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A cal1clo

«TEMAS DE ESPIRITUALIDADE.
oferw um ..... profundo dos pro-
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propõe o auttntlco WltWo crlstio da no nevo testamento
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C. SPICQ, O.P.

CARIDADE E LIBERDADE
SEGUNDO O NOVO TESTAMENTO

BIBLIOTECA
DOMINICANOS
B. Horizonte
N.•
----
EDIÇÕES PAULINAS
Tradução portuguêsa de Maria de Lourdes Allan, do origin~I
francês Charitl et libertl selon le Nouueau Testament, publi-
cado por Les Sditions Alsatia, Paris, 17, Rua CaMette.

PREFACIO

Estes dois temas da caridade e liberdade


não foram reunidos somente em função de
POD&·SE IMPRIMIR
sua importância na moral cristã, mas em ra-
SI.o Paulo, 15 de jaoelro de 1966 zão de sua conexão intrínseca.
Pe. DR. S.S.P.
JOÃO R0A1TA,
O dom por excelência de Cristo à huma-
ª"""º' nidade resgatada é a própria Pessoa do Es-
pírito Santo, fonte imediata da graça, prin-
IMPRIMA •S& cípio imanente da inspiração de todo filho
São Paulo, 29 de janeiro de 1966
t D. Jost LIJ'AYll'M'& ÃLVAllE5
de Deus em cada um de seus pensamentos
Vlgdno G11ra1 e de suas ações.
Ora, o Espírito Santo infunde ou derra-
ma em nossos corações o amor próprio a
Deus: a caridade, como uma fonte alimenta
as águas de um rio (Rom 5,5) e é êste amor
que constitui o cristão filho de Deus (Mt
5,45). Mas o pobre pecador elevado a essa
condição divina deve adotar costumes de
acôrdo com sua nova dignidade: tornar-se o
imitador de Deus como um filho bem amado
(Ef 5,1 ). Ele não saberia chegar a isso por
© Pia Sociedade de São Paulo
São Paulo, 1966 5
si mesmo, tanto mais que a graça o atingiu
quando estava num estado de submissão a
satanás, ao mundo, ao pecado, às suas pró-
prias paixões, até mesmo a seus atavismos.
A vida cristã apresentar-se-á para o fiel
como uma conquista progressiva da liberda-
de, uma liberação destas inclinações e destas O AMOR DE CARIDADE
coações inatas que o impedem de mover-se NO NOVO TESTAMENTO
com liberdade e alegria no mundo divino onde
êle é introduzido. Trata-se menos de romper
liames, de se puri ficar, que de se espirituali-
zar; e isto quer dizer que esta liberação em
profundidade não pode partir senão da pró-
pria Pessoa do Espírito Santo que o engen-
drou filho de Deus nas águas batismais.
O mesmo Espírito que comunicou ao re-
generado a natureza divina e lhe deu o dom
de amar como Deus ama, é também aquêle
que educa êste filho, forma-0 até à idade
adulta e permite-lhe viver como ser livre:
liberdade" (2Cor 3,17).
"Onde está o Espírito do Senhor, aí está a
O cristão perfeito é o filho de Deus que
ama seu Pai celeste de todo seu coração, tôda
sua alma, tôdas as suas fôrças, isto é, com
tôda a espontaneidade e sem entraves.

6
f

PRELIMINARES

Desde o comêço de seu ministério n<>


Sermão da Montanha, Jesus, estabelecendo
as regras do reino dos céus, prescreveu: "Amai
os vossos inimigos" (Mt 5,44 ). Esta ordem
é de tal maneira contrária aos costumes e às
reações instintivas do coração humano, que
convida a precisar de que amor se trata.
Dever-se-á amar o inimigo da mesma manei-
ra que um amigo e as manifestações desta
afeição serão idênticas num e noutro caso?
De fato, ao declinar de sua vida, o Se-
nhor dirigindo-se a seus apóstolos, no Cená-
culo onde êle acaba de instituir a Eucaristia,
faz da caridade o sinal característico de sua
Igreja: "Nisto conhecerão todos que sois meus.
discípulos, se tiverdes amor uns para com
os outros" (Jo 13,35).
Evidencia-se assim que a caridade não é
um amor como os outros, mas uma afeição
própria aos filhos de Deus e · que permite
distinguir no mundo os autênticos discípulos :E.sses têrmos diversos referem-se muitas
de Jesus Cristo. Eis a razão pela qual um vêzes ao contentamento e à satisfação que se
nome especial foi reservado a esta forma de experimenta pela conduta do próximo ou por
amor : caridade, (em latim "caritas"; em gre- circunstâncias favoráveis, e ver-se-á os fari-
go "ciyár.TJ" ), bem diferente do amor profano, seus mui to felizes por receberem honrarias
da ternura familiar, de uma paixão humana (Lc 11,43 ). Há sobretudo respeito, por vêzes
e mesmo da amizade propriamente dita. veneração, em todo o amor sobrenatural; as-
Quando os apóstolos divulgaram os ensi- sim a pecadora (Lc 7,42), exprimindo sua
namentos de seu Mestre, proferidos em ara- adoração pelo Salvador; e quando os judeus
maico, tiveram que traduzir êste têrmo "ca- de Cafarnaum louvam a atitude tão gene-
ridade" em grego, língua habitualmente fa- rosa do centurião romano a respeito de sua
lada em todo o mundo mediterr~eo no pri- comunidade, pois que êle reconstruiu sua si-
meiro século. Se êles escolheram, entre mui- nagoga, êles entendem evidenciai a "estima"
tos outros, o têrmo "agápe" para exprimir o dêste oficial pagão em face da religião de
amor sobrenatural que o Espírito Santo in- Israel (Lc 7,5). Daí as diferenças entre "es-
funde no coração dos cristãos, é que êsse colha" e "predileção", como Demas preferin-
vocábulo era o mais adequado a exprimir do retomar sua liberdade (2Tim 4,10), de-
um amor divino e seus aspectos mais va- pois de "fidelidade" e "obediência" especial-
riados. mente no serviço de Deus (Lc 11,42), enfim
Mesmo em plano profano o "agápe" con- e sobretudo o reconhecimento pelos benefí-
tinha uma extrema riqueza de significado. i:. . cios recebidos. Jesus propôs a Simão, o
mesmo um amor o que assinala a asserção Fariseu, esta pequena parábola: "Um credor
do Mestre: os pecadores têm amor por aquê- tinha dois devedores: um devia-lhe quinhen-
les que os amam (Lc 6,32); mas êste têrmo tos dinheiros, o outro cinqüenta. Não tendo
- e aquêles da mesma raiz - empregavam- êles .com que pagar, perdoou a ambos a dí-
-se em grego clássico para a recepção calo- vida. Qual dêles, pois, mais o amará? Simão
rosa que se reserva a um hóspede e foi assim respondeu: Creio que aquêle a quem perdoou
que Gaio (3Jo 6) concedeu aos missionários mais" (Lc 7,4143 ). Amar é aqui sinônimo
cristãos a mais delicada hospitalidade. de ser grato, e esta será precisamente a ma-

10 11
neira de amar dos filhos de Deus para com como regra de vida e único penhor de sua
seu Pai que está nos céus 1• felicidade eterna. Para êle, como para os
Em todos êsses têrmos é sempre o ver- primeiros discípulos de Jesus, o primeiro ob-
bo "amar" que é empregado e vê-se bem que jeto de sua fé é crer no amor divino : "Re-
não se pode confundir êste amor com qual- conhecemos a caridade que Deus tem por nós
quer outro muito mais particularizado e li- e cremos nela : Deus é caridade. Quem per-
mitado. Mas é evidente que aplicado às rea- manece na caridade, permanece em Deus, e
lidades sobrenaturais e inserido na economia Deus nêle" (lJo 4,16).
da Nova Aliança, o "agápe" vai enriquecer-se
de uma densidade nova; e não é exagêro di-
zer que um dos objetos essenciais da reve-
tação trazida pelo Cristo foi ensinar aos ho-
mens o que é a verdadeira caridade, aquela
que Deus possui por natureza, a que êle co-
munica aos fiéis, a que êles se manifestam
uns aos outros e que os une a seu Pai dos
céus ou a seu Salvador. Desde então torna-
-se urgente para todo filho de Deus saber em
que consiste êste amor que lhe é prescrito

1 Tem·se discutido muito nestes últimos anos as


relações entre "eros" e "agápe". Sendo a caridade
puro dom e liberalidade, .alguns desejariam q~e
"agápe" fôsse reservado estntamente para Deus, nao
podendo ter os homens senão um amor de desejos
(eros) em relação a ~eu Criador: Mas iss.o é esqut>
cer que a caridade e uma noçao analógica. Se é
verdade que "agá:pe" em Deus é plenitude. transbor-
dante e a iniciativa de todos os benefícios (lJo 4,
7-8), desde que essa plenitude é participa.da p~lo
homem, é aclamação desta gener~s1dade pnmord_~
e r econhecimento. ~le prova, aliás, su a a uten~c1-
dade tomando a iniciativa da afeição nas relaçoes
fraternas (3,16-24). Então o cristão ama exatamente
como Deus ama.

12 13
1

A CARIDADE t UM AMOR
Por mais original e sobrenatural que seja
o "agápe", deve-se acentuar fortemente que
é um amor no verdadeiro sentido da pala-
vra, isto é, uma complacência naquêle que
se ama. ~ o que revela o primeiro teste-
munho dêste amor na literatura neotestamen-
tária: às margens do Jordão, quando no ba-
tismo de Jesus, o Pai celeste declara seu amor
por seu Filho e explica: "No qual pus minhas
complacências" 1• Semelhantemente, quando
S. Pedro exortar os cristãos à caridade fra-
terna, determinará : "Do íntimo do coração
amai-vos, pois, intensamente, uns aos outros" 2 •
Se os maridos devem amar suas mulheres,
como a si mesmos e como Cristo amou a

1 Mt3,17, cf. 12,18; 17,5; Me 12,6. O Filho de Deus,


objeto adequado à caridade divina é designado como
o Amado por excelência (Ef 1,6; cf. "O Filho de seu
amor", Col l,13. Os cristãos serão igualmente o ob-
j eto do am or do Pai ( 1Tes 1,4; 2Tes 2,13; Col 3,12;
Jud 1) especialmente o alegre doador (2Cor 9,7).
2 lPdr 1,22: a posição enfática da menção : "do
íntimo do coração" assinala a nuança afetiva, aliás
sensível dêste amor (cf. o ósculo da caridade: 5,14).
S. Paulo observa que a caridade só pode brotar
de um coração puro (1Tim 1,5).

17
2 ·Caridade . .•
Igreja 3, é que o "agápe" sobrenatural assume unjão 8 • Finalmente segundo S. João: ter
tôdas as nuanças do mais terno e mais es- "agápe" é fazer m orada naquele que se ama
pontâneo amor humano. (Jo 17,23-26) quer o discípulo esteja em per-
Tra ta-se, p ois, de uma profunda união, de manente união com o Cristo, como o sar-
uma adesão de todo o ser - como sugere o m ento na videira ( 15,9-10), quer o Cris to e
emprêgo do verbo "kollasthai" que originou s~u Pa i venham morar nêle, como h óspedes
no francês o t êrmo "coller" 4 , juntl'\r - de em uma casa (14,23, cf. lJo 4,12); o amor é ao
um vinculo 5, de um arrebatamento, ou de m esmo tempo o vínculo e o m eio da comu-
um abraço,. tal a caridade do Cristo que nos nhão: p ermanecer no "agápe" é permanecer
envolve e nos estreita (2Cor 5,14) em uma em Deus ( 1Jo 4, 16).
união recíproca ou comunhão 6, de tal manei- Esta afeição é totalmente benévola para
ra que um nôvo tipo de relações é ins taurado os outros, segundo o adágio clássico : "A.mar
entre Deus e os seus: não somente aquêle é querer o b em daq uele que se a ma". O mís-
faz viver êstes, mas entra em sociedade com tico S. João não hesi tará em fo rm ular votos
êles e estará presente entre êles 7 • Perder a de felicidade humana a seu discípulo Gaio:
caridade seria separar-se e afastar-se do Cris- "Caríssimo, desejo que prosperes em tudo e
to à maneira dos esposos que desfazem sua tenhas saúde" (3Jo 2); e é segundo a m esma
doutrina que S . Paulo observará: se nossa
J Ef 5,25,28,33; cf. 2Cor 11,11: "Que eu não ..vos conduta "contrista" nosso próximo, é que e la
amo? Ab! Deus o sabe!" 2,4;U,15: Cf. C~l ~,14: Lu-
cas, o médico muito amado; lTlill 1,2 : Timóteo, o não é inspirada pela caridade 9 • Do m esmo
amado filho". .. m odo ninguém pode a mar se não tem um
4 Cf. Rom 12,9 : " Aborrecei o mal, aderi ao bel? .
1Cor 6 17: "Quem se une ao Senhor faz um só esplnto
com êÍe"· Mt 19 S: "O homem se unirá à sua mulher a Rom 8.35 : " Que m nos separará do a mor de
e os dois' torna~·se-ão uma só carne"; Ef 5,31 : "Amar Cristo?" v. 39 : "Nada nos poderá separar do amor
em verdade" (2Jo 1; 3Jo 1) p ode ser traduzjdo: amar que Deus tem por nó-; no Cristo J esus nosso Senhor".
profundamente. Comparar M t 19,6: "O que Deus uniu, o homem não
s Col 3.14; o contr ário é a tibieza (Apc 2,4 ). separe" com ! Cor 7,10: "Que a mulher não se separe
6 "Koinomia" Rom 12,13; !Cor 1,9; 2Cor 13,13; Flp de seu marido". - Não amar majs é detes tar: Rom
2 J · lJo J ,3: " O que vimos e ouvimos vô-lo anuncia- 9,13; H eb r 1,9; IJo 4,20: "Se a lguém ctiz: eu amo a
~~s. para que também tenhais ~omunbão c~nosco e Deus, mas odiar seu irmão, é um men tiroso. Aquê-
para que a nossa comunhão seja com o Pai e com le que não ama seu irmão, a quem vê, como pode
seu Filho Jesus Cristo". amar a Deus a quem não vê?"
1 2Cor 13,11 : " O Deus da caridade ... estará con- 9 Rom 14,15; cf. Lc 6,31: "O q ue quereis que vos.
vosco". façam os h om ens, fazei-o vós também a êles".

18 19
bom coração ou, como disse de maneira ex- como S . Paulo dando-nos êste testemunho:
celente s. Lucas: "um coração nobre e gene- cheio de doçura e gentileza para com os tes-
roso" (Lc 8,15); isto é, chei~ de. be~gnidade salonicenses, êle envolvia-os d'! ternura e cui-
e humildade 10, inclinado à m1sencórd1a - tal dados, como uma m ãe que cuida de seus
como o bom Samaritano (Lc 10,33-37) - é filhos (lTes 2,7; cf. Ef 5,29).
capaz de uma terna compaixão ( 6,36; cf. Rom Esta última comparação é suficiente para
9,15). evocar as múltiplas nuanças da delicadeza,
Se é preciso saber, com efeito, alegrar-se do encanto, da afabilidade e de tato que en-
com os que estão alegres, é preciso também cerra o "agápe". Radicalmente inimigo do
chorar com os que choram (Rom 12,15 ). O egoísmo, ignorando tudo quanto é de seu
que ama é terno ( 12,10) e êle sente profun- próprio interêsse, o que ama não procura
dam ente tudo o que atinge seu irmão. Não seu próprio proveito, mas o que é proveitoso
apenas êle é extremamente sensível ao espe- para os outros. "Tudo é permitido, mas nem
táculo da miséria 11 , mas su a compaixão é tão tudo é construtivo. Que ninguém procure seu
intensa quanto doce (Tg 5,11 ); poder-se-ia próprio interêsse, m as o dos outros" (lCor
dizer : maternal. Em verdade ama seu pró- 10,24; cf. Flp 2,4 ).
ximo pelo qual sente a mais viva inclinação 12 , De uma polidez rara, nunca deixa de ob-
servar as conveniências, não se permitindo ne-
10 lCor 4,21 ;13,4; Gál 5,22-23;6,1; 2Çor 6,6; Col 3,
12-14: "Revesti-vos, pois, como escolhldos de Deus, nhum procedimento incorreto, não se deixan-
santos e amados, de sentimentos de misericórdia, do levar nem pela tôla e pretenciosa vaidade
de benignidade, de humildade, de mansidão, de pa-
ciência suportand~vos uns aos outros, e perdoand~ que humilha o próximo, nem pela cólera e
-vos ~utuamente, se algum tem razão de queixa animosidade.
contra o outro. Assim como o Senhor perdoou a
vós também vos perdoai reciprocamente. Sobre- Nã o é que ignore os defeitos ou os êrros
tud~. porém, tende caridade que é o vínculo da daquêles que ama, mas em ~ez de divulgá-los,
perfeição".
11 Ef 4,32; Pdr 3,8: "Vive i todos de perfeito acôr- silencia-os, e suporta com paciência 13 , longa-
do em união de sentimentos no amor fraterno, cheio
de compreensão e humildade". Cf. Flp 2,1.
12 2Cor 9,14 : "Pela prece que êles dirigem em
de que modo vos amo a todos com a ternura de
vosso favor, êles se enchem de ternura por vós J esus Cristo"; 2,26;4,l : "Meus muito amados e dese-
por causa da graça supereminente de Deus derra- jados irmãos, minha alegria e minha coroa".
13
mada sôbre vós"; Flp 1,8 : "Deus me é testemunha S. Pa ulo, tendo dado como a primeira carac-
terística da caridade que "ela é paciente" ( lCor 13,4;

