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© 1965 – John Pearson

Título Original: The Read Seat


Tradução de Paulo A. B. Carvalho
Capa de Benicio
Digitalizado por Carlos Natali
Revisado 530401

Publicado no Brasil pela


Editora Monterrey Ltda.
PRÓLOGO INTERESSANTE

Não vemos por que se deva começar uma história


policial, ou novela de espionagem, sem advertir o leitor dos
seus principais defeitos.
Aqui está: nós garantimos que este pequeno romance, O
TRONO ESCARLATE, traz uma série de desvantagens ao
seu público brasileiro. Primeira desvantagem: absorve tão
inteiramente a atenção de quem quer que se inicie na sua
leitura que, admitimos, prejudicar qualquer outra atividade
intelectual do paciente.
Segunda desvantagem: é tão barato (trezentos e
cinquenta cruzeiros!) que muitos se sentem tentados a
comprá-lo às dúzias para dar de presente aos amigos
interessados no mesmo gênero de literatura.
Terceira: foi escrito por um dos mais famosos detetives
ingleses da atualidade, e seus episódios são tão reais que,
depois de findo o livro, o freguês mune-se de uma
compreensível má vontade para com as outras novelas do
gênero.
Enfim, seria melhor que o nosso prezado leitor, a esta
altura, desistisse de continuar, para sua própria
tranquilidade. Mas, se não há remédio, se quer mesmo ir até
o fim, tome nota:
A novela é escrita na primeira pessoa do singular. Seu
autor, John Pearson, é aquele mesmo agente do Serviço
Secreto Inglês (Intelligence Service) que contracenou com
Brigitte Montfort no famoso caso do detonador submarino,
vivido em Marrocos, debaixo do maior suspense, durante a
novela OLHAR PARA A MORTE, recentemente editada por
esta casa.
John Pearson, mais conhecido como “Mister Fantasma”
— porque sua verdadeira identidade mantém-se em absoluto
sigilo — é um sujeito bonitão, cheio de malícia, bom no
gatilho e nas artimanhas contra mulheres sabidas, que, no
entanto, conserva em toda a linha sua tradicional polidez
britânica.
O Intelligence Service às vezes discorda dos seus
métodos pouco ortodoxos. Mas sua eficiência subverte todas
as regras do protocolo inglês, e consegue até mesmo
derreter um pouco da frieza profissional do seu chefe,
Inspetor X, mais conhecido como Senhor Arame.
Vamos ouvi-lo narrar sua última aventura. Com a
palavra, John Pearson.
CAPÍTULO PRIMEIRO
Que talvez não seja realmente o começo da história.

Era um dia tão belo, que deixei de lado a existência de


antagonismos internacionais e esqueci o mundo torvo em
que circulam os agentes secretos. Todo o “Intelligence
Service”, meus colegas de profissão me desapareceram da
mente, à luz ofuscante daquele sol primaveril.
O outono já ia avançado — estávamos quase no inverno
— mas o dia luminoso lembrava a estação oposta. Os
detratores do sol britânico deveriam ter sentido, naquela
manhã, os raios cálidos que, penetrando em meu quarto
através das vidraças corridas, tiraram-me do sono muito
cedo, como se eu estivesse estendido ao sol das praias do
Tenerife.
A ideia de pescar, aproveitando o dia magnífico, fez-me
saltar prontamente da cama. Vesti-me, pus no pulso o relógio
que constituía minha última extravagância perdulária,
apanhei o caniço e saí à rua, com a disposição de um garoto.
Meu entusiasmo esfriou no mesmo instante em que me
achei do lado de fora da porta: Apesar do sol radioso, o frio
próprio da estação era penetrante. Voltei rápido ao
aconchego do quarto aquecido e muni-me dum jaquetão de
couro. Preparado, agora, para enfrentar o frio, recuperei I o
ânimo juvenil. Retomei os planos, e dirigi-me à praia.
Mergulhado agora em pleno esporte pacífico' protegido
por um talude contra o vento gelado í enquanto o anzol
exercia sua atração enganosa, fruí as delícias da pesca
sentindo-me um sujeito plenamente realizado, mas já
fazendo conjecturas: — “Só uma falseta do destino me tira
este gosto!” Por isso, apertei os olhos e encolhi-me, ao
deparar com o carro oficial do Senhor Arame que chegava
para me tirar o sossego. ,
Este Senhor Arame é o Inspetor do “Intelligence Service”
que normalmente trabalha comigo. Sujeito quarentão,
magérrimo e altíssimo, com a aparência de um agente
funerário e a permanente expressão de quem sofre de cólicas.
Seu. humor, no entanto, pelo menos quando estamos; juntos,
não é desagradável. Seu rosto só se enrijece um pouco mais e
as pontas do seu bigode grisalho tremem ligeiramente,
quando me ouve chamá-lo assim de “senhor Arame”.
Recuei até à porta do abrigo de pesca enquanto o senhor
Arame se desenrolava para descer do carro, cuja porta o
imperturbável motorista conservava aberta.
Não era de crer-se que ele houvesse percorrido os cento e
oitenta quilômetros que nos separavam de Londres, a hora
tão matutina, para passar o dia a pescar comigo. Quando
terminou a difícil operação de sair do automóvel, o senhor
Arame voltou-se em minha direção. Naquele instante,
compreendi que teria de abandonar a pescaria.
Não houve apertar de mãos, ou sequer um aceno de
cabeça. Limitou-se a falar com a engraçada e amável secura
habitual, sem esperai respostas às perguntas.
— Seu carro está aqui? Tire-o do abrigo. Iremos juntos.
Pode preparar-se em quinze minutos? Já comecei a contá-
los.
Era inútil tentar qualquer argumento contra o senhor
Arame. Em nossa profissão, o trabalho começa quando
aparece, sem possibilidade de objeções ou dilatações de
prazo. Nada de horários burocráticos ou de semanas de cinco
dias...
Com efeito, quinze minutos depois eu arrancava
suavemente no meu Austin, levando o senhor Arame sentado
ao meu lado, em direção a Londres. O automóvel oficial que
o trouxera, seguia-nos.
— Escute, Pearson, e preste atenção — disse ele,
seríssimo — Vou contar-lhe uma história das mil-e-uma-
noites...
Sorri à ideia de Arame contar contos de fadas, absurda
como a de ver o duque de Edimburgo lecionando “ballet”.
Seria uma experiência inesquecível! Continuou:
— Kiachai, principado independente desde 1945, ao sul
da Ásia, era regido pelo marajá Kaipur, simpatizante da Grã-
Bretanha. Kaipur tinha um belo trono forrado de veludo
vermelho... Os comunistas destronaram-no, deixando trono
vazio e constituindo um governo republicano, sob a
influência russa. Kaipur e seu filho Muarí, que tinha dois
anos de idade, conseguiram fugir.
Tomei a sorrir. O relato de Arame parecia o texto de um
telegrama caro, jamais um conto de fadas. Melhor assim: eu
preciso de dados concretos para meu trabalho, e não de
fantasias orientais. Devo fixá-los na memória, e é preferível
não ter necessidade de separar o joio de trigo.
— O marajá Kaipur refugiou-se no Paquistão Dois fiéis
servidores acompanharam-no a Karachi: o primeiro ministro
Nagar e o coronel da guarda Surab. Fugiram com pouco
dinheiro. Kaipur deixou uma parte em mãos de Nagar, para
atender às necessidades do príncipe Muarí. Pôs-se a
trabalhar, vivendo sabe Deus como, tentando obter a ajuda
inglesa para reaver o trono. Pensava reunir-se a seu filho
quando a obtivesse.
Fez uma pausa e olhou-me com os cantos dos olhos, para
verificar se eu lhe prestava a atenção requerida.
— Continuamos em 1945? — perguntei-lhe.
— Sim. Kaipur pediu auxílio ao representante britânico
em Karachi. Não revelou o esconderijo de Muarí, temendo a
perseguição dos republicanos kiachaienses. O governo
britânico tinha problemas mais importantes, e não estava
muito interessado em reconquistar seu prestígio em um
principado tão insignificante. Passaram-se os meses, e a
resposta não chegou. Kaipur vivia com sobriedade, mas o
dinheiro escasseava rapidamente. Com o que lhe restava,
viajou para Londres, em companhia do coronel Surab.
— E o príncipe Muarí ficou em Karachi com o ministro
Nagar? E ainda estamos em 1945?
— Sim, às duas perguntas. Kaipur e Surab empreenderam
a viagem incógnitos, sempre a temer, algum silencioso e
traiçoeiro punhal. Em Londres, suplicaram inutilmente.
Desilusões, atrasos, negativas, incompreensões, abandono,
miséria, doença: morte do marajá.
— E o coronel Surab?
— Foi para Paris. Trabalhou vários anos como porteiro
de hotel, com seu vistoso turbante autêntico. De seis em seis
meses, escrevia uma carta ao “Foreign Office”1, reclamando
a intervenção britânica em favor do príncipe Muarí. Este
continuava em Karachi, segundo notícias que afirmava
receber de Nagar também a cada seis meses. Agora,
passemos a 1965.
— Não! — protestei. — Um momento: que acontecia em
Karachi com o ministro Nagar e o príncipe Muarí, nesse
meio tempo? Vamos por partes, se devo procurar o príncipe.
— Como sabe que...? — espantou-se comicamente meu
magérrimo amigo.

1
Ministério do Exterior Britânico. (NA)
— Supus, senhor Arame — disse-lhe — que o
“Intelligence Service” me paga bem por considerar-me
inteligente, entre outros méritos...
— Bem — gesticulou. — Vamos, pois, por partes, como
você quer.
— Que instruções Nagar recebeu do marajá?
— Zelar por Muarí. Trabalhar para seu sustento, como
um cidadão comum, educando-o como se fosse seu próprio
filho. Não lhe dizer jamais que é o herdeiro do trono de
Kiachai, a não ser que um dia o marajá ordenasse o
contrário. Se o marajá morresse, o que se deu, manter o
segredo enquanto não tivesse a certeza de recuperar o poder
real para Muarí.
— Por quê?
Porque viver modestamente seria mais aceitável para
Muarí, se ignorasse seu sangue real. Sem esperanças
concretas, era aconselhável que os inimigos políticos
desconhecessem sua existência, ou seu paradeiro.
— E os partidários do marajá?
— Sempre receberam informações secretas de que Muarí
ainda vivia, mas nunca souberam onde nem como. Uma
indiscrição poderia atrair o punhal assassino. Nós sabemos
onde está vivendo: em Karachi.
— Um milhão e duzentos mil habitantes. Fácil, não?
Bastar-me-á bater de casa em casa, até encontrá-lo...
— Inútil — negou Arame — Já tentamos isso. Em vinte
anos, Muarí e Nagar mudaram muito de aparência. Nagar,
premeditadamente, por precaução, e Muarí, porque tem
agora vinte e dois anos.
— Se ainda estiverem vivos — grunhi, ao vê-lo sorrir.
— Estão vivos, sim. Surab afirmou-o, há um mês, num
hospital de Paris onde foi encontrado moribundo, quando o
governo britânico, finalmente, resolveu procurar o príncipe.
Mas o pobre Surab estava tão enfraquecido que só pôde
responder com um movimento de cabeça à pergunta. Em
seguida, talvez pela emoção, seu estado agravou-se e caiu
em coma. Morreu ontem, e com ele nossa esperança de
outros detalhes.
— Por que o atual interesse pelo príncipe?
— Os monarquistas de Kiachai estão, agora, em
condições de recuperar o poder, se receberem nossa ajuda.
Os governantes comunistas decepcionaram a nação, que
começa a dar mostras de impaciência e de saudosismo.
— Podíamos ter ajudado Kaipur, há vinte anos. Por que
não, naquela época, e por que sim, agora?
— Petróleo. O governo atual descobriu jazidas em
Kiachai. Não estão em exploração, ainda. Restaurada a
monarquia, teremos preferência.
— Oh, o magnânimo espírito britânico! Vamos em busca
do príncipe Muarí, enfrentando os degoladores kiachaienses
a serviço do comunismo!
— E os astutos agentes franceses! — suspirou o senhor
Arame.
— Como? — assustei-me. — Que tem a França a ver
com este assunto?
— Kaipur, desenganado com os ingleses, dirigiu-se aos
franceses, certa feita. Não conseguiu nada, também. Mas
agora, ao saberem da existência de petróleo, devem ter
cheirado bons negócios...
Fiquei algum tempo pensativo. Depois, pedi:
— Bem, dê-me todas as informações que tiver.
— Já lhe dei; não tenho mais nada. Ah! Ia-me
esquecendo! Parece-me que o príncipe tem um sinal
particular. Uma cicatriz, um sinal... não me recordo. Você
encontrará nos arquivos do Foreign Office uma cópia do
registro de seu nascimento, com todos os dados pessoais.
— Ouça, senhor Arame! — disse-lhe, irritado.
— Pretende que eu ande examinando sinais ou cicatrizes
de todos os jovens de Karachi? Como quer que, com tão
fracos elementos, eu encontre um indiano na índia?
— Eu supunha, senhor John Pearson — replicou, em tom
irônico — que o “Intelligence Service” lhe paga muito bem
por considerá-lo inteligente, entre outros méritos...
Não respondi. Já percorríamos as ruas de Londres,
quando tomei a falar, mal-humorado:
— Esse assunto requer, mesmo, os serviços do melhor
agente secreto do mundo? Bastaria ao governo britânico pôr
um anúncio nos jornais de Karachi.
— Vamos por partes — brincou o senhor Arame. — Com
referência ao melhor agente do mundo, devo recordá-lo de
que, segundo você mesmo reconhece, há uma francesa que
pelo menos o iguala. E tenho mesmo a impressão de que
você foi por ela derrotado no “Caso do tele-detonador
atômico”2. “Mademoiselle Fantasma”... não é assim que a
apelidou?
Não respondi. Por sorte, “Mademoiselle Fantasma” já
tinha nome para mim: Brigitte Montfort! E corpo, e uns
deliciosos braços apaixonados... Essa descoberta, que fiz
durante o caso do detonador, constituía a única deslealdade
para com o “Intelligence Service”.
Em vez de responder, insisti:
— Que me diz da sugestão sobre o anúncio?
— Em código, Nagar não o entenderia. Às claras, os
comunistas de Kiachai ficariam de sobreaviso.
2
O leitor interessado em conhecer este caso deve procurar ler a novela “Olhar
para a Morte”, edição número 12 desta coleção. Aí aparece Brigitte Montfort, como
“Mademoiselle Fantasma”, trabalhando contra (ou com) John Pearson.
Era verdade. Devia reconhecer que o Intelligence Service
não tinha outro remédio senão recorrer a mim, saindo de
seus hábitos de poupança. O “Caso do Trono Escarlate”,
como eu já pensava intitulá-lo em minhas memórias, exigia
minha agudeza mental. A ideia de uma possível consulta aos
arquivos municipais de Karachi passou fugazmente por
minhas células cinzentas, mas abandonei-a imediatamente.
Envergonhei-me, mesmo, dessa ideia. Imaginar que
Karachi pudesse contar com um meticuloso centro de
imigração era duvidar que os contos das mil-e-uma-noites
ainda fossem uma realidade, na maior parte da Ásia.
— Não vamos ao Departamento — disse o senhor
Arame. — Enfie-se por esta rua, e vamos para o norte, a um
novo bairro que está em construção nos arredores de Yellow
Hill. Sabe onde é? Eu lhe indicarei.
Eram dez horas da manhã. O sol continuava a brilhar,
embora estivéssemos na geralmente sombria Londres. Um
dia totalmente impróprio para iniciar-se uma aventura de
espionagem, que poderia ser perigosa. Um dia para namoros
e amenidades.

O PRIMEIRO VÉU

O bairro de Yellow Hill estava quase pronto. Um


agradável conjunto de bonitos edifícios de apartamentos,
modernos e pequenos. Muito poucos estavam ocupados, já
que a maior parte ainda recebia os últimos retoques.
Pareceram-me caríssimos, pela qualidade dos materiais
empregados.
O senhor Arame mandou-me estacionar o carro diante de
um dos prédios. Ao fazê-lo, vi, pelo espelho retrovisor, que o
automóvel oficial se punha atrás do meu.
— Agrada-lhe? — perguntou Arame. — Salte! Vamos
fazer uma visita.
— Um momento! — protestei. — Bastam-me os
mistérios que me esperam em Karachi; diga-me a quem
vamos visitar, nesta casa, por favor...
— Chegou a Londres, há um mês, uma comissão de
monarquistas de Kiachai, oferecendo-nos seu recém-
descoberto petróleo, em troca de nossa ajuda, e explicando
como está bem preparado seu país para pôr o descendente de
seu marajá no trono. Apenas, não sabem como encontrar o
príncipe.
— Não serve qualquer um?
— Não. São muito severos em questão de dinastias. Sem
o verdadeiro Muarí, não poderão contar com o povo, nem
com a união da nobreza. Por isso, além de prestar-lhes
ostensiva ajuda econômica e clandestino apoio militar,
devemos ocupar-nos da busca de Muarí. Por isso, também,
procuramos o coronel Surab em Paris. Entretanto, a
comissão regressou a Kiachai, para continuar animando o
entusiasmo de seu partido. Mas prometeram enviar-nos um
antigo ministro do marajá, que conhecia muito bem o
ministro Nagar.
Olhou-me durante um bom tempo, esperando pelo meu
comentário entusiástico. Simulando conter um bocejo,
perguntei:
— E daí?
— Como? — mostrou-se indignado. — Chegou ontem o
tal ex-ministro, com sua encantadora filha. Estão alojados
neste apartamento, e suponho que lhe servirão de grande
ajuda.
— Perfeito — repliquei com sarcasmo. — Nunca me
teria ocorrido que o melhor meio de viajar discretamente
seria o de ir acompanhado por um sujeito de turbante e uma
garota vestida com um “sari” estampado...
— Viajarão separadamente — grunhiu o senhor Arame.
— Em segundo lugar — continuei — também não teria
pensado na grande ideia de percorrer Karachi com seu antigo
servidor, e submeter a interrogatório cada indiano que possa
ter qualquer semelhança com Nagar.
— Ele será seu assessor; não um investigador.
— Terceiro: com efeito, nada mais prático para um
agente secreto do que confiar no primeiro indivíduo que
afirme ser amigo. Se não me cravar uma faca nas costelas, é
sinal de que tudo estará em ordem.
— Esse homem trouxe credenciais assinadas pelos
membros da comissão que esteve em Londres. E sua filha
ficará aqui até sua volta.
— Por favor, senhor Arame! — suspirei. — O
Intelligence Service encarrega-me de um assunto; eu o
cumpro a meu modo.
— Está bem! — mostrou-se aborrecido. — Vou-me! Faça
o que quiser!
Abriu a porta do carro. Resignei-me à sua vontade.
— Espere. Vejamos esse homem. Se for um impostor, a
responsabilidade será sua e a punhalada para mim... Mas, por
favor, não me apresente como agente secreto. Já é bastante
arriscado que você o saiba.
Bufou, e saltou fora do carro, seguido por mim
Atravessamos o portão de tela, percorremos a avenida do
jardim e subimos a um terraço de azulejos. Arame apertou o
botão da campainha.
O radiante sol quase fazia as capas transformarem-se em
estorvo. Enquanto aguardávamos, despi a minha e a pus ao
ombro. Ao soar o primeiro toque, uma melodiosa voz
feminina desceu até nós, de uma janela do andar superior.
— Um momento! Já vou!
Ouvimos seus saltos repicarem na escada. A porta abriu-
se. Era uma dessas garotas que podem arrastar-nos para a
morte com um requebrar de cadeiras, com um sorriso ou um
piscar de olhos. Qualquer pessoa que não seja um espião
experimentado como eu, naturalmente. Eu me arrisco
somente pelos atrativos de Brigitte Montfort, e, ainda assim,
sem perder a cabeça.
A jovem usava sapatos de saltos muito altos, saia
vermelha e jaqueta branca de linha, na qual ressaltava, do
lado direito, pequeno broche na forma de um dragão. Nada
de túnicas ou argolas nas orelhas. O cabelo negro e liso,
penteado com simplicidade e preso em “rabo-de-cavalo”.
Nariz bonito, conquanto um pouco chato e arfante, enormes
olhos negros, lábios carnudos e ligeiramente grandes. Pele
cor de azeitona e corpo estonteante. Vinte e cinco anos, cem
mil pecados...
Para refazer-me da surpresa, e para certificar- me de que
estava apresentável, afastei o olhar daquela escultura e fixei-
o no enorme espelho situado na parede oposta, diante da
porta. É Consolador para um homem, ante uma garota assim,
comprovar que tem possibilidade de não passar
despercebido.
Minha aparência era correta. Costumo andar sempre bem
vestido, quando o trabalho permite. Tenho orgulho — por
que não confessar? — de meus olhos verdes, do meu rosto
moreno, sempre tostado de sol, dos meus cabelos louro
escuros, da minha estatura elevada. Bem... devo, antes,
avisar aos que não me conhecem que não sou vaidoso; estou
apenas aproveitando a ocasião para descrever-me. Brigitte
Montfort já o terá feito com mais detalhes em suas
memórias3.
— A senhorita Sawai — apresentou Arame — O senhor
Pearson, jornalista e meu amigo.
— Querem ter a bondade de entrar? — convidou Sawai
com sua voz melodiosa e um leve aceno de sua pequena mão
morena.
Entramos no vestíbulo luxuosamente mobilado. O senhor
Arame julgou conveniente aduzir uma explicação.
— O senhor Pearson quer fazer uma reportagem sobre
essa história do príncipe Muarí. Ele é de toda a confiança, é
claro, e não publicará uma palavra antes de termos
solucionado o caso. Mas é um tema tentador para um
jornalista. Nossos agentes, por outro lado, trabalharão
sozinhos, de modo que seu pai poderá ajudar o senhor
Pearson na reportagem. Seria sensacional, se um jornalista
encontrasse Sua Alteza.
Continuou com asneiras semelhantes, até que meu olhar
fixo e penetrante induziu-a a calar-se. Nem mesmo a cândida
Sawai poderia acreditar naquelas mentiras. Ela o escutava,
mostrando em seus olhos uma cortês compreensão. Houve
uma pausa embaraçosa, que cortei com um sorriso, enquanto
Arame cofiava o bigode.
— Bem... — disse eu — Quem sabe, seria melhor
contarmos tudo isso a seu pai? Podemos vê-lo?
— Oh, sim! Claro! — disse ela, alegremente.
— Está no terraço; acabava de pedir-me um pouco de
chá, e eu subira em busca das pílulas que costuma tomar com
o chá, quando os senhores chegaram.

