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(C) 1965 – LOU CARRIGAN

SI PARLA ITALIANO
Tradução: LUIZ NAVARRO
Editora Monterrey
390611
CAPÍTULO PRIMEIRO
Por que se deve aprender italiano

Rever Nova Iorque, a buliçosa, estranha e sedutora


Manhattam, depois de uma longa ausência, é, sem qualquer
dúvida, uma experiência fascinante.
Brigitte Montfort, pondo outra vez os pés no chão macio
do Aeroporto Kennedy, a grande entrada de ouro da União
Americana, sentiu-se feliz e emocionada. Estava em casa!
Dois misteriosos funcionários da CIA desembaraçaram
sua bagagem, com tratamento de VIP, e conduziram-na
num “Lincoln” preto refrigerado até seu apartamento.
A linda jornalista teve vontade de cantarolar, como nos
antigos filmes coloridos da Metro, ou nas comédias
musicais da Broadway: — Manhattan, Manhattan,
Manhattan!
Depois de um reconfortante banho em banheira azul,
com sais aromáticos franceses especialmente importados, a
repórter resolveu correr até à redação do seu velho jornal, o
“Morning News” impetuoso e bravo, reflexo do
temperamento de Miky Grogan, diretor, redator-chefe,
homem de ação.
Logo à entrada foi recebida com assobios e palmas pela
rapaziada da redação. Brigitte trajava um maravilhoso Pucci
colante, joelhos à mostra, num verdadeiro display de
anatomia tentadora.
— Como é? — foi indagando ela, sorridente. — O
patrão ainda está muito zangado comigo?
Miky Grogan vinha deixando seu gabinete, nesse exato
momento, e ao ver Brigitte surgindo assim como uma deusa
naquele cenário prosaico de escrivaninhas e computadores
encantou-se de pura alegria.
Abraçou-a, paternal até certo ponto, e fez a pergunta
inevitável do chefe intransigente:
— Não acha que me deve algumas desculpas, garota
endiabrada?
Brigitte beijou-o na testa, ali mesmo na frente do
pessoal, derretendo toda e qualquer recriminação esboçável.
Foram juntos para a sala de Grogan onde desenvolveram
longa conversa sobre os fatos importantes dos últimos
meses, O velho Miky afinal concluiu que a temporada
européia da sua repórter não lhe havia feito qualquer mal.
Estava mais bonita, mais bem disposta e, provavelmente,
mais experiente.
— Seguramente... seguramente! — concordava Brigitte,
maliciosa.
— E agora, ao trabalho! — grunhiu o chefe, bem sério,
pretendendo já de um momento para outro recuperar sobre a
jovem uma autoridade quase perdida.
— Estou aqui para retomar o velho enredo interrompido!
— garantiu Brigitte com exagerada submissão.
Miky Grogan pigarreou, desconfiado, arriscou mais um
olhar inspecionador sobre os joelhos afrodisíacos da sua
repórter e resolveu entrar, de chofre, no assunto.
— Você fala italiano?
A moça não quis responder tão depressa, preferindo o
bom estilo do suspense, de uma encenação mais felina.
Espreguiçou-se, mostrou um palmo de admiráveis coxas
douradas, permitiu que seu chefe lhe acendesse um cigarro
de duplo filtro. Depois indagou, por sua vez:
— E que importância tem que eu saiba falar italiano?
— A importância de uma nova missão! — explicou o
velho Miky.
— Bene, bene... Si parla italiano! — riu Brigitte.
— Com desembaraço? — insistiu o chefe.
— Faço tudo com desembaraço! — chasqueou Brigitte,
unindo a palavra a um gesto lânguido de estudada volúpia.
— Neste caso — completou Grogan — para tristeza
minha e do pessoal da redação, que vibrou ao vê-la de volta,
teremos de enviá-la a Roma!
— A Roma?
— Sim, a Roma, para dar mais brilho ao seu perfeito
italiano.
Brigitte baixou os olhos, aqueles admiráveis olhos azuis
que melhoram a paisagem de qualquer deserto.
— Não gostou? — quis saber o chefe.
— Gostei, claro que gostei! — gaguejou Brigitte. —
Mas é que... bem, você sabe, ainda nem bem cheguei em
casa, mal pus os pés na minha querida Nova Iorque e já
tenho de tomar o avião de volta...
— Ossos do ofício! Afinal, você é a melhor pessoa
indicada para nos “quebrar alguns galhos” na Europa. E está
a nos dever um pouco de serviço, depois de tanto tempo de
ausência.
A moça fez um ar compenetrado de quem aceita o
sacrifício mas ainda teve coragem de perguntar:
— Espero que a ajuda de custo dê para o meu
champanha de cada dia. Na Itália, não bebo campari. Miky
Grogan rosnou um imperceptível palavrão e despediu-se da
sua repórter prometendo-lhe instruções nas próximas horas.
— Vá para casa e arrume as malas outra vez, menina!
Não há tempo há perder.
***

No seu belo apartamento — um exagero de bom-gosto


— a admirável jornalista, em trajes sumários que fazem o
encanto da vizinhança, vai repondo nas valises o guarda-
roupas de viagem, ou o equipamento de serviço, segundo
alguns.
O som da campainha interrompeu suas divagações. Foi
atender à porta de entrada, pouco vestida como estava, e —
ó surpresa! — quem ali surgia não era outro senão o velho
amigo admirador, o inspetor Pitzer de tantas aventuras
comuns. Beijou-o no rosto, com real prazer.
— Como vai esta simpática raposa, o cobrão da CIA?
— Como vai querida, posso entrar? — disse Pitzer.
— Claro, inspetor! — ela afastou-se, dando-lhe
caminho, e fechou a porta. — Entretanto, como vê, não
tenho muito tempo. Estou de partida outra vez.
— Não diga! — sorriu ele, já no living, atirando o
sobretudo e o chapéu sobre um sofá macio. Caminhou até à
porta do quarto onde estivera Brigitte, lançou os olhos pelo
aposento e voltou a falar-lhe: — Para onde vai, desta vez?
— Meus passos me conduzem a Roma — foi a resposta
jovial da bela repórter. — Que acha, inspetor?
— Muito bom! — e Pitzer continuou a sorrir — Venho
trazer-lhe a passagem e o ticket de reserva do seu hotel na
Cidade Eterna. Vai para uma suíte de luxo do Cavalieri
Hilton, com vista sobre as colinas.
Brigitte não pôde esconder sua surpresa. E Pitzer
continuava sorrindo, enquanto se dirigia a um canto do
living onde estava o armário das bebidas, servindo-se um
uísque com soda num copázio azulado de cristal. A jovem
foi em sua direção, maravilhosa na transparência da
camisola de náilon.
— Ao seu êxito, minha linda Brigitte! — falou o
inspetor, erguendo um brinde àquela estátua humana.
— Mas... de que está falando? — ela parecia mastigar as
sílabas.
— De sua missão em Roma, naturalmente — explicou
Pitzer. — E, desde já, aviso que deverá ter cuidado.
Agora Brigitte se enfurecia. Ficava assim toda vez que o
inspetor resolvia decidir sobre seu destino, como quem usa
uma peça de xadrez, sem maiores explicações.
— Posso perguntar se a minha morte será à bala ou à
facadas? Tenho o direito de saber para que me usam desta
vez?
— Calma, Brigitte! Não exagere! Você não é de choros
assim!
— Ora, essa é muito boa! Quando estou crente que volto
a desenvolver minha atividade de repórter do “Morning
News”, eis-me novamente metida num desses enguiços
internacionais. E o cínico do Miky nem me disse nada!
— O cínico do Miky não sabe de muita coisa! —
ironizou o velho agente da CIA. — Não tem culpa. Eu
apenas lhe pedi que preparasse sua viagem a Roma, como
jornalista.
— E qual é a confusão desta vez? — pediu Brigitte,
mais calma.
— Um de nossos homens precisa de ajuda. Está em
Roma.
— E pensa logo em arriscar minha pele, não é, meu bom
amigo Pitzer? Vejo que continua o mesmo! Não hesita um
segundo em me mandar às feras.
O inspetor suspirou, deixando de sorrir. E completou:
— É assim mesmo. Espero que jogue sua pele macia em
favor dos Estados Unidos, Só lhe peço isso porque não há
outra alternativa. Nosso homem saiu daqui seguindo dois
indivíduos suspeitos de reunir dólares...
— Mas... desde quando o ato de reunir dólares é
suspeito? Eu mesmo gosto de juntá-los, de vez em quando.
Pitzer moveu negativamente a cabeça, preocupado:
— Esses gostam de reunir notas de mil dólares,
verdadeiras fortunas. E sua atividade não é um hobby.
Foram para Roma.
— E seu agente os seguiu, é claro.
— Exato — confirmou Pitzer. — E nos pediu ajuda, há
poucos dias. Embora disponhamos de uma extensa rede de
espionagem na Europa, nosso homem não quer entrar em
contato com os colegas de lá. Tudo pode ser uma armadilha
destinada a fazer revelarem-se muitos dos nossos. Entende?
— Vamos adiante! — fez Brigitte, já muito interessada,
picada pela curiosidade de repórter.
— Bem — prosseguiu Pitzer, saboreando o uísque com
soda. — Tudo que você tem a fazer é ir a Roma e descobrir
o que aconteceu. Será uma intermediária entre o agente de
Roma e eu.
— Tão simples assim! — exclamou a ninfa de olhos
azuis. — Não quer arriscar seus barbados, mas a mim
transforma em alvo com a maior tranqüilidade. Se tudo for
uma armadilha, como pensa, vão localizar-me na história e,
quem sabe, picotarem meu corpinho com algumas balas
atrevidas. Sinceramente, inspetor, acho a missão
interessantíssima. Um pulo no abismo e no escuro!
— Confio na sua inteligência, Brigitte — ponderou o
inspetor.
— Quem é o tal homem em Roma? — indagou ela,
sentando-se e deixando o penhoar deslizar, pondo à mostra
as tentadoras pernas.
Pitzer olhou-a, de alto a baixo, encantado, mas teve
forças para responder, firme:
— É Young Jones, um ótimo rapaz. Se pediu auxilio, a
coisa deve ser importante. Está claro que não desejou
comprometei os colegas atuantes na Europa. Por isso
mesmo decidi enviá-la, em vez de usar um dos homens
daqui. Deve haver um motivo ponderável para que Jones
prefira deixar de lado os companheiros de lá.
Brigitte deixou-se absorver por um longo suspiro que lhe
fez estremecer humanissimamente os seios marmóreos. Via-
se que estava mais calma, e Pitzer, deliciado, considerou,
outra vez, sorrindo:
— Como mulher, não passará despercebida, querida
Brigitte. Mas, quem poderia imaginá-la uma espiã, com
essa estrutura? Aí está o ponto: camuflagem operacional.
— E as condições? — quis saber a jovem jornalista. —
Serão as mesmas de sempre, por acaso?
— Pode ser — aceitou Pitzer. — Poderá publicar no
“Morning News” o que for publicável, sobre os fatos.
Ela pareceu indecisa, ainda, por um momento. Depois,
com um dar de ombros e outro suspiro, levantou-se e foi ao
bar.
Pitzer apressou-se em servi-la.
— Então? — indagou.
— Quando parto, chefe Pitzer? — foi a resposta.
— Daqui a seis horas. Chegará amanha à tarde. Antes do
crepúsculo poderá estar tomando um banho na admirável
piscina do Cavalieri Hilton, com toda Roma a seus pés.
— E por que escolheram esse hotel? É luxuosíssimo, dá
muito na vista.
— Coisa do Jones. Pediu que o auxiliar que porventura
lhe mandássemos se alojasse no Cavalieri. Além do mais,
você gosta muito dessas presepadas. Mas, por favor, dê a
entender que é uma próspera jornalista americana
interessada apenas em aprender o italiano.
— Mas, se já falo o italiano satisfatoriamente?
— Neste caso, vai aprendê-lo de novo — insistiu Pitzer.
— E lembre-se: ninguém deve saber que você pode falar e
entender perfeitamente a língua de Dante.
— Muito bem — concordou Brigitte. — Serei a
próspera repórter americana típica, estagiando na Itália para
entender as letras das canções de Modugno e mexericar
sobre a Via Veneto. Logicamente serei discreta ao visitar
nosso caro Young Jones. Onde vou encontrá-lo, querido
chefe?
— No Alberghe Firenze, via Margutta 26, segundo
andar, quarto número 2 — informou o inspetor. — Tome o
recado e siga as instruções de Jones. Se precisarem de
recorrer a mim, usem meu número particular. Serei um
florista, para qualquer efeito.
— De acordo. Falarei com o “florista” Pitzer — sorriu
Brigitte.
O inspetor ficou encantado com a aceitação traduzida no
sorriso dela. Ergueu novamente o copo:
— Ah, já andava com saudades de você, querida! É
inteligente e sabe tomar a decisão certa, na hora difícil.
Quando poderemos jantar?
— No meu regresso de Roma — respondeu ela, fazendo
tinir os copos.
Pitzer, esperto mais que ninguém dentre seus homens,
estudou o lindo rosto de Brigitte, querendo aprofundar-se
definitivamente naquele olhos azuis.
— Fico pedindo a Deus que volte logo — disse. —
Meus cinqüenta anos serão trinta no dia em que me sentar
para jantar com você.
Tirou um envelope do bolso e deixou-o sobre o bar.
— Sua passagem e dez mil dólares. Talvez o Jones
precise de dinheiro.
— Não quer acompanhar-me, chefe? — indagou ela,
maliciosa.
Pitzer afagou-lhe o queixo num gesto nem tão paternal
quanto pretendia ser.
— Não me deixe cair em tentação! — falou, reverente. E
recolhendo o chapéu e o sobretudo passou-lhe um braço
sobre os ombros, fazendo-a ir até à porta de saída que
entreabriu.
— Cuide-se bem, minha querida Brigitte! — completou,
beijando-lhe a face de seda. — Se a matassem, o mundo
teria perdido sua melhor habitante, e nós essa paisagem
incomparável.
— E você teria perdido a chance de jantar comigo numa
dessas noites, não é, meu chefão sabido?
— Ora, Brigitte, não seja assim tão direta! Afinal você
acaba de chegar da França, e é meio francesa. Não foi
Baudelaire quem disse que a gente não deve jamais explicar
as coisas objetivamente, e sim apenas sugeri-las?
— Cuidado com a Literatura, chefe!
— Certo! Deixei uma foto do Young Jones no envelope.
Estude-a bem e destrua-a.
— Deixe comigo, chefe querido. Farei o melhor
possível. Fechou a porta e voltou a arrumar as malas. Seis
horas depois, com uma gramática italiana ao colo, a repórter
Brigitte Montfort via sumir-se Nova Iorque sob as nuvens.
Num salto sobre o Atlântico, rumo à milenar cidade dos
Césares, a bordo do superjato atualíssimo, a jovem agente
internacional cantarolava baixinho, procurando espantar os
velhos temores:
— Comincíamo ad amarsi questa sera...