20 21
nimidade e amenidade, êste próximo exaspe- Como todo amor verdadeiro a "agápe"
rante 14_ Mais ainda, encoraja-o, persuade-o, une doçura à fôrça. A espôsa do Cântico
tranqüiliza-o sem violência 15, e sempre se es- dos Cânticos, comparando a caridade a um
1
força para fazer reinar a concórdia e a paz ó . exército em ordem de batalha, cha mava-a
Assim agindo, tem certeza de amar como "forte como a morte" ( Cânt 2,4;8,6-7 ). O Nôvo
Deus ama. Sendo êle o "Deus da caridade Testamento considera-a como um fogo (Mt
e da paz" (2Cor 13,11 ), seus filhos caracteri- 24,12), e daí compara seu progresso com os
zar-se-ão não só como pacíficos , mas também diversos graus de temperatura 18. Em vez de
como pacificadores 17 • ser negligente como entorpecido de frio, o
cristão é ardente de fervor 19, e esforça-se para
chegar ao "paroxismo da caridade" 20 • Esta
Gál S,22): "O fruto do EspíritC? é a paciência'';_ ~ fôrça quase incoercível e que se manifestará
primeira das versões latinas (V1tus Ita~a) traduziu.
"ela é magnânima". ~ claro, com efeito, que ~ma no zêlo mais generoso, S. Pedro qualifica-a
paciência também desinteressada, comport~do este com uma expressão de intensidade e vivaci-
supremo domíniÕ de si, sem dure.z a, e tnunfand?
tão bem da adversidade quanto dos maus .Pr?ced1- dade, empregada aliás a propósito de uma
mentos do próximo, é UII!ª be!a magnan1rm~ade. amizade soücita e generosa : "Amai-vos uns
14 Ef 4,2: "Levai uma Vlda digna d~ vocaçao a
qual fôstes chamados, com tôda a h'?111ldade, man- aos outros intensamente" (lPdr 1,22;4,8). A
sidão e paciência, suportando-vos ~utuamente ~or caridade é como um fogo ardente que não
caridade solicitos em conservar a urudade do espírito pode e nem se deve conter.
pelo vín~o da paz". ~ál 4,2: ''I;ev_ai os. fardos. u~~
dos outros: desta manerra cumpnre1s a lei de Cnsto .
is Flp 2,1: A persuasão no amor"; 2Tes 2,16.
16 Rom 12 18: "Se é possível, tanto quanto de-
pende de vós' tende paz com todos". Fim 7: "D~ fato
tive grande alegria e consolação pela tua caridade,
porquanto muitos santos foram reconfortados por
ti" Caridade e paz são correlacionadas (2Tim 2,22; 18 Cristo declara à Igreja de Laodicéia: "Conhe-
J ud 2) como frutos do Espírito Santo na alma rege- ço a s tuas obras, sei que não és nem frio nem
nerada (Gál 5,22). . quente. Oxalá fôras frio ou quente. Mas porque
11 Mt s 9: "Bem-aventurados os padficos, porque és. morn?• nem fno, nem quente, vou vomitar-te da
serão cb~ados filhos de Deus"; RoD?-14,17-19: . "O minha boca" (Apc 3,15-16; cf. 2,4).
19
reino de Deus não é comida, nem b ebida•• mas JUS- • Cf. R_om 12,11: "Na solicitude não sejais pre-
tiça, paz, gôzo no Espírito Santo. 9 uem deste modo guiçosos, sede fervorosos de espírito, servindo ao
serve a Cristo, agrada a Deus. e e aprovado. pelos Senhor".
211
homens. Sigamos pois as coisas que contnbuem • Em grego profano o paroxismo marca o ponto
para a paz e para a edificação mútua". mais alto de uma febre.

22 23
"' ' II

AS CARACTER1STICAS
DA AUT~NTICA CARIDADE
Os traços precedentemente evocados po-
deriam servir a qualquer grande paixão hu-
mana e é bom saber que um filho de Deus
amará seu Pai que está nos céus e seus
irmãos da terra no sentido verdadeiro da
palavra amar, o que S. João chamará: "por
obras e em verdade" ( lJo 3;18). Mas se o
"agápe" é um maravilhoso amor, e especifi-
camente cristão, indissoluvelmente ligado à
virtude da fé 1 e isto quer d izer que é preciso
cuidado com as eventuais contrafações. Os
apóstolos sabem que o coração mais ardente
não é necessàriamente o mais puro, que o
devotamento mais heróico não é sempre o
mais sobrenatural 2 e êles caracterizam a ca-
ridade dos fiéis por êste sinal : uma autêntica
caridade 3 • Que quer dizer?

1 Cf. Ef 6,23 : "Paz aos irmãos e caridade com


fé da parte de Deus Pai e do Senhor Jesus Cristo".
z Cf. Cor 13,3: " E ainda que distribuísse todos
os meus b ens para o sustento dos pobres, e entre-
gasse meu corpo para ser queimado, e não tivesse
caridade, de nadcr me aproveitaria".
J Rom 12,9: " O amor seja sem fingimento" ; 2Cor
6,6: " Em tôdas as coisas nos m ostramos como mi-
nistros de Deu s . .. com a caridade não fingida"; 8,8 :

27
a) Sem diliculdade, o "agápe" distingue- meter a vexame", sendo êste gênero de ofen-
-se das afeições comuns ou do am or de con- sa uma variação do desprêzo 7 • Do mesmo
cupiscência pelo seu sen tido de "respeito" e modo quando o Senhor prescreve o amor aos
culto da beleza 4 : é um a mor de nobreza. nossos inimigos, não nos pode ordenar que
Logo ap·ó s ter prescrito aos romanos um tenhamos para com êles a espécie de amor
"amor sem fingimentos", S. Paulo comenta: que nos une aos que nos amam; tôda a re-
"Aborrecei o mal, aderi ao bem" (Rom 12,9), ciprocidade de afeição característica da ami-
e continua no mesmo sentido: "Adiantando- zade pràpriamente ruta, está, aliás, excluída
-vos em honrar uns aos outros". S. Pedro no caso; preceitua, porém, primeiro e acima
será ainda mais enérgico : "Honrai a todos, de tudo respeitar nossos adversários 8 • f. igual-
amai os irmãos, tem ei a Deus, respeitai os mente neste sentido que os fiéis deverão con-
r eis" (1Pdr2,17). siderar os presidentes d e suas assembléias
Já no grego profano e na tradução do "tende com êles uma caridade particular" 9 •
Antigo Testamento feita pelos LXX, sabia-se Freqüentes vêzes é dada importância
que o verbo "amar" significava: "ter respei- m aior à veneração que ao amor. S. Jerônimo
to, dar grande importância, manifestar con- já observava que, numa súplica ou numa
sideração" 5 ; seu contrário é menos "ornar"
que " desprezar e menosprezar" 6 e até "sub- odiar um e amar o ou tro, ou há de afeiçoar-se a
um e desprezar o outro"; !Tim 6,1-2: "Todos os es-
cravos que estão sob o jugo considerem a seus se-
" Para experimentar com solicitude dos outros a s in- nhores dignos de tôda a honra para que o nome
ceridade de vossa caridade", lPdr 1,22: "Purificando do Senhor e sua doutrina não sejam blasfemados .
vossas almas na obediência à verdade para vos amar- Os que têm senhores fiéis, não os desprezem por-
des como irmãos". que são. ii_-mãos, antes os sirvam melhor pelo fato de
4 Um manuscrito do livro do Eclesiás tico, com- serem f1é1s e amados (agapétoi)".
7 Sab 11,25: "Tu amas tudo que existe e não
posto pelo ano 180 antes da nossa era celebra a
sabedoria como "Mãe do belo amor - :'Mater pul- aborreces nada do que fizeste"; cf. Lc 6,27-28: "Amai
cbrae dilectionis". os vossos inimigos . .. orai pelos que vos caluniam".
s :E. ainda a acepção de "agápe" e m 2Tes 2,10, s Mt 5,44,47. Sa ber reconhecer as qualidades de
onde S. Paulo verbera os ímpios que não quiseram um adversá rio " A caridade aplaude a verdade" e o
r eceber "o amor da verdade" que Deus propõe a bem onde êles estejam {l Cor 13,6). Conservar a
todos, isto é, "a estima e o culto da verdade, sob estima pelo inimigo que é digno dela, inclinar-se
q!1~1que~ _forma que ela. s~ apresente, mas que a diante de tôda grandeza real, nos fôsse ela opri-
fe identificará com a religião de Jesus Cristo". mente, é o primeiro sinal da "agápe" autêntica.
6 Por exemplo, nas sentenças de Mt 6,24: "Nin- 9 lTes 5,13. A figura hiperbólica prova que se
guém pode servir a dois senhores: porque ou há de trata de respeito mais que de amor.

28 29
apóstrofe epistoJar, o adjetivo "amado" ( aga- pelo sêlo da honestidade 14, de tal maneira
p é tos) não significa um extremo amor, " bem que a "agápe", excluindo tôda a vilania, está
amado" 10, mas "caro reverendo". be·m próxima da altivez e da limpidez: o
t um título de h onra, uma designação apóstolo da caridade foi o homem mais alti-
religiosa dos cristãos, e significa que a fra- vo que houve e que veJava zelosamente por
ternidade que os une não é de modo aJgum sua honra ts.
uma camaradagem 11 ; êle conserva a delicadeza
e a reverência que os religiosos dirigem aos b) Cheia de delicadeza e de um sentido
sêres santos, animados por urna mesma graça, moral muito apurado, a caridade será reco-
"irmãos em Cristo". nhecida por todo benefício recebido e pro-
Aliás, o Deus do Antigo Testamento que curará traduzi-lo por uma gratidão adequa-
tratava suas criaturas com grande respeito da 16. t evidente. Mas o Nôvo Testamento
(Sab 12,18), honra seus filhos no Nôvo, pre- insiste sobretudo sôbre seu desinterêsse, a
d estinando-os à glória ( lCor 2,7; Rom 8,18,21 ); ponto de opor aos pecadores que amam só
e quando Cristo se sacrifica por amor pela
Igreja, é para que ela seja "gloriosa", sem Cristo por caridade, outros por baixa intriga (Flp
1,16). Se o Apóstolo não hesita em se mostrar exi-
mancha nem ruga 12 • A seu exemplo, os que gente ou severo, é porque se dirige a "filhos carís-
têm caridade revelam-se pela pureza de in- simos", isto é, cristãos que êle respeita ( lCor 4,14 ).
~ a conduta própria de Deus que "corrige aquêle
tenção, pela nobreza dos motivos que inspi- que ama" (Hebr 12,6 = Prov 3,11).
14 Rom 12,17: "Não torneis mal por mal a nin-
ram sua conduta 13 ; esta é sempre assinalada
guém, procurai fazer o bem diante de todos os
homens"; 2Cor 8.21 : "Verdadeiramente procuramos
10 "Agapétos, dilectus est, non dilectissimus" (S. fazer o bem não só diante de Deus, mas também
Jerônimo, Epístola LVII, 12). diante dos homens"; Hebr 10,24: "E sejamos solícitos
11 E. assim que o Concilio de Jerusalém recomen- uns para com os outros para nos estimularmos à
da acolher bem seus delegados, "nossos muito ama· caridade e às boas obras". "Não te d eixes vencer
dos Paulo e Ba rnabé" (At 15.25, cf. Tg 1,16,19;2,5; pelo mal, mas vence o mal com o bem" (Rom 1211 ).
JTes 2,8; 2Pdr 3,15 etc.). O filho único e querido is 2Cor 8.21. Semelhantemente S. J oão, verberará
entre todos (Me 12,6; Lc 20,13) é o filho digno de duramente o cristão, cuja caridade não é autêntica
ser respeitado. como um mentiroso (lJo 1,20); êle se desonra. '
12 Ef 5.27; Hebr 2,10. O acesso do povo cristão 16Lc 7,42; 1Jo4,19: "Nós, portanto, amemos a
ao reino é atribuído à " agápe" do Cristo pelo Apc 1,5. Deus. porque êle nos amou primeiro". Até Deus é
Se Nosso Senhor ama o jovem rico, é que êle admira reconh ecido pelo amor que se tem a seu Filho e ao
sua · fidelidade aos preceitos e lhe manifesta sua qual êste se mostra tão sensível: "Aquêle que me
estima (Me 10.21). ama será amado por meu Pai e eu o amarei e me
13 Na igreja de Roma os bons cristãos pregam a manifestarei a êle" (Jo 14,21 ).

30 3!
quem os ama, os filhos de Deus que amam identificação e na imitação e não poderá dei-
e dão sem esperar r ecompensa (Lc 6,32 ,34 ). xar d e inclinar-se à concórdia p erfeita entre
Esquecido dos maus procedimentos de os membros de uma mesma comunidade!
.que foi vitima - visto que a "agá pe" não "Idem nolle et velle!" E. assim que o cristão
guarda ressentimento (lCor 13.5) - o qu~ se ajustará de qualquer m aneira à alma de
t em caridade persiste em seu amor e contt- seu próximo, a daptar-se-á a seu comporta-
nua a devotar-se. ainda que devesse êle ser m e- mento, estará de acôrdo com êle, procurará
nos amado em p aga (2Cor 12,15). O grande compreendê-lo e adotará de certo modo o
princípio é o de ! Cor 13.S: "A caridade não m esmo estilo de vida 17 •
busca seus próprios interêsses". com entado
por Rom 15,1-3: " Nós que somos mais fortes c) A "agápe" caracteriza-se por sua es-
devemos suportar as fraquezas dos débeis e tabilidade e sua duração. Por um lado, com
n ão nos comprazer em nós mesmos. Cada um efeito, é a garantia da esp eran ça: se esta úl-
de nós p rocure agradar a seu próximo no que tima é inconfundível, é porque a caridade de
é bom para a edificação. Porau e Cristo ne- Deu s lhe fornece um fundamento imutável
nhuma atenção teve a si mesmo" S. Paulo. (Rom S,5;8,28 s.·).
que imitava êste exemplo. poderia p or sua vez Eis por que a caridade que constrói, ser
oronor-se com o modêlo : "Como tamb ém em tidamente ( Ef 4,16 ), opõe-se normalmente ao
tudo nrocuro agradar a todos, não buscandn vento da gnose (!Cor 8,1 ), ou a êstes carismas
1
'O meu proveito pessoal , m as o do m a ior n\ - - bronze e címbalos - que apenas produzem
mero. p ara que sejam salvos" ( lCorl0,33). sons (lCor 13,15). Ela é como uma funda-
Segue-se que na vida comum os que amaui
a caridade sab erão passar po r cima de seu!" 11 Rom 15,5: "O Deus da paciência e da consola-
ção vos conceda ter uns para com os outros os
-gostos e de suas concepç~es demas_iadament~ mesmos sentimentos segundo J esus Cristo, para que
pessoais, para melhor ajustar-se a mentali- unânimes, a uma b ôca, glorifiqueis a Deus e Pai de
nosso Senhor J esus Cristo". 2Cor 13,11 : "Tende o
dade e à psicologia de seus irmãos ( cf. Rom mesmo sentir, vivei em p az e o Deus da caridade e
12,16 ). Não h á união profunda sem certa da paz será convosco". Flp 2,2: "Tendo todos o mes-
mo pensar, a m esma caridade, uma só alma, o mes-
harmonia de pensamen tos, de sentimentos, da mo sentimento; 4,2 : "Rogo a Evóctia e suplico a
maneira de viver e de sentir. Se a caridade Sintique que tenham os mesmos sentimentos no
Senhor"; lPdr 3,8 : "Sêde todos de um mesmo ce>-
é um amor verdadeiro, ela será poderosa n a ração, compassivos, amantes dos irmãos".

