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CHARLES INNES

O HOMEM QUE FAZIA


DIAMANTES

© 1965 – Publicado no Brasil pela


Editora Monterrey Ltda.
540125
PÓRTICO
Meus amigos, leitores, leitoras, curiosos de todas as
idades, aqui estão vocês, novamente, diante de um mistério.
Como se faz um diamante?
Carbonos submetidos a pressões e temperaturas
altíssimas, a trezentos quilômetros no interior da terra, em
eras remotas, transformaram-se nas mesmas preciosas que
o mundo inteiro cobiça, pedras que as mulheres desejam
acima de qualquer coisa, raros estilhaços de luz
aprisionada, símbolos de riqueza e glória.
Que aconteceria ao mundo no dia em que os grandes
cientistas supranucleares produzissem nos laboratórios
algumas toneladas de diamantes artificiais?
Eis o tema fabuloso desta vibrante novela policial que
agora vocês vão começar a ler. Nossa personagem
principal, Brigitte Montfort, ainda de férias nas Bahamas,
leu a notícia significativa nos jornais, colheu o relato do
detetive Guy Suits, agente especial no caso, e nos enviou,
urgente, todo o material para a publicação que se segue.
Afinal, parece que um dia os diamantes artificiais foram
mesmo produzidos por um físico de renome. E Brigitte, que
leva sempre no anular esquerdo uma navete de vinte
quilates do mais puro Kimberley africano, tomou um susto
dos diabos. E aqui está o relato que nos enviou.

CAPÍTULO PRIMEIRO
TRAMA FASCINANTE
A notícia chegou a fazer manchetes em quase todos os
jornais do mundo. DIAMANTES ARTIFICIAIS! Uma
descoberta que suscitava a algumas fantasiosas
reminiscências dos alquimistas do passado, do discutido
José Bálsamo1, Conde de Cagliostro, de Althotas, seu
mestre, descobridor da Pedra Filosofal.
Afinal o diamante fabricado, ao alcance de muitos!
Reviravolta desconcertante nos centros de negócio de todo
o planeta. Mulheres enlouquecendo entre as joias
ameaçadas. Grande interesse da indústria, problemas
estratégicos postos em pauta.
Congressos científicos para confirmar a descoberta
sensacional. Era mesmo de estarrecer! A síntese do
diamante encontrada como um simples “ovo de Colombo”.
Boletins expedidos a todas as partes do globo. Das
experiências que seriam levadas a cabo — uma vez
constatada a validade das fórmulas descobertas —
resultariam gemas iguais às que se extraem das minas de
Kimberley, na África, ou de Minas Gerais, no Brasil, talvez
até um pouco mais duras e isentas de jaça. Também seria
possível conseguir-se determinar o formato e a dimensão do
diamante a fabricar. Os joalheiros do mundo em suspense!
O segredo não estava apenas em submeter compostos de
carbono a pressões altíssimas, imitando as condições
especiais de uma era em que nosso planeta sofria violentas
mutações. Cálculos apuradíssimos, equações que tomaram
anos de investigações científicas, representavam a receita
misteriosa dessa alquimia da era nuclear.

1
Joseph Balsamo é um romance histórico de Alexandre Dumas. NR
Cinco pessoas apenas, além do inventor, conheciam os
números da equação e os princípios básicos necessários à
fabricação do inusitado diamante artificial: Guy Suits,
agente especial, por dever de oficio. E por outras razões,
Patrick Kimbell, Arnold Bebil, Frederick Schulz e ela.
Ela era Mary Kimbell, uma garota excelente, muito sexy
e extremamente rica: uma das dez mais do mundo. Dona de
uma imponente Vila na Côte d’Azur, dois iates, cinco
automóveis, controlava a maioria das ações de grande mina
de brilhantes no Brasil. Seria feliz, como a maioria das
garotas da sua idade, se a tremenda propaganda em torno da
sua fortuna não lhe atraísse uma chusma de caça-dotes.
Entre esses, diga-se de passagem, figurava, como o mais
saliente, o alemão Frederick Schulz, foragido da zona
oriental.
Schulz, é bom que se diga, tinha uma cara muito
inteligente e inspirava simpatia à primeira vista. Seu físico
de nobre prussiano e sua conversa culta e atilada
contribuíam para que Mary o aceitasse com indisfarçável
preferência. Aliás, qual é a moça que não gosta de um
alemão boa pinta?
O chato do elenco era Arnold Bebil, sem nenhuma
chance no páreo. Feio, magro, míope, careca asmático,
estava — para complicar a história perdidamente
apaixonado por Mary e vivia a rondá-la com seus assédios
numa constância pegajosa e ofegante. A moça procurava
evitá-lo, com as melhores evasivas, mas nem sempre a fuga
lhe era possível, pois o chato do Bebil detinha o controle de
grande parte das ações da mina de diamantes do Brasil, e a
Mary interessava paparicá-lo para manter o controle do
negócio. Desta situação se aproveitava ele para viver
atropelando a jovem. E dava palpites. Recriminava,
abertamente, as saídas com Frederick Schulz.
— Este alemão é um vigarista! — dizia Bebil, na sua
voz rouquenha, ofegante. — Abra o olho com ele! Deve
estar querendo botar a mão no seu dinheiro!
Mary não ligava e continuava fazendo excelentes
programas com o alemão boa pinta, nas barbas do seu sócio
asmático.
O outro personagem do enredo era Patrick Kimbell, pai
de Mary, um velho play boy jogador, sem força e sem
vintém, sustentado pelo dinheiro que a filha herdara da mãe.
Não via com agrado o namoro da jovem com o alemão
Schulz, mas nada fazia para demonstrar sua antipatia, com
medo de entrar em choque com a fonte do seu sustento,
Patrick era pobre porque desperdiçara sua fortuna pessoal
no pano verde. Não conseguira dilapidar o quinhão de
Mary, graças à intervenção de advogados da família. Agora,
era a jovem quem administrava seus próprios negócios,
reservando para o velho pai jogador apenas uma discreta
mesada.
Apesar de tudo, Patrick Kimbell era visto nas casas de
jogo com o cachimbo permanentemente preso entre os
dentes, os dedos nervosamente crispados sobre as fichas,
perdendo quantias acima de suas forças e pagando com
dinheiro cuja origem se desconhecia.
Estes os primeiros fatos e seus principais personagens. A
paixão de Arnold Bebil por Mary. O cinismo do simpático
Frederick Schulz. A irresistível atração dos milhões da
moça. A invencível paixão pelo jogo de Patrick Kimbell e a
descoberta da síntese do diamante.
Mas... onde fica o agente especial Guy Suits, de que
falamos no início desta conversa? Bem, vocês não perdem
por esperar. Vamos ao capítulo segundo.

CAPÍTULO SEGUNDO
MEDO

— Tenho medo, senhor! Tenho medo!


Quem falava assim era um homem ainda jovem,
corretamente vestido e meio míope, com aparência
nitidamente intelectual. Acabava de entrar no escritório do
inspetor-chefe da Polícia sem bater à porta, tropeçando nos
móveis, assustado. Levava numa das mãos uma enorme
pasta de couro de crocodilo, que apertava nervosamente
contra o corpo como se temesse que a arrebatassem. Falava
olhando para os lados, nervoso.
— Tenho medo, senhor! — repetiu.
Não parecia um covarde qualquer. Mostrava,
nitidamente, estar sob o influxo de uma impressão muito
forte.
O inspetor Lyon King sorriu amigavelmente e apontou
para uma cadeira. O homem, depois de puxá-la para bem
junto do inspetor, sentou-se. Respirava ofegantemente e
tinha os olhos muito abertos atrás das grossas lentes dos
óculos, sob o olhar inquisidor de King.
Ao cabo de alguns instantes, como não abrisse a boca, o
inspetor resolveu interpelá-lo:
— Fale, senhor.
Esperou pacientemente. Visitantes como aquele não
eram tão raros assim, loucos ou sensatos, todos com
problemas e temores, confidências ou denúncias.
— Querem matar-me! — quase gritou o homem,
apertando ainda mais a pasta contra o peito.
— Acalme-se — aconselhou o inspetor, oferecendo-lhe
um cigarro.
O pulso do homem tremia e custou a conseguir acender
o cigarro. Via-se que estava dominado pelo pavor, sem a
menor força para controlar os nervos.
Transcorreram alguns minutos, enquanto os dois
fumavam em silêncio. O inspetor King observava
atentamente o visitante que, afinal, parecia recuperar-se. Já
não olhava em redor nem apertava tanto a pasta contra si.
Afinal, pô-la sobre a mesa e soltou um profundo suspiro.
— O senhor deve pensar que estou louco — aventurou-
se a dizer, tentando sorrir.
— Nada disso, senhor... — respondeu King sem muita
convicção.
— Robert Prest — apresentou-se o outro.
— Bem, senhor Prest, agora que está mais descansado,
quer explicar-me com detalhes o motivo de sua visita?
Prest pigarreou, tirou os óculos para limpá-los com o
lenço, tomou a pô-los; pigarreou novamente, tossiu e
confessou por fim:
— Sou físico, e descobri um método de fabricar
diamantes artificiais.
Lyon King deu um salto na cadeira. Pôs os cotovelos na
mesa e olhou com assombro para o homem.
— Repita essa história dos diamantes — grunhiu.
Robert Prest repetiu:
— É verdade! Descobri a síntese do diamante, e estou
em condições de fabricar quantos quiser.
O gesto de assombro de King acentuou-se ainda mais. O
homem era louco, então! Diamantes artificiais? Cheirava a
pedra filosofal dos alquimistas medievais...
O homem procurava, há centenas de anos, a síntese do
diamante, e aquele sujeito míope e amedrontado vinha
dizer-lhe que a encontrara, como se noticiasse que sabia
fabricar meias de nylon ou brinquedos de plástico.
— Tenho as fórmulas nesta pasta, inspetor Dois anos de
trabalho, horas infinitas de ansiedade e canseiras... Aqui
está o resultado de meus trabalhos.
— Deixe-me ver um diamante. Entendo algo de pedras
preciosas — interrompeu-o o inspetor.
— Parece que o senhor não me entendeu — retrucou o
físico. — Meus estudos não chegaram à prática, ainda. Só
tenho fórmulas, cálculos e...
— Agora entendi — saltou King, aborrecido.
— Se são apenas fórmulas, de que tem medo?
Prest parecia desconcertado. Era difícil a explicação do
que se passava. Seu medo era impreciso; temia a todos e
pressentia o perigo em cada canto. As noites eram eternas,
carregadas de ameaças informes, e os dias, intermináveis. O
amanhecer o surpreendia desperto, com os olhos fixos no
balcão de seu quarto, esperando e temendo ver aparecer a
qualquer momento o ladrão que lhe roubaria os
documentos. Conservava a pasta debaixo do travesseiro,
acariciando-a com os dedos trêmulos de ansiedade, até
atinar com um esconderijo apropriado para guardá-la.
— Estes papéis valem mais do que diamantes —
afirmou, — Dariam milhões de dólares por eles, ainda que
fosse apenas para queimá-los Quando pudermos fabricar
diamantes, o valor das gemas baixará para dez por cento do
atual. Mas a maior importância de minha invenção não se
limita precisamente a isso. Só nos Estados Unidos, gastam-
se anualmente cerca de cinquenta milhões de dólares em
diamantes industriais. Os que pudermos fabricar custarão
uma parcela ínfima disto, e a indústria e as Forças Armadas
farão uma economia fabulosa!
O inspetor King continuava a olhá-lo, considerando-o
um visionário, um pobre diabo enlouquecido pelos estudos.
— E de que tem medo? — perguntou novamente.
Prest encolheu os ombros e respondeu:
— Não sei exatamente, mas preciso que os senhores me
protejam.
— Bem, por que não nos confia a pasta? Não a tendo
consigo, ninguém se meterá com o senhor — ofereceu o
inspetor.
Prest, longe de aceitar a proposta, apanhou a pasta de
cima da mesa e tomou a apertá-la debaixo do braço.
— Ainda me faltam alguns detalhes. Não conclui todos
os estudos, de modo que não posso desfazer-me dela.
Era uma grande mentira de Prest. Ele, na verdade, já
havia concluído os estudos, mas não queria que ninguém
soubesse. Desconfiava até mesmo da polícia a quem viera
pedir proteção. O medo de perder o fruto de toda uma longa
trilha de pesquisas era maior do que o de perder a própria
vida.
— Então, o que deseja de nós? — perguntou- lhe o
inspetor, já começando a perder a calma.
— Que salvem minha vida — foi a resposta. — Que me
defendam contra qualquer atentado. — Pôs-se de pé
repentinamente e levantou a voz, que soou clara e sonora
pela primeira vez: — Sou um cidadão deste país, senhor!
Um homem cuja vida está em perigo por ter levado a uma
das maiores descobertas da humanidade!
King levantou-se, por sua vez, e encarou-o entre
enfadado e zombeteiro.
— Escute, meu amigo — resmungou. — Se pensa que a
Polícia está aqui para pajear todas pessoas que se creem em
perigo, sem justificativa nem fundamento, está muito
enganado. Temos tarefas mais importantes, e...
Robert Prest deu meia volta e saiu da sala, fungando
entre os dentes. O inspetor tinha razão: seus temores eram
infundados, já que sabia concretizá-los em uma ameaça
real.
Nunca sentira aquele medo antes de... Bem, como iria
dizer ao inspetor que temia... Não, o homem era seu amigo,
a única pessoa que estava a par de seus trabalhos, e em
quem podia confiar. Seu medo de ser morto é que o
transformara em um ser tímido e apavorado.
Ao sair do edifício da polícia viu que estava nevando. Os
flocos espessos interpunham-se aos raios luminosos das
lâmpadas da rua vestida de branco. Nova York parecia
construída em mármore. Tiritou. De frio? Sim, devia de ser
frio. O estremecimento que o percorria não poderia ter outra
origem, pois o medo desvanecera-se na sala do inspetor.
Apertou fortemente contra o peito a pasta de couro de
crocodilo. Sentia a cruel indiferença da cidade branca e fria.
Apressou o passo, ao descer do táxi que o levara às
proximidades de sua residência. Não se via um só
transeunte na rua. O frio penetrava-lhe os ossos e provocava
arrepios.
A neve caía, lenta, e o vento abanava as abas de seu
casacão. Convenceu-se de que cometera uma infantilidade
ao procurar a Polícia. O melhor seria dirigir-se no dia
seguinte à Werner Electric e oferecer-lhe o invento.
Interrompeu as reflexões ao ver um homem que surgira
do torvelinho alvo, ao dobrar a esquina e chocar-se contra
ele. Foi tão inesperado aquele choque, que quase soltou a
pasta. Enquanto o desconhecido, com as mãos afundadas
nos bolsos, resmungava e continuava seu caminho, Prest
parou, ofegante pelo susto.
Não devia andar pelas ruas com a pasta debaixo do
braço. Qualquer pessoa poderia roubá-la, atacando-o
repentinamente.
Outra vez o medo vinha dominá-lo. Prest lançava agora
olhares suspeitos para todos os lados.
Seu automóvel estava ali, diante do edifício, coberto de
neve como se fora uma enorme caixa branca ou um
sarcófago. O estremecimento voltou a sacudir todo o seu
corpo. Parou no meio da calçada.
— Um sarcófago... — repetiu para si mesmo, fazendo
com a mão que estava no bolso um gesto de exorcismo
supersticioso.
A ideia de que alguém poderia estar dentro do carro à
sua espera, quase o levou a retroceder. Mas dominou o
pavor. A neve começava a encharcar suas roupas, e a mão
que sustinha a pasta estava dormente de frio.
Avançou alguns passos, tiritando agora de medo, em
direção ao carro. Precisava guardá-lo na garagem, para que
a neve não o sepultasse.
Nova York dormia tranquila, sem tomar conhecimento
do homem que inventara a fórmula para a fabricação de
diamantes.
A um passo do automóvel, Prest deteve-se e estendeu a
mão para segurar a maçaneta da porta. Neste instante um
súbito redemoinho de neve envolveu-o impedindo-lhe toda
e qualquer orientação.
Prest não via mais nada. Só o vento uivava
lugubremente em seus ouvidos.