CAPÍTULO SEGUNDO
Quando tudo parece estar perdido

O Cavalieri Hilton é, sem qualquer dúvida, um dos


hotéis mais bonitos da Europa. Lançado sobre uma das
belas colinas de Roma, construído para o gosto dos
magnatas americanos, com piscina deslumbrante e salões de
alto requinte, faz qualquer hóspede sentir-se ali um
príncipe.
Brigitte fez sua pequena cena logo na Recepção,
esforçando-se por fazer-se entender em mau italiano. Seguia
fielmente as instruções de Pitzer, querendo mostrar que
procurava usar a língua da terra.
De repente, surgiu no hall um homem simpático e
elegante, de olhos escuros, expressão inteligente, que lhe
disse, com um sorriso, em ótimo inglês:
— Posso ajudar, miss? Vejo que é americana.
Brigitte agradeceu:
— Muito obrigada, senhor. Reservei aposento, mas não
me entendem no meu italiano.
O homem continuava sorrindo, malicioso.
— Experimente falar inglês — disse — ou apenas dar
seu nome ao pessoal da recepção. É provável que, a esta
altura, o sábio porteiro entenda que deve verificar as
reservas, segundo creio.
Brigitte quase soltou uma exclamação em italiano, mas
conteve-se no momento exato:
— Que tola sou! — exclamou. — Obrigada por me
lembrar.
Apanhou a caneta e um bloco, sobre o balcão, e escreveu
seu nome: um sorriso cheio de compreensão surgiu nos
lábios do recepcionista que, satisfeito, leu o papel. O
salvador de Brigitte dizia algo em italiano, para fazê-lo
entender melhor.
Embora compreendesse muito bem o que dizia o
elegante cavalheiro, ela fez pose de aparvalhada.
O homem voltou-se, notou a muda pergunta de Brigitte:
— Expliquei que não se devem deixar enganar por seu
nome, senhorita — disse, sempre com o sorriso esperto. —
Pelo sotaque, vejo que é americana, e creio que de francês
tenha apenas o nome, não é mesmo?
Os circunstantes, umas poucas pessoas que liam jornais
e revistas, observaram a cena, incapazes de desviarem os
olhos da belíssima Brigitte.
— Foi muito amável, senhor... — começou ela.
— Giovanni Spercola — informou ele. — Estou à sua
disposição, senhorita Brigitte Montfort — ante o espanto de
Brigitte, apressou a explicação: — Cometi a leviandade de
ler o nome que escreveu. Espero que me perdoe.
Brigitte não pôde deixar de sorrir, ao ver a expressão de
puro arrependimento, um tanto teatral, surgida no rosto
dele:
— Não se amofine, senhor Spercola. Está perdoado —
disse.
O homem suspirou:
— Brigitte Montfort — disse, pensativo. — O nome não
me é estranho.
— É possível — replicou ela. — Sou jornalista...
— Ah, isso mesmo! — exclamou Spercola.
— ... do “Morning News” de Nova Iorque. Se precisar
de ajuda, lá, procure-me, senhor Spercola.
Três rapazes do hotel esperavam, sobraçando a elegante
bagagem da recém chegada, que ela se decidisse a tomar o
elevador. Mas Giovanni Spercola ainda tinha algo a dizer:
— Seria lamentável não precisar de seu auxilio, em
Nova Iorque, senhorita Montfort. Darei um jeito de
encontrá-la, quando estiver lá.
Brigitte estudou o rosto dele, onde o sorriso compunha
sempre uma expressão de sagacidade intencional.
— E agora, senhor Spercola — disse, sorrindo —
preciso deixá-lo. As gorjetas teriam de subir demasiado, se
não acompanhasse logo os boys.
— Pode ter certeza de que estive no céu de Dante, nestes
minutos, senhorita — respondeu o galante italiano. — Até
muito breve.
E beijava ligeiramente a mão que Brigitte lhe estendia.
Ligeira mas significativamente, como se não mais a
quisesse soltar.
Por fim, Brigitte conseguiu retirar sua mãozinha,
dirigindo-se ao elevador. Antes que a porta corrediça se
fechasse, pôde ainda vê-lo inclinar galhardamente a cabeça.
— “Muito interessante” — pensou Brigitte — “mas
tenho outras coisas a fazer”.
Minutos depois, já se deliciando numa grande e mama
banheira, Brigitte foi despertada pelo tilintar do telefone.
Atendeu na extensão do próprio banheiro:
— Senhorita Montfort? — a voz era conhecida. —
Espero não estar incomodando.
— Senhor Spercola?! Que deseja?
— Estive pensando — respondeu ele, jeitoso: — Talvez
não seja necessário eu ir a Nova Iorque para desfrutar de
sua companhia.
Brigitte fingiu refletir um pouco, sorrindo e
acomodando-se na banheira:
— Acho que entendo.
— E então?
— Vou pensar — disse. — Por enquanto, não deixaria a
água por nada deste mundo. Uma pergunta: poderia eu
dispor do senhor todos os dias?
— Não gosta das noites? — a voz dele era bem mais
insinuante.
Brigitte riu:
— Gosto, sim, senhor Spercola, e principalmente das
noites enluaradas. Mas preciso estudar o italiano. Foi para
isso que vim. E tenho pouco tempo.
— Passeando também se aprende — insistiu ele.
— Bem, veremos. Vou decidir. Boa noite.
— Até logo.
Depositando o fone, olhou o relógio e viu que era tarde.
Deu-se pressa no banho.
Quando saía, uma minúscula mas eficiente pistola de
empunhadura de madrepérola estava alojada entre seus
seios: Brigitte Montfort, jornalista a serviço do “Morning
News”, estava preparada para servir à CIA.
Giovanni Maria Spercola não se encontrava no hall,
quando ela saiu do elevador. Isso melhorava as coisas, pois
o insistente italiano, apesar de simpático e cavalheiresco,
podia atrasá-la ainda mais.
Passou entre homens maravilhados e mulheres de
olhares turvos, não dando importância a qualquer
personagem. E, à porta, pediu um táxi, sendo prontamente
atendida:
— Piazza Spagna — ordenou, num italiano estropiado.
***
Da Praça Espanha ao covil da raposa Young Jones, era
pouca a distância. Quando deixou o táxi, a noite descia
sobre Roma.
Indo a pé pela Via Margutta, Brigitte era tal e qual uma
turista curiosa, olhando tudo com certo ar tolo. Passinhos
miúdos, a mão brincando com a bolsa, já caminhara
bastante quando notou a tabuleta do “Albergue Florença”,
um prédio modesto, escuro, com uma grande escada
conduzindo a dois andares mais escuros ainda. Sobre a
porta desbotada, a solicitação: “chamem, por favor?’.
Brigitte passou pela porta sem deter-se. Lançou um olhar
para dentro, continuou mais uns passos e voltou, entrando
resolutamente. Subiu rápida e silenciosamente a velhíssima
escada nua; alcançou o primeiro piso, tomando outro lance
da escada, O edifício era antigo, circundado por sacadas que
pareciam querer desabar, cheio de reentrâncias escuras e
portas pesadas.
No segundo piso, o último, havia apenas duas portas.
Sabia em qual delas devia chamar. Bateu de leve, apenas o
suficiente para se fazer ouvir. A resposta foi completo
silêncio.
Do primeiro andar veio um riso abafado de mulher e
uma voz forte, de homem, logo seguida também de uma
risada.
Brigitte voltou a bater à porta de Young Jones. Não
sendo atendida, empurrou. A porta se abriu à pressão de
seus dedos, fazendo-a acautelar-se: retirou do decote a
pistola, entrando devagar na obscuridade do aposento.
— Jones? — indagou.
O silêncio persistiu. Uma torneira, a um canto, à direita,
deixava pingar água produzindo o único ruído.
“Talvez esteja fora” — pensou Brígitte. Mas logo uma
intuitiva desconfiança de repórter fê-la decidir-se a não sair
dali sem verificar os mínimos detalhes.
A janela estava aberta a meio. Uma corrente de ar
fechou lentamente a porta, às suas costas.
Retirando da bolsa uma lanterna pequena, fez passear o
foco de luz pelo aposento. Era um amplo dormitório com
mobília antiga e desbotada. Pelo canto, grossos canos
desciam do teto, plantando-se no piso. Na janela, cortinas
limpas mas esburacadas balançavam-se à brisa.
Indo para o outro lado, pisando o assoalho nu, fechou a
janela.
Foi só quando se voltava que notou o vulto. Estava
quase ao centro, de bruços, ao lado de uma velha mesa.
Admirou-se de não ter tropeçado nele ao atravessar o
aposento.
Acercou-se e, à luz de sua minúscula lanterna examinou-
o com calma; era um homem, imóvel; parecia adormecido.
Brigitte ajoelhou-se junto ao corpo, enquanto
aproximava a lanterna do seu rosto.
— Young Jones! — exclamou, assustada.
A não ser que a fotografia de Pitzer mentisse — hipótese
improvável — aquele cadáver era de Young Jones, uma
raposa mal sucedida. Tinha os olhos estatelados e o maxilar
tenso. Uma poça de sangue, à altura do coração.
Chegara tarde, muito tarde, para Jones. O corpo estava
ainda quente. Teria morrido há uma hora, no máximo.
E agora? Que fazer em Roma, sem conhecer ao menos
um fio da meada?
Fato incontestável: o assunto tinha de ser espionagem.
Os colecionadores de notas de mil dólares eram certamente
os culpados daquela morte. Jones fora encurralado, a julgar
pelo pedido feito a Pitzer, o chefe, e pelo lugar e estado em
que se encontrava.
Brigitte apagou a lanterna. Ficou indecisa durante alguns
segundos, ouvindo o ruído da água pingando da torneira.
Decidiu-se então a procurar uma pista ali mesmo, o
único lugar plausível. Pôs-se a revistar o cadáver, mas nada
encontrou.
Quando, com um suspiro de desgosto, já se dispunha a
levantar-se, o foco da lanterna lhe mostrou algo, a meio
metro de seu joelho. Era um objeto retangular: fósforos.
Pegou-o, lendo, em letras maiúsculas, a palavra
LIBERTAS. Abaixo, o nome “Locanda Pietro — San
Marino.”
Seria uma espécie de restaurante, em San Marino, então.
Jones estivera no estabelecimento do tal Pietro, na
pequenina república independente. de San Marino, entre as
províncias italianas de Forli, Pèsaro e Urbino, a duzentos
quilômetros de Roma. Mas, que haveria de interessante para
que ele tivesse ido até lá? Ou talvez os fósforos não lhe
pertencessem, mas ao assassino.
Não, um espião não cometeria o engano de deixar aquele
objeto. Os fósforos deviam pertencer mesmo a Young
Jones. E era muito lógico imaginar que haviam sido
deixados à vista pelo próprio colega, ao ver-se perdido,
oferecendo um sinal ao agente que esperava dos Estados
Unidos.
Brigitte guardou na bolsa a caixinha, apagou a lanterna e
saiu. Quanto ao cadáver, nada podia fazer no momento,
embora o lamentasse.
Cuidadosa, mas quase correndo nos seus passos miúdos,
desceu as escadas e alcançou a rua.
Ao chegar à Praça Espanha, pôde respirar com alívio.
Encontrou um táxi, dando o nome do hotel. E tão logo se
viu no hall do Cavalieri pediu uma ligação para um florista
de Nova Iorque, dizendo que atenderia em seu próprio
apartamento.
Olhares dissimulados, no entanto, observavam seus
movimentos, desde as poltronas espalhadas pelo hall. Dois
homens, sem que ela o percebesse, haviam-na seguido pela
Via Margutta, onde, num certo “Albergue Florença”, jazia
o cadáver de Young Jones.

