vejamos — disse-lhe John. — Quero que me conte
umas coisas. E trate de contar, queira ou não queira. Tenho
um método infalível para arrancar confissões de sujeitos
como você. Trate, pois, de falar logo, por favor.
Apesar do pedido “por favor”, o tom de John
impressionou o prisioneiro. Estava acostumado a ver
interrogatórios em sua terra, porque seu rosto tornou-se
ainda mais pálido quando John avançou em sua direção.
— Se vocês quiserem, sei aplicar o “terceiro grau” —
disse Carson, que acabava de pôr na boca mais um chicle.
— Vire-se de costas, meu amigo — sorri. — Você vai
ficar horrorizado ao ver como os europeus fazem
interrogatório. Cuidado John!
Meu aviso chegou tarde, embora John agisse
instantaneamente. A mão esquerda do ferido levantou-se
rapidamente para a boca. Ouviu-se um estalido, e o homem
engoliu alguma coisa. Foi instantâneo o resultado. Começou
a ficar azul e escorregou para o chão.
— Credo! — suspirou John. — O homem não quis
conversar comigo.
Não quisera mesmo. Seus chefes sem dúvida lhe haviam
fornecido uma boa dose de cianureto, para tais casos. E
fanáticos como ele não se animam a desobedecer às
instruções de seus chefes.
— É pena — disse eu, remuniciando a pistola.
— Não sobrou nenhum para conversar conosco. O
próprio general Wilde morreu.
— Vamos fazer umas investigações por aqui — disse
John — mas com cuidado, para que não surja alguma
surpresa.
Abrimos as cortinas das portas e certificamo-nos de que
não havia perigo imediato a ameaçar-nos. John pôs-se, então,
a revistar os corpos, enquanto Carson me olhava fixamente.
Em seus lábios havia um sorriso divertido.
— O truque não foi nada mau para uma principiante —
disse. — Até o próprio general acreditou em você. Eu logo
vi, é claro. Você decerto repetiu o que havia visto em algum
filme.
Foi até ao bar e serviu-se de uísque e gelo. Ajuntou:
— Ouçam, meus amigos: eu tenho uma folha de serviços
muito boa, e se terminar com êxito este assunto serei
promovido. E vai ser ainda maior, pelo modo como as coisas
se estão encaminhando. Vão nomear-me chefe,
provavelmente. Aí então poderei casar-me e comprar uma
casinha de campo para minha mãe.
— Também vi uma história assim no cinema —
murmurei.
— Mas a minha é verdadeira — afirmou ele. — Vocês
me deixarão dirigir as operações. Suas ideias luminosas
podem levar-nos ao fracasso. Oh, que é isso?
“Isso” era John, que tirara a gabardina, os óculos, os
dentes postiços... Levantava-se, agora, diante de nós,
puxando os punhos da camisa. Estava impressionante, como
sempre que se erguia, esbelto, diante de mim. Minha pele
arrepiou-se toda, ao rever John Pearson em sua verdadeira
aparência.
E enquanto Carson o olhava com a boca aberta, imitei
John. Tirei o blusão, os óculos, a peruca, os dentes postiços.
Compreendi que John tinha razão: Wilde já não podia ver-
nos, e ante aquele lamentável Carson não precisávamos
disfarçar-nos de palhaços para que nos considerasse como
tais. E os implementos nos faziam sentir muito calor.
Compreendi mais uma coisa, que escapara a John: o
general Hans Von Slassen percebera nosso truque. Só não
nos vira ao natural. Mas devia ter o mesmo impedimento de
Wilde...
— Você! Que diabo, como é que mudou tanto, garota?
Parece mentira! — espantou-se Red Carson, aproximando-se
de mim. — É claro que eu sabia que você estava disfarçada,
mas não podia imaginar... Bem; sabe em que estou
pensando?
— Sei. Em sua noivinha americana e sua pobre mãe
paralítica...
— A vida privada de um agente não deve interferir em
seus trabalhos. O que me ocorreu é que poderíamos fingir
que somos casados, para melhor despiste do inimigo.
— A oportunidade só bate uma vez à porta de um homem
— disse eu. — E não volta quando ele a rechaça. Lembra-se
do episódio do bar na Rua Petitroy?
— Encontrei! — gritou John.
Ele estivera folheando um caderninho que havia achado
no bolso de Wilde. Agora apontava para uma página: o
número do telefone de Von Slassen. Dirigi-me ao telefone,
perguntando a John:
— Não seria conveniente saber o que Carson falou a ele?
— Um momento — exclamou o americano. — Que
história é essa?
— Creio que seu plano é, em primeiro lugar, avisar Von
Slassen do que aconteceu aqui, se ainda houver tempo —
disse John com ironia. — Só pretendo cumprir as ordens do
chefe desta operação...
— Ah, sim — Carson animou-se com o protesto de
obediência. — Depois de receber o aviso do general Wilde
eu telefonei para o general Von Slassen. Falei com sua
secretária, pois ele não estava. Ela tomou nota do recado...
— De quê? — perguntei eu, assustada.
— Eu não sou burro, garota. Só disse que seus amigos o
esperavam com urgência.
Eu já estava discando o número de Slassen. Do outro lado
do fio, uma voz feminina atendeu.
— O senhor Slassen está? — perguntei.
— Está ausente — disse a voz. — E sua secretária
também.
— Escute: estamos à espera dele numa festa, e já está
ficando tarde. Não sabe aonde foi?
— Não, não sei. Ele saiu há menos de meia hora.
Agradeci e desliguei. Disquei outro número, enquanto
informava:
— Tarde demais. Saiu de casa pouco depois de nós nos
dirigirmos para cá. Esse sujeito que morreu tinha razão em
dizer que o alemão não viria.
A voz solene de Monsieur Nariz soou ao meu ouvido.
— Aqui fala Natalie — disse-lhe. — Se o senhor sabe
quem é o general Hans Von Slassen, adido à NATO, tente
salvar-lhe a vida. Ele saiu de casa há meia hora, a caminho
de Rouge Coin. E a fotografia?
— Minha cará Brigitte, não posso chamá-la de Natalie:
não combina com você. Conheço esse alemão, e a Sureté
cuidará dele. Sua fotografia está no laboratório. Que mais?
— Nem queira saber, que perderia o apetite.
Desliguei. Carson engoliu seu uísque com gelo e tudo, e
decidiu:
— Muito bem, amigos. Vocês vão em bom caminho. Só
nos falta agora saber por que o inimigo pôs suas tropas em
ação. Isto significa que o informante está vindo, e que Wilde
o sabia. Deve ter recebido a chamada pelo rádio. Mas de que
lugar?
— O rádio também nas dirá — replicou John. — Vamos
buscá-lo.
CAPITULO QUINTO
Um assassinato terrificante — Segunda visão da loura
Decidimos viajar para o sul

Encontramos o pequeno aparelho numa sala contígua, em


cima da mesa. Estava dentro duma maleta aberta, como no
escritório do general Wilde na Rua Petitroy. John, ao ver que
eu tratava de fazê-lo funcionar, avisou:
— Não adiantara nada se eles não estiverem à escuta.
— Ê verdade — disse Carson. — Mas há horários
convencionados: a cada trinta minutos, ao faltarem quinze e
passarem quinze minutos das horas completas. Só em caso
de necessidade; não havendo motivo, nem eles nem nós
chamamos.
— Bem — disse eu. — Faltam vinte para as três, de
modo que basta que esperemos cinco minutos. E podemos
empregá-los em outra atividade: decidir o que faremos.
Estávamos às ordens de Wilde e Slassen. Morto um e
desaparecido o outro, devemos resolver por nós mesmos?
— Ora — Canon hesitou. — Lembremo-nos de que o
caso é de interesse da NATO. Wilde foi nomeado para a
chefia, com Von Slassen e eu como imediatos no comando.
À falta dos dois, creio que eu deva assumir a liderança.
— Multo bem: você é o chefe — disse John. — Agora,
Natalie, ponha esse aparelho no ar, por favor...
Disse aquele indefectível “por favor” de um modo
especial. Dei-me conta de que, se facilitasse, a posição de
melhor agente secreto do mundo ficaria em seu poder
incontestavelmente, por direito de conquista.
Nosso velho pacto tácito tem uma cláusula: apaixonados
um pelo outro na vida particular, isso não influiria em nossas
atribuições profissionais, mesmo que um de nós precisasse
matar o outro para mantê-las intactas.
Agora que trabalhávamos em conjunto, parecia muito
fácil manter o tratado, mas o espírito de emulação nos
inimizava. Monsieur Nariz queria que eu me fizesse de
incompetente, para que os americanos gastassem sozinhos o
dinheiro necessário, e a França poupasse seus preciosos
francos novos. Se não o conseguisse, a velha Inglaterra é que
devia entrar com suas esterlinas.
John tinha instruções semelhantes, transmitidas por
Mister Arame: a gloriosa França é que deveria abrir seus
cofres, para que a Grã-Bretanha não ficasse mais pobre...
E era essa emulação que nos punha em trincheiras
opostas, mesmo colaborando na aparência. Esse, o perigo
que surgia: John me pedira que pusesse o rádio em
funcionamento para que Carson percebesse que não sou tão
incompetente como procurava fazer-lhe crer.
Ri-me. Esperto, hem? Foi por isso que não executou a
comédia com os agentes soviéticos! Eu é que passei por
viva, perante o americano. Olhei fixamente para meu amado
adversário e murmurei:
— Faça-o funcionar, Peter. Sou tão estúpida que são
consigo ligá-lo.
— É pena — riu ele. — Mas eu também não sei lidar
com isso. Ainda bem que Carson está conosco...
— Ainda bem... — resmungou este, ligando o aparelho.
— Como de costume, os europeus nos exploram.
Fornecemos dinheiro, trabalho, técnica... Seus países deviam