CAPÍTULO TERCEIRO
O VISITANTE NOTURNO

A porta não estava fechada à chave, embora ele estivesse


certo de que a fechara. Algumas vezes, no entanto,
esquecera de fazê-lo, o que o levou a acreditar em outro
esquecimento. Abriu-a com cautela, lentamente, e a luz do
interior acendeu-se automaticamente. Sempre acontecia
assim, mas ele assustou-se com aquilo, como se alguém a
tivesse aceso independentemente de seu gesto de abrir a
porta.
Antes de entrar no carro, avançou a cabeça e examinou o
interior, certificando-se de que não havia ninguém.
Convenceu-se de que seus temores tinham sido infundados,
mais uma vez. Dentro do automóvel, sentiu-se mais seguro.
Pôs o motor em marcha e ligou a calefação interna. O calor
derreteu, em poucos minutos, a neve aderida a seu
sobretudo e as solas dos sapatos, provocando-lhe uma
sensação de bem-estar como há muito não sentia.
Decidiu dirigir-se à sua casa de campo, onde estaria em
segurança. Na manhã seguinte procuraria a Werner Electric
e negociaria o invento. O medo o deixaria definitivamente,
então. Pensou que deveria ter adotado essa decisão há mais
tempo, o que lhe teria evitado os sobressaltos que o vinham
mortificando.
Apertou o acelerador com cuidado, para evitar o perigo
de derrapar nas ruas cobertas de neve e lama. Continuava
nevando. Flocos graúdos aderiam ao vidro do para-brisa. O
limpador afastava tudo para os lados, formando um
semicírculo na crosta branca de gelo.
Desabotoou o sobretudo. O calor suave e acariciante do
interior do carro aumentou sua sensação de bem-estar.
O núcleo urbano ficou para trás, adormecido, e a estrada
larga e reta abriu-se ante ele, margeada de arbustos e velhas
árvores.
Casas isoladas no campo. Uma ou outra luz na distância,
gente que ainda não fora dormir. As luzes logo ficavam para
trás e a escuridão voltava a dominar. A neve caindo
insistentemente, e o limpador de para-brisa a abrir caminho
para os olhos, no vidro.
Aproximava-se o parque da baía de Pelham. Depois da
última ponte sobre o rio Eastches chegaria a casa.
Entrou na estrada que conduzia à sua granja, forque
Robert Prest possuía uma pequena granja, ou pelo menos
assim chamava ao chalé rodeado por um jardim onde
cresciam dois rododendros, alguns canteiros de gerânios
mirrados e três ou quatro árvores frutíferas que os garotos
da vizinhança impediam de produzir, pois roubavam as
frutas ainda verdes.
Comprara a propriedade para afastar-se da civilização
durante o trabalho de pesquisas a que se lançara. Era um
retiro de paz, longe do incessante tumulto da cidade. Ali só
chegavam os sons do parque, os cantos dos pássaros, o
rumor do vento nas árvores.
Saltou do automóvel e abriu o portão que conduzia ao
jardim. Precisava pôr o carro na garagem e esconder os
documentos.
Voltou ao carro, depois de abrir a porta da garagem, e
conduziu-o suavemente para dentro, levantou um ladrilho
do piso e escondeu a pasta no buraco que apareceu. Tornou
a pôr o ladrilho no lugar e fez a roda avançar até ficar em
cima do esconderijo. Fechou cuidadosamente a porta e saiu
para o jardim.
A neve passara a descer suavemente, sem vento que a
agitasse. Os flocos caíam verticais, um após outro, como a
perseguir-se até o solo, onde se fundiam.
Deteve-se por um instante a contemplar a paisagem.
Gostava da neve, de afundar os pés naquela massa branca e
pura, de sentir a carícia suave e úmida dos flocos em seu
rosto.
Seu temor desaparecera. Nada havia ocorrido.
Trabalhara muito, nos últimos tempos, e tinha os nervos
alterados pelo esforço. Convenceu-se de que necessitava de
uma temporada de repouso, e decidiu passar algum tempo
na Flórida, depois de vender os planos à Werner Electric. O
mundo, então, conheceria o resultado de seus estudos, pelas
provas concretas que seriam apresentadas. Prest carecia dos
fundos necessários para a aquisição dos elementos
necessários à prática do seus projetos. Precisaria de uma
prensa gigantesca e de fornos especiais, de auxiliares e
matérias-primas, o que custaria milhões de dólares.
Estava convencido, no entanto, de que seus cálculos
eram exatos, e que não poderiam falhar nas experiências
práticas.
Assim pensando Prest chegou à porta do chalé e girou a
chave na fechadura. Entrou, acendendo a lâmpada, e
passeou o olhar em redor de si.
Tinha orgulho de sua propriedade. Aquele pequeno trato
de terra e a casinha haviam custado muitos anos de
sacrifícios. Prest era um homem que se elevara na vida pelo
esforço duro e constante, evoluindo do nada à posição atual
no mundo da ciência. Gozava de elevado conceito entre
seus colegas, apesar de seu gênio retraído e solitário.
Parado em um recanto do hall observou com uma ponta
de orgulho o ambiente acolhedor que formara, lamentando
que sua mãe não mais vivesse para gozar seu conforto.
Entristeceu, ao pensar no passado. Recordou os anos de
miséria, os sacrifícios que sua mãe fora forçada a fazer para
ajudá-lo em seus estudos e no início da carreira. Desejaria
poder oferecer-lhe aquilo tudo, como um tributo à sua
abnegação, mas era tarde: a senhora Prest havia morrido
antes.
Esqueceu os documentos, pensando em sua mãe morta.
Um remorso desarrazoado dizia-lhe que tinha direito de
gozar aquele conforto... Avançou lentamente para a sala de
estar. À direita, a escada que conduzia ao andar superior.
Ao fundo, as duas poltronas macias, de que só se viam os
espaldares, voltadas para a lareira, pendeu a luz do living e
apagou a do hall. Dirigiu-se diretamente à escada. Já havia
posto pé no primeiro degrau, quando alguém falou repentina
e inesperadamente, às suas costas:
— Espere!
O sangue gelou em suas veias. Seria possível estivesse
tendo alucinações auditivas? Voltava a sentir o medo atroz,
o temor absurdo que dominava seus sentidos.
Mas não se tratava de alucinação. O dono da que
estivera sentado numa poltrona, caminhava em sua direção.
Sem se voltar, sentia sua presença. A madeira estalava sob
seus passos lentos e seguros.
— Amigo Prest, espere um momento — dizia a voz. —
Precisamos conversar.
Agarrado ao corrimão, Prest começou a voltar-se para o
intruso. Seu rosto refletia o terror que se apossava dele.
O inesperado visitante parou no meio da sala,
observando-o sorridente, com as mãos enfiadas nos bolsos
da capa.
— Não se assuste — aconselhou, ao perceber o tremor
do físico. — Venho em missão de paz, se você for...
razoável. Estou à sua espera há pouco tempo. Como se deu
na visita à Polícia? Mal? Claro, eu já o esperava. Quem
acreditaria nessa história de diamantes artificiais? Suas
poltronas são ótimas, Prest; tão confortáveis... Quase
adormeci enquanto o esperava.
Prest continuava agarrado ao corrimão, olhando-o com
assombro. Compreendia agora por que não o vira ao entrar:
o espaldar alto da poltrona o ocultara. Mas não atinava
como pudera entrar sem forçar a fechadura. Lembrou-se
apenas de perguntar:
— Como... como conseguiu entrar aqui?
O outro tirou um chaveiro do bolso e agitou-o no ar.
—Não é difícil conseguir meia dúzia de chaves — disse,
tomando a guardá-las no bolso.
— Claro — replicou Prest, convencido.
— Mas não fique aí — disse o intruso em tom
imperativo. — Vamos sentar-nos. Precisamos conversar.
Falava com uma tranquilidade irritante, como fosse ele o
dono da casa, e apontava para as duas confortáveis
poltronas. O físico continuava com o pé no degrau, fitando-
o com os olhos muito abertos e a mão aferrada ao corrimão.
O outro aduziu, voltando ao assunto anterior:
— Imagino só o assombro dos policiais. Diamantes
artificiais! Eles têm a cabeça muito dura e não conhecem
Robert Prest para engolirem semelhante história. Mas eu
acredito, Prest — mudou o tom de voz, passando a falar
com seriedade. — Estou convencido de que sua invenção é
real, e por isto estou aqui.
Prest estremeceu. Sentiu o perigo latente nas palavras
aparentemente inocentes daquele homem.
— Quem... — começou a perguntar.
O outro lhe cortou a palavra:
— Sente-se! Vamos conversar amigavelmente.
Amigavelmente? Como poderia ser amigável u homem
que invadira sua casa usando chaves falsas? Apesar de tudo,
ou talvez por isso mesmo, obedeceu. Afastou-se da escada e
foi para frente da lareira. A estufa elétrica embutida
irradiava um calor agradável, mais acentuado no lugar onde
estavam situadas as poltronas.
— Sente-se — insistiu o visitante.
Deixou-se cair pesadamente numa poltrona, sem forças
para protestar ou rebelar-se. Em realidade, sabia que não lhe
restava outro caminho: o homem, desde o primeiro
momento, apontava-lhe uma pistola. Não a via, pois ele
mantinha as mãos nos bolsos da capa, mas adivinhava o
gesto, e o volume da arma destacava-se nitidamente.
— Bem, assim estamos melhor — suspirou o intruso,
acomodando-se por sua vez na poltrona fronteira.
Estendeu a mão esquerda para a estufa.
— Que noite fria! — comentou.
Não tinha pressa alguma de iniciar a conversasão que
propusera a Prest. A noite era longa e haveria tempo
suficiente para resolver o caso antes do amanhecer. Preferia,
além disso, que Prest começasse.
Este o olhava, acovardado.
— Bem — disse o visitante, vendo que o dono da casa
não se dispunha a abordar o assunto. — Suponho que tenha
adivinhado o motivo que me trouxe.
O físico não ignorava sua intenção, mas se fez de
desentendido e negou com a cabeça. O outro acentuou ainda
mais o sorriso.
— Não adivinha? Vamos, amigo Prest, você é
suficientemente inteligente para imaginar, desde o primeiro
momento. Onde estão os planos e cálculos?
Prest raciocinava com rapidez. E se pudesse enganá-lo?
Sim, claro que conseguiria engana-lo.