CAPÍTULO TERCEIRO
Surpreendentes revelações

Em seu apartamento de Nova Iorque, o inspetor Pitzer


viu aproximar-se o criado:
— Encomendou flores, senhor?
— Flores?! — estranhou o inspetor, deixando de lado o
jornal.
— Sim, flores — respondeu ele. — Parece que há uma
florista ao telefone. É melhor que atenda senhor. É chamada
internacional.
— Flores! — exclamou Pitzer, pondo-se de pé. — Muito
bem, muito bem. Roma, não é? Sim, encomendei sementes
de certas flores, lá.
Foi rapidamente ao living; apanhou o fone, firme:
— “Casa de Flores Montfort” — anunciou, logo que
alguém atendeu do outro lado. — Fala o gerente.
— Alô, tio Charlie! — disse uma voz feminina. — Aqui
é Brigitte.
— Chegou bem, queridinha? Onde está?
— Fiz boa viagem, titio. Estou no “Hotel Cavaliere”,
como recomendou.
— E como vão as aulas de italiano prático? — o “tio”
estava impaciente.
— Mas, titio querido, ainda nem comecei!
— Bem, bem. E quanto ao meu pedido?
— Foi a primeira coisa que fiz. Encontrei o endereço da
“floricultura”, mas as “sementes” que pediu não creio que
se aclimatem em Nova Iorque, tio Charles.
— Como é isso? Acha que não entendo do assunto? —
Pitzer sobressaltou-se.
— É como digo. As sementes eram as mesmas da
fotografia que me mostrou, mas não as encontrei em boas
condições. Estão imprestáveis! — explicou Brigitte.
— Você quer dizer que...
— Sim, tio Charles — cortou ela.— Foram as únicas
que encontrei, e pude verificar com meus próprios olhos
que não germinarão de modo algum. Não creio que valha a
pena levar-lhe sementes... mortas.
Pitzer fez silêncio. Pálido, o rosto crispado, imaginava o
bravo Young Jones imóvel, frio... morto! Um dos bons
homens com que já contara, estava morto. Todavia, naquele
momento, “tio Charlie”, o “floricultor” de Nova Iorque,
devia conversar. E Pitzer lamentou:
— É muito mau, isso, queridinha. Pensei que pudesse
contar com essas sementes. Tive muita esperança nelas!
— Não quer que visite outros “floricultores” de Roma?
Talvez você saiba onde haja mais delas — insinuou Brigitte
Montfort.
O inspetor refletiu alguns segundos:
— Não, não se preocupe mais com isso, querida.
Gostaria, apenas, de ver essas que encontrou. Não será
possível eu próprio verificá-las? Você as tem consigo?
— Não, não as trouxe comigo. Já estavam imprestáveis;
nada pude fazer. Mas, posso consegui-las, se realmente
deseja vê-las.
— Não, você não precisa preocupar-se mais com elas,
filhinha — respondeu “tio Charles”, enquanto seu cérebro
fazia cálculos velozes. — Tenho um amigo em Roma. Ele
irá procurá-la, para que você lhe indique o endereço da
floricultura.
— Qual é esse amigo? — indagou Brigitte.
— Johnny é o nome dele — informou o falso “tio”.
— Vou telegrafar a Johnny imediatamente, para que a
procure. Enquanto isso, não perca tempo com essas flores,
filhinha. Sei que tem outras coisas a fazer, antes que suas
férias se acabem. Divirta-se, está bem?
— Está certo, tio Charles — Brigitte suspirou, um tanto
contrariada pela ordem. — Adeus. Beijinho, titio.
— Até breve, anjinho — despediu-se Pitzer.
E, enquanto “tio Charles” Pitzer desligava, para
comunicar-se com os escritórios da CIA, notificando-os da
morte de Young Jones, em Roma, Brigitte deixava-se
tombar nos macios travesseiros do “Hotel Cavalieri”
suspirando: que tarefa sinistra!
Mas havia uma particularidade que escapara a Pitzer:
não deviam deixar o cadáver na Via Margutta naquela noite,
se o quisessem enviar aos Estados Unidos. Se assim
fizessem, talvez no dia seguinte o tal Johnny não o
encontrasse mais. Era necessário retirar os restos do bravo
Young Jones do “Albergue Florença”.
Tomando uma resolução súbita, Brigitte procurou no
catálogo telefônico o endereço de algum locador de
automóveis. Encontrando o endereço, pediu a ligação à
telefonista do hotel e alugou um carro “escuro e pequeno”.
Disse que iria buscá-lo imediatamente.
Tudo acertado com o locador de carros, anotou o
endereço e saiu.
Brigitte quase não pôde reprimir a insatisfação do
inoportuno encontro com Giovanni Spercola, no hall. Não
pôde evitá-lo; apenas a viu, ele apressou-se em detê-la:
— Adorável senhorita Montfort — disse, cavalheiresco.
— Giovanni Maria Spercola voltou a ajudá-la.
Ela conseguiu sorrir com naturalidade:
— Como, senhor Spercola?
— Venha e verá — tomou-a pelo braço, levando-a na
direção de um rapaz atlético, muito simpático: — Esta é a
pessoa de que necessita.
Ficaram os dois em frente ao rapaz, que só tinha olhos
para Brigitte.
— Pessoa... de que necessito?! — estranhou a repórter.
— Pois não desejava aprender italiano? — tomou
Spercola. — Este é Maurizio Alvarini, um excelente
professor de italiano e inglês. Meu amigo, esta é Brigitte
Montfort, que precisa de suas lições.
Maurizio estava fascinado. E Spercola, rindo, estalou os
dedos diante dos olhos do rapaz:
— Acorde, Maurizio! — disse. O outro gaguejou algo,
olhando alternadamente para Brigitte e para Spercola: —
Mamma mia, che bella! Já sou seu escravo, senhorita!
Brigitte riu:
— Obrigada, Maurizio — e lhe estendeu a mão, que foi
beijada com enlevo. — Mas não será preciso tanto. Só
desejo aprender seu idioma.
— Muito bem — interpôs-se Spercola. — Creio que a
apresentação está feita. A senhorita Montfort não vai
precisar de você esta noite, Maurizio. Já tem um professor
noturno.
— Va bene — riu Maurizio. — Que tal começarmos
amanhã bem cedo, senhorita?
— Não muito cedo — foi Spercola, ainda, quem falou.
— A senhorita vai hoje conhecer a Roma noturna. Tenho
uma festa para ela, na casa de uns amigos de Vila Borghese.
Brigitte, atrás do sorriso, tinha uma efervescência de
cálculos. E achou mais conveniente aceitar o convite de
Spercola. Isso seria adequado, pois devia parecer uma
verdadeira jornalista em busca de conhecer o ambiente. Por
outro lado, não teria como explicar uma recusa. Não podia
deixar que Spercola ou qualquer outra pessoa tirasse
conclusões perigosas sobre suas atividades.
— Então? — indagava Spercola.
— Seu convite parece não admitir uma recusa —
Brigitte riu com gosto.
— Tática italiana — riu também o insinuante signore
Spercola.
Maurizio Alvarini, encantado, enrubescia cada vez que
os olhos azuis de Brigitte pousavam nos seus. Suspirou
longamente, enfiando as mãos nos bolsos:
— A que horas poderemos começar, então, signorina?
— indagou.
— Às dez, pode ser? — Brigitte lhe estendia a mão, que
ele segurou avidamente.
— Oh, se pode, signorina! Tenho um “Siata-750”, e se
quiser visitar os lugares turísticos da cidade enquanto
aprende...
— Será ótimo! — exclamou Brigitte. — Espero-o às
dez, caro mio.
Maurizio quase saltou:
— Ouviu isso, senhor Spercola?! Ela me chamou de
caro mio!
Brigitte fingiu não compreender, como se realmente não
conhecesse a língua:
— Disse algo inconveniente? — perguntou.
— Não, não! — protestou Maurizio, enquanto Spercola
ria. — Gosto muito de ser chamado querido e logo pela
senhorita...
Brigitte levou as mãos à boca, sufocando o riso; mas
resolveu encerrar o assunto:
— Bem, se é só por isso...
— Chame-me sempre assim, va bene? — Maurizio não
cabia em si. — Até logo, signorina até logo.
E saiu quase saltitando, de alegria.
— Até logo... caro mio — divertiu-se Brigitte. Spercola
lhe tomou novamente o braço: — Um martini, senhorita?
Brigitte ficou um momento a refletir:
— Mas... não estou convidada para uma festa em Vila
Borghese?
— Claro... Claro... Por quê?
— Ora, preciso vestir-me adequadamente, não? Posso
dispor de uma hora?
— Uma hora! — lamentou Spercola. — Vou morrer de
saudades, senhorita Montfort!
— Chame-me Brigitte, apenas... Giovanni — corrigiu
ela. — Mas, faça o possível para agüentar a espera, sim?
Não costumo apressar-me, quando me preparo para festas.
Distraia-se um pouco. Trate de ficar vivo.
— Está bem — sorriu Spercola. — Resigno-me. Mas
será uma longa provação.
Subindo ao andar em que se achava seu apartamento,
Brigitte tomou o elevador de serviço, descendo pelo outro
lado. Embaixo, nas dependências dos empregados, fez ar de
quem se enganara, saindo apressadamente para os fundos,
sob os olhares encantados dos servidores do hotel.
Trinta e cinco minutos mais tarde, já com o carro
alugado, atingia a Via Margutta e entrava no número vinte e
seis, o “Albergue Florença”. Subiu rapidamente as escadas,
depois de ver tudo como antes: silencioso e escuro.
Chegando à porta do que fora a última moradia de
Young Jones, empunhou a pequena lanterna. A pistola já
estava em sua mão direita quando entrou no aposento.
Ficou imóvel por uns segundos, escutando. Tudo, como
antes, no mais completo silêncio. Não havia o que temer, e
Brigitte guardou a pistola.
Foi naquele exato instante que percebeu um detalhe
importante: a água não mais pingava, no canto à direita!
Não se ouvia agora o ruído intermitente!
Brigitte estremeceu, ao compreender que entrara numa
provável armadilha.
Um grito quase lhe escapou da boca, ao sentir sobre o
colo uma potente mão que a agarrava, enquanto outra lhe
segurava o cinto. Mas não gritou. Em vez disso, estendeu o
braço direito, flexionou-o, e num instante aplicava o
cotovelo no estômago da pessoa que a segurava. Ao mesmo
tempo, sua mão esquerda atingia o rosto do atacante e seus
dedos buscavam-lhe os olhos.
Ouviu o ruído da própria roupa interior, rasgada, e no
mesmo instante viu-se libertada, O atacante grunhiu de dor.
Mas não havia apenas um. Na escuridão ambiente,
Brigitte sentiu bem perto do rosto a respiração de outra
pessoa que a procurava. Sentiu outras mãos que lhe
tocavam um seio, agarrando a roupa.
Esquivando-se e golpeando, Brigitte atirou-se para a
porta. Encontrou a maçaneta; quis abri-la, mas um corpo se
apoiou à madeira, impedindo-a. Compreendendo que os
atacantes não brincavam, ao sentir uma pesada mão sobre a
boca, procurou a pistola, encostou-a no atacante, e antes que
este pudesse evitar apertou o gatilho.
A mão que lhe segurava a boca desprendeu-se
imediatamente.
O estampido fora abafado pelas próprias roupas do
atingido, e a porta agora estava livre.
Rápida, Brigitte abriu-a, passou ao corredor, tomou a
fechar e correu freneticamente escada abaixo. Atingindo o
primeiro andar, percebeu que duas balas zumbiam rente à
sua cabeça. Mas não parou, dando-se mais pressa ainda.
Aqueles dois muniam-se de silenciadores. Podiam fazer
grandes estragos e sumirem sem ser percebidos. Ela, no
entanto, caso atirasse novamente, poria tudo a perder. E
depois, não era de boa política enfrentar dois inimigos
armados.
Os dois perseguiam-na, agora no segundo lance da
escada, acercando-se cada vez mais.
Chegando ao térreo, lançou um rápido olhar para cima:
dispunha de muito pouca dianteira. Não poderia chegar ao
carro, pois o perseguidor mais próximo já estava no
primeiro andar.
E quando Brigitte impulsionou novamente o corpo, em
direção à rua, um braço longo e possante surgiu de uma
porta às escuras, a um lado da entrada. Foi imobilizada num
átimo, e caiada em seguida. A força do novo atacante era
tremenda, mas a mão que empunhava a pistola estava livre e
Brigitte já dirigia a arma para trás, disposta a atirar de
qualquer maneira para libertar-se, quando ouviu uma voz
macia, profunda:
— É um prazer vê-la novamente, Brigitte.
A surpresa foi total. Não resistiu mais, deixando pender
o braço armado sob a pressão invencível.
Os perseguidores, no entanto, quase atingiam o térreo. E
o homem que a retinha arrastou-a para trás, entrando no
aposento, um momento antes de aparecerem os outros.
Estes passaram velozmente em direção à rua. Percebeu o
gemido de um deles, de passo mais retardado — o ferido
por sua arma.
Ela e seu captor encontravam-se num dormitório da
pensão. E o homem, que deixara ligeiramente entreaberta a
porta, acabou de fechá-la, enquanto lá fora as passadas dos
outros dois esmaeciam:
— Como tem passado, Brigitte? — sussurrou o homem,
agora enlaçando-a suavemente pela cintura.
A mão que lhe tapava a boca baixou para seu ombro e
Brigitte suspirou de alívio:
— Será possível?! — exclamou ela, em voz baixa. —É
você, mesmo, “Fantasma”?
Ele, no entanto, fez silêncio.
Lá fora, as portas de um automóvel batiam.
— Pensaram que você estivesse no carro — disse o
homem, rindo baixinho. — Não vão encontrá-la aqui, meu
bem.
Brigitte sorriu, acariciando a mão que a prendia, como
para agradecer-lhe: “Mister Ghost”, o “Senhor Fantasma”,
como o chamavam, estava ali, O agente do MI-5 inglês
fazia jus ao apelido:
— Obrigado por me salvar, “Fantasma” — suspirou ela.
Estava escuro, no aposento, mas isso não impediu a
repórter de premiar o amigo com um demorado beijo. E
enquanto se enterneciam no estreito abraço, os passos dos
desconhecidos tomavam a se fazer ouvir, em frente à porta e
subindo as escadas.
Por fim, Brigitte despregou os lábios dos de John
Pearson, o amigo que aparecera tão inesperada e
oportunamente:
— Parece em ótima forma, “Fantasma” — disse, sem
fôlego, apoiando a testa no peito dele.
— O mesmo posso dizer de você, queridinha. Que faz
aqui?
— Trabalho — sussurrou ela. — E você?
— Estou procurando algo interessante, para agitar a
monotonia da vida. Mas, que acha da situação? Seus
“amigos” logo compreenderão que não teve tempo de sair
daqui. E irão procurá-la em todo o edifício, meu amor. Vai
querer lutar?
— Não — respondeu Brigitte. — Quero dizer, não
convém... no momento.
— Então, esperemos a oportunidade de sair!
Fizeram silêncio.
Nas escadas, ouviam-se os passos de duas pessoas que
desciam novamente. Passaram em frente à porta, em
demanda do interior do edifício, onde havia um grande
pátio.
Pearson, o “Fantasma”, saiu do dormitório, caminhando
junto à parede, e vendo desaparecerem os dois
desconhecidos, por uma porta que levava a outra rua,
regressou.
Fechando a porta, acendeu a luz do aposento. E lá estava
Brigitte, o busto nu, virando-lhe rapidamente as belas
costas, surpresa:
— Apague a luz! — exigiu.
— Por quê? — sorriu ele.
— Você e aqueles dois acabaram com minha lingerie,
“Fantasma”. Preciso ajeitar isto, para sair. John Pearson,
sorrindo, aproximou-se, fê-la voltar-se e abraçou-a:
— Vamos esquecer tudo por algum tempo? —
sussurrou, olhando-a nos olhos.
— Tenho pressa, meu caro. Deixe que me vista, vamos!
— retrucou Brigitte, fazendo menção de morder a mão que
lhe acariciava o ombro.
Pearson suspirou, beijou-a brevemente e afastou-se, com
uma cara de mal-humorado:
— Sou um imbecil — disse. — Mas vá, que seja: vista-
se logo, antes que me arrependa!
Ela tornou a dar-lhe as costas, enquanto Pearson
sentava-se na cama que, via-se, havia muito tempo não era
usada. A poeira cobria tudo e ele riu baixinho:
— Tenho de concordar que isso aqui não é muito
agradável, Brigitte — disse. — Mas esperarei outra
oportunidade. Já esperei tanto!
CAPÍTULO QUARTO
A investida do admirador

Brigitte acabou de vestir-se, depois de ajeitar o melhor


que pôde as peças interiores, rasgadas durante a
escaramuça. Olhou para o relógio: havia algum tempo
ainda, à disposição, antes de encontrar-se com Spercola, no
“Hotel Cavalieri”.
Sentando-se ao lado de Pearson, ela prendia a pistola sob
a meia:
— Que tal se aclararmos um pouco as coisas
“Fantasma”?
John Pearson, do MI-5, enlaçou-a pelos ombros:
— O que, por exemplo, querida? — indagou.
— Sua presença aqui.
— Ora, já disse: a vida é enfadonha, para mim, se não
busco um pouco de sal. Além disso, que tal se lhe
perguntasse a mesma coisa?
— Veja lá: não estou exigindo. Estou pedindo, apenas,
uma explicação — tornou Brigitte.
— Muito bem: estava seguindo um homem — disse ele,
beijando-lhe a testa. — E não pude nem saber quem era.
Mataram-no antes disso.
— Aconteceu neste edifício?
— Sim — confirmou Pearson. — No último andar.
— Pois o homem era meu companheiro, “Fantasma” —
disse ela. — Chamava-se Young Jones para nós. Vim para
encontrar-me com ele e... encontrei-o morto. Agora, devo
levar o cadáver.
— O cadáver?! — Pearson sorriu, irônico. — Não irá
encontrá-lo, querida. Desapareceu!
Brigitte, após a surpresa que lhe causou a informação,
ficou pensativa, aceitando o cigarro que John “Fantasma”
Pearson lhe ofereceu:
— Por que seguia meu companheiro? — perguntou.
— Ele parecia interessado em certas pessoas que me
interessavam também. Espiões russos, precisamente.
— E a que se dedicam essas pessoas?
— Como vou saber? Perdi-o de vista por quase vinte e
quatro horas. Somente esta tarde localizei o tal...
— Jones — disse Brigitte.
— Sim, Jones. Quando vim para cá, há uma hora,
deparei com uma poça de sangue no dormitório dele. E logo
depois, chegavam os dois sujeitos.
— Devem ser os matadores — conjeturou Brigitte. — E
você, por que deixou de vigiar meu companheiro?
— Tinha coisa importante a fazer, querida.
— Por exemplo?...
— Ora! — Pearson sorriu gostosamente. — Tenho de
dizer-lhe tudo, quando você nada me diz?
— Não quer contar-me, então, o que achou de
interessante nesses russos? — Brigitte impacientou-se.
Pearson voltou a beijar-lhe a testa:
— Queria saber qual era a trama — disse.
— E, não descobriu, de verdade?
— Niente, cara mia. Nem seus verdadeiros nomes.
Ela se pôs de pé:
— É melhor que eu fuja, antes que apareça alguém com
perguntas sobre nossa presença aqui — ponderou.
— Ei, espere aí! — disse Pearson, segurando-lhe o
punho. — E você, sabe do que se trata?
— Talvez — respondeu Brigitte. — Mas pode estar
certo de que John “Fantasma” Pearson sabe mais do que eu.
Ele soltou-a, afinal, suspirando:
— E que pensa fazer?
— Pedir instruções superiores. Depois, veremos.
— Onde poderei encontrá-la?
— Hotel Cavalieri Hilton — informou ela. — Agora,
devo ir.
— Quer dizer que está sozinha em Roma? — estranhou
Pearson.
— Sim. Por quê?
Pearson meneou a cabeça, descontente:
— Deve estar louca, Brigitte — disse. — Se o tal Jones,
que com certeza conhecia bem o ambiente, saiu-se mal, nem
quero pensar no que poderá suceder a você.
Brigitte mordeu os lábios, mas não vacilou:
— Preciso ir, de qualquer maneira, “Fantasma”.
— Vá — suspirou ele. — Não posso impedi-la, você
bem sabe.
Brigitte inclinou-se, beijando-o, e dirigiu-se para a saída.
Apagou a luz, abriu a porta e tomou a fecha-la,
desaparecendo.
Pearson conservava um sorriso irônico nos lábios,
quando se levantou, no escuro, e foi à porta. Abriu-a,
ficando a observar Brigitte que, olhando para todo lado,
alcançava o pequeno carro, na rua.
Um minuto depois que o automóvel desapareceu,
descendo a Via Margutta em silêncio e com os faróis
apagados, o inglês voltou a sentar-se na cama, tendo já
reacendido a luz. Pensativo, meneava a cabeça com
desagrado:
— Ah, Brigitte, sua astúcia não me embrulha desta vez!
— sussurrou para si mesmo.
Levantando-se novamente, apagou a luz, retirou do
bolso uma lanterna, agachou-se ao lado da cama: um
minuto depois, o cadáver de Young Jones estava totalmente
à vista, sob a fraca luz da lanterna, e o “Fantasma”
examinava-lhe as roupas, detendo-se ao ver os olhos
vidrados. Abriu a camisa, verificando os dois furos de balas
sobre o coração, e teve um gesto de enfado:
— Então, não conseguiu, bem? — murmurou para o
cadáver. — Mas você era uma raposa muito nova, sem
muita manha, filho. Gostaria de saber, entretanto, por que se
interessou tanto por esses sujeitos da MVD. (Iniciais das
palavras russas Ministersivo Vnutrennik Dyel — ministério
do Interior, — órgão central da espionagem)
Teria Brigitte mentido?
Havia três horas, desde o anoitecer, que John
“Fantasma” Pearson ocupava aquele dormitório meio
abandonado, no “Albergue Florença”. Tinha localizado
Jones pela tarde. Minutos depois de chegar, quando o sol já
estava no ocaso, os dois desconhecidos haviam subido.
Desceram pouco depois. Ele os seguira pela Via Margutta,
perdendo-os de vista na Praça Espanha, na hora do rush. E
Brigitte visitara o já morto Young Jones enquanto ele,
Pearson, tentava encontrar novamente os dois
desconhecidos, ainda sem saber o que se passara no
segundo andar.
Quase às oito horas, subira, deparando com o cadáver
que agora ali jazia sob seu olhar profundamente pensativo.
— Então, a CIA desejava o morto. Brigitte o confessara.
E Brigitte com toda a certeza estava sendo seguida, naquele
momento. Se não, como teriam sabido que, uma hora antes,
vinha ver Young Jones? A tocaia preparada para ela o
confirmava.
E ali estava Pearson, com um cadáver, depois de ter
surpreendido Brigitte e os inimigos, retirando-o do local
onde o haviam deixado. A americana, agora, pensava ter
sido passada para trás pelos matadores; estes a julgavam
responsável pelo desaparecimento dos despojos de Jones. E
seguiam-na, estava fora de dúvida, para chegar a outros
homens da CIA.
Entretanto, Pearson acreditava em Brigitte, quando esta
dizia estar sozinha em Roma. Se assim não fosse, não teria
ela de pedir instruções superiores.
E John Pearson decidiu-se a auxiliá-la. A curiosidade em
saber o que havia no fundo de toda aquela confusão, além
da simpatia e amizade pela linda Montfort — ambos os
motivos o levavam à decisão.
“Mister Ghost” introduziu sob a cama, cuidadosamente,
o cadáver de Jones, ajeitou a suéter negra, verificou a
pistola que trazia sob o braço e apagou a lanterna
“Além de tudo” — pensava, enquanto se dirigia à Praça
Espanha — “o servico britânico gostaria de saber dos
fatos.”
Daí a pouco um gentleman acercava-se, já na Praça
Espanha, de uma reluzente “Porsche” vermelha, abria a
porta com desenvoltura e se dirigia despreocupadamente
para as movimentadas avenidas do centro de Roma.
***
Brigitte, já de volta ao seu apartamento no “Cavalieri”,
preparava-se com rapidez para o encontro com Giovanni
Spercola.
Decidira não chamar imediatamente o “floricultor” de
Nova Iorque, a fim de não despertar suspeitas; duas
custosas chamadas numa só noite para falar de “sementes
mortas”?! Seria melhor esperar o dia seguinte, e encontrar-
se com o tal Johnny. Pô-lo-ia ao corrente dos fatos, pois ele
devia ser um agente destacado em Roma e poderia tomar
decisões mais acenadas.
E o cavalheiresco Spercola? li-ia à festa com ele, sim.
Mas, qualquer coisa, nele, deixava ver um homem
astucioso, inteligente demais para ser um mero conquistador
endinheirado. Entretanto, a ligeiríssima suspeita podia ter
nascido de sua constante desconfiança profissional. Não
podia julgar sem mais nem menos. Bastaria acautelar-se,
num caso como o de Spercola, o qual, na verdade, nada
prometia de mau.
E o último ponto a verificar: por que Jones pedira que
sua ajuda ficasse localizada no “Hotel Cavalieri”? A
resposta teria de vir, com a revelação completa do que Jones
havia descoberto.
Ela abria sua caixa de jóias quando soou a campainha.
Devia ser Spercola, pois mais de uma hora já se passara
desde que o deixara no hall.
Já vestida e arrumada, Brigitte foi abrir, tendo o cuidado
de não expor-se demasiadamente. Se não fosse Spercola ou
mesmo Johnny, devia estar preparada.
Ante a porta, sorridente, estava o italiano:
— Posso entrar? — perguntou.
Brigitte riu:
— Impacientou-se, não é mesmo, Giovanni? Entre.
Ele ficou a olhá-la de alto a baixo, fascinado. Brigitte
desfilou ante seus olhos:
— Perdemos a hora? — perguntou, rindo da expressão
dele.
— Já faz hora e meia que me deixou, Brigitte. Mas não
se preocupe. Vejo que aproveitou o tempo. Está linda de
morrer!
— Fiquei indecisa entre os vestidos — mentiu Brigitte.
— Nunca me decido facilmente. Ajuda-me a colocar as
jóias, Giovanni?
— Será um prazer imenso! — exclamou ele.
De pé frente ao espelho do living passou a Spercola o
colar de pérolas. Viu-o inclinar-se ligeiramente, para
abotoar a jóia. E logo em seguida os lábios lhe tocaram os
ombros nus.
Brigitte estremeceu visivelmente.
— Temo... — começou Spercola. — Temo que me tenha
precipitado um pouco.
— Convenhamos, Giovanni — ponderou Brigitte — que
devemos estar um tanto atrasados para a festa.
— Está bem, está bem — concordou ele.— Isto já
mereceu, e muito, o atraso. Esperarei outra ocasião, Brigitte.
E não poderia esperar demais.
— Quem sabe?... — fez Brigitte, indefinida, levantando-
se: — Agora, um momento. Volto logo.
Caminhou para o dormitório, fechando a porta. Sobre o
toucador, junto aos objetos de maquilagem, estava a pistola
com empunhadura de madrepérola. E Brigitte, munindo-se
de esparadrapo, que encontrou na maleta de viagem, cortou
duas tiras.
Erguendo o vestido até acima das meias, prendeu ali a
arma. Foi depois ao grande espelho, num canto do aposento,
e estudou-se: quem poderia duvidar que fosse mais que uma
bonequinha de olhos azuis?
Saiu para a sala com seu sorriso de estrela, tomou o
braço de Spercola e cochichou:
— Vamos?
Ele sorriu, assentou melhor as lapelas do paletó negro,
parecendo satisfeitíssimo:
— Meu “Alfa” está à espera, cara mia.
CAPÍTULO QUINTO
Velocidade e averiguações