32 33
3 - Coridade . •.
ção ou uma raiz profunda de que depende única realidade da terra que perma necerá,
a estabilidade, a fôrça de tôda a estrutura tal como é, no outro mundo.
da vida cristã 18• Essa perenidade, que é a sua excelência
Por outro lado e sobretudo, a " agá pe" suprema (lCor 13,13 ) sugere a na tureza mui-
é' por si um amor indefectível (cf. Jer 31,3 ). to espiritual d êste amor: " Caridade que o
Diferente dos outros amôres, êle é feito para Espírito vos inspira" ( Col 1,8). Não há como
durar e ternamente. Isso já poderíamos con- ~ "pneuma" que seja incorruptível ( Sab 13,1 ),
cluir pela designação dada aos cristãos na inacessível às provas do tempo e à m orte.
expressão "irmãos amados de Deus" 19 , depois Daí a concl usão da Epístola aos Efésios: "A
da exigência de se unir imutàvelmente, defi- graça seja com todos os que am am nosso
nitivamente ao Senhor , sem possibilidade de Senhor J esus Cristo de um modo inalterável"
voltar a trás, co mo um escravo a seu senhor :li; (6,24 ).
e ainda a fôrça, a "posse" dês te amor que
mata o velho homem (2Cor 5,14 )... Mas d) Tôdas estas observações, por carac te-
S . Paulo ensina expllcit amente: "A caridade rísticas que sejam, são e ntretanto secundárias
nunca há de aca bar " 21 , não .terá fi m. .E. a em relação ao "caráler d inâmico e manifesto
da "agápe". Entre todos os ou tros a môres,
as Ef 3,17: "De sorte que estejais arraigados e a caridade dislingue-se nisso: que ela se de-
fundados na ca r idade". l Tes 3,12-13: "Que o Senhor
vos faça cresct;r e abunda r na <?aridade . : . que vos- clara, age e se demonstra 22• Não pode fica r
sos corações, livres d e cul pa, sejam confir mados na oculta no co ração. .E. preciso - é sua natu-
santidade .. . p or ocasião da vinda de Nosso Se nhor reza m esmo - que se revele 23 e se exprima
J esus Cristo com todos os seus santos. 1Jo2,10 :
"Quem ama 'seu irmão permanece na luz e nêle não da ma neira mais expressiva .
há ocasião de q ueda".
19 "Egupé menoi" (JTes 1,4); 2Tes 2,1~; cf. Sab 3,9;
"Mas Deus m a nifesta sua ca ridade para
Jo 10,27-30: "Minhas ovelhas ouvem mmha _voz; eu conosco" (Rom 5,8 ). Tô da a realização da
as conheço e ela s me seguem. Dou-lpes ~ vida eter- salvação do mun do é o desdobramento da
na; elas ja mais hão de perecer e: mnguem as arre;-
bata rá de m inha mão. Meu Pa1 que m as deu, e caridade divina: "pela extrema caridade com
maior que tôdas as coisa s; e ninguém pode arre-
batá-las da mão de m eu Pai". 22
20 Mt 6,24 : "amar" é paralelo à "afeiçoar-se";_ ve_r- A carida de n ão faz mal ao próximo (Rom 13
bo de duração e fidelidade que implica permanenc1a 10) . Ama r é agir, realizar (Gál 5,6). '
_ ,.
23
na adesão. Jo14,2,~ : " E ei_.i o amarei e me manifes tarei a
21 lCor 13,8; cf. Jo 13,1 : "Tendo amado os s e~~ ele . 14,31 : ~ preciso que o mundo saiba que eu
amo o Pai".
que estavam no mundo, amou-Os até ao extremo .

34 35
preciso traduzir: "manifestação de amor" e
que nos amou". O envio de seu Filho e a
subentender: "da maneira mais eficaz". Por
a crucificação são uma evidência do amor de
exemplo: amar seus inimigos, não é experi-
Deus pelos homens: "Nisto se manifestou a
mentar a seu respeito um amor sensível, mas
caridade de Deus para conosco" 24• E uma
prestar-lhes bons serviços (Mt 5,43-48). A pe-
epifania 25 • Por conseqüência os cristãos são
cadora anônima de Lc 7,4448, que ungiu os
convidados a provar, êles também, a auten-
pés de Jesus e enxugou-os com seus cabelos
ticidade do amor que têm no coração (2Cor
"demonstrou muito amor", tal como o bom
8,8), a exibi-lo e fazer sua demonstração em
samaritano que socorreu o ferido (Lc 10,30-37).
face das igrejas ~; é por isso que êles próprios
Os maridos não se contentarão em amar suas
reconhecerão a realidade de sua caridade; ou
mulheres; deverão manifestar-lhes êste amor
melhor : "Por isso reconhecemos que somos
(Col 3,9; Ef 5,25-33). Se a nova lei cumpre-se
da verdade e tranqüilizaremos os nossos co-
plenamente em um único preceito, é sob a
rações diante de Deus ... " (lJo 3,19). condição que traduza efetivamente sua cari-
:E:stes textos indicam que se trata antes de dade para com o próximo (Gál 5,14 ).
atos que de palavras. Cada vez que o Nôvo Quando se trata do amor de Deus, a ca-
Testamento emprega a palavra "agápe", é ridade torna-se pràticamente sinônimo de ob-
servar os mandamentos ou de guardar a pa-
24 JJo 4,9, d. 2Tim 1,9-10: "Nisto se manifesto~ a
caridade de Deus para conosco em que Deus c;nv1ou lavra do Senhor: "Se me amais, observareis
seu Filho unigênito ao mundo para que por ele te- meus mandamentos" (Jo 14,15 ); " Aquêle que
nhamos a vida". _ retém meus mandamentos e os guarda, êsse
is Tt 211: "A graça de Deus, fonte de salvaçao
para todo's os homens, manifestou-se"; "quando se é o que me ama" ( 14,21 ); "Se alguém i:ie
manifesta a bondade de Deus, nosso Salvador, e seu
amor pelos homens ... salvou-nos" (3,4). ama, guardará minha palavra. . . O_qu~ nao
26 2Cor 8,24: "Nêles, pois, mostrai em face das me ama não guardará minhas palavras ( 14,
Igrejas, a prova da vossa caridade e por que nos
gloriamos de vós"; Col 1,8: "O g~al tamb_ém . n~~
23-24 ); "Se observardes os meus preceitos,
informou da caridade que o Espmto vos mspira . permanecereis no meu amor, como eu obser-
Hebr 6,10: "Deu s não é injusto para que se esqueça
de vossa obra e da caridade que mostras.tes em vei os preceitos de meu Pai e permaneço no
seu nome, vós que servistes aos sant.os e amda os seu amor" ( 15,10). "Nisto conhecemos que
servis". 3Jo 6: "lô:les deram testemunho de tua ca- amamos os filhos de Deus, se amamos a Deus
ridade diante da Igreja". Cf. as "obras" do Apc 2,19
e sobretudo a "caridade que tendes para com todos e guardamos os seus mandamentos; efetiva--
os santos" (lTes 1,4).
37
36
mente, o amor de Deus consiste em guardar- e Pai nosso, o qual nos amou e nos deu ... "
mos os seus mandamentos" n. (2Tes 2,16 ).
Da mesma maneira que, por conseguinte, Compreende-se que caridade é plenitude
tôda a orientação divina, inspirada pela "agá- e "plenitude transbordante" 31 , ávida de se de-
pe", faz concorrer tôda a ordem do mundo votar, e servir totalmente 32, de sacrificar-se.
para o bem dos eleitos (Rom 8,28), os filhos Por mais delicada que seja sob certos aspec-
de Deus provarão a autenticidade de sua ca- tos, é· primeiro e acima de tudo o amor mais
ridade desdobrando-a em boas e belas obras, forte e mais generoso que exista. Seria ir-
mantendo-a sempre ativa e generosa 28 • risório encará-lo simplesmente como benevo-
Amar é constantemente sinônimo de agir lente e pronto a prestar bons serviços. Ela
com belas ações 29 , boas obras (!Tim 6,18), não conhece limites em suas afeições e 13 seus
fazer o bem 30 e bem entendido "dar": "Dá a dons 34•
quem te pede e não voltes as costas ao que Ela não parece satisfeita enquanto não
deseja que lhe emprestes" (Mt 5,42); "Deus se expressa no sacrifício da própria vida; ao
menos aí está sua medida adequada, a "de-
n IJo 5,2-3; cf. 2Jo 6 : "O amor de Deus consiste monstração" q ue lhe é própria (Rom 5,8),
em guardarmos seus mandamentos". S. João é fiel
à teologia do Antigo Testamento que define a carida- sua revelação indubitável 35 : "Não há maior
de e m prime iro lugar pela fidelidade: "Eu, Javé . ..
u so de misericórdia até mil com aquêles que me
amam e guardam meus preceitos" (~x 20,6; Dt 5,10; 31 Cf. a união caridade-abundância (lTes 3,12;
7,8-9). "Ama, pois, o Senhor teu Deus e guarda em 2Cor 8,7; Flp 1,9); acrescer (2Tes 1,3), superabundar
todo o tempo os seus preceitos, as suas leis, as suas (!Tim 1,14), crescer (Ef 4,15-16), encher (Jud 2) .
ordenações, os seus mandamentos" (Dt 11,1; cf. 19,9). .n A caridade une àquele que se ama co~o o
"O ~or é a observância de suas leis" (Sab 6,19) etc. escravo é ligado a seu senhor (Mt 6,24); "servi-vos
24,4,13. uns aos outros pela caridade" (Gál 5,13); é o que
ia Se o serviço imediato ao próximo não é visível, realizaram os "hebreus" a respeito de seus irmãos
a prece é a "obra" mais eficaz; cf. Mt 5,44: "Amai (Hebr 6,10).
os vossos inimigos ... orai pelos que vos perseguem"; l3Rom13,8: "A ninguém devais coisa alguma a
Rom 15.30: "Rogo-vos, pois, irmãos, por nosso Senhor não ser o amor mútuo".
Jesus Cristo e pela caridade do Espírito Santo, que 34 2Cor 12,15: " E eu de mui boa vontade darei o
me ajudeis nas minhas lutas com vossas orações que é meu e eu mesmo m e darei a mim pelas vossas
por mim a Deus".
29 Lc6,27; Flp4,14; Tg2,8; 3Jo6: "Farás bem em
almas".
lS IJo 4 9: "Nisto se manifestou a caridade de
prover suas viagens de um modo digno de Deus". Deus para ' conosco, que enviou seu Filho unigênito
30 Lc 6,9.33.35; 3Jo 11 : "Quem faz o bem é de
ao mundo para que por êle tenhamos a vida ... "
Deus; quem faz o mal não viu a Deus".
39
38
amor que dar a vida pelos seus amigos" 36 • ao menos neste sentido que a imolação de si
Poder-se-ia dizer que a caridade é por si é a única prova da autenticidade do amor.
mesma "heróica", como sugerem os exemplos À Igreja de Filadélfia, o Senhor ressuscitado,
que o Senhor propõe no sermão da monta- lembrando sua Paixão, invocará êste teste-
nha (amar seus inimigos, dar sua túnica àque- munho decisivo: "E reconheçam que te amei"
le que pedia apenas o manto, pagar o mal (Apc 3,9).
com o bem, não resistir ao mau) e o teste-
munho dos mártires: "desprezaram sua vida
até morrer" (Apc 12,11 ). Do mesmo modo
S . João confessa ter conhecido o que é a "agá-
pe" por ter o Cristo dado sua vida por nós.
e considerando como um todo: "Igualmente
devemos também dar a vida pelos nossos ir-
mãos" ( lJo 3,16 ). O Mestre não tinha dito
a seus discípulos que amassem seus irmãos
como êle mesmo os amou? (Jo 15,12). Desde
o Calvário, que é a epifania da caridade de
Deus e do Cristo, há um laço indissolúvel
entre "amar", dar 37 e dar-se ou sacrificar-se 31;

36 Jo 15,1_3. O que o Evangelista comenta: ":Ele


lhes manifesta seu amor até ao máximo".
n Jo 3,16 : "Porque Deus amou de tal modo o
mundo que lhe deu seu Filho unigênito". Gál 1,4:
"Senhor Jesus Cristo, o qual se deu a si mesmo por
nossos pecados". 1Tim 2,6: "O qual se deu a si
mesmo para redenção de todos". Tt 2,14; lJo 3,1:
"Considerai que amor nos mostrou o Pai!"
31 Rom 8.32: "O que não poupou nem o próprio
Filho, mas por nós todos o entregou à morte, como se entregou". Apc 1,5: "Aquêle que nos ama e nos
não nos dará também com êle tôdas as coisas?" livrou dos nossos pecados pelo seu sangue". lJo 4,10:
Gál 2.20 : "Vivo na fé no Filho de Deus, que me "A caridade consiste nisso: em não têrmos sido nós
amou e se entregou por mim". Ef 5,2: "Cristo que que amamos a Deus, m as em ter sido êle que nos
nos amou e se entregou a si mesmo por nós a amou e enviou seu Filho como vítima de propi-
Deus". 5,25: "Como Cristo amou a Igreja e por ela ciação pelos nossos pecad . ."~~~~-----a..
BI BLIOTECA
40 l
DOMINICA NOS
B. Horizonte
N.º
---
III

A CARIDADE,
AMOR DIVINO E INFUSO
Torna-se, por conseguinte, evidente que
a "agápe" não é um amor humano. Somente
Deus pode amar com tal plenitude, tal imen-
sidade de dom 1• Assim como, depois de ter
aprendido no Evangelho a insigne bondade
do Pai que es tá nos céus, S. Paulo designou
Deus como o " Pai de misericórdia e o Deus
de tôda a consolação" (2Cor 1,3) e depois "o
Deus da caridade" (13,11); e S. João, indo
mais além, poderá definir a "agápe" do Pai
(lJo 2,15), dizendo também que "Deus é ca-
ridade" ( lJo 4,8,16).
Por conseqüência, se um homem pode
amar com autêntica caridade, será com a
condição de ter recebido participação dêste
amor propriamente divino: "A caridade vem
de Deus" ( lJo 4,7 ), e é ao Espírito Santo,
agente de comunicação dos dons de Deus e
de Cristo, que será atribuída esta infusão da
caridade na alma dos cristãos: O fru to do
Espírito é caridade" 2 ; "A caridade de Deus

' 1Jo4,l l : "Se Deu s nos amou assim ... " cf. 3,1.
l Rom 15,30 : " Rogo-vos, pois irmãos ... e pela
caridade do Espírito Santo"; Col 1,8; 2Tim 1,7: "Deus

45
está derramada em nossos corações pelo Es- Estas afirmações categóricas e multipli-
pírito Santo que nos foi dado" ( Rom 5,5). cadas são o comentário apostólico autorizado
Não somente o dom inicial do amor é de sôbre o sermão da montanha onde o Mestre
origem celeste (2Tes 2,10); mas todos os acrés- afirmava: "Amai. .. e sereis filhos do Altís-
cimos desta caridade não podem ser obtidos simo" (Lc 6,35 ; cf. Mt 5,45-48 ). Poder-se-ia
senão pela graça divina e tal é o objeto fun- compreender esta filiação no sentido amplo:
damental da prece cristã: "O Senhor nos faça manifestando amor ao seu próximo, o discí-
crescer e abundar na caridade" ( lTes 3,12). pulo de Jesus reproduz a conduta e os cos-
"E o que Lhe peço é que a vossa caridade tumes de Deus, possui os mesmos sentimentos
cresça mais e mais" (Flp 1,9). "O Senhor, e pode por isso ser considerado como seu filho .
pois, dirija vossos corações no amor de Deus" Mas S. Paulo e S. João declaram que não se
(2Tes 3,5). O que evoca o Dt 30,6: " O Se- trata de uma imitação moral, mas de uma
nhor teu Deus circuncidará teu coração e o filiação real. Se os fiéis divinamente gera-
coração de tua descendência para que ames dos devem e podem amar seus irmãos, é na
o Senhor teu De us de todo o teu coração e medida que são filhos de Deus, possuindo a
de tôda a tua alma" 3 . Como não se saberia mesma natureza e a mesma vida que seu Pai,
possuir esta plenitude, a lei da natureza da as quais exprimem-se conseqüentemente pe-
"agápe" cristã será a uma maior participa- los mesmos pensamentos e pelo mesmo amor:
ção dêste amor divino; amar cada vez mais "Nisto distinguem-se os filhos de Deus dos
(2Tes 1,3; Ef 4,15-16) até à consumação de filhos do demônio. . . Todo o que tem ódio
lCor 13,10-13; isto é, a caridade perfeita, carac- a seu irmão é um homicida, vós sabeis que a
terizada por uma fidelidade que ama a von- vida eterna não tem morada em nenhum ho-
tade divina ( lJo 2,5), um amor sincero e ge- micida". "Sabemos que fomos transladados
neroso para com o próximo (lJo 4,12) uma da morte para a vida porque amamos nos-
confiante, ousada e alegre firmeza em tôdas sos irmãos. Aquêle que não ama permanece
as relações com o Pai dos céus (4,17-18). na morte" (3,14 ).
Em verdade é o Filho encarnado, o bem
com efeito, não nos deu um espírito de timidez, mas amado de Deus, que permitiu-nos ser gerados
de fortaleza, de caridade, de temperança"; lJo 3;
24;4,13. por seu Pai (Jo 1,12), e nos r evelou o amor.
l O coração circunciso é o único que pode ser Seus discípulos, tornados filhos de Deus, de-
sensível à influência divina.

46 47
verão aprender de seu Irmão mais velho que
é amar. O Filho por natureza é o modêlo
imediato dos filhos adotivos : " Tal é êle, tais
somos nós nesse mundo" ( lJo 4,17). "Sêde,
pois, imitadores de Deus como filhos muito
amados e andais no amor a exemplo de Cristo
que nos amou e se entregou a si mesmo por IV
nós" (Ef 5,1-2; cf. 5,25-33 ).
Em outros têrmos, a "agápe" não é sO- CARIDADE E VIDA CRISTÃ
mente amor infuso, é uma afeição filial, o
c ritério do autêntico filho de Deus 4 •

4 Segundo S. J oão, "aquêle que ama" é uma


designação do cristão, equivalente à "aquêle que
foi gerado por Deus" ( lJo 4,6;5,18). ~ porque a ma-
neira mais perfeita de amor ao próximo é a cari-
dade fraterna a "philadelphia" que une todos os fi-
lhos de Deus (lTes 4,9; Rom 12,10; H ebr 13,1). Segun-
do l Pdr 1,22-23, o nascimento à vida da graça, a
santificação batismal impõe a prática do amor ao
próximo : o gerado está apto a amar divinamente.