Aquele homem sabia que ele fora procurar a policia, mas
ignorava o resultado da visita.
— Chegou tarde — respondeu. — O que me pede está
guardado no cofre da Delegacia.
O outro começou a rir, até quase perder o folego. Calou-
se repentinamente, e disse:
— Mentira! Vi quando saía com a pasta debaixo do
braço, apertando-a contra o peito. Notei como você tremia,
com medo de que a arrancassem de suas mãos. Segui seus
passos até o carro, e vim atrás de você até ter a certeza de
que viria para cá. Cheguei antes, como vê... Onde está a
pasta?
Prest encolheu os ombros. Não estava disposto a
responder. Os papéis constituíam a razão de sua vida e não
estava disposto a entregá-los sem mais nem menos.
— Onde está a pasta? — repetiu o intruso, dando
indícios de impaciência.
Prest sorriu, conservando-se calado, encolhido na
poltrona. Deixara de ter medo. O sentimento que o
dominava era outro: a sensação de ser detentor de um
segredo pelo qual seu visitante seria capaz de tudo.
O intruso, ante seu silêncio, pôs-se de pé e avançou para
ele.
— Onde estão os documentos? — tomou a insistir.
Conservava a mão no bolso. Não chegara à ameaça
direta. Prest continuou a negar com cabeça e guardar
silêncio, o que irritava cada vez mais seu interlocutor.
Por fim, este tirou a mão do bolso, exibindo a pistola.
— Escute bem — grunhiu, ameaçador. — Estou
disposto a conseguir esses papéis a qualquer preço. Se não
entregá-los, mato-o!
Prest percebeu que ele não mentia, pelo fulgor do olhar e
pelo tom rouco de sua voz iracunda. A pistola traçava
círculos no ar, agitada brutalmente. Uma coisa estranha
aconteceu: à medida que o homem ia se exaltando, ele se
tranquilizava paulatinamente. Ocorreu-lhe fazer uma
pergunta:
— Para que os quer?
O outro lhe respondeu com rudeza:
— Não lhe interessa.
Muito engraçado! Então não lhe importava saber para
que queriam os documentos que lhe pertenciam?
— Não os entregarei — disse.
A pistola e o gesto ameaçador do intruso não mais o
assustavam. A situação começara a parecer-lhe divertida.
Os gestos circulares da mão que empunhava a pistola
passaram a provocar- lhe o riso.
— Já disse que preferiria não lhe fazer mal algum —
resmungou o visitante. — Mas você escolheu: dou-lhe dois
minutos de prazo, e então atirarei, se não me disser onde
estão os papéis.
O sorriso desapareceu dos lábios de Prest. O homem não
estava ameaçando em vão. Separado dele por apenas alguns
passos, consultou o relógio.
— Duas horas em ponto — anunciou. — Às duas e dois
minutos puxarei o gatilho, a menos que...
Deixou as palavras em suspenso. Prest considerou que
terminaria tendo de entregar os documentos, pois temia a
morte. Não a temia fisicamente, mas apenas porque,
morrendo, o mundo jamais saberia de sua descoberta.
Sonhava com o reconhecimento de seus méritos como físico
que, em sua convicção, ultrapassavam os de todos os
cientistas contemporâneos.
Mas tinha apenas dois minutos de vida, dois minutos,
que se escoavam inexorável e velozmente! Olhou seu
relógio. O ponteiro indicador dos segundos avançava, como
se quisesse chegar à meta ainda mais depressa: um... dois...
cinco... dez...
Diante dele, o assassino apontava a pistola silêncio,
também contando os segundos.
— Falta só um... — avisou-o.
Haviam transcorrido sessenta segundos, a metade do
prazo concedido! Prest experimentou a angústia do
condenado, a obsessão opressiva de que o fim inevitável
voava ao seu encontro. O desejo de rebelar-se saltou dentro
de seu peito, subiu-lhe à garganta, saiu de seus olhos em
chispas.
— Dê-me os papéis! — reiterou o outro, adivinhando
seus pensamentos.
Não os entregaria, decidiu Prest. Se os entregasse seria
morto ainda mais certamente do que se continuasse e
recusá-los.
Guardou silêncio, enquanto o outro consultava o relógio.
Apenas por um segundo, o olhai do visitante afastou-se do
físico.
— Faltam apenas...
Foi como uma ordem de ataque: Prest saltou do assento.
O outro não o esperava, e não teve oportunidade de usar a
arma. Prest não era fisicamente fraco, e lutava para salvar a
vida.
Ao saltar, empurrou violentamente o inimigo, o que o
fez retroceder uns passos, cambaleando. Antes que ele
voltasse a si da surpresa, agarrou-lhe o pulso, com a
ansiedade de quem quer continuar vivo, o desespero de
saber que tudo dependerá de sua ação.
O homem não pôde resistir à pressão dos dedos de Prest
e deixou a pistola cair ao solo. A arma rolou com estrondo
pelo assoalho desprovido de tapete.
Agora, Prest estava em igualdade de condições com o
intruso. Eram dois homens lutando com os punhos, os pés e
os dentes. Lutaram furiosamente. Os dois corpos rolaram
pelo chão, abraçados, trocando golpes, cada um procurando
vencer o Inimigo. Dois homens convertidos em feras pela
ânsia da sobrevivência.
Robert Prest sabia que não poderia esperar compaixão
de seu inimigo, e este sabia, por sua vez, que a Polícia
acreditaria em Prest, se fosse derrotado. E as consequências
seriam as mais trágicas para ele...
Derrubavam móveis, o abajur de leitura... A sala tomou
a aparência de ter sido devastada por um terremoto.
Repentinamente, o assassino assestou um terrível pontapé
em Prest, que rolou para longe dele. Este levantou-se,
ofegante. Entre dois, a pistola oferecia-se, no chão, ao que
primeiro conseguisse saltar. Ambos permaneceram alguns
segundos, de pé, olhando-se mutuamente e à arma.
Respiravam ruidosamente, fatigados, imóveis,
armazenando energias para o salto sobre a arma. Quem
conseguisse apoderar-se dela seria o vencedor inconteste.
Ambos saltaram para frente, com as mãos estendidas.
Prest, no entanto, alcançou-a em primeiro lugar. Seus dedos
tocaram a coronha e se fecharam em torno dela. No mesmo
instante, o outro caiu sobre ele, lhe esmagando a mão contra
o solo e impedindo-o de levantar a pistola.
Tornaram a rolar pelo chão, abraçados, sentindo a arma
sob seus corpos. Em seguida, banhados em suor e
sangrando pelos cortes recebidos, levantaram-se novamente.
Prest começava a levar a melhor sobre o inimigo, que dava
mostras de esgotamento. Levantou o punho e deixou-o cair
violência sobre ele. O outro retrocedeu, estonteado pelo
golpe. Não teve tempo de refazer-se, Prest avançou,
desferindo socos e pontapés em seu rosto e no corpo, com a
sanha de quem defende a vida.
O intruso continuou retrocedendo, Já sem revidar os
golpes, tratando apenas de proteger o rosto com os braços,
em fuga inútil. O físico ainda tinha forças suficientes para
aplicar-lhe socos poderosos e acertá-los em pontos
adequados de sua anatomia.
Prest tropeçou em alguma coisa, que saltou para longe:
percebeu que era a pistola, mas não se abaixou para apanhá-
la. Não lhe fazia falta, pois os punhos eram suficientes para
vencer o inimigo. Poderia matá-lo, se quisesse, mas não
pretendia. Preferia aplicar-lhe uma surra eficiente e depois
entregá-lo à Policia.
Continuou a bater até fazê-lo cair de joelhos. Não
cessou, ainda assim: aplicou-lhe socos e pontapés até que o
inimigo baqueou, de bruços. Abaixou-se e o levantou por
um braço, para certificar-se de que perdera os sentidos.
Convenceu-se de que o homem levaria algum tempo para
recuperar-se.
Em verdade, custara-lhe muito trabalho derrotá-lo. Não
compreendia como pudera evitar que atirasse contra ele. A
morte o rondara muito de perto...
Ao pensar nisso, julgou que um gole ser-lhe-ia útil para
recuperar as forças. Tinha a garganta seca, e os golpes
recebidos começavam a doer-lhe. Ficou eufórico,
contemplando o assassino desacordado a seus pés. Gostaria
de ver sua expressão quando, ao voltar a si, se visse
encarcerado...
Dirigiu-se ao balcãozinho das bebidas, ao lado da
lareira, milagrosamente intato após a destruição quase total
a que a luta condenara a sala, e tirou dele uma garrafa de
uísque e um copo. Destapou a garrafa e serviu-se de uma
dose generosa, ouvindo com prazer o ruído do líquido
enchendo o copo.
Passeou o olhar em torno: cadeiras caídas, uma mesa
despedaçada, os livros da estante espalhados. Não lamentou
os danos, pensando unicamente que continuava vivo, e que
no dia seguinte poderia oferecer seu invento à Werner
Electric.
Bebeu de um trago o conteúdo do copo e estalou a
língua. Tornou a encher o copo e a esvaziá-lo na garganta.
Em seguida, enxugou o suor e o sangue que lhe escorriam
pelo rosto.
Esquecera o assassino! Procurou-o com o olhar:
continuava no mesmo lugar, imóvel no solo.
— Tomara que não volte a si muito depressa... —
murmurou.
Guardou a garrafa e dirigiu-se ao telefone. Precisava
chamar o inspetor King, embora não estivesse sob a
jurisdição de sua Delegacia.
— Ah, se eu pudesse vê-lo, quando receber a notícia...
— pensou.
O inspetor Lyon King não acreditava em sua queixa, e o
julgara um dos muitos paranoicos que surgem diariamente
nas delegacias policiais a pedir proteção contra imaginários
perigos. Ia demonstrar-lhe, agora, que seus temores não
eram infundados, que o assassino que o instinto o avisara de
que estava à sua procura aparecera, e fora derrotado mesmo
sem o auxilio que lhe havia solicitado.
Passou ao lado do intruso e alcançou o canto da sala
onde estava o telefone. Não o olhou; para quê? Estava certo
de que demoraria algumas horas a voltar a si, e não valeria a
pena preocupar-se com ele. Mas, naquele instante, o tomem
abria os olhos.
O físico estava de costas, quando ele percebeu o que
ocorrera, à medida que a bruma que se apossara de seu
entendimento ia sendo dissipada e começava a ver
claramente o que o rodeava.
O som do disco telefônico a girar acabou de lhe
desanuviar a mente. Robert Prest estava telefonando para a
Polícia.