O possante “Alfa Romeo” atravessou a Praça Ostiense;


seguindo pela Aventino, logo adiante alcançou a Via San
Gregorio e o Coliseu. Finalmente, através da Via
Washington, atingiu a Vila Borghese, detendo-se em frente
de uma bem iluminada mansão.
A entrada era imponente, em ferro trabalhado.
Depois de desligar o motor, já no estacionamento onde
muitos outros automóveis se encontravam, Spercola tomou
a mão de Brigitte, levando-a até à entrada principal da
mansão.
Poucos minutos depois, já introduzidos no salão onde
burburinhavam os convidados em gala, Brigitte era
apresentada à condessa de Bonavento, uma bela mulher de
meia-idade, muito branca e delicada. Após cumprimentá-la,
cortesmente a condessa ocupou-se de outras pessoas, sendo
sempre acompanhada por três indivíduos quarentões,
corretos e distintos em seus smokings, sempre evidenciando
atenções para com a anfitriã.
— Quem são eles? — perguntou Brigitte a Spercola.
— Têm um nome — replicou ele — “caça-dotes”.
— Ora, Giovanni! — protestou Brigitte. — A condessa é
bonita, mas não me parece que esteja à disposição, com
seus milhões.
— Talvez — Spercola parecia detestar o assunto. — No
entanto, ela é viúva, uma viúva que possui perto de
quinhentos milhões de liras.
— Sério?!
— É o que dizem as más línguas — confirmou ele.
Brigitte ficou a considerar a imponente figura de mulher.
Depois, voltou-se para o companheiro:
— É esplêndida, Giovanni!
— Evidentemente — assentiu o italiano. — Seu único
defeito consiste nesses quinhentos milhões.
Ela riu:
— Não me diga que despreza o dinheiro! Não
acreditarei.
— Não, Brigitte, não desprezo — riu também ele. —
Quis dizer que se a condessa voltar a casar-se, nunca saberá
se conquistou o amor ou... comprou-o.
— Entendo, Giovanni.
— E aqueles três, não duvido que se deixariam comprar
a um piscar de olhos — continuou Spercola.
— Despreza-os? — inquiriu Brigitte, embora fosse
evidente a resposta, pela expressão do companheiro.
— Muito, não posso negá-lo.
— Entretanto, amanhã pode ser que algum deles o olhe
superiormente, Giovanni.
— Não creio — ele sorriu. — Tenho o bastante para
comprar, e não para ser comprado — fez uma careta,
tomando-lhe a mão. — Tomamos um coquetel, Brigitte?
Ela deixou-se levar para um sofá a um canto. E enquanto
Spercola fazia sinal ao garçom, tocou-lhe o ombro:
— Giovanni.
— Sim?
— Esqueça-se do assunto. Não procure comprar — disse
Brigitte.
Spercola olhou-a sem entender. E Brigitte continuou,
mais explícita:
— Não possuo milhões, Giovanni, mas... tampouco
tenho algo para vender.
Ele pareceu estremecer ligeiramente:
— Não quis dizer que...
— Acredito, Giovanni — cortou Brigitte. — Em todo
caso...
— Como pôde pensar que estivesse insinuando isso? —
protestou.
— Giovanni! — cantarolou Brigitte, em resposta: —
Estou esperando meu coquetel... de champanha com umas
gotas de limão.
— Oh, sim, o coquetel! — lembrou-se Spercola. — Um
momentinho.
Caminhou pelo salão, indo em busca do coquetel,
enquanto Brigitte se dirigia à sacada que dava para um
imenso jardim. Nas aléias profusamente iluminadas
conversavam grupos de convidados, alegres como os do
salão. Ao fundo deste, uma pequena orquestra deixava ouvir
música amena e balouçante, num complemento à agradável
noitada.
Era para os músicos que Brigitte se voltara, quando
percebeu Spercola, uma taça em cada mão, conversando
com duas jovens sorridentes. E ao ver-se observado,
aproximou-se solícito.
— Diverte-se, Giovanni? — perguntou Brigitte, pegando
a taça que lhe era oferecida.
— Um pouco — sorriu ele. — Tenho uma informação:
você está sendo o centro das atenções.
Brigitte levou a mão aos lábios:
— Espero não estar cometendo gafes — murmurou,
consternada.
— Gafes?! — exclamou Spercola. — Mia cara Brigitte,
saiba que estou recebendo as mais invejosas felicitações que
já ouvi, e tudo por sua causa.
Brigitte meneou a cabeça:
— É um perfeito cavalheiro, Giovanni — agradeceu.
— Não é apenas cortesia, Brigitte — protestou ele. — É
a verdade.
Ela bebeu, experimentando o coquetel. Spercola
também, sem deixar de admirar-lhe os traços do rosto, os
olhos, os ombros e o colo.
— Que acha de dançarmos, Brigitte?
Ela aceitou prontamente, acompanhando-o à parte do
salão desimpedida, onde alguns pares dançavam. Quinze
minutos depois, voltavam. Deixando-a no terraço, Spercola
se afastou novamente, em busca de bebida. A meio
caminho, Brigitte notou que o italiano trocava palavras com
um indivíduo um pouco mais baixo que ele, mas de
aparência não menos atraente. Devia ter uns cinqüenta anos,
e Brigitte já o notara pelas suas impecáveis maneiras,
sempre sisudo e elegante. Apenas uma vez o vira sorrir.
Seus olhos negros perscrutavam em volta. Um inusitado
cordão, munido de borla, atado ao seu ombro, fazia supor
um diplomata.
Mas o que realmente chamara a atenção naquele homem
fora o olhar trocado com Giovanni Spercola. Este, tendo ido
ao bar, tomava a passar por ele, de volta, com duas taças.
Não era um olhar de cortesia nem de cumprimento. Havia
qualquer coisa de mais significativo, de cumplicidade, algo
que teria passado despercebido aos outros convidados. Não,
porém, a Brigitte, uma espiã atenta, completa.
Todavia, Spercola chegava com as taças, muito alegre.
Estudando-lhe os gestos e a expressão, ela notou pouca
diferença.
Tomando a bebida, Brigitte começou a julgar que tirara
conclusões erradas. Talvez estivesse desconfiada demais,
pelos acontecimentos de que tomam parte naquela noite.
— Vou levar as taças — disse o companheiro. — Não
vejo nenhum garçom por aqui.
— A vontade, Giovanni — sorriu Brigitte.
Antes de voltar-se viu-o no outro lado, depositando as
taças num balcão. Mas o jardim, sob um macio luar,
oferecia melhor encanto aos olhos, e Brigitte esqueceu-se
momentaneamente de Giovanni Spercola.
Minutos depois, notando a demora, percorreu os grupos
de elegantes personagens espalhados pelo salão. Não o viu
mais.
Resolveu entrar e caminhar lentamente, examinando os
presentes com discrição, mas ainda assim não deparou com
Spercola.
Dirigiu-se então a um mordomo, apanhando uma taça.
Perto, a condessa e o cinqüentão que ela julgava um
diplomata palestravam animadamente. Por um instante,
notou aqueles olhos negros a observá-la.
Estava saboreando o último gole do coquetel, quando a
condessa advertiu-se da sua presença e lhe dirigiu a palavra:
— Senhorita Montfort, abandonaram-na?
Brigitte sorriu:
— Não sei bem. O senhor Spercola...
— Deixe-o comigo, senhorita — falou a condessa. —
Vou trazê-lo por uma orelha. Conhece o senhor Baracca?
Quando estendia a mão para o cinqüentão, Brigitte notou
duas palavras numa faixa que ele trazia ao peito: “San
Marino”. E teve que recorrer a toda a serenidade para não
demonstrar o choque causado pelo nome em letras
prateadas, brilhantes.
— Meu caro Baracca, esta é a senhorita Montfort, do
“Morning News” de Nova Iorque. O senhor Renato
Baracca, destacado funcionário da República de San Marino
— apresentou a condessa.
E a anfitriã afastou-se polidamente, enquanto Renato
Baracca se inclinava para beijar a mão da bela Brigitte:
— Encantado, verdadeiramente encantado, senhorita
Montfort! — cumprimentou ele, caloroso. — Está gostando
da festa?
— Como não? Todos são muitíssimo amáveis —
respondeu Brigitte.
— Se me permite — volveu Baracca — suprirei a falta
do senhor Spercola.
— É uma alegria que me dá, senhor Baracca — sorriu a
repórter. — Vejo que é de San Marino, lugar de que ouvi
falar muito, em prosa e verso. Pretendo fazer um dia uma
reportagem sobre seu país. Assim, será um prazer ouvi-lo.
— Meu prazer, senhorita... imenso prazer, asseguro-lhe.
Podemos ir ao jardim?
— Agora mesmo, senhor Baracca. O luar está uma
beleza. Parece até cenário de cinema.
— Notei que olhava a lua, lá da sacada — disse o
cavalheiro. — Por isso resolvi convidá-la a uma observação
mais direta.
Brigitte sentiu-se novamente em estado de alerta.
Estaria aquele homem a vigiá-la, desde o início da festa?
***
Enquanto Brigitte descia poeticamente ao jardim,
acompanhada pelo funcionário da República de San
Marino, nosso misterioso Giovanni Maria Spercola tomava
seu Alfa Romeo” e rumava, com toda a naturalidade, para o
grande portão de saída.
Seus movimentos, no entanto, estavam sendo
discretamente observados por um alto personagem de negro
escondido entre as aléias da entrada. Esse desconhecido
observador viu quando o “Alfa Romeo” de Spercola tomou
o rumo da Via Washington. Imediatamente encaminhou-se
até ao parque de estacionamento, entrou numa “Porsche”
vermelha e arrancou em sua perseguição.
Na esquina com a Via Flaminia, a “Porsche” já estava a
menos de duzentos metros da “Alfa” de Spercola.
As luzes dos postes iluminavam intermitentemente o
rosto do seguidor de Spercola: calmo, peito largo, cabelos
ligeiramente grisalhos nas têmporas, lá estava John
“Fantasma” Pearson ao volante do magnífico automóvel.
Sempre seguido sem o perceber, embora imprimisse
velocidade ao carro, Spercola cruzou a cidade, saindo para o
sul, pela Via dei Mare.
Pouco depois, os dois automóveis rodavam disparados
em estrada livre, rumo à famosa praia do Lido, em Ostia.
***
No jardim da mansão, Brigitte e Renato Baracca
sentavam-se num banco de pedra.
Ele observou-a atentamente, por um minuto, enquanto
Brigitte colhia uma pequena flor:
— Então, a jornalista está interessada em San Marino!
— disse.
— Sim — confirmou Brigitte, brincando com a flor. —
Vim para aprender o italiano e fazer reportagens sobre os
lugares mais interessantes da península. E San Marino
parece ser sempre um dos menos lembrados, não acha,
senhor Baracca? Entretanto, desejo também saber algo
sobre o senhor mesmo, se quiser me dar esse prazer.
— É verdade que não somos muito promovidos pela
imprensa — suspirou Baracca. — Julga que seus leitores
terão algum interesse no assunto?
— Asseguro-lhe que sim. Não devemos confundir
tamanho com importância. Veja Montecarlo, por exemplo.
Tenho certeza de que haverá mais coisas interessantes em
San Marino, senhor Baracca.
— É muito amável, senhorita — agradeceu ele. —
Como patriota e funcionário, agradeço-lhe desde já. E estou
à sua inteira disposição.
— O fato é que já esqueci quase tudo o que sabia sobre
San Marino, senhor Baracca — disse Brigitte.
— Há tempos não me ocupo de geografia e história
contemporânea.
— Bem, de San Marino é fácil falar — Baracca alisava o
cordão que lhe descia do ombro, sobre a espécie de fardão
diplomático. — Foi fundada pelo dálmata Marino, que se
retirou, no ano de trezentos e cinqüenta, para o Monte Titã.
Mas não pôde viver como eremita por muito tempo. Logo
se formou uma comunidade em torno do monte, construiu-
se um castelo, e mais tarde foi proclamada a República de
San Marino.
Ouvindo-o, Brigitte pensava na carteirinha de fósforos
encontrada junto ao cadáver de Young Jones. Talvez
surgisse algo da conversação, para ajudá-la.
— Atualmente — continuava Baracca — o governo é
exercido por quatro Grandes Conselhos de quinze membros
cada e por dois capitães-regentes. Aliás, um só capitão,
devido a um lamentável acidente.
— Oh, sinto muito — disse Brigitte.
— Logo será solucionado o caso — Baracca sorria. — E
espero ser o homem indicado para ocupar o cargo vago.
— Verdade?! — exclamou Brigitte. — Quer dizer que
estou falando com um quase chefe de Estado?
— Mais ou menos — ele comprazia-se.
— E sobre os costumes, o ambiente de San Marino,
senhor Baracca? Meus leitores gostarão de ser informados
também sobre o aspecto humano, além do político e
protocolar.
— Compreendo, senhorita Montfort. Terei muito gosto
em prepará-la para a visita que fará a meu país. Esperemos
que o senhor Spercola não a encontre logo, pois quando falo
de meu lar, tomo-me bastante loquaz.
“O senhor Spercola! Onde andaria o senhor Giovanni
Spercola?” — era isso o que pensava Brigitte, enquanto,
sob o luar, no jardim da condessa Bonavento, ouvia Renato
Baracca, futuro capitão- regente de San Marino.