ter enviado gente mais habilitada.
— É que meu governo — disse eu — não faz muita fé
nessa história em quadrinhos que vocês lhe revelaram.
— História, hem? — murmurou Carson. — Você ainda é
capaz de passar para o outro mundo sem compreender a
importância deste assunto.
— Não me acuse de incompetência. Viu o que fiz ainda
há pouco! E tirei notas muito boas no curso para agente
secreto.
— Ah, vocês têm curso? Que piada! Na Inglaterra
também há disso, Hamilton? Vocês aprenderam a atirar, não
há dúvida. Mas nunca me esquecerei do ridículo da situação.
Há, há, há! Brincando de espiões com disfarces de palhaços
de circo... Você é uma teteia, pequena, mas já passaram os
tempos das espiãs vampirescas e dos disfarces espetaculares.
A época é da técnica. Ah, já está no ar! Vou fazer a
chamada.
Apanhamos os fones e pusemo-nos à escuta. Carson
começou:
— Atenção, Goslar! Uísque trinta-e-três chamando
Goslar! Atenção! Câmbio!
Um estalido e uma voz feminina muito rouca em nossos
ouvidos:
— Aqui Goslar! Gim quarenta-e-quatro respondendo!
Câmbio!
— É chamada de controle, Gim quarenta-e-quatro.
Queremos saber se chamaram recentemente. Câmbio!
— Não. Nenhuma novidade hoje. Câmbio!
— Muito bem. Corto!
Outro estalido. Desilusão no rosto de Carson. E nova
chamada, desta vez para Nice, nos mesmos termos. Silêncio.
Nice estava surdo. Ou mudo? Carson insistiu durante dez
minutos.
— Por que não tenta Calais? — sugeriu John. — O prazo
de comunicação já passou.
Um estalido. Carson acionava a emissora, enquanto
aproveitava para olhar minhas pernas. Mentira ao dizer-me
que considerada ultrapassadas as espiãs vampirescas.
— Atração, Calais! Uísque trinta-e-três chamando Calais!
Câmbio!
— Calais respondendo. Gim quarenta-e-quatro —
respondeu uma voz masculina. — Aqui, sem novidades.
Câmbio!
— Chamada de controle. Não chamaram hoje? Câmbio!
Calais também não havia chamado. E Carson consumiu
mais trinta minutos tentando comunicação com Nice.
Acendeu um cigarro, sem deixar de olhar-me,
alternadamente para as pernas e o busto.
Cheguei a pensar que ele temia ser tudo aquilo mais um
dos meus truques de disfarce...
— É uma pena, chefe... — disse-lhe, em tom ambíguo.
— É... — suspirou, — Mas tudo pode ser ajeitado.
— Oh, é claro que pode! — exclamou John, com alegria.
— Sua ideia é ótima, chefe: se Nice não responde, é porque
veio dê lá a informação, e Wilde lhes disse que nos enviaria
imediatamente. Não é assim que está pensando?
— Sim, é isso mesmo.
— Então sua decisão de irmos a Nice é a mais acertada.
Eu irei em companhia de Natalie, e nos faremos passar por
marido e mulher. Desempenharei meu papel à risca: se
alguém olhar demais para minha querida esposa, quebro-lhe
os dentes.
Carson tomou um susto e aceitou a sugestão depois de
desviar o olhar de meus atributos físicos.
— Muito bem. Vamos. Há um avião dentro de duas
horas.
Deixamos o campo de batalha a cargo da Polícia, que
chamamos por um telefonema mais ou menos anônimo.
Monsieur Nariz compreenderia que eu estava fazendo jus aos
parcos honorários que fixáramos.
O Volkswagen de Carson arrancou, acelerado a fundo. A
menos de um quilômetro da “vila” um carro da Polícia que
vinha em sentido contrário nos deteve.
— Perdão — disse um delicado inspetor sem tirar os
olhos de mim. — Viram um Citroen azul, ocupado por três
homens?
— Não — respondeu Carson. — Bem, a verdade é que
não reparei nos carros que passaram por nós. Quem sabe
meus amigos...
Ambos negamos. Autorizado a prosseguir, Carson pisou
novamente no acelerador. Chegamos ao ponto onde os
operários reparavam a estrada, e o espetáculo nos chamou a
atenção.
A caldeira de asfalto fora derrubada e o seu conteúdo
formava uma torta compacta e fumegante à beira da estrada.
Perto da torta, um vulto coberto por uma lona. E os operários
estavam pálidos e assustados. Pareciam a ponto de desmaiar.
Um deles respondia às perguntas que um homem com
aparência de inspetor de polícia lhe fazia, enquanto dois
motociclistas rodoviários vigiavam a passagem dos
automóveis.
Carson deteve o Volks e perguntou a um dos policiais o
que se passara.
— Siga seu caminho — disse o homem. — Foi um
acidente. Não precisamos de ajuda.
— Oh, por favor! — gemeu o operário que estava sendo
interrogado. — Deixe que eu vá com eles até à cidade!
Sinto-me doente, depois do que vi.
— A ambulância não vai demorar a recolher o corpo.
Você poderá ir nela.
— Ir com... Com “isso”? — perguntou o operário,
cambaleando de medo. — Não, com ele eu não vou!
O homem insistiu e nós fizemos coro. O inspetor
terminou concordando. O infeliz sentou-se no banco
dianteiro, ao lado de Carson, enquanto John e eu seguíamos
no banco de trás, aproveitando a oportunidade para um
contato mais íntimo.
— Que foi que aconteceu aqui? — perguntei, com o carro
já em marcha.
— Oh, não! Não! — gemeu o homem. — Por favor, não
me forcem a recordar aquilo.
Carson tirou uma garrafinha de uísque do porta-luvas e
estendeu-o ao homem. Este o levou aos lábios com
sofreguidão.
— Nunca vi nada mais horripilante... — disse, com um
suspiro.
Carson tentou animá-lo a contar-nos o que vira. O
homem havia adquirido um pouco de cor, depois da bebida,
mas manteve-se na negativa.
— Parece mentira que um homem forte como você seja
no fundo um maricas... — disse eu, carregando no tom de
desprezo.
— Não seja idi... — o sujeito voltou-se para trás,
interrompendo a frase a meio da palavra.
Eu apresentava a aparência mais cândida e atemorizada
de meu repertório, o que lhe causou profundo efeito.
Decidiu-se:
— Bem, perdoe-me. É que foi um assassinato horrível, e
não um acidente. Um carro azul parou perto das obras, vindo
de Paris. Na mesma direção vinha um carrinho pequeno, que
foi forçado a parar, porque o azul fechava o caminho. Então,
o motorista do pequeno desceu, e...
— Como era ele?
— Louro, forte; parecia estrangeiro, talvez holandês...
Não teve tempo nem de protestar: saltaram três homens do
carro azul, deram-lhe cacetadas na cabeça, e... —
interrompeu-se um instante, suspirando como uma comadre
ansiosa. — E o enfiaram no asfalto derretido!
Todos ficamos calados. Sim, era impressionante. Mas o
pior ainda não fora revelado, segundo se depreendia dos
gemidos de espanto do operário.
— Nenhum de nós pôde evitá-lo, porque um deles nos
apontava uma pistola. Em seguida, como vinha um
automóvel pela estrada, meteram-se no azul e no da vítima e
chisparam. Não sabíamos o que fazer, mas tratamos de
despejar o asfalto, para tirarmos o homem de lá. Bem,
podem imaginar... Nunca vi coisa tão horrível!
Ele tinha razão. Estremeci ao imaginar a cena. E tenho
um verdadeiro museu de horrores na memória. Cada um de
nós projetava na mente a imagem espantosa de um cadáver
cozido em asfalto: o sorridente e saudável general Hans Von
Slassen.
O caso dos “containers” semeadores de morte estava
resultando numa desapiedada matança. Aquilo superava as
medidas de ferocidade que estávamos acostumados a
enfrentar. Tanto, que começou a formar uma nuvem
escurarem minha memória, confundindo-me. E no meio da
nuvem surgia, insistente, a imagem da loura espetacular que
entrara no bar da Rua Petitroy...
Arregalei os olhos, assombrada. Um Renault “Dauphine”
cruzou com nosso carro, em sentido contrário. Tive apenas
um lampejo de visão da pessoa que o dirigia, mas não havia
dúvida: era a loura!
John certamente estava pensando do mesmo modo que
eu, pois exclamou no mesmo instante:
— Volte em seguida, Red! Siga aquele carro!
— Por quê? — perguntou este, assombrado.
— Volte logo! Já lhe digo por quê.
— Ora, Peter Hamilton — contrapôs teimosamente
Carson. — Que vão dizer os policiais, quando nos virem
passar novamente por eles?
O Renault diminuíra na distância e já desaparecia numa
curva. Suspirei, desalentada, enquanto eles continuavam
discutindo.
— Diga-me quem ia naquele automóvel, que eu decidirei
se voltamos ou não. Estamos perdendo tempo...
— Já o perdemos — disse eu. — O carro passou a mais
de oitenta por hora, há três ou quatro minutos. Já deve estar
uns cinco quilômetros na nova frente, que se transformarão
em dez com nossa manobra e as explicações aos guardas.
— É... — John se conformava. — Então vamos em
frente.
— Mas não pode dizer-me quem ia no carro? — insistiu
Carson.
— Um amigo meu, que não vejo há dez anos.
Carson bufou de impaciência, indignado com os
argumentos de John. Tão indignado, que pareceu haver
esquecido o general alemão que fora convertido em asfalto.
Mas eu não o esquecia. O enigma da jovem loura
ocupava o primeiro plano, agora, ao lado da morte de Von
Slassen. E meu cérebro divisava algo indefinível, vago, que
podia relacionar os fatos. Mas não conseguia apanhá-los.
Olhei para John, imerso em seus pensamentos. Dir-se-ia
que o mesmo problema encontrava a mesma equação em seu
cérebro.
E Carson prosseguia, guiando o Volks e mascando seu
chicle, convencido de que John e eu éramos os espiões mais
incompetentes do mundo.