CAPÍTULO QUARTO
ASSASSINATO

O inspetor king está? Quero falar com ele. Prest


tamborilava com os dedos no telefone, impaciente pela
resposta do inspetor. King estava de plantão naquela noite, e
não tardaria a ouvir-lhe a voz. Imaginou-o fumando seu
cigarro, trocando o ar de aborrecimento pelo de assombro,
quando ouvisse o que acontecera.
— Não sou louco, inspetor, nem sonho com fantasmas.
Avisei-o de que estava com medo, e posso provar que esse
medo tinha procedência: o assassino está em meu poder, e
também a pistola com que tentou matar-me — dir-lhe-ia.
Seu inimigo continuava no solo, a dois metros de
distância. Acabava de ver a pistola. Não podia alcançá-la
apenas esticando o braço: precisaria levantar-se o caminhar
até o lugar em que estava. Mas lhe era impossível fazê-lo,
de momento. A cabeça ainda girava e o corpo doía
horrivelmente. Antes de conseguir ficar de pé, Prest lhe
cairia novamente em cima.
No entanto, precisava fazer alguma coisa. Precisava
matar Prest antes que ele falasse com a Polícia.
O físico continuava a espera, tamborilando no telefone.
— Onde se terá metido esse inspetor? — resmungou.
De repente, lhe pareceu ouvir um ruído às suas costas,
como o do estalar do assoalho. Virou a cabeça. Ninguém
mais o poderia tê-lo feito além do assassino. Mas este
continuava imóvel, como antes, de bruços.
Na verdade, Prest não notou bem, pois então perceberia
que ele não estava no mesmo lugar, embora a posição fosse
a mesma, tão perto da pistola que poderia tocá-la com a
mão, se avançasse alguns centímetros. Não o notou porquê
naquele instante ouviu a voz do inspetor King.
— Quem é que precisa falar comigo a estas horas? —
resmungava com mal contida ruiva, pois o haviam
despertado.
Prest respondeu-lhe com bom humor:
— Robert Prest, inspetor. Não se lembra de mim?
Escutou um grunhido no fone, que abafou o ruído que o
assassino fazia no mesmo momento, ao se levantar com a
pistola em punho. Pensava apenas em debicar do inspetor.
O bandido firmou a pontaria. Poderia ter disparado
deitado, mas preferira atirar de pé para não errar o alvo.
Precisava acabar logo com o inventor, antes que falasse
com o policial.
— Sim, Robert Prest, aquele que o senhor tomou por...
Um disparo interrompeu-o. Prest sentiu uma dor aguda
nas costas e o fone escapou-lhe das mãos. Quis gritar, mas
não pôde; quis falar, mas as palavras não lhe saíram da
garganta.
As forças o abandonavam. Sentia-se cair. Suas
aspirações e sonhos dissiparam-se. Aquilo era a morte!
Logo agora, quando acreditava ter vencido...
Quis ver seu assassino. Voltou a cabeça e olhou-o. O
homem ainda não se levantara de todo, e a pistola deixava
escapar um tênue fio de fumaça do cano.
Enquanto o outro terminava de levantar-se, ele caía. Tão
fundo, tão fundo, que mal distinguia a luz da superfície.
Abria muito os olhos, mas não conseguia ver mais que o
negror da morte. Acompanhando-o, a voz do inspetor King
gritava através do fone:
— Responda! Responda! Que aconteceu?
Os dedos crispados sobre a mesinha do telefone abriram-
se repentinamente, e Robert Prest resvalou para o solo, sem
vida.
— Responda! Alô! Alô! — continuava a gritar no fone,
a voz deformada do inspetor King, ecoando no silêncio que
se fizera na sala. O assassino pegou o fio do telefone e repôs
o fone no lugar sem tocá-lo.
O silêncio tornou-se mais impressionante e mais
profundo. O assassino não temia que o tiro tivesse sido
ouvido. O chalé de Prest era uma ilhota solitária naquelas
paragens desertas de casas. A Polícia não tardaria a entrar
em movimento, mas havia tempo suficiente para apagar os
traços de sua passagem, antes que ela chegasse.
— Eu deveria ter disparado antes que Prest dissesse seu
nome ao inspetor — pensou.
E os planos? Robert Prest não podia lhe revelar o seu
esconderijo... Fora um idiota, permitindo que as
circunstâncias o forçassem a matá-lo. O ultimato que lhe
dera havia sido um ardil para assustá-lo, pois seu interesse
não era senão fazê-lo falar. A luta, o medo da Polícia,
haviam-no levado àquela situação paradoxal.
Precisava encontrar os papéis, razão de sua atividade.
No entanto, não dispunha de muito tempo para procurá-los,
pois a Polícia já devia estar a caminho.
O carro! Como não lhe ocorrera antes? Prest subira no
automóvel com a pasta em punho, e entrara em casa sem
ela. Deveria tê-la escondido no carro.
Febrilmente, abriu a porta. Uma lufada de ar gelado
bateu-lhe no rosto e a neve salpicou-o todo. Na distância,
via-se a brilhante quietude das luzes da cidade. À sua frente,
enroupadas de neve, as árvores seculares do parque de
Pelham.
Permaneceu alguns segundos à porta, indeciso, com a
ânsia de fugir lutando contra o desejo de apoderar-se dos
documentos. Acabava de matar um homem, sem outra
justificação que a de lhe roubar o segredo. Se fosse preso,
não escaparia dá cadeira elétrica.
Isso não podia ser levado em conta, no momento; o que
importava era somente apoderar-se dos documentos que
estavam escondidos na garagem. Não hesitou mais:
começou a correr naquela direção. Antes de sair, tivera a
precaução de apanhar as chaves no corpo de Prest. Como
previra, a garagem estava fechada. Experimentou as chaves,
até dar com a que servia na fechadura.
Seu primeiro impulso ao entrar foi o de acender a luz.
Pensando melhor, decidiu não o fazer: poderia ser visto, se
a Polícia chegasse antes de terminar sua busca.
Usava no bolso uma lanterna elétrica. Apesar das
peripécias por que havia passado, a lanterna funcionou a
contento, deixando escapar um jato fino de luz amarelada.
O carro surgiu à sua frente, rodeado de uma miscelânea de
objetos que se usam em guardar nas garagens.
Encaminhou-se para o veículo, centro de seu interesse.
Antes de abri-lo, percorreu seu exterior com o foco da
lanterna. Puxou a maçaneta da porta, e o interior iluminou-
se repentinamente. O assassino sobressaltou-se, como
acontecera horas antes com Prest, sem saber por que.
Em realidade, já não precisava da lanterna. Via
perfeitamente o interior do automóvel, e lá não estava a
pasta. Prest, é claro, não a teria deixado à vista. Deveria tê-
la posto debaixo do assento, ou nas bolsas das portas...
Levantou os assentos, rebuscou nas bolsas, levantou o
tapete, abriu o porta-luvas: nada. Pensou um instante, e
lembrou-se do porta-malas Não se deu o trabalho de
procurar a chave apropriada para abri-lo, e arrombou-o com
uma barra de ferro que estava à mão entre a quinquilharia
que abarrotava o local. A pasta não estava lá, igualmente.
Bateu raivosamente com a tampa do porta-malas, deixando
escapar uma praga.
Se não estava no carro, onde poderia ter sido escondida?
Perplexo e indeciso, o assassino parou ao lado do carro,
procurando com o olhar os possíveis esconderijos de Prest.
— Quem sabe... — murmurou.
Havia a possibilidade de que o inventor a houvesse
escondido entre os pneus velhos e ferramentas amontoados
ao fundo da garagem. Correu para lá e foi examinando o
lugar, jogando para os lados os objetos que removia. Nada!
A pasta não podia estar em outro local. Era impossível
que Prest a tivesse entregue a alguém. Vira-o subir ao carro
com ela debaixo do braço, ele tinha a certeza de que
continha os papéis. Caso contrário, por que a levaria
apertada de encontro ao peito?
O tempo voava, e ele não podia permanecer por muito
tempo ali, pois a Polícia não ignorava o motivo por que
Prest morrera. Por outro lado, ninguém saberia se os papéis
haviam sido levados pelo assassino e, se não aparecessem,
julgaram que ele os encontrara.
O melhor seria aguardar que o tempo passasse. A casa
ficaria sob vigilância nos primeiros dias, porém mais tarde
lhe seria fácil voltar e procurar com calma em toda parte.
Fechou a porta do carro, e a garagem tornou a ficar às
escuras. Evitou reacender a lanterna, pois não seria
prudente. Ademais, a porta entreaberta deixava coar-se a
luminosidade pálida da noite nevada.
Convenceu-se de que fizera bem em continuar no
escuro: a Polícia acabava de chegar. Os faróis de um
automóvel rasgavam as sombras. Parou diante do portão. O
assassino viu como os policiais saltavam, um atrás do outro.
O corpo seria logo encontrado, e os policiais não
tardariam em sair à rua em busca do assassino ou dos traços
de sua passagem. O que não lhe agradava é que o assassino
era ele, e que não podia passar pela porta, no momento.
Colado à parede, tiritando de frio e de medo, abrigava-se na
sombra da garagem.
Os policiais entraram no jardim. Não podiam vê-lo, mas
ele tinha um excelente posto de observação. Teve a
impressão, por um momento, de que vinham diretamente
para ali, como se adivinhassem que estava apoiado à parede
da garagem.
Deslizou pouco a pouco contra a parede, até alcançar a
parte posterior da casa. Correu para o muro traseiro, única
direção por onde poderia procurar a fuga. Era um muro alto,
de tijolos. Tão alto que temeu não poder escalá-lo. Tentou-o
várias vezes, aferrando-se angustiado às fendas que o tempo
abrira no reboco. Mas conseguia apenas subir uma parte de
sua superfície, escorregando de volta, ao perder o apoio das
mãos ou dos pés.
Olhava para trás amiúde, cada vez que falhava na
tentativa de escalar o muro. Os policiais ainda não vinham à
sua procura. Deveriam estar examinando o cadáver, se já
houvessem conseguido abrir a porta. Depois...
Esse pensamento fê-lo aumentar o esforço para alcançar
o alto do muro. O casacão o atrapalhava, mas não podia
despi-lo. Se o perdesse, poderia servir de pista para a
Polícia encontrá-lo. Suava, maldizendo-se entre dentes,
enquanto o medo apossava-se dele.
Apalpava a parede, anelante, procurando os buracos em
que se pudesse apoiar. Foi percorrendo-a assim, até topar
com aquela árvore. Parecia ter sido posta propositadamente
naquele lugar. Tão perto do muro que seus galhos quase o
roçavam. Não era muito grossa, por sorte sua, e pôde
abraçá-la e subir com a velocidade que o desespero da fuga
lhe dava.
Apesar disso, custou muito chegar ao alto, percorrer um
galho e pôr-se a cavalo no muro. Chegava até ele o som das
vozes dos policiais na casa. Olhou para trás e viu os faróis
do automóvel que iluminavam a estrada. Estariam à sua
procura? Não, pois permaneciam imóveis. Os policiais
limitavam-se a deixá-los acesos.
Saltou ao solo, afundando até os joelhos na maciez da
neve amontoada junto ao muro. Em seguida, empreendeu a
fuga. Era um assassino, um fugitivo da Justiça. Desde
aquele momento viveria à margem da Lei.
Corria aos saltos, ofegante, parando a todo momento
para olhar para trás. Logo perdeu de vista o muro da
propriedade de Prest. Ninguém o seguia. Pensando melhor,
convenceu-se de que não tinha motivo para continuar
fugindo daquela maneira. Seu comportamento era
contraproducente. Devia conservar o sangue-frio para obter
resultado positivo.
Quem poderia imaginar que era ele o assassino de
Robert Prest, agora que se afastara da cena do crime? Tinha
certeza de que não deixara sinais identificadores atrás de si.
Verificara que não havia tirado as luvas; não o fizera de
propósito, mas sim por acaso. Ao entrar na casa, sentia frio;
Prest chegara em seguida, e não houvera tempo para pensar
em mais nada...
Achou graça ao pensar que se portara como um
delinquente consumado, sem querer. Sorriu divertido, até
recordar que, se não deixara marcas digitais na casa, vinha
deixando um rasto de seus pés, e que a Polícia muitas vezes
chega ao criminoso por tais tipos de sinais. O susto logo
passou. Moveu a cabeça, negando a possibilidade para si
mesmo. A nevada era continua, e as marcas de seus passos
voltaram a cobrir-se em seguida por uma espessa capa
branca. Aliviado, retomou a marcha para o lugar onde
deixara o carro escondido, quando se antecipara à sua
vítima.
O automóvel estava à sombra de um maciço de árvores à
beira da estrada. Abriu a porta e entrou. Ponderou por uns
instantes, sentado ao volante enquanto o motor esquentava,
na direção que lhe conviria tomar. Para trás, não seria
aconselhável, pois teria de forçosamente passar diante do
carro da Policia, exposto a ser interrogado.
O mais indicado seria continuar em frente. Alguns
quilômetros adiante havia uma bifurcação na estrada, e lá
escolheria a que melhor lhe parecesse. O que importava era
afastar-se imediatamente da região. Soltou o freio e apertou
o acelerador.
No parque da baia de Pelham os fantasmas brancos de
neve começavam a tornar-se mais Visíveis à luz do
amanhecer.