CAPITULO SEXTO
Segredos a bordo

O “Alfa Romeo” deteve-se a uns trezentos metros do


embarcadouro, em Ostia. A prudente distância, uma
reluzente “Porsche”, os faróis apagados, desliiou para uma
viela transversal.
Enquanto Govanni Maria Spercola se encaminhava na
direção da água, uma figura alta e esbelta, vestida de negro,
saía da viela, colando-se às paredes e seguindo também até
ao mar.
O vulto negro era de John Pearson, ocultando-se nas
sombras. O arguto Mister Fantasma, famoso agente secreto
do MI-5, certificava-se agora de que a pista era boa: aquele
homem do “Alfa” enganam perfeitamente a linda Brigitte,
que ficara a divertir-se na festa de Vila Borghese.
Pearson sorria ironicamente: as belas a se distraírem e os
homens a trabalharem! Cada um com sua mania. E, a julgar
pelos últimos acontecimentos, tudo indicava que a sorte e o
faro de Brigitte encontrariam um fim mais rápido do que se
esperava, pois tendo já um companheiro morto, a bela
divertia-se entre desconhecidos.
Spercola chegou à borda do embarcadouro, fumando.
Atirou o cigarro à água e apanhou logo outro, pondo-se a
acendê-lo. Embora o isqueiro que usava se tivesse
inflamado ao primeiro toque, ele repetiu as operações duas
vezes mais.
Seguindo a cena, John Pearson sorria: era um sinal,
evidentemente. Aproximara-se bastante do embarcadouro,
colando-se a uma árvore, e esperou estudando as diversas
embarcações que balançavam ali por perto: dois ou três
iates, mais além; uns poucos botes, junto à margem.
Dois minutos depois, um bote foi arriado do iate mais
próximo, e levado até ao embarcadouro por um único
homem. Deteve-se, e Spercola saltou para ele:
— Estão todos lá? — perguntou o “amigo” de Brigitte
Montfort.
— Todos — informou o remador.
— Então, vamos depressa. Tenho de voltar o quanto
antes para Roma.
Em dois minutos, o bote foi encostado ao iate e os dois
subiram pela escada de cordas. Outro homem os esperava,
saudando o recém-chegado:
— Bem-vindo, Ivan Molkova.
Giovanni Spercola sorriu:
— Como vai, Posarian? — respondeu. — Tudo em
ordem aqui?
— Sem novidade.
— E o dinheiro? — indagou Spercola.
— Gurief e Bonarof estão esperando. Já o trouxeram.
— Conseguiram a soma toda?
— Sim. Vamos para baixo e verá. Venha também Ilinov.
Os três se encaminharam para a pequena porta que
conduzia ao interior da embarcação. Spercola — ou
Molkova — o tal Ilinov, que o tinha ido buscar, seguiram
Posarian. No living-bar, dois outros personagens se
achavam sentados e receberam o visitante com largos
sorrisos.
“Spercola” Molkova os saudou com uma inclinação de
cabeça:
— Como estão, Bonarof... Gurief?
— Saúde, Ivan! — um deles, Gurief, ergueu o copo do
qual bebia.
— Vamos ver esse dinheiro? — convidou o
cavalheiresco Molkova.
Gurief largou o copo sobre a mesinha do canto, retirando
de sob ela uma valise negra, de couro:
— Vinte milhões de dólares — disse. — Com isto,
coroamos, Bonarof e eu, dois anos de duro trabalho na
América.
Giovanni Spercola — na realidade Ivan Molkova, um
espião — aproximou-se da mesinha e abriu a valise: ali
estavam vinte mil notas de mil dólares, distribuídos em
feixes de quinhentas notas cada um. Vinte milhões de
dólares!
— Belo trabalho, amigos — disse, sorrindo.
— ... que cabe a você terminar, Ivan Molkova —
ajuntou Bonarof.
— Descanse, camarada — volveu Ivan. — Esta noite
mesmo iniciarei a parte que me toca, no trabalho. Karavitch
está ferido, sabiam?
Os quatro outros olharam-se, surpresos, e Posarian
indagou:
— Como foi isso?
— Uma certa mulher — explicou Ivan. — Chama-se
Brigitte Montfort e trabalha para o “Morning News” de
Nova Iorque. Chegou há seis ou sete horas para fazer
contato com um homem chamado Young Jones. Esse
homem é o mesmo que seguiu Bonarof e Gurief desde
Washington.
— E onde está ela? — perguntou Gurief. — E ele?
— Jones está morto. Quanto à mulher, encontra-se bem
vigiada, numa festa da condessa Bonavento, em Roma. Fui
eu quem a levou para lá.
— Não suspeitará de você? — tomou Gurief.
Ivan Molkova encolheu os ombros:
— Não sei. Penso que não, mas é bastante inteligente e
não me arriscarei.
— Como foi que ela o encontrou? Uma falha sua, Ivan?
— Ela não me encontrou — sorriu Ivan. — Vou contar
desde o começo: Há alguns dias, no “Cavalieri”, notei um
turista suspeito a seguir nossos homens. O tal turista era
Young Jones, ou qualquer que seja seu verdadeiro nome.
Quando Karavitch e Likof substituíram nossos Gunef e
Bonarof no “Cavalieri”, o tal deve ter pedido ajuda aos
superiores, indicando o mesmo hotel. Enquanto isso, ele
seguia vocês, Bonarof e Gurief, por toda parte. Deixaria os
outros dois a cargo do auxiliar que solicitara. Pela tarde,
entretanto, localizei a toca da raposa na Via Margutta:
Karavitch e Likof encarregaram-se de liquidá-lo. Seus
documentos nada revelaram, mas estou seguro de que era da
CIA Se não fosse, por que iria segui-los com tanto
interesse?
— Está bem claro — concordou Posarian. — Mas... e a
mulher?
— Quase deu de cara com Karavitch e Likof, na Via
Margutta. Ambos me avisaram que ela se hospedava no
“Cavalieri”. Eu já a conhecera, no entanto. Calculei que
não deixariam o cadáver no mesmo local, para evitar um
escândalo perigoso. E mais tarde enviei os dois para lá,
encarregando-os de liquidar quem aparecesse. A moça
apareceu, como esperávamos, mas o cadáver já não pôde ser
encontrado.
— Como? — Gurief levantou-se, surpreso.
— Isso mesmo! O cadáver não estava mais no lugar.
Desaparecera. Entretanto, não pode ter sido a moça quem o
levou, pois Karavitch e Likof não a perderam de vista e, no
hotel, estava sendo vigiada por mim.
— Então, os dois falharam. Não a mataram! — mastigou
Gurief.
— Assim é, camarada. Entretanto, não os culpo. Deve
haver outra pessoa: a que surrupiou o cadáver de Jones. E
por isso não tomei a iniciativa de acabar com a moça.
Espero que essa pessoa se ponha em contato com ela, para
estarmos em cima da pista. Precisamos ficar sabendo até
onde a CIA tem conhecimento de nossos atos.
— Acha que descobriram algo? — Gurief, que parecia o
chefe, sentava-se novamente, bebendo.
— Devem saber. Se não, por que enviariam um homem
atrás de você e Bonarof? Devem ter sabido sobre a
acumulação de notas de mil dólares, por vocês, e ficaram
curiosos.
— E acha que está segura, nessa festa?
— Como não? — Ivan Molkova sorria, apanhando um
copo e servindo-se. — Tenho-a sob estrita vigilância, lá;
coisa que não poderia fazer se a deixasse no hotel, à solta.
— Cuidado com a desculpa que vai dar para justificar
sua ausência da festa — aconselhou Gurief.
— Desconfie ou não de mim, ela terá de aceitar o que eu
lhe diga — riu Ivan. — Se desconfia pelo menos simulará
acreditar na desculpa. É bastante esperta, a Montfort.
Houve um instante de silêncio, enquanto Ivan Molkova
bebia sossegadamente.
— Já disse tudo, por agora. Creio que posso ir-me então.
Posarian fitou-o preocupado.
— Acha que vai dar certo, camarada? — indagou. —
Tudo me parece ainda muito arriscado.
Ivan pensou um momento, ingerindo o último trago:
— Com efeito, vinte milhões de dólares são alguma
coisa. Mas despendemos dois anos de serviço no trabalho, e
temos ordens de levá-lo a cabo.
De repente, calou-se. Olhava para Ilinov, que fazia um
movimento de cabeça em direção ao teto.
Também Posarian e os outros ficaram imóveis.
Depois foi Gurief quem fez um sinal para que Ivan
Molkova continuasse falando.
— Além disso — recomeçou Ivan, olhando para Ilinov,
que subia lentamente os poucos degraus da escada para o
tombadilho — tudo parece caminhar bem. O homem que
nos molestava sofreu um “acidente” e não atrapalhará mais.
Ilinov havia chegado à porta de saída, e escancarou-a
bruscamente. No teto houve uma exclamação de raiva e
passos rápidos.
No mesmo instante em que saltava para fora, já armado
de um punhal, Ilinov gritava para os outros:
— Venham!
***
John “Fantasma” Pearson estivera ouvindo a conversa
do grupo, deitado sobre a coberta.
Quando Ilinov surgiu repentinamente, Pearson,
surpreendido, correu para a proa. Já saltara entre a amurada
e as cabinas, quando tropeçou em algo, tombando de
bruços.
O punhal de Ilinov cravou-se no piso no mesmo instante
em que o inglês rolava para o lado.
De pé novamente, encarou Ilinov, que já recuperara o
punhal e, curvado, esperava o momento de atacar. Súbito, o
pé do inglês alcançou o rosto do rival, que soltou a arma.
Ilinov, todavia, era um lutador bastante rápido. Não
podendo contar com o punhal, recorreu imediatamente às
mãos, esperando que os companheiros logo chegassem.
Lançou-se às pernas do homem de negro... mas foi recebido
com um tremendo pontapé na boca, e suas mãos se
crisparam no vazio.
Nesse momento, surgiram os companheiros:
— Deite-se, Ilinov! — gritou Posarian, de arma em
punho.
Ilinov, que já se apoiava nas mãos, compreendeu
imediatamente: devia deixar campo livre para as armas de
fogo. Quis ficar rente ao piso, mas duas mãos férreas o
apanharam: John Pearson tinha-o agora como escudo, e lhe
aplicava um golpe definitivo na nuca.
Retrocedendo rapidamente até à proa, o homem do MI-5
arrastou seu escudo vivo, Os outros quatro aproximavam-se
também e três pistolas apontavam para o intruso, esperando
um momento propício.
Sentindo atrás da cintura a grossa corda que servia de
amurada, na proa, Pearson dobrou o corpo para trás,
segurando o russo pelo colarinho. Plantou os pés nas costas
do semidesfalecido Ilinov, sem soltá-lo, dobrou-se um
pouco mais... e atirou-o para a frente, enquanto ele próprio
volteava sobre si mesmo no vazio, caindo dentro da água.
No mesmo instante, ouviu-se a voz de Molkova:
— Agora!
E três balaços buscaram o corpo de John Pearson, que
resvalara sobre a amurada.
Ouviu-se um grito de dor e, quase ao mesmo tempo, o
baque do corpo na água.
— Tragam uma lanterna! — ordenou Gurief assomando
à proa.
Quando Bonarof chegou com a lanterna, Ilinov já se
erguia, estonteado, respirando com dificuldade. Gurief,
Bonarof, Posarian e Molkova estudavam a água, à procura
do desconhecido.
— Mais longe — disse Ivan. — Pode ser que esteja
nadando para terra.
Gurief dirigiu a luz num grande círculo, sem nada
encontrar do homem que havia vencido Ilinov em quatro
segundos.
— Temos de liquidá-lo! — exclamava Ivan. — Deve ser
da CIA ou algo assim. Dê-me a lanterna, Gurief.
Pegou-a, examinando atentamente o perímetro do iate,
ordenando a dois dos companheiros que fossem pelo outro
lado. Minutos depois, reuniram-se na popa.
— Deve estar no fundo — comentou Posarian.
— Parece que o pegamos em cheio — ajuntou Bonarof.
Ivan Molkova suspirou, entregando a lanterna a Gurief:
— Está bem — disse. — Vou para Roma. Já perdi muito
tempo com isso. Quanto a vocês, penso que deveriam
afastar-se daqui, não é, camarada Gurief?
— É o que faremos — respondeu o outro. — Traga a
valise, Bonarof. Nosso trabalho está terminando. Cuide do
resto, Ivan.
Bonarof apareceu em um minuto, fechando a valise:
— Aí tem. Boa sorte, Ivan Molkova — desejou Gurief.
O falso Giovanni Spercola desceu para o bote, seguido
de Bonarof, que pegou os remos. Foram até à margem.
Minutos depois o “Alfa Romeo” arrancava, conduzido
pelo falso italiano.
Logo em seguida, um vulto surgia de sob o
embarcadouro, saindo da água, e corria resfolegando para
uma ruazinha lateral. John “Fantasma” Pearson conferia o
tempo ao dar a partida no possante “Porsche”: eram 30
minutos da manhã.
Pouco depois, parando ao lado da estrada que conduz a
Roma, abriu o porta-luvas, retirando um estojo de
medicamentos. Sob a luz de uma lanterna, livrou-se da
suéter negra, rasgando a camisa à altura do ombro direito:
um arranhão apenas, sobre o qual aplicou anti-séptico e
gaze, prendendo tudo com esparadrapo.
E logo a “Porsche” voava para Roma.
CAPÍTULO SÉTIMO
O professor de italiano