48 4 - Caridade • • •
Estamos aq ui no âmago do cristianismo
e na fonte da moral cristã ; é o que se diz:
"estar na caridade" ( E f 1,4 ) ; "andai no amor"
( 5,2; 2Jo 6 ). Se Deus é amor e se os cristãos
são seus filhos, suas relações definir-se-ão
pela caridade. Os fiéis são chamados, por
sua vez, "aquêles que Deus ama" 1 e "aquêles
que amam a Deus" 2 • Não se pode mencionar
a profissão de fé do conYertidos que obede-
ceram à verdade e a professam, sem acres-
centar: "na caridade" ( Ef 4,15 ) ; o que é para
ser compreendido no sen tido mais vigoroso
que haja. Tôda a vida religiosa dos cristãos,
sua moral, o único precei to que lhes será im-
posto resumir-se-á no amor 3 •

1 ITes 1,4: "Irmãos amado de Deus"; 2Tes 2,13;


Rom 8,37: "Aquêle que nos amou"; Col 3,12: "Vós,
pois, como escolhidos de D eu~ . santos e amados";
Jud l.
2 Tg 1,12 ;25 ; !Cor 2.9; Rom 8,28; !Jo 4,20. Opor
"agápe" a "eros", como amor descendo de Deus ao
homem e ac.;ccndendo do homem a Deus, não tem
sentid o no ~ órn Testamento.
3 A vida cric;tã esc;encial define-se pelas virtudes
teologais (! Tes 1,3); algumas vêzes pela fé sôm ente,
S?b o ponto de vista que ela implica esperança e ca-
ndade, algumas vêzes pela caridade unicamente, indis-

51
pei~o religioso (servir uns aos outros pela
Dirigindo-se a seus discípulos , bem di-
4 c~ndade (Gál 5,13) . O homem integralmente,
ferentes dos pagãos por suas concepções e todas as suas faculdades são apreendidas as- 1

sua maneira de viver (Mt 5,43-48), Jesus lhes sumidas pela "agápe", de tal maneira que
tinha prescrito o amor a todos os homens nenhum ato, nenhuma virtude terá valor se-
como Deus os ama, a f im de ser perfeitos não na medida em que sejam manifestação
5
como o Pai celeste é perfeito • da caridade 6 • Tôda a conduta moral é unida
J á no fim de seu ministério, retomando literalmente "suspensa" ao amor. Até o cul~
e unindo os preceitos do Dt 6,5 e Lev 19,18, to, segundo S. Marcos, está subordinado à
" , " 7
êle precisa: "Amarás o Senhor teu Deus de agape ; porque para S. Lucas êste é o único
todo o teu coração, de tôda a tua alma, de meio de partilhar a vida eterna ª.
todo o teu espírito". E.ste é o maior e pri-
6 Sob uma forma ou sob outra S . Paulo acen-
meiro mandamento. O segundo é semelhan-
tua como a caridade inspira os pensamentos e os
te a êste: " Amarás a teu próximo como a ti atos dos cristãos; em, por, segundo a caridade.
mesmo". É sôbre êstes dois mandamentos lTes 5,13 : "Tende com êles uma caridade particular";
Rom 14,15: "Se teu irmão fica contristado já não
que repousa tôda a lei e também os profetas andas segundo a caridade; 15,30; 1Cor 4,21;16,14:
"Tõdas as vossas obras sejam feitas em caridade";
(Mt 22,37-40 ). Gál 5,13: "Mas servi-vos uns aos outros pela cari-
Trata-se de um amor de adoração e de dade"; Ef 2,4;5,2 ; "Anda i no amor"; Flp 1,16: "~stes
operam por candade"; Flm 9: "P refiro p edir-te por
posse exclusiva ( Mt 6,24; lJo 2,15-16): amar a caridade"; !Tim 11,15.
7 Me 12,33 : "Amar (Deus e o próximo) vale mais
Deus é consagrar-se-lhe e servi-lo fielmente;
~ue todos os holocaus tos e sacrifícios"; cf. Mt 5,23,24:
amar seu próximo é manifesta r-lhe um res- Portanto se estás para fazer tua oferta diante do
al~ar e te le~brai:es aí que teu irmão tem a lguma
. fé (Ef 6,23) Cf 1Tes 3,6: "Ti- com~ contra t1, deixa lá a tua oferta diante do altar
sofüvelmente unida à ~ da· vossa fé e da e vai reconciliar-te primeiro com t eu irmão e depois
m óteo . . .. dtradz~~d o-f. Gá~~a~ 6~C~l l.4: "Conhecedores
5
0 vem fazer a tua oferta".
8
vossa can a e , • • • •. • e da caridade que Lc 10,27. Cf. Dt 30,20: "Am arás o Senho r teu
da vossa fé em Jesus Cnsto .. Flm 5. "Por saber Deus ... faze ~sso e viverás". Segundo JCor 13,1-3, a
tendes para com todos os santos nif.. t ;, lTim 114· P?Sse dos m~s e levado_s. dons espirituais (a profe-
da tua caridade e da fé que ma es as . ' ' cia, o conh~crmento religioso, o poder de fazer mi-
T t 2,2; 2Tim 1,13;2,22;3!10; lPdr l ,8ó.s que me ouvis: lagr,es): ass1.!D c:,omo a ascese e as mais absolutas
4 Lc 6).7: "Mas digo-vos a v • _ ri:.nunc1as, na? tem nenhum valor se quem as pratica
... Cf Jo 13,35: "Nisto conhecerao todos que nao tem candade. Até o dom total de si mesmo
1
~: ~eµ~ discípulos, se tiverdes amor uns aos ~hega .~ ~ r~ult~do nulo diante de Deus, se a
agápe nao o msprra. Pode-se dizer que o cristão
outr~bonde lTes 4,9 : "P orque vós m esmos apre~­
destes de Deus que vos deveis amar uns aos outros .
53
52
me-se nestas palavras: "Amarás teu próximo
A fôrça, a solenidade desta declaração, ci- como a ti mesmo" .. . o amor é o complemento
tada pelos três primeiros evangelistas, mos- da lei (Rom 13,8-10 ); o que é retomado em
tra demais que não se trata de um ensina- Gál 5,14: " Porque tôda a lei se encerra nessa
mento como qualquer outro: Jesus quis defi- palavra: amarás teu próximo como a ti mes-
nir a essência da religião que trazia ao mundo mo" 9 • S e~ d úvida o Apóstolo terá de pres-
pelo conteúdo da Nova Aliança que selará crever muitos deveres djversos e muito con-
com seu sangue. Os apóstolos não se enga- cretos mas terá sempre o cuidado de relem-
narrun sôbre isso. S. ~aulo insistirá: se eu brar: "Tôdas as vossas obras sejam feitas
não tiver caridade não tenho nada, não seria em caridade ... andas segundo a caridade
nada, nada me aproveitaria (!Cor 13,1-3 ). procurai a caridade. . . andaj no amor ;, ·,~
Viver segundo a caridade é "um caminho ain- Mais ainda, quando estabelece Timóteo.~. tes~
da mais excelente" ( 12,31 ), em razão mesmo ta da Igreja de ~feso e antes de determinar
de seu valor. Em Cristo Jesus, nem a cir- as funções que seu delegado deverá cumprir,
cuncisão, nem a incircuncisão valem coisa al- ~eclara que a razão de ser do cargo pastoral
guma , mas sim a fé que obra pela caridade e fomentar a caridade: " O fim dês te preceito
(Gál 5,6). E ainda: "Aquêle que ama o pró- éª "agápe" (dos membros da comunidade)" 11.
ximo cumpriu a lei. Em verdade "não co- S. Pedro e S . Judas não concebirun de
meterás adultério; não matarás; não furtarás; outro modo a hierarquia dos valores cristãos.
não dirás falso testemunho; não cobiçarás"
e qualquer outro mandamento que seja resu- 9 Esta importância dada ao amor ao 6 .
compreende r-se-á melhor em Jo 3 .,1 5 2 - pr xi mo
terno supõe d ,L - , - o amor fra-
não vive senão p ela caridade, como não existe senão 6, IO: servindg :e7:~~~ã~seus eh d~le deriva .. Cf. Hebr
em Cristo. A caridade é a essência do cristianismo; o a~or que ê les tinham p~l~ :o~e:sd:':fe~~staram
sem ela o fiel não existe (na orde m da a lvação) .
Se pois a moral consiste em viver de acôrdo com agora lr~o~lt~l;16,14; Rom 14,15; Ef 5).; 2Jo S: "E
o que se é, a vida cristã não será nada mais que li IT"g 1 5 que nos amemos uns aos outros".
o desenvolvimento dêsse amor extremamente clinâ· forte qu~~s;o s~~~ 2Cor 2•8 >: Nada_ f<;?i dito ma is
mico. Designando a carida de como fo rma e m ãe de da instituição da i;ej~utoÜdade cristã e o sentido
tôdas as virtudes. os t eólogos exprimirão exatamente promover o bem suprem~ do;1fi , .e. outra tendem a
os dados do Nôvo Testamento : atraindo todos os e. do próximo. ~ esta finalida eis, o amor_de p eus
atos virtuosoc; sob o seu do mínio e orientando-os fica e orienta todo 0 •· de que s~sc1 ta, JUSli-
para seu verd riro fim, a car·d:ide é a inspiradora plina do Magistério. ensina men to e toda a disci-
e o moto r de tôda a conduta cristã (Sto. Tomás,
q. de Caritate, a. 3).
55

54
I
O primeiro prescreve: "Sobretudo tende uns dade consiste em que andemos segundo seus
para com os outros uma caridade ardente" u. mandamentos. f:ste é o mandamento segun-
O segundo: "Conservai-vos no amor de Deus, do o qual deveis caminhar como ouvistes des-
esperando a misericórdia de nosso Senhor de o princípio" (2Jo 6 ).
Jesus Cristo para a vida eterna" (Jud 21 ).
Quanto à S. João, não conhece senão o "an- a) Neste ponto, a caridade não é mais
tigo" mandamento porque êle foi prescrito somente a inspiradora da moral dos filhos
desde a conversão cristã (lJo 2,7-11; 2Jo 5), de Deus, nem mesmo a alma da religião nova,
"nôvo" porque trata-se de agora em diante ela constitui de qualquer modo "o ser e a
amar como o Cristo ama (Jo 13,34;15,12) - vida do cristão". Para os apóstolos, com
e que consiste em unir em um mesmo amor efeito, a fé é antes de tudo uma convicção
religioso: Deus, o Cristo, o próximo; o anel do amor objetivo de Deus para conosco e
de ouro do amor. É exatamente o que Jesus uma resposta a êste amor por uma doação
tinha ensinado e o que S. Paulo tinha reto- total de nós mesmos: "Reconhecemos a ca-
mado; mas a originalidade do Discípulo Ama- ridade que Deus tem por nós e cremos n ela;
do é não se unir a nenhuma outra coisa e Deus é caridade; quem permanece na cari-
não se interessar, em dogma como em moral, dade permanece em Deus" (lJo 4,16). S. Pau-
senão pela caridade. A abundância dos tex- lo definiu de idêntica maneira: "Vivo na fé
tos é significativa: "Temos de Deus êste man- no Filho de Deus que me amou e se entregou
damento que aquêle que ama a Deus ame por mim" (Gál 2,20). Um e outro revelam
também seu irmão" (lJo 3,21). "Se Deus nos o segrêdo de sua vida íntima, a alma de sua
amou assim também devemos nós amarmos espiritualidade, pode-se dizer. Os Doze e de-
uns aos outros" (3,11 ). "Aquêle que ama a pois todos os cristãos segundo o seu teste-
Deus ama também seu irmão" ( 4,21 ). "E todo munho, estão persuadidos que o Cristo veio
aquêle que ama aquêle que gerou, ama tam- à terra e deixou-se crucificar por amor a Deus
bém aquêle que nasceu dêle" (5,1). "A cari- e aos homens e que assim fazendo manifestou
o amor que o próprio Deus possui: " Quem me
u lPdr 4,8; cf. 1,22: "Purificando vossas almas vê, vê também o Pai" (Jo 14,9). Eis por que
na obediência à verdade, para vos amardes, caros a pregação do Evangelho não foi outra coisa
irmãos. Do íntimo do coração, amai-vos, pois inten-
samente uns aos outros". que .a proclamação desta convicção e dês te