CAPÍTULO QUINTO
INVESTIGAÇÃO

O inspetor Lyon King dormia profundamente no catre


reservado ao plantão, quando Robert Prest telefonou à sua
procura. Estava mal desperto quando apanhou o fone.
Acordou de todo, repentinamente: ouvira um tiro. Que
diabo, se aquilo não fosse uma brincadeira de mau gosto,
era um assassinato! Esganiçou-se, mas ninguém lhe
respondeu. Continuou gritando até ouvir o estalido
característico do fone ao ser reposto no gancho.
Desligou o seu aparelho e se pôs a pensar em quem seria
aquele Robert Prest que, ao parecer, acabava de morrer
tragicamente. Conhecia muita gente, mas não se lembrava
de ninguém com aquele nome. Repassou mentalmente suas
relações pessoais. Ninguém. Talvez algum marginal?
Tampouco. Num repente, veio-lhe à memória o visitante
daquela tarde, o assustado inventor dos diamantes
artificiais, o homem da pasta de crocodilo. Recordou-se de
seu pavor, que considerara pueril, e soltou uma praga.
Deveria ter-lhe prestado maior atenção.
Já não importava se a história dos diamantes era ou não
verdadeira. O que importava era verificar o que acontecera
ao homem, correr em seu auxilio, se houvesse tempo.
Não lhe foi difícil averiguar o domicílio de Prest pela
lista telefônica. Ficava longe da cidade, e a nevada não
permitia que o carro da Polícia desenvolvesse muita
velocidade. No entanto, arriscando-se a um acidente, ele
próprio guiou o veículo até o local, a uma velocidade
imprudente.
Guy Suits, o agente especial considerado como um dos
mais promissores policiais de Nova Iorque, ia em sua
companhia.
— Vamos ver o que aconteceu ao inventor dos
diamantes artificiais — dissera o inspetor, como única
explicação.
Guy Suits ia dando voltas àquele mistério em seu
pensamento, enquanto corriam pelas ruas desertas da
cidade, perguntando-se ao mesmo tempo se King
enlouquecera. Tentou por várias vezes obter explicação
mais detalhada, mas o inspetor restava demasiadamente
ocupado em manter o carro sobre as quatro rodas para dar-
lhe atenção.
— Chegamos — anunciou este, de repente.
Suits respirou fundo antes de desembarcar.
Custava crer que haviam chegado ilesos, pois King
correra como uma bólide.
O portão não estava fechado. Empurraram-no e entraram
no jardim. Eram quatro os policiais que haviam vindo no
carro: o inspetor, Suits e os agentes especiais Robertson e
Martin.
— Cuidado, vamos preparados para o que der e vier.
Não sei o que vamos encontrar por aí — avisou o inspetor.
Irem preparados significava aguçarem os ouvidos e a
vista, e empunharem as pistolas. Os quatro entraram no
jardim com a mão direita nos bolsos das capas.
Não viram o assassino, embora estivessem sendo
observados por ele.
— Diamantes artificiais, diamantes artificiais... —
resmungava Guy Suits, que não imaginava o que seu chefe
quisera significar com aquelas palavras.
A porta do chalé estava fechada à chave. Devia haver
alguém lá dentro, pois a luz do living estava acesa. Bateram.
A campainha soou, mas ninguém veio atendê-los. Insistiram
até que King decidiu:
— Vamos!
Isso significava que deviam fazer a fechadura saltar.
Guy Suits era o mais indicado para a façanha. Nenhum dos
outros podia ser considerado franzino, mas Guy era um
verdadeiro hércules.
Entendeu imediatamente a ordem do chefe. Recuou
alguns passos e se lançou contra a porta com todo o peso.
Bastou esse impulso para que ela se abrisse de par em par.
Todos empunhavam suas pistolas, inclusive Suits, que foi o
primeiro a entrar, levado pelo impulso que arrombara a
porta.
— Vejam! — exclamou.
O inspetor deu um salto, grunhiu alguma coisa consigo
mesmo e empurrou-o para um lado a fim de adiantar-se.
O homem caído ao solo junto à mesinha do telefone era
Robert Prest, o físico que estivera, horas antes na Delegacia
em busca de proteção. Estava morto.
O inspetor permaneceu alguns instantes diante do corpo,
coçando o queixo. Sentia-se culpado pela morte daquele
homem, já que não lhe dera crédito e recusara a proteção
solicitada. Mas como iria saber que ele dizia a verdade? Era
uma história tão inverossímil!
Lembrou-se da pasta de couro de crocodilo. Passeou o
olhar em redor, à sua procura, e deu com os móveis em
desalinho.
— Houve luta aqui, inspetor — disse Robertson, com o
tom de quem acabava de fazer uma descoberta importante.
King não respondeu. Voltou-lhe as costas e continuou na
inspeção visual. Sim, notava-se que houvera uma luta feroz.
Adivinhou o que ocorrera. Pareceu lhe ver o físico lutando
contra o seu assassino, em defesa da vida e de seus
documentos. E logo pareceu-lhe ver Prest, com o telefonei
na mão, chamando-o: “Robert Prest, inspetor. Não se
lembra de mim?” Lembrou-se do tom triunfante de sua voz,
porque derrotara o inimigo. Quem disparara em suas costas?
O mesmo que havia dominado, ou outro personagem? A
posição da pistola, abandonada no chão, mostrava que o tiro
fora desfechado quase à queima-roupa.
— Não há ninguém lá em cima, inspetor — anunciou
Suits, descendo a escada.
— Nem aqui, também — aduziu Martin, que acabava de
percorrer as demais peças do andar inferior.
King olhou-os vagamente, abstraído em seus
pensamentos. Nunca poderia esquecer que aquele homem
lhe pedira ajuda, em vão.
— Quer que passemos a garagem e o jardim em revista?
— sugeriu Suits.
— Bem... — respondeu, sem entusiasmo.
Suits e Martin saíram da casa, enquanto Robertson
permanecia a seu lado. Enquanto Suits e Martin eram ativos
e dinâmicos, Robertson não era homem de muita iniciativa,
e sempre preferia conservar-se à sombra do chefe.
— Cuidado, Martin — avisou Suits, notando que a
garagem estava aberta.
Empunharam as pistolas e abriram a porta com um
pontapé.
— Mãos ao alto! — gritou Suits, antes de entrar.
Fez um movimento com a mão, chamando o
companheiro.
— Vamos, Martin.
Entraram, e com eles a luz do amanhecer. Ainda assim,
precisaram acender as lanternas elétricas. Dois feixes
luminosos perscrutaram a escuridão dos cantos, espantando
um camundongo assustadiço.
Suits fixou sua atenção no carro, em primeiro lugar.
Tinha os assentos fora do lugar e o tapete arrancado.
— Que será que andaram procurando neste automóvel?
— perguntou em voz alta.
Alguém lhe respondeu, às suas costas:
— Uma pasta de couro de crocodilo.
O inspetor King os havia seguido até ali, deixando
Robertson na casa para telefonar para a perícia técnica, o
médico legista e o rabecão.
Suits voltou-se para ele e pediu-lhe:
— Por que não nos explica de uma vez o que sabe deste
caso, inspetor?
— Desgraçadamente, sei muito pouco. Robert Prest foi
ontem à tarde à Delegacia, dizendo que descobrira o modo
de fabricar diamantes artificiais e pedindo proteção para sua
vida, pois temia que o matassem. Tomei-o por um
paranoico e pedi-lhe que me confiasse a pasta em que
levava os documentos relativos a seu invento. Negou-se a
isso. Creio que não tinha confiança nem sequer na Polícia.
Pois bem: só sei que foi assassinado, como temia...
— Não lhe disse de quem suspeitava? — perguntou
Martin, interrompendo-o.
King negou com um movimento de cabeça.
— Não, não disse.
Suits resumiu sua apreciação sobre o caso:
— Que abacaxi! — e continuou farejando os cantos da
garagem.
A desordem reinante nos pneus velhos, trapos,
ferramentas e o sem-fim de objetos chamou-lhe a atenção.
Percebia que haviam sido objeto de uma busca frenética,
como o fora o automóvel. O assassino matara Prest para
apropriar-se de seus documentos. Tê-los-ia encontrado?
Talvez não, e a chegada da Polícia houvesse interrompido a
busca na garagem. Estranhou também que a busca se tivesse
limitado à garagem, já que a casa não sofrerá outros danos
além dos proporcionados pela luta. Por quê?
— Em que está pensando, Suits? — perguntou Martin.
Parado ao lado do carro Suits coçava a nuca, meditando.
Martin, mais novo que ele na corporação e alguns anos mais
moço, tinha uma fé inabalável em seu companheiro. Suits
era um policial de excepcional intuição. Onde os demais
nada viam, ele encontrava pistas que os conduziam ao êxito.
— O criminoso esteve aqui há poucos instantes —
respondeu.
Apontou para o solo, onde uma pequena poça de água
revelava que os pés do assassino haviam estado ali.
Nenhum dos policiais chegara àquele canto, e não havia
goteiras no telhado. Aquela água, portanto, só podia provir
da neve que o criminoso trouxera nos saltos. Era uma
conclusão lógica. O que não era lógico em tudo aquilo, era a
desarrumação feita pelo assassino, no automóvel e
pertences da garagem. A pasta deveria estar ainda ali, a
julgar pelos indícios.
Guy Suits dedicou-se, pois, a terminar o trabalho que o
assassino interrompera. Revistou meticulosamente o carro,
sem esquecer-se de levantar o capô. Recolheu
pacientemente os objetos espalhados pelo solo. Tateou pelas
paredes, à procura de algum esconderijo invisível, e depois
começou a bater em cada um dos ladrilhos, para verificar se
algum deles soava oco.
Ficara sozinho na garagem. Martin e King tinham
regressado ao interior da casa para efetuarem uma revista
sistemática. Deitado no chão, continuava a bater
obstinadamente nos ladrilhos Faltavam-lhe apenas os que
ficavam sob as rodas, quando Robertson entrou na garagem.
— Ei, Suits! Onde está você? — gritou.
Viu-o de gatinhas. Fez uma careta de estranheza e lhe
deu uma pancadinha nas costas para chamar sua atenção.
— O chefe quer falar com você — disse. — Creio que
encontrou uma pista do assassino.
Guy Suits pôs-se de pé de um salto. Uma pista? Bem, já
não era mais preciso bater em ladrilhos à procura da pasta.
Quando King revelava que encontrara uma pista, costumava
ter a solução do caso nas mãos. Quando encontrassem o
criminoso, este lhes indicaria onde estava a pasta, se o
soubesse.
— Vamos lá, então.
Saíram da garagem, fechando a porta atrás de si.
A neve cessara de cair. O sol brilhava, mortiço e triste,
incapaz de derreter os montes de neve que se acumulavam
no caminho. Apenas os telhados mostravam o efeito de seus
raios; gotas enormes caíam dos beirais, esburacando a neve
e abrindo valetas sujas na sua brancura.
Suits e Robertson, entretanto, não estavam dispostos a
admirar os detalhes da paisagem hibernal. Todos os seus
sentidos estavam concentrados no assassinato de Robert
Prest.
Correram pelo jardim, fazendo a neve ranger e a água
esguichar sob seus pés. Entraram na casa, que já havia sido
tomada de assalto pelo pessoal da perícia técnica. Os
datiloscopistas procuravam afanosamente indícios ou
provas que pudessem apontar o candidato à cadeira elétrica.
O médico legista também havia chegado. Abaixado
junto ao cadáver, examinava-o detidamente.
— Bom-dia, doutor — cumprimentou Suits, ao passar a
seu lado.
O médico levantou a cabeça e olhou-o por cima dos
óculos.
— Ah! Também está neste caso, Suits? Alegro-me.
Trabalharemos juntos.
Falava com sinceridade. O doutor Parkington gostava,
mesmo, de trabalhar com o agente especial Guy Suits.
Conhecia-o bem, e sabia que ele nunca fracassara.
— Eu também me alegro, doutor — replicou Suits,
continuando seu caminho.
O doutor Parkington percebeu, de repente, que aquele
crime não devia ser um assassinato vulgar. Que haveria
atrás daquilo tudo? Ouvira dizer que o pobre-diabo que
jazia à sua frente era um físico. Tivesse sido o que fosse,
tinha agora um buraco de bala nas costas, e não poderia
jamais fazer um só cálculo...
Tomou a se abaixar junto ao corpo, fazendo anotações
no bloco que sempre carregava consigo.
Guy Suits acabava de entrar na sala em que o inspetor
King o esperava. Sentado comodamente atrás de uma
escrivaninha, com uns papéis na mão, o inspetor revelava
em toda a sua pessoa a satisfação de que era presa.
— Ah, já veio... — exclamou, ao ver entrar o agente
especial. — Encontramos o diário de Robert Prest. Leia-o, e
me diga o que deduz dele.
Afastou os papéis a um lado e tirou de uma gaveta um
álbum forrado de couro de crocodilo.
Prest parecia apreciar muito aquela espécie de couro,
pelo visto.
— Eis aí — disse, estendendo-o ao agente.
Suits apanhou-o e foi sentar-se a uma poltrona junto à
janela. Foi passando as folhas, à medida que as lia. A
princípio, só encontrou anotações sem importância. Robert
Prest era um homem retraído, meticuloso e misantropo, pelo
que depreendia da leitura de seu diário.
Aquelas páginas revelavam claramente suas diferentes
disposições de ânimo, durante o período de estudos da
síntese do diamante. Havia dias em que o resultado das
investigações provocara anotações entusiásticas, ao passo
que em outros percebia-se o desalento de um fracasso
momentâneo.
Valia a pena lê-lo, porque ali fora retratada uma vontade
inquebrantável, o espirito de luta incomum do homem que
escrevera aquelas páginas.
No dia em que registrara ter encontrado a fórmula
acertada, sua letra mudara em relação às demais. Notava-se
a emoção com que escrevera aquilo, o orgulho pelo triunfo
obtido. Sua mão devia tremer-lhe, pois a letra era desigual,
em traços grandes:
“Hoje, consegui a aspiração de minha vida!” — lia-se.
— “Fabricar diamantes, não será uma utopia: eu, Robert
Prest, sei como fazê-los.”
Seguiam-se os registros de alguns dias em que Prest
parecia comprazer-se consigo próprio pela descoberta, até
que, por fim, começou a demonstrar inquietação e temor.
Guy Suits leu com mais atenção aquela parte do diário.
Prest mencionava o nome do homem a quem revelara sua
descoberta, talvez o que mais tarde o assassinaria.
Soltou o diário sobre a mesa para raciocinar sobre o que
acabara de ler, olhando distraidamente para fora. A
princípio, ocupado em meditar, não deu atenção à paisagem.
Passados alguns minutos, começou a se mostrar interessado
em alguma coisa que divisava pela janela. Algo que teria
passado inadvertido a qualquer outro, lhe atraiu fortemente
a atenção.
— Aonde vai? — perguntou-lhe o inspetor, ao ver que
ele se punha de pé repentinamente e saía correndo da sala.
Suits não o ouviu ou não lhe deu atenção. Martin e
Robertson entreolharam-se, com uma interrogação muda
nos olhos.