3
Novamente a novela “Olhar para a Morte”, volume 12, já disponibilizada. (NR)
Mostrou um frasquinho de cápsulas verdes, ajuntando em
tom de graciosa simpatia, ao mesmo tempo em que nos
convidava, com um gesto, a passar para a sala contígua:
— Os senhores estão convidados. Ao chá, não às
pílulas...
Havia uma ampla porta envidraçada em uma parede da
salinha aonde nos conduzira. Através dela via-se uma parte
do terraço, que devia prolongar-se por toda a largura da
fachada anterior da casa. O sol atingia-a em cheio, e pareceu-
me um magnífico lugar para tomar-se um pouco de luz ao ar
livre, em uma cadeira de balanço. Mas o pai de Sawai não
estava à vista.
A jovem assomou ao terraço e, com seu ciciante inglês,
chamou o pai, olhando de um lado para o outro. Não houve
resposta. Sawai voltou um rosto sorridente para nós, dizendo
em tom maroto:
— Caiu no sono. Venham, vamos acordá-lo: quero que
sejam testemunhas, pois diz que as preocupações não lhe
permitem dormir. Mas o certo é que adormece em qualquer
lugar e a qualquer hora...
Saímos ao terraço. No outro extremo, estendido em um
divã, meio de costas para nós, havia um homem barbudo,
vestido à europeia com um grosso jaquetão. Acercamo-nos,
devagar, seguindo os requebros da jovem. O barbudo
conservava-se imóvel.
Imóvel demais, e com os olhos abertos.
Fui eu o primeiro a ver o cabo da faca cravada em seu
peito.
— Espere, Sawai! — gritei.
Era tarde. A moça havia parado, com os olhos
arregalados de horror, levando as mãos crispa- das à boca,
tentando conter um grito rouco que lhe escapava da garganta.
Rodeei-lhe os ombros com os braços, e ela encolheu-se,
trêmula, contra meu peito. Não gritou. Começou,
repentinamente, a sacudir-se, deixando escapar do fundo de
seu coração um pranto amargo e silencioso. Seus lábios
murmuravam palavras ininteligíveis em um idioma
desconhecido. Julguei que seria sua língua natal, que para
mim era incompreensível.
O senhor Arame estava tão aturdido como desconsolado.
Quando reagiu, acercou-se do morto, para comprovar que
nada havia a fazer, o que para mim fora evidente desde o
primeiro momento.
Arame olhou em redor e percebeu o que eu já havia visto:
uma árvore baixa e copada, em cujos ramos qualquer pessoa
poderia esconder-se, e donde um arremessador de facas
poderia lançar comodamente seu afiado raio mortal contra o
peito do barbudo pai de Sawai. A posição era favorável e a
distância tão curta, que o arremesso silencioso seria infalível.
Eu não pensara apenas nisso. Tinha ido muito mais
adiante no meu raciocínio. Por exemplo: os republicanos
kiachaienses estavam muito bem informados. Por exemplo:
seus métodos eram perfeitamente eficientes. Por exemplo:
sem dúvida, o barbudo estivera em condições de achar, com
nossa ajuda, o príncipe Muarí...
E diversas coisas, mais: os assassinos nos teriam visto
chegar, e até mesmo fotografado com teleobjetiva. De
qualquer modo, Karachi estaria coalhada de kiachaienses
inimigos, à espera de um agente inglês; se alguém, amigo
sem as devidas precauções, ou inimigo, descobrisse Nagar, e,
consequentemente, Muarí, antes de mim, o ministro e o
príncipe receberiam dose igual à que o barbudo nos
apresentava...
— Foi há poucos instantes — disse o senhor Arame, que
estivera a examinar detidamente o morto. — Talvez há
menos de cinco minutos.
Era uma notícia velha, para minhas deduções já muito
adiantadas. O homem devia ter sido morto entre o momento
em que a filha subia em busca das pílulas e o de nossa saída
do carro, ante a porta do jardim. Haviam-no feito naquele
instante, precisamente devido à nossa chegada, para que não
pudesse falar conosco.
Assassinos, no plural, porque haveria indubitavelmente
dois, pelo menos: um, vigiando a caça pelo terraço e janelas
da fachada posterior, oculto na frondosa copa da árvore, e
outro, afastado da casa, na parte fronteira. Este último teria
dado ao da árvore o aviso de nossa chegada, à aproximação
dos automóveis.
Praguejei contra Arame, por aquele descuido. Não
deveríamos ter vindo à casa do barbudo tão às claras. Nós
mesmos havíamos provocado sua morte, porque...
Meu cérebro trabalhava com tanta pressa, que falhou
naquele ponto. Uma ideia cruzou tão rapidamente minha
massa cinzenta, que não pude fixá-la. Não lhe senti mais do
que a sombra, que me deixou inquieto, sabendo, apenas, que
se baseava em algum trecho da complicada história que
Arame relatara.
Desisti do intento, pois a oportunidade não era propícia
ao raciocínio puro. A pobre Sawai, repentinamente,
desprendeu-se de meus braços, correndo para o corpo do pai.
Abraçou-o, chorando convulsivamente, agora com leves
gritinhos de desespero, e amarfanhando as roupas do morto
com os dedos crispados.
Tentei afastá-la, sob o olhar estupefato de Arame. Ela se
agarrava com todas as forças, mas acabou cedendo. Foi um
alívio: desmaiara.
Levantei-a nos braços e levei-a para a salinha por onde
passáramos momentos antes. Depositei a bela escultura
oriental num divã. Estava pálida, mas não perdera o encanto
de antes. Olhei-a, embevecido, e vi então uma mancha
vermelha na brancura de sua jaqueta, sobre o peito, perto do
ombro direito. Percebi que o alfinete do broche cravara-se
quase por completo em suas carnes, naquele ponto, sem
dúvida por haver-se aberto quando se debatia.
Tirei-o, descobri seu ombro e enxuguei com o lenço o
sangue que manava do ferimento. Ela não se moveu. Estava
extraordinariamente atraente, com o ombro nu, um ombro
moreno, arredondado, delicioso...
— Bem, Pearson — disse o senhor Arame, da porta do
terraço, e em sua voz percebi um acre sarcasmo. — Deve
estar satisfeito. Suponho que percebeu que isso aconteceu
enquanto eu tentava convencê-lo de que o homem era de
confiança. Se alguma dúvida houver restado, pergunte ao
morto, ou a essa pobre moça. Por que não lhe finca o
alfinete, para comprovar se o desmaio é real?
— Cale-se! — repliquei com energia, voltando-me de
repente. — Se você serve realmente para alguma coisa no
Intelligence Service, tome uns dias de férias, para pensar.
Talvez chegue a descobrir os disparates que cometeu neste
caso, e como me tornou difícil a investigação. Não seja
irônico, por favor.
A sombra daquela ideia perpassou outra vez por minha
mente. Mas eu estava demasiadamente furioso para captá-la.
Na profissão que abracei, a cólera é um dos piores inimigos.
Procurei serenar-me, no que fui secundado pelo senhor
Arame, que deixou de ser irritante. Minha atitude
descontrolada o havia impressionado. Murmurem
humildemente:
— Precisamos... Precisamos chamar a Polícia.
— Sim, faça-o você mesmo, e fique com Sawai, porque
eu desapareço, agora. Não esqueça de que a verdade do caso
deve ser conservada no mais absoluto segredo. Será melhor,
também, que ponham a pequena em lugar seguro. Viajarei
amanhã, mas antes pretendo falar com ela. Se possível, esta
tarde ainda. Talvez seu pai lhe haja contado alguma vez
qualquer detalhe que nos sirva. Juro-lhe, senhor Arame, que
os sujeitos que mataram o pai desta encantadora boneca vão
pagar muito caro pelo que fizeram. Mas não dê mais passos
em falso, por favor...
Cobri o ombro de Sawai e saí para a rua, após examinar
detidamente os arredores com o olhar. Não haviam muitos
transeuntes, mas não se podia saber se algum deles era um
espião. Como poderia saber se estava sendo observado do
interior de algum dos automóveis que passavam? Como
poderia saber se havia olhos vigilantes dentro dos
apartamentos vazios ou habitados?
Pisei com força no acelerador de meu Austin, e saí
disparado. Recorri a todos os truques conhecidos, para
despistar algum eventual seguidor. Depois de dez minutos de
corrida desabalada, e de virar esquinas sobre duas rodas,
certifiquei- me de que ninguém me seguia.
Tinha a certeza. Absoluta. Os assassinos teriam
permanecido nas proximidades do apartamento, a espera de
oportunidade para eliminar também Sawai. O caso, antes de
iniciar-se no Oriente, já era um mistério em plena luz do dia,
em Londres.
CAPÍTULO SEGUNDO
Onde se pode ver que o sangue não para de jorrar.

Antes de almoçar, fiz duas coisas. A primeira, foi


comprar uma passagem aérea para as nove horas da manhã
seguinte, com destino a Paris. O senhor Arame ter-se-ia
espantado, se o soubesse, mas eu tinha meus motivos. Os
mesmos que me levaram à segunda ação: entrar em uma
cabina telefônica e pedir ligação para um número de Paris.
Respondeu-me uma voz feminina.
— A senhorita Brigitte Montfort mora aí? — perguntei.
— Sim; é de sua casa.
Tive a certeza íntima de que aquela não era a sua casa. O
amor e a intimidade entre Brigitte e eu tinham uma fronteira
de conhecimento mútuo. Só não podíamos repartir nossas
atividades profissionais, exceto naquilo que considerássemos
conveniente. Nossas residências privadas ficavam dentro dos
mútuos conhecimentos proibidos, por motivos óbvios. Só
podíamos encontrar-nos nos tortuosos caminhos do mundo.
No entanto, eu lhe havia fornecido um número de telefone de
Londres, como se fosse o de minha casa. Ela,
provavelmente, sem dizê-lo, não acreditou em sua
autenticidade. E deu-me o seu número, que, por minha vez,
não acreditei fosse verdadeiro. Era curioso, mas nenhum de
nós confiava no outro, salvo no campo sentimental. Não
poderia ser de outro modo, porque... Bem, isso é outra
história, que contarei em minhas memórias, talvez..
— Desejo falar-lhe, por favor — pedi.
— Ela não está em casa — respondeu a voz.
— Nem em Paris? — perguntei, alarmado.
— Está em Bruxelas, senhor. Não foi o senhor quem
telefonou à sua procura, há quatro dias?
Sim, havia sido eu. Por isso chamava-a, agora Quatro
dias antes, eu lhe telefonara, para convidá-la a passar comigo
minhas férias. Agora, queria saber se Brigitte poderia ir
comigo ao outro lado do mundo.
— Com efeito — falei eu, gravemente. — Mas, segundo
me disse naquele dia, a senhorita Montfort deveria ter
regressado ontem.
— E regressou, mesmo, senhor, mas tornou a viajar. Se o
senhor a conhece bem, deve saber que seu trabalho com as
casas de modas obriga-a a frequentes viagens. Estou à sua
espera, a qualquer momento, talvez esta noite, ou amanhã
Quer deixar algum recado?
Tranquilizei-me. Pelo que dizia minha interlocutora,
Brigitte não podia estar em Karachi, às voltas com meu caso
do trono escarlate.
Mas a tranquilidade foi somente relativa, pois em tal
terreno nós, os espiões, mentimos com o maior
descaramento.
— Oh, sim, por favor. Diga-lhe que seu amigo John
Pearson chegará amanhã a Paris, e se hospedará no Hotel
Jamaica. Já que irei aí, desejo cumprimentá-la, se for
possível.
— Pearson? O jornalista inglês? Mademoiselle Montfort
ficará muito contente em revê-lo, senhor.
Disso eu não duvidava, pois Brigitte, como eu, traía seu
juramento de fidelidade à pátria, quando se tratava do
coração. Esse segredo entre nós, não o revelaríamos nunca.
Para o “Deuxième Bureau”4, eu não passava de um inocente
jornalista inglês apaixonado por Brigitte, se acaso
4
Serviço Secreto francês. (NA).
pretendessem investigar minha vida privada. E para o
Intelligence Service ela seria sempre uma desenhista de
modas, apaixonada por mim.
Desejei com toda a alma poder encontrar-me com Brigitte
em Paris, no dia seguinte. Confesso que não me movia
apenas a saudade apaixonada dos seus doces lábios. A
missão que me fora confiada levava-me a passar por Paris,
mesmo que Arame não o entendesse. E minhas atividades
estariam completas, se conseguisse encontrá-la.
Talvez ela se descuidasse um pouco em seu arroubo, e
deixasse escapar algum indício sobre a atenção que os
serviços secretos franceses pudessem estar dando aos
acontecimentos político-econômicos de Kiachai.
Era muito difícil que tal ocorresse; Brigitte nunca se
descuidara, mas nada seria impossível. Além do mais, eu
gostaria de enfrentá-la mais uma vez. Seria grandemente
estimulante a disputa entre dois espiões de primeira
categoria: Brigitte Montfort e John Pearson.
À tarde, visitei os arquivos do “Foreign Office”, para
consultar a detalhada e meticulosa documentação da época
em que Kiachai estivera sob a proteção britânica. Compulsei
as referências ao nascimento do príncipe Muarí, cuja mãe
falecera ao dá-lo à luz.
O herdeiro do trono escarlate era um bebê saudável e
roliço. O único dado que as crônicas kiachaienses forneciam
era que Muarí tinha um sinal ovalado, quase negro, do
tamanho de uma lentilha, na parte superior da coxa esquerda.
No mais, nada de interesse: pernas compridas, feições
regulares e mãos grandes.
Essas características conservaram-se durante os dois anos
de principado efetivo. Mas, com esses dados, não seria
possível procurar-se um jovem em Karachi. Busquei, pois,
informações mais detalhadas sobre o ministro Nagar.
Era uma história comum. Ao ser nomeado primeiro
ministro do marajá Kaipur, tomou-se mais conhecido.
Homem astuto e ambicioso, tinha um caráter excessivamente
ríspido, mesmo cruel. Subira do nada, da pobreza. Aos vinte
e cinco anos, salvara a vida do então também jovem marajá.
Inteirei-me do fato. Nagar trabalhava numa tendinha de beira
de estrada, uma espécie de bazar. O marajá passou, a cavalo,
pela estrada, e o animal, em certo momento, tomou o freio
nos dentes. Nagar saltou ao seu pescoço, conseguindo
dominá-lo com grande risco. O marajá protegeu seu
salvador, levando-o para o palácio. Percorreu diversos
cargos, até que Kaipur nomeou-o seu vizir, seis anos antes de
nascer o príncipe.
Nagar teria seus quarenta e cinco anos, quando a
revolução comunista triunfou em Kiachai. Não cabia a
menor dúvida sobre a total dedicação e fidelidade que nutria
pelo marajá, e que comprovou no desenrolar dos
acontecimentos. O mesmo deu-se com o coronel Surab, que
arriscou a vida inúmeras vezes, enfrentando os
revolucionários. Surab morrera na pobreza, mantendo uma
ideia fixa: a de conseguir que alguma potência ocidental se
interessasse na restauração dos direitos do príncipe oculto,
que ignorava sua condição de herdeiro do trono escarlate.
Não pude averiguar nada com relação aos servidores do
palácio. Nem sequer uma descrição de Nagar; sabia-se
apenas que era gordo e um notório guloso... Tinha, também,
uma mania. Dedicava seu tempo livre a entalhar madeira.
Era um artista, de cujas mãos saíam delicadas obras em
madeiras preciosas, que presenteava a seus amigos. Muitas
famílias de Kiachai conservavam amostras de seu talento.
Havia, mesmo, enviado ao rei da Inglaterra um belo baixo-
relevo.
Depois de ler todos os informes, voltei a meu
apartamento de Londres. Os últimos dados recolhidos, se
assim pudessem ser considerados, haviam acabado por
enviar ao canto mais escuro de minha consciência aquela
ideia fugaz que eu não pudera reter ante o cadáver do
barbudo indiano. Mas ela continuava a tilintar em meus
ouvidos. No meu espírito, era como formiga metida entre as
roupas.
O telefone soou às sete horas. Era o senhor Arame, com
sua voz azeda, inutilmente amaciada para fazer-se amistosa.
— Não quer ver sua amiguinha? Já está tranquila e em
lugar seguro.
— Tem certeza?
— Absoluta. Ela também quer vê-lo. Quarto 523, hotel
Golden Ship. Vá lá e jante com ela. Não se preocupe com
meia dúzia de sujeitos estranhos que encontrará: são nossos,
para sua proteção.
Fui. O senhor Arame era incorrigível em seu afã de
construir mistérios. Praticava a espionagem à antiga.
Certamente, sentia saudades dos tempos em que as mulheres
faziam olhares lânguidos, com a mão na cintura, exalando
perfumes embriagadores, e fumando cigarros turcos ou
egípcios por uma longa piteira. Cenas que eu só conhecera
através do cinema, já ultrapassadas e gastas.
Apesar de tudo, fui ao hotel Golden Ship. Estava certo de
que terminaria percorrendo as ruas de Karachi em um
caminhão munido de alto-falante e bandeiras monarquistas
de Kiachai, incitando Nagar e Muarí a apresentarem-se.
Terminaria por...
Dei-me conta de que seguia por pensamentos
incongruentes, o que somente prejudicaria meu trabalho. O
senhor Arame surgiu, de súbito, a meu lado, quando
desembarquei do carro estacionado próximo ao hotel, e
segurou-me pelo braço.
— Ouça, Pearson — disse-me. — Vim esperá-lo porque
imagino o que você está pensando de nós e da organização.
Não sei como pôde acontecer aquilo, com o pai da jovem
Sawai. Ambos tiveram toda sorte de proteção e, no entanto...
Mas agora, mesmo que o comunismo internacional em peso
ajude os agentes republicanos kiachaienses, afirmo-lhe que
nenhum deles conseguirá descobrir onde está Sawai. Este
hotel é...
— Já sei: de toda a confiança. Que espécie de vigilância
adotou para protegê-la? Um batalhão do exército, com as
bandeiras desfraldadas e os tambores rufando?
— Que é que você teria feito?
— Colocaria um homem no vestíbulo do apartamento
fronteiro, espiando pelo olho-mágico. E controlaria o
telefone do hotel.
— Isso foi feito. Agora, suba e fale com Sawai. Não
esqueça: ela não sabe que está sendo vigiada. Preferi não lhe
dizer, para que não fique assustada.
Subi ao último andar, onde se situava o quarto de Sawai.
No elevador, minha cólera contra Arame se foi dissipando.
Pensando melhor, a culpa pelo sucedido não lhe cabia. Sua
capacidade, já a comprovara inúmeras vezes. O Intelligence
Service não poderia ter suspeitado de que o governo daquele
tão pequeno território oriental tivesse o braço tão longo.
Agora, que estávamos prevenidos, não mais falharíamos.
Todos os serviços de informação e toda a polícia britânica
estavam dedicados à busca de kiachaienses, vigiando
qualquer comunista suspeito e todos os asiáticos existentes
em Londres, ou que tivessem podido entrar cladestinamente
na cidade. Se em Karachi fosse tão fácil...
Detive-me ante o quarto 523, olhando com o canto dos
olhos para a porta fronteira. O círculo do olho-mágico estava
escuro, mas lancei uma piscadela naquela direção, antes de
bater com os nós dos dedos na porta de Sawai.
Ela abriu a porta, com um sorriso tristíssimo, grandes
olheiras, e vestindo um finíssimo “peignoir” cor de malva.
Tomou-me carinhosamente pela mão e fez-me entrar. Havia
uma sala diminuta, que comunicava, por um arco sem porta,
com o dormitório.
Permanecemos de pé, olhando-nos. Seus olhos se
umedeceram e baixou a cabeça. A ideia fugaz retiniu um
pouquinho em meu subconsciente, mas não se revelou
definida. Apenas o bastante para que eu intuísse que devia
fazer-lhe uma pergunta. Sem a ideia, entretanto, não podia
saber que pergunta haveria de ser feita.
Tinha a sensação de que aquela pergunta poderia elucidar
definitivamente um detalhe que me permitisse levar a missão
a bom termo. Sem dúvida, eu precisava de me concentrar,
poderosamente.
Sawai estava encantadora. Com um esforço enternecedor,
conseguira dar a seu rosto aquela admirável impassibilidade
oriental. Certamente, para ela, o fatalismo era um artigo de
fé. Fez-me sentar no sofá, ocupou uma poltrona diante de
mim, assegurou-me que estava bem, e que seu único desejo,
agora, seria o de castigar os inimigos de seu príncipe e os
assassinos de seu pai. Desse modo, comecei a interrogá-la.
Suas respostas eram claras e concisas. Explicou-me que
não haviam notado estarem sendo seguidos, na viagem ou
nos três dias que passaram em Londres. Só saíam do
apartamento para compras, ou algum pequeno passeio nos
arredores. Desde que a revolução triunfara em Kiachai,
tinham permanecido na própria capital de seu país, fingindo-
se de alegres cidadãos libertados da escravidão tirânica, mas
em secreto contato com o partido monarquista. Ela tinha a
mesma idade que o príncipe.
— Imagine — ajuntou, em seu gracioso inglês ciciante.
— Eu brincava com Muarí no palácio...
— Compreendo. Fale-me no príncipe. Como era ele?
Ela não pôde aduzir nenhum detalhe aos já conhecidos.
Confessou, enrubescendo levemente, que ignorava a
existência do sinal na coxa. Afirmou, entretanto, com
firmeza, que reconheceria Muarí no mesmo instante em que
o encontrasse, ainda que cem anos se passassem. Não quis
contrariá-la, embora tomasse com ceticismo sua afirmação.
Sawai e o príncipe tinham apenas dois anos, quando foram
separados pela revolução comunista... Pedi-lhe que me
falasse do vizir Nagar. O que me disse, eu já havia visto nas
fotografias do arquivo e lido no expediente respectivo.
— Um homem muito gordo, com bigode enorme e o resto
da face brilhante e bem escanhoada. Falava em voz
estentórea, e todos o temiam até o príncipe e eu. Também o
reconheceria, se tomasse a vê-lo.
Encolhi-me, desiludido. Aquela pequena não me serviria
para nada, a não ser para lhe admirar a silhueta. E eu não
tinha tempo para isso, naquele momento. De repente, ela
quedou-se, pensativa, com o indicador apertando o queixo
com o cenho franzido.
— Lembro-me, agora... — começou. E calou-se.
— Diga-o, por favor.
— Veja, senhor Pearson: como não lhe dei importância,
na ocasião, quase me esquecia esse detalhe. Foi ontem, pela
manhã. Saí ao jardim, para comprar um jornal de um
vendedor que passava. Lembro-me de que havia cerração. Vi
uma mulher que passava pela calçada. Lembro-me de que a
cerração era forte...
Sim, eu também me recordava. Cerração espessa, fria,
úmida, eram as características dos últimos dias. Só havíamos
tido um sol esplêndido naquela manhã. Segundo o boletim
meteorológico, em toda a Europa reinava há quinze dias uma
onda de frio e umidade desagradáveis. Consegui esconder
minha impaciência, e deixar que Sawai contasse suas
lembranças a seu modo.
— Como ia dizendo, só vi as costas da mulher. Era-me
tão familiar, que cheguei a assustar-me.
— Por quê? — suspirei, fechando os olhos.
— Porque... Compreendo que deve ter sido coincidência,
mas a mulher me pareceu ser Thanusa, a secretária do
Presidente de Kiachai, comunista fanática. A névoa
escondeu em seguida seu vulto. Dobrou a esquina e
desapareceu. Mas não creio que fosse Thanusa. Devo ter-me
enganado... Acha que eu devia ter contado isso à polícia?
— Deve contá-lo — respondi, interessado, finalmente,
mas procurando dissimulá-lo. — eles entendem disso mais
que nós. Eu desejo apenas uma boa reportagem para meu
jornal. Quem é Thanusa?
— Tem uns vinte e cinco anos e é morena. Seu pai
morreu lutando contra a monarquia. Dizem que foi o próprio
coronel Surab quem lhe acertou um tiro, em uma refrega. É
uma mulher perigosa. Em realidade, é ela quem dirige a
polícia comunista.
Fiquei a olhá-la fixamente, por muito tempo. Seria um
prazer o trabalho de que estava incumbido: jantar com ela.
Sawai era uma joia, seus olhos me fitavam com um
entusiasmo desvanecedor. Mas eu não bebo em serviço,
senão o necessário para cumprir a missão. Por outro lado,
não me parecia correto iniciar um capítulo amoroso com
uma garota, no mesmo dia em que seu pai fora assassinado.
Seria uma vantagem desleal aproveitar-me de sua
predisposição à ternura.
— Enfim, querida... senhorita — disse-lhe. — Eu não
tenho mais perguntas, por agora. Mas creio que queria dizer-
me alguma coisa...
— Sim — respondeu. — Queria pedir-lhe simplesmente,
que me leve com o senhor Karachi.
De início, opus-me à ideia. Posteriormente atendendo a
seus argumentos, convenci-me de que Sawai me seria mais
útil em Karachi do que em Londres. Além de seu interesse
em encontrar o príncipe e os assassinos de seu país conhecia
o idioma kiachaiense, e me serviria de intérprete. No caso de
encontrar algum possível Nagar ou Muari, a jovem poderia
resolver o problema de identificá-los. Aceitei.
— De acordo. Mas ficaremos afastados um do outro, até
que eu considere necessário o contato. Você ficará aqui, à
espera de instruções, e sem deixar-se ver por ninguém.
Suas pupilas animaram-se com melancólica alegria.
Despedi-me, desculpando-me com a necessidade de
levantar-me cedo para a viagem que ia empreender. Diante
da porta, levantou os braços e apoiou as mãos sobre meus
ombros. Sorriu, e a brancura de seus dentes fez mais
apetitosos os lábios vermelhos.
— Adeus, Pearson. Confio em você. Tenho certeza de
que encontrará o príncipe antes dos agentes inimigos ou
amigos. Verá como minha ajuda lhe será importante. Vou
dar-lhe informações que lhe farão escrever a mais bela e
apaixonante reportagem do mundo, Pearson.
— Estou certo disso, minha querida... amiga. Chame-me
John, por favor.
— Sim, John... Adeus!
Levantou-se nas pontas dos pés e beijou-me a face, muito
suavemente. Sussurrou:
— Tenho um pouquinho de medo, John. Não estarei
correndo perigo, neste hotel? Gostaria que me vigiassem.
Dormiria mais tranquila, se...
— Durma, Sawai. Você está bem protegida.
— Obrigada, John.
Seus lábios, desta vez, pousaram-se sobre os meus. Não
apertava; parecia esperar que a pressão do beijo partisse de
mim. Era uma tentação tão poderosa, que apenas a certeza de
que havia um olho a espiar-nos através do visor da porta
fronteira impediu-me de sucumbir.
Sawai afastou-se de mim, fez uma graciosa reverência e
entrou em seu quarto, fechando a porta. Ouvi o ferrolho
correr e seus passos miúdos a se afastarem para o interior do
apartamento. Então atravessei o corredor e indiquei com um
gesto ao suposto vigilante que desejava comunicar-lhe algo.
A porta não se abriu, embora o visor aparecesse negro, como
se um olho estivesse aplicado contra ele. Empurrei a porta,
que cedeu. O interior estava mergulhado na escuridão. O
vigilante teria adormecido, confiando em minha presença
junto a Sawai?
Indignado, procurei o interruptor e acendi a luz. O
homem estendido no solo era, sem dúvida, um policial. Mas
não estava adormecido: repetindo o fim trágico do pai de
Sawai, tinha um punhal cravado no peito, à altura do
coração. Ao seu lado, a pistola, que não havia conseguido
usar.
Imaginei o que sucedera: alguém suspeito chegara diante
do quarto de Sawai; o vigilante abrira a porta, com o
revólver à mão, para interpelá-lo, e... zás! Meia volta do
suspeito, um brilho de aço, e uma lâmina mergulhada
profundamente no peito do policial.
Talvez o assassino estivesse ainda dentro do quarto,
quando cheguei para visitar Sawai. Minha presença podia tê-
lo impedido de terminar sua missão criminosa. Talvez
estivesse à espreita de nova oportunidade...
Era uma péssima notícia para o senhor Arame. Outro
punhal cravava-se nele, no mais profundo de seu orgulho
profissional. Péssima notícia, sem dúvida, mas devia ser-lhe
transmitida, com a máxima urgência. Suspirando, levantei o
fone...