56 57
fato. Não se trata somente de uma fé, mas que o amou, imolando-se p~r.a salvá-lo. f,
de uma ida e de uma experiência. Contem- assim que êlc se identifica cot1dianamente ~oro
plando a cruz do Filho de Deus feito homem, , .
0 mis tcno d can'd a d e e de morte do Filho
.
cada fiel deve dizer com a emoção dos pri-
11
de Deus, que termina em ressurre1·ça -o e vida
meiros discípulos : Êle me amou e entregou-
celeste.
-se à morte por mim"; êste amor sendo tão Neste plano, as distinções de raça, de
real quanto a morte. pro fi ssão, de idade e de sexo não en~r~~
t evidente que esta imolação confere a o em conta. Não há ma is "morais es pec1a1s
Senhor um direi to de propriedade sôbre a quê- ou particularizadas. Todos os filhos de D~us,
les que ama e resgata (At 20,28; JCor 6,20;7,23; resgatados , só obedecem a um umco · · prece1to ··
Ef 1,7). Pela fé o cristão r econhece e ace ita p ermanecer na caridade ( Jo 15,9-10; cf. lJo ~·
esta apropriação (Rom 7,4 ); decide "viver para 16) como . o sarmento prê o ao cepo d a vi-
o Senhor" 13 • deira. O único problema vi ta l para os ram os
Mas esta "novidade de vida" (Rom 4,4) é permanecer unidos ao tron~o, con_d'içao. - es-
será antes de tudo adesão ao amor primeiro scncial para dar (ruto. A candade ~ ~re~1sa­
de Deus e do Cristo, uma respos ta de carida- mente ê te li a me que a segura a ex1ste nc1a e
de que se tra duz pela oferta total de si mesmo a perenidade no Cristo. .
(Rorn 6,3; 12,1-2), portanto uma oblação de E s ta Yocação comum a todos os eleitos de
gratidão que cons titui um culto muito espi- Deu , S. Pau lo recordá-la-á aos efésios: "Ben-
ritual. Por amor, o cristão consagra-se a Deus cli to eja Deu , Pai de nosso Senhor Jesus
e entrega-se a seu serviço. Não pode provar Cris to. . . escolhendo-nos nêle antes da cria-
m elhor sua carida de que se entregando àquele ção do mundo, para sermos santos e ~acu­
lados a seus olhos ( Ef 1.4 ). A expressao re-
u Cf. Rom 14,7-9: "Nenhum de nós vive para si dundante "santos e imaculados", evoca o du plo
mesmo e nen~um de f!ÓS morre pa ra si mesmo. asoecto positivo e negativo da consagração a
De fato, se vivemo , vivemos para o Senhor· se
morremos, morremos para o Senhor. Logo 0 ~ vi- D~us; são têrmos do culto pelos quais o An-
\'amos ou r:iorra,mos, somos do Senhor. Precisa-
mente para 1 to e que Cris to morre u e ressuscitou· tigo Tes tamento expressava a perfeição re-
pa ~~ .~cr o Senhor dos mortos e do vh•os". 2Co~ querida para a "vítima" sem defeito, segundo
·
~·.1 ; M~rrcu. por tod?s, a fim de que aquêles que
\ na m nao vivam ma.is para i, ma para a uêle a perfeição irrepreensível do justo. Ma a
.que morreu e ressuscitou por êles". q ênfase da "bênção" está sôbre a "existência
58 59
na caridade" face a Deus. Uma vez purifi-
cados os filhos de Deus, devem apenas con- .
corações mocentes, profundamente
16 religio-
tinuar a existir, aqui embaixo ou no céu, no sos 15, únicos aptos a ver Deus .
amor, na adoração e na gratidão. .E'.les foram
"escolhidos" na economia da salvação simples- e) Efetivamente, a can·d ª de' em relação ºde
li A . pode ser cons1 -
mente para ter esta atitude e cumprir esta estreita com a inte genctt,l, a " facul-
função. rada sob muj to~ aspe~t~s ~~~n= havia
0
dade de conhec1mento . . eiro e maior
b ) Pois que se trata de culto, sacrifício sugerido quando formulou o p~A da a alma"
e união consumada com Deus 14 é evidente que ,, Amarás com o
mandamento : ... eendeu bem o
a "agápe", amor muito nobre e muito puro, (Me 12,
33 )
, e ·
s Pedro compr
,, ' pe" traz à fe, o
,
reveste-se de uma qualidade nova : uma "in- enriquecimento ~ue a . ª~~plicando todo o
signe santidade". Para "estar em presença de conhecrmento. .
amor ao f, virtude· à vrr-
ºd d licai à vossa e, a ,
Deus", com efeito, é preciso ser inocen te, cw a o, ·Aapeia
d a, pie
. d a d e, 0 amor fraterno,
santo( Ef 1,4) puro, irrepreensível (FJp 1,9-10). tu e, a c1en . . . ºd de Com efeito, se
erno a can a ·
Ora, desde que se é santificado pela abluç.ão ao amor fr a t ' b darem em
batismal, se está apto a amar com êste amor
·
essas coisas se encontrarem . e a un"nfrutuosos
· ão vazios nem i
muito casto e cultuai (lPdr 1,22), normal- vós, não vos d eixar Senhor Jesus
nh · ento de nosso
mente associado à "piedade" ou virtude da pelo co ecrm ,, , " conduz
Cns. t o"1s. o crescimento da aga pe
religião ( 2Pdr 1,7; Tim 6,11 ) . Crescer na cari-
dade será necessàriamente "crescer em santi- ºd de u m co-
15 Cf. lTim 1,5: "~ carid~dde d~a~cin: santidade";
dade" (lTes 3,12-13 ). A "agápe", amor espe- "
r ação puro ; • · 2 15. Na f, cana castidad e" ·
a
cificamente cristão, não se abriga senão nos 4 12 : "Na caridade, 2ºª14. e:,A santidade sem a qua1
' 16 Mt 5,8; H ebr 1 , ·,,
run ém verá o Senhor . há de acab ar, chega a
1• ~ste a specto religioso r eveste ~~melh~~~e­ ~ A caridade que .~unca conhece ( lCor 13,8-12) .
mente o amor do próximo; cf. Tg 1,27: A reh&Jao conhecer Deus como e e "ºfCor 13 a caridade fra-
pura e sem mácula djante d e Deus e nosso Pa!• é 1s 2Pdr 1,7-8. Como em "da mo~al expande-se na
esta: visitar os órfãos e as viúvas nas s uas tnbu- terna dominando tôda ~ v1 2P dr •orienta tôda a
lações, e conservar-se puro de tôda a m ancha dêste "epigiiose" de Deus, a ssun em h ecimen to de Cristo:
mundo". Esta religião é a da caridade. Sabe-se atividade virtuosa para ~-~g~s a estar apto a pene-
também que ela te m o p oder de expiar os pecados º cristão é posto em cm~ :érios d ivinos. Esta posse
(1Pdr4,8). trar mais adian te nos ~1s al de uma vi da mora l
é o fruto ou a ,fºn.clu,; a o E~~vai m ais longe que a
animada p ela agape .
60
61
o ser, como uma planta desabrochando em medida comum com um amor humano ~u.a l-
flô r e fruto, a uma "epignose", uma ciência quer, es t a. a 1·cm do "-.] ,ancc de um csn1nto_
aprofundada do Cristo. criado, excede completamen te as nossas ro_r-
S . Paul o e mpe nhou-se e m determi nar e s ta ças: "Ninguém pode sab er - comenta Tom~:
re lação. Mostra aos efésios (3,17-19 ) que os de Aquino - o qua n to Cris to ~os amou .
corações arraigados e fun dados na caridade, Não é que a ciên cia seja s uperior ao amor
têm b astante fôrça para apreender e co nhe- (cf. t Cor 13,2) _ n ão h á nada mais el~vado
cer o a mor do Cris to que excede todo o co- ue a "agápe" - mas conh ecer p ela can_da de
nhecimento . A "agáp e" é o amo r de Deus ~ o único m eio de es ta r "cheio da plenitL~de
por nós. O fato de nêle mergulhar suas raí- de Deus". O que cqu i\·a lc di7cr auc a ,·ida
zes ou de nêle apoiar-se evoca a alimentação cristã, vida na caridade, não é uma sim ples
e o vigor de uma vida cristã que participa da disciplina moral, mas u n ião com o Senhor
própria vida de Deus. Compreende-se então que é espírito (2Gor3,17), segundo no:sa~
que o homem " interior" dispõe de uma fa- faculdades mais elevadas. A conternplaçao e
culdade que está à altura de seu objeto: atin- a realizacão completa da vida " em presença
gir a plena convicção do amor de Cris to por de Deus . no amor". "A \•ida eterna é e La :
nós e en trever sua imensidade. Seguramen te que te conheçam a ti como o único . Deu.~
n ão se compreende o infinito; mas é um muito verdade iro e a Jesus Cristo, a quem env1asLe
elevado co nhecimento saber como êste amor (Jo 17,3 ).
excede tôda expressão e todo conceito. Aí está Mas como compreender que um amor pos-
o cume da contemplação: a alma fe rvorosa sa conhecer e de uma certa maneira tornar
te m consciência de que o amor de Cris to, sem mais inte ligente? O Apóstolo explica, parece,
lim ite, propriamente inexpr imíve l, sem uma aos efésios - quando pede para ê les que
Deus "ilumine os olhos do coração" (1,1 8), -
fé inicial , d á uma cena compreensão do mistério e aos filipenses : ":E. o que lhe peço, que vossa
"rea liza-o". Quanto m ais se a ma em obra e err{
ver~ade, melho r se compreende o Cris to e sua caridade cresça mais e mais em compreensão
c~ ndade a nos:•o re~peito, os c;cnlimenlo' que ins- e em plena inteligência" ( J ,9). A " agápe " de
p ira ra m -_ua v!da obre a L err~ . Se, poi , o s pe-
cado res ao m 1opes ou cegos d iante da Ju7 d h in'.l que se tra ta não é determinada por nenhum
os que ~i:nam têm os olhos do coracâo "ilumin'.ldos ': complemento de objeto. Não há portanto
o~ . forltfica dos, possuem uma nova percepção es-
pmtual. restrição seja a o amor de Deus, seja ao amor

62 61
do proXlmo. É uma realidade autônoma ex- conhecerem o mistério de Deus, que é Cristo"
primindo a vida cristã ela própria no que (Col 2,2). A redundância de têrmos traduz o
tem de essencial (1 Cor 13 ) e especialmente entusiasmo do Apóstolo evocando êste progres-
como fonte de energia e de irradiação no so na luz e no amor, graças ao qual o cristão
plano moral e religioso. Quando S. Paulo se aproxima de Deus e se identifica com êle.
menciona a caridade, evoca menos seus obje- Dir-se-ia que não há limite à capacidade de
tivos que sua fonte, p ensa primeiro no amor inteligência de um coração batendo ao ritmo
que vem de Deus e do Cristo e que nos "cons- da caridade divina.
trange" (2Cor 5,14 ). Em um contexto de ora- A relação entre inteligência e "agápe" é
ção esta sentença é justa! o Apóstolo pede a~ui direta. Graças ao amor divino, o espí-
que Deus comunique uma participação sem- nto ganha em acuidade 19, penetra mais adian-
pre mais abundante de seu amor aos filipen- te nos mistérios de Deus, mais exatamente no
ses. É que o crescimento da "agápe" elevará conhecimento de Cristo. Compreender-se-á
suas faculdades de discernimento e percepção que a caridade dá à inteligência do fiel mais
espiritual. Um coração amoroso não é ao fôrça e lucidez para atingir seu próprio objeto.
mesmo tempo delicado e lúcido? Dois cam- Um coração fervoroso em questão de fé,
pos de atividade são aqui observados. De desperta uma compreensão mais espiritual e
um lado a caridade "sente" por instinto tudo portanto mais adequada. Por conseqüência,
o que pode agradar ou desagradar a Deus todo progresso na caridade chega a uma apre-
(cf. Col 1,9; Hebr 5,11-14 ); de outro lado ela ensão mais profunda de Deus, graças a uma
aprecia e "realiza" tôdas as riquezas da salva- energia ~ à ª?licação aumentada do espírito.
ção e antes de tudo o que a caridade de Cristo Pode-se rmagmar mais bela prece: "Que 0
tem de infinito. f.stes dois objetos não são amor de Cristo exceda tôda ciência"?
dissociáveis, porque a caridade que percebe Isso não é inteligível a não ser que nos
a transcendência de Deus e a generosidade lembremos do valor afetivo do conhecimento
sem limite de seu amor é também muito mais bíblico. A gnose é ao mesmo tempo ciência
sensível às suas exigências de santidade e de amor, discernimento, escolha e finalmente pos~
caridade recíproca.
~9 Cf. S to. Agostinho: "Nada pode ser conhecido
Pode-se pois falar de corações "unidos na a nao . ser em função da amizade que se lhe dedica'~
caridade . .. de uma perfeita inteligência, para {De cliv. quest. 83, q. XI, 5; P. L. XL, 82).

64 5 - Caridade ... 65
se (cf. Ef 3,17-19; 2Tim 2,19) . Na ordem re- ~ste conhecimento experimental e sabo-
ligiosa "conhecer de que modo se deve saber" roso mantém-se imperfeito aqui embaixo; iden-
( 1Cor 8,2) é unir ciência e caridade. A êste tificável ao de uma criança, dará lugar no
título, o conhecimento amoroso de Deus - céu à visão face a face (lJo 3,2); atribuível
dom e manifestação do Espírito divino, ou, à caridade somente (segundo !Cor 13,12) :
segundo Hebr 6,5, "as maravilhas do mundo "Então hei de conhecê-lo como sou por êle
futuro" - é um meio adequado de apreensão conhecido". Para S . Paulo o sinal supremo
da divindade; caminho para Deus (lCor 12,31 ), da caridade verdadeira é o superconhecimento
conduz à salvação. ( epignose) celeste. A "agápe" indefectível ex-
Daí as asserções joânicas: os cristãos "co- pande-se na contemplação - comunhão eter-
nhecem" a caridade que o Pai lhes concede na e bem-aventurada.
e a assimilam; êles se converteram desde que
"perceberam esta revelação" (lJo 4,17). Aman-
do a Deus, "sabem" que são da verdade (3,19)
e que levam um autêntico amor aos filhos de
Deus (5,2). Inversamente, sua "agápe" fra-
terna assegura-lhes que foram transladados da
morte para a vida (3,14 ). Desde que se pos-
sui o amor divino, tem-se uma clarividência
nova, urna inteligência mais profunda de Deus:
"Todo o que ama . . . conhece a Deus" (4,7).
Ora todo acréscimo da caridade conduz de si
a urna posse mais lúcida e íntima de seu ob-
jeto, porque o Pai e o Filho aproximam-se e
unem-se mais ao discípulo: "Aquêle que retém
meus mandamentos e os guarda, êsse é o que
me ama; e aquêle que me ama será amado
por meu Pai e eu o amarei e me manifestarei
a êle" (Jo 14,21.23 ).

66 67
V

RECOMPENSA E ALEGRIA
DA CARIDADE
Jesus anunciou aos que têm caridade que
uma larga recompensa lhes seria reservada
nos céus: "E será grande a vossa recompensa,
e sereis filhos ·do Altíssimo . . . Dai e dar-se-
-vos-á. Uma medida boa, cheia, recalcada e
acogulada, vos será lançada nas dobras de
vosso vestido; porque com a mesma medida
com que medirdes para os outros, será me-
dido para vós" (l<: 6,35,38).
Já se sabia pelo Antigo Testamento que
amar é encontrar deleite e deliciar-se 1• Não
apenas aquêles que amam a Deus regozijam-
-se 2 ; mas ao próprio Deus lhe são atribuídos
"transportes de alegria" (Sof 3,17). Efetiva-
mente o verbo grego correspondente ao substan-
tivo "agápe" significa o mais das vêzes "estar
contente, satisfeito, feliz", de tal maneira. que
êle é normalmente associado a "regozijar-se".
1 Jer 14,10; SI 119,47 : "Deleitar-me-ei nos teus
mandamentos que amo".
l Jó 13,14: "Felizes aquêles que te amam . . . por-
que êles vão regozijar-se em ti". 14,7 : "Aquêles que
amam Deus em verdade regozijar-se-ã.o ". I s 16,10:
"Alegra-te, Jerusalém; alegrai-vos por causa dela, vós
que amais". SI 5,12: "Em ti exultam os que amam
o teu nome".

71'
Amado ( agapétos) pode também ser traduzido Mas se o Cristo está fora das vistas (Jo
por "fascinado e encantado" . O advérbio ca- 20,29), não está longe de ser alcançado . Per-
ridosamente ( agapétos) pode igualmente sig- manece, com efeito, realmente presente (2Pdr
nificar "com alegria". A êste uso semântico 1,16) e pela fé e pela caridade seus discípulos
corresponde a psicologia comum: um amor lhe estão unidos da maneira mais vital. A
que tem beleza e generosidade não pode dei- "agápe" pode mesmo dar uma experiência
xar de suscitar felicidade 3• sensível da posse de seu objeto sob a forma
Mas a alegria da "agápe" cristã tem qual- de um "transporte de alegria ". Esta forma
quer coisa de muito específico, tanto pelo superlativa pareceria suficiente para traduzir
seu objeto quanto pela sua intensidade e qua- a alegria extrema da caridade: amor-consa-
lidade. S. Pedro toma os primeiros fiéis como gração ao Senhor; mas em verdade êste en-
testemunhas : "tste Jesus - vós o amais sem cantamento é propriamente "inexprimível" ou
nunca o ter visto - exultais com uma alegria "indizível". tste epíteto que não se encontra
inefável e cheia · de glória" (lPdr 1,8). Há aliás na Bíblia, acentua a profundeza e a
uma espécie de admiração da parte de Pedro, densidade desta felicidade . E que ela não é
testemunha ocular e familiar do Salvador, a tanto uma alegria da terra quant o urna parti-
respeito dêstes cristãos que se afeiçoaram ao cipação na do céu. A par de seu objeto, ela
já está com tôda "glorificada", isto é, como
Mestre sem ter sofrido sua ascendência e sua
uma participação estável da beatitude de
sedução humana. Mas é também um elogio
Deus 4 •
dêste amor muito espiritual que deriva do
conhecimento da fé, "fundamento das coisas 4 A expressão " ser glorificado" demonstra que

que se esperam e o argumento das que não se trata de uma manifestaç.ã o p erman ente, durá vel,
da presença e da ação de Deus. A "glória" bíblica
se vêem" (Hebr 11,l ). é a luz que reveste tôda a m anifestação de Deus
entre os h omen s - "Tudo que é man ifestado to rna-
-se luz" ( Ef 5,13) - o sinal de sua presença e d e sua
3 ação. Tra ta-se portanto de uma alegria celes te ; da
Cf. At 20,35: "O Senhor Jesus ... êle mesmo
disse: é m aior ventura dar que receber". 1Cor 13,6 : qual se aproxima Jo 14,28: "Se vós m e a másseis cer-
"A ca ridade não folga com a injustiça", mas folga t amente vos a legrarieis de ir para o Pai". !Jo 4,18:
com a verda de. " Gá l 5,22 : "O fru to do Es pírito é "Na caridade nã o há t emor; a car ida de perfeita lan-
caridade, g?z.o". ~egundo Rom 14,15 .há oposição ça fora o temor, p orque o te mor s upõe p ena, aquêle
entre se ~fhg1 r e viver segundo a caridade; da mes- que teme nã o é p erfeito na cari dade". Cf. Sto.
m a ma neira que entre "agáp e" e inveja (segundo Agostinho: "O. pedagogo terrificante ser á suprimido,
ICor 13,4), es ta sendo uma tristeza. Q1:1ando a candade suceder ao temor" (De Spir. et
Lttt. 18, 31 ; P. L. 44, 219). •
72
73
Mas que dizer então da felicidade reser-
-vada "àqueles que amam a Deus", quando êles
chegarem à pátria e aproximarem-se "da ci-
,dade do Deus vivo, da Jerusalém celeste e
da multidão de muitos milhares de anjos,
:assembléia dos primogênitos que estão nos
·céus"? (Hebr 12,22-23 ). A LIBERDADE DO CRISTÃO
- S. Tiago contentou-se em afirmar: a bea- SEGUNDO O NOVO TESTAMENTO
titude da "agápe": "Bem-aventurado o ho-
m em . . . receberá a coroa da vida que Deus
prometeu aos que o amam" (Tg 1,12). S. Pau-
1o, que tinha sido arrebatado ao terceiro céu,
.até o paraíso (2Cor 12,2,4 ), recusa-se a ex-
primir esta plenitude e alegria. ~ mais que
indizível, não é concebível a um espírito hu-
-mano: "O que o ôlho não viu, o que o ouvido
não ouviu, o que não chegou ao coração do
nomem, estas coisas Deus as preparou para
.aquêles que o amam" (1Jo2,9).
A glória eterna é prometida ao amor.

74
PRELIMINARES

Israel nasceu de uma liberação. A cons-


tituição das doze tribos no povo de Deus data
da libertação da escravidão egípcia. Eis por
que Javé, que havia escolhido esta pequena
nação para apropriar-se dela e ser seu único
Senhor, será sempre invocado entre os seus
como o Libertador, aquêle que salva da es-
cravidão.
Em verdade as grandes nações pagãs têm
muitas vêzes invadido a Terra Santa e sub-
metido seus habitantes a seu domínio. Esta
opressão e esta tirania pareciam opor-se à
posse exclusiva do povo eleito por seu Deus.
Pois bem, os profetas anunciam que ê~te li-
bertará seu povo? 1 E.les definem a salvação
como a libertação de um jugo, o resgate de
uma opressão, uma liberdade. Se o Messias
vem em nome de Javé e para estabelecer seu

1 Is 40,2;49,8-9;52,9; Miq 4,10: "Tu serás liberta-


tada ... Javé te livrará da mão de teus inimigos".
Zac 9,11 s.