CAPÍTULO SEXTO
O ACUSADO

Suits correu em direção ao muro divisório, onde parou


repentinamente. King, Martin e Robertson, à janela, viram-
no percorrer o muro examinando-o. Não puderam entender
sua atitude. Que diabo estaria olhando ou procurando?
O agente tinha certeza de que encontraria naquela parede
a confirmação da suspeita de que o assassino fugira sem
conseguir o que desejava. Achou o que procurava: reboco
arranhado e tijolos a descoberto, nos lugares onde tentara
apoiar os pés.
Comprovou que o criminoso havia feito várias tentativas
infrutíferas, e que afinal conseguira escalar o muro subindo
pela árvore.
Bem, já era uma pista. Se o assassino empreendera a
escalada, suas mãos deviam estar arranhadas, e se fora ele
quem lutara com a vítima, seu rosto e o corpo conservariam
as marcas dos golpes recebidos.
Voltou para casa com a mesma rapidez com que saíra ao
jardim. Tinha agora enorme interesse em conhecer o
homem que Robert Prest citara em seu diário, o único
amigo a quem confiara o segredo.
— Que bicho o mordeu, Suits? — perguntou o inspetor,
ao vê-lo entrar de volta à sala.
— Nenhum — respondeu.
— Como, nenhum? — intrometeu-se Robertson.
— Você saiu correndo como um louco!
— Bem, não fui mordido por bicho nenhum — retificou
Suits, que gostava de espicaçar a curiosidade dos colegas.
— Apenas descobri como o assassino saiu daqui, e que
fugiu quando nos viu chegar.
Todos tornaram a olhar pela janela. Suits aduziu:
— Teve muito trabalho para consegui-lo. Se não fosse
aquela árvore, tê-lo-íamos agarrado no jardim.
— Não tem muita importância — interveio o inspetor.
— Ele não poderá ir muito longe. Não sabe que
conhecemos seu nome e que estamos na pista segura. Vocês
dois me acompanharão até lá...
Os dois que o inspetor designara eram Suits e Robertson.
Martin ficaria no local até que levassem o cadáver para o
necrotério.
Antes de abandonar o chalé, o inspetor pôs no bolso o
diário de Prest, enfiou o casacão e pós o chapéu na cabeça.
Os agentes imitaram-no.
— Vamos logo — disse Suits com impaciência.
Saíram apressadamente, convictos de que o assassino
não imaginava que iam diretamente a ele. O achado do
diário fora providencial, pois ninguém mais sabia do
invento da vítima.
Tanto o Inspetor King como seus auxiliares estavam
certos de que o móvel do crime fora a pasta de couro de
crocodilo com seu precioso conteúdo. O próprio Prest
desconfiara do homem citado em seu diário, arrependido de
tê-lo posto a par da descoberta. As últimas páginas daquele
diário refletiam seu estado de espírito nos dias
imediatamente anteriores à sua morte. O medo e a
desconfiança, a dúvida e o receio, a angústia do avarento
que teme perder seu tesouro e o receio de que sua existência
seja conhecida. Dúvidas, temores, ansiedade, saltavam de
cada palavra e de cada página juntamente com o nome
daquele a quem iam agora procurar.
Suits releu o diário, enquanto o carro percorria a
distância que os separava da Avenida Seward, nas
imediações do Rio Bronx. Leu-o cuidadosamente ao
cruzarem as ruas cheias de garis livrando as calçadas da
neve.
Apenas um ou outro curioso voltava a cabeça ao ouvir a
sereia do carro policial, pedindo trânsito livre. Era apenas
mais um veículo policial, à caça de assassinos ou de
ladrões... Em uma cidade como Nova Iorque, a Polícia não
passa muitas horas sem precisar sair em busca de
delinquentes.
— Tomara que nosso homem não espere que o
procuremos — repetiu King. Robertson, como de costume,
concordou com o chefe, enquanto Suits se mantinha calado.
Estavam chegando à Avenida Seward. Prédios
residenciais de ambos os lados da rua, verdadeiros palácios
de milionários, e em um deles morava o homem que
procuravam. Pararam à frente de fim gradil de ferro e
saltaram do carro. O portão estava aberto, o que evitou que
precisassem tocar campainha externa. Empurraram-no e
entraram ao Jardim.
Um velhinho esforçava-se em limpar a neve da calçada,
quebrando o gelo que se formara. Devia estar acostumado a
que os visitantes entrassem sem bater, pois não demonstrou
estranheza ao vê-los aparecer diante de si. Pôs-se em
posição vertical, depois de lançar um pouco de areia na
estrada, apoiando-se na pá.
— Bom-dia, senhores — saudou, levantando o puído
chapéu de feltro.
— Bom-dia — respondeu o inspetor. — O senhor
Kimbell está em casa?
O velhinho esfregou o nariz vigorosamente, antes de
responder. Em seguida disse:
— Está, senhores. Deve estar. Vieram cobrar alguma
divida? Esse velho transviado jamais sentará a cabeça... —
completou, sem demonstrar, o menor respeito por seu
patrão. — É melhor procurarem a senhorita Mary, pois é ela
quem paga as dividas que o pai vai semeando por aí.
Seguiram adiante, contentes por terem encontrado o
velho jardineiro, pois este lhes fornecera uma desculpa que
lhes permitiria chegarem à presença de Patrick Kimbell sem
despertarem suspeitas. Credores? Em realidade, eram
realmente credores, que vinham cobrar a divida de Kimbell
para com a Justiça.
O Inspetor King conhecia bastante da vida de Kimbell.
Sabia que era um jogador empedernido que desperdiçava
sua imensa fortuna nas mesas de jogo, e que agora vivia à
custa de sua filha. Sabia também que esta procurava furtá-lo
ao vicio negando-lhe dinheiro em demasia, se bem que nem
sempre com êxito, pois o velho sempre conseguia meios de
jogar desbragadamente.
O mordomo veio atendê-los à porta. Era um importante
personagem de costeletas enormes c cara de poucos amigos,
armado de um espanador.
— A senhorita Kimbell está? — perguntou King.
O mordomo examinou-os de cima abaixo e fez um
muxoxo de desagrado.
— Não está — disse, com manifesta má vontade.
A jovem estava em casa, no entanto. Naquele momento
saía à porta, com traje de amazona. Ia dar umas voltas pelo
parque, certamente. King, Martin e Suits perderam a fala ao
vê-la. Era uma jovem belíssima, alta, flexível e elegante.
— Joe, que desejam estes senhores? — perguntou ao
criado.
— Não sei, senhorita. Não queria que a incomodassem
— justificou-se ele.
— Queríamos falar com a senhorita. É a respeito de seu
pai — adiantou Suits, dando um passo em sua direção para
observá-la de perto.
A jovem voltou-se para ele, que julgou vislumbrar uma
expressão de angústia em seu rosto.
— De meu pai? — perguntou.
A voz lhe tremia. Suits pensou que talvez ela estivesse a
par do que acontecera. O criado continuava no mesmo
lugar, com a cabeça ereta e o espanador em punho, olhando-
os de esguelha.
— Desejamos falar com a senhorita, a sós — disse King,
dirigindo-se à jovem.
Ela não respondeu, limitando-se a fazer um gesto de
mão, como a indicar que a seguissem. Os policiais
apressaram-se a acompanhá-la.
— Sentem-se — convidou-os, quando chegaram a uma
salinha de visitas luxuosamente mobilada.
Continuaram de pé, olhando-a indecisos. Lamentavam o
que eram forçados a revelar-lhe a respeito de seu pai.
— Às suas ordens, senhores.
King convenceu-se de que seria inútil usar o subterfúgio
da dívida do velho Kimbell, e melhor seria irem diretamente
ao assunto.
— Bem... — começou. — Não é com a senhorita que
desejamos falar, mas com seu pai. É um assunto importante.
— Assunto importante? Dinheiro? Quanto lhes deve
meu pai?
King meneou a cabeça para um lado e outro, negando.
— Não se trata de dinheiro — grunhiu. — É outro
assunto. Precisamos vê-lo, conversar com ele...
Ela os fitou. Primeiro a um, depois a outro e outro. Suits
tomou a notar aquele reflexo de angústia em seu olhar,
aquele brilho que lhe chamara a atenção. Estava assustada.
Por quê? Saberia o que seu pai fizera?
— Os senhores são da Polícia? — perguntou ela, de
repente.
King, Suits e Robertson entreolharam-se, em muda
consulta. O primeiro encolheu os ombros e respondeu-lhe:
— E se formos?
Ela procurou afetar uma tranquilidade que não possuía e
disse:
— Nada. Mas papai sofreu um acidente ontem à noite e
não está passando muito bem. Peço-lhes que voltem
amanhã...
A jovem era esperta, demasiadamente esperta. Teria
graça, se a Polícia se retirasse para voltar no dia seguinte!
— Muito bem: somos policiais, senhorita — disse King.
— E viemos procurar seu pai porque...
Ela não lhe prestava atenção. Retrocedia até chegar a
uma poltrona, em cujo espaldar apoiou- se.
— Que é que meu pai fez? — perguntou, pálida e com a
voz trêmula.
Os agentes tornaram a olhar-se entre si. Nenhum deles
tinha a coragem necessária para revelar-lhe a verdade. King
resolveu adiar a revelação para momento mais oportuno:
— Não foi nada de sério...
Ela adivinhou que o inspetor lhe dissera uma mentira
piedosa. Seu pai chegara a casa altas horas da madrugada,
com as roupas em frangalhos e o corpo moído de pancadas.
Dissera à filha que havia brigado com alguém que o roubara
no jogo. Agora, a Polícia vinha procurá-lo em casa!
— Que terá acontecido, meu Deus? — pensou ela, certa
de que algo mais grave do que uma luta pessoal teria
ocorrido. Seu pai ter-se-ia convertido em ladrão, em
assassino...
— Por que o procuram? — quase gritou, em sua