CAPÍTULO SEXTO
Investigações frustradas — A maravilhosa e emocionante viagem —
“Adolphe Menjou” faz uma conquista

Deixamos o operário junto a uma estação de “metrô”, e


despedimo-nos de Carson. Combinamos encontrar-nos no
aeroporto uma hora e meia mais tarde, depois de reservarmos
por telefone três passagens para Nice no próximo avião.
Em um táxi, John e eu voltamos para nosso hotel. Meu
admirador da hora do almoço era um homem persistente:
continuava na poltrona do hall, de que deu um salto ao ver-
nos entrar. Ele certamente esperava que saíssemos do
elevador...
— Estou convencido de que você é uma mulher fatal —
murmurou John. — A terrível paixão que inspirou nesse
homem será funesta, certamente.
— Creio que dará um tiro no coração quando eu o
decepcionar — respondi. — Ou seria melhor alimentar sua
esperança, para o termos sob controle?
— Sim, é melhor. Mas sob controle do cano de uma
pistola. Estou com vontade de apanhá-lo a sós, para que me
faça confidência de suas intenções.
Pagamos a conta do hotel e fizemos nossa bagagem
descer. Compramos maiôs e telefonei a Monsieur Nariz.
— Ah, Brigitte! — exclamou. — Já sei que as
dificuldades começaram. Uma “vila” de Rouge Coin
transformada em matadouro, um alemão torrado em asfalto,
um Citroen azul cercado de mistérios e uma loura
espetacular que empreende a fuga...
— Deixe as manchetes e dê as notícias. Sabe quem é o
alemão?
— O general Von Slassen. Seu carro, seu relógio... Você
sabia?
— Não precisava identificá-lo. Sua morte estava prevista.
Mas que me diz da fuga da bela loura?
— Chegou à “vila” de Rouge Coin. Ao ver policiais no
local, deu a volta e disparou. Interessa-lhe, Brigitte?
— Muito. E você gostará muito de sua fotografia, se
conseguir que a revelem de uma vez.
— Mas, querida! Por que não me disse logo? Vou
reclamar agora mesmo.
— Não posso esperar o resultado. O negócio está quente,
e esfriará se eu perder tempo. Envie-me as cópias e outras
informações que obtiver para Nice. Estarei hospedada no
Hotel “Bleu-Mer”. Faça com que a ampliem. Ah, sabe onde
Von Slassen morava?
Fui ao encontro de John, que me aguardava no táxi. Eu
havia telefonado de uma cabina pública para maior
segurança de sigilo, Dei-lhe um beijo na face, e ele sorriu:
— Dos cinco que começaram, um levou um tiro. Dos
quatro que continuaram, um morreu queimado. E restaram
três...
— Bem, esperemos que o próximo seja Red. Assim
ficaremos sozinhos...
— E a fotografia da loura dos meus sonhos?
— Vão enviá-la a Nice. Ainda não está pronta.
— Por favor... Como são lentos!
— Sabe o que pensei, querido? Temos quase uma hora
ainda. Por que não passamos pela casa de Slassen?
Antes que ele pudesse responder, dei ao motorista o
endereço que Monsieur Nariz me fornecera. Agora foi a vez
de John beijar-me a face.
— É uma pena que o mundo tenha de ignorar nosso
talento!
***
Era o segundo pavimento de um edifício moderno no
centro. Moderno e luxuoso. Uma senhora idosa abriu a porta
para nós. Cheia de vida, com as faces rosadas, olhar
simpático. Explicamos que éramos amigos do general, e que
tínhamos estado à sua espera. Alarmados por seu atraso,
vínhamos informar-nos pessoalmente.
— Creio que ele tinha uma reunião — disse a empregada.
— Passou a manhã fora da casa, mas veio almoçar. Depois
de falar com sua secretária por uns instantes, saiu. É só o que
sei informar-lhes. Julgam que lhe possa ter acontecido
alguma coisa?
— Não, cremos que não — disse eu. — Mas estamos
estranhando...
— Ah, já sei! Foi a senhorita quem telefonou. Reconheço
sua voz:
— Alguma outra jovem telefonou para ele? — perguntou
John, com seu ar de inocência.
— Sim. Bem cedo, de manhã. Seriam talvez nove horas.
Mas o general não passou a noite em casa, pois estava
viajando. Ela telefonou mais tarde, às onze. E depois ao
meio-dia.
— Não sabe quem era? Pode ser alguma de nossas
amigas — disse eu.
— Não deu o nome. Informei ao general, que me ordenou
que chamasse a secretária para atendê-la, se ela telefonasse
outra vez. Mas os senhores acham que aconteceu alguma
coisa a ele? Estou preocupada.
— Não se preocupe — sorriu John. — Mas compreendo:
a senhora deve estar ao seu serviço há muitos anos...
— Oh, não! Estou contratada há uma semana. Mas ele é
tão bom e simpático!
— Naturalmente. Podemos falar com sua secretária?
Pudemos. Em um enorme e luxuoso escritório, uma
mulher que John podia olhar à vontade sem provocar meus
ciúmes recebeu-nos. Quarentona, seca de carnes e de gestos,
óculos e uniforme de secretária eficiente.
Passamos o mesmo conto. Não nos foi possível verificar
se acreditava ou não, pois sua compressão era impenetrável
como a de um profissional de pôquer. Respondeu-nos,
depois de pensar um momento:
— É curioso... O general não me informou que tivesse
qualquer reunião social esta tarde. A única que tinha era de
negócios.
— Bem — riu John. — Era de negócios também.
— Pois não posso ajudá-los. Se quiserem esperar, creio
que não demorará a voltar. Ou pelo menos telefonará.
Era melhor deixar o campo. De qualquer modo, a visita
fora improdutiva. Já nos despedíamos quando a empregada
entrou para avisar que alguém telefonava à procura do
general. E fez um gesto eloquente para John. Não há mulher
que resista a seus encantos...
A secretária olhou-nos, também com muita eloquência.
Foi a única, pelo que sei, que resistiu a John. Seu olhar
indicava que estávamos sobrando na sala.
— Desculpe-me — ronronou John, apelando para seus
recursos extremos de sedução. — Talvez seja alguém que dê
notícias do general.
Impassível, a secretária tomou o fone e escutou por uns
instantes. Pediu que o interlocutor esperasse. Tapando o
bocal, perguntou-nos, de repente, em alemão:
— É o general. Como se chamam os senhores?
Naturalmente fizemos caras de desentendidos. John abriu
a boca e eu murmurei timidamente:
— Que foi que disse? Perdoe-me, senhorita, mas não
sabemos inglês.
— Oh! — desculpou-se em francês. — Perdão! A pessoa
que está falando só sabe alemão, e me confundi ao falar com
os senhores.
Perdoamo-la, é claro. Mas escutamos sua palestra. Ela
destapou o fone e falou no alemão mais rápido que já ouvi
em minha vida.
— Não, não, o general não está em casa, mas tenho um
recado para você. Quê? Ah, não se preocupe por isso. Não,
não; tranquilize-se e escute: vou desligar agora, mas chame
dentro de dez minutos e conversaremos à vontade.
Desligou e olhou para nós, como a insinuar que nos
retirássemos.
— Alguma notícia do senhor Slassen? — perguntei.
— Não.
Ante tão carinhosa e expansiva resposta, saímos. Nosso
conhecimento do alemão também não nos havia servido de
muito. Suspeitar da secretária era uma insensatez. O general
trabalhava no servido de informações da NATO, e era lógico
que tivesse uma secretária de confiança e discreta.
Muito antes da partida do avião, já estávamos no
aeroporto. Red Carson nos aguardava, inquieto.
Não me surpreendeu ver meu aspirante a sedutor, muito
apressado, entrar na sala de espera dos passageiros e dirigir-
se ao balcão de passagens.
— Queira Deus que haja lugar — murmurou John, sem
olhar para mim. — Por favor...
Havia. Dirigimo-nos para o avião. O conquistador vinha
atrás de nós. Eu havia observado que ele não trouxera
bagagem, certamente surpreendido pela necessidade de
viajar. Carson resmungava, mascando seu chicle:
— Pensei que vocês fossem perder o avião. Por onde
andaram?
— Fomos comprar maiôs e loção para bronzear —
expliquei. — Minhas amigas vão morrer de inveja quando
souberem que estive em Nice.
— De inveja? — bufou. Carson. — Tem certeza de que
será de inveja?
Mas procurou sentar-se a meu lado. Eu não me opus,
porque percebera uma coisa muito divertida: os quatro
lugares que ocupávamos eram os últimos do aparelho,
separados pelo corredor, dois a dois. John teria de sentar-se
com meu admirador ardoroso.
Permiti que John aterrorizasse o conquistador lançando-
lhe olhares terríveis de ciúme assassino. E permiti que
Carson me encurralasse a um canto, disposto a conquistar-
me.
Assegurei ao americano que viajar de avião era a maior
emoção da minha vida. Que meu maior sonho seria ir aos
Estados Unidos. Que os americanos eram os homens mais
admiráveis do mundo. E que Mata-Hari era o modelo de
mulher que eu gostaria de imitar...
— Oh, como gostaria de viver naqueles tempos
românticos... — disse, num sussurro. — Vestir aqueles
trajes, com espartilhos e anáguas e saias compridas... Fumar
cigarros turcos em piteiras muito longas, de marfim
legítimo! E roubar planos secretos como os que Ploskow
vem trazendo... Mas à realidade é diferente: eu nem sei que
cara tem esse polonês. Você devia ter conseguido uma
fotografia dele, ou pelo menos sua descrição. Wilde não
chegou a dizer-nos como é o homem.
— Sei que é alto, magro, forte, tem cinquenta anos,
cabelos completamente brancos e um sinal negro na face
direita. Chega, para identificá-lo? Mas não diga nada ao
inglês... Agora deixemos Ploskow de lado. Sabe que não me
agrada muito essa história de você viajar como senhora
Hamilton? A não ser que eu passe a chamar-me Hamilton.
Hem, pequena? Que me diz de trocarmos de nome, o inglês e
eu?
Tentou apanhar minha mão. Eu resisti, olhando suplicante
para o americano, que insistia. John pôs-se de pé, então, e
tocou em seu ombro. Disse cortesmente, apontando para o
conquistador:
— Meu amigo, esse cavalheiro teve a amabilidade de
concordar em trocar de lugar com minha esposa, para que ela
viaje ao meu lado. Quer permitir que ela passe, por favor?
Surpreendido, o meu admirador concordou. Um marido
não é um rival, no regulamento dos conquistadores de
mulheres casadas. E Carson o era. Quando sentei ao lado de
John, sussurrei:
— Você tem ciúmes, querido!
— Acabo de incluir Carson naquela lista. Mas não posso
ser ciumento de verdade, por enquanto. Mas tarde você
verá... Que foi que ele lhe disse?
— O homem é alto, magro, forte, tem cinquenta anos, o
cabelo branco e um sinal preto na face direita. Oh, e que não
o contasse ao inglês.
Já era noite ao chegarmos a Nice. Carson concordou em
hospedar-se no Hotel “Bleu-Mer”. Por que estava situado
diante da praia e nas imediações do ponto que o agente de
ligação marcado na cruz central do mapa ocupava.
Naturalmente, meu admirador também se hospedou lá,
conseguindo um quarto próximo ao do casal Hamilton.
Devia ser muito rico, pois não se assustara com a viagem
repentina sem bagagem e com o hotel de luxo.
Aquele era luxuoso, realmente. Alugáramos uma “suite”
de dois quartos, separados por um banheiro. Carson ficara
em outra, ao lado. Estava furioso, pois o deixáramos no
corredor, internando-nos em nosso apartamento.
E quando descemos para a sala de jantar ele examinou
atentamente meu penteado e minha maquilagem. Pareceu
tranquilizar-se ao ver que não havia sido alterada.
Jantamos com apetite, vigiados pelo conquistador
“démodé”, que alimentou com dois ou três olhares
incendiários. O hotel, embora não estivesse repleto de
hóspedes, já desfrutava de uma clientela abundante de
ricaços ociosos que o repentino calor atraíra para a praia.
— Bem, chefe — sugeri a Carson. — Diga-nos qual é o
plano de ação.
— Creio — respondeu — que nosso primeiro passo
deveria ser o contato com os agentes de ligação. De
momento, por telefone. Assim combinaremos com eles a
comunicação pelo rádio a horas determinadas.
Concordamos. Ele continuou:
— E, além disso, saberemos se tiveram notícias de
Ploskow. Se a receberam esta manhã, quererá dizer que os
inimigos estão a par de nossos planos e que agiram ao
saberem que Ploskow chegaria por este ponto. Decerto
queriam eliminar-me para montarem uma armadilha em que
o polonês cairia. Se é assim, devemos prevenir os agentes.
Estão em perigo.
Enfim, Carson demonstrava alguma competência no
ofício. Concordamos, novamente, mas eu aduzi:
— E nós estamos cometendo uma imprudência, por outro
lado: deveríamos evitar que nos vissem juntos. É claro que o
casal Hamilton já não pode separar-se sem causar
estranheza, mas convém que Red não mais seja visto em
nossa companhia.
— Que bobagem! — refutou Carson. — Não há dúvida
de que Wilde e Slassen foram vigiados na Rua Petitroy.
Fomos vistos saindo juntos de lá. E na “vila” de Rouge Coin
também fomos vistos juntos.
— Aqueles que nos viram em Rouge Coin não estão em
condições de lembrar-se de nós — disse John,
— Esquece-se de que um deles fugiu? — replicou
Carson.
— Mas meu marido e eu estávamos disfarçados. Não se
lembra, Red? Para isso serviu nossa fantasia de palhaços de
circo.
Carson rendeu-se à evidência. Passamos a estudar
detidamente cada um dos frequentadores do restaurante, o
que nos ocupou pelo resto do jantar. Mas, à exceção do
conquistador, nenhum deles parecia suspeito. Aliás, hoje em
dia, parecer suspeito é uma arte.
Com relação ao insistente galanteador, pusemo-nos de
acordo com que não convinha espantá-lo. Se fosse um galã
barato, não constituiria perigo algum. Se estivesse
disfarçado, eu podia fingir que nos enganava.
Terminada a sobremesa, dirigi um olhar cândido ao
homem, e disse em voz alta que iria ao “Toillete”. Dei um
suspiro e levantei-me, passando ao lado de sua mesa. Meu
admirador não só tinha cara de apaixonado, como também de
decidido a resolver de vez o caso.
Com efeito, encontrei-o no corredor, ao sair do “toilette”.
Eu ia prevenida, com a pistola em punho dentro da bolsa.
Mas nas mãos do homem havia apenas uma flor murcha.
— Senhora! — disse ele, entornando os olhos. — Veja
esta flor: vou conservá-la junto ao coração toda a vida, com a
esperança de um dia aspirar odor mais delicioso...
Levei a mão à garganta e cambaleei, como uma ingênua
do cinema mudo.
— Oh, por favor, cavalheiro! Suplico-lhe que seja mais
prudente. Não nos conhecemos
— Abelard de la Rocheblanche, barão de Trois-Chateaux,
para servi-la eternamente, senhora!
— Oh, barão! Deixe-me, eu lhe peço, isco é ama
imprudência...
Afastou-se, curvado em profunda reverência. Confesso
que me foi difícil manter a impassibilidade até chegar à
mesa. Mas ao sairmos do restaurante, premiei o pobre
Abelard esquecendo o lencinho sobre a mesa.
De braço com John, enquanto nos dirigíamos ao elevador,
sussurrei a seu ouvido:
— Que lhe parece? Ele se chama Abelard de la
Rocheblanche, e é barão de Trois-Chateaux!
— Por Deus! É incrível. Como é que alguém pode ser
tudo isso, em pleno Século Vinte?
— Não me desiluda, querido, por favor... — sorri.
No apartamento dos Hamilton, nós três estudamos
detidamente os mapas. A cruz mais próxima estava marcada
sobre um retângulo situado a uns cem metros do hotel, do
outro lado da avenida. O retângulo representava uma casa,
provavelmente. Como havia muitos outros na planta, não
seria fácil obtermos o número do telefone daquela, sem
outros dados. Sabíamos apenas o nome da avenida, a quadra
e o local aproximado.
Então Carter foi dar um passeio. Voltou em seguida com
dados mais concretos: era uma casa de veraneio, tinha o
inúmero cinquenta e dois e o rótulo de “Ville Marie”. Três
minutos depois, com a simples consulta à lista telefônica,
tínhamos o número do aparelho. Disquei. Respondeu-me
uma voz feminina. E eu pronunciei as palavras mágicas:
— Uísque trinta-e-três.
Houve um longo silêncio. Compreendi que uma chamada
telefônica não estava prevista, ou pelo menos aquela agente
não pensara em tal possibilidade. O falecido Wilde e seu
ajudante Carson tinham mentalidades primárias para a
profissão. Haviam criado um sistema de rádio complicado,
sem saberem que a espionagem foi muito simplificada com a
expansão dos telefones.
É tão simples! Basta discar-se o número certo, e eis a
mais rápida e eficiente comunicação. Dá-se o mesmo com as
mensagens. Para que usar saltos ocos, malas de fundo falso,
se o correio é meio mais discreto? Uma carta, entre milhões,
passa completamente despercebida...
— Oh, moça! Será que perdeu a fala? Eu disse: uísque
trinta-e-três. Vamos, diga logo a resposta.
— Gim quarenta-e-quatro — replicou a voz,
timidamente.
— Muito bem. Não teve notícia de tio Pedro? Viemos de
Paris para encontrá-lo.
— Sim, já sei. Tivemos notícia, sim: não pode chegar
ainda. Estão pescando, e um peixe os está seguindo. Temem
um naufrágio, se tentarem aproximar-se da costa.
— Os outros parentes estão informados?
— Sim. Tio Pedro comunicou que desembarcará amanhã
ao entardecer, de qualquer modo.
— Obrigado. Iremos visitá-la amanhã de manhã. Avise
aos outros parentes. E se tiverem alguma novidade,
telefonem para o casal Hamilton, no hotel “Bleu-Mer”. E
procurem ser cuidadosos. Consta que há ladrões nos
arredores. Você não está sozinha, não é?
— Meu irmão está comigo. Mas não temos medo de
ladrões.
Desliguei, sorrindo. Estávamos na boa pista.
— Dadas as circunstâncias — disse John, — creio que
será melhor tirarmos uma soneca. Foi um dia muito
movimentado. Boa noite, caro Red.
Carson resmungou. A ideia de deixar-nos sós no
apartamento não lhe agradava. Olhou-me e disse:
— Você não precisa dormir aqui, Natalie. Podemos pedir
outro quarto para você. Ninguém se espantará, pois muitos
casais fazem o mesmo.
— Mas não os Hamilton! — respondi, escandalizada. —
Somos um casal tradicional, e qualquer excentricidade
chamaria a atenção sobre nós. Entenda, Red. Imaginemos
que fosse você o meu “marido”: pareceria lógico para você
dormirmos separados?
Voltou a olhar-me, com os punhos cerrados. Terminou
por afundar as mãos nos bolsos e sair do apartamento,
grunhindo:
— Não. Claro que não. Boa-noite.
CAPÍTULO SÉTIMO
O americano enciumado sem razão
Se meu marido me engana, começo a trai-lo...
Continuo a fabricar mudos