77
reino em Israel, êle não pode deixar de se
apresentar como libertador : "Pelo que me a César o que é de César - mas estabelecer
ungiu . . . para anunciar aos cativos a reden- a soberania exclusiva de Deus sôbre cada alma
ção. . . e pôr em liberdade os oprimidos" e por conseqüência libertar do pecado e da
(Is 61,1; Lc 4,18 ). tirania de Satã.
Isto não é pura doutrina teológica ou A êste título, o reino de Deus estabele-
motivo pastoral de consolação. Todo israe- cido pelo Sa lvador comporta essencialmente
lita piedoso vivia desta esperança que é ex- o dom da liberdade espiritual e interior, a
pressa à porfia nos lábios das santas almas conversão ao Evangelho faz do pecador um
que, no primeiro século, esperavam a vinda ser livre, do escravo um filho de Deus.
do Messias. Em seu cântico de ação de gra- A fim de ressaltar a ligação intrínseca,
ças o sacerdote Zacarias canta: "Visitou e institucional que existe entre cristianismo e
resgatou o seu povo" (Lc 1,68 ). A profetiza liberdade, observar-se-á como, segundo S. Pau-
Ana, que não se afastava do templo, fala do lo e S. João:
Menino Jesus: "E falava de Jesus a todos
de Jerusalém que esperavam a redenção" a) quem crê em Cristo adquire a li-
(2,38). Os discípulos de Emaús resumem sua berdade;
fé, posta à rude prova, pela Paixão, nestas
palavras: " Ora, nós esperávamos que êle fôsse b) quem recebe o Espírito Santo vive
como ser livre;
o que devia resgatar Israel" (Lc 24,21 ).
O Cristo, Filho de Deus encarnado e Re- c) quem nasceu do Deus-Pai é livre de
dentor do mundo, não decepcionou esta es- qualqµer servidão : é agregado ao reino da
pera. Mas segundo a pedagogia divina, os liberdade.
bens temporais prometidos aos eleitos da
Antiga Aliança, eram somente a figura e o
penhor dos bens ~spirituais concedidos na
nova e eterna Aliança. Não se trata, pois,
na Igreja de Jesus Cristo, da liberação de
um território nem da emancipação de uma
dominação política - o Mestre manda dar

78
79'
OS DADOS DO NOVO TESTAMENTO
SOBRE A LIBERDADE DO CRISTÃO

6 • Cl1ridade • • •
a) Crer em Cristo é adquirir
a liberdade

Nosso Senhor Jesus Cristo possuindo a


própria natureza de Deus, uma natureza de
luz ( 1Jo 1,5 ), não dizendo senão o que ouvira
junto a Deus, não agindo senão segundo o
que vira em Deus, a presenta-se ao mundo
como a tes temunha fiel e verídica, o "Amém"
do Pai, e resume sua autoridade de revelador
infaUvel nesta afirmação : "Eu sou a verdade"
(Jo 14,6).
Apresenta sua missão como um liberta-
dor. A verdade que êle encarna e propõe
sairá vitoriosa das trevas e romperá todos
os laços do pecado. ~ o que ressalta clara-
mente desta página de Jo 8,31 ss.: "Se vós
permanecerdes na minha palavra, sereis ver-
dadeiramente meus discípulos , conhecereis a
lferdade e a verdade vos tornará livres". r-...
isso, os judeus gritam indignados: tornar-nos
livres? Mas nós sempre o fomos! De que
servidão teremos necessidade de ser liberta-
dos? "Nós somos filhos de Abraão e nunca
fomos escravos de ninguém; como dizes tu:
Sereis livres?"
Jesus responde: " Em verdade, em ver-
dade vos digo: Todo que comete o pecado
é um escravo do pecado. . . Eis por que eu

83
vos dizia: Sim, o Filho de Deus vem vos
libertar, sereis realmente livres, mas de fato mantém-nos na mentira E d
que o dem · . . ' o mesmo modo
:vós procurais me matar, a mim, um homem - omo - assassino desde 0 comêço
( c f · Ad ao e Eva Caim )
que vos diz a verdade! A verdade que ouvi "filb ,, , - quer m atar Jesus ·
junto de Deus ! Fazendo assim cumprireis os os dêle p rocurarao - sempre extin .r'
as obras de vosso pai, o diabo, que foi homi- a luz e massacrar as testemunhas da Vgw
dade A · 1 er-
cida desde o comêço porque êle não perma- . ~ue es q u_e am. am sua escravidão, com
nece na verdade. Não há verdade nêle porque efeito, nao p o d erao Jamais tolerar que ha ·a
êle profere mentira; êle fala de seu íntimo q~em se evada de suas trevas, libertos q~e
porque êle é mentiroso. l::le é o pai da c eguem à luz . . . a de Deus q ue , "d
beatitude. e vi a e
mentira".
O pensamento é claro, mas o que é mais , Em d.e fin· ·
, it1vo: tornar-se discípulo de Cris-
evidente é a r elação posta pelo Senhor entre to e aderir a sua Pessoa, é, p or êste fato mes-
mo, l receber a verdade ' Cailll·nh
. ar na Juz e
" verdade" e !'liberdade" de um lado (a ver- .
f ma mente ser livre 1 .
dade nos torna livres do êrro e do mal ), e
m entira e escravidão, até mesmo morte, de f. neste se~tido q ue é preciso compre-
en.der a declaraçao de Jesus aos "seus". "P
outro lado. - Mais ainda: o duplo estado de mim vó - · ara
escravidão ou de liberdade provém de dupla . , s nao sois escravos, sois amigos"
Vi vo convosco em p é de igualdade i . .
filiação. Os homens livres são filhos de Deus
ou filhos da liberdade (é a mesma coisa); 1
Cada revelação de D d
os escravos do mal ou do êrro são filhos de il
~ ll:rna luz, como um far~lus, uca P";Javra do C_risto
Satã. Ora, há uma contradição radical entre ~ºu~cca~, d~:~:%~: q~~':;:ç;r0 e~i:and~~s~c~~'.nhd
êstes dois reinados da verdade e da mentira, de onde êle vem ·ara 0 eus ~ o que e êle mesmo
C?mo fazê-lo: "S~$ur 1 nd~. vai, o que deve fazer ~
da luz e das trevas; ela é somente o reflexo discípulo, significa que ~~s 0 qu.e e a definição do
do antagonismo principal das grandes fôrças de então o mundo nã encaminha na luz". Des-
sentido, u ma dire ã o. é absur~o! a vida tem um
espirituais que conduzem o mundo! Jesus e cont ido nesta a~ç~tín~e M fel1.c1dade. Tudo está
Satã. O Salvador veio libertar os homens de sou o cam in ho, a verd~~ o .ed~~dor e guia : "Eu
2 Jo J ~.5; cf. Mt 17,26. e.,, a v1<;1a (Jo I~.6) ..
tôda a servidão e, para chegar a êste fim, Sto. Tomas de Aquino . ?s fi lhos estao isen tos"
ao homem uma eminen~:i'clica ;d"A cari~ade confer~
propõe-lhes a Verdade. Satã mantém os ho- turas, com efeito servem 1)1 ade. Todas as cria-
mens na escravidão e, para chegar a êste fim, qu~ elas foram 'fei tas o~ - eus de .Majestade por-
estao a serviço do a tp - ele, quais objetos que
r esao que os fêz. Ora, "a
84

85
b) Liberdade e E spírito Santo acima do próprio Deus. Seguramente a vida
do j usto era uma autên tica vida religiosa :
urna obediência a Deus. Mas à fô rça de en-
O apóstolo S . Paulo, convertido do fari- carar a virtude como uma estrita ob servância
saísmo e do culto à lêtra - "A lêtra mata" da lei, expressão da vontade divina, de qual-
escreverá - foi profundamente marcado por que r modo chegava-se a formar uma hipóstase
esta revelação. Não somente êle refletiu mui- desta lei, considerando-a como uma entida de
t as vêzes sôbre e la e tornou-se um doutor em indepedente de Deus mesmo, tornando m enos
leis, mas experimentou-a mais que qualquer nítida sua significação fundamental (cf. Mt
outro em sua vida íntima. 23,23 ). Os rabinos, com efeito, chegam até a
"Fariseu para tudo que é da Lei", isto é, pretender que Deus seja o primeiro a observar
quanto à s ua interpretação mais rígida e sua a lei por êle mesmo promulgada (Ra bino
observância mais rigorosa, Saulo viveu sua Eleázar). Não somente Deus usa todos os
infância, s ua adolescência e os primeiros anos dias "phylacteros" e envolve-se com uma ves-
de s ua maturidade sob o jugo da Tora, como timenta guarnecida de "cicith" 3 , mas três ho-
um escravo na submissão ao senhor mais ras por dia estuda a Tora (Rabino J ehuda ).
exigente. Todavia, êle se teria desobrigado, através dos
A piedade judia no primeiro século cara- doutôres da lei, da promessa que fizera, isto
teriza-se por seu aspecto de observância às é, aniquilar os israelitas depois de adorarem
leis; a moral judia é uma moral dos m anda- o bezerro de ouro ( Rabino I saac).
mentos; a religião judia é a da "lei" exaltada Os anjos são circuncisos e observam o sá-
bado. à semelhança de Deus. Quanto aos jus-
caridade faz do escravo um ser livre e um amigo" . .. tos, eles devem obsen-ar os 613 preceitos da
Deve-se notar entretanto que há uma dupla es~ra­
vidão. A primeira, a do temor, que teme o castigo, Tora (248 positivos, 365 negativos), aos quais
e n ão tem mérito. Por exemplo, se nos abs temos
do pecado iinicamente para não sermos castigados, a tradição juntará uma multidão de novos
não há m érito nisso e se permanece• um escravo. m_an~ame.r;itos, de proibições, de interdições:
Mas a segunda escravidão é a do amor. Se nós
agimos, não por temor do castigo, mas por amor ha trinta e nove casos nos quais se transgride
de Deus não nos conduzimos como um escravo, mas
como uln ser livre, porque nossa ação é voluntária" 3
qrnan:ientos diver sos que os judeus traziam na
(Op. de duobus Praeceptis charitatis, IV, p. 417, ed. Par:te ~enor de suas vestes para torná-las mais
Mandonnet). cenmomosas.

86
87
a lei do sábado: transportar um pedaço de come pão sem ter lavado as mãos é seme-
lenha, amarrar ou desamarrar um animal, lhante ao homem que freqüenta uma pros-
acender a luz, escrever duas lêtras do alfabeto tituta" (tratado Iota, 4 b).
etc ... a tal p onto que o analfabeto, o homem Não é questão de virtude, de espontanei-
comum é incapaz de conhecê-los e, portanto, dade, de interioridade, de perfeição, mas de
de ser religioso e aceito por Deus 4• A pie- obediência, porque é o mandamento comq
dade é primei ramente questão de ciência e tal que tem valor santificante, é êle que pu-
jurisprudência. Eis a razão pela qual o aces- rifica e que salva. E dado que cada ponto,
so à dignidade de escriba, isto é, de teólogo- cada "iota" da lei assegw·ava uma recompensa,
-jurista (o fariseu é um prático) é tão árduo: pois que tôda ação reta, isto é, conforme à
enquanto que o sacerdócio exige vinte e qua- regra , merecia seu p ago, o ideal era de acu-
t ro condições, a realeza trinta, não se tem mular as boas obras, constituindo assim um
acesso à lei senão m ediante quarenta e oito tesouro. Pode-se dizer que o justo tinha suas
condições. Mas, em contraposição, "as deci- contas em dia com Deus, do qual êle se con-
sões dos escribas são mais determinantes que siderava o credor, com direitos sôbre o de-
as da Tora" (tratado Sanhedrin, 9, 3 ). vedor.
O homem, e I srael em particular, foi cria- Em verdade, êste crescim ento desmesu-
do para a Tora. Esta é de tal maneira o que rado da autoridade da Tora chegou ao for-
há de mais importante na vida, que os patriar- malismo, a s ufocar o esfôr ço espontâneo da
cas a conheciam e a praticavam antes mesmo alma para seu desabrochar, finalmente a urna
que ela fôsse promulgada. A regra suprema falência religiosa, porque cada um devia leal-
será, pois, observar os preceitos. Os mais mente confessar que jamais conseguira obser-
insignificantes obrigam tanto quanto os mais var todos os preceitos da lei e da tradição.
graves. . . como a lei do preceito: "Quem No concílio de Jerusalém, S. Pedro recusará
que se imponham aos pagãos convertidos ao
4 Será de espantar que o anúncio da sal vação cristianismo o p êso das observâncias judaicas:
tenha sido feito aos pastôres, nos campos de Belém,
porque os judeus consideravam os pastôres como "um jugo que nem nossos pais, nem n ós po-
ímpios, não estando aptos nem a conhecer, nem a demos suportar" (At 15,10).
praticar as observâncias religiosas. .Estes p~eiros
destinatários do Evangelho provam que êste foi Quando S. Paulo se converteu, a caminho
primeiro anunciado aos "pobres" e aos pequenos, de Damasco, sente-se no mesmo instante li-
os privilegiados de Deus.