angústia.
King franziu o cenho e pediu-lhe:
— Leve-nos à sua presença.
Ela continuou apoiada ao espaldar da cadeira à espera de
que a informassem do ocorrido. Foi Robertson quem
quebrou o silêncio que se seguira, dizendo-lhe brutalmente:
— Um homem foi assassinado ontem à noite,
Mary Kimbell pousou ambas as mãos nas faces e ficou a
olhá-los com os olhos muito abertos. Acabava de ouvir o
que temia: seu pai era um assassino!
— Leve-nos à sua presença — insistiu o inspetor.
Ele era seu pai. Talvez fosse verdade a história da luta;
talvez o tivesse morto em defesa própria, talvez não fosse
ele o assassino, mas...
— Como foi? — perguntou, esperançada.
Outra vez Robertson respondeu cruamente:
— Matou-o pelas costas, com um tiro.
Ela não falou. Que poderia dizer? A paixão do jogo
levara seu pai ao crime. Ela, a milionária invejada por todo
o mundo, era filha de um assassino que matara um homem
pelas costas.
Empalideceu ainda mais e crispou os dedos na poltrona.
Os policiais, por sua vez, esperavam que ela decidisse levá-
los à presença do pai.
“Sou eu a culpada! Tenho culpa, porque sempre lhe
neguei dinheiro para o jogo! Ele deve ter cometido esse
crime para conseguir dinheiro, dominado pelo vício...” —
pensou ela. — “Mas não me arrependo, pois era meu dever
afastá-lo do vicio e preservar minha fortuna, já que ele
esbanjou a sua”.
— Vamos, senhorita?
— Sim, vamos — decidiu ela, repentinamente.
Percorreram um corredor muito longo e várias salas,
antes de chegarem a uma porta onde ela se deteve. Atrás
daquela porta estava o assassino, seu pai. Com a mão na
maçaneta, voltou-se para olhar os policiais.
— Permita-me... — disse Suits.
Afastou-a suavemente a um lado.
— Cuidado, Suits!
— Cuidado? Por quê? — perguntou-se ela, no íntimo. —
Ah, é claro: vão prender um assassino capaz de matar à
traição...
Viu-os abrir a porta e entrarem no quarto, com as
pistolas em punho. Não pôde ver mais nada, pois a porta
fechou-se atrás deles e também porque, apoiada com as
costas à parede, escorregou lentamente para o chão, onde
caiu desmaiada.
King, Suits e Robertson, dentro do quarto, pararam um
momento, atentos e com os dedos nos gatilhos das armas.
Havia na cama um homem adormecido: Patrick Kimbell.
— Kimbell! — chamou King, sacudindo-o.
O homem despertou sobressaltado. Esfregou os olhos e
fitou-os com assombro.
— Ei, que fazem aqui? — gritou.
Era magro e miúdo, de olhos encovados e cabelos ralos e
desgrenhados. Enfermiço e pálido, tiritava, com as mãos a
arrepanharem as cobertas. Não tiritava de medo, pois sofria
de um mal nervoso que o fazia tiritar constantemente.
Embora contasse pouco mais de cinquenta anos, aparentava
ter muito mais idade, mormente agora que seu rosto estava
coberto de arranhões e um olho arroxeara.
— O senhor é Patrick Kimbell? — insistiu King.
— Sim, sou. Que aconteceu? Quem são os senhores?
Robertson, que se arrogara a missão espinhosa de dar as
más noticias sem preâmbulos, soltou:
— Somos policiais. Conhece Robert Prest?
— Claro que conheço — grasnou Kimbell. — E daí?
— Nada — continuou o agente. — Apenas que foi
assassinado ontem à noite...
O tremor das mãos de Kimbell acentuou-se
extraordinariamente. Tomou-se ainda mais vacilante e
gaguejou:
— Mata... ram... Mataram Prest?
Três pares de olhos fixavam-se nos seus, observando
suas reações e estudando sua expressão.
— Assassinaram-no com um tiro pelas costas — ajuntou
Robertson, inflexível.
King perguntou:
— Que sabe a respeito, Kimbell?
Patrick Kimbell engasgou-se com as palavras. Queria
falar e não podia. Conseguiu articular apenas uma série de
sons estranhos, ruídos, grunhidos...
— Eu... Eu? — perguntou, por sua vez, ao cabo de
muitos esforços.
Robertson não permitiu que continuasse.
— Confesse logo, Kimbell, que foi você! Onde estão os
documentos?
Deixou-se cair de costas na cama. Era um homem
derrotado, de vontade fraca. Aqueles homens haviam vindo
acusá-lo da morte de Robert Prest, seu amigo. Em que
baseavam a acusação?
— Por quê? — gritou, de repente, sentando-se
novamente na cama.
— Porque encontramos o diário de Prest — esclareceu o
inspetor. — Só o senhor sabia dos estudos do físico. Matou-
o para apropriar-se de sua descoberta. Ele o surpreendeu em
sua casa, lutaram, e o senhor o matou pelas costas. Se não
foi assim, diga-me: quem lhe arranhou o rosto?
Kimbell levou as pontas dos dedos ao rosto, apalpando
os ferimentos com movimentos nervosos. Sentiu-os doer
terrivelmente. Procurou recordar-se do que acontecera na
noite anterior. Saltou da cama e encarou os policiais.
— Escutem-me! — gritou. — Os senhores precisam
ouvir o que tenho a dizer: não matei Prest, que era meu
melhor amigo. Foi outro homem, quem me fez estes
ferimentos. Era um batoteiro, ladrão, com quem briguei
ontem à noite...
— Como se chama? — perguntou o inspetor.
— Como se chama? — repetiu o velho. — Não sei seu
nome...
Não o sabia, de fato. Era um desses sujeitos com quem a
gente topa uma vez na vida e não toma ver. Nem sequer
poderia dizer se era alto ou baixo, se era magro ou gordo.
Quando jogava, ficava cego a tudo o mais, insensível a nada
que não fosse o jogo. Não tivera tempo de notar as feições
do contendor, pois entraram em luta repentinamente. Em
seguida ambos foram jogados à rua, sem contemplação,
pelos responsáveis pela casa, para evitar-se o escândalo.
Sob a nevada, na escuridão, haviam continuado a lutar a
socos e pontapés até que cada um fora para seu lado,
cansados que estavam de trocar golpes.
Foi isso o que contou aos policiais, que o escutaram com
expressão de incredulidade.
— Terminou? — perguntou Robertson.
Sim, terminara, certo de que nenhum deles acreditara em
sua história.
— Agora, vista-se e vamos — ordenou o inspetor.
Robertson arrojou-lhe uma calça que encontrara sobre
uma cadeira, para que vestisse. Guy Suits era o único que
ainda não falara. Inesperadamente, perguntou:
— Onde está a roupa que o senhor vestia ontem à noite?
— Por que essa pergunta? — saltou Kimbell,
estranhando-o.
— Quero ver as joelheiras da calça, apenas — replicou
Suits.
Patrick Kimbell procurou lembrar-se e conseguiu
recordar-se de que usara um terno azul-marinho. Estava ali,
num canto do quarto, onde o jogara ao deitar-se.
— Aqui a tem — disse, estendendo-a para o agente.
Suits apanhou-a e examinou a calça, dando-lhe voltas e
mais voltas por algum tempo. Suja de barro pela frente e
por trás, na verdade não lhe servia de muito. Esperara
encontrar sinais de cimento e tijolos à altura dos joelhos.
— Tome — devolveu-a a Kimbell, sem aduzir palavra.
— Vista-se — ordenou o inspetor.
Kimbell obedeceu em silêncio. Teve dificuldade em
vestir-se. Não acertava as casas para enfiar os botões. Ao
concluir, falou:
— Podemos ir, mas insisto em que estão enganados, pois
não matei Robert Prest.
Dispunham-se a sair quando Suits tornou a intervir:
— Mostre-me suas mãos, senhor Kimbell.
As mãos? Para que desejaria aquele policial ver-lhe as
mãos? Estendeu-as, resignado, com as palmas para cima.
Suits examinou-as cuidadosamente, por longo tempo.
Tinham as polpas dos dedos e as palmas cheias de
arranhões.
— Onde fez isto, senhor Kimbell? — perguntou ao
terminar o exame.
— Pois não sei. Creia-me, não me lembro. Talvez contra
a parede, ao segurar-me para não cair. Não sei...
— Mas eu sei — interrompeu Robertson. — Arranhou-
se ao tentar escalar o muro do jardim de Prest.
— E por que iria eu tentar escalar o muro de Prest? —
perguntou Kimbell, com cara de assombro.
— O senhor há de saber melhor do que nós, meu amigo
— interveio o inspetor. — Mas vou dizê-lo: para fugir,
quando nós chegamos.
Kimbell não retrucou. Ia olhando para as mãos quando
abandonaram o quarto, tão absorto em seus pensamentos
que não viu a filha caída ao solo sem sentidos.
— Ei, inspetor! — chamou Suits. — Que fazemos com a
moça?
Lyon King deteve-se um instante e olhou a jovem.
Decidiu:
— Chame os empregados da casa para que a atendam.
Fique aqui até que ela volte a si, e depois vã ao nosso
encontro.
O agente Robertson já ia longe com o detido. King
apertou o passo para alcançá-los, deixando Suits a sós com
a jovem.
Em lugar de chamar os empregados, Suits apanhou-a nos
braços e entrou no quarto de seu pai. Depô-la na cama,
buscou água e lhe borrifou a fronte.
Mary Kimbell não tardou a voltar a si. Abriu os olhos e
deu com os de um desconhecido que a fitava firmemente.
Seu primeiro impulso foi de gritar, mas não o fez.
Reconhecera um dos três homens que haviam vindo à
procura de seu pai.
— E meu pai, que fizeram com ele? — perguntou,
angustiada, levantando-se bruscamente da cama.
Suits, calado, continuava a olhá-la especulativamente.
Ela hesitou entre considerar zombeteiro ou compassivo
aquele olhar. Não sabia o que significava.
— Por que não vai embora de uma vez? — gritou.
Ele sorriu levemente, negou com a cabeça e disse:
— Não vou, porque precisamos conversar. Que sabe a
respeito dos diamantes artificiais?
Instalou-se numa pequena poltrona, esperando que ela
respondesse.