CAPÍTULO TERCEIRO
Para uma busca incessante, no melhor estilo inglês.

Não me importei com o mau tempo. Sob chuva ou sol, no


calor ou no frio, Paris sempre me agrada. E se a esse velho
charme de cidade que é, inegavelmente, o centro do mundo,
acrescenta-se o encanto de Brigitte Montfort... então!
Eu deixara o senhor Arame ocupado com um
complicadíssimo problema: proteger Sawai, tirá-la de
Londres com o maior sigilo, e faturá-la para mim, em
Karachi. Ela seguiria munida de documentos falsos,
disfarçada, e com instruções para que me esperasse em
determinado hotel. Foi mantida na ignorância do que
ocorrera diante do seu quarto. Não desejávamos assustá-la
mais ainda.
Eram onze horas, quando me instalei no Hotel Jamaica,
em Paris. Disseram-me que uma voz feminina havia
telefonado, perguntando por mim.
Supondo que deveria ter sido Brigitte, disquei o número
de sua casa e a mesma voz que me atendera em duas
oportunidades anteriores explicou-me:
— Ah, senhor Pearson! Quanto o sinto! Brigitte telefonou
à sua procura, mas não o encontrou. Acaba de sair. Suponho
que o procurara de outro lugar.
Azar... Ou sorte. Porque eu iniciava uma investigação, e
era preferível completá-la ante que os braços de Brigitte me
incitassem à negligência.
Fui ao hospital onde o coronel Surab morreu dias atrás.
Velho casarão oficial, diferente das clínicas modernas.
Apresentei-me com as credenciais de jornalista, a profissão
que prefiro afetar para dissimular meu verdadeiro ofício,
pois justifica perfeitamente o fato de andar metendo o nariz
nos assuntos alheios. E costuma ser recebida com simpatia
em toda parte, sobretudo quando o jornalista é estrangeiro.
Não tive dificuldade de conseguir uma audiência com o
próprio diretor. Bem informado pelo senhor Arame, pondo
toda minha simpatia nas palavras, expliquei ao complacente
médico que me escutava atrás de sua velhíssima mesa de
diretor:
— Há um mês, uns advogados de Londres vieram a Paris
e estiveram aqui. Estão encarregados de um inventário e
pensaram que talvez um doente que estava hospitalizado
neste estabelecimento pudesse resolver certas dúvidas. Creio
que se tratava de um indiano.
— Ah, sim! — o médico acenou com a cabeça. —
Lembro-me bem. Parece-me, apenas, que não era um
indiano, mas um... espere: vou pedir a sua ficha.
— Não é necessário, doutor — sorri. — Era um
kiachaiense. Mais ou menos um indiano. Para mim, todos os
habitantes do Oriente Médio e Meridional são iguais, assim
como os do Extremo Oriente são chineses...
— É verdade... — acenou, novamente, o diretor do
hospital, também sorrindo. — Acontece com todos os
ocidentais. Mas, o senhor é jornalista. Tem algum interesse
pessoal no tal testamento?
— Oh, não. Nunca entendi muito essas encrencas
jurídicas. É que um dos advogados é meu amigo e contou-
me o caso. Achei interessante o passado do indiano, que, ao
que parece, foi personagem central de acontecimentos
importantes, no passado. Coisas que não interessam aos
advogados, mas que a mim, como jornalista, interessam
muito, como material para reportagens. Por favor, posso
falar com o indiano?
— Sinto muito, senhor Pearson. Já quando seus amigos
estiveram aqui, o indiano, para usar sua expressão, não podia
pronunciar uma só palavra. E morreu anteontem, sem haver
recuperado o conhecimento.
Fingi-me decepcionado, maldizendo minha falta de sorte.
Agradeci a atenção do diretor, despedi-me, como se estivesse
de saída. Mas não cheguei até à porta.
— Mais uma coisa, doutor — pedi cortesmente,
voltando-me para ele. — Se me deixassem examinar as
coisas do morto...
— Não creio que lhe sejam de alguma utilidade.
Precisamos conservá-las, para o caso de qualquer parente
reclamá-las. Mas passe pelo escritório respectivo, onde lhe
informarão que trâmites oficiais deverá cumprir para chegar
a examiná-las. Em alguma repartição pública lhe porão mil e
um obstáculos, obrigá-lo-ão a assinar dúzias de formulários e
lhe pedirão outros tantos selos... Mas, se acha que vale a
pena...
Valesse ou não, de nenhum modo me conviria perder
tempo. Ocorreu-me uma nova ideia!
— A burocracia me desespera, doutor. Desisto... Em
troca, poderia fazer algumas perguntas a uma enfermeira que
tenha atendido esse indiano?
A solicitação foi atendida. Esperei quinze minutos em
uma salinha e por fim apareceu uma pequena bonita, de
feições inexpressivas. Olhava-me como a um deus do
Olimpo, que houvesse baixado exclusivamente para
homenageá-la. Falou em tom fútil, explicando-me que já a
haviam informado a meu respeito, e quais eram minhas
pretensões. Evidentemente, aquela garota desejava ser-me
útil em qualquer campo, pelo modo como suspirava, pela
coqueteria com que piscava ao fitar-me e pela excessiva
languidez dos requebros. Fiz o seu jogo: fingi-me seduzido.
Soube logo que seu nome era Renée, e que cuidara do
indiano durante toda a enfermidade que o matou.
Avisou-me de que dispunha de apenas alguns minutos
para responder às minhas perguntas porque estava de
plantão, e...
— O indiano escreveu alguma carta?
— Que eu saiba, escreveu apenas três, poucos dias antes
de ter o estado de saúde agravado. Ele pôs á primeira na
caixa postal do hospital, mas antes me havia pedido que
comprasse os selos necessários para enviá-la à Inglaterra.
Recebeu resposta, com selos e carimbos ingleses. Vi-o
queimando essa carta. Em seguida, escreveu as outras duas,
para as quais me pediu que lhe comprasse selos para remeter
uma à Inglaterra e a outra a uma cidade de nome esquisito,
na China, ou coisa que o valha. Também essas, ele próprio
pôs na caixa coletora.
— Sim. E depois?
— Então, piorou da doença. Seu estado era gravíssimo.
Passava quase todo o tempo inconsciente. Chegaram aqueles
advogados ingleses, mas não puderam falar-lhe. Ele lutava
contra a enfermidade, e passou dois dias um pouco melhor.
Notava-se em seus olhos o esforço que fazia. Nunca tivemos
um moribundo que se agarrasse com tanto empenho à vida.
E aconteceu o que parecia um milagre: conseguiu recuperar-
se tanto, que chegou a levantar-se. Escreveu outra carta para
essa cidade chinesa. Essa, ele mesmo ainda pôde pôr no
correio. O esforço deve ter-lhe sido fatal, pois caiu
novamente de cama, sem conhecimento. Ficou assim até à
morte.
Meditei um pouco e disse:
— Ouça, Renée. Quero que me conte mais a respeito
desse homem. O que me falou é muito interessante para a
reportagem que estou preparando. A que horas termina seu
turno de trabalho?
— Às três. Mas tenho de voltar às oito, por que estarei de
plantão esta noite.
— Ótimo! Virei buscá-la. Tomaremos café e passaremos
a tarde juntos. Podemos ir a algum lugar, onde possamos
dançar. Conheço um, muito bom. Você me falará do indiano
e eu a citarei em minha reportagem, com retrato e tudo. Que
acha?
Ficou tão entusiasmada, que quase chorou. Fui almoçar e,
do próprio restaurante, telefonei para o meu hotel. A
telefonista disse-me que eu havia sido novamente procurado
por uma mulher. Tornei a chamar o número de Brigitte e sua
amiga informou-me algo semelhante ao que me dissera pela
manhã.
Resignei-me. Em vez de passar a tarde com Brigitte,
como planejara, teria de aturar mesmo aquela bobinha
lânguida do hospital. Se ao menos o desencontro com
Brigitte cessasse à hora do jantar...
Convenci-me, pelo menos, de que Mademoiselle
Montfort não estava em Karachi, envolvida no caso do
Trono Escarlate. E se a houvessem encarregado daquele
assunto, não estaria levando qualquer vantagem, pois ainda
se encontrava em Paris. Ou não estava? E acabava de chegar
de Bruxelas. Ou não voltara? Porque não poderia ter voltado
de Karachi com tanta rapidez. Ou poderia? Só para ver-me, e
despistar-me?
Às três horas, sentado junto à vitrina de um café fronteiro
ao hospital, esperei a saída de Renée, como havíamos
combinado. Foi pontualíssima. Atravessou a rua, bem
abrigada sob um grosso casacão de lã, com a gola levantada.
Ao entrar no ambiente aquecido do café, tirou o casacão e
mostrou-se apenas com o vestido. Bem... quase poderia dizer
sem o vestido... Para demonstrar-me sua intenção de
colaborar, sem dúvida, escolhera um vestido tão curto, tão
decotado e tão justo, que, se a vitrina do café fosse quebrada
acidentalmente, ela se converteria em estátua de gelo.
Era isso: uma estátua, não uma escultura. Ela era
estupendamente bem feita, mas sem o toque artístico que a
transformaria em escultura. Faltava-lhe graça. Era isso! Mas
a arte da mentira é importantíssima, em meu ofício;
manifestei-lhe minha admiração de tal modo, que cheguei a
temer que se derretesse mesmo na hipótese de quebrar-se a
vitrina.
Perdi três quartos de hora, na mais insossa palestra de
minha vida, para não dar início ao assunto que me
interessava. Por fim, para avivar sua memória, falei-lhe de
minha profissão. Às quatro horas, consegui que perguntasse:
— Oh, John! Você não me havia pedido que lhe falasse
mais do indiano?
— Vou confessar-lhe uma coisa, Renée: estou muito
interessado na reportagem; todos os detalhes que você me
forneça me ajudarão muito, mas eu não quisera estragar esta
bela tarde ao seu lado, falando de assuntos profissionais... A
verdade, a verdade, mesmo, é que utilizei um truque, para
que você aceitasse meu convite...
Aquela tirada emocionou-a, com resultados excelentes.
— Não, John. Gostaria muito de ajudá-lo.
— O melhor é irmos dançar um pouco — propus.
— Ainda é cedo, John. Esperemos que os “dancings”
abram. Temos uma hora pela frente, para falarmos do que
lhe interessa.
— De acordo — disse eu, tornando-me subitamente sério,
colhendo seu rosto com ambas as mãos e olhando-a
firmemente nos olhos. — Mas necessito de que me
prometa...
— Prometo, John! Prometo tudo o que quiser, mesmo
que seja viajar com você para aquela cidade chinesa.
— Você verá: em minha profissão, a concorrência é
muito grande. Somos todos inimigos. Procuramos roubar,
uns dos outros, os temas das grandes reportagens. Sei que há
outros jornalistas atrás deste assunto. Se souberem que o
indiano esteve em seu hospital, virão pedir-lhe o mesmo que
eu.
— Compreendo, John. Não tenha medo, porque lhe dei
exclusividade. É isso, o que queria pedir-me? Pois tem a
minha palavra.
— Não é só, Renée. Há mais: os competidores poderão
apresentar-se, aparentando terem outra espécie de interesse.
Não se deixe enganar, e não conte nada a ninguém a respeito
do que me falou. Vou dar-lhe meu endereço; você me
informará em seguida sobre quem e como lhe perguntaram.
Está bem?
Tomou a jurar que sim. Então, continuei o interrogatório.
Meu Deus, quanto tempo perdido! Eram cinco e meia
quando terminamos. As decepcionantes informações foram
as seguintes: Surab não havia delirado em nenhuma ocasião;
um policial francês esteve tentando falar com o doente,
depois da milagrosa e curta melhora, sem resultado; esse
policial foi informado das cartas que Surab escrevera e
recebera; o mesmo policial examinou os pertences do
morto...
— Que objetos eram? — interrompi-a naquele momento.
— Pedi autorização oficial para examiná-los. Vão despachá-
la amanhã, mas gostaria que você os descrevesse.
Fui atendido. Precisei guiá-la com mil perguntas, mas as
respostas pouca ajuda traziam. Os pertences de Surab
consistiam em uma carteira com algumas notas de pequeno
valor, seu documento de identidade de porteiro de hotel, uma
maleta, um terno muito usado, roupas íntimas, um exemplar
do Alcorão em inglês, um isqueiro... O patrimônio de um
homem pobre, sem passado nem futuro.
Não recebia visitas. Não fora mais do que um enfermo de
hospital de caridade, que agonizara lentamente, só no
mundo.
Permaneci pensativo por alguns minutos. O melhor, para
mim, seria pagar a despesa, deixar Renée em qualquer lugar
com alguma desculpa e procurar novamente por Brigitte.
Mas, ao recordar-me das advertências que fizera à
enfermeira, pensei que talvez ainda precisasse de seus
serviços, no caso de surgir algum concorrente no hospital.
Pelo menos, ela me informaria, dando-me sua descrição.
Decidi, pois, resguardar a amizade de Renée.
— Fui de alguma utilidade para você, John?! —
perguntou-me, timidamente.
— Muita! — exclamei, com entusiasmo. — É de
extraordinário interesse o que você me contou.
— Então, já podemos ir dançar! — disse, contentíssima.
Fomos. Suportei durante duas horas seu belo corpo
colado ao meu, deslizando languidamente na pista de uma
salinha mergulhada em penumbra e pouco concorrida. Seus
beijos eram tão sem sabor, que me irritavam. Beijava com a
boca fechada, com lábios que pareciam de mata-borrão.
Acompanhei-a à porta do hospital. Menti mais uma vez,
assegurando-lhe que a procuraria com ansiedade, ao voltar
da viagem. De qualquer modo, vê-la-ia na manhã seguinte,
pois devia vir ao hospital examinar os pertences do indiano.
— Dê-me seu telefone de Paris, John, para que possa
chamá-lo, se recordar de alguma coisa nova esta noite.
Não havia perigo algum em dizer-lhe que estava
hospedado no hotel Jamaica, e ela poderia, mesmo, ter
omitido algum detalhe que tivesse utilidade. Disse-lhe:
— Quando eu viajar, você poderá escrever para mim,
dirigindo-se à posta-restante de Karachi. Não é na China, é
no Paquistão. Você deve escrever somente se tiver alguma
comunicação importante, a respeito do indiano ou de
concorrentes que procurem o hospital, entende? Não convém
chamarmos a atenção sobre nós, antes de publicada a
reportagem.
Regressei ao hotel às oito e meia da noite, com a intenção
de jantar em meu quarto. Levantei o fone.
Uma batida na porta interrompeu-me o gesto. Com a
pistola no bolso do paletó, firmemente empunhada, abri a
porta: era Brigitte.
A maravilhosa Brigitte Montfort, a “Senhorita
Fantasma”! Minha rival de profissão, minha apaixonada
amiga. Grandes olhos azuis, pupilas profundas de olhar
intenso, alta e esbelta, insinuante, com lábios vermelhos e
sorridentes, e corpo maravilhosamente modelado.
Verdadeira escultura. Uma escultura, sim; não apenas uma
estátua.
Estava mais atraente do que nunca, com a pele dourada
pelo sol. Apontou para o bolso de meu paletó e disse, com
sua voz harmoniosa e profunda, desenhando o mais
prometedor dos sorrisos nos lábios úmidos e sugestivos:
— Baixe a arma, John. Vim em missão de paz...
De paz? Nisso, podia ter mentido. Mas não mentiu, com o
estremecimento do corpo, quando se deixou apertar em meus
braços. Não mentiu, com o apaixonado beijo de seus lábios
macios.
Por contraste, lembrei-me de Renée, a bela estátua de
cortiça, de lábios de mata-borrão.
Brigitte uma escultura de carne e ternura, não uma estátua
sem vida. Sua missão poderia não ser de paz. Que
importava? Era uma missão de amor.
CAPÍTULO QUARTO
Durante o qual se definem os roteiros das balas.