Renato Baracca prosseguia contando episódios de San


Marino e Brigitte Montfort ouvia, já com falso interesse.
Em dado momento, interrompeu o cinqüentão:
— Veja, senhor Baracca — e indicou Giovanni
Spercola, que andava pelo jardim, como a procurá-la.
— Ah, chegou o senhor Spercola! — fez Baracca. —
Estará, certamente, à sua procura. Vou deixá-lo desfrutar de
sua companhia agora. É um par mais apropriado para uma
belíssima jovem como a senhorita
— E muito amável, senhor. E encantador — Brigitte
sorria. — Foi uma hora deliciosa a que passei aqui,
conversando.
Renato Baracca tomou-lhe a mãozinha e beijou-a
galantemente:
— Seja benévola com o povo de San Marino se escrever
sobre ele.
— Escreverei — prometeu Brigitte. — Depois de tanta
coisa interessante que ouvi do senhor, não poderia deixar de
faze-lo.
Ele já se erguera. Afastou-se pela aléia que levava ao
salão e cruzou com Spercola, o qual já localizara Brigitte.
Os dois homens trocaram palavras e sorrisos, depois do que
Baracca prosseguiu até o salão.
Spercola aproximou-se, sentando-se ao lado de Brigitte:
— Renato Baracca ficou encantado — comentou:
— Em troca, fiquei abandonada — replicou ela.
Spercola riu:
— Entendo — disse. — Foi uma descortesia de minha
parte, mas precisei atender a um amigo. Quer perdoar-me,
Brigitte?
— Depende. Era importante?
— Muito. Um de meus sócios me chamou, de Florença.
Minha presença lá é necessária esta noite mesmo. Negócio
de três milhões de liras; não posso deixar de ir.
— Mas já é uma hora da manhã, Giovanni!
— Sinto muito, creia — Spercola suspirou — Tentei
resolver tudo nessa hora que passou. Não consegui.
Brigitte escrutou-lhe o rosto, onde havia uma
sinceridade falsa mas muito bem encenada. Olhou para a
lua, para os grupos de convidados que ainda se encontravam
no jardim:
— Bem, aproveitei um pouco a noite. Haverá outras, não
é mesmo? Está perdoado, Giovanni.
— Não quer ficar aqui, então?
— Se puder acompanhar-me ao hotel, prefiro assim —
respondeu ela.
Entraram na mansão, despedindo-se da condessa e de
alguns outros.
Brigitte procurou ainda Renato Baracca, entre os
convidados, mas não o viu. Estranhou o fato, pois um
momento antes o homem de San Marino estivera ali.
Já no “Alfa Romeo”, olhou dissimuladamente para o
velocímetro. Antes, quando haviam chegado, verificara a
numeração, e agora via que se elevara em mais de cinqüenta
quilômetros... Onde teria ido Giovanni Spercola naquela
quase hora e meia?
O automóvel saiu da mansão, pela segunda vez naquela
noite.
— E acabei não ouvindo uma palavra de italiano —
comentou Brigitte, recostando-se languidamente.
— Maurizio lhe ensinará amanha e... espere! Que tal se
eu a deixar com Maurizio? Poderá aproveitar um pouco
mais a noite, Brigitte.
Brigitte pensou por um instante:
— Na verdade, não tenho sono. Estará Maurizio em
disponibilidade? — considerou, depois.
— Estou certo que sim — sorriu Spercola. — Mas,
lembre-se, querida, não a estou empurrando para ele.
— Ora, Giovanni! — protestou ela.
— Dei a idéia apenas para que não fique irritada comigo
— continuou ele. — Divirta-se e esqueça que Giovanni
Maria Spercola cometeu uma descortesia para com você. E
amanhã volto a vê-la, está bem?
Pouco depois chegavam ao “Cavalieri” e Spercola
chamava Maurizio Alvarini pelo telefone. Quando desligou,
estava satisfeito:
— Solucionado. Maurizio vem ai.
— Precisarei mudar de roupa — disse Brigitte. — Não
ficará bem sair com o esportivo Maurizio, vestindo um
longo.
Giovanni Spercola também tomou o elevador,
pretextando ir buscar objetos de viagem:
— Irei despedir-me em seu apartamento, se não se
importa.
— Eu o esperarei, Giovanni — murmurou Brigitte,
brejeira, deixando-o.
Ele continuou para cima.
Brigitte, apenas se viu só, mudou completamente de
atitude: parecia tomada de febre, fazendo tudo às pressas.
Despregou a pistola da perna, escondendo-a entre o assento
e o braço do sofá. Tirando o vestido, sentou-se à mesinha
do quarto e se pôs a escrever:
Querido tio Charlie:
Encontrei em Roma um italiano muito
simpático:Giovanni Maria Spercola. Fomos a
uma festa em casa da condessa Bonavento, em
Vílla Borghese, onde conversei com Renato
Baracca, provável futuro capitão-regente da
República de San Marino. Tive a impressão de
que Spercola e Baracca eram amigos, malgrado a
negativa de um deles. Agora Spercola vai a
Florença. Vou segui-lo. Seria estupendo encontrar
Spercola em San Marino, e não em Florença! O
pequeno país, a meu ver, é mais importante do
que quer fazer crer o senhor Baracca.
Para o resto desta noite, estarei acompanhada
de Maurizio Alvarini, um simpático rapaz,
professor de italiano e inglês, indicado e
apresentado a mim por Spercola.
Espero voltar a escrever-lhe dentro de dois
dias no máximo, tio Charlie. Se até lá não o tiver
feito, será porque estarei divertindo-me com os
anjinhos. Beijos de
BRIGITTE.
PS: — Desapareceram as sementes mortas.
Por perto, no entanto, estava nosso velho amigo
John Ghost, que também goza férias em Roma.

Dobrou o papel, sobrescritando um envelope:


Charlie Montfort —1044, 2ndAvenue — Manhattan,
New York — NY.
Colocou o envelope fechado sob o travesseiro. Se algo
acontecesse, ali estaria a pista para Pitzer e os outros
amigos.
Cobriu-se depois com um déshabillé, ajeitou os cabelos
e esperou.
Um minuto depois, soou a campainha. Foi à porta e,
abrindo-a, deparou com Giovanni Spercola, já com uma
valise negra nas mãos.
O homem vacilou ao vê-la. Empalideceu, olhando-a de
alto a baixo, seguindo o contorno de seu corpo magnífico,
bastante visível sob o vaporoso déshabillé.
— Não quer entrar? — perguntou Brigitte, sorrindo.
Depois que ele passou, Brigitte fechou a porta,
indicando-lhe o sofá:
— Vai demorar-se em Florença. Giovanni?
Spercola sentou-se, perturbado:
— Espero voltar pela tarde — disse.
Ela já estava ao lado, recostando-se molemente em seu
ombro:
— Não quer levar-me, Giovanni?
Meio fascinado, Spercola imobilizava-se, apoiando um
cotovelo na valise:
— Seria um prazer, mas não posso...
— Algum encontro? Mulher?
— Não, não! Só negócios.
— Está tentando enganar-me! — exclamou ela, sorrindo.
— Como se chama o sócio?
Spercola estremeceu ligeiramente, mas dominou-se:
— Carlo... Carlo Platone — disse.
Naquele instante, o telefone chamou. Brigitte levantou-
se com um suspiro, indo atender:
— Sim, é a senhorita Montfort. Oh, como está,
Maurizio? Não, não suba. Espere-me. Logo descerei.
Quando depositava o fone, já Spercola era senhor de si.
Estava a seu lado e a enlaçava pela cintura, sorridente:
— Bem, aí está Maurizio, queridinha. Perdoe não poder
levá-la. Na próxima noite nos divertiremos bastante,
prometo. Está bem assim?
Brigitte beijou-o de leve:
— Se me aprontar mais uma dessas, Giovanni, não
voltarei a vê-lo.
— Sossegue, não esquecerei — ele devolvia o beijo,
desprendendo-se e apanhando a valise de sobre sofá.
À porta, beijaram-se ainda, mais longamente:
— Volte logo, caro mio — murmurou ela.
— O mais cedo que puder — respondeu Spercola.
Encaminhando-se para o elevador, já sozinho, Giovanni
Spercola tirou do bolso um lenço, enxugando o suor da
fronte: pena que Brigitte Montfort não fosse apenas uma
jornalista em férias, e sim uma inimiga. Dadas as condições
do momento, não poderia acompanhá-la.
Dentro do apartamento do “Cavalieri” Brigitte deu-se
pressa. Vestiu uma roupa leve, introduziu no decote a
pequena pistola e saiu para o corredor. À porta do elevador
pareceu vacilar, mas foi um momento apenas, pois rumou
logo para o outro lado, onde outro assessor servia a uma
segunda ala do hotel.
Quando chegava ao hall, ainda viu Spercola entrando no
seu “Alfa Romeo”, no lado oposto da rua.
Descendo a calçada, aproximou-se rapidamente do
“Siata-750” de Maurizio Alvarini. Este apareceu
imediatamente, vindo também do hall:
— Senhorita Montfort! — chamou o rapaz.
Sem responder, Brigitte entrou no pequeno carro.
Maurizio correu para o outro lado, entrando também.
— Siga o senhor Spercola — disse Brigitte.
— Mas...
— Siga-o! — insistiu ela. — Depressa!
Maurizio acionou o motor, obedecendo.
O “Alfa” de Spercola já se distanciava.
— Não poderemos seguir um carro daqueles com este
“Siata”, senhorita — protestava ainda Maurizio.
— Tentaremos — retrucou Brigitte. — Não o perca de
vista.
— Está bem, tentarei — conformou-se ele. — Mas, que
confusão é essa?
— Logo lhe explicarei, Maurizio. Agora, por nada deste
mundo o perca de vista!
Brigitte, atenta à figura branca do “Alfa Romeo”, não
percebia que logo atrás do “Siata” uma “Porsche” os seguia.

CAPÍTULO OITAVO
Dificuldades e soluções imediatas

Rodando pela Via Cassia, Spercola estava sem dúvida


no caminho de Florença. Mas havia outras estradas, levando
a lugares bem diferentes, que cruzavam a Via Cassia.
Ainda nos arredores de Roma, o “Alfa” deteve-se perto
de umas ruínas. Dois homens apareceram, entraram no
carro, e Spercola prosseguiu.
Fazendo sinal a Maurizio para que retomasse a marcha,
Brigitte percebeu então a velocíssima “Porsche” vermelha
que, logo adiante, ultrapassava também o carro de Spercola.
— “Ah, se tivesse um carro desses!” — pensou, vendo
sumir-se o automóvel.
— Há bastante gasolina no tanque, Maurizio? —
perguntou.
— Deve estar a meio — respondeu ele. — O marcador
não funciona.
— Dará para duzentos quilômetros?
— Se os duzentos significam ida e volta, sim — tomou
ele, suspirando. — Mas se houver outros duzentos, depois,
ficaremos na estrada.
— Onde haverá um posto de abastecimento?
— Logo adiante — informou Maurizio.
— Muito bem. Lembre-se de que Spercola não deve
escapar-nos. Do resto, cuido eu.
Olhou para o minúsculo relógio de pulso. Se iam para o
lugar certo, somente daí a três horas chegariam, levando-se
em conta que viajavam de noite e que a estrada não era das
melhores. Adiante, as luzes do “Alfa Romeo”, sempre a um
milhar de metros.
Maurizio sustentava o pequeno carro nos oitenta e
noventa quilômetros horários, mostrando firmeza no rosto e
tomando a peito a novelesca perseguição. Os músculos dos
braços mantinham-se tensos, as grandes mãos moviam-se
com segurança no comando.
— Não gostaria de explicar-me agora o que se passa,
senhorita Montfort? — indagou ele, em dado momento. —
Que estamos fazendo, precisamente? Brigitte estudou o
perfil etrusco do jovem professor, resolvendo revelar-lhe os
fatos:
— Estamos seguindo alguns espiões, Maurizio. Espiões
e... assassinos.
— Deveras?! — o rapaz não pareceu acreditar
inteiramente. — E a senhorita, o que é?
— Jornalista.
— E se mete com tipos desses?! — sorriu Maurizio,
irônico.
— As vezes, sim, caro mio. E pode chamar-me Brigitte,
apenas.
Maurizio voltou-se para ela, encantado:
— Ecco! — exclamou. — lo sono ii tuo caríssimo.
Molto bene... cara mia! Deixa-me feliz de verdade.
Brigitte pegou-lhe no queixo potente, virando-o para a
frente:
— Cuidado com o que faz, Maurizio — sorriu. — Está
armado?
O rapaz sobressaltou-se:
— Mas, então, é verdade o que me disse? — gaguejou.
— São mesmo espiões?
— Nada menos — respondeu ela.
— Bem... tenho uma navalha no porta-luvas. E você...
Brigitte?
— Uma pequena pistola. Dependendo da ocasião, não é
de muita eficiência. Está com medo, Maurizio?
— Um pouquinho — ele engoliu em seco.
— Sinto muito, creia, mas não temos tempo de avisar
ninguém dos meus. Tudo o que posso fazer é comprar-lhe o
“Siata” agora mesmo, se quiser. Poderá então voltar a
Roma, descansado. Basta esperar uma carona.
Maurizio grunhiu algo incompreensível. Agarrou mais
firmemente o volante, passando dos oitenta para os cem
quilômetros horários.
Meia hora depois, em Narni, o “Alfa Romeo” deteve-se
para reabastecimento. Quando se pôs novamente em
marcha, o “Siata” aproximava-se do posto, parando também
para encher completamente o tanque de combustível.
E quando o carro de Maurizio Alvarini partiu, a
“Porsche” vermelha apareceu das sombras, a uma centena
de metros, acercando-se da bomba:
— Complete o tanque — ordenou John “Fantasma”
Pearson.
***
Spoleto, Foligno, Gualdo Tadino, Urbino... tudo ficava
para trás.
Pelas quatro e meia da madrugada os três carros
aproximavam-se de Santo Leo, a localidade italiana mais
próxima da República de San Marino.
Minutos depois, abandonando a estrada, o “Alfa Romeo”
cruzava a fronteira num lugar especial, onde podia passar
despercebido. No “Siata”, com as luzes apagadas agora,
Brigitte e Maurizio seguiam o brilho metálico que as
estrelas provocavam no carro de Spercola, também às
escuras, mas obstinados como se conhecessem
perfeitamente a trilha agreste que haviam tomado.
Quilômetros adiante, Maurizio deteve o “Siata”:
— Pararam — disse. — Parece uma fazenda.
— Acho que não se trata de fazenda — ajuntou Brigitte,
descendo. — Aposto que não é mais que a “Locanda
Pietro”. Tenho uma carteirinha de fósforos, numa indicação
segura de um companheiro... assassinado.
Maurizio também saiu, acotovelou-se no capô, ficando a
estudar-lhe o rosto iluminado apenas pelas estrelas:
— E agora?
Brigitte pareceu despertar, como se tivesse estado
calculando:
— Poderá voltar a Roma... ou ajudar-me.
— Ajudar em quê?
— Não sei ainda. Mas seria melhor que levasse a
navalha, caro mio.
— Se me chama caro mio, não posso deixar de auxiliá-la
— Maurizio sorria matreiramente. — Farei qualquer coisa
por você.
Encaminhou-se até à porta, estirou o braço; apareceu
uma navalha em suas mãos. O rapaz abriu-a, verificou a
lâmina:
— Ainda corta — disse, brincalhão.
Ela aproximou-se, beijando-o:
— E naturalmente sabe manejá-la — sugeriu.
— O suficiente, espero, para salvá-la de algum aperto —
respondeu Maurizio, como se estivesse nas nuvens.
— Muito bem, caro mio. Vamos?
Retirou a arma do decote, encaminhando-se para a
construção, onde uma luz fraca iluminava uma janela.
Maurizio ia atrás, vigilante.
A quinhentos metros, entre as árvores, divisava-se o
automóvel branco, estacionado nos fundos da enorme casa.
Brigitte, acompanhada sempre de perto pelo rapaz,
encaminhou-se até à parte dianteira da construção, onde não
havia luzes. Aproximando-se, verificou a exatidão do que
supusera: uma placa revelava o nome “Locanda Pietro”.
Young Jones chegara até ali; mas a quem seguir? O que ela
sabia era ter isso custado a vida ao agente.
Debaixo de uma grande árvore, Brigitte viu outro carro,
luxuoso. Cuidadosa, aproximou-se. O automóvel era de San
Marino e tinha matrícula oficial.
— Baracca — murmurou para si mesma. — Renato
Baracca está aqui.
Pegou Maurizio pela mão, e ambos se aproximaram da
casa deslizando rente à parede de pedras. Lá dentro estariam
quatro inimigos, no mínimo. Que tramavam? Para que
tivessem matado Young Jones, o assunto devia ser
importante. O pobre morto com certeza descobrira algo, ali,
sobre Spercola; por isso pedira que o auxiliar solicitado se
hospedasse no “Cavalier’, onde estava Giovanni Spercola.
Os dois que haviam tomado o “Alfa” nos arredores de
Roma deviam ser o mesmos dos quais John Pearson a
livrara, na Via Margutta.
Chegaram à porta sob a qual uma réstia de luz
transparecia. Brigitte aproximou-se bastante, ouvindo vozes
em italiano. Não conseguia, entretanto, entender de que
falavam, lá dentro.
De repente, uma voz sinistramente irônica se fez ouvir:
— Está-se divertindo, senhorita Montfort?
Ao mesmo tempo, um golpe rápido em seu braço a fazia
soltar a pistola. Maurizio, também surpreendido, foi atirado
contra a parede. Aturdido, amparou-se em Brigitte. E
quando pôde ver o que se passava, encontrou-se
enfrentando duas pistolas de bom calibre.
Quase ao mesmo tempo, Spercola perguntava, de dentro:
— Pegou-os, Karavitch?
— Cafram como dois pombinhos — respondeu um dos
atacantes.
Abriram a porta, empurrando o casal para dentro.
Brigitte, passado o susto, recuperava em segundos o
sangue-frio. Entrando sem hesitar, encarou Spercola que,
entre Renato Baracca e um outro, soma malévolo para ela.
— Veio escrever seu artigo sobre San Marino,
senhorita? — indagou Baracca, sorrindo.
Em lugar de responder, Brigitte desviou os olhos para o
outro amigo de Spercola. Era um brutamontes barbudo, que
parecia devorá-la com os olhos. Vestia roupas rústicas, de
montanhês.
— Vá fechar a porta, Pietro — ordenou Spercola ao
gigante meio gordo.
Estavam num grande armazém cheio de caixotes, pneus,
garrafas... um sortimento bastante heterogêneo, O ar se
impregnava de cheiros diversos, desde o do esterco ao do
vinho.
Que lugar para ser apanhada numa armadilha! Spercola
deu dois passos, plantando-se diante dela com os braços
cruzados, senhor de si e de tudo;
— Não terá de que se queixar, amorzinho — disse.
— Fiz tudo para que me pudesse seguir. Devia ter
arranjado um carro melhor, pois meu “Alfa” estava sempre
pedindo maior velocidade. Mas soube conservá-lo
discretamente nos noventa quilômetros.
CAPÍTULO NONO
Os russos ficam vermelhos