CAPÍTULO SÉTIMO
A PASTA DE CROCODILO

Parecia não haver dúvida sobre a culpabilidade de


Patrick Kimbell no assassinato de Robert Prest. O diário
acusador, os arranhões, os ferimentos da luta, tudo o
incriminava.
Além do mais, havia a história dos diamantes artificiais.
O fato de não ter sido encontrada a pasta com os
documentos em seu poder não significava que fosse
inocente. Pelo contrário, possibilitava uma hipótese que
vinha agravar sua posição: talvez os tivesse destruído para
favorecer sua filha, detentora da maior parte das ações da
mina mais produtiva do Brasil.
Havia, mesmo, quem sugerisse que Mary Kimbell
poderia estar implicada no crime. De início, a jovem fora
interrogada exaustivamente, até que por fim a deixaram em
paz.
O júri de instrução declarou Patrick Kimbell culpado. O
acusado negou participação no crime, mas foi em vão. O
diário do morto apontava-o: “Ninguém, além de Patrick
Kimbell, sabe que descobri o modo de fabricar diamantes
artificiais”. Mais adiante: “Tenho medo de Kimbell, que se
tem mostrado muito interessado em minha descoberta. Vive
a falar-me nela e pergunta sempre se não temo que me
aconteça alguma coisa”. E quase nas últimas linhas: “Hoje
Kimbell esteve aqui. Veio pedir-me dinheiro emprestado.
Reclamei contra seu vicio do jogo, mas dei-lhe vinte
dólares. Tomou a insistir em que eu obteria uma fortuna
incalculável pelo segredo da síntese do diamante. Tenho
vontade de ir à Polícia. Kimbell me assusta.”
Além dessas provas, foram encontradas anotações de
Prest sobre empréstimos feitos a Kimbell, o que foi
considerado como mais uma prova contra ele.
As investigações e a perícia técnica haviam chegado à
conclusão de que o criminoso era pessoa das relações da
vitima e que chegara à casa juntamente com ela, ou fora
introduzida posteriormente, pois não havia sinal de
violência nas portas e janelas.
O processo contra Patrick Kimbell atraiu grande público.
A imprensa de todo o mundo noticiara o assassinato do
inventor do diamante artificial e o desaparecimento de suas
fórmulas.
Nas primeiras filas do tribunal sentavam-se o simpático
Frederick Schulz e o maduro Arnold Bebil, separados por
pequena distância. Ambos haviam voltado a Nova Iorque
especialmente para assistir ao júri. Alguns dias antes da
morte de Prest, cada um para seu lado, haviam viajado:
Bebil fora ao Brasil e Schulz a Chicago.
Entre os assistentes contava-se também o agente especial
Guy Suits, que parecia, no entanto, mais interessado no
público do que no julgamento. Sabia de antemão que não
adiantaria nada o discurso grandiloquente do defensor de
Kimbell, pois o conselho de sentença e o próprio juiz
pareciam convencidos da culpabilidade do réu. Observava
discretamente o público, e em especial o maduro Bebil e o
simpático Schulz.
Suspeitava dos dois por igual, embora sabendo que
apenas um poderia ser o assassino de Prest. Impossível
acusá-los, porque as investigações que fizera em segredo
não destruíam seus álibis: um estava no Brasil e o outro em
Chicago, no dia do crime.
Não pudera constatar que um deles houvesse regressado
a Nova Iorque naquele dia, tornando a viajar, uma vez
cometido o assassinato.
Se suas suposições fossem acertadas, o assassino era um
só. Soubera por Mary Kimbell que Bebil e Schulz se
detestavam mutuamente, e que jamais entrariam em acordo
para nada.
Verificou que ambos dirigiam, de quando em quando,
olhares furtivos para a jovem, sentada na primeira fila.
O conselho de sentença retirou-se para deliberar. Em
pouco tempo voltou à sala do tribunal. “Declaramos o réu
culpado”, sentenciou o presidente. O juiz estabeleceu a pena
de morte, e o espetáculo teve fim. Patrick Kimbell seria
levado à cadeira elétrica dentro de dois meses.
Guy Suits olhava sem ver os espectadores que
desfilavam diante de si ao saírem da sala. Parecia-lhe a
saída de um teatro, pelos comentários esparsos que ouvia. O
condenado foi retirado para o interior do edifício.
Caminhava encolhido entre dois policiais musculosos e
altos, mais insignificante do que nunca. Suas mãos tremiam
violentamente, fazendo as algemas chocalharem como
guizos.
E Guy Suits tinha a evidência de que aquele homem não
era culpado...
— Senhor, precisamos fechar...
O porteiro bateu-lhe de leve no ombro. Estavam
sozinhos na sala de sessões. Perdido em seus pensamentos,
Suits não percebera que Arnold Bebil e Frederick Schulz
também se haviam retirado com os demais assistentes e a
própria Mary.
Levantou-se da cadeira e encaminhou-se para a porta de
saída. Mary Kimbell... Pensava constantemente na jovem, e
chegava mesmo a vê-la em sonhos. Mas agora não sonhava:
ela estava ali, à sua espera. Sabia que o esperava, e por que
motivo. Sabia, no entanto, que ainda não podia ajudá-la, por
carecer de provas para acusar alguém e inocentar seu pai.
Acercou-se dela e só então notou que Bebil e Schulz a
acompanhavam. Não trocaram palavra, mas percebeu uma
repreensão magoada no olhar de Mary.
Suits lhe dissera que não se preocupasse, pois tudo se
arranjaria do melhor modo. No entanto Patrick Kimbell
acabava de ser condenado à cadeira elétrica, e ele nada
fizera para salvá-lo.
O agente cumprimentou os dois homens com um aceno
de cabeça e começou a caminhar ao lado da jovem. De
repente, ocorreu-lhe perguntar aos dois:
— Que pensam da história dos diamantes artificiais?
Bebil sorriu com ar cético e disse:
— Acho que é uma lenda. Prest devia estar louco. Se
Patrick o matou, não foi para apoderar- se de seus
documentos, mas porque começava a lhe dever muito
dinheiro, e Mary se negava a pagar qualquer outra dívida
sua. Não é, querida?
A jovem concordou. Dias antes decidira não resgatar
mais as dividas de seu pai. O alemão conservara-se calado,
e o agente insistiu:
— E o senhor, que opina a respeito, senhor Schulz?
O outro encolheu os ombros, engoliu saliva e afirmou:
— Não penso nada a respeito, embora acredite que a
ciência algum dia venha a conseguir sintetizar o que quiser:
ouro, diamantes... É claro que quando se puder fabricar
diamantes, os naturais baixarão muito de valor, não é,
senhor Bebil?
Bebil empalideceu ao ouvi-lo e saltou, indignado:
— Essa alusão é insultuosa, senhor Schulz. Que quer dar
a entender?
O rosto imperturbável do alemão iluminou-se
fugazmente por um sorriso zombeteiro.
— Nada... Ou, melhor, quase nada: apenas que, quando
começar a fabricação de diamantes, o senhor estará
arruinado e quem os fabricar tornar-se-á imensamente rico
— replicou.
Suits olhava para um e outro. Pareciam duas feras a se
desafiarem mutuamente, preparando as garras para a luta.
— Engana-se, senhor Schulz — quase gritou Bebil. —
Mesmo se tivermos de fechar a mina, eu não ficaria
arruinado, pois tenho...
— O senhor não tem nada — interrompeu-o o alemão,
irônico. — Só tem suas ações, sei de fonte segura.
O homenzinho tirou os óculos e limpou suas lentes com
o lenço. Schulz acertara no alvo, pois estava arruinado.
Possuía de seu apenas as ações da mina de diamantes do
Brasil.
Guy Suits deixou-os discutirem. Acabava de inteirar-se
de uma coisa que ignorava. Todos julgavam que Arnold
Bebil fosse um homem imensamente rico.
— É mentira — gritou, perdendo as estribeiras e
agitando freneticamente as mãos no ar.
Schulz replicou, mordaz:
— Pode dar graças ao céu, Bebil, que os documentos de
Prest tenham desaparecido, senão veríamos dentro de pouco
tempo se estou mentindo ou não...
O agente especial julgou oportuno intervir, naquele
instante, e jogar a cartada decisiva, talvez o último trunfo
que lhe restava no jogo:
— E se os papéis não tiverem desaparecido? —
perguntou subitamente.
Arnold Bebil emudeceu de repente. Engasgou e
arregalou os olhos.
— Que disse? — perguntou.
Suits repetiu a pergunta. O alemão continuava sorrindo
com ironia, enquanto Mary Kimbell olhava com estranheza
para o agente. Não era aquilo o que haviam combinado;
pelo contrário, ficara estabelecido que não falariam nos
documentos a Bebil e a Schulz. Que estaria o agente
procurando obter com a mudança de planos?
Chegaram à porta da rua. Suits propôs:
— Se aceitarem meu convite, poderemos ir até minha
casa para continuarmos falando neste assunto. Quero
mostrar-lhes uma coisa interessante. Venha, também,
senhorita Kimbell. Vamos no meu carro.
Não iam muito folgadamente instalados no automóvel de
Suits, pois era um pequeno carro europeu de quatro lugares,
que ele guiava como um ás. Suits não era rico, mas podia
dar-se ao luxo de um automóvel europeu e um apartamento
de solteiro na rua Cento-e-Setenta-e-Seis, em Tremont,
perto do antigo aqueduto.
Mary, sentada a seu lado, tinha impulsos de perguntar-
lhe por que não comunicara ao juiz o encontro dos
documentos, e por que ia mostrá-los àqueles homens.
Esteve para perguntar-lhe mais de uma vez, e mais de uma
vez conteve-se. Desde a palestra que haviam mantido,
quando seu pai fora preso, prometera a Suits deixá-lo agir à
vontade. Ele lhe prometera, em troca, prender o verdadeiro
assassino.
Até aquela manhã, Mary tivera uma fé cega no agente.
“Tenha confiança!”, dizia-lhe ele, quando a via prestes a
desesperar. Mas agora tudo mudara: seu pai havia sido
condenado, e não apareciam as provas prometidas contra o
verdadeiro criminoso. Suits lhe dizia