Fora uma ceia deliciosa e alegre. Havíamos trocado cem


mentiras profissionais e um milhão de verdades amorosas.
Estávamos, agora, instalados no amplo sofá. Ela, como uma
gatinha voluptuosa, recostava-se contra meu peito.
— Estou admirando seu queimado de sol, Brigitte. Em
que praia de Bruxelas o sol teve esse privilégio, querida?
— Oh, John! Com este frio... O segredo chama-se
lâmpada ultravioleta.
Era mentira, mas uma mentira pronunciada de modo
encantador. Notei-o em seu corpo. Não houve
estremecimento algum, naquele corpo bem modelado, mas,
ainda assim, notei-o. E percebi que ela sabia que eu o sabia...
Fazia parte da guerra, a nossa guerra profissional. Aquele
momento marcou o início das hostilidades oficiais. Mas
nosso amor não sofria qualquer esmorecimento, por tão
pouco. Se um de nós precisasse matar o outro, beijaria
chorando os lábios hirtos do adversário vencido, cuja alma, a
caminho do além, continuaria a amar seu algoz, sem rancor
pelo desenlace.
Pus-me a pensar que em Karachi deveriam existir belas
praias, beijadas pelo ardente sol dos trópicos. A pensar...
Eram dez horas. Soou a campainha do telefone. Estiquei
o braço e levantei o fone. Ela sorriu, sem se afastar de mim.
— John... Aqui fala Renée. Posso falar com você?
Aconteceu uma coisa que o interessará muito.
— Muito bem, conte-me. Mas não grite, por favor, que
este fone é muito sensível.
Estaria Brigitte ouvindo a voz de Renée? Provavelmente
não, mas tentava escutá-la. A enfermeira continuou a falar,
passando a um sussurro apenas audível.
— Esteve aqui esta tarde uma mulher, à procura do
indiano. Igualzinho a você... Não sabia que ele morrera. Ao
sabê-lo, demonstrou o mesmo interesse, e procurou falar
comigo. Voltou, às nove...
— Suponho — interrompi-a — que você não terá
esquecido nossa combinação.
— Claro que não! Ela me apertou com perguntas durante
meia hora. Foi difícil, mas não escorreguei nada. Só lhe disse
que, realmente, sei de muitas coisas interessantes a respeito
do homem, mas que já as havia contado em caráter exclusivo
a um amigo, jornalista inglês... Não lhe revelei seu nome,
naturalmente.
Fechei os olhos e quase mordi o fone. Brigitte fitava-me
de soslaio, sorrindo com ironia.
— Cometi algum erro, meu amor? — perguntou Renée,
inquieta pelo meu silêncio.
— Não, não. Fez tudo direitinho... Que lhe disse ela?
Procure lembrar-se, por favor.
— Queria seu nome e endereço, o que recusei fornecer-
lhe. Mas tive de confessar-lhe que você voltará amanhã ao
hospital. Desse modo, você pode fazer o que lhe convier:
falar com ela, se quiser, ou não. Ficou de telefonar-me
novamente, mais tarde, para saber a respeito. Que devo
dizer-lhe?
Pensei rapidamente. Interessava-me muito saber, ao certo,
quem era aquela mulher, mas sem que ela me visse. Porque,
se tal acontecesse e ela fosse um agente inimigo, eu teria o
dever de apagá-la do mapa... E isso é muito duro, mormente
se a mulher for quem eu suspeito. — Diga-lhe que irei às
onze — respondi. — Podemos encontrar-nos, os três, em...
Brigitte estava atenta, quase frenética, por isso preferi
deixar que Renée citasse o lugar em que eu pensara.
— Na sala de visitas, John?
— Exatamente. Ela sabe como eu sou?
— Bem... — Renée riu, bobamente. — Não fiz nenhuma
descrição de você, mas falei com tanto entusiasmo, que...
talvez... Não importa: eu estarei lá, para apresentá-los.
Desta vez soltei uma maldição, que chegou somente aos
ouvidos de Brigitte, pois apertei violentamente o bocal do
telefone. Seu sorriso acentuou-se, e ela se encolheu ainda
mais contra mim.
— Sim, decerto... — suspirei. — Entretanto, descreva-a,
sim?
— Ela é miúda, morena, muito bonita, tem a pele escura e
o nariz um pouco chato... Olhos grandes e negros... Parece
uma egípcia, ou coisa que o valha.
— Meu Deus! Seria Sawai?
— Tem um sotaque de mexicana — prosseguiu Renée.
— Ou argentina, ou... não sei. Deu-me seu nome. Luiza
López. Ah, deve ser espanhola, não acha?
Não lhe disse o que achava, mas apertei os dentes com
força. Brigitte fez um gesto de mão, aconselhando-me a que
me acalmasse. Não podia ouvir a voz de Renée, mas
entendia meus gestos. Eu não via motivo para disfarçar a
irritação diante de Brigitte. Se o visse, nem mesmo se ela me
escalpelasse conseguiria arrancar alguma exteriorização de
meus sentimentos.
— Acho — suspirei diante do fone. — Agradeço-lhe
muito o aviso.
— Até amanhã, queridinho. Estou contente por ter feito
as coisas certinhas. Durma bem.
Despedi-me e desliguei. Sawai? Poderia ser Sawai?
— Aborrecimentos, meu amorzinho? — perguntou
Brigitte, beijando-me a pálpebra esquerda. — Más notícias?
— Oh, não, não! Aqui, em Paris? Eu só vim aqui para vê-
la, querida!
— Eu sei. Mas, se necessitar de ajuda, lembre-se de que
estou em férias...
Levantou-se e encheu dois copos de bebida. Ofereceu-me
um e com o outro entre as mãos, como um cálice
consagrado, sentou-se sobre as pernas dobradas, olhando-me
fixamente.
— Por quem beberemos, John?
— Por alguém que morreu — respondi, sustentando
intencionalmente seu olhar, em busca da reação de suas
pupilas.
— Que morreu, ou que vai morrer? — sussurrou.
— Que diferença faz, Brigitte? Lembre-se de que o
tempo é relativo. O passado e o futuro se confundem no
espaço universal...
Fixou suas pupilas negras no copo, e agitou a bebida com
um suave movimento circular.
— Diga-me, John — murmurou, pensativa — você nunca
pensou em mudar de profissão?
— Sim, muitas vezes. E tenho certeza de que você
também já pensou a mesma coisa. Mas nenhum dos dois será
capaz de deixá-la. Se você sabe um jeito, ensine-me, por
favor.
— Este ofício é como uma droga para nós. Os viciados
odeiam as drogas, mas não se podem livrar delas. O mesmo
ocorre conosco, com a diferença de que nem sempre
odiamos a nossa droga. Neste momento, por exemplo... Mas,
algum dia, deixaremos a profissão, porque começaremos a
cometer erros e os chefes nos afastarão. Que é que você
pretende fazer, quando isso acontecer?
— Diga melhor: que faremos nós. Não sabe?
Envelheceremos juntos.
— Sim, mas a que se dedicará você? Um homem de luta,
acostumado a uma atividade intensa...
Senti certa inquietação. Brigitte estava perseguindo
alguma ideia, encaminhando o assunto daquela forma.
Decidi continuá-lo, para descobrir aonde pretendia chegar.
— Compreendo — repliquei, sem perder de vista suas
feições. — Quase todos os homens têm um “hobby”, uma
ocupação para os momentos de ócio. Há “hobbies” que
poderiam constituir um modo de vida. O meu, por exemplo:
você conhece minha mania por relógios antigos...
Percebi, novamente, a tensão que existiria em alguma
fibra oculta de sua alma. Não houve qualquer reação em seu
corpo, a mínima crispação das mãos, mas pôs-se a mover
circularmente o copo, outra vez. Não como antes,
distraidamente, mas meticulosamente, devagar, como se
realizasse uma tarefa transcendental.
Transcendental: eu havia pronunciado alguma frase que o
era, tive a certeza. Mas, qual seria? Antes que eu achasse a
resposta, Brigitte levantou seu copo e sorriu.
— Esquecemos o brinde, John! Brindemos agora, mas
não os mortos. Bebamos por quem está vivo e alegre.
Bebamos por nós, por nossa felicidade, pela nossa união,
para que dure sem obstáculos, pelo menos até às... digamos,
às dez e meia da manhã.
Houvera uma mudança brusca no assunto. Brigitte
encontrara o dado que procurava: o horário do compromisso
que eu tinha para as onze horas da manhã seguinte. Mas sua
mente continuaria a trabalhar intensamente, recordando tudo
o que eu dissera ao telefone, para encontrar os demais dados,
mais importantes que aquele.
Ela encontrara outro dado nas últimas frases que eu
pronunciara. Descobri-o enquanto bebia, durante o brinde
que ela havia proposto. Fiquei gelado, embora apenas por
dentro e com a aparência imutável, mesmo ao responder
fogosamente ao beijo que ela me ofereceu após o brinde.
Gelado, porque aquelas palavras eram transcendentais
para mim. O “hobby” de Nagar! Entalhes artísticos em
madeira! A profissão a que um homem se dedicaria, se o
obrigassem a deixar sua atividade normal.
Acabava de compreender que Karachi se reduzira a um
pequeno grupo de homens. Ao círculo muito restrito dos que
fossem capazes de entalhar com arte a madeira. Entre eles,
eu poderia encontrar o vizir do falecido Kaipur, Nagar, o
guardião secreto do príncipe Muarí.
Mas Brigitte... Que sabia ela, de tudo aquilo? Seria esse,
também, o dado transcendental que encontrara, com o
diálogo tão sutilmente conduzido?
Era maravilhoso sentir em seus braços uma mulher
admirável como Brigitte Montfort, mesmo que estivesse
disposta a arrebatar meus trunfos, como acontecera no caso
do “tele-detonador submarino”, em Marrocos. Por isso,
como certamente fazia ela naquele momento, decidi esquecer
por algumas horas a possibilidade de que estivéssemos
novamente engajados em guerra implacável, um contra o
outro. Na desapiedada guerra da espionagem.
Decidi, também, esquecer que Renée, a insípida estátua
de cortiça, tinha certamente assinado, sem o saber, uma
sentença de morte: a minha, ou a da exótica jovem
desconhecida.
Esqueci tudo, naquele instante, e abracei minha escultura
de carne e fogo...