Às nove da manhã, Carson bateu à porta. Eu já estava


vestida, e John dava o laço na gravata. Seus olhos fitaram o
sofá.
— Não é muito cômodo — disse John, adivinhando seus
pensamentos. — Estou moído.
O rosto de Carson alegrou-se.
— Que acham de telefonarmos novamente?
— Não é conveniente, chefe — repliquei. — Eles teriam
telefonado, se houvesse alguma notícia. Acho melhor
tratarmos de alugar uma lancha.
— Ótima ideia — Carson se entusiasmara. — Daremos
um giro pelo mar, à procura de um barco de pesca com a
quilha vermelha.
— Quilha vermelha? — perguntou John. — Eu
desconhecia esse detalhe. Não use de subterfúgios, Carson.
Estamos no mesmo lado. Por favor...
Carson enrubesceu e assegurou pensar que nos houvesse
fornecido anteriormente aquele detalhe.
Em seguida repartimos as tarefas. Carson trataria do
aluguel da lancha, eu visitaria os agentes de ligação e John
ficaria à espera de chamadas telefônicas ou pelo rádio.
Ao descer, meu primeiro problema era o meio de
locomoção. Queria visitar os três pontos assinalados no
mapa. Tinha de percorrer cinco quilômetros para o sul e
cinco para o norte, a partir da “Ville Marie”, o que
representava um total de vinte quilômetros.
Mas o fato de ser uma garota sensacional significa
alguma coisa. Por exemplo, há a vantagem de ter-se sempre
algum admirador às ordens. Eu já me dirigia ao balcão do
hotel para pedir que me conseguissem um carro, quando o
inefável Abelard de la Rocheblanche acercou-se de mim.
— Senhora... Este é um dia maravilhoso para mim,
porque começou com uma visão celestial!
— Oh! — fingi assustar-me, olhando para a escada e o
elevador. Que imprudência, senhor! Meu marido pode
aparecer.
— Então vamos sair daqui. Podemos tomar o café na
praia.
— Impossível. Preciso fazer uma visita, numa “vila” da
estrada, cinco quilômetros ao sul...
Seu olhar brilhou de gozo. E chegou a engasgar-se ao
exclamar:
— Ótimo! Levo-a em meu carro.
— Que carro? Se veio no avião?
— Sim, mas aluguei um ao chegar. E dou graças aos céus
pela ideia, pois agora me permite...
— O senhor é perigoso — consegui ruborizar. — Vai
considerar-me leviana se eu aceitar?
O carro era um espetacular Mercedes Benz vermelho,
esportivo, de dois lugares. Pedi-lhe que levantasse a capota,
pois temia ser vista. Entusiasmou-se, ao ponto de quase
desmaiar de emoção. E saímos em marcha lenta, pois meu
admirador queria aproveitar a oportunidade para desfiar a
mais ridícula série de galanterias ineptas que jamais ouvi.
Cheguei a julgar que se tratasse de um homem perigoso que,
como John e eu, fazia-se de idiota para disfarçar.
Mas logo me contradizia, considerando que ninguém
fingiria assim. Tal grau de idiotice só podia ser real. Resolvi
certificar-me. Tinha o mapa bem fotografado na memória,
havendo calculado o número de passos que deveria
percorrer.
Quando chegamos ao marco indicador do quilômetro que
me interessava, pedi ao conquistador que parasse o carro.
— Já? — perguntou, meio desiludido.
— Não. Falta um pouco, mas devo ser prudente. Vou
confessar-lhe uma coisa, como prêmio de sua devoção:
acabo de pedir o divórcio, porque meu marido é um devasso.
Compreenda que a menor suspeita de infidelidade inverteria
o curso da demanda.
— Oh, claro! Compreendo. Mas esse homem é um
monstro, e você precisa de quem a defenda, quem a
ampare...
— Por isso é que vou fazer esta visita E talvez ainda
precise pedir proteção a você... Desde que o vi pela primeira
vez, percebi que é um cavalheiro. Tenho confiança em você.
Oh, e se minha preocupação fosse apenas o divórcio... Meu
Deus, quantos problemas para uma pobre mulher!
O homem estava em minhas malhas. A não ser que fosse
um espião muito hábil, é claro. Ainda assim... Soltei um
gemido discreto, inclinando-me para seu ombro, como se
fosse deitar a cabeça. De repente, minha mão direita abriu
rapidamente o porta-luvas e rebuscou nervosamente ali
dentro.
— Que é que está procurando? — perguntou ele,
desconcertado.
— Cigarros. Oh, um cigarro! Estou nervosa. Mas deixo...
Preciso ir... Prometa-me que esperará por mim aqui.
— Toda a vida, minha deusa! — exclamou com unção.
E tentou abraçar-me. Aceitei o abraço, mas não permiti
que me beijasse, empurrando-o com mãos trêmulas, para a
seguir atrai-lo para mim, como se desejasse seu beijo mas
não me decidisse a isso. Quando me afastei definitivamente,
descendo do carro, tinha certeza de que Abelard de la
Rocheblanche não tinha qualquer arma consigo. Pelo menos
era uma certeza tranquilizadora.
Não fui diretamente à casa que me interessava. Deixei o
Mercedes para trás, quatrocentos metros distante, depois de
uma curva. Saí da estrada, tomando por uma ruazinha
perpendicular. Em seguida encontrei outra, paralela à
estrada, e caminhei depressa, por trás das cosas de veraneio
que estavam desocupadas.
Desse modo cheguei à parte traseira da casa que
procurava, de um só pavimento. No mapa estava marcada
como Ponto de Ligação Número Um, Aproximei-me com
cuidado de uma porta, que supus correspondesse à cozinha.
Espiei com a maior precaução: realmente, era a cozinha.
A forte luz do dia me impedia de ver além de uma
cozinha comum. Já pensava numa desculpa para entrar,
quando o destino me facilitou o gesto.
O destino tinha a forma dum cano de pistola que foi
empurrado contra minhas costas. E uma voz metálica e
ameaçadora ordenou:
— Quieta! Não se mova, não grite nem tente fugir, senão
eu atiro!
Voltei-me devagar, com a expressão de pavor mais
autêntica que pude armar, crispando os dedos sobre a
abertura de minha bolsa. Dei com uns olhos cruéis e
ameaçadores como aquela voz. O homem segurava a arma
dentro do bolso.
Decididamente, o caso dos “containers” tinha uma
característica especial: para sobreviver, eu precisaria fazer-
me de idiota a cada momento. Assumi novamente o papel, e
pronunciei com dificuldade:
— Eu não compreendo... Não má... Não roubar...
— Que idioma sabe falar? — perguntou ele, no mesmo
tom de antes. — “English”?
Agarrei-me à palavra. E agora em inglês, comecei a falar
pelos cotovelos:
— Inglês, sim é isso: falo bem o inglês. Pode ver que falo
bem. Mas não sou inglesa, sou polonesa. De Varsóvia. Estou
em férias, passeando pelo sul da França. Mas não moro em
Varsóvia, e sim na Suécia. E também falo polonês, é claro. E
alemão também, sabe?
Ele me interrompeu em polonês. Em perfeito polonês,
empregando os termos apropriados e com o sotaque exato,
como um nativo ou um especialista em idiomas:
— Muito bem: falaremos em polonês. E agora diga-me
por que anda espiando para dentro de minha casa.
Não mudara de tom, e seu olhar se tornara ainda mais
ameaçador. Continuei com a cascata de palavras, dessa vez
em polonês puro:
— É porque sou espiã, sabe? Curiosa incorrigível. Que
bom que somos compatriotas! Vim pedir ovos e farinha
emprestados à sua esposa, mas vou embora, se o senhor se
aborreceu.
— Onde é que está morando?
— Lá, naquele chalé amarelinho.
— E que viu dentro de minha casa?
— Nada. Asseguro-lhe que não vi nada. Só a cozinha...
— Sei que você viu muita coisa. E naquele chalé não
mora ninguém. Está em obras. Tenha a bondade de entrar,
sim?
Uniu a palavra ao gesto, abrindo a porta e tirando a
pistola do bolso. Agora que seu corpo ocultava a arma à vista
de quem passasse pelos fundos da casa, mostrou-a
ostensivamente. Acedi ao convite.
Não vou descrever com detalhes a cozinha, que era igual
a tantas outras. Só direi que havia dois seres sentados em
duas cadeiras. Horas antes talvez fossem dois homens
normais, mas agora eram apenas dois horrores amarrados e
amordaçados. Seus olhos estavam arregalados e me olhavam
com ar de súplica angustiosa.
Outro sujeito, mais baixo e gordo do que o que me
convidara a entrar, acendia um cigarro diante deles. A luz do
fósforo iluminou um rosto bestial na penumbra da cozinha.
— Apanhei esta mulher espionando pela janela — disse o
mais alto. — Que há com estes aqui?
— Nada. Não se abrem — respondeu o baixo, com voz
de alcoolizado. — Eles só sabem que vai chegar um fugitivo,
e que entrará em contato com eles. A senha é a que já
conhecemos; uísque trinta-e-três. E tinham de escondê-lo até
que alguém viesse buscá-lo.
— Já sabíamos de tudo isto. Então, ponto final: vou
fazer...
Eu também fiz. Aquelas frases me haviam convencido do
que supusera desde que o homem alto me falou em polonês.
Os dois homens amarrados correspondiam ao Ponto de
Ligação Número Um. E os outros dois, agentes inimigos
dispostos a capturar o fugitivo. Por qualquer método, como
por exemplo, mergulhando um general alemão em asfalto
derretido.
Desmaiei. Foi um desmaio perfeito; revirei os olhos, levei
as mãos ao estômago, cambaleei e gemi, dobrei o corpo em
dois e caí de lado. Mas, por casualidade, minha mão direita
ficou encostada na borda da bolsa.
— Que mulher idiota! — resmungou o gordo. — Quem é
ela?
— Quero crer que seja uma bisbilhoteira qualquer que ia
passando. Mas olhou pela janela, e decerto viu estes dois.
Agora não podemos deixá-la ir embora. Mas fica para
depois. Eu vou tratar primeiro dos outros. Tenho silenciador,
e ninguém ouvirá...
Ainda estava recente em minha memória como é perigoso
perder-se tempo em pôr um silenciador na hora de atirar. Por
isso abri uma fresta nas pálpebras e espiei. Os homens
estavam voltados para suas vítimas. E o alto tratava de enfiar
um silenciador no cano de sua pistola.
Como falavam em francês, percebi que o mais alto era
um agente internacional, mais instruído, e consequentemente
mais perigoso que o baixinho. Tinha um adversário à minha
altura...
Deslizei lentamente a mão para o interior da bolsa, com o
olhar atento aos movimentos doe homens.
O alto concluiu a operação. E sem melodramas, com o
maior sangue-frio deste mundo, apertou o gatilho. Duas
rolhas de champanha saltaram. Os olhos das vítimas
tornaram-se vidrados.
Minha mão se havia movido com a maior velocidade que
a prudência recomendava. Muito lenta para salvar aquelas
vidas, apressou-se com um raio para salvar a minha.
— Mãos ao alto! Eu não me importo com o estampido.
Ninguém pode imaginar como é minha voz quando
ameaça. Basta dizer que aqueles homens não duvidaram de
que eu empunhava uma arma. Imobilizaram-se
instantaneamente.
— Deixe cair a pistola e vire-se devagar! Obedeceram,
enquanto eu me punha de pé e continuava dando ordens.
Eles continuaram obedecendo: o alto, impassível; pálido e
tremendo, o gordo.
— Recuem para o canto, e mantenham os braços no ar.
Apanhei a pistola com silenciador e apontei-a para eles.
Não tive compaixão. Eram assassinos cruéis, verdugos
ferozes, inimigos traiçoeiros. Suas regras de jogo eram as
mais sujas do repertório do crime.
Lembrei-me, num lampejo, do que significa ser espião.
Não é uma novela de perigos e seduções, que pode acabar no
drama limpo de um fuzilamento. Ali estavam três espécimes
da fauna: dois homens e uma mulher, todos autênticos
agentes secretos. Sem a pistola, de que me valeriam meus
dotes femininos, minhas coqueterias mais refinadas?
Terminaria meus dias torturada e baleada como aqueles dois
vultos amarrados às cadeiras.
— Escutem: já ouviram falar de Mademoiselle Fantasma?
— Já — disse o alto.
— Pois aqui está ela. Chamo-me Brigitte Montfort, e
trabalho para o “Deuxième Bureau”. Tenho licença para
matar quem for preciso, sobretudo aqui, na França.
O baixinho não entendia nada do que eu falava, mas o
alto sim. Ergueu-se e adotou uma atitude militar.
— Ela está mentindo! — exclamou o gordo. — Não terá
coragem de atirar.
— Temo que sim, meu amigo — disse o alto com sua voz
metálica. — O que ela revelou equivale a uma sentença de
morte para nós dois.
Voltou-se para mim e ajuntou:
— Coronel Kociemsky, do exército polonês, às suas
ordens, Mademoiselle Fantasma!
— Sinto muito, coronel. — respondi. — O senhor deveria
ter continuado à frente de um regimento. Este trabalho
requer especialistas. O senhor cometeu muitos erros... Diga-
me quem é seu chefe e quais são seus planos.
Em vez de responder, o coronel tentou lançar-se contra
mim. Queria morrer lutando. Dei-lhe a satisfação de atender
seu desejo. Mais uma rolha de champanha saltou da pistola
sinistra.
O gordo permaneceu imóvel, aturdido com o
acontecimento que presenciara, olhando o corpo do
companheiro.
— Agora é a sua vez. Quer responder, ou prefere que eu
continue a fabricar mudos?
O homem pôs-se a choramingar:
— Não, por favor, senhorita! Juro-lhe que não sei nada.
Ele é que sabia, mas nunca me disse o que planejava. Eu
apenas obedecia; ele me pagava... E isso é tudo o que posso
dizer. Não, senhorita. Por favor...
Meu trabalho é a guerra permanente. Tenho licença para
matar, como o 007 do “Intelligence Service”. Mas esperei
que ele tentasse atacar-me. Repugna-me matar a sangue-frio.
Lancei ao homem um olhar como nunca lançarei a John. E se
o pobre Abelard de la Rocheblanche me visse olhá-lo assim,
seria capaz de dirigir a Mercedes para a África sem notar que
não há estrada através do Mediterrâneo.
Estava convencida de que aquele carniceiro repelente não
sabia de nada. Era um simples assassino covarde e sádico.
Finalmente reuniu a coragem necessária para atacar-me.
Disparei, com o êxito que esperava.
Procurei o telefone, que encontrei numa sala. Disquei o
número do Ponto de Ligação Número Dois. Atendeu uma
voz feminina, diferente da que me falara na noite anterior.
Naturalmente, não lhe dei a senha.
— Senhorita Pascoal — disse, alegremente. — Aqui fala
a senhora Dupont. Lembra-se de mim? A vizinha que esteve
aí ontem à noite, pedindo-lhe um pouco de café e açúcar...
— Sim... — hesitou a voz, mordendo a isca. — Ah, sim,
claro. Bom dia.
— Posso ir agora devolver-lhe o que me emprestou?
Quero tornar a agradecer-lhe a gentileza. Foi tão amável...
— Oh, não — a voz parecia alarmada. — Não precisa,
senhora. E mesmo nós vamos sair agora. Só voltaremos
amanhã.
— Sinto muito. Perdoe-me, se a estou aborrecendo. Então
eu vou aí amanhã, e faço questão de convidá-los para jantar.
Mais uma vez, muito obrigada. Até amanhã!
Desliguei e telefonei para o hotel. John atendeu.
— Estou no Ponto Um, querido. Que desastre! Um par de
ratos comeu o gajo, e fui obrigada a acabar com os bichos.
Mas comprovei que a praga se estendeu ao Ponto Dois. E
talvez também no Três. Recomendo-lhe que não confie nos
parentes...
— É emocionante, meu amor. Eu também tenho coisas
para contar-lhe, se vier em seguida.
— Vou já então. Mas primeiro terei de fazer uma rápida
limpeza na área.
Foi rápida, mas me ocupou por meia hora. Verifiquei que
o rádio do posto estava intacto. Levei os corpos com
dificuldade até o porão, lavei as manchas de sangue e saí.
Refiz o caminho que percorrera na vinda, e fui encontrar
o fiel Abelard encostado à Mercedes, fumando
pachorrentamente um cigarro.
Recebeu-me com as homenagens de costumo. Mostrou
interesse pela marcha de meus problemas, ao que respondi
com o melhor sorriso:
— Creio que as dificuldades vão desaparecendo, meu
bom amigo. Talvez até meu marido se emende e tenha dó de
sua pobre mulherzinha...
— Aquele monstro? Minha cara, você é um anjo, não
sabe de nada! Um homem que macula seu matrimônio
jamais se emendará. Mas eu a protegerei. Permita que seja
seu defensor, seu cavaleiro andante!
— Obrigada — disse, emocionada com tamanha prova de
dedicação medieval. — Mas leve-me de volta ao hotel, por
favor.
Coitado... Tive tanta pena dele que permiti que tocasse
castamente minha testa.