Brigitte compreendeu naquele instante que suas ações


eram totalmente conhecidas de Spercola... era ele o alvo
visado por Young Jones, quando indicara o “Hotel
Cavalieri Hilton” como alojamento do auxiliar que pedira.
Quem quer que fosse enviado por Pitzer, seria logo avisado
por Jones; mas Jones não tivera tempo de avisar ninguém,
pois Spercola e os dois comparsas o liquidaram antes disso.
E aqueles dois desconhecidos eram os mesmos que a
haviam atacado quando fora buscar o cadáver do agente
assassinado. Logicamente, desde que ela, pela primeira vez,
estivera na Via Margutta o galante Spercola sabia de suas
funções verdadeiras, em Roma.
E ah estava ele agora, não mais como um cavalheiro
conversador e brilhante, mas na sua verdadeira
personalidade: a de um espião implacável... um inimigo
feroz. Aproximou-se mais, fixando os olhos nos dela: a
admiração por sua beleza cedera lugar, naquelas pupilas, à
ferocidade:
— Lamento, Brigitte, mas as bobagens tiveram um fim.
E sua direita ergueu-se. A bofetada fez com que Brigitte
rodopiasse, indo cair sobre a mesa rústica, ao centro do
armazém. Logo voltava Spercola, agarrando-a pelo braço,
aplicando-lhe rudes golpes com as costas das mãos que
naquela mesma noite a haviam acariciado.
Os olhos da moça encheram-se de lágrimas, mas de sua
boca não se ouviu uma queixa sequer.
— Pensou ser esperta, caríssima? — escarneceu ele.
— Mas não é a única pessoa inteligente no mundo. Por
que acha que a deixei seguir-me?
Brigitte passou a língua nos lábios, olhando para
Maurizio. O rapaz, que fizera um movimento para intervir,
fora atirado ao chão pelos dois homens de guarda.
Nada havia para ajudá-la, em redor; ninguém.
Baracca a olhava, malignamente, sorridente. O enorme
Pietro mostrava um sádico sorriso entre as barbas ruivas,
parecendo um abutre que esperasse algum cadáver.
— Vou contar-lhe tudo, queridinha — prosseguiu
Spercola. — Podia havê-la matado quando quisesse, em
Roma. Isso não me convinha, entretanto. Queria algo mais.
Algo que poderá aparecer hoje, amanhã, qualquer dia, mas
haverá de aparecer: seu amigo, ou seus amigos! De você, só
quero saber o que foi feito do cadáver de Young Jones.
Responda já: que fizeram dele?
— Não o vi — resmungou Brigitte.
— Muito bem, já esperava isso. Você não o viu mas seus
amigos não lhe disseram onde está?
— Não tenho amigos aqui — retrucou ela.
— Espera que acredite? — o sorriso dele prometia novas
sevícias. — Não me faça perder a paciência, Brigitte
Montfort! Quem foi que você mandou seguir-me até Ostia?
Quero o nome imediatamente!
Então Brigitte viu nascer uma esperança em si mesma.
As próprias palavras de Spercola acenderam essa tênue
esperança: “Fantasma” Pearson! Ele não a abandonara!
Spercola, no entanto, ria sadicamente, tomando a falar:
— Está pensando no amigo, queridinha? Pois saiba que
se acha agora no fundo do mar, em Ostia... morto!
Brigitte estremeceu:
— Então... por que deseja saber seu nome?
— Temos nossas razões: precisamos saber quem
desaparece, não acha? Além disso, deverá haver outros. E
temos alguns nomes que se ligarão facilmente. Por
exemplo: um pode ter vindo de Paris, outro de Estocolmo, e
assim por diante. Então saberemos a quem procurar. E você
nos ajudará nisso, não é, queridinha?
— Só isso, Giovanni? — perguntou, ficando ereta e
encarando-o firmemente.
— Não. Não é só, minha cara. Desejo também saber o
que vocês descobriram sobre nosso trabalho. Por isso você
está viva... ainda.
— Só isso, Giovanni? — agora ela sorria ironicamente,
desafiadora. — Não deseja um palácio na Lua também?
Spercola atingiu o auge da fúria. Aproximou-se
lentamente, esbofeteando-a com mais violência do que
antes.
Karavitch e Likof impediam Maurizio, que fazia
esforços para intervir. E Spercola voltou-se para o rapaz,
esmurrando-o, enquanto os dois comparsas o seguravam.
Bateu com força, e Maurizio deixou pender a cabeça ao
primeiro soco.
Depois, voltou-se para os outros:
— Levem-nos ao porão. Decidiremos mais tarde o que
fazer.
Karavitch, o mais forte, abaixou-se com esforço, pois o
ferimento recebido de Brigitte na Via Margutta ainda o
molestava. Arrastou o estonteado Maurizio para uma porta,
enquanto Likof empurrava a moça naquela mesma direção.
O porão era nada menos do que uma cela úmida. de
aspecto sórdido, com sujeira antiqüíssima. A direita, pesada
portinhola, de cadeado, dava para o exterior. Havia palha e
pedaços de madeira pelo chão, tudo cheirando a mofo e
esterco.
Descendo pela escada de pedra, Karavitch levou
Maurizio até um canto oposto — voltou a subir, enquanto
Likof sentava-se no último degrau, acima, colocando a
lanterna de lado. O foco, desviado dos prisioneiros, deixava
estes numa semi-obscuridade.
Brigitte abaixou-se ao lado de Maurizio, que despertava:
— Está melhor? Pode falar?
O rapaz passou a mão pelo estômago, fazendo uma
careta e sacudindo com força a cabeça:
— Acho que nada se quebrou — disse. — Então era
mesmo verdade, hem?
— Sim, e não há mais remédio. Lamento havê-lo metido
nisso. Não tive tempo de apelar para meus amigos.
De repente, ele encolheu a perna, levando a mão à meia:
— Minha navalha! — sussurrou. — Ainda a tenho
comigo!
— Não adianta possuir uma navalha nessas ocasiões —
replicou Brigitte.
Falavam baixo, mas Likof, no alto da escada, encostado
à porta que deixara entreaberta, não lhes dava importância,
parecendo seguro de si. Além disso, entre as bandas do seu
paletó aberto, sob a cinta, havia uma pistola de bom calibre,
que desencorajaria qualquer tentativa de fuga dos dois.
— Espere, acho que temos uma solução! — murmurou
Brigitte, depois de um momento.
Havia apoiado as mãos sobre as palhas meio apodrecidas
do chão, e tocara um objeto, que apanhou às ocultas de
Likof.
Maurizio examinou o objeto com os dedos, sem deixar
de olhar para Likof, num despistamento.
Pegando por uma ponta, forçou a outra contra o chão,
verificando estar em bom estado o pedaço de madeira:
— Pode ser uma solução, Brigitte — disse, quase
sorrindo.
***
Enquanto isso, lá em cima, Renato Baracca abria uma
valise negra, olhando para o conteúdo:
— Hum! — resmungou, sorridente. — Que beleza de
tesouro!
— Pode contá-lo — disse Ivan Molkova. — Aí estão,
exatos, os vinte milhões. Conte-os. Não temos pressa.
Baracca assim fez. Retirou os maços de notas passando
alguns minutos a verificar a exatidão da soma.
— Tudo certo, Spercola — confirmou depois.
— Muito bem, amigo — suspirou Ivan Molkova. —
Esperamos que não se esqueça de tudo, quando estiver no
poder. A partir de sua posse, mandaremos nós em San
Marino. Alguma dúvida?
— Absolutamente. Serei a fachada, farei o que
mandarem — replicou Baracca, todo sorrisos. — Só espero
que não me dêem muito trabalho, pois necessitarei de férias
freqüentes para gozar o que me proporcionam.
Sob a aprovação tácita do sério Karavitch, Molkova e
Renato Baracca deram-se palmadinhas nas costas:
— Quanto aos chefes dos congressos, “camarada”
Baracca, teremos seguramente três deles conosco —
Molkova acendeu um cigarro, satisfeito. — Cremos que
daqui a mês e meio poderemos vê-lo investido no poder.
Um dos chefes de congresso será seu companheiro no poder
executivo. Providenciaremos a eleição dele. E logo esta
república será o centro de nossa atividade na Europa
Ocidental. Daqui partirão e para aqui convergirão todas as
nossas forças ocultas. Conservar-se-á, entretanto, a
aparência de sempre, cm seu país: haverá paz, serenidade...
nada mudará, aparentemente — apoiou a direita sobre o
ombro do homem que comprara com vinte milhões de
dólares: — A eficiência de nossos agentes será dobrada. A
situação política da Europa Ocidental, sofrerá profundas
mudanças, a nosso favor.
— E a nós caberá a doutrinação do povo, aqui, sem
alarde, a longo prazo — completou Baracca. —
Perfeitamente compreendido, senhor Spercola. Mas...
acredita mesmo que somente com San Marino
conseguiremos nosso objetivo?
Molkova olhou para Karavitch. Este fez que sim,
sorrindo brevemente. Então o primeiro respondeu:
— De início, será San Marino, camarada Baracca. Há
outros pequenos países da Europa que estão e condições
de... fácil absorção, digamos. Verá daqui a poucos,
pouquíssimos anos. Já não precisamos te segredos entre
nós, amigo, outros governos será “trabalhados” em breve.
Quanto ao dinheiro, deu-nos trabalho recolhê-lo. Tome
cuidado em não dar muito na vista. Há bancos seguros,
onde nossos inimigos não descobrirão seus depósitos.
***
No porão, Brigitte deslizava lentamente, centímetro a
centímetro, afastando-se de Maurizio. Tinha-lhe dado o
isqueiro, combinando uma armadilha para Likof;
introduzira o pedaço de madeira sob a palha do chão,
empurrando-o assim à medida que se movimentava colada à
parede.
Quando ficou a dois metros da escada de lado, fez um
sinal e Maurizio acendeu o isqueiro.
Likof, que estivera interessado em ouvir o que falavam
os companheiros do armazém, voltou-se rápido:
— Que está fazendo? — inquiriu.
No mesmo instante se erguia, descendo a escada o foco
da lanterna iluminando o rosto de Maurizio que, de olhos
fechados, tirava uma tragada de um cigarro.
— Apague isso! — ordenou Likof, já no último degrau.
Voltou, por um instante a luz em direção de Brigitte:
— Você, não se mova! — e apontava a pistola munida
de silenciador.
Tornou para Maurizio, que parecia não tê-lo ouvido. Em
lugar de novas ordens, Likof deu três passos, vibrando um
pontapé no sapato do rapaz, que conservava os olhos
fechados, distante.
— Não Ouviu? Apague isso! — exasperou-se o homem.
No momento em que, esquecendo Brigitte, pela raiva,
Likof se inclinava ligeiramente para golpear a mão de
Maurizio, obrigando-o a soltar o cigarro, sentiu que a
cabeça se lhe partia em pedaços. Brilharam clarões ante
seus olhos. A um segundo estrondo no cérebro, Likof caiu
pesadamente.
Brigitte atirou ao chão a madeira com que,
inesperadamente, golpeara o inimigo. Apanhou a arma e a
lanterna, trêmula ainda.
— É ver para crer! — exclamou Maurizio, em voz
baixa.
— Questão de treino, filhinho — respondeu Brigitte.
— Vamos, fique ao lado da escada! Esconda-se! Os
outros não demoram.
No armazém, entretanto, nenhum dos outros percebera
os ruídos do porão. Trocavam idéias, falando dos “novos
caminhos políticos da Europa”, com San Marino como uma
perfeita base avançada de operações.
Brigitte subiu três degraus, deitou-se ao comprido sobre
os outros, de modo que sua bela cabeça ficasse junto à
porta, rente ao chão do armazém. Ouviu-os conversando, e
certificou-se de que estavam, ela e Maurizio, despercebidos.
— O que há? — perguntou o rapaz, de pé ao lado da
escada.
— Tudo bem — respondeu ela. — Experimente abrir a
portinhola de saída, enquanto vigio. Tome a lanterna.
Maurizio obedeceu. Tendo examinado a portinhola, à luz
da lanterna, forçou-a cuidadosamente. A madeira pesada
cedeu com um leve guincho.
Ele voltou:
— Vamos! O caminho está livre.
Arrastaram-se para fora, ocultando-se atrás de uns
arbustos do jardim abandonado, sob a luz da lua que já
alcançava o horizonte.
— Vá para o carro, Maurizio — ordenou Brigitte. —
Tenho algo a fazer — e ela verificava o encaixe do
silenciador da pistola. — Pode levar a lanterna: avarie o
carro de Baracca. Rápido! Sabe fazê-lo, não?
— Está louca, Brigitte? Vamos buscar seus amigos de
Roma! Agora já sabem a quem devem combater —
ponderou Maurizio.
Brigitte entretanto, empurrou-o, levantando-se:
— Faça logo o que disse, caríssimo!
Maurizio, agachado, deslizou até o “Cadillac” de
Baracca, enquanto ela própria se dirigia para o lado oposto,
para os fundos, onde se achavam os conspiradores.
Brigitte achegou-se à porta, colocando-se ao lado.
Abaixou-se um pouco, verificando que estava destravada. E
então, num de seus repentes de valentia insopitável,
resolveu-se: moveu rapidamente o trinco, escancarando a
porta.
CAPITULO DÉCIMO
Bombons que valem milhões