EXPECTATIVA

Eram dez e meia de uma manhã muito fria, quando entrei


no café fronteiro ao hospital. Fui diretamente à mesa do
canto mais sombrio, e sentei-me, sem tirar o sobretudo.
Queria estar preparado para sair rapidamente, se os
acontecimentos o exigissem. Pela mesma razão, paguei no
ato o café que me serviram.
E esperei. Daquele lugar, através da ampla vitrina, podia
ver a rua e a entrada do hospital. Às dez e quarenta, uma
mulher jovem despertou minha atenção.
Passavam pelas calçadas muitos transeuntes, homens e
mulheres, todos apressados, por causa do frio intenso.
Aquela jovem, entretanto, caminhava lentamente, como a
passear, diante da porta do hospital.
Não só era bonita e morena, de estatura baixa, como
parecia reunir todos os traços que Renée me descrevera ao
telefone. Tomou a passar uma segunda, e terceira vez, diante
da porta do hospital. Talvez já houvesse passado muitas
outras vezes, antes que minha atenção se fixasse nela.
Deteve-se e encolheu-se mais no abrigo de peles que
usava. Olhou para o café, como a hesitar, e decidiu-se.
Atravessou a rua e tornou a deter-se, diante da porta
envidraçada. Decidiu-se, mais uma vez, e entrou. Ao
percorrer a sala com o olhar, compreendi que não procurava
ninguém, e sim um lugar apropriado para instalar-se, Tirou o
casacão, e pude, ver-lhe as linhas harmoniosas do corpo. É
impressionante como a nós homens estimula decisivamente a
beleza de uma jovem mulher. Naquela só havia um defeito:
seus pés. Muito grandes como os da Ingrid Bergman,
calçados em sapatos de salto baixo.
Ocupou a única mesa vazia diante da vitrina. Não cessou
de olhar a rua, nem ao pedir o café, ou ao ser-lhe servido, ou
quando bebeu em pequenos goles nervosos e rápidos.
As dez e cinquenta, eu chegara a várias conclusões
indubitáveis: aquela jovem era a que Renée me descrevera.
Positivamente como eu estava fazendo, desejava conhecer-
me antes de ser vista. Uma principiante, na arte da guerra
secreta...
Cheguei a outras conclusões, menos seguras: de que
havia em seu atraente rosto, excessivamente moreno, uma
expressão perigosa, não fria e profissional, mas apaixonada.
Talvez fosse a paixão de uma idealista furiosa, de uma
fanática como Thanusa, a secretária do partido comunista de
Kiachai...
Aquela mulher não tinha a intenção de entrar no hospital.
Esperaria, para ver o homem que os dados entusiastas de
Renée lhe descreveram. Depois, provavelmente, tentaria
segui-lo.
Fosse qual fosse a sua intenção, eu precisava adiantar-me
a ela. Tinha de confiar, novamente, em Renée, por estúpida
que já houvesse provado ser. Meu plano era o seguinte:
Renée levaria a desconhecida para longe dali, com a
desculpa de que o amigo jornalista sofrerá uma queda e não
podia sair da casa em que morava, em um bairro afastado.
Precisava apanhar a morena em lugar solitário, para aplicar
meus métodos de conseguir confissões de segredos íntimos e
profissionais.
Mas, só poderia fornecer os detalhes do plano a Renée,
falando-lhe pessoalmente. Ainda assim, não podia estar certo
de que saberia cumpri fielmente minhas instruções. Além do
mais, seria necessário que eu utilizasse meus dotes da
persuasão, para que a enfermeira não suspeitasse de alguma
coita mais que um truque de jornalista travesso.
Levantei-me, procurando não chamar a atenção sobre
mim, e entrei no corredor de serviço. Daí, passei ao telefone
público, ainda sem ser notado por ninguém. Pedi à
telefonista do hospital que me pusesse em contato com
Renée, indicando-lhe que talvez estivesse na sala das visitas.
Dois minutos depois, escutei a voz lânguida da enfermeira.
— Ouça, Renée. Preciso vê-la, antes que chegue nossa
amiga. Posso entrar no hospital pelos fundos?
— Claro, John. Há um jardim na parte de trás.
— Ótimo. Vá a esse jardim, e conversaremos ali. Tive
uma ideia para despistar minha competidora, que você vai
achar muito engraçada. Estarei aí em três ou quatro minutos,
está bem?
— De acordo, queridinho John! Vamos dançar,
novamente, hoje?
— Justamente isso ia propor-lhe, querida! Espere-me no
jardim, sim? Não se atrase, por favor.
Por favor. Uma expressão muito britânica, que não
consigo eliminar de meus hábitos de conversação, traduzida
para qualquer dos idiomas que utilizo. Esse é meu grande
defeito, e o principal detalhe que levou Brigitte a descobrir
minha nacionalidade. Mas Brigitte é um caso à parte.
Brigitte é...
Bem, eu devia apressar-me, mas, pelos meus cálculos, a
jovem oriental não começaria a impacientar-se antes das
onze e quinze, ou pouco mais. Voltei à sala, e constatei que
continuava a observar fixamente a porta do hospital.
Empreendi a marcha para a saída. Tudo parecia ir bem...
— Cavalheiro, esqueceu sua conta.
Não há só enfermeiras estúpidas, mas também garçons.
Aquele idiota esquecera que eu lhe havia pago a conta ao ser
servido? E sua voz nada tinha de discreta. Entre os sons
abafados das palestras dos fregueses, foi como o guinchar
duma freada de ônibus elétrico... Compreendi que discutir só
serviria para piorar o efeito, e coloquei uma nota sobre a
bandejinha em que me apresentava a conta.
— Fique com o troco...
Mas já não havia remédio. A jovem morena olhava-me.
Por um momento, nossos olhares se encontraram. Se aquilo
era uma catástrofe, não tinha mais remédio.
Aparentando indiferença, com o ar mais deslavado deste
mundo, saí do café. Caminhei lentamente até ficar fora do
alcance da vista através da vitrina, e então quase corri até à
rua perpendicular que me levaria à traseira do hospital. O
velho edifício, com efeito, prolongava-se na parte de trás por
um muro, que encerrava um extenso jardim cujas copadas
árvores assomavam por sobre os tijolos cobertos de limo.
Havia um grande portão de ferro, completamente aberto.
Vi uma avenida, entre descuidados tufos de arbustos e flores,
entre árvores centenárias. Mais que jardim, aquilo parecia
uma selva espessa. Em uma pracinha central, um velho
chafariz.
À exceção do vulto de Renée que, embrulhada num
grosso casaco, junto ao chafariz, agitava um braço, aquela
zona parecia completamente deserta. Era natural, com o frio
intenso, e sob as nuvens grossas e ameaçadoras de outono.
Ao fundo, o casarão oferecia à vista um sem-número de
janelas e óculos envidraçados, onde não se via ninguém.
Avancei uns passos, fiz sinal a Renée e saí da avenida,
embrenhando-me num estreito caminho transversal,
encerrado entre duas fileiras indisciplinadas de arbustos
cerrados e altos.
Renée chegou, correndo e sem fôlego, e lançou-se em
meus braços. Mais uma vez, aceitei o beijo sôfrego do mata-
borrão de seus lábios inexperientes.
— John! Oh, John amado! Que emocionante é este
encontro!
“Você não imagina a que ponto pode ser emocionante...”
pensei. Pedi-lhe que se acalmasse, porque precisava ouvir
com atenção minhas explicações. Antes de mais nada,
perguntei-lhe se poderia sair do hospital.
— Tenho a manhã livre. Depois de uma noite de
plantão... Eu não teria ficado no hospital, se você não me
tivesse...
— Entendo, entendo. Escute-me, agora, por favor.
Comecei a expor o projeto para enganar minha
competidora. Renée fitava-me tão embevecida, que temi
estar falando em vão. Mas, de repente...
Seus olhos afastaram-se de meu rosto e fixaram-se num
ponto às minhas costas. Abriram-se desmesuradamente.
Tudo foi instantâneo. Deu-me um violento empurrão, com
força inesperada. Cambaleei, quase caindo de costas sobre os
arbustos da margem do caminho. Ao mesmo tempo, escutei
um tiro. Renée levou as mãos ao peito, enquanto uma
exclamação rouca brotava de sua garganta. Caiu,
frouxamente, ao solo úmido do jardim.
Não pude ver mais que o agitar de uns galhos. Saltei para
ali, movido pelo instinto, sem tomar precauções. Não havia
pessoa alguma atrás dos arbustos. Ouvi o ruído de alguém
que fugia desesperadamente, afastando ramos, e vi uma
silhueta confusa entre os emaranhados de folhas e galhos em
movimento, que constituíam uma densa barreira à passagem
de meu corpo.
Cometi um erro. Se tivesse corrido diretamente para a
avenida principal, talvez pudesse ver o autor do tiro saindo
pela única passagem existente. Mas retrocedi, para tomar
impulso e saltar através do arbusto. Consegui-o, e corri para
onde a silhueta havia desaparecido. Detive-me um instante,
para escutar. O rumor das folhas e ramos indicou-me que o
fugitivo estava tão perto do portão, que nem mesmo na rua
conseguiria vê-lo.
Desisti da perseguição. Precisava pensar em outro
problema. Minha desapiedada profissão obrigava-me a fugir,
para não me ver envolvido em uma investigação policial.
Mas eu sempre padeci de certa rudimentar consciência, e
esta me forçava a voltar para junto de Renée.
Ademais, a própria Renée poderia complicar-me, com
suas declarações. Se não estivesse morta, precisava instruí-la
a respeito. Ou, melhor...
Meu estômago revoltou-se, ao simples pensamento do
que minha profissão aconselhava fazer. Há ocasiões em que
a segurança do mundo está em jogo, e certas medidas
desumanas são justificáveis. Mas, deveria morrer uma pobre
garota inocente, só porque a Inglaterra tinha interesse em
repor um príncipe indiano no trono escarlate de seu pai?
Antes de tudo, procurei verificar se tinha havido alarme.
A pistola usada, de pequeno calibre, não fez mais ruído ao
detonar que o que faria um galho grosso, ao quebrar-se pelo
vento. A vegetação espessa abafava os ecos.
Espiei a avenida central. Nem gritos, nem pessoas
acorrendo. Nem curiosos nas vidraças das janelas do
hospital. Tudo deserto e silencioso, como antes.
Voltei para junto de Renée. A pobre moça continuava
estendida no solo. Ajoelhei-me a seu lado, e levantei-a um
pouco. Desabotoei seu casacão e vi que sobre seu peito
espalhava-se uma mancha rubra. Mas abriu os olhos.
Respirava em estertores e com grande dificuldade. O mal-
estar do estômago aumentou, em mim. Não podia levantá-la
em meus braços e conduzi-la para o interior do hospital.
Bastaria fazê-lo, para acabar com a carreira do melhor espião
do mundo.
Oh, não! Isso não importava. A razão era diversa: fazê-lo,
era trair a pátria... por uns poços de petróleo?
— John... estou morrendo... John... — balbuciaram os
lábios pálidos.
Seus olhos, muito abertos, punham em meu rosto um
olhar de infinita tristeza, de chamada angustiada.
Passei meu outro braço sob seus joelhos. Ao diabo, com o
trono escarlate! Se aquela pequena fosse Brigitte, mesmo
amando-a com todo o meu ser, deixá-la-ia morrer. Brigitte
morreria, compreendendo perfeitamente minha atitude.
Soldados não podem ceder a sentimentos pessoais...
— John... não me levante... É pior... Fique comigo, John,
até... o fim... meu amor!
— Sim, Renée. Quem era? Você viu? Quem foi que
atirou?
— Mulher... morena... — foram as únicas palavras que
ouvi.
Depois, com mais clareza:
— Adeus, meu John... Nunca... te... esquecerei...
Sua boca ficou de repente silenciosa. Seu olhar parado
não era mais o olhar da vida.
Tive a sensação de que Renée me havia roubado uma
frase. Eu é que deveria dizer-lhe que nunca a esqueceria. Em
seus lábios moribundos, aquilo não tinha sentido.
— Obrigado por haver morrido pequena! — sussurrei. —
Você me fez passar um dos piores momentos de minha vida.
Beijei-lhe suavemente os lábios. Por incompreensível
mistério, dessa vez não me pareceram de mata-borrão.
Usei de todos os recursos que a longa experiência me
ensinara, para voltar ao hotel incógnito. Isso após comprovar
que a jovem exótica não mais estava no café.
“Mulher... morena”, dissera Renée. Quem seria? Duas
mulheres morenas poderiam ter-me seguido: a jovem do
café, ou Brigitte Montfort. Eu poderia saber ao certo a qual
das duas se referira, se houvesse entendido a primeira
palavra. Saíra dos lábios de Renée um som ininteligível.
“A”, significaria sua já conhecida jovem exótica. “Uma”,
seria Brigitte, que jamais vira.
Subi ao meu quarto, meditando sobre as possibilidades de
que uma investigação policial relacionasse a morte de Renée
comigo. Pelas dúvidas, o melhor seria embarcar
imediatamente em um avião, para o fantástico Oriente.
A primeira vaga que obtive foi num jato que sairia às
nove da noite. Paciência! Saí do hotel, e vagabundeei pela
cidade, de maleta em punho. Tentei, por várias vezes,
comunicar-me com Brigitte, pelo telefone, mas não o
consegui.
Li, um jornal vespertino, que dava a notícia com poucos
detalhes: uma enfermeira fora encontrada morta no jardim do
hospital e a polícia investigava diversas pistas.
Oito e meia da noite. O aeroporto. Alfândega, polícia.
Ninguém opôs qualquer obstáculo. Deixei a maleta sobre o
balcão das bagagens.
Uns dedos tocaram-me o ombro. Durante todo o dia eu
esperava por alguma coisa assim. Esperara ser seguido, ou
até mesmo assassinado. Tinha certeza de que o misterioso
assassino, ou melhor, a assassina, pretendia cravar sua bala
em minhas costas, não no peito de Renée. Ou não?
Não me surpreendi, pois, com o toque daqueles dedos.
Voltei-me, devagar, e dei com Brigitte. Ali estava ela, diante
de mim, sorridente, e, ao que parecia, sozinha.
— Boa viagem, John — disse, carinhosamente. — Oh,
não precisa desculpar-se por não se ter despedido de mim! Já
sei que você o tentou. Isso sempre acontece conosco. Por
isso, vim despedir-me, e desejar-lhe boa viagem.
— Obrigado, Brigitte. Você me alegrou muito.
— Sei disso, querido. Também sei que você vai para o
Cairo. Desejo que o clima de lá lhe seja mais favorável, e
que tenha piedade das egípcias, John. Você é muito
simpático, e por toda parte vai deixando garotas mortas por
você...
— Não fui eu, Brigitte...
— Também sei disso. Suas “pílulas” são maiores do que
a que tiraram do coração da pobre enfermeira... Além do
mais, à noite passada, enquanto você dormia, eu
descarreguei sua arma. Aviso-o agora, para que não ande
desprotegido, já que eu não estarei junto com você.
— Você andou me protegendo?
— Sim, embora, como você percebeu, sem muita
eficiência. Mas o mais importante, é que a polícia francesa
não considera o meu amigo jornalista inglês culpado senão
de tentar obter reportagens curiosas e interessantes.
Meu Deus! Quantos conhecimentos a respeito do caso do
trono escarlate aquelas palavras ocultavam? Não tive mais
dúvidas de que Karachi me esperava com a hospitalidade de
um ninho de escorpiões.
— Temos de separar-nos, Brigitte, por favor. Meu
avião...
— Por favor... — arremedou ela, enlaçando felinamente
os braços atrás de minha nuca — quando tomarei a
emocionar-me, ouvindo de seus lábios esse “por favor”, que
me recorda a hora de nosso primeiro beijo?
— Tomara que seja bem cedo, Brigitte. Nos tenebrosos
caminhos do mundo...
Beijamo-nos longamente, lentamente, com verdadeira
emoção.
— Adeus, meu amor... Até que se tomem a cruzar nossos
tenebrosos caminhos...

CAPÍTULO QUINTO
Gato atrás do rato, rato atrás do gato.

No Cairo, telefonei para o senhor Arame, antes de tomar


outro avião e continuar a viagem. Foi divertido irritá-lo um
pouco.
— Claro que estou no Egito! São meus métodos, você
sabe. Passei dois dias em Paris. Não há nada como Paris para
distrair nossa mente e fazer-nos entrar com alegria nos
negócios... Não se aborreça, por favor. Eu sei o que faço. E
minha secretária, já viajou para nosso destino?
— Sim, algumas horas depois de você ter saído daqui.
Mas eu quisera saber...
— Como nas novelas, meu amigo, tudo será explicado no
fim. Agora, preciso que me faça um favor urgente. Lembra-
se de uma excelente escultura de madeira, que um conhecido
nosso presenteou ao rei, em 1941?
— Sim, lembro-me. Também li o expediente relativo...
— Preciso de uma fotografia dela, imediatamente. Uma
fotografia boa, que você deve mandar com urgência para a
posta-restante. Está entendido?
— É melhor que eu a envie para nosso representante, lá.
Será mais rápido, e, além disso, você tem de entrar em
contato com ele, para que lhe possa dar a ajuda de que
precise.
— Oh, não, não. Eu sempre procurei não me fazer
conhecido de ninguém, a não ser de você. No caso presente,
já bastam as amizades que fui obrigado a aceitar, e que
espero diminuam muito, antes do fim. Falarei com nosso
representante apenas pelo telefone. Até à volta, chefe.
Repito: não se aborreça, por favor.
Voltei do aeroporto. Seria capaz de jurar que alguém me
seguia os passos, que uns olhos vigilantes me
acompanhavam, constantemente. Se essa impressão era
verdadeira, meu perseguidor devia ser um gênio no assunto,
pois não consegui descobrir ninguém.
Ao chegar a Karachi, numa bela e cálida manhã de sol.
parecia-me que se tinha passado um século, desde que a
pobre enfermeira de cortiça morrera por mim em um gelado
jardim de Paris.
Estava certo de que, nem mesmo com os mais secretos
códigos, o Intelligence Service havia fornecido às
autoridades inglesas qualquer dado a meu respeito. O modo
de entrar em contato com o representante britânico
dependeria de minha iniciativa, mediante uma frase em
código geral.
Por isso, entrei no Paquistão na qualidade de jornalista.
Assim como o “Deuxième Bureau” mantinha um modesto,
mas elegante estabelecimento de modas nominalmente
dirigido por Brigitte Montfort, o Intelligence Service redigia
umas reportagens muito insípidas, publicadas em uma revista
de pouca expressão, assinadas por um obscuro jornalista
chamado John Pearson.
Como já dissera ao senhor Arame, as amizades que eu
estava fazendo eram muitas. No aeroporto, muita gente! Não
uma multidão, mas o número habitual das ávidas pessoas dos
aeroportos internacionais. Meu olhar percorria seus rostos
com a velocidade de um computador eletrônico...
Não me surpreendeu encontrar um rosto conhecido. Não
o de Sawai, naturalmente, posto que a deliciosa orfãzinha
devia estar obedecendo à ordem de não sair de seu quarto de
hotel. Nem o de Brigitte, também, porque, apesar de seu
hábito de trabalhar sozinha, nunca se deixaria surpreender
por meus olhos vigilantes. Se ela, eventualmente, utilizasse
algum auxiliar, só em caso extremo permitiria que
conhecesse a verdadeira identidade de John Pearson.
Era a jovem morena, que eu vira no café parisiense. Que
nome havia dado a Renée? Luiza López... Sorri: uma
indiana, provavelmente uma kiachaiense, fazendo-se passar
por bailarina de “flamenco”...
Não me espantei com o encontro. Ela sim, espantou-se
muito. Tornei a pensar que deveria ser uma principiante.
Caso contrário, Luiza teria tomado precauções óbvias. Agiu
como quem estivesse à espera há muito tempo. Via-se logo
que assistira à chegada de vários aviões anteriores. Cansada
de esperar, não tinha mais esperanças de ver-me chegar.
Arregalou os olhos, susteve a respiração e recuou
precipitadamente, tentando esconder-se entre as pessoas que
passavam. Exatamente como agiria um principiante
inexperiente.
Não me dei ao trabalho de segui-la, certo de que a
encontraria a qualquer momento. Tinha a certeza de não
haver demonstrado que a reconhecera, de modo que segui
meu caminho, cumpri os requintes oficiais, saí do aeroporto
e tomei tranquilamente um táxi. Outro carro de aluguel pôs-
se em marcha, seguindo o meu.
— Vamos para o centro da cidade — disse ao motorista.
— Lá eu lhe darei outro endereço.
Dois minutos depois, eu havia averiguado duas coisas: o
outro táxi, com efeito, estava a seguir-nos, e nele viajava
Luiza, completamente só.
Acendi um cigarro, e acomodei-me melhor no
estofamento macio.
— Não corra — ordenei ao motorista. — Quero apreciar
a paisagem.
Quando nos encontramos nas ruas da cidade, pus-me a
olhar, interessado, pela janela. Longe de mim o interesse
turístico, naquele momento. A um viajante despreocupado
despertaria atenção o modernismo que se vê naquela cidade
oriental, onde se esperaria encontrar somente mesquitas,
becos sinistros e tortuosos habitados por seres de má
catadura, vendedores de bazar, personagens suspeitos a
trocarem senhas de conspiração... .
O turista ingênuo procuraria logo um guia, que o tirasse
da cidade moderna e o levasse a ver a pitoresca. Conheceria,
então, o típico preparado de antemão e comercializado. E
preciso ser veterano em viagens, ter conhecido tantos cantos
escondidos como os que estiveram a ponto j de converter-se
em cenário de minha morte, para saber apreciar a
apaixonante mistura do ancestral, do antigo, do moderno,
nessas inocentes e misteriosas cidades.
Não, eu não olhava com interesse turístico para as ruas de
Karachi. Procurava somente um lugar apropriado aos meus
planos. Encontrei-o, afinal, em uma ampla avenida.
Passaríamos junto a um ponto de táxis, antes do qual
desembocava estreita rua secundária.
— Por aqui.
O motorista aproximou o carro da calçada junto à esquina
da rua secundária.
— Escute: dar-lhe-ei meia libra de gorjeta, se fizer o que
lhe ordeno. Está bem?
É um alívio o fato de terem os hindus estado tanto tempo
sob a carinhosa exploração inglesa. Graças a isso, entendem
satisfatoriamente a nossa disparatada linguagem. Graças a
isso, um espião trabalhador não é forçado a estudar dialetos
difíceis como o urdu do Paquistão ocidental. Aquele chofer
de táxi compreendeu perfeitamente a história da gorjeta, e
seus olhos se animaram.
— Dê um rodeio, sem pressa, e volte aqui, saindo por
essa rua. Não pare junto aos táxis, mas passe bem devagar,
para que eu possa saltar. Siga, depois, pela primeira
transversal, onde deve parar no meio da quadra.
Fez tudo muito bem. Passou junto aos táxis, entrou por
outra rua, deu a volta pelo quarteirão e retornou à ampla
avenida. Entretanto, assegurei-me de que Luiza continuava
atrás de nós, e encolhi-me junto à porta, para que não me
visse pela janelinha traseira.
Como seguíamos devagar, o carro em que vinha Luiza
conservava distância relativamente grande do nosso. Tive
tempo de largar o dinheiro sobre o banco dianteiro, sair de
meu táxi em marcha e entrar em outro dos que esperavam
uma parada, antes que o de Luiza desembocasse aa avenida.
O novo motorista, outro indiano, virou-se para olhar-me,
cheio de suspeitas, principalmente ao ver que eu procurava
ocultar-me contra um canto do automóvel.
— Tem meia libra de gorjeta se portar-se bem — disse-
lhe.
— Uma libra inteira — respondeu, aproveitando-se da
situação.
— Muito bem. Vá atrás daquele táxi que acaba de passar
por nós.
Foi perfeito. O carro de Luiza, perseguindo o vazio,
dobrou a esquina e se deteve. No meio da quadra estava
parado o primeiro táxi. Também fizemos alto. Por quase um
minuto, nada aconteceu. Depois Luiza desceu e, fingindo
estar passeando, foi até o carro, onde comprovou que eu me
havia evaporado. Agindo como uma novata, foi até o
automóvel, perguntando por mim ao chofer.
Não obteve- resposta. O motorista disparou rua afora, e
desapareceu, dobrando uma esquina longínqua. Dava pena
ver-se o desespero da pobre amadora. Pude contemplá-la à
vontade. Era bastante atraente, com aquele fresco vestido à
europeia, que não suportaria as brisas geladas do outono de
Paris.
Pude contemplá-la durante mais de vinte minutos, até que
perdeu a esperança de reencontrar-me, depois de investigar
em quase todas as casas daquela rua. Que classe de espiã
seria a pobre Luiza? Talvez houvesse feito um curso por
correspondência...
Completamente decepcionada, voltou a seu táxi.
Converti-me, agora, em seguidor. A viagem durou dez
minutos. Percebi que estávamos na parte mais central e
moderna da cidade. Luiza abandonou o táxi diante de uma
loja, pagou-o e entrou no estabelecimento.
Era uma loja importante. O letreiro dizia: “Bazar Jal-
Jhao”. Situava-se numa esquina, com vitrinas nas duas ruas.
Tive que arriscar-me. Saltei do táxi, fui até uma das vitrinas,
e olhei para o interior. Verdadeira multidão de fregueses
examinava as mercadorias expostas. E só meia dúzia de
atarefadas vendedoras a atendê-los! Quase todos os
fregueses, ocidentais. As vendedoras usando trajes típicos,
fazendo “cor local” para os turistas.
Apesar de que a única entrada era aquela por onde fora
Luiza, não demorei muito a saber que não figurava como
cliente ou como empregada da loja. Não gosto que se
divirtam à minha custa. A ideia de que Luiza se tivesse
apercebido de minha perseguição e tentasse repetir minha
jogada ao contrário, irritou-me.
Entrei. Vi uma portinha a um canto, nos fundos do
estabelecimento, e dirigi-me resolutamente a ela. Uma das
empregadas cortou-me a passagem.
— Que deseja, senhor?
— Disseram-me que poderia sair para a rua, por aqui... —
respondi-lhe, sabendo que dizia uma asneira.
É uma saída privativa, senhor — explicou a empregada,
com uma ruga de estranheza na testa, mas sorrindo com
amabilidade profissional.
No entanto, se quiser, pode utilizá-la.
Não esperei por segundo convite. Abri a portinhola, e saí
para um corredor reto e longo. À esquerda, sobre outra porta,
lia-se a palavra “Depósito”, em inglês. À direita, mais três
portas: “Sr. Jal-Jhao”, “Sr. Jal-Jhao, Jr.” e “Escritório”. Ao
fundo, a luz do sol.
A luz do sol, na rua. Sem dúvida, seria um beco traseiro,
por onde Luiza teria fugido. Era inútil continuar a
perseguição. Ou melhor, era impossível.
Voltei à loja. Com passos lentos, dirigi-me à ampla porta
de vidro, mas detive-me, de repente, com os olhos fixos na
grande vitrina que cobria toda uma parede.
Estava cheia de trabalhos de entalhe em madeira. Bustos,
torsos, ídolos, objetos religiosos, relevos sobre bandejas...
Entalhes de diversos estilos, mas todos de extraordinário
gosto e perfeição.
— Interessam-lhe nossas esculturas em madeira, senhor?
— perguntou junto a mim a mesma vendedora. — São
típicas, verdadeiros objetos de arte, para “souvenir” de
viagem e presentes.
— Quem é o artista? — perguntei, quase entusiasmado.
— Fazem-nas aqui, na casa?
— Oh, não! São vários os artistas que trabalham para nós.
Trazem-nos suas obras, e escolhemos as que nos servem.
— Voltarei mais tarde, para examiná-las com mais
tempo.
Saí, pensando que aquela coincidência me poderia
economizar muito tempo. Estudaria a forma mais apropriada
e convincente de pedir ao senhor Jal-Jhao uma lista de seus
fornecedores de esculturas em madeira. Um bazar importante
como aquele procuraria contar com os melhores, e talvez o
senhor Jal-Jhao me desse referências pessoais que me
permitissem selecionar os que tivessem mais possibilidade
de ser o ex-ministro Nagar.
Despedi o táxi. Almocei em um restaurante europeu,
pensando no desaparecimento de Luiza, que fora
providencial para mim, pois me dera uma pista plausível
para encontrar Nagar e Muarí. Mas antes de procurá-los
precisava assegurar minha posição em Karachi. £m primeiro
lugar, devia estabelecer contato com a Embaixada.
Lembrei-me dos dados recebidos do senhor Arame. Um
número de telefone, que disquei no aparelho público do
restaurante, e um nome que citei a quem atendeu minha
chamada.
— Da parte de quem?
— Diga-lhe que quero falar-lhe do tapete para a cadeira
escarlate.
Não houve sinal de estranheza no interlocutor. Talvez
também estivesse prevenido. Meio minuto depois, outra voz
masculina pediu-me, em tom friamente cortês:
— Quer repetir seu recado?
— O tapete para a cadeira escarlate.
— Vai estragar-se, se não for usado logo — respondeu,
lentamente.
— De acordo — disse eu, satisfeito por ter ouvido a frase
convencionada do nosso código.
— Ouça: já tenho uma pista para a descoberta. Mas
necessito saber que fazer com meus amigos, quando os
encontrar.
— Há um iate, permanentemente ancorado no cais
número cinco. Chama-se “Cabo Azul”, e sua tripulação é da
Marinha Inglesa. Em alto mar, um navio de guerra acha-se à
espera. Eles sabem aonde devem levar seus amigos.
— Quero, também, que alguém fique aguardando
possíveis chamadas, em um bar do porto. Alguém que possa
comunicar ao iate qualquer aviso, em caso de necessidade.
— Vou providenciar. Quando precisar, telefone para o
bar “Shaobai”, e pergunte por Tomás. Use a mesma palavra
de ordem. Mais alguma coisa?
— Descobri um estabelecimento suspeito — menti. —
Gostaria de ter informações a respeito do proprietário, um tal
de Jal-Jhao.
— Santo Deus, não! — exclamou a voz. — Tenho
certeza de que o senhor está enganado. Jal-Jhao é um homem
excelente, amigo de todos os ingleses de Karachi. Nossas
mulheres compram em sua loja toda a classe de mercadorias.
Dá grandes descontos e até brindes aos ingleses.
O pessoal diplomático sempre recebeu muitas atenções
em sua casa. Jal-Jhao é um cantonês de passado limpo, um
bom comerciante, gene-, roso e educado. Que o faz pensar...
— Oh, nada, nada! — ri. — Devo ter-me enganado num
detalhe, o que não muda a pista que tenho.
Despedi-me e desliguei. Agora sabia que me seria fácil
visitar Jal-Jhao e pedir-lhe ajuda. Dediquei-me a outras
atividades urgentes.
CAPITULO SEXTO
Onde sofro a penúltima surpresa.