CAPÍTULO OITAVO
A visão loura caçada pelo binóculo — Abominável traição
Momento crucial, e esperança...

No confortável apartamento dos Hamilton, relatei o que


me acontecera a um Carson inquieto e a um John impassível.
Este contemplava da janela a praia próxima, munido de um
binóculo.
— E agora, meu querido esposo — perguntei ao terminar.
— Não pode parar de espiar os biquínis da praia para dar-nos
um pouco de atenção?
— E que biquínis, Natalie! — respondeu ele, sem mover-
se. — Há um, então, que me deixa tonto.
— Ora, pessoal — explodiu Carson. — Reconheço que
vocês atiram bem, mas não têm juízo nenhum. Enquanto um
se dedica a espiar as mulheres de biquíni, a outra anda por aí
a “esfriar” gente. Quando vocês forem veteranos como eu,
aprenderão que não é assim que se resolvem os casos. Vou
dizer-lhes o que penso.
— Primeiro venha olhar, Red, por favor — disse John. —
Depois diga, se puder.
Carson, de má vontade, apanhou o binóculo. Eu fui
buscar o meu. John nos instruiu, apontando com o dedo:
— Lá, perto da margem, onde as crianças estão brincando
com uma bola muito grande... viram? Voltem agora em linha
reta para o edifício do restaurante... Uma barraca toda verde,
veem? Pois é debaixo da barraca.
Carson soltou um assobio de admiração. Entusiasmando-
se.
— Que maravilha! É uma loura de abafar! Conhece-a? É
pena que não haja tempo para me apresentar...
— Há tempo, Red, e até necessidade — disse-lhe eu. —
Essa é a loura que você viu de costas no bar da Rua Petitroy.
— E a que ia guiando o Renault na estrada — aduziu
John. — Não se aborreça por eu ter mentido naquela ocasião,
Red. Eu estava irritado porque você perdera tempo na
manobra.
— Bem — sugeri. — Um de vocês devia ir lá e
conquistá-la. Eu não posso intervir nesta questão.
— O caso é para mim! — decidiu Carson sem hesitar. —
Você, Peter, vai ao Ponto de Ligação Número Um e fica à
espera de notícias do navio de pesca. E você, Natalie, vai ao
embarcadouro e espera junto à lancha. É amarela, chama-se
“Coquille” e tem combustível para três horas. Sabe manejá-
la?
— Bem, há muito tempo andei guiando uma pelo Sena.
Se eu não enjoar...
— Ora, examine-a. Dê uma voltinha curta, e experimente.
Tome as chaves. E não esqueça de ficar à escuta no rádio,
cada três minutos. Qualquer um de nós dois pode chamá-la.
Vamos! Vou pôr o maiô.
Saiu apressadamente. Nós continuamos a olhar pelos
binóculos, para não perdermos a loura de vista. Finalmente
Carson apareceu no terraço do hotel. Sapatos de lona,
bermuda branca, camisa de jérsei azul, gorrinho com pala,
óculos escuras e uma bolsa de praia com uma toalha de cores
vivas aparecendo na borda. No fundo, certamente, havia uma
pistola com silenciador.
Desceu lentamente a escada e pôs-se a percorrer um
amplo círculo em torno da loura. Ela, indiferente ao mundo,
estendida com o rosto voltado para o sol, só parecia mesmo
disposta a avermelhar sua epiderme nórdica.
Nórdica? Essa ideia despertou-me outras.
— Vista o maiô debaixo do vestido, Brigitte — disse
repentinamente John, começando a despir-se.
— O plano de Red Carson é bom, mas devemos estar
prevenidos para o que der e vier.
Vesti os dois pedacinhos de pano que comprara em Paris
e tornei a pôr o traje que usara antes. Examinei a pistola e o
rádio, na bolsa, e pus sobre eles uma toalha. Apanhei meus
óculos escuros, que cobriam metade do rosto e atei um lenço
à cabeça.
John já estava preparado, com uma bolsa de praia, um
boné e óculos verdes. Ambos muníramos as pistolas com
silenciadores, devido à guerra que o inimigo nos movia em
público.
Talvez precisássemos atirar sorrindo, dançando ou
tomando aperitivos no balcão de algum bar. E o estampido
seria inconveniente.
John apanhou minha mão e puxou-me para o corredor.
— Depressa, Brigitte! Por favor... Não quero perder a
cena de Carson conquistando a loura.
— Nem eu! — ri, divertida.
— Mas eu o faço por motivos profissionais — disse ele,
muito sério. — Sempre se aprende alguma coisa nova.
Algum detalhe, algum toque pessoal.
Dei-lhe um toque pessoal de salto num tornozelo. Deve
ter-lhe doído, mas sorriu. Ao chegarmos ao terraço,
examinamos a situação. A loura continuava em seu banho de
sol, e Carson efetuava mais um circulo, cada vez menor.
Percebemos que calculara uma espiral cujo centro seria a
barraca verde da banhista nórdica...
Nórdica? Por que me vinha a ideia de que a loura fosse
nórdica? Continuei a especulá-la, enquanto Carson
continuava a aproximar-se em círculos. E a loura indiferente.
— Interessante — disse John, guardando o binóculo. —
Vamos aproximar-nos mais, por favor. Ah, Brigitte: ali está
seu admirador. Abelard de la Rocheblanche não empregou o
sistema da espiral? Claro que não. Mas sinto desiludi-la: não
existe nenhum barão de Trois-Chateaux.
— Oh, não importa — respondi, olhando de soslaio para
certificar-me da presença do conquistador, que simulava
interessar-se no voo de uma gaivota. — O amor não
necessita de títulos de nobreza. Bastam-me seu
cavalheirismo e seus milhões. E essa história de
Rocheblanche não vai mal...
Seguidos por Abelard, chegamos à calçada do
restaurante, donde podíamos apreciar melhor a cena.
Foi curta. Carson deteve-se a dois passos da jovem,
acendeu com displicência um cigarro e passeou o olhar pela
praia.
Não havia muitos banhistas. Aqui e ali, pequenos grupos
ou veranistas solitários. E grandes espaços desertos. A
temperatura já era agradável, mas pouca gente se animava a
enfrentar a água ainda muito fria. Em troca, o terraço e o bar
do restaurante estavam repletos.
A atitude de Carson foi a mais antinatural do mundo:
escolheu seu lugar perto de outra pessoa — a loura —
desprezando os espaços vazios. Sentou-se na areia ao seu
lado, murmurando alguma coisa. Ela voltou as costas para
ele, sem olhá-lo. Carson insistiu, sem resultado. Acercou-se
mais e falou novamente. Dessa vez ela lhe deu atenção, mas
de um modo inesperado e particular: estalou uma bofetada
em seu rosto e pôs-se de pé, recolhendo a bolsa. Caminhou
altivamente para o restaurante.
Passou junto de nós, com a cabeça ereta, bamboleando
suavemente a anatomia. Naquele momento, o que me parecia
uma incógnita converteu-se em suspeita. Carson a seguira,
mas deteve-se ao nosso lado, forçando um sorriso.
— Bem... — disse, sem olhar para nós. — É apenas
questão de tempo.
— Você julga que o conseguirá ainda este ano? —
perguntei, também sem olhar para ele.
— É... — suspirou John. — Terei de experimentar minha
sorte.
— Sim — suspirei. — Que remédio! Vá você para o
Ponto Número Um, Red. O resto continuará sem alteração.
Carson afastou-se, cabisbaixo, enquanto John foi atrás da
loura, murmurando:
— Perdoe-me, querida; o dever me chama. Permaneci
parada, observando-o. Abelard chegou-se a mim. John fora
até ao balcão onde a loura acabava de conseguir um copo de
alguma bebida, entre os clientes que apinhavam o salão. A
cena também foi muito curta, dessa vez.
John esperou que ela se afastasse do balcão, com o copo
na mão. Colocou-se de modo que ela tropeçasse nele. E
quando a loura se virou, sobressaltada, um movimento
brusco fez com que o líquido entornasse sobre a imaculada
brancura da camisa de linho de John.
O resultado foi exatamente contrário ao que Carson
obtivera. A loura só podia pedir perdão a John. E foi o que
fez. John, cortês e elegante, atraente, pediu perdão a ela, por
sua vez. Eu podia adivinhar suas palavras: “Oh, que
desastrado que sou! Peço-lhe que me perdoe, por favor.” E
conseguiu outro copo de bebida para a jovem. Eu continuei
adivinhando suas palavras. “Minha camisa? Oh, não
importa! O difícil de limpar é esta ‘gaffe’...”
Conversavam, e ela sorria. Brindaram e beberam. A meu
lado, Abelard escandalizava-se cinicamente:
— É inconcebível! Agora compreendo seu sofrimento,
senhora! Que humilhação esse monstro lhe causa... Oh, conte
comigo para sua testemunha no caso do divórcio. Estou
verdadeiramente chocado. Desprezar a mais bela, a mais
pura das esposas...
— É como vê — disse eu, tristemente. — Graças a Deus
que posso contar com você como testemunha e como amigo.
Agora lhe peço, meu caro, que me deixe só. Preciso estar só,
por favor.
Fui andando, margeando a praia por uma pista de asfalto,
até o longínquo espigão artificial onde se situa o cais.
Caminhava com pressa, bufando de irritação. Claro que John
precisava fazer aquilo. Mas o que me enfurecia era a
facilidade com que as mulheres o aceitavam, a rapidez com
que iniciava o namoro com qualquer uma que escolhesse. E
a nórdica não fora exceção.
Nórdica? Por que nórdica? Aquela ideia vaga, indecisa,
desviou meus pensamentos da traição de John e acalmou-me.
Abelard de la Rocheblanche só me seguiu com o olhar.
Encontrei a “Coquille”, uma boa lancha, quase nova.
Verifiquei a gasolina, e pus o motor em marcha. Dei um giro
pelo mar, dirigindo-a a umas rochas, onde desembarquei. O
homem da CIA, pelo menos, era previdente: encontrei
sanduíches e umas garrafas de cerveja, com o que distraí
meu aborrecimento de sentinela.
A cada meia hora entrava em contato com Carson, pelo
rádio. Ele se instalara no Ponto Número Um. Sem novidade,
sem novidade, sem novidade... Ao meio-dia surgiu do
aparelho a voz de John:
— A coisa vai andando — disse ele. — É uma garota
muito interessante. Depois eu conto... Vou almoçar com ela.
Há um envelope para você no escaninho do hotel, Natalie.
Não posso apanhá-lo porque a loura está julgando que sou
solteiro, e me esperou no “hall”. Precisei esconder-me no
lavatório para poder falar com você.
Aquilo me irritou ainda mais. E eu passava a sanduíches e
cerveja morna...
As doze e trinta voltei a comunicar-me com Carson. Sem
novidades. As treze, por fim, ação!
— Acabam de falar! — informou-me, excitado. — Do
navio. Estão parados a dez milhas da costa, diante do porto.
E parece que se acham em dificuldade. Nosso amigo
desembarcará num bote.
— Vou recolhê-lo — decidi. — Não há tempo para
esperar por você.
— Muito bem. Esperá-la-ei no cais, e... Que diabo!
Ouvi vozes estranhas e a comunicação foi cortada. Eu
estava sentada sobre umas pedras. Guardei o rádio e
empunhei a pistola. Sem dúvida haviam apanhado Carson.
Mas eu acabava de perceber que alguém se aproximava da
lancha, e não queria ser caçada.
Era Abelard, que se assustou enormemente ao ver-me
com a pistola na mão.
— Oh, minha querida! Que é que há? Já sei: está
desesperada com a traição de seu marido. Mas não faça isso!
Confie em mim.
— Escute: eu lhe disse para não me seguir. Não sabe em
que encrenca se está metendo, e em que compromissos me
está pondo.
O compromisso era a opção a que eu me via forçada:
confiar nele, ou dar-lhe um tiro. Seu olhar era cada vez mais
espantado.
— Vá embora — aduzi. — Eu tenho de ir nesta lancha.
— Vou com você! — exclamou, num assomo de
heroísmo. — Não permitirei que vá sozinha, seja qual for o
problema. Não posso permitir que cometa uma loucura.
Você quer suicidar-se no mar!
Que idiota! Pensei rapidamente. Se ele era um inimigo,
não podia deixá-lo ali. O melhor seria forçá-lo a revelar-se.
— Sabe que vai arriscar a vida?
— Bem... — sorriu com ceticismo. — Pelo contrário,
creio que vou salvar a sua.
— Sabe manejar essa lancha? — perguntei. E como
confirmou com um aceno, completei: — Pois entre, ponha-a
em marcha e faça o que eu lhe disser. Não se esqueça de que
estou atrás de você com o dedo no gatilho.
Certo de que tratava com uma louca, obedeceu. Um
minuto depois, navegávamos na direção que eu lhe havia
indicado.
— Acalme-se — disse ele, sem abandonar a roda do
leme. — Você é moça, e eu estou apaixonado por você. Pode
começar vida nova comigo.
— Escute-me com atenção — disse-lhe suavemente,
quase com carinho. — Eu sei que você não é barão de Trois-
Chateaux, nem coisa nenhuma. Não tenho muita certeza do
que deseja, mas quero que saiba que a Europa depende da
missão que estou cumprindo. Sua vida não vale nada, em
comparação com isso. Qualquer suspeita que provoque
significará que você é um inimigo debaixo da aparência de
um “playboy”. E apertarei o gatilho sem pena.
Abelard de la Rocheblanche assustou-se um pouco, cada
vez mais convencido de minha demência total. Abaixou a
cabeça e murmurou:
— É verdade que não sou barão; e não sou rico também.
Mas estou apaixonado por você, e... Enfim, tenho vergonha
do meu procedimento, e o seu me entristece muito. Por que
não voltamos, e...
— Acelere!
Ele acelerou. Três quartos de hora depois, tendo deixado
para trás a costa, lanchas de recreio, um par de navios e um
iate, já em pleno mar cujas ondas nos levantavam e
abaixavam com desprezo, avistamos um diminuto vapor de
casco vermelho, parado e jogando.
— Para lá! — ordenei. — Para aquele navio.
O pobre Abelard estava enjoado. Tinha o rosto verde.
Mas obedeceu mais uma vez.
Vimos um barquinho, um simples bote, no qual um
homem remava desesperadamente em direção à costa. Só
podia ser Ploskow. Abri a boca, para ordenar a Abelard que
aproasse na direção daquele bote quando, de repente, o
pesqueiro desapareceu em meio a uma bola de fogo e
fumaça.
Comecei a pensar se não seria preferível deixar que os
“containers” fossem colocados nas costas da Europa à
vontade, posto que a luta por seu segredo era mais mortífera
que os engenhos infernais.
Abelard olhou-me, apavorado. Em sua mente abria
caminho a ideia de que talvez eu não estivesse louca. Mas
isso o assustava ainda mais.
— Que foi aquilo? Um torpedo? — exclamou mais do
que perguntou.
— Claro, meu amigo. Claro. Eu o avisei de que se estava
metendo numa embrulhada dos diabos. Agora que está no
baile, dance também. Embique para o bote, e pare junto dele.
Estava claro: a chamada que Carson recebera no Ponto
Número Um fora captada também no Dois e no Três, pelos
ratos que os ocupavam. E os ratos punham em ação toda a
sua capacidade destrutiva.
Sua primeira precaução havia sido a de avisar o peixe que
seguia o navio de pesca, para que assestasse o golpe
definitivo. Um torpedo aniquilaria a tripulação inteira,
apagando a possibilidade de espalhar-se a confidência de
Ploskow. Um torpedo que teria afundado também o fugitivo,
se este não houvesse deixado o navio.
Mas o inimigo certamente também previra a possibilidade
de que Ploskow já estivesse remando para terra. Quando
chegasse, não daria muitos passos antes de sentir uma pistola
lhe cutucar os rins.
CAPÍTULO NONO
Aventura nas águas do Mediterrâneo
Mais rolhas saltam das garrafas de champanha
A paixão súbita do inglês altera a situação