— Quietos! — soou a voz feminina, nos ouvidos dos


quatro homens, quando a porta se abriu violentamente.
Atônitos, voltaram-se, procurando vencer a emergência.
Karavitch, no instante seguinte, sacava da arma. Não
teve tempo de usá-la, entretanto, pois uma bala silenciosa
varou-lhe o coração. Saltou para trás, levando a cadeira no
tranco, ficando sobre o assento mas com as costas no solo,
repentinamente imóvel, os olhos esgazeados.
Spercola, Baracca e o gigantesco Pietro permaneceram
na mais absoluta imobilidade, ante o que ocorrera ao
comparsa.
Friamente, Brigitte moveu a pistola para um canto:
— Por favor, senhores: coloquem-se ali. Dói-me ter de
apertar o gatilho contra gente simpática.
Os três obedeceram. Ela aproximou-se da mesa, abriu a
valise e atirou umas notas sobre a mesa, sem perdê-los de
vista. Lançou uma rápida olhada ao dinheiro:
— Quanto temos aqui, amor? — perguntou a Spercola.
— Não conseguirá escapar — ele mastigou as palavras.
— Não?! E para que serve um “Alfa Romeo”, querido?
Recolocou o maço de notas no lugar, retrocedendo em
direção à porta, com a valise nas mãos:
— Espero que entendam bem: se algum de vocês
aparecer lá fora antes de dois minutos, irá cumprimentar
esse aí... onde quer que esteja agora — e indicou Karavitch.
— Vai lamentar isso, Brigitte — grunhiu Molkova, entre
dentes.
— Não seja estúpido, amorzinho — tomou a zombeteira
Brigitte. — Estou-lhe fazendo o mesmo favor que me
concedeu: deixo-o vivo para que nos conte tudo depois.
Meus amigos se encarregarão de obter as informações que
nos puderem interessar.
— Acha que irão encontrar-me na Rússia? — ironizou
Ivan.
— Sei muito bem que você não voltará para lá, meu
bem. Que iria dizer a seus chefes? Gostaria de vê-lo
contando isso, para depois ganhar um estágio na Sibéria.
Ivan Molkova empalideceu:
— Escute, Brigitte...
— Aceite a derrota, meu caro — cortou ela. — Ainda
lhe deixo a escolha: voltar à pátria ou esperar que meus
amigos o localizem, na Europa. Adeus.
Brigitte alcançou o umbral, saiu, e quando estendia a
mão para fechar a porta ouviu um ruído atrás de si. Saltou
para um lado no justo instante em que um forte estampido
se ouvia, vindo de trás de um arbusto. O corpo de Likof
resvalou em seu braço, e ele soltava o mesmo pedaço de
madeira com que fora atingido, no porão.
Sem deter-se ou pensar no que sucedia, Brigitte correu
para o canto do casarão, enquanto a porta se abria e os três
homens saíam, com Ivan Molkova à frente, todos armados.
Do mesmo arbusto partiram novos tiros. Pietro levou as
mãos ao peito, caindo para trás.
Agora ela compreendia: alguém a estava auxiliando; e
não era Maurizio, pois o rapaz não o faria por muitas
razões.
Tudo estava às escuras agora, tendo os rivais apagado a
luz do armazém antes de sair. Ivan Molkova e Renato
Baracca ocultavam-se nas sombras e só a luz das estrelas
iluminava aquele lado da casa.
De repente, na frente do casarão, um vulto se
movimentou: avançando a cabeça ao ouvir novo estampido,
Brigitte viu um homem dobrar-se, caindo junto ao
“Cadillac”. Devia ser Baracca, tentando fugir.
Passaram-se dois minutos de silêncio. Ninguém sequer
respirava. O silêncio atingia os nervos, fazendo com que
Brigitte ofegasse de excitação.
Então, a dois passos de seus pés, no lado oposto à
esquina, houve o resvalar de uma pedrinha. Mas podia ser
também o ruído de roupa arranhada nas pedras da parede.
Lentamente, apareceram, como de um leopardo na selva,
os olhos de Ivan Molkova, que deslizava para o canto da
casa. Ele atirou, de imediato, no vulto de Brigitte, agora
recortado na sombra.
Ela sentiu passar a bala rente à face, atravessando sua
cabeleira solta. Avançou mais a mão que empunhava a
pistola e atirou por sua vez. Não precisava ter cuidados com
a pontaria: bastava atirar para baixo, para o lugar onde sua
audição localizara os ruídos de antes.
Ivan Molkova gemeu, rolou sobre si mesmo, afastando-
se da parede. Debateu-se ainda por um momento, acabando
com um estertor, sob a luz das estrelas.
— Dei-lhe a oportunidade, Giovanni — falou Brigitte.
— Foi você quem quis assim.
Uma voz soou, ao lado:
— Está morto?
Brigitte voltou-se a toda a pressa; já reconhecera a voz:
o movimento repentino era apenas o reflexo da situação
passada. Suspirou longamente, olhando para o recém-
chegado:
— Era você a minha ajuda — murmurou, recobrando-se.
John “Fantasma” Pearson inclinou-se ligeiramente:
— Tive essa honra, meu amor. Tudo bem?
— Comigo, sim. Quanto aos outros, não sei.
— Vou ver — disse ele.
Inclinando-se sobre o corpo de Molkova recolheu tudo
que havia em seus bolsos. Depois foi a vez de Likof,
Karavitch e Baracca.
Enquanto Pearson se dedicava a recolher documentos e
armas, Brigitte foi até o “Alfa Romeo”. Maurizio estava ao
volante, inquieto ainda:
— Ritornamo a Roma, caro mio?(Voltamos para Roma
querido?) — indagou ela, ainda com a pistola nas mãos.
Maurizio encarou-a, estudou-lhe o lindo rosto e o sorriso
indefinido, na semi-obscuridade:
— Ma... de cuanto tempo parla italiano, Brigitte?
(Mas... desde quando fala italiano, Brigitte?)
O sorriso de Brigitte mudou levemente: e então ele
percebeu o que havia naqueles lábios. A ironia e o desprezo.
— Há algum tempo já. Um mês, precisamente — disse
ela ainda sem entrar no carro, apenas debruçada à janela, no
lado oposto ao dele a arma como que esquecida na mão.
A expressão de Maurizio mudou inteiramente. Parecia
ter percebido algo no tom das palavras. E o belo romano
abriu a navalha, entre os joelhos, às escondidas, na
obscuridade do interior do carro.
Brigitte só teve tempo de afastar-se um passo, para dar
ao gatilho. A porta ao lado de Maurizio ainda não trancada,
abriu-se violentamente, com o impulso que a bala imprimiu
a seu corpo.
Caindo, Maurizio contorceu-se no solo:
— Male... maledetta! vociferou.
Um segundo projétil o prostrou definitivamente.
Brigitte deu a volta ao carro, o rosto rígido. Abaixou-se
e apanhou a navalha.
— Foi um erro seu, caro mio — murmurou. — Devia
ter-se certificado de que eu não falava italiano.
John Pearson chegou, apressado, tendo ouvido o grito do
rapaz. Olhou para o corpo imóvel:
— E agora? — perguntou Pearson.
— Outro que quis enganar-me — disse Brigitte,
tomando fôlego. — É um deles, e Spercola o pôs a meu
lado para que me vigiasse. Tudo estava preparado para
trazer-me aqui. Spercola, ou quem seja ele, imaginou que eu
tomasse a escada, no “Cavalieri”, para segui-lo às pressas.
Desci, no entanto, por outro elevador. E foi quando a porta
do elevador se abriu que me detive, ao ouvir os dois
conversando. Não me esperavam daquele lado... e não
sabiam que eu ouvia, do elevador parado, o que falavam:
em italiano, combinavam qualquer coisa sobre a “Locanda
Pietro”. Foi fácil imaginar a trama. Aceitei-a...
— E saiu-se bem. Meus cumprimentos, Brigitte — disse
Pearson.
— Acabei de convencer-me quando ele não tomou parte
na luta, aqui. Eles deixariam que fugíssemos. Assim eu
própria os levaria até meus companheiros, que seriam
apanhados um a um. Se não conseguíssemos fugir do porão,
somente eu seria morta... e havia pistas para que meus
companheiros, que fossem mandados a verificar os fatos,
seguissem meus passos até aqui. De qualquer modo,
estavam seguros de que ninguém lhes escaparia.
John Pearson fê-la sentar-se, pois Brigitte estava exausta
pela emoção e pelo esforço feito em dominar-se durante
horas.
— Muito bem — apontou para a valise, que ela
depositava no assento. — Você já sabe do que se trata, não?
— Alguma coisa. Preciso de informações mais
completas.
— Tenho uns papéis, que encontrei no “Cadillac” —
informou Pearson. — Revelam tudo. Inclusive já estão
assinados por Baracca... em envelope destinado a um tal
Pierre Neigé, em Paris. Deve ser o cérebro que “trabalhou”
Baracca.
— Dê-mos! — exigiu Brigitte.
— Ah, Ah!— ironizou Pearson. — E que terei, então,
para levar ao MI-5? Mãos vazias? Creio que o assunto é
importante demais para que meus colegas não o saibam.
— Preciso deles! — protestou Brigitte, determinante.
— Já tem muita coisa — tomou o outro. — Ou acha que
vinte milhões de dólares é pouco?
Dizendo isso, ele se inclinava para examinar a valise,
através da porta. Um objeto branco apareceu então, de sob a
barra do suéter negra que vestia. Era um envelope grande,
volumoso. E a esquerda de Brigitte avançou rapidamente,
enquanto sua direita encostava o silenciador no peito de
John Pearson:
— Quietinho! — disse ela, vendo-o esboçar uma reação.
— Nunca pensei que fosse uma reles ladra! —exclamou
ele, atônito.
— Não o sou, meu caro. Preciso desses papéis muito
mais do que você. A você, que naturalmente já os leu,
bastará contar tudo ao MI-5. Mas, quem dos meus
acreditaria nessa história inconcebível, se eu não levasse
provas?
— Brigitte, eu a ajudei! — Pearson resistia em retirar o
meio corpo, que introduzira no carro, sob a pressão da arma
no peito. — Não pode trair-me assim!
— Deixe-me ir, querido — a voz dela era ameaçadora.
Aquele tom absoluto fez com que Pearson cedesse. Em
seu rosto, uma profunda ira se estampava agora, à luz das
estrelas.
Brigitte cerrou o vidro, antes de acionar o motor do
“Alfa Romeo”. Fez um sinal de despedida a “Mister
Ghost”, partindo.
Ele ficou plantado ali, os braços arriados, vendo afastar-
se o carro. E de repente pareceu lembrar-se de algo: correu
para umas árvores próximas e entrou na possante “Porsche”
vermelha.
***
Brigitte, alcançando a estrada, depois de atravessar a
fronteira pela mesma trilha de antes, acelerou o “Alfa”.
Não se deu, entretanto, muita pressa. Nada havia a temer
agora.
Já perto de Narni, ao passar pelo posto de gasolina, um
carro vermelho a ultrapassou. Brigitte, não reconhecendo o
motorista, que usava um chapéu de abas largas, não deu
importância ao fato.
Quilômetros adiante, entretanto sobre uma ponte, lá
estava a “Porsche” de viés, impedindo a passagem.
Brigitte deteve o “Alfa” a cem metros, buzinando.
No outro carro, não houve sinal de vida. Tomou a
buzinar, e nada. Apeando-se então, resolveu investigar de
perto; o motorista parecia ter sofrido um acidente, pela
posição em que se achava o automóvel.
Aproximou-se cuidadosa, arma em punho, e olhou para
dentro: as luzes acesas, sobre o assento estava debruçado
um homem de negro, parcialmente coberto por um chapelão
cinza.
Foi ao abrir a porta que Brigitte se lembrou das roupas
negras de Pearson. Era tarde: o inglês lhe tomava a arma,
apontando-lhe:
— E agora, Brigitte? — sorriu Pearson.
— Traição! — gaguejou.
— Na mesma moeda — replicou ele. — E trata-se
realmente de moeda: deixo-lhe os documentos mas tive
despesas, muito trabalho. Para não haver pechincha, dê-me
cinco milhões de dólares. Sei que tem vinte.
Estonteada ainda pela surpresa, Brigitte foi levada de
volta até o “Alfa Romeo” onde John Pearson se apoderou
da valise negra. Contou ele dez maços de quinhentas notas
cada um:
— Quer verificar a exatidão? — indagou, depois.
Enraivecida agora, Brigitte quis esbofeteá-lo, mas o
inglês segurou-lhe a mão, enlaçou sua cintura e a beijou
apesar da resistência:
— E ainda a quero, Brigitte — lamentou Pearson,
mantendo-a presa. — E uma pena que não trabalhemos
juntos.
Desprendeu-se, atirou para fora da ponte a pistola que
pertencera a Likof:
— Adeus, querida — disse, já a alguns passos.
Por alguns minutos, Brigitte ficou plantada no lugar,
imóvel, a vê-lo entrar na “Porsche” e arrancar velozmente.
O ruído, então, pareceu acordá-la:
— Traidor! — murmurou, entrando no “Alfa Romeo”.
Furiosamente, o “Alfa” partiu em perseguição ao outro
automóvel, que já desaparecera de vista, entre os morros.
A medida que se aproximava de Roma, a raiva de
Brigitte cedia: não vira mais a “Porsche” de Pearson; o
homem já não aparecia em sua mente como o de um traidor
odiado, mas sim como um amigo, um admirador, um
galante gentleman que parecia amá-la de verdade.
***
As oito e meia da manhã, exausta, Brigitte Montfort
entrava no “Cavalieri” saltando de um táxi, O “Alfa”, ela o
abandonara nos arredores da cidade.
Trazia, apenas uma valise negra, à qual ninguém dava
importância a não ser ela própria.
Tinha sono, cansaço, mas a imagem de John Pearson,
uma bela imagem, dançava-lhe ainda na mente.
Já em seu apartamento, banhou-se com preguiça. Após o
banho, um pouco refeita, foi retirar alguma roupa do amplo
armário e...
Brigitte quase gritou, ao deparar com um homem de
olhos vidrados, como que enroscado em si mesmo, que
rolou para fora do armário ao abrir-se a porta. Ajoelhou-se
junto ao cadáver, acariciando-lhe as faces rígidas:
— Assustou-me, companheiro — murmurou. — Sabe?
Tudo já acabou. Você não morreu em vão.
O corpo de Young Jones! E Johnny que devia recolhê-
lo? Já teria vindo ali?
Havia um pequeno papel pregado à camisa
ensangüentada de Jones. Brigitte retirou-o, ficando a olhar o
pequeno e rústico desenho feito a lápis: era uma figura sem
braços, apenas delineada, com a forma humana um tanto
desfeita. Um fantasma, ou a figura com que se representam
fantasmas, tendo como sinais apenas os dos olhos.
— Como pôde trazê-lo?! — exclamou ela. — Como
pôde “Fantasma”?
Olhou ao redor, apanhou um lençol da cama e cobriu o
corpo de Jones.
— Bem — murmurou — Já não importa como. De
qualquer maneira, obrigado, meu amigo.
Pouco depois, retirou uma caixa do armário, ajeitou nela
os maços de notas, embrulhou tudo com papel colorido
como se embrulham presentes, misturou ainda alguns
bombons e amarrou-a com fitas vermelhas:
— Veremos se passo — murmurou. — Tomara que não
desconfiem.
***
Quando anoitecia, um empregado da lavanderia, com um
grande cesto, subiu ao apartamento de Brigitte Montfort.
Quinze minutos depois, o homem uniformizado, trazendo o
nome da lavanderia nas costas, saiu do apartamento,
descendo com seu cesto pelo elevador de serviço. E dentro
do cesto ia o corpo de Young Jones, levado pelo homem de
rosto pétreo, um tanto triste... um companheiro e amigo
compadecido.
Passada meia hora, Brigitte chamou os empregados do
hotel, para que viessem buscar suas malas. No aeroporto,
abriu um canto do embrulho-presente, retirou um bombom
e mordeu-o com gosto, enquanto examinavam sua
bagagem. Não teve problemas com a “caixa de bombons”.
E cinco minutos mais tarde, o superjato se elevava das
pistas do “Fiumicino”:
— Adeus, “Fantasma” — sussurrou, olhando as luzes
longínquas.
O cavalheiro que estava ao seu lado notou a tristeza de
seu rosto:
— Algum problema, senhorita?
— Estou apenas triste, senhor...
— Cameron Mac Travis. às suas ordens. Vai a Nova
Iorque?
— Sim, se o piloto decidir chegar lá.
Mac Travis ficou enlevado com o sorriso que lhe
concedeu Brigitte:
— Tudo isso são bombons, senhorita?...
— Brigitte... Brigitte Montfort, senhor Mac Travis. Sim,
são bombons; era um presente para tio Charlie... e veja só:
não resisto à vontade de comer alguns. Para mim, são tão
deliciosos que valem milhões de dólares.
Cameron Mac Travis riu gostosamente, batendo ambas
as mãos nos joelhos; tinha sorte de encontrar tal
companheira de viagem.
— Não pode ser verdade! — exclamou. — Milhões de
dólares?!
— São quinze enormes bombons — disse Brigitte rindo
também. — Valendo um milhão cada um, são quinze
milhões!
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