Sempre que me é possível, e principalmente em casos


como aquele, procuro não me hospedar em hotéis. Um
quarto de hotel é uma ratoeira, uma possível armadilha. Eu
precisava de alojamento isolado em Karachi, sem vizinhos
curiosos, aonde pudesse levar as pessoas com quem
desejasse conferenciar, longe de ouvidos indiscretos, e onde
pudesse tratar com modos miais apropriados as visitas
inoportunas.
Encontrei uma casinha mobilada em um bairro afastado
do centro, junto ao mar, na estrada que conduzia à costa. Não
estava completamente solada, pois havia habitações
próximas.
Também aluguei um automóvel e instalei-me na casinha.
Era rodeada de arbustos e flores, com amplo retângulo
gramado, limitado por cerca viva. O mobiliário tinha um
acentuado estilo indígena. Na sala, muitos móveis, muitos
adornos e muitas portas. Sofá, poltronas, tamboretes,
“consoles”, mesas grandes e pequenas lâmpadas de pé e de
mesa, quadros, armários, cortinas, telefone, rádio e uma
dúzia de implementos diversos. Agradou-me muito uma
enorme arca de madeira entalhada com baixos-relevos de
sentido religioso incompreensível para mim. Uma arca dá
um toque, de bom-gosto a uma aventura de espionagem. E os
lavores na madeira manteriam sempre presente a pista que eu
seguia.
A arca estava vazia, naturalmente. Por via das dúvidas,
fechei o cadeado de que era provida. Dediquei minha
atenção a outro móvel, que parecia ter sido posto ali
propositadamente: poltrona de madeira escura, com encosto
alto e reto, terminado em molduras de borlas e coroas, com
dois rígidos braços em forma de garras de leão. Tinha o
curioso aspecto de um pequeno e incômodo trono. Seu
encosto e o assento eram estofados em damasco escarlate.
O resto da casa, vestíbulo, cozinha, banheiro e
dormitórios resumiam-se em um pavimento. Havia um sótão,
entre o forro e o telhado, um pouco empoeirado e desprovido
de móveis ou objetos guardados. Decidi que ali seria meu
dormitório, muito mais seguro que o da cama de dossel com
colunas de madeira em “decapé” dourado.
Voltei a Karachi, onde estacionei perto do melhor hotel,
grande e concorrido. Era difícil chamar-se a atenção, naquele
ambiente cosmopolita. Certifiquei-me de que não estava
sendo seguido, e não tinha dúvida de que estava sozinho
quando bati à porta de um quarto do quinto andar. Tímida e
débil, a voz de Sawai respondeu à batida, perguntando:
— Quem é?
— O tapete para a cadeira escarlate — respondi-lhe.
A porta abriu-se. Entrei, e Sawai jogou-se, chorando, em
meus braços. Tinha os nervos em frangalhos, pela longa
espera e pela solidão. Consolei-a com minhas carícias e
meus beijos, um consolo que me agradava, e que parecia
agradar-lhe ainda mais. Mas o momento não era propício às
aventuras amorosas.
— Devo ir embora, Sawai. Vim apenas para animá-la.
Tudo terminará breve. Por enquanto eu me comunicarei com
você pelo telefone, quando necessário. É perigoso que nos
saibam em contato um com o outro. E, principalmente, é
imprescindível que você não saia deste quarto. Tudo poderia
falhar, se eu não a encontrasse no momento oportuno.
Encheu-me de perguntas sobre a investigação. Menti-lhe,
assegurando que tudo ia muito bem. E, quisesse ela acreditar
em minhas palavras, ou não, lembrei-a de que não era
investigador e sim jornalista. Estava à procura de elementos
para uma reportagem sensacional, e tentava ganhar dos
verdadeiros agentes.
Saí em seguida, com infinitas precauções. Já havia
anoitecido e eu estava cansado, muito cansado. Escolhi, para
jantar, um restaurante próximo ao Bazar Jal-Jhao. Meditando
na conveniência de procurar o comerciante naquela mesma
noite, dei uma pequena volta, a pé, diante das vitrinas já
fechadas.
A espionagem requer um constante estado de alerta.
Talvez por esse motivo, nossos nervos resistem e permitem-
nos sobreviver. A sensação de estarmos sendo seguidos
invade-nos frequentemente. Naquela ocasião, era o que se
dava comigo. Certo de que meus nervos funcionam
perfeitamente, atribuí aquela sensação à fadiga da viagem e
ao dia de atividade intensa.
Se alguém estava à minha espreita, quem seria, e a que
lado pertenceria? E onde estava? Entre os transeuntes, em
algum dos automóveis estacionados, em algum
estabelecimento público das redondezas? Quem sabe, atrás
dos vidros de uma janela? Ou no interior da própria loja de
Jal-Jhao, ou no andar superior, onde o proprietário morava?
Reagi contra a sugestão absurda. Jal-Jhao e sua família
não conheciam minha existência. Seria mais aconselhável
jantar e dormir, pois eu não estava em condições de fazer
uma visita convincente ao dono da loja.
A sugestão, no entanto, manteve-se firme durante o jantar
e até quando regressei à minha casinha. E, ainda que não
houvesse constatado nada de concreto, por mais que me
tivesse esforçado, não esqueci a precaução de dormir no
sótão, após fechar cuidadosamente as portas e janelas da casa
inteira. O alçapão que conduzia ao sótão, e que dava para a
cozinha, deixei-o entreaberto, sustendo-o com uma varinha,
que cairia e deixaria fechar-se ruidosamente o alçapão, se
alguém tentasse passar por ele. Convinha-me entrar na posse
da fotografia que pedira ao senhor Arame e levá-la no bolso,
quando fosse procurar Jal-Jhao. Confiava em que aquela
amostra possibilitaria a identificação do artista, já que o
estilo por ele empregado seria a pista mais provável para a
localização do autor.
Mas não havia nada para mim, na posta-restante, na
manhã seguinte. Telefonei para a Embaixada, dei a senha, e
perguntei se haviam recebido alguma correspondência em
meu nome. Em vão: o senhor Arame parecia estar-se
descuidando das medidas de retaguarda... e eu poderia ser
forçado a passar dias inteiros aguardando aquela remessa,
para começar a trabalhar numa pista que, afinal, poderia ser
ilusória.
Desse modo, à primeira hora da tarde, ao reabrir-se a loja,
entrei e perguntei a uma das empregadas:
— Posso falar com o senhor Jal-Jhao:
— Pai ou filho?
— Pai — respondi, lembrando-me da informação da
Embaixada. — Diga-lhe que John Pearson, jornalista inglês,
quer pedir-lhe um favor.
Se desse resultado e o comerciante me recebesse, seria
um sinal de que as informações sobre seu espírito acolhedor
eram certas. A empregada desapareceu pela portinhola
privativa e voltou imediatamente.
— Acompanhe-me, senhor. Ele o receberá em seu
escritório.
Na sala que ostentava o letreiro de “Sr. Jal-Jhao”, uma
peça espaçosa, fresca, e luxuosamente decorada, o
comerciante me apareceu como a mais agradável, atraente e
simpática figura humana jamais por mim encontrada.
Era magro, de estatura mediana. Seus olhos castanhos
mostravam uma expressão tranquila e bondosa. Idade
indefinível, sem dúvida superior a sessenta anos; sorriso
cativante, dentes alvíssimos; mãos firmes e secas, que
inspiravam confiança; cabelos completamente brancos,
abundantes e finos, bem penteados; traje de corte europeu,
impecável...
De todo seu conjunto emanava simpatia. Até mesmo seus
leves defeitos físicos acrescentavam algo de inédito à Sua
personalidade. A flacidez da pele, no pescoço e nas faces,
ajuntavam um tom bondoso à sua expressão.
Colheu minha mão direita entre as suas e atraiu-me para
um sofá, obsequiando-me ao mesmo tempo com frases
corteses de carinhosa saudação. Fez-me sentar e ofereceu-me
cigarros de uma preciosa cigarreira de ouro e madrepérola.
O jornalismo e os jornalistas o entusiasmavam. Admirava
a Inglaterra e recordava com saudade uma visita que fez a
Londres. Estava encantado de poder servir-me em alguma
coisa e agradecia infinitamente a franqueza com que eu
manifestava o motivo da visita.
Falava sem pressa, sem untuosidade, sem o menor acento
de hipocrisia. Suas frases simples, sem nada de rebuscadas,
criavam em meu ânimo um estado de alegre otimismo.
Decididamente, aquele era um homem extraordinário.
Lembrando-me da informação que recebera do funcionário
da Embaixada, observei seus olhos ligeiramente oblíquos, e
falei-lhe de Cantão, cidade que conhecia superficialmente.
Jal-Jhao tinha o dom de falar em tom coloquial, sem
monotonia. Apanhou o tema de Cantão e contou-me a triste
história da perseguição política que havia sofrido lá, o que o
obrigara a vender a loja herdada de seus ancestrais e
estabelecer-se em Karachi, quase a começar de novo.
Finalmente, deixou-me entrar no meu assunto.
— Pretendo ficar alguns dias em Karachi. Um dia desses,
visitarei sua loja como freguês, porque é um espetáculo
realmente tentador.
— Não se esqueça de procurar-me, quando vier comprar
em minha modesta loja. Terei prazer em oferecer-lhe um
presentinho, para levar para sua família. Mas, diga-me o que
o traz...
— Obrigado. Nem sei como começar: é um pouco
confuso... Um amigo meu, ao saber que eu viria a Karachi,
confiou-me um recado para um artista daqui. Deu-me,
anotados, seu nome e seu endereço, mas perdi o papel, e não
consigo lembrar-me deles. Trata-se de um homem de teus
sessenta e cinco anos, que deve ter um sobrinho, ou filho de
criação, de uns vinte e dois anos, morando consigo.
— E daí, senhor Pearson, crê que eu possa conhecê-lo?
— O senhor compra trabalhos em madeira entalhada,
para vendê-los em sua loja. Esse homem talvez seja um de
seus fornecedores. Se não me engano, é essa a sua
especialidade.
Tive a impressão de notar em seus olhos uma fugacíssima
sombra de preocupação. Meditou por algum tempo, e por
fim, novamente sorrindo, disse-me:
— Tenho um fichário de meus fornecedores. Se quiser,
podemos fazer o seguinte: dar-lhe-ei uma lista dos que me
vendem trabalhos em madeira. O senhor poderá procurar o
homem que lhe interessa, embora eu também, por meu lado,
faça o que me for possível para localizá-lo, de acordo com os
dados que me forneceu. Não me pode dar mais alguns
detalhes?
A indicação do sinal na coxa de Muarí me pareceu
ridícula, além de perigosa, pois tomaria muito claras as
minhas verdadeiras intenções. Ajuntei, apenas:
— Bem... Creio que me lembro de que meu amigo
informou-me que é um homem um pouco rude de maneiras,
e meio gordo... Mas acho que a sua lista bastará, senhor Jal-
Jhao. Não quero incomodá-lo mais.
Teria perpassado outra vez a sombra de preocupação por
seus olhos? Desta vez, não tive dúvidas de que não me
enganava. Pareceu-me, mesmo, que sua afabilidade esfriara.
— Oh, não! Será um prazer... Peço-lhe perdão por
precisar encaminhá-lo com esse assunto a meu filho. Ele está
começando a tomar conta dos negócios, e, além disso, acabo
de ficar sem minha secretária. Oh, foi uma pena! Uma
pequena competente, encantadora, que parecia ótima pessoa,
e em quem confiava... A gente nunca aprende a conhecer as
pessoas... — Pusera-se de pé, atravessando a sala em direção
à porta de comunicação com o escritório vizinho, rotulado
como pertencente a “Jal-Jhao, Jr”.
— Aconteceu alguma coisa desagradável com ela? —
perguntei, por mera cortesia.
— Abandonou o serviço há duas semanas. Exigiu,
inesperadamente, suas férias. Eu descobrira certas
intimidades dela com meu filho. São jovens demais...
Sempre a tratei bem, pagava-lhe um salário bom. E, de
repente, exigiu férias, justamente no momento em que sabia
estarmos cheios de serviço...
Girou a maçaneta da porta, que não se abriu. Bateu com
os nós dos dedos. Passaram-se longos segundos, antes que a
fechadura corresse e aparecesse no umbral um rapaz de boa
aparência, que me cumprimentou timidamente.
— O senhor Pearson... Meu filho Khadro — apresentou-
nos o velho.
Jal-Jhao explicou ao jovem o que eu pretendia e depois,
após efusivas despedidas, deixou-nos a sós, no escritório
contíguo.
A sala de Khadro era igual à de seu pai, salvo em um
canto, onde se notava o início de uma escadinha, que sem
dúvida conduzia ao andar superior, residência dos Jal-Jhao.
Khadro atendeu-me bem. Fez, ele próprio, a lista que eu
desejava, e ofereceu-me ajuda, do mesmo modo que seu pai
havia feito. Mas notei que estava inquieto, e que dirigia
frequentes olhares esquivos à escadinha.
Novamente na rua, com a lista no bolso, voltei ao correio.
Dessa vez, encontrei a encomenda, que continha a fotografia.
Sem sair do edifício, rasguei o envelope e examinei a
cartolina: era uma fotografia do tamanho de um cartão
postal, em que se via uma bandeja de madeira preciosa, com
uma cena de caçada entalhada de modo admirável. Um
trabalho fotográfico perfeito reproduzia um notável trabalho
artístico.
Guardei o postal no mesmo bolso em que levava a lista e
saí lentamente do edifício do correio. Precisava começar a
busca, seguindo a única pista de que dispunha. Se não desse
resultado, John Pearson teria de recorrer a outros caminhos
mais complicados e provavelmente mais violentos,.. Então...
Pela primeira vez na vida, uma surpresa quase me fez dar
um pulo. Não parei, mas minhas pupilas giraram em todas as
direções, enquanto os passos se tornavam cautelosos.
Procurava a concretização do que me pareceu ser uma
armadilha.
Porque na calçada, junto a meu carro, séria, ereta, com as
mãos crispadas sobre uma bolsa, com os atrativos físicos
modelados deliciosamente por um vestido leve e justo,
estava Luiza, a misteriosa jovem morena.
Não fugiu, nem recuou um passo, sequer. Olhava-me
fixamente, cortando-me o caminho. Parei diante dela.
— Senhor Pearson — disse ela, com voz que pretendia
ser firme, mas na qual vibrava uma crispação dolorosa. —
Preciso falar com o senhor.
— Não sabe quanto me alegro com isso! — sorri, ainda
que meus olhos verdes penetrassem nos seus, como facas, o
que aumentou seu nervosismo. — Onde quer essa palestra?
No carro, num café, em sua casa?
— Não, em sua casa, senhor Pearson! — quase gritou.
— Minha casa só recebe amigos, senhorita — repliquei,
com gesto duro. — E aqui, em Karachi, não tenho nenhum.
— Tem de ser em sua casa! Não quero que o senhor saiba
quem eu sou, realmente, e que ninguém nos veja juntos.
— Bem, senhorita... Então, boa tarde, e adeus para
sempre. Afaste-se, por favor.
— Senhor Pearson! — disse ela, com voz rouca. — Leve-
me à sua casa, agora mesmo, ou juro-lhe que não verá o sol
se pôr hoje...

SUSTO E EXPLICAÇÃO

Ela talvez se houvesse convencido de que me intimidara.


O certo é que conseguira interessar-me. Permaneceu
completamente muda, no caminho de minha casa, sem
responder-me quando lhe perguntei o nome. Não queria
dizê-lo. Percebi que aquela garota estava desesperada, e que
levava uma pistola na bolsa, firmemente apertada entre seus
dedos trêmulos.
Mesmo assim, não temi deixá-la seguir atrás de mim para
o interior da casa. Dei-lhe as costas, ao fechar a porta e abrir
as janelas de minha atulhada sala. Não me assustei,
tampouco, quando, ao voltar-me para ela, vi-a com a pistola
em punho, apontando-a para meu peito.
— Fique quieto, senhor Pearson! — exclamou, no mesmo
gracioso tom ciciante de Sawai.
— Não se mova! Vou matá-lo.
— É, parece que vai mesmo... — disse-lhe, sorrindo. —
Por que não posso mover-me? Mas, antes de arriscar-me a
levar um tiro, quero pedir-lhe uma coisa; gostaria de saber
por que vai dar-me esse desgosto.
— Porque não quero que Muarí saiba jamais que é um
príncipe. Nem você, nem Nagar, jamais o dirão a ele.
— Também Nagar? Você já o matou?
— Vou fazê-lo, depois de me livrar de você. Hoje
mesmo!
— Está a serviço dos republicanos de Kiachai, ou por
conta própria?
— Muarí e eu nos amamos! Se ele voltar a Kiachai como
marajá, não lhe permitirão que case com uma moça
insignificante como eu. E ele pode morrer na luta pelo trono.
Não permitirei que o destruam, envolvendo-o em
complicações políticas que sempre ignorou. Seremos felizes,
vivendo como temos vivido até agora. Farei qualquer coisa
para salvar nosso amor, e por isso vou matá-lo, Pearson!
— É — Por isso, você matou a pobre enfermeira, em
Paris. Sei que apontou em mim, mas acertou nela... Você fez
isso porque Renée lhe disse que me havia revelado coisas
importantes. Por que foi a Paris, menina?
— Para matar Surab. Já o encontrei morto.
— Puxa! Seu amor por Muarí é pior que um tufão, minha
cara! Você pode conceder-me mais um minuto, e dizer-me
como descobriu a verdadeira identidade de seu amor?
— Não! Isso, jamais lhe direi.
Apertou os lábios, e compreendi que estava prestes a
apertar também o gatilho. Mas a pobre pequena não tinha a
menor experiência em tais jogos. Eu o descobrira desde o
primeiro momento, antes de entrar no café para vigiar
através da vitrina.
Quase me envergonho de confessar que empreguei com
êxito o truque mais antigo e conhecido da história da
aventura humana. Virei-me ligeiramente para a porta do
quarto de dormir, e falei rapidamente,
— Já que você não quer falar por bem, garota... Muito
bem: agarre-a, Tom!
Caiu na cilada. Voltou-se, assustada, para o pretenso
Tom. Saltei, e arrebatei-lhe prontamente a pistola. Ela
cambaleou, deixou-se cair numa poltrona e pôs-se a chorar.
— Agora, minha filha, diga-me quem são Nagar e Muarí,
e onde moram.
Ela levantou a cabeça, desconcertada, e olhou-me com
expressão de assombro, o que me causou um leve mal-estar.
— Como? Você ainda não sabe?
— E acha que eu devia sabê-lo, já?
Demorou muito a responder. Pensava... Que seria que
pensava? Que confusão infernal lhe passava pela cabeça?
— Eu pensei que soubesse... — disse, lentamente. — Não
pude segui-lo, desde ontem ao meio-dia. Hoje, ao vê-lo sair
do correio, acreditei que tivesse enviado alguma carta ao
serviço secreto...
Pequena inocente? Cautelosa embusteira? Convenci-me
de que precisaria feri-la, para que me contasse toda a sua
história. Escolhi os meios que poderia usar, sem estragar sua
beleza de rosto e corpo. Não gosto de inutilizar obras de arte,
sempre que possa evitá-lo. Mas ela deve ter lido meus
pensamentos, porque não se assustou quando insisti.
— Basta de brincadeiras, menina. Você vai dizer-me,
agora, já, onde estão Nagar e Muarí.
— Sei que existem torturas horríveis, Pearson —
respondeu. — Pode começar. Use-as, todas, comigo. Todas!
Não lhe direi nada. Você ignora que fomos nós, os asiáticos,
quem inventamos os tormentos mais espantosos? Sabe por
quê? Porque sabemos resistir-lhes.
Talvez fosse de mais proveito experimentar outro
método, antes da violência. Eu, afinal como todo espião, sou
um comediante frustrado. Deixei que meus olhos se
umedecessem, e que uma expressão de piedade e emoção
aparecesse em meu rosto. Disse-lhe, então, com perfeita
naturalidade, em voz baixa e sedutora, em tom
profundamente triste e pensativo:
— Torturas? Não, minha filha, não! O seu drama enche-
me de angústia. Escute... Eu lhe tirei a pistola porque temi
seu desespero de mulher apaixonada. Vou devolvê-lo, se me
promete guardá-la na bolsa e escutar-me. Se não conseguir
convencê-la de minhas intenções, pode então atirar em mim.
Sei que não o fará, e que conservará a arma guardada, depois
de ouvir-me.
Entreguei-a. Naturalmente, eu havia travado a pistola,
sem que a jovem o notasse. Ninguém poderia destravar uma
pistola e disparar contra John Pearson, a três metros de
distância... Sobra-me tempo para... Ela olhou, com expressão
de espanto, para a pistola em suas mãos, sem saber o que
faria com a arma. Eu continuei minha arenga.
— Você ama a Muarí? Que sabe a respeito do amor,
menina? O amor é abnegação e sacrifício, é dar sem esperar
receber, é saber perder até mesmo a felicidade. Você, por
uma paixão egoísta, quer que o povo de sua pátria continue
sofrendo sob uma tirania cruel. Quer privar um príncipe do
trono que herdou de seu pai, do trono que, uma vez ocupado,
pode fazer a felicidade de milhões de seres. Por seu egoísmo,
o homem que ama permanecerá na mediocridade duma
existência obscura: será privado do cargo que Deus lhe
destinou, e o impedirá de cumprir seu sagrado dever. Você
viverá ao lado de um artesão, toda a vida, quando esse
homem deveria vestir as galas de sua predestinação e a coroa
a que tem direito, e que é o orgulho de seus súditos. Você diz
que o ama? Diz que ele a ama? Não é certo, pois você teme
que seu amor seja tão fraco, que a esqueça, ao subir ao
trono...
Minha peroração emotiva continuou, no mesmo diapasão,
por muito tempo. Às razões sentimentais aduzi outras, de
sentido lógico. De nada lhe serviria minha morte: outros
agentes viriam, em seguida. Quando encontrassem Muarí,
quando seu príncipe soubesse que sua amada era uma
assassina, seu amor se transformaria em desprezo para com a
mulher que mostrara um egoísmo tão feroz...
Foi um êxito. Luiza abaixou a cabeça, curvando-se para a
frente. Ao terminar meu discurso, ela guardou a pistola na
bolsa, pôs-se de pé, lentamente, e fitou-me, com olhos
serenos e infinitamente tristes.
— Não me acusará, pela morte daquela enfermeira? —
suplicou.
— Ninguém jamais o saberá. Você queria matar John
Pearson. A morte de Renée foi um acidente. Matar John
Pearson não é crime, pequena. É um incidente que
acontecerá qualquer dia...
— Você intercederá em meu favor, junto a Muarí?
— Vou pô-la sentada sobre seus joelhos, no trono
escarlate.
— Fique aqui, à minha espera. Voltarei com Nagar,
dentro de uma hora.
— Vou com você.
— Não, eu irei sozinha. E vou trazer Nagar — pôs-se a
chorar. — Faça o que quiser: aceite minha decisão ou
comece a torturar-me. Não compreende que quero passar
com Muarí o que talvez seja nossa última hora de felicidade?
Não compreendi muito bem, mas deixei-a ir. Apesar de
tudo, nada tinha a perder, confiando em Luiza. Se falhasse,
bastar-me-ia seguir novamente a pista, com a vantagem de
saber que ela encontraria juntos Muarí, Nagar e a apaixonada
jovem. Com a vantagem adicional de que poderia pôr sobre
uma pista concreta todos os agentes britânicos no país. Luiza
saiu em meu carro. Da porta da casa, vi-a afastar-se e, por
um momento, tive a sensação de haver feito um papel
ridículo. Senti, também, o riso irônico de Brigitte a soar em
meu cérebro.
Que seria de Brigitte? Enquanto o sol caía para o
horizonte, sentei-me a meditar, ali mesmo, nos degraus do
pórtico.
Repassei toda a história, analisando cada acontecimento.
A ideia fugaz, que me relampagueou no cérebro, por ocasião
da morte do barbudo pai de Sawai, tomou a inquietar-me,
sem ainda definir-se. Quis fixá-la, mas uma nova ideia
impediu-o. Duas novas ideias. Três novas ideias...
Nenhuma delas se deixava apanhar e, no entanto, eu tinha
a intuição de que nelas estava a solução completa do caso.
Eram palavras que ouvira recentemente, palavras que lera no
informe do “Foreign Office”...
Entrei. Telefonei para o hotel de Sawai, dando à
telefonista o nome com que ela figurava no registro. Revelei-
lhe meu endereço e ordenei:
— Prepare-se para vir imediatamente. Tornarei a
telefonar, dentro de alguns minutos. Procure estar pronta
quando eu a chamar.
Voltei ao pórtico. O disco do sol já tocava a linha do
horizonte... Meu cérebro fervia. Alguma coisa que ouvira
recentemente... Algo que lera no “Foreign Office”...
Qualquer coisa que os assassinos do pai de Sawai haviam
esquecido...
Já estava bastante escuro quando meu carro apareceu.
Ainda do pórtico, vi que vinha ocupado por apenas duas
pessoas: Luiza e um homem. Desceram e aproximaram-se da
casa. Ele aparentava uns sessenta anos, mas era espigado e
de ombros largos. Vestia-se modestamente, com calças
justas nas pernas, sandálias e um blusão esverdeado.
Caminhava altivamente, com estranha dignidade, muito
sério, cabeça erguida, fixando em mim suas pupilas escuras.
Falou numa voz cava:
— Senhor Pearson? Ela me explicou tudo. Sou Nagar, o
primeiro ministro do marajá Kaipur e fiel guardião de sua
alteza, o príncipe Muarí. Queira o Todo-poderoso que os
nossos sacrifícios não tenham sido vãos.
— Entre, excelência — convidei. Ao ver que Luiza fazia
menção de retirar-se, exclamei: — Um momento, você
também, pequena...
— Deixe-a, senhor Pearson. O príncipe ainda não sabe de
nada, mas está em casa, esperando-a. Deixe-a que desfrute
de seu amor por mais uns minutos, sem preocupações. Nós
temos muito que conversar...
Entramos. Acendi a luz da sala, ofereci-lhe uma poltrona
e acomodei-me no trono escarlate. Oh, não! Na poltrona
escarlate.
— Bem, excelência. Não precisamos de muitos rodeios.
Bastará que me prove ser Nagar.
— Toda a precaução é pouca, senhor Pearson. Rogo-lhe
que, primeiro, prove sua condição de agente britânico.
Tirei do bolso a fotografia da bandeja entalhada com que
o primeiro-ministro kiachaiense presenteara o rei da
Inglaterra.
— Veja isto, excelência. Que lhe parece? Olhe-a bem!
Olhou por uns minutos o postal, sem demonstrar qualquer
sentimento. Depois, voltou para mim um olhar de total
incompreensão.
— Já olhei.
— E daí? .
As últimas palavras não haviam saído de seus lábios nem
dos meus. Pronunciara-as um homem baixo que, com uma
metralhadora portátil nas mãos, cavalgava a janela da sala. O
olho azulado da arma apontava para nós.
Na porta do vestíbulo surgiu outro, também armado de
metralhadora, mas dotado de nariz imenso. Ambos vestiam-
se de andrajos.
— Levantem-se! — ordenou a voz fanhosa do narigudo,
em péssimo inglês. — E levantem as mãos!
Eu sei decidir quando a resistência é desaconselhável,
quando convém aguardar com calma o desenrolar dos
acontecimentos. Aquele momento era um deles. Levantei as
mãos, imitado por Nagar, que tremia de medo. Seu terror não
era digno de um primeiro-ministro...
Minutos após, Nagar estava firmemente atado a uma
cadeira. Eu também, mas no trono escarlate.
Pus-me a rir. Os dois assaltantes olharam-me, alarmados.
Eu não podia evitar o riso porque, tarde demais, havia
conseguido fixar a ideia que me fugia desde Londres.
Ainda confusamente, acabava de perceber quais eram as
outras duas. O que me haviam dito recentemente e o que lera
no “Foreign Office”.
Para utilizar a primeira ideia já era tarde demais,
realmente. O atraso em compreendê-la, significava o fim de
minhas aventuras.
Portanto, para que dar-me ao trabalho de ruminar as
outras duas?
“Brigitte, meu amor — pensei comigo mesmo. — Se
você terminar de contar esta história que eu comecei, procure
não expor com demasiada crueza a estupidez e a
incompetência mental daquele que foi o pobre John Pearson,
e que tanto a amou...”.
CAPÍTULO SÉTIMO
Um baú cheio de surpresas

Meus dois andrajosos inimigos trocaram rápidas frases


em seu dialeto incompreensível, que sem dúvida era o
kiachaiense. Em seguida, o narigudo apanhou o telefone,
discou um número, que eu não mais precisava ver para saber
qual seria, e pronunciou ao fone uma palavra em voz tão
baixa, que não chegou aos meus ouvidos. Após um
momento, pronunciou outra, em voz mais alta; não a entendi.
Depois, escutou atentamente, por mais de um minuto, com
acenos afirmativos de cabeça. Por fim, com um grunhido,
desligou.
Acercou-se de nós, verificou a firmeza das amarras e
falou em kiachaiense ao baixinho, indicando-lhe a porta
principal da casa. O homem saiu. Percebi que recebera
ordem de vigiar a frente da casinha isolada, que eu próprio
transformara em armadilha contra mim.
O narigudo dedicou alguns minutos a revistar as peças da
casa, inclusive o sótão. Depois, apagou a luz, saiu pela janela
e perdeu-se na noite. Os assaltantes permaneciam escondidos
entre os arbustos do jardim, um na parte da frente, e o outro
nos fundos, aguardando a vinda de seu chefe. Pareciam ser
muito astutos. Tomavam ótimas precauções para guardarem
sua presa sem perigo de surpresas.
— Que vão fazer conosco? — gemeu meu companheiro
de infortúnio. — Será que vão matar-nos? Vão matar-nos...
— Claro que o farão, se vossa excelência perder a
serenidade. Só nos salvaremos, se eles acreditarem no que
pretendo dizer-lhes. E para isso o senhor deve confirmar
minhas palavras. Ser-lhe-á muito fácil, asseguro-o... Cale-se,
agora, por favor...
Verdadeiramente, aquilo era muito divertido. A arca!
Sim, A arca estava fazendo seu papel, o que cabe às
maravilhas em uma história de espionagem. A tampa
começou a levantar-se, devagar e sem ruído. Lembrei-me de
que, no dia anterior, ao examiná-la, as dobradiças rangiam
um pouco. Agora, não: giravam silenciosamente.
Meu hóspede clandestino tivera o cuidado de lubrificá-las
e de dar um jeito no cadeado, para que, aparentemente
fechado, pudesse abrir-se sem dificuldade. O hóspede
clandestino, que agora passava uma perna e um braço pela
borda da arca...
A única luz que havia na sala era a fornecida pelas
estrelas, através da janela aberta. Eu não podia distinguir o
vulto que, já fora da arca, aproximava-se nas pontas dos pés.
Mas adivinhei quem fosse, o que foi confirmado, ao sentir
seus apaixonados lábios acariciando os meus.
Entre todos os beijos de todas as mulheres do mundo eu
nunca deixaria de reconhecer os da querida Brigitte.
— Obrigado, meu amor — sussurrei. — Mas nosso amor
ganhará muito mais se me desamarrar.
— Sinto muito, querido — murmurou em meu ouvido. —
Eu o soltaria, mas a França deseja que você continue
amarrado...
Em sua mão brilhou um pontinho luminoso. Era uma
diminuta lanterna elétrica, de que saía um raio de luz
delgado como um alfinete. Iluminou o rosto de meu
companheiro, que piscou, mais assustado do que nunca.
Brigitte voltara a ser a mulher fria e serena, inflexível, que
cumpria seu dever sem deter-se em sentimentos pessoais.
Percebi-o em sua voz gelada.
— Excelência — disse ela. — Temos pouco tempo. Só há
um modo de salvarmo-nos: diga onde está o príncipe Muarí.
— Você está cometendo um erro grave, Brigitte —
murmurei. — Este não é o ministro Nagar.
— Não sou! — gemeu meu companheiro. — O senhor
Pearson está dizendo a verdade. Não sou Nagar, nem
conheço nenhum príncipe.
— Lembre-se de que ouvi toda a conversa que tiveram —
disse ela. — Desde a visita da jovem morena, até às últimas
palavras de John, que lhe recomendou que confirmasse tudo
o que diga. Ouça, excelência: para o senhor, tanto faz que a
França ou a Inglaterra o ajude. Eu sou a França. Se eu não
lhe agrado, pode escolher as metralhadoras dos kiachaienses.
— Diga-lhe, amigo — interrompi-a. — Você ouviu que o
príncipe está na casa desse homem, Brigitte. Ele dirá o
endereço e você nos soltará.
Neste instante meu companheiro deu-lhe o endereço, que
Brigitte quis confirmar. Ela não confia em ninguém.
Revistou-lhe os bolsos, até encontrar um bilhete
amarfanhado. O fio de luz percorreu as linhas de um cartão
de identidade. Satisfeita, Brigitte devolveu o documento ao
bolso de onde o havia retirado.
— Ótimo — comentou, em tom risonho. — Ebanista e
escultor. Era boa a pista que você seguia, John. Minhas
homenagens...
— Você está enganada, Brigitte! — repeti.
— Este homem não é Nagar.
Não quis ouvir-me. Foi até o telefone, discou um número
e falou em voz muito baixa. Voltou, em seguida, a meu lado,
e brindou-me com outro beijo, longo e apaixonado.
— Vamos, Brigitte! — impacientei-me. — Solte-nos
agora! Deixe-se de papéis ridículos!
— Se eu o soltasse agora, John Pearson, o melhor espião
do mundo encontraria um modo de roubar-me o príncipe.
Não, não, meu bem. Meus amigos precisam de uma hora de
vantagem, para levarem Muarí para longe de seu alcance.
Enquanto isso eu volto à minha arca...
— Para assistir os kiachaienses matarem-me? —
perguntei.
— Tenho confiança em seu talento, para entretê-los
durante uma hora, John. Antes disso, não posso ajudá-lo. Por
favor, meu querido, compreenda-me. Faça o possível para
que dentro de uma hora possa beijar seus lábios vivos, como
agora.
Beijou-me outra vez e mergulhou na arca. Sim, eu
compreendia sua posição. Brigitte angustiada, chorando por
mim, não deixaria de ser inexorável. Meu único recurso seria
ganhar essa hora de intervalo. E chegar ao fim daqueles
terríveis sessenta minutos em condições de participar da luta
que Brigitte empreenderia então, porque não poderia vencer
sozinha. Eu não tinha dúvidas de que iniciaria o combate,
ainda que fosse para morrer junto a mim, como eu o faria em
seu lugar, uma vez cumprida a missão.
Os andrajosos assaltantes demoraram alguns minutos. Ao
voltarem, acenderam a luz e verificaram a segurança de
nossas cordas. Em seguida, pela porta da sala entrou um
terceiro inimigo. Era um homem bem vestido, à moda
indiana, com uma pistola munida de silenciador na mão.
Olhou-nos, satisfeito com a situação, e levantou
ligeiramente a mão esquerda. Eu sabia que aquele não era o
chefe, mas apenas um batedor de quem estava a ponto de
entrar na sala. Ademais, eu conhecia a identidade dessa
pessoa. Por isso, à sua entrada, saudei com uma inclinação
de cabeça e um sorriso:
— Boa noite, Sawai. Bem-vinda seja!
Ela estava encantadora, muito mais bela do que de
costume, com sua expressão de triunfo. Mas vi o desgosto
que lhe causara não haver conseguido o efeito desejado.
— Não se surpreende, John? — perguntou.
— Não. E posso explicá-lo, se estiver interessada.
— Gostaria de saber como funciona um cérebro de agente
britânico, vaidoso representante do capitalismo...
Era o que eu queria: o diálogo. Minutos, preciosos
minutos de conversação. Ganhei alguns, com a detalhada
explicação de meu raciocínio apesar de que poderia tê-la
resumido a meia dúzia de frases.
A ideia que conseguira fixar demasiadamente tarde,
embora me estivesse perseguindo desde Londres: se o
barbudo morrera para não nos revelar seu segredo
transcendental, o assassino teria de saber que ainda não nos
confiara nada. Ele, entretanto, já falara com o senhor Arame.
Quem poderia ter certeza de que o barbudo não prestara
informação alguma ao senhor Arame? A única pessoa que
assistiu à entrevista: Sawai.
Mas, por que Sawai não matara antes o homem? Havia
uma só resposta: o antigo empregado do marajá fora
capturado, juntamente com sua filha, e ambos substituídos
por Sawai e outro agente comunista. Ela, inteligente, supôs
que os ingleses pudessem suspeitar, e matou seu
companheiro. Mais tarde, fez o mesmo com o policial, no
hotel. Assim, garantiu nossa confiança.
E quem seria Sawai? Uma mulher capaz de matar
friamente, de suportar com estoicismo o profundo ferimento
do alfinete do broche, de representar com êxito qualquer
comédia, de seguir-me a Karachi para aproveitar os frutos de
minha investigação. Uma inteligente fanática, com
autoridade suficiente para sacrificar partidários, para tomar
as decisões aconselháveis...
— Você quer dizer que sabe meu nome verdadeiro, John?
— perguntou, não sem uma dose de espanto na voz.
— Sim, Thanusa! Você é a secretária do partido
comunista de Kiachai.
— Bem... E, sabendo disso, por que se deixou apanhar?
— Não há perigo! Tenho certeza de que você me
libertará. Você fracassou, Thanusa: esse homem não é
Nagar. Foi uma armadilha para desmascará-la.
Minha mentira era tão grosseira, que Thanusa enfureceu-
se. Aumentou sua fúria, quando meu companheiro
confirmou o que eu dissera. Mas a cólera daquela mulher
não era exaltação, somente perigosa frieza.
— Se não acredita em mim — insisti — comprove-a por
si mesma. Esse homem tem um documento de identidade.
Pode mandar alguém à sua casa e verificar se seu filho é
Muarí.
Estávamos há mais de dez minutos naquela palestra. O
novo truque poderia servir para ganhar ainda mais tempo.
Thanusa encontrou o documento do homem, e entregou-o ao
seu capanga bem vestido. Aquele auxiliar não necessitava de
ordens verbais. Desapareceu no vestíbulo, a ler o cartão de
identidade. A jovem tirou da bolsa uma pistola, também com
silenciador, e a decisão assassina brilhou em suas pupilas
negras. Contive-a, dizendo:
— Agora, escute-me, Thanusa. Por mais sujo agente do
capitalismo que eu lhe pareça ser, sou um oficial do exército
inglês. Não gostaria de morrer amarrado a uma cadeira,
como um trapo. Você tem aqui dois homens, com
metralhadoras. Você teria medo de soltar-me, para que eu
possa morrer de pé?
Eu não acreditava que pudesse dar resultado. No primeiro
momento, efetivamente, pareceu haver fracassado. Thanusa,
então, dirigiu a arma contra o outro prisioneiro.
— Seja ou não o ex-ministro Nagar, já não precisamos de
você — disse, friamente.
E atirou, por três vezes. Foram três estampidos afogados,
como o saltar de rolhas. O prisioneiro não caiu, porque
estava amarrado à poltrona, mas sua cabeça, com um buraco
na testa, após saltar para trás, de encontro ao estofamento,
caiu molemente sobre o peito, onde se haviam alojado os
outros dois projeteis.
Agora, Thanusa voltou-se para mim. Sua mão esquerda
fez um leve gesto. O narigudo avançou, e pôs-se a esmurrar-
me. Seu punho direito ia e vinha, ritmicamente, golpeando-
me o rosto de um e outro lado.
— Basta — disse ela, ao fim de um século.
— Solte-o. Você permanecerá de pé, John Pearson.
Vamos ver quanto aguenta um oficial do sujo exército
capitalista.
Estive a ponto de cair, quando cortaram as cordas que me
prendiam e puseram-me de pé num repelão. Mas aguentei,
apesar de sentir uma dor aguda nas mandíbulas e nos lábios.
Um fio de sangue descia pelo meu queixo. Consegui ficar
impassível.
Transcorreram mais quinze minutos, em absoluto
silêncio. Ao todo já se haviam passado quarenta minutos,
desde que começara o prazo fixado por Brigitte. Já há vinte
saíra da casa o tal escravo elegante...
A que distância seria a casa de sua excelência? Um carro
aproximou-se, rugindo, e guinchou na frenagem diante da
casa. O emissário entrou. Estava furioso.
— Levaram-no! — exclamou. — O bairro todo está em
pé de guerra! Homens estranhos raptaram o filho desse
canalha!
O furor assomou, igualmente, aos olhos de Thanusa. Eu
sorri.
— Você sabia, maldito inglês! — rugiu ela, convertida
em pantera. — E sabe, também, para onde o levaram! E vai
contar-me, com os ossos quebrados, com o corpo
despedaçado! Vai dizer-me, enquanto pedirá que o mate,
como um alívio!
O baixinho levantou a metralhadora, agarrando-a pelo
cano, para descarregar sua coronha contra meus rins. E
faltavam quinze minutos para terminar o prazo de Brigitte.

NOVAS EXPERIPNCIAS

Minha adorável inimiga saltou tão repentinamente, que a


tampa da arca bateu na parede com estrépito.
Ela e eu sabemos que a menor hesitação é fatal, em
momentos assim. O primeiro tiro de Brigitte, também com
silenciador, foi contra Thanusa. Ela ainda se dobrava sobre o
estômago atingido, quando eu já estava de posse da
metralhadora do baixinho, jogando-a contra a que o narigudo
tinha em mãos.
Na fração de segundo seguinte, o tal sujeito elegante, sem
tempo de puxar a arma, jogou-se sobre Brigitte, agarrando-a
pela mão que segurava a pistola. Caí em cima do narigudo,
apanhei-o pela cintura e pelo pescoço, dobrando-o para trás,
enquanto o baixinho desembainhava uma faca muito
comprida.
O capanga elegante aprisionou em seus braços o corpo de
Brigitte, sem saber que estava abraçando uma serpente. Meu
narigudo resistia à pressão, por isso mudei de técnica antes
que me alcançasse a cabeça com as mãos. Afastei-me de
repente, agachei-me, peguei-o pelas pernas e fiz dele um
molinete, que impedia que o baixinho se acercasse de mim.
Quando soltei os tornozelos, o narigudo voou pelos ares,
e foi partir a cabeça contra a parede, deixando nela uma
marca semelhante à de um vidro de tinta vermelha que fosse
arremessado.
Pude abaixar-me a tempo, evitando a faca que me
passava zumbindo pela cabeça. O baixinho, agora
desarmado, saltou sobre mim, no momento em que Thanusa,
num esforço agônico, disparava sua pistola. O tiro apanhou-o
no ar, nas costas. O narigudo caiu em cima de mim,
desequilibrando-me com o impacto de seu corpo. Já estava
morto. Thanusa tinha os olhos vidrados pela morte, quando
consegui desvencilhar-me do atacante baixinho. Sentei-me,
então, no trono escarlate, para apreciar como Brigitte
acabava com o seu elegante inimigo.
Era um espetáculo altamente instrutivo, a limpeza, a
simplicidade com que ela aplicava seus golpes de luta
japonesa. O inimigo era apenas um boneco de trapos, a
bracejar de modo grotesco. Apesar da estatura e da força
física do homem, minha esbelta e deliciosa Brigitte arrasava-
o com a exatidão e a inexorabilidade mais impressionantes
que eu jamais vira. Golpe de joelho no estômago; de canto
de mão no pescoço; de joelho no ventre; de ambas as mãos
na nuca; de joelho na mandíbula; de mãos juntas, na orelha;
de mão direita, de esquerda, com o pé...
Um minuto depois, Brigitte passava o pente pelos cabelos
revoltos e eu limpava com o lenço os lábios feridos.
Olhávamo-nos, e sorríamos.
Por que Brigitte surgira quinze minutos antes do prazo?
Eu o sabia: o motivo, se não me enganara, terminava nossa
guerra particular. Faltava-me apenas um trunfo: o último.
Minha esperança estava em uma entrevista com Jal-Jhao.
Ela, também, tinha ainda uma diferença comigo: descobrir
qual seria minha esperança.
— Não fizemos muito barulho, John. Tiros com
silenciador, e uns tabefes. Mas estes corpos serão um perigo
para você, se não nos livrarmos deles. A polícia vai
incomodá-lo demais... Já que tenho o príncipe em meu
poder, serei generosa: vou ajudá-lo a desembaraçar-se deles.
— Não é preciso, Brigitte. A casa não está em meu nome.
Lembre-se de que também tenho amigos... E, por falar em
amigos, aonde terão os seus levado o príncipe?
— Para um avião. Mesmo se me torturar, não poderei
dizer-lhe em que rumo, pois eu mesma não sei. Admita
minha vitória, querido, e porte-se bem. Quero dar informes a
meus chefes, sem os seus ouvidos importunos.
— Muito bem, Brigitte. Depois, eu farei o mesmo.
Enquanto ela falava ao telefone, preparei café. Quando
me tocou a vez de telefonar, ela foi para o pórtico, vigiar a
estrada. Chamei para o bar Shaobai. Eu não prestava
informações, mas dava ordens.
Por fim, no próprio campo de batalha, tomamos o café.
Brigitte sorriu, ao dizer-me:
— Apanhe sua bagagem, e vamos para meu hotel.
Procurarei consolá-lo da derrota... Mas aviso-o de uma coisa,
queridinho: se você se afastar de mim antes de tomarmos um
avião para a Europa, meus amigos o furarão a bala... A senha
é esta: se o amiguinho de Brigitte afastar-se dela, é sinal de
que tem algum segredo perigoso: morte para ele...
— Oh, meu bem! — sorri, também. — Quanto cuidado
inútil! Não chegamos à conclusão de que estou
completamente batido?
Ela não sabia o que eu pretendia, nem eu próprio tinha
certeza do que sairia de minhas ideias confusas. Mas os
beijos de Brigitte foram maravilhosos, naquela noite. Como
sempre, apesar de que os lábios me doíam.
***
Eu não me deixara impressionar pela ameaça da minha
bela espiã. Não tinha medo de afastar-me dela e expor-me às
balas de seus colegas. Permaneci junto a ela, por várias
razões: não duvidava que sua ameaça fosse uma bravata
ditada pelo desespero; estar perto dela era estupendo; e
porque eu queria ver o que aconteceria quando lhe
comunicassem...
Comunicaram-lhe às nove da manhã. O telefone soou e
ela apressou-se a atender. Escutou atentamente, enquanto seu
cenho se franzia.
— Exatamente o que supus, ontem à noite... — disse. —
Só não posso compreender o motivo... Ouça: é melhor
conversarmos no vestíbulo do hotel. Venha logo.
— Más notícias, meu amor? — perguntei-lhe, muito
sério.
— Espere-me aqui, John. Volto logo.
— Claro, querida. Não demore. Quero levá-la a fazer
compras comigo...
Olhou-me, intrigada, mas, ao ver que não me alterava,
pôs-se a vestir-se. Em cinco minutos, saiu para o corredor.
Eu não tinha a menor curiosidade a respeito do encontro de
Brigitte no vestíbulo, embora estivesse certo de que ela
tomaria um mundo de precauções para despistar-me.
Não. Eu precisava empregar meu tempo em assunto de
maior proveito. Entrei no banheiro, fechei-me por dentro,
tirei do bolso papel e caneta e escrevi uma carta. Frases
breves, concisas, claras. Estava perfeitamente planejada, de
antemão, para poder escrevê-la em circunstâncias difíceis.
Escrevi com letra miúda, aproveitando bem o papel de
pequenas dimensões. Dobrei a folha em forma de fita
estreita, e escondi-a cuidadosamente na manga de meu
paletó, como fazem os mágicos.
Sobraram-me ainda dois minutos. Quando Brigitte
voltou, eu estava a barbear-me. Não falamos. Ela,
visivelmente preocupada, não cessava de olhar-me com os
cantos dos olhos. Esperou que eu estivesse pronto para sair,
antes de perguntar:
— Você disse que iríamos às compras?
— Disse. Há um bazar maravilhoso. Quero comprar um
presente para você, como recordação de seu segundo triunfo
sobre o grande John Pearson. Espere, que verá.
Apanhei o telefone, pedi linha e disquei um número.
Respondeu-me a voz do próprio Jal-Jhao.
— Meu amigo, aqui fala John Pearson. Queria certificar-
me de que estava aí. Lembra-se de que ontem lhe prometi
uma visita para comprar alguma coisa? Pois vou agora.
Minha esposa fez-me uma surpresa: chegou esta manhã, de
Paris! Levá-la-ei comigo, para apresentá-la ao senhor...
Não lhe permiti que falasse. Cortei suas amabilidades o
mais corretamente que me foi possível e desliguei. Meia hora
mais tarde, depois de uma boa refeição, Brigitte e eu
pusemo-nos a caminho do Bazar Jal-Jhao. Ela ia tensa,
desconfiada. Esperava uma surpresa, que não podia
adivinhar. Eu me regozijava, pensando que aquilo seria uma
vingança pelo final do caso de Marrocos5. Conseguir meu
triunfo sob os olhos de Brigitte! É claro que tudo teria sido
mais fácil sem a sua presença, mas esse fato constituiria
minha obra-prima, um virtuosismo de artista.
Jal-Jhao bateu todos os recordes mundiais de gentileza e
amabilidade. Curvou-se em cortesias diante de Brigitte.
Recebeu-nos em sua sala, ofereceu-nos bebidas e refrescos.
Nem a própria Brigitte podia deter aquela torrente de
cumprimentos. Um pouco aturdida, quase não atinou
agradecer o magnífico broche que Jal-Jhao lhe ofereceu.
— Bem... — conseguiu, afinal, cortar. — Podemos ver
sua loja? Pensamos em fazer algumas compras.
— Claro que sim! Eu os acompanharei, e...
— Oh, não, não! — protestou ela, rindo. — Não
queremos tomar seu tempo. Nós temos de discutir nossas
possibilidades econômicas...
— Como quiserem. Mas os preços, eu os marcarei,
depois que tiverem escolhido o que desejarem. Nem olhem
para as etiquetas... A propósito, senhor Pearson: encontrou o
homem que procurava?
Eu havia notado um modo estranho em Jal-Jhao, ansiando
que estava para fazer aquela pergunta, que, afinal, saiu-lhe
um pouco forçada. Deixei passarem alguns segundos, antes
de responder, Brigitte também ficou tensa.
— Não, meu amigo — respondi, fitando-lhe firmemente
os olhos e destacando as palavras. — Mas trago-lhe uma
coisa que talvez sirva para que o senhor me ajude.
Tirei a fotografia do bolso e a pus diante de seus olhos.
Vi nascer um alerta repentino em suas pupilas, e os dedos lhe
tremerem ligeiramente, ao apanhar o cartão.

5
Ver novamente a novela “Olhar para a Morte” NA
— Procuro o homem capaz de fazer um trabalho como
este — ajuntei. — Poderia o senhor indicá-lo?
— Onde conseguiu esta fotografia? — perguntou,
tentando dissimular sua ansiedade. — É um ótimo trabalho.
— Um amigo me deu. A obra que está aí fotografada é da
sua coleção. Se encontrarmos quem a fez, meu amigo pagará
o que for preciso para que ele possa continuar a fazer obras
como essa.
Nova pausa. Brigitte espichava o pescoço par a ver a
fotografia, sem resultado. A atitude d Jal-Jhao era para mim
a prova suficiente de que...
— Posso ficar com ela? — pediu o comerciante. — Vou
pensar. Talvez possa...
— Pense à vontade. E muito obrigado, amigo, pelas
atenções. Nós vamos visitar a loja. Mais tarde nos veremos.
O comerciante acompanhou-nos até à porta do escritório.
Naturalmente, cedemos a primazia a Brigitte e, naturalmente,
Jal-Jhao cedeu passagem a mim, em seguida. Naquele
momento, entreguei-lhe a carta. Apanhou-a com tão rápido
movimento, que tive certeza da confirmação de minha
suspeita.
— Que fotografia era aquela? — perguntou- me Brigitte,
quando ficamos sós a examinar porcelanas na loja.
— Uma miniatura de Vishnú — menti-lhe. E contei uma
história semelhante à que apresentara na véspera a Jal-Jhao.
Mas ela não acreditava em mim. Depois de pensar um
minuto inteiro, voltou a perguntar:
— Desde quando conhece esse Jal-Jhao?
— Há muitos anos. Sempre que venho a Karachi visito-o.
Faz-me presentes, jantamos juntos... Você vai ter
oportunidade de jantar conosco, decerto, Brigitte.
Minha profecia cumpriu-se um quarto de hora mais tarde.
Jal-Jhao veio até à loja, elogiou nosso gosto pela escolha das
mercadorias que fizéramos e deu ordem para que as
embrulhassem e enviassem ao hotel. Quis pagá-las, mas o
comerciante levantou as mãos em protesto, dizendo:
— Oh, não. Mais tarde, falaremos em dinheiro. Quando
pretendem voltar à Europa?
— Logo que nos for possível. Talvez mesmo esta noite...
— respondi.
— Oh, então, não temos tempo a perder! — sorriu. —
Convido-os a almoçarem comigo, em meu iate. Aceitem, por
favor, esta pequena homenagem à sua bela esposa...
— Mas eu não posso navegar — protestou fracamente
Brigitte. — Eu enjoo, e...
— Não vamos navegar — cortou Jal-Jhao.
— Compareçam dentro de uma hora e tomaremos
aperitivos. É o “Cabo Azul”, no cais número cinco.
— Aceitamos com prazer, amigo — decidi. — Será um
grande prazer...
Quando saímos à rua, Brigitte quis separar-se de mim,
com a desculpa de que precisava ir a um cabeleireiro.
Peguei-a fortemente pelo braço.
— Não, minha querida, não. Tenho medo de seus
pistoleiros. Você não se afastará um palmo de mim. Tenho
que impedi-lo, mesmo que precise quebrar-lhe as lindas
pernas. E aviso-a de que descarreguei esta manhã a pistola
que você leva na bolsa.
Continuamos nosso caminho, de braços dados.
— Seu amigo Jal-Jhao tem algum filho? — perguntou
ela.
— Não, meu amor — sorri. — Nem filhos, nem
sobrinhos, nem afilhados. Juro-lhe que não tem, e que é a
pura verdade. Tão verdade, como que a amo...

EPÍLOGO
Onde, afinal, tudo se explica, segundo a tradição do óbvio.

Brigitte resistiu um pouco, à última hora, quando já


estávamos na passarela do iate. Mas acabou cedendo à
pressão de meus dedos em seu braço e ao cordial sorriso de
Jal-Jhao, que acorria à coberta para dar-nos as boas-vindas.
Uma vez no barco, ela não mais resistiu. Nem mostrou
sobressalto ao ver o aspecto britânico dos marinheiros,
quando Jal-Jhao nos conduziu a uma sala de refeições. À
mesa esperavam-nos, já sentados, um simpático jovem e uma
bonita morena, cujo tom de voz Brigitte conhecia
perfeitamente.
Sentamo-nos. Era uma reunião solene. Apresentei:
— Nagar, primeiro-ministro de Kiachai. O jovem
príncipe Muarí, futuro marajá de Kiachai. A secretária de
Nagar, cujo nome desconheço.
O Jovem estava pálido e aturdido. Era-lhe ainda difícil
aceitar a ideia de sua nova situação, por mais que Nagar a
houvesse explicado.
— Chama-se Bhera — disse Nagar. — Efetivamente,
achava-se em Karachi. Efetivamente, Sua Alteza sabia de
seu paradeiro, e a fez vir, de acordo com as instruções de sua
carta. Mas não compreendo qual foi o papel de Bhera nisto
tudo.
Mesmo no momento das apresentações, Brigitte não te
havia sobressaltado. Mostrava-se resignada, e a curiosidade
sem dúvida predominava em seu ânimo, agora que
compreendia a inutilidade de qualquer ação profissional.
— Procurarei explicar tudo — disse, embora tivesse
diversas mentiras piedosas engatilhadas. — Bhera amava o
que pensava ser filho de um comerciante. Eram um adorável
casal: jovens, belos, cultos... Um dia, encontrou cartas
escritas por um tal Surab, que morava em Paris. Assim,
soube a verdade. Sem dizer nada a ninguém, esperou.
Chegou uma última carta, em que Surab afirmava a intenção
britânica de intervir. A Inglaterra, afinal, decidira enviar um
emissário. Temendo que qualquer indiscrição pusesse a vida
de Muarí em perigo, a valente jovem foi a Paris procurar
Surab, e com a intenção de guiar prudentemente os passos do
enviado inglês, o que falhou, porque Surab havia morrido.
Os belos olhos da pequena fitaram-me com emocionada
gratidão. Eu dizia a verdade dos fatos, escondendo as
intenções... E ela compreendia meu esforço para preservar
seu amor.
— Bhera conseguiu encontrar-me, em Karachi. Eu seguia
uma pista falsa: a do “hobby” de Nagar em tempos idos,
esquecido de que hoje talvez tivesse outra atividade. Nagar
dirigira um bazar em sua juventude, e aproveitara sua
experiência comercial. Mas, como estava transformado! Fora
uma transformação inteligente: não era mais rude, pela
necessidade de fingir. Não era mais um homem gordo, por...
— Pela fome que passei, nos primeiros tempos, em
Karachi — confessou ele, em tom altaneiro e com um
aspecto de seca dignidade que não lhe conhecia.
— Por certo... — disse eu. — Deveríamos verificar se
Sua Alteza tem um sinal na...
— Tem! — saltou Bhera. — Na... oh! Quero dizer...
Enrubesceu. Muarí imitou-a. Eu procurei salvar a
situação.
— Bhera guiou-me a Nagar. Graças a ela, encontrei-o. E
agora, senhoras e senhores, terminei minha missão e começa
a sua.
Levantei-me, peguei Brigitte pelo braço, e levei-a até a
porta. Ao chegar ali, voltei-me, para dizer:
— Só quero pedir-lhes duas coisas: que o príncipe Muarí
jamais esqueça o abnegado amor de Bhera. Se não casar com
ela, eu mesmo me encarregarei de provocar uma revolução
para destroná-lo. Depois, quando assinarem um convênio de
exploração petrolífera com a Inglaterra, não esqueçam de
que minha esposa é francesa. Esse convênio pode reservar à
França uma cota de distribuição do petróleo.
Muarí abraçou Bhera fortemente. Havia em sua voz um
tom aristocrático, ao falar:
— Cumprirei ambas as coisas. Juro-o!
Pouco depois, de braços dados, Brigitte e eu
contemplávamos o iate, que desaparecia a caminho do
horizonte.
— Bhera guiou-o a Nagar, embusteiro? — murmurou ela.
— Sim. Como poderia ela conhecer a situação, se não
houvesse lido as cartas de Surab? E como poderia ter acesso
a elas? Lembrei-me de que Jal-Jhao havia sido abandonado
por sua secretária. Uma secretária que estava apaixonada por
seu filho... Lembrei-me, mais, que Nagar fora comerciante
em sua juventude, e de repente compreendi tudo. Bhera,
querendo o contrário, guiou-me ao Bazar Jal-Jhao, onde,
secretamente, ainda se encontrava com Muarí. Estava lá,
quando falei com o rapaz. E então... Mais tarde, eu lhe
contarei com mais vagar.
— Esta manhã confirmaram-me o que eu já havia
compreendido ontem à noite — disse Brigitte. — O homem
que Bhera levou à sua casa havia sido pago por ela para
fingir que seu filho era o príncipe. Se saísse bem da farsa,
eles viveriam num sonho, e ela ficaria com seu amor. O
jovem farsante confessou-o, esta madrugada.
— Você fez com que o submetessem a interrogatório.
Compreendi a falsidade quando aquele homem não teve a
menor reação ao ver a fotografia da bandeja com que Nagar
presenteou há anos o rei da Inglaterra. Diga-me uma coisa,
Brigitte por que saiu da arca quinze minutos antes da hora
que você mesma havia fixado?
Ela olhou para o chão e depois para o mar. Murmurou,
depois de passar a língua pelos lábios:
— Iam matá-lo, John... Não pude permitir.
— Não, Brigitte. Você saiu porque sabia que seus amigos
não haviam encontrado o verdadeiro príncipe. Você ficou
sabendo, ao ouvir-me dar a Thanusa o mesmo endereço do
homem que se fazia passar por Nagar. Você percebeu que eu
jamais poria Muarí em perigo. Diga-me, Brigitte: você
estava em Paris, quando a chamei pelo telefone, de Londres?
— Não, John, nem em Bruxelas. Estava aqui, procurando
Muarí, sem saber por onde começar. Pelo telefone,
comunicaram-me na viagem a Paris. Adivinhei o motivo e
viajei imediatamente para lá, levando o sol destas praias em
minha pele...
— Ora, querida, nada mais disso importa. São coisas de
espiões rivais. Que acha de nos dedicarmos, agora, enquanto
podemos, a coisas de apaixonados?
Alguns curiosos detiveram-se a olhar-nos, enquanto nos
beijávamos. Era muito mais interessante para eles esse
espetáculo do que o daquele barquinho que sumia ao
horizonte.
E, no centro da cidade, em um importante bazar, as
empregadas esforçavam-se por vender as mercadorias cujos
proprietários haviam desaparecido para sempre.

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