88 89-
berto desta servidão, e êle irá repetindo: " Vós Os judeus imaginavam que a lei conferis:e
não estais sob a lei, mas sob a graça" 5 • a vida. Mas a lei, como tal, mesmo se propoe
Quando êle prega a liberdade entende pri- o ideal mais sublime, não saberi~ ~ranlsfo~mar
um ser esp1ntua ' v1ven-
m eiro a "libertação do jugo da lei", isto é, urn ser d e carne em _ . t
. d D s Ou entao 1s o
d êste constrangimento que provoca necessà- do a vida própna e eu · .
. h omem não tenha necess1-
riamente a transgressão e o pecado : "E o sena supor que o l , inho t
mandamento q ue me era para a vida, foi para dade de ser salvo, que se possa sa var soz .
a morte porque o pecado tomando a ocasião Longe de conferir esta vida, e sem mesmo
do mandamento, seduziu-me - como a ser- destruir no h omem a potê~c~a da mort:, que
p ente seduziu Eva - e por êle me matou" . pecado ou ainda repnnn-lo, r epresa-lo, a
(Rom 7,7-12). el .ºlhe dá, ao contrário, ocasião de exercer
e1 ' t . rizar e se
tôda a sua virulência , de se ex eno
s Rom 6,14. A insistência posta por S. Paulo a
idenlificar a conver são ao Cristo e a aquis ição da desmascarar.
liberdade explica-se ao mesmo tempo por sua ex- Pelo que ela prescreve ou proibe fazer, a
periência reLigiosa e sua fidel idade a transmitir o - fi almente revela
ensinamento expresso do Salvador; mas também lei suaere a transgressao e n
por seu cuidado apostólico de adaptar a mensagem ho~em que êle é pecador, portant~, s~a
evangélica à mentalidade grega de seus ouvintes. ao (R 20) que ha nele
Seu contemporâneo Díon de Pruse explicava: "Os verdadeira identidade om 3' . ',, d
homens em geral aspiram a ser livres e proclamam A • , •a "hamartia , o peca o
uma potenc1a ma. . _
a Liberdade o maior de todos os bens e a escravidão ·fi do identificável às diferentes coo
"i vergonha suprema e a pior das desgraças" (Or., persoru ca • · t lo
14). Mas, para os gregos. o gôsto pe la Liberdade cupiscências ou melhor ao egoísmo ~~o pe
p ermanece o traço fundamental de seu car áter como
proclama Agesilau: " A Liberdade vale todos os te- qual o homem, desde o pecado ongrnal , er:i
souros do m undo" (XE ·oFONTE, H ell., 4, 1, 35), ou lugar de se pôr a serviço de Deu~. e do p_ro-
es ta inscrição de Prieno : "Não há nada m aior p ara
o heleno que a liberdade" ( 19, 19-20); é ela que dá . o usa tudo para si mesmo! Mas fod1 o
ao homem sua dignidade própria ( F TLÊ.'.\iO ·, Fragm.,
xlill ' d me eu
22 ) . Do mesmo modo sua aquisição ou sua con- p ecado que para se mostrar. peca o, fim de
servação valem os mais duros sacrifícios. Um persa a morte por meio de uma coisa boa, a
~erguntou a dois espartanos por que ê les se sacri- <lamento o pecado mostrasse ao
ficavam e m favor de seu povo. " Tu não p odes com- que, pelo m an •
preender - r esponderam-lhe - tu não conheces máximo sua nocividade" 6.
senão a vida do escravo. O que é a liberdade tu
nunca expe rimentaste, se é doce ou não. S~não f S T L YONNET Liberté chétienne et
tu nos aconselharias a combater por ela, não apenas 6Rom 7,13 ; e · · . p ' z Paris 1954
com a lanca, m as com o m ach ado também" (HE- Loi de l'Esprit selorz Samt au ' • .
RÓDOTO, 7, 13).
91
90
Para S. Paulo, J esus é Salv d .
mente neste senfd a or, essencial- vida espiritual. E.le não tem que observar
i o que êle libert d Ad uma lei que lhe seria imposta exteriormente,
as escravidões: "Não há . a e to as
condena - 0 ' pois, agora nenhuma mas a do Cristo vivendo nêle, a lei da graçaª,
Co_m efeI~ :~;: ;~ ~~~í;~:!ºd=~i~:s~s Cristo. lei inscrita em seu cor ação de carne 9 , inspi-
Cristo me livrou da lei d 0 . m Jesus rando portanto sua espontaneidade e seu fer-
(Roni 8 1-2 ) "F . pecado e da morte" vor e que se expande e os orienta interior-
, · oi para goz d
dade que nos libertou" (Gá~~~ esta liber- mente. E a liberdade própria de Deus que
A vocação c · t- ' se expande na alma de seus filhos 10, graças
cio. "Vo' f A ns a res ume-se neste benefí-
. s ostes chamad , lib
5 13 ) os a erdade" (Gál s Rom6,15; 1Cor9,21: "Não estando sem a lei
·
"O . · O que - Sto T · d
. ornas e Aquino comenta. de Deus, mas estando na lei de Cristo"; Gál 6,14.
s Justos nao estão sob a J . . 9 O profeta Jeremias opunha a aliança antiga à
vimento interior e . . e1 porque o mo- nova por êste traço: a primeira foi inscrita e pro-
habita nêles torna-s~ :~ti;:~p~o ~sp~rito que mulgada nas tábuas da lei, a segunda seria ensinada
por Deus à alma de cada homem: "Porei minhas
com_ efeito, a caridade que leva ºa i;stmto. E, leis no seu espírito, gravá-las-ei no seu coração . ..
a l e1 prescreve D . - azer o que ninguém ensinará mais seu compatriota, ninguém
têm a lei interi~r ê~!o;s entao que os justos a seu irmão dizendo: 'conhece o Senhor', porque
todos êles me conhecerão desde o mais pequeno
o . q ue a lei ped ',, 7 azem espontâneamen te até ao maior" (cit. em Hebr8,10.ll).
e .
10 Representaremos a liberdade como o poder
O absoluto dos enunciados paulinos mos- de optar entre duas ou várias soluções? O homem
t:a que a _liberdade de que se trata . não é uma seria livre se pudesse à sua vontade ir para a direita,
para a esquerda ou ficar no mesmo lugar. ~le seria
~im~les_ ~1rtude, nem qualquer dêstes frutos colocado numa encruzilhada, neste caso, mas a ima-
o spmto que o apóstolo enumera aos gá- gem não valeria nada. Para Sto. Agostinho, a liber-
latas E a pr · · dade não tem nada de uma escolha entre bens ex-
f opna v1"d a cristã na sua alma
su~ oate e seu método no que êle tem
mais forma] : o Santo E ..
d: teriores; ela é uma reconstituição do espírito sob a
ação da graça, um ato pelo q ual o homem se unifica,
deixa-se tornar a unificar, e encontra sua primitiva
coerência. As paixões o tinham dispersado; por seus
D spmto, a graça de
eus, a ca_ridade do Cristo. Isto quer dizer apetites arrastando-o para cá e para lá, êle tinha
que o batizado que está em c . t . se dilacerado a si m esmo e decomposto segundo a
todo 0 li n s o, ignora multidão de seus instintos anárquicos. De repente,
. . mora smo, por pouco que êle tenha no centro de sua alma, uma atração fêz-se sentir,
que obriga seus instintos ofegantes e dispersos a
atmgido um certo estado de maturidade na r eentrar em seu castelo interior. O homem torna-se
livre quando se espiritualiza, liberta-se de suas pai-
7 Comentário sôbre a Epístola aos Gálatas, V, 1. 5. xões, volta-se para o espírito, volta-se para o bem
e merece de nôvo o nome de filho de Deus. Admi-
92
93
a~ Espírito_ Santo: "Porque todos aquêles que
sao conduz1dos pelo Espírito Santo são filhos serção : 'A lei não foi feita para os justos.
mas para os injustos', neste sentido: se todos
de ~eus" (Rom 8,14 ). .t o que Sto. Tomás de
os homens fôssem justos não haveria nenhu-
~q~o" explica ainda com sua habitual pre- ma necessidade de promulgar leis, porque to-
c~sao: O Nôvo Testamento consiste na infu-
dos teriam em si mesmos sua própria lei. A
sao do Espírito Santo que nos instrui inte-
riormente". intenção dos bons deve ser a de orien tar seu
próximo para a virtude. Se alguns são por
Donde ainda estas afirmações tão cate- si mesmos dispostos a agir virtuosamente, ou-
g o_ncas: ."Se, porém, sois guiados pelo Espírito
tros o são também mas à condição de serem
nao esta1s debaixo da lei - sob a dominação ajudados e para êstes últimos será suficiente
do pecado - mas sob a graça" (Rom 6 14· uma advertência paternal, não uma coação" 11 •
Gál _S,18 ). "A lei não foi feita para 0 ju;to': Isto não quer dizer - é preciso acentuar?
(_1 Tun 1,9) · · · Evidentemente, pois que êste úl- _ que a vida moral torne-se anárquica. Ela
timo obedece a uma lei não escrita deixa-se permanece mesmo, se o desejamos, submetida
conduzir por esta fôrça interior, guia; por esta a uma lei; mas a uma "lei nova" que é pre-
luz _qu~ é 0 Espírito Santo habitando nêle. cisamente a " Lei do Espírito que dá a vida" 12•
Aq~i amda as explicações de Sto. Tomás são Em vez de receber sua regra e sua orien-
n:iwto elucidativas, projetando sôbre 0 enun- tação de fora, o cristão age espontâneamente.
ciado bíblico rude, a luz da reflexão tradicio- :f:le não é obrigado como um escravo, sob E>
nal do teólogo: "O verdadeiro sentido de lTim
1,9 supõe que o que é imposto a alguém tor- 11STO. Tol\i.ÁS, Comentário sôbre JTi~ 1,9.
u Rom 8,2. A liberação do jugo da lei e a eman-
~a-se-Ibe um fardo. Ora, a lei não pode ser cipação da escravidão do pecado são somente os
unpos~ aos_ justos como um fardo, pois que aspectos negativos da libei:dade paulina. Seu aspecto
positivo é pertencer ao Cristo pela fé ~ pelo batismo,
a sua disposição interior inclina-os por si mes- r ealizando uma translação de propnedade, de tal
ma ao que a lei prescreve. Não é portanto maneira que as servidões pagãs ou judiciais qo neó-
fito, transformam-se, graças ao Espírito Santo, em
~ fardo para êles: 'A si mesmos servem de nobre e voluntária vassalagem: de um lado com
le1 (Rom 2,14 ) . Pode-se ainda entender a as- respei to ao Senhor da glória: "Tôdas as coisas são
vossas . .. mas vós sois de Cristo" (lCor 3,22-23, cf.
Col 1,18;3,2); de outro lado, ao serviço do próximo:
tir-~e-á sem esfôrço, nesta p erspetiva que quanto "Porque sendo livre para com todos, tornei-me servo
IDaJs graça, mais liberdade" (M p ' s de todos para ganhar ainda mais" (lCor 9,19). "Vós,
tinho, Namur, 1958, pp. 21 -22 ). . ONTET, anto Agos- irmãos, fôstes chamados à liberdade ... Mas servi-vos
uns aos outros pela caridade" (Gál 5,13).
94
1 ,..
95
4

'jugo" de uma regra; seu princípio de vida a definição de ser livre é: aquêle que é causa
- "motus ab intrinseco" - lhe é imanente, as- e senhor de seus atos, é preciso concluir que
segurando sua auto-determinação para o bem. nós agimos livremente q uando agimos por
A escravidão de uma moral dos manda- nós mesmos por decisão pessoal, ou, dito de
mentos - que S. Paulo condena - vem de outra maneira, pela vontade . . . Ora, o Es-
um dualismo, a saber: o preceito com sua pírito Santo, fazendo de nós an:~igos de Deus,
fôrça constrangedora e o homem que lhe é nos inclina a agir de tal maneira qu e nossa
-submisso. Mas a partir do dia em que o ação seja voluntária. Por conseguinte ?s
Espírito Santo habita e inspira o filho de verdadeiros filhos de Deus, que somos nos,
Deus, êste possui em si mesmo seu princípio são conduzidos pelo Espírito Santo em tôda
moral de julgamento, de amor ao bem, de a liberdade, pois que êle nos faz agir por
fôrça para realizações virtuosas. Seu dina- .
amor e não servilmente pe1o temor ,, 14.
mismo e sua luz interior permitem-lhe co- Em outros têrmos, o Espírito Santo dá-nos
nhecer e fazer a vontade divina, única regra simultâneamente a vida e a lei da vida, a fon-
à qual êle deve se ajustar e que o estabelece te e a orientação para a plenitude, tanto quan-
seguramente na "verdade da vida"º. to as razões de escolha, nas múltiplas deter-
"Deve-se acentuar que os filhos de Deus minações concretas. Se é preciso ainda uma
.são movidos pelo Espírito Santo, não como lei, leis, ai de mim! é que poucos cristãos
escravos, mas como sêres livres. Pois que são inteiramente " animados pelo Espírito",
movidos - como se exprime o Doutor An-
13
A "veritas vitae" é "uma vida conforme sua gélico - "pelo instinto da graça". :f.-~e pr~­
r~gra !! _se,i; objetivo, is to é , à lei de Deus que lhe ciso o socorro exterior de uma coaçao. Fi-
<la reudao (II-II, q. 109 a , 2, sol. 3). Tôda criatura
é verdadeira na medida que ela reproduz a idéia lhos insuficientemente espirituais, ê les não
que .Deus faz dela, falsa quando a contradiz ou foge sabem o q u e se deve fazer e o que evitar;
a e la. Um homem é verdadeiro quando é inteira-
men te s:ubmetido ~ -yontade de Deus. E. um peri- deve-lhes ser precisado, determinado, concre-
goso sofisma substitu1r, em nossos dias a mística da tizado. Mas está bem compreendido q ue êste
sinc;eridade .à esta virtude da verdade, 'que se impõe
<l .t oda a cnatura co~o uma justiça em face de seu aspecto legal, jurídico, é um meio certamente
cnador e a todo cristão em face de seu Mestre e carnal, não um fim: "o fim da lei é Cristo"
Senhor. Bem entendido, o discípulo de Jesus Cristo
esforçar-se-á por mostrar, em palavras e atos tal (Rom 10,4).
com? é : esta intransigente correção é exalta&'.. na
Bíblia sob o nome de "simplicidade". 1• Sto. Tomás de Aquino, C. Gent., IV 22.

'96 97
7 - eeMdode . • •
Para S. Paulo, o legalismo procede do Esta encantadora imagem será sugerida a
período da infância da humanidade: "Mas Sto. Agostinho pelo Salmo 146,7: "Javé solta
antes que a fé viesse estávamos encerrados os cativos" que a Vulgata traduziu: " Dominus
na espetativa daquela fé que havia de ser solvit compeditos" e o bispo de Hipona co-
revelada. A lei pois, foi o nosso pedagogo" menta: "Estes bebês que vós vêdes carrega-
(Gál 3,23-24 ). Até à vinda do Cristo, salvador dos nos braços de sua mãe não podem ainda
e libertador, Israel foi submetido a tutores, andar; êles têm as pernas enleadas. Estes
a curadores, a pedagogos (Gál 4,1-2), isto é, entraves que herdamos de Adão, o Cristo nos
preceptores encarregados de um lado de for- livra dêles" 13 •
necer ao aluno os primeiros elementos do co- Compreende-se melhor assim como a gra-
nhecimento, antes que êle seja capaz de as- ça fortifica, torna sã, perfeita nossa natureza
similar a doutrina propriamente dita, de ou- tão atingida pelo pecado original e suas taras.
tro lado, de lhe ensinar gradualmente o uso Ela dá nossa verdadeira identidade. Um cris-
da liberdade antes da emancipação total da tão, digno dêste nome, não considerará a lei
idade adulta. de outra maneira senão como uma educa-
Isto quer dizer que na vida moral indi- dora da liberdade interior, específica dos fi-
vidual, a plena liberdade caracteriza a matu- lhos de Deus; é preciso tornar a dizer com
ridade, idade onde se é profundamente es- fôrça que êstes não vivem mais sob uma lei,
piritualizado; os perfeitos, segundo o Apósto-
lo, são os espirituais plenamente entregues 15 Sro. AGOSTINHO, Tratados sôbre o Evangelho
de São João, XLI, 5; P. L., 36, 1695. No sermão
ao Espírito. A predominância dos manda- XCVIII onde êle comenta as três ressurreições ope-
mentos, caracteriza os iniciantes ou carnais: radas pelo Senhor: a filha de J~o, o jovc:m de
Naim e Lázaro, nosso autor explica o preceito do
"Quando éramos meninos" ( Gál4,3). As gran- Mestre: " Desligai-0 e deixai-0 ir", como o símbolo
des etapas da vida em Cristo definem-se por da libertação dos laços do pecado, "estas cadeias
conseqüências em função da liberdade, primei- dolorosas". "Os pecadores sentem horror por si
mesmos e decidem-se a mudar de vida; ei-los r es-
ro restrita, depois total. O caminho da per- suscitados. Sim, êles revivem pois que detestam
feição é se desembaraçar do domínio das sua vida passada; mas, se êles revivem, não podem
ainda caminhar. Os laços do pecado estão sempre
coações exteriores e se tornar independente lá: é preciso, pois, que aquêle que voltou à vida seja
das tendências inatas que constrangem e en- desatado e que lhe permitam caminhar. ~ a missão
que o Mestre confiou aos apóstolos quando lhes dis-
volvem o homem carnal, como um bebê en- se: "Tudo que desligardes na terra será desligado
faixado. no céu" (Mt 18,18); cf. serm. LXVII, 3).

98 99
em um regime, uma economia salutar cujo c) Liberdade filial e amor de Deus
princípio é uma lei. "Aí está a inovação da
Nova Aliança : a promoção à liberdade".
S. Paulo exprimiu por uma comparação ê preciso ir mais longe e atingir o que
jurídica esta evolução pedagógica que separa a revelação do Cristo e o dom de Deus têm
e une ao mesmo tempo as duas épocas do de mais essencial: a liberdade moral e espi-
mundo: antes e depois de Jesus Cristo. Como ritual possui o nosso ser cristão.
a mulher é ligada, submetida a seu marido A boa notícia que é o Evangelho, é o
tanto tempo quanto êle vive, mas no dia em dom de Deus, é a graça, a qual não é um
que o homem morre ela se acha tão comple- concurso moral trazido por Deus à nossa li-
tamente livre da "lei" que a unia e submetia berdade humana para tornar nossos atos me-
a seu marido, que ela não é mais adúltera recedores da vida eterna. A graça é a co-
tornando-se a mulher de outro. . . assim o municação física da vida divina: Deus nos
judeu convertido, outro submetido à lei de concebe e nós somos verdadeiramente seus
Moisés, está morto para esta lei, com o Cristo filhos: "Todo o que nasceu de Deus não co-
morto e ressuscitado, cessa de estar sujeito m ete pecado porque a semente de Deus per-
a ela, pertence a seu nôvo Senhor que o li- manece nêle" 17 •
berta de sua antiga escravidão, infunde-lhe Esta concepção, êste renascimento é a
seu Espírito, concede-lhe de viver livre (Rom obra do Espírito Santo: "Mas quando se
7,1-6). "O homem que tem o Espírito de manifestou a bondade de Deus, nosso Sal-
Deus declara-se livre, não por insubmissão à
lei de Deus, mas por inclinação espontânea por si mesmo e não pela pressão de outros. O se-
e habitual, a fazer tudo o que a lei ordena" 16• gundo grau é ser orientada para o bem pelo socorro
de um outro homem, mas sem c.oação. N~ terceiro
grau colocam-se aquêles que tem necessidade de
16 STO. TOMÁS, Comentdrio sôbre 2Cor III, 1. 3. coação para se tornarem bons. No _quart? grau es-
Em sua exegese de Rom 2,14, o mesmo autor distin- tão aquêles que, m esmo por coa~?· nao_ pode~
gue quatro categorias de almas segundo sua atitude orientar-se para o b em; cf. Jer 2,30: Em vao casti-
em face da lei: "Foi dito na primeira Epístola a guei vossos filhos; êles não receberam a lição".
Timóteo que a le.i não foi feita para o justo, isto é, 11 Jo 3,9; cf. Jo 3,5 : "Quem não renascer d!i água
que êle não é levado a agir por uma lei exterior, e do Espírito Santo não pode entrar no remo de
mas ela é feita para os pecadores que necessitam Deus". Tt 3,5: "O batismo da regeneração e reno-
ser conduzidos exteriormente. Ora o supremo grau vação do Espírito Santo"; 2Pdr 1,4: "Participantes
da dignidade humana é ser orientada para o bem da natureza divina".