Quando a lancha se deteve ao lado do bote o homem


deixou de remar e olhou-nos com o pavor estampado na
face. A pistola que via em minhas mãos o aumentava,
decerto.
Observei-o detidamente, antes de falar-lhe. Era alto e
magro, aparentava quarenta anos, tórax musculoso. Tinha
um sinal negro na face direita, seus cabelos brancos
brilhavam ao sol. Era Pedro Ploskow, sem dúvida.
— Uísque trinta-e-três! — gritei.
— Gim quarenta-e-quatro — respondeu, com visível
alívio.
— Ligeiro! Salte para a lancha.
Não esperou segundo convite. Saltou para a “Coquille” e
instalou-se ao meu lado. Apontando para Abelard,
perguntou:
— Quem é ele? Por que aponta a arma para esse homem?
— É um colaborador involuntário — respondi. — Não
confio muito em suas atitudes.
Dirigi-me ao conquistador:
— Querido Abelard, rume para a praia, a toda! Prometo-
lhe um beijo, se tudo correr bem.
— E uma explicação? — perguntou ele, sorrindo com
timidez. — Promete? Pelo menos diga-me de que lado estou
colaborando.
— Do lado do Ocidente livre — repliquei, com toda a
seriedade. — E especialmente do lado da França.
— Então... — Abelard inchou o peito, com orgulho
patriótico. — Viva a França!
E deu todo o gás ao motor. Ploskow explicou:
— Percebemos ontem que um submarino vinha seguindo
nosso navio. Alguém deve ter comunicado a Moscou que eu
não fugira simplesmente por ter escolhido a liberdade. E é
claro que a informação incluía a descrição do navio. O que
não entendo é por que não nos afundaram antes.
— Porque não tinham certeza de que era este o navio que
o conduzia. Quando vocês se comunicaram com a terra é que
eles se certificaram.
— Quer dizer que...
— Sim, a chamada pelo rádio teve mais ouvintes do que
o previsto. Mas o pior já passou. Faça o que vou dizer-lhe.
Apanhe este dinheiro. Mil francos novos bastarão. Quando
nos aproximarmos da costa, jogue-se à água e nade. Sairá da
praia como um banhista qualquer, mas tome cuidado; aja
com naturalidade, controlando, no entanto, todos os que o
olharem.
— Não tenho calção — gemeu ele.
Aquilo podia ser remediado. Eu já estava disposta a
improvisar um, rasgando a calça que ele vestia, quando
Abelard confessou que tinha um debaixo da roupa. A
colaboração voluntária do conquistador emocionou-me.
Fizeram a troca, que terminou quando já estávamos a
quinhentos metros da praia. O pudor dos dois homens e o
balanço da lancha dificultaram muito a operação.
Ordenei a meu heroico admirador que parasse a
embarcação.
— Que farei depois, sem roupa? — perguntou Ploskow,
angustiado.
— Há lojas atrás daquele restaurante que se vê entre as
casas. Compre um terno e depois vá ao hotel “Bleu-Mer”.
Está vendo o hotel? Pergunte pelo senhor Hamilton, e pode
confiar nele.
— E você? — perguntou.
— Não interessa. Pedro Ploskow é que importa. Onde
tem os dados da plantação?
— Na cabeça. Com um mapa, marcarei...
— Pois o que interessa é sua cabeça, pelo menos
enquanto guardar os dados. Mas talvez eu já esteja no hotel,
quando você chegar lá. Poderá nadar esta distância?
Disse que sim, e atirou-se à água pela borda oposta à da
praia. Abelard e eu nos dirigimos ao cais. Guardei a pistola
na bolsa. Amarramos a lancha ao cais deserto.
Aparentemente deserto, porque surgiram
inesperadamente dois homens detrás de um rolo de cordas. A
situação tornou-se muito clara quando vi que um deles tinha
uma atadura no braço esquerdo: reconheci-o como o
sobrevivente do massacre de Rouge Coin.
Não lhes dei tempo de tirarem as mãos dos bolsos.
Empunhei novamente a pistola e disparei no mesmo instante.
Duas vezes, duas rolhas de champanha saltavam.
Abelard, fascinado e horrorizado, contemplou os dois
corpos que ruíam para o chão.
— Ponha-os na lancha, depressa!
Precisei ajudá-lo. Metemo-los na pequena cabina, e
soltamos as amarras. Antes disso, eu dei um tiro no assoalho
da lancha.
Enquanto a embarcação se afastava do cais, afundando
lentamente, dei um sonoro beijo na face do pálido Abelard.
— Você deve continuar pensando que sou um anjo, não é
meu bem? Ainda tem coragem suficiente para gritar “vive la
France”?
— Sei que você é uma espiã...
— Ainda bem que compreendeu! — disse-lhe, pondo-me
a caminho.
Abelard de la Rocheblanche seguiu-me. Logo se pôs ao
meu lado e tomou meu braço.
— Escute — disse, emocionado. — Eu sou um ninguém,
e sempre vivi de expedientes. Mas sou mais francês do que
qualquer patriota. Julguei que você fosse uma pobre senhora
boba e rica, e pensei em explorar a situação que me contou...
Sou um miserável, Natalie! Mas agora estou apaixonado por
você, de verdade. Tenho um medo louco, mas farei tudo o
que for preciso para ajudá-la, e pela França.
— Bravo, meu herói! Pois ajude-me a andar depressa,
antes que aqueles dois nos alcancem.
Dois homens corriam pela praia em nossa direção.
Certamente haviam estado a vigiar-nos com binóculos, e
tinham visto o que acontecera. Prevenidos, eu teria muita
dificuldade com eles.
Abelard e eu nos pusemos a correr desenfreadamente,
para evitar que nos cortassem a saída. E alcançamos com boa
dianteira a pista de asfalto que seguia por trás da fileira de
casas, em sua maioria fechadas.
Conseguimos atingir o restaurante. Precisávamos
recuperar o fôlego, e só entre a multidão podíamos sentir-nos
relativamente a salvo. O bar estava ainda mais concorrido do
que pela manhã. Paramos diante do balcão. Certificando-me
de que os perseguidores ainda não estavam à vista, entrei na
cabina telefônica, arrastando Abelard comigo.
Telefonei para o hotel. Atendeu a portaria.
— Sou a senhora Hamilton. Meu marido está?
— Não... Creio que não — respondeu, confuso. — Saiu
antes do almoço com... Bem, saiu e ainda não voltou, e
— Há alguma carta para mim?
— Sim, uma carta urgente.
— É muito urgente — insisti. — Por favor, mande
alguém trazê-la ao restaurante Netuno. Em quanto tempo
pode fazê-lo?
— Uns dez minutos.
— Veja se diminui para cinco. E escute: vai chegar aí um
homem, perguntando por meu marido. Não o deixe ir
embora. Faça-o esperar em nosso apartamento.
Saímos da cabina. Se os perseguidores nos apanhassem
ali, poderiam encher-nos discretamente de chumbo. Um
deles já estava à porta do bar.
Com a mão dentro da bolsa, sentei-me a uma mesa,
olhando-o fixamente.
— Controla a porta de serviço — disse a Abelard. — O
outro deve ter ido em busca de reforços, para entrarem pela
parte dos fundos.
— E que vamos fazer? Não é melhor chamarmos a
Polícia?
— Estamos ganhando tempo para Ploskow. Não irão à
sua procura, enquanto estiverem entretidos conosco.
A verdade era outra, embora muito parecida com a que eu
inventara. Mas não quis assustar meu admirador mais do que
estava. Apesar de seu fervor patriótico e amoroso, ele teria
desmaiado se soubesse quais eram meus planos a seu
respeito.
Eu não tinha muita esperança de sair com vida daquele
episódio. No momento, entretanto, tinha curiosidade de
conhecer o conteúdo do envelope que Monsieur Nariz me
enviara.
O “boy” do hotel chegou, deve ter estranhado minha
atitude, pois recebi o envelope de suas mãos sem o olhar,
atenta à porta. O rapaz ficou esperando a gorjeta.
— Não vá embora, meu filho. Espere um pouco.
Abri o envelope e tirei as fotografias que continha. Olhei-
as detidamente, sem deixar a porta fora de meu campo de
visão. E um repentino interesse fez-me desejar ter mais
tempo para examiná-las, por que...
Foi providencial. Um nutrido grupo de banhistas alegres
agrupou-se diante da porta, ocultando o inimigo indeciso.
Agi com rapidez. Dei uma gorjeta ao “boy”, dizendo-lhe:
— Se alguém lhe perguntar, diga que saímos pela porta
de trás do bar. É uma brincadeira com uns amigos.
Puxei Abelard e o levei agachado para trás do balcão.
Dali passamos para a cozinha, onde uma mulher gorda nas
olhou com surpresa. Outra gorjeta, e...
— Por onde podemos sair sem que nos vejam? É uma
brincadeira com uns amigos.
Saímos por uma janela lateral. Escondidos entre dois
chalés, dediquei-me a examinar as fotografias da loura.
Sobretudo a ampliação do rosto...
— Vão encontrar-nos! — disse Abelard, angustiado. —
Precisamos fugir.
Não lhe fiz caso. O pobre conquistador metido a espião
não poderia compreender que meu plano era deixar-me
apanhar, precisamente com ele. Continuei examinando as
fotografias. O que havia sido uma incógnita e depois uma
suspeita, agora se convertia em certeza. Se eu pudesse avisar
John! Mas ele já deveria saber, certamente.
— Vamos! — insistia Abelard. — Já despistamos os
homens.
— Não — sorri. — Nunca o conseguiremos. A única
forma de salvar-nos, talvez, é irmos ao encontro deles.
E lembrei-me da entrada na armadilha de Rouge Coin.
Quem sabe poderia repetir um truque mais ou menos como
aquele? Contaria com a ajuda de John, depois que o polonês
lhe contasse o que sucedera. Certamente poria Ploskow em
segurança antes de procurar-me, mas arrasaria toda a França
para encontrar-me.
Mas é claro que me interessava que ele me encontrasse
viva. Por muitas razões, e principalmente porque me parece
incômoda a mudança de estado físico...
Portanto, saímos a campo aberto. Havia dois homens na
praia, afastados entre si, olhando-nos fixamente com as mãos
enfiadas nos bolsos dos paletós.
— Venha! — exclamou Abelard. — Pelo outro lado.
Deixei-o seguir seu capricho, com o gesto de uma babá
condescendente que permite ao garoto cometer algum erro
inocente para convencê-lo de que deve ouvi-la, e para que
adquira experiência.
Meu conquistador adquiriu experiência. Passamos entre
dois chalés, e vimos no outro lado da pista mais dois
homens, imagens fiéis dos que estavam na praia.
Começaram a aproximar-se de nós. Ouvi seus passos que
se chegavam lentamente. O restaurante, o hotel e os
banhistas estavam muito longe. Ninguém ouviria o saltar das
rolhas de champanha de nossa festinha privada.
Abelard tremia visivelmente. Não é fácil ser herói tão de
repente... Tremia muito, embora ignorasse o que meus
planos lhe reservavam.
Pelas dúvidas, empunhei a pistola. Naquele momento,
nem me lembrava se estava munida do silenciador. Olhei-a,
e vi que estava: tirei-o. É que o silenciador evita o estampido
do tiro, mas diminui muito a velocidade da bala. Só pode ser
empregado a curta distância. E é por isso que não se usa
silenciador em todas as armas. Seria mais cômodo, nas
guerras, abafar-se o ruído dos tiros como se abafam as
descargas dos automóveis, com silenciadores...
Agora eu poderia iniciar o tiroteio antes que os inimigos
se aproximassem muito. Mas preferi esperar. Pedro Ploskow
talvez ainda estivesse comprando suas roupas na loja, e John
ainda estaria às voltas com a conquista da perigosa loura.
Sorri, ao lembrar-me do nome dela, que eu sabia agora,
depois de ter examinado detidamente a fotografia ampliada
de seu rosto.
Não que a conhecesse, mas é que se parecia muito com...
— Eles estão-se aproximando! — sussurrou Abelard,
colando-se à parede do chalé como uma lagartixa.
A sombra de um braço projetou-se no solo a um lado da
casa. Em seguida, uma cabeça no outro lado. Eu disse, em
voz audível:
— Fique quieto, Ploskow! Não se mova, e talvez eles não
nos vejam, Ploskow! Pare de respirar.
Abelard olhou-me com assombro. Os quatro inimigos
apareceram, como sombras sinistras; dois a cada lado do
estreito beco. Suas pistolas apontavam para nós. Um deles
disse:
— Esse homem veio com ela na lancha.
— Vamos, senhorita! — disse outro. — Solte a pistola, e
venham conosco.
Respirei aliviada. Minha suposição era acertada, e o
plano ia em bom caminho.
— Não temos outro remédio, Ploskow — disse a meu
conquistador. — Apanharam-nos.
— Que é que está dizendo? — gemeu ele. — Eu não sou
Ploskow! Chamo-me Abelard de la Rocheblanche. Ploskow
deve ser o homem que foi para o hotel!
Aquele idiota poderia por meu plano a perder. Gritei:
— Não seja covarde, Ploskow! Saiba enfrentar a situação
como homem!
— Vão à nossa frente para a pista — ordenou um dos
homens sinistros. — E tenham cuidado com o que fizerem.
Levaram-nos em um carro grande e luxuoso a um belo
chalé de dois pavimentos, afastado da costa e isolado por um
terreno arborizado. Fizeram-nos entrar numa sala muito bem
decorada, onde encontramos um personagem acomodado a
uma poltrona. Tinha um cigarro na mão, um copo de uísque
na outra e um chicle na boca. Red Carson suspirou com
resignação, ao ver-nos:
— Então, começamos a reunir-nos, hem? Em seguida
chegará o inglês conquistador de louras. Quem é esse
cavalheiro tão elegante.
— Pedro Ploskow.
Abelard não protestou dessa vez. Percebera que eu tinha
um plano e decidira confiar em mim. Os homens nos
revistaram cuidadosamente, e logo um deles abriu uma porta
e enfiou a cabeça na sala contígua.
— Estão desarmados — informou.
E voltou a fechar a porta.
— Você acredita nisso — perguntei-lhe, piscando um
olho e sorrindo. — Não tenho nenhum recurso?
— Nenhum — respondeu, impassível. — Não tentem
fugir, Fiquem à vontade e esperem.
Saíram. Quem seria o personagem misterioso do quarto
ao lado? Oh, o que mais importava no momento era ganhar
tempo até que John pudesse tecer seus fios e...
Apareceu um dos homens. Vestira um traje de mordomo,
e vinha abotoando os últimos botões do colete listrado.
— Vamos receber visitas. Espero que sejam prudentes e
razoáveis. Até agora tudo lhes correu bem porque tratavam
com pobres infelizes, com exceção do russo que conheceram
em Rouge Coin e do coronel Kociemsky. Mas nós somos
especialistas de verdade como vocês. E somos quatro, de
modo que nossa eficiência é garantida.
— Russos? Enviados de Moscou? — perguntei em russo.
— Eu sou russo — respondeu ele, no mesmo idioma. E
ajuntou em alemão: — Um dos outros e polonês, treinado
por nós e com muita experiência.
— Obrigada pela exibição — repliquei em inglês,
sorrindo em esperanto.
O homem também sorriu e saiu. Carson disse tristemente:
— Já experimentei as janelas. Postigos de ferro e grades.
E as portas ficam fechadas por algum meio misterioso. Mas
o uísque é bom. Prove-o, Natalie. Ah, minha querida: esse
sujeito não é...
— Cale-se! — cortei, irritada. — Nunca ouviu falar em
microfones ocultos?
Enrubesceu e calou-se. Mas continuou a fitar-me com
uma curiosidade especial. Talvez começasse a compreender
e lamentar a coleção de erros que vivia a cometer. Mas
também devia ter percebido que eu possuía um trunfo
secreto. Com um gesto assegurou-me que passaria a ter
prudência e seguir o jogo que eu fizesse.
Abelard, silencioso, olhava-nos alternadamente, tentando
entender aquele quebra-cabeças.
Ouvimos um carro deter-se diante da porta principal. Eu
mesma ainda me esforçava para compreender inteiramente o
assunto. Que casa seria aquela? Por que não nos haviam
assassinado? Que personagem misterioso estava na sala
contígua? Ploskow já teria encontrado John?
Não, isso não acontecera. Desalentadoramente não,
porque a porta foi novamente aberta, e John surgiu.
Esplêndido, sorridente desenvolto, parou no umbral. Estava
elegantíssimo, em seu terno cinza-pérola.
A estupenda boneca loura o acompanhava, com vestido
vaporoso, bolsa de ráfia e um chapelão de palha. Vinha
apoiada com irritante familiaridade no braço de John. Atrás
deles, o mordomo, e mais atrás outro homem com uma
metralhadora portátil em punho.
— Mas querida Greta, por favor... — exclamou John
suavemente, com ar divertido e desdenhoso. — Que é isto?
Você me convida a vir à sua casa, e sou recebido por homens
armados como se estivéssemos em guerra com a Alemanha,
ainda...
— Oh, Peter — respondeu a loura, em tom carinhoso. —
Não estamos em guerra, mas vou dar-lhe uma surpresa que
nem eu mesma esperava há meia hora atrás. E então você
compreenderá as cautelas que tomo em minha casa.
— Ótimo! — exclamou John, olhando para nós e
aproximando-se. — Mas veja: há aqui uns amigos meus!
Greta...
— Espere! — o mordomo o deteve. — A senhorita já lhe
disse que... Bem, preciso revistá-lo.
John levantou as mãos, para facilitar o trabalho do
homem, e piscou para mim. Era um aviso e uma ordem para
que me pusesse alerta. Contra todas as expectativas, as mãos
do mordomo não encontraram nenhuma arma em poder de
John. O homem recuou até à porta, postando-se ao lado do
que tinha a metralhadora.
— Agora, Greta, vou apresentar-lhes meus amigos —
disse John, sem alterar o sorriso e o tom cortês.
— Natalie Dupont e Red Carson. Ele é o homem que
você esbofeteou esta manhã, lembra-se?
— Oh, sinto muito! — Greta mostrou-se arrependida. —
Eu julguei que...
— Esqueça isso, pequena — respondeu Carson, fazendo
um gesto largo com a mão. — Não foi a primeira...
— O que não entendo é como vieram parar aqui — disse
John.
— Convidados, Peter, convidados... — riu Carson. —
Embora menos amavelmente convidados do que você.
— Não nos apresenta a Greta? — perguntei. — Greta
Slassen, se não estou enganada.
— Que coisa mais curiosa, Natalie! — assombrou-se ela.
— Seu amigo Peter também adivinhou meu sobrenome.
Sempre me acham parecida com meu pai. Mas eu não
compreendi como Peter me reconhecera até que papai me
disse que eram amigos. Oh, estou estragando a surpresa!
— Eles são muito espertos — suspirou Carson.
— A gente só fica sabendo disso quando lida com eles.
— Imagino — disse Greta. — Se não fossem assim, não
colaborariam com meu pai.
Aquela reunião era disparatada, e eu nunca vira palestras
mais absurdas do que aquela: uma reunião social vigiada por
uma metralhadora. A loura olhou finalmente para Abelard e
perguntou quem era. O pobre conquistador julgava, sem
dúvida, estar num manicômio. Talvez por isso, e não pelo
patriotismo, resolveu seguir a corrente. Disse com orgulho
varonil.
— Sou um refugiado político. Pedro Ploskow.
— Ploskow? — exclamou Greta, assombrada. — Você
não pode ser Ploskow!
Todos ficamos imóveis. Não vi alteração alguma na cara
do mordomo, nem na do homem da metralhadora.
Compreendi que o personagem misterioso da sala; ao lado
nos estava vendo, e que sabia que Abelard não era Ploskow.
Compreendi também que dois dos quatro especialistas
deviam ter saído à procura do verdadeiro Ploskow.
John e eu, naturalmente, sabíamos quem era o misterioso
personagem, e por isso não nos espantamos quando a porta
se abriu e sua rubicunda e simpática figura apareceu. Carson
é que deu um salto na poltrona, com a surpresa.
— O general Hans Von Slassen!
Greta lançou-se aos braços de seu pai e beijou-o,
emocionada. Em seguida, disse:
— Ando à sua procura desde ontem de manhã, em Paris.
Trago a informação que você pediu. Mas esse homem...
— Sim, Greta, já sei. Não é Ploskow. Mas não se
preocupe, pois você cumpriu sua parte. Agora deixe-me
conversar a sós com esses cavalheiros. Suba ao andar
superior, onde reservei um quarto para você. Depois
mandaremos buscar sua bagagem no hotel.
Ela protestou, mas John apanhou-a suavemente pelos
ombros. Contemplou-a um momento, com o ar mais
emocionado de seu simpático repertório.
— Greta... Você deve obedecer a seu pai. Mas nesta
profissão nunca se sabe o que vai acontecer. Por isso quero
contemplá-la mais uma vez.
Cativados por sua voz e sua expressão de
embevecimento, todos os olhávamos. Eu, acostumada a seus
truques de prestidigitador, sabia que estava tentando enganar
o inimigo para conseguir seu propósito secreto. Permaneci
atenta, para inteirar-me de seu plano.
A mão esquerda de John levantou-se lentamente e tirou o
chapelão da cabeça de Greta, enquanto a direita apanhava
sua, bolsa. Em seguida, ainda absorto na contemplação da
jovem que o olhava lisonjeada, retrocedeu uns passos até que
uma poltrona o impediu de continuar. Juntou em uma mão a
bolsa e o chapéu e jogou-os sobre a poltrona. Levantou a
mão para a jovem loura, exclamando em um sussurro que era
quase um lamento:
— Sua filha é um anjo, general. É pena que minha vida
valha tão pouco... Meu último desejo seria oferecê-la aos
seus pés... Vá, Greta... Agora, devagar, para que meus olhos
conservem sua imagem para sempre.
Só Abelard, com sua experiência no assunto, percebia
que aquilo era um truque sentimental.
Eu compreendia a verdade, e sabia por que não haviam
encontrado a arma ao revistarem John. Os demais não
demonstravam suspeitar de nada. Greta, corada de emoção,
saiu para o vestíbulo. Enquanto o mordomo e o homem da
metralhadora fechavam a porta atrás dela, John sentou-se na
beira da poltrona e acendeu um cigarro com gestos
desesperados.
— Se pretende influir em minha sensibilidade paternal,
perde seu tempo, Peter Hamilton — disse Von Slassen,
risonho.
— O senhor não pode compreender... — replicou John,
com amargura na voz. — Vamos logo ao assunto, e
terminemos duma vez.
— Sim terminaremos duma vez. Só quero esclarecer
algumas dúvidas, antes de mandar que os matem.
Escutamos um carro parar diante da casa.
— Fazendo pose, hem? — disse eu a Slassen. — Como
todos os criminosos... Você é um traidor! Agente oriental na
Alemanha Ocidental, presumo. A casualidade o pôs em
colaboração com Wilde no caso dos “containers", e decidiu
fazer seu cartaz. Contratou um grupo de bandidos e pôs-se a
agir por conta própria. Depois, ao saber que Ploskow estava
a caminho, pediu ajuda aos agentes russos. Mas estou certa
de que não lhes disse qual é a informação que o polonês traz.
— Claro que não. Eu a queria para mim. E agora que a
tenho, serei uma personalidade importante aos olhos do
governo soviético.
— Já a tem? Onde está? — perguntei. — Ploskow ainda a
conserva consigo.
Sempre sorridente, Slassen voltou a cabeça
significativamente para a porta. Fez um gesto, e o mordomo
abriu a comunicação com o vestíbulo. Os outros dois
especialistas jogaram o apavorado Ploskow dentro da sala. A
porta foi fechada e tudo ficou como antes, a não ser pela
presença de mais três homens na sala. O da metralhadora
continuava sendo o único que exibia uma arma.
— Com efeito — disse um dos recém-chegados.
— Ele foi ao hotel, e o apanhamos lá.
— Como podem ver, esse senhor intrometido e Carson
cometeram erros graves — disse Slassen.
— Não sei quem é você — exclamou Ploskow, olhando-o
com fúria — mas ainda não ganhou a parada. Não sou eu o
único que tem a informação sobre os “containers'’. Minha
morte não lhe será de proveito algum.
Slassen fez um sinal a um dos homens, que sacou
rapidamente uma pistola com silenciador e disparou duas
vezes contra Ploskow.
A execução começava. Mas minha lucidez mental
aumenta na proporção do perigo que corro. Olhando o corpo
do homem que havia desafiado tantos perigos para nada,
compreendi algo importante. Hans Von Slassen não
procurava impedir que a informação chegasse à NATO à
custa de perdê-la ele próprio. Queria-a para si, mas havia
assassinado Ploskow. Isso significava que o polonês não
havia mentido, e que alguém mais tinha a informação. E
Hans sabia quem era esse alguém, sem dúvida.
Eu também o percebi imediatamente.
— E agora vocês. Querem saber mais alguma coisa? —
perguntou Von Slassen. — O louro que morreu ao asfalto era
um pobre-diabo que me vi forçado a sacrificar, pois a
armadilha de Rouge Coin fracassara e eu precisava fazê-los
crer em minha morte. Mas parece que não consegui enganá-
los muito tempo, porque são inteligentes demais. Percebi-o
ao vê-los pela primeira vez, apesar de seus disfarces: são
inteligentes demais para que eu facilite com vocês.
Estiveram a ponto de vencer- me, mas eram apenas dois.
Contra muitos, inclusive contra Carson. Lamento muito, mas
sou obrigado a suprimi-los.
— Moscou o liquidará, general — disse eu. — E seus
próprios homens o denunciarão.
— São de minha confiança. Não são comunistas
fanáticos, mas homens ambiciosos, que sabem o que querem.
Participarão dos lucros da maior chantagem da história. E
agora... primeiro as damas.
Eu esperava que John mostrasse seu jogo.
Indubitavelmente, fingindo-se abatido, ele aguardava o
momento oportuno. E Abelard proporcionou-lhe a ocasião,
quando a pistola voltou seu cano para mim.
O pobre conquistador comportou-se heroicamente, afinal,
embora seu móbil fosse o desespero. Saltou contra a pistola,
gritando:
— “Vive la Francel”
Recebeu dois balaços antes de alcançar o pistoleiro é
começar a deferir-lhe murros. Mas aquela inesperada
intervenção produziu a confusão suficiente para John ter
tempo de enfiar a mão na bolsa de Greta e apanhar a pistola.
Eu sabia que ele a havia posto ali, sem que Greta o
percebesse, no trajeto para a casa. Estava pronta para a ação,
inclusive com o silenciador.
Por isso os inimigos tardaram a dar-se conta do que
acontecia. Ao primeiro estampido abafado, o homem da
metralhadora caiu. Em seguida, o que ainda lutava contra o
cadáver de Abelard de la Rocheblanche. Carson arremessou-
se contra o mordomo, mas recebeu deste um tiro no peito. Eu
joguei uma cadeira à cabeça do quarto especialista, apanhei
uma pistola que caíra ao chão e o liquidei com dois disparos.
John completou a limpeza, fazendo um orifício na testa do
mordomo.
Ficamos de pé apenas Hans, John e eu. O alemão não
tentou sacar sua arma. Estava completamente aparvalhado. E
seu estupor transformou-se em uma expressão de medo
quando John lhe disse:
— Você não, general. Você tem muito a conversar com a
chefia da NATO.
— Por favor, não! — gemeu. — Não quero que minha
filha me odeie! Ela julga que trabalhamos para a NATO. Os
comunistas mataram sua mãe em Berlim... Não quero que
me deixem vivo!
Saltou contra John. Mas Mister e Mademoiselle Fantasma
dispararam ao mesmo tempo.
Em seguida nos dedicamos a examinar as baixas da
última batalha.
— Só Carson está vivo — disse eu. — E não parece ser
grave o ferimento que tem, se conseguirmos estancar a
hemorragia. Greta!
A loura havia aparecido repentinamente à porta e olhava
horrorizada o espetáculo. John precisou usar todos os dotes
de persuasão para convencê-la de que devia sentir-se
orgulhosa de seu pai, que lutara valentemente. Disse-lhe que
os quatro homens que fingiam ajudá-lo eram traidores a
soldo de Moscou, que haviam tentado acabar com todos
quando Ploskow foi trazido para a sala. Seus argumentos
surtiram efeito, mas levou muito tempo para consegui-lo.
Entretanto, eu fazia um curativo improvisado no
ferimento de Carson. A bala talvez lhe houvesse perfurado o
pulmão direito, mas isso não constitui problema muito sério
para a ciência moderna, principalmente quando o ferido é
forte e saudável como Carson.
Encontrei um telefone e falei com Paris. A esposa de
Monsieur Nariz atendeu, e logo lhe passou o fone.
— Escute — disse-lhe. — O assunto está terminado. Na
guerra houve trinta mortos e um ferido. E era fácil, hem?
Bem, mande que a Polícia, médicos e ambulância venham a
este endereço. E recomende que não façam perguntas...
Dei-lhe o endereço, que verificara na lista telefônica, a
partir do número daquele aparelho.
— Muito bem. E a informação?
— Eu nunca falho, meu amigo — repliquei, esquecendo o
caso do Trono Escarlate. — Até logo. Mais tarde lhe
contarei tudo.
Quando voltei à sala, Greta chorava no ombro de John.
Ele me interrogou com o olhar. Expliquei:
— Meia hora, no máximo.
— Bem — concordou, com um aceno de cabeça.
— Escute, Greta. Esse homem que está ferido é amigo de
seu pai, agente da NATO, como nós. Você vai acompanhá-lo
a Paris e dar a informação dos “containers”. Conte a Natalie
como a conseguiu, enquanto eu procuro um mapa.
Passou para a sala contígua. Greta me relatou, entre
soluços:
— Meu pai temia que Ploskow não pudesse fugir.
Explicou-me o que acontecia, e enviou-me à Rússia como
jornalista. Não tive obstáculos lá, quando me apresentei a um
amigo seu com uma carta.
Naturalmente Hans teria amigos na Rússia, e contaria
qualquer patranha para justificar a viagem de Greta.
— Também não tive dificuldade para sair. Falei com
Ploskow, depois de dizer “uísque trinta-e-três”. Pediu-me
que o seguisse em sua viagem à Iugoslávia. E antes de
empreender a fuga, ele me revelou a posição de todos os
“containers”. Cheguei ontem pela manhã a Paris. Meu pai
me havia ordenado que não fosse à sua casa, nem falasse
com ninguém antes de vê-lo. Telefonei, mas não estava.
— E quem lhe disse para ir à Rua Petitroy?
— O embaixador americano. Fui procurá-lo, e assegurei
que tinha uma mensagem muito importante para meu pai.
Mas cheguei tarde. Já não havia ninguém. Entrei no bar, para
ver se ele parara ali... Depois telefonei novamente para casa.
Desesperada, voltei a procurar o embaixador, que me deu o
endereço de Ronge Coin. Havia policiais lá, e fugi. Por fim,
a secretária de papai deu-me instruções.
— Instruções para vir aqui?
— Para hospedar-me no hotel “Bleu-Mer”, aonde ele iria
ao meu encontro. Cheguei esta manhã, e o resto já sabe:
conheci John, almocei com ele. E quando voltei ao hotel,
encontrei um recado de meu pai. Telefonei para ele e disse
que viesse. Ao saber que estava com um amigo chamado
Hamilton, pediu que o convidasse a acompanhar-me.
John voltou com um mapa da Europa. Depois de muito
procurar, encontrara-o em um bolso de Slassen. Pô-lo diante
de Greta, com uma caneta vermelha em sua mão. A jovem
alemã assinalou sem hesitar dez pontos nas costas, que eu
registrei com exatidão na memória.
Carson abriu os olhos. Ouvi-o sacudir-se em riso e
gemidos. Ajoelhei-me a seu lado, e ele sussurrou ao meu
ouvido:
— Ouvi tudo... Nunca vi ninguém tão esperto como
vocês dois...
— Escute, Red — sussurrei, por minha vez. — Você terá
sua promoção, uma medalha, a casinha para a mãe paralítica
e o casamento com a garota... Não lhe parece bastante?
— Claro! Obrigado, amigos. Perdoem-me as
brincadeiras, e o mais... E perdoem-me, se eu nunca mais me
lembrar de vocês. Mas essa garota, como vão fazer...
Ouvimos o ruído de carros que chegavam. Carson tinha
razão.
— Feche os olhos. Isso é conosco — respondi.
E levantando-me, disse a John: — Carson morreu, Peter.
Entendeu? Vamos acabar com Greta?
John empunhou a pistola, passou o braço por minha
cintura e apontou a arma para Greta. A loura aterrorizou-se.
— Sinto muito, Greta — disse ele. — Mas em nossa
profissão não pode haver sentimentalismos. Você precisa
morrer. Somos agentes da China comunista. Não estranhe
que os chineses não empregam gente de sua raça, porque
todo o mundo reconheceria seus agentes. E vencemos a
todos. Ninguém o saberá jamais. Lamento, Greta, mas
preciso matá-la.
A campainha da porta principal soou. Olhamo-nos,
fingindo surpresa, e pusemo-nos a correr ao mesmo tempo
em que os recém-chegados começavam a acompanhar a
campainha com golpes de punho na porta.
— Vamos saltar por uma janela dos fundos — disse John.
Olhei para trás. Greta permanecera no meio da sala, meio
morta de medo. E o “cadáver” de Carson mal conseguia
conter o riso.
De braços dados, John e eu demos tuna volta pelas ruas
traseiras, antes de atingirmos a estrada. Vimos carros da
Polícia e ambulâncias diante do chalé. E um veículo da
NATO.
John me beijou com ardor. E eu lhe mordi o lábio, em
resposta.
— Quantos como este você gastou com Greta?
— Talvez menos do você concedeu a Abelard... —
respondeu, evasivo. — Bem, terminou o caso! Iremos a
Paris, onde você acertará suas contas com Monsieur Nariz, e
depois você vai comigo a Londres. Devo apresentar a Mister
Arame o relatório de minhas aventuras com dois espiões
incompetentes. E depois celebraremos nossa primeira vitória
em conjunto. Ah, mas não com champanha...
— Quem sabe com uísque trinta-e-três? — acrescentei
sorrindo.
CAPA DA EDIÇÃO ORIGINAL

Containers contendo ogivas nucleares são espalhados pelo


mar em torno da Europa. Brigitte Montfort e John Pearson
são encarregados de auxiliar um agente da CIA, em apoio à
OTAN, para proteger um traidor russo de posse da
localização das ogivas.

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