100 101
vador, e o seu amor pelos homens, não pelas cristã é positivamente a "liberdade de amar".
obras de justiça que tivéssemos feito, mas Estabelecer uma moral filial, expandindo-se
por sua misericórdia, salvou-nos mediante o em função de um Deus de Amor, é necessà-
batismo da regeneração e da renovação do riamente estabelecer uma moral de caridade.
Espírito Santo que êle difundiu sôbre nós Poder-se-ia já concluir dêste fato que
abundantemente por Jesus Cristo, nosso Sal- Deus é amor; e que os filhos para imitar
vador, a fim de que, justificados pela sua seu Pai devem ser animados pelo mesmo
graça, sejamos herdeiros da vida eterna" (Tt amor : "Sêde perfeitos como vosso Pai do
3,4-7). céu é perfeito". "Sêde misericordiosos como
f: porque nós somos filhos de Deus que vosso Pai celeste é misericordioso". Mas
somos realmente livres, divinamente livres : s. Paulo depois de ter ensinado que o Espí-
"Porque todos aquêles que são movidos pelo rito Santo nos infunde os pensamentos e os
Espírito de Deus são filhos de Deus. Com sentimentos de Deus, ensinando-nos a viver
efeito, não recebestes o espírito de escravidão como verdadeiros filhos, a pensar como Deus
para estardes novamente com temor, mas re- pensa, a amar como Deus ama, a agir como
cebestes o espírito de adoção mercê do qual êle age; resumindo: formando-nos uma men-
clamamos: Abbá, Pai! O mesmo Espírito talidade filial e cristã. S. Paulo, dizemos,
Santo dá testemunha ao nosso espírito de define esta "vida" ou "lei" do Espírito como
que somos filhos de Deus (Rom 8,14-16). uma lei de caridade: "A caridade não faz mal
"Portanto já não és mais servo, mas filho ; ao próximo. Logo o amor é o complemento
e se és filho, também és herdeiro de Deus" da lei" (Rom 13,10). E ainda: "Tôda 3 lei
(Gál 4,4-7) . se encerra nessa palavra: amarás teu próximo
Não se pode opor mais fortemente moral como a ti mesmo" (Gál 5,14 ).
filial e moral servil. Os filhos amam seu Pai O filho de Deus é todo amor como seu
e procuram agradar-lhe. Os escravos temem Pai ia e há algo mais espontâneo que o amor?
seus senhores e lhes obedecem coagidos. Num Qual o ser mais livre, mais inventivo, mais
e noutro caso, os atos serão sem dúvida ma-
terialmente idênticos, mas o espírito é intei- 1a "Os filhos de Deus somente são dif~ren~es .d~s
ramente outro, e se é levado a esta última filhos do diabo pela caridade.. . Magnfüco mdíc10,
magnifica separação" (Sro. AGOSTINHO, ln llo Tract.,
precisão: a liberdade que caracteriza a moral V, 3, 7, P. L., XX.XV, 2016).

102 103
audacioso, mais dinâmico que o animado de (Gál 5,22), todo o cortejo de virtudes cristãs,
um amor espiritual e total? expressões variadas de um único amor, o de
Sto. Agostinho e Sto. Tomás de Aquino Deus em nós, porque "a caridade de Deus
exprimiram esta psicologia em fórmulas ple- está derramada em nossos corações pelo Es-
nas: "Ama e faze o que quiseres" 19 • "Pela pírito Santo que nos foi dado" (Rom 5,5). E
saúde da alma obtém-se a liberdade do jul- ainda: "A caridade é paciente, é benéfica; a
gamento, pela liberdade do j ulgamento o amor caridade não é invejosa, nem é temerária, não
da justiça, pelo amor da justiça a realização se ensoberbece, não é ambiciosa, não busca seus
da lei" 20• "Não importa qual ato humano é próprios interêsses, não se irrita, não guarda
correto e virtuoso, desde que êle se ajuste à ressentimento pelo mal sofrido, não folga
regra divina do amor" 21 • "A lei do temor com a injustiça, mas folga com a verdade,
faz daquêles que lhe estão submetidos, escra- tudo desculpa, tudo crê, tudo espera, tudo
vos; a lei do amor torna-os livres. Aquêle sofre" . Ela é fonte e mãe de tôdas as virtudes.
que age somente por temor, age como um Sem dúvida, a maneira destas virtudes não
escravo; mas aquêle que age por amor, age é de terminada e sente-se bem que a liberdade
como um ser livre" 22 • " .J:. o amor de Deus mais espontânea tem necessidade de ser orien-
que faz a liberdade dos filhos" 23 • tada, em suas realizações concretas. Mas o
Antes mesmo que Deus prescreva o que amor que a inspira tendo por objeto Deus
êle ordena, isto já é experimentado pelo cris- e seu Filho, ~ "regra" de tôda a virtude será
tão como uma exigência do amor mesmo que imitar a caridade de Deus tal como ela se
o possui. "O fruto do Espírito é caridade, refle tiu na vida de seu Filho bem-amado .
gôzo, paz, longanimidade, afabilidade, bon- Do mesmo modo o Senhor disse : "dei-vos o
dade, fidelidade, mansidã o, temperança ... exemplo para que, como vos fiz, assim fa-
çais vós também" (Jo 13,15), e a moral con-
19 " Dilige, et quod vis fac" (lbid., VII, 8); "Lex
creta de S . Paulo foi sempre determinada pela
itaque libertatis, lex caritatis est" (Ep., 167, 6, 19),
P. L., XXXIII, 740). imitação de Cristo ( cf. Ef 4,32;5,2,24-26 ). O
20 De sp. et litt., 52; P. L. XLIV, 233.
21 Sto. Tomás de Aquino, Op. de caritate et de-
Apóstolo realizava êle mesmo o que prescrevia
cem praeceptis, 2, 1138, ed. R. A. Verardo. aos fiéis: "Sêde meus imitadores como tam-
22 lbid., 1, 1134.
n 11-11, q . 184, a . 4, ad. lum; cf.: "Amor caritatis
bém o sou de Cristo" (!Cor 11,1; cf. lTes 1,6).
facit libertatem filiorum" (ln Rom., VIIl, 1. 3). A lei nova, porque lei há, é portanto pri-

104 8 - Caridade . . • 105


meiramente a pessoa do Cristo, sua doutrina Esta imanência - que não transige com
e sua própria vida, que nos ensina a viver a nossa autonomia - é o princípio funda-
como filhos de Deus . ~ mais concretamente mental da liberdade cristã: "Onde está o Es-
o Espírito Santo que êle nos envia e nos su- pírito do Senhor está a liberdade" (2Cor 3,17).
gere interiormente a mentalidade e os costu- O que S. Tomás de Aquino comenta assim:
mes de filhos de Deus 24• "Aquêle que age espontâneamente, age livre-
mente. Mas o que recebe o seu impulso de
2A "Jesus é um legislador, mas não é um legis- um outro não age livremente. Aquêle, pois, ·
lador como os outros. i:. um legislador qu~ dá uma que evita o mal, não porque é um mal, mas
lei impraticáv~I ao homem ent~egue a s1 mesmo.
Sua lei é a lei de um homem novo, e como de um em razão de um mandamento do Senhor, não
outro mundo. i:. a lei estabelecendo relações que é livre. Em contraposição, o que evita o mal
ultrapassam o homem dirigindo-se ª· Deus, .e. que
ultrapassam o nomem ainda quando ele se dirige a porque é um mal, êste é livre. Ora, isto é o
outro homem, porque êle não alcança seu sem'?lhante que opera o Espírito Santo, que aperfeiçoa
espiritualmente senão através de Deus. E eis por-
que é preciso que o legis!ador nôvo, ~razendo sua interiormente o nosso espírito, comunicando-
lei, ofereça com ela o meio de c~pr:-la. Qual é -lhe um dinamismo nôvo, tão bem que êle se
êste meio? i:. uma transformação mtenor, um soet>
guimento de n ossos podêres, um nôvo nascimento . .. abstém do mal por amor, como se a lei di-
"J:. preciso renascer, é preciso ser regenerado vina lhe ordenasse; e desta maneira êle é livre;
no sentido próprio pela água e pelo Espírito, a fim
de que, levados ao nível divino, possamos contrair não que êle seja submetido à lei divina, mas
com Deus uma intimidade nova, intimidade que tem porque seu dinamismo interior o leva a fazer
conseqüências ilimitadas, porque nos abre um mun-
do nôvo onde encontramos em reserva as condições o que a lei divina prescreve" 25 • Tôda a alma
do conhecimento perfeito e da perfeita beatitude.
i:. isto que nós chamamos com uma palavra signi- impor - assim no sobrenatural nós temos uma lei
ficando "a graça", e sua expansão no mundo eterno interior que é a lei da Nova Aliança, do nôvo pacto
é "a glória". Mas a lei? A lei é a mesma coisa que é um pacto de amor, não de temor como ou-
quanto ao essencial; da do que a graça nos concede, trora, com tôdas as conseqüências do amor das duas
como disse, uma natureza nova, não é possível que partes: de nossa parte a espontânea fidelidade ao
esta nova natureza não tenha como a outra seu serviço; da parte de Deus a "justificação" neste
dinamismo próprio, seus impulsos, suas tendências. mundo e a bem-aventurança no outro" (A. D. SER-
E se nós chamamos " lei natural", o impulso origi- TILLANGES, La. Philosophie des Lois, Paris, 1946, pp.
nal, que nossa criação forma ao mesmo tempo que 117-119).
nosso ser, lei que é para nós o que são as proprie- 25 Comentário sôbre 2Cor 3,17, ed. Marietti, p.
dades para o corpo físico e seus instintos p ara o 438; cf. 1-11, q. 108, a I, ad 2um. Sto. Tomás retoma
animal - com esta diferença que aí se alcança a o mesmo pensamentô em C. Gent., 4, 22, que seu
liberdade. e então a lei de que se fala toma um comentador Silvestre de Ferrara comenta assim:
caráter de obrigação e se propõe em vez de se "Os justos estão sob a lei divina que os obriga sem
coagi-los, no que êles observam os preceitos da lei
106
107
profundamente espiritual estará de acôrdo alma lúcida e responsável pela sua orientação
com isso, tal como o pastor dirigindo esta e sua conduta adere a Deus com amorosa
oração a Deus: "Senhor do mundo, sabes que espontaneidade. :E.les vivem no temor, como
se tu tens animais que me darias para guar- servos; e à falta de dinamismo êles se prote-
dar, eu que guardo os animais dos outros por gem e se tranqüilizam por sua submissão aos
um salário, guardaria os teus porque te amo" 26 • preceitos, mas "é por falta de esqueleto, que
Esta doutrina implica tôda uma concep- certos animais devem se envolver com cara-
ção da vida cristã. paças" n. Ora, o critério da caridade perfeita
Quando batizados, autênticos filhos de e portanto da idade adulta do filho de Deus,
Deus, não têm outra ambição espiritual se- plenamente livre 28 , é estar isento de temor:
não a de não ser punidos. P ara êles a obra "Na caridade não há temor; a caridade per-
da fé é "obter sua salvação", mas esta consiste feita lança fora o temor, porque o temor su-
essencialmente em evitar o inferno e subtrair- põe pena; aquêle que teme não é perfeito na
-se aos eventuais castigos da desobediência. caridade" (lJo 4,18-19).
1:.les não têm a idéia de que Deus possa, desde
aqui embaixo, ser amado por êle mesmo, como
o soberano Bem e a soberana Beleza. Meno-
res definitivamente esclerosados antes de
ati~gir a idade da razão espiritual, não ad-
quirirão jamais a maturidade da fé, onde a n P. Mersch citado por M. J. CoNGAR: Si vous
êtes mes témoins, Paris, 1959, p. 440.
21 A fé do adulto supõe que se começou a inte·
de uma maneira plenamente livre e voluntária, e não riorizar o Mistério e que se penetrou na realidade
constrangidos p elo temor do castig~ nem pela C?rdem que traduzem as fórmulas do dogma. Em conse-
do superior, como os ma us que nao observ~nam a qüência disso, o fiel adulto se preserva de pôr tudo
lei se não houvesse o mandamento para obngá-los e no mesmo plano no campo das afirmações de sua
se não temessem ser punidos por havê-lo. transgre- ~é: o _rei?o é mais importante que o inferno, a graça
dido" (texto citado por ST. LYONNET, op. cit., p. 21). : mai.s 1!11POrtante que o pecado, o Espírito Santo
~ preciso lembrar que o Doutor Angé_!ico consid~ra ~ mais importante que o papa; o Cristo é mais
que o pecado não ofende a Deus senao na medida importante que a Virgem Maria. O que leva a pôr
que êle se opõe ao bem do homem: "Nós ofendemos cada aspecto da fé em seu lugar, sem negligenciar
a Deus com efeito, somente na medida em que nenhum, mas sem se deixar conduzir por seu tem-
agimos' contra nosso bem . . . O bem para tôda cria· peram~nto, seus entusiasmos intelectuais ou senti-
tura é que ela atinja seu fim ... " (C. Gent., III, 122). me1!ta1.~, e nem pela proliferação anárquica das de-
- 26 Citada por G. VAJDA, L'amour de Dieu dans voçoes (A. Lffic~. Adultes dans le Christ Bruxelles-
la Théologie juive du Moyen Age, Paris, 1957, p. 161. -Paris, 1959, pp. 25-26). '

108 109
CONCLUSÃO

Julgados no plano da história das reli-


giões como no da evolução da moral, os cris-
tãos caracterizam-se como os sêres mais livres
do mundo: " Omnia vestra sunt". - Vós sois
os senhores de tudo e em primeiro lugar de
vós mesmos. Vós nascestes da Igreja, oposta
à Sinagoga que só gerava escravos: "Nós so-
mos os filhos da mulher livre" (Gál 4,31 ).
Desta liberdade soberana, conhece-se do-
ravante os constituintes e a natureza. Ela
é o apanágio de uma moral filial. Só aquêles
que têm Deus por Pai, são verdadeiramente
"• livres. Esta liberdade é educada pelo Espí-
rito Santo que nos liberta progressivamente
das servidões hereditárias. Aquêles que não
compreenderam a obra de libertação espiri-
tual cumprida pelo Cristo, e que continua'l.'
a não ver em Deus senão um Mestre e um
Juiz, permanecem na escravidão. Do mesmo
modo Sto. Agostinho comentará o último pe-
dido do Pai-nosso: "Livra-nos do mal", nestes
têrmos : "Pedimos para ser livrados do mal,
porque esta liberação nos torna sêres livres,
entendamos : filhos de Deus, de tal maneira
111
que, graças ao espírito de adoção, podemos tesouros esta independência espiritual 4, guar-
clamar a Deus : Pai, Pai!" 1• dá-la zelosamente, proclamá-la à face de um
Esta libertação progressiva é feita pelo mundo a serviço das potências das trevas.
culto absoluto da verdade e da luz. E ex- Contribuirá assim, por sua parte, a restituir
pande-se em amor: a salvação é poder amar a esperança àqueles que sofrem e que morrem.
livremente e devotar-se sem entraves: "Vós,
irmãos, fôstes chamados à liberdade. . . ser-
vi-vos uns aos outros pela caridade" 2• "A
liberdade é uma volúpia. Por isso, enquanto
fazes o bem por temor, não te regozijas em
Deus. Enquanto ages como escravo, não te
regozijas nêle. Que Deus te encante e eis-te
livre" 3•
Daí resulta que o cristão digno dêste nome
tem deve ter como nenhum outro aqui em-
bm'o, o sentldo e o orgulho da liberdade.
como um cego que revê a luz, como um doen-
Como um antigo escravo liberto da escravidão,
te condenado que recobra a saúde . . . o filho
de Deus deve apreciar como o tesouro dos

1 STO. AGOSTINHO, De Sermone in monte, II-11, 38;


P. L., XXXIV, 1285. . ,. .
2 Gál 5,13. Se, à origem da bumamda~e, a li-
berdade primordial da vc.mtade ~ra P?der nao pe~,
a última liberdade mwto maior ainda, sera nao
poder pecar" (Sro. ÁoosTINHO, De corr. et gr., 12, 33;
P. L., XLIV, 936) . "Na cidade celeste, a vontade será 4 ~ o lugar de relembrar Mt i3,8-10: "Mas vós não
livre liberada de todo o mal e cumulada de todo o vos façais chamar mestres, porque um só é o vosso
bem:' (Idem De civ. Dei, 30, 3; P. L., XLI, ~02). Mestre e vós sois todos irmãos. A ninguém chameis
Liberdade q~e será participação da próp~a li~er­ pai sôbre a terra, porque um só é vosso Pai, o que
dade de Deus, infinitamente livre porque ele é un- está nos céus. Nem façais que vos chamem mes-
pecável (ibid.) . tres, porque um i6 é vosso Mestre, o Cristo". Três
J Ide m, Tract. in Jo., XLI, 10; P. L., XXXV, 1698. designações que são apenas uma, segundo Gên 45,8.

112 113
1NDICE
Prefácio 5

O AMOR DE CARIDADE
NO NôVO TESTAME.'lTO

Preliminares 9

1 - A caridade é um amor 15
II - As características da autêntica caridade 25
III - A caridade, am or divino e infuso 43
IV - Caridade e vida cristã 49
V - Recompensa e alegria da caridade 69

A LIBERDADE DO CRISTÃO
SEGUNDO O NôVO TESTAMENTO

Preliminares 77

Os dados do Nôvo T estamento sôbre a liberdade


do cristão 81
a) Crer em Cristo é adquirir a liberdad e 83
b) Liberdade e Espirifo Santo 87
e) Liberdade filial e amor d e Deus 102

Conclusão 111

\
COMPOSTO 1: IMPllKSSO NAS
OJr!CINAS QRÃrlCAll DAS EDIÇÕES
PA11UNAS NO ANO DI: 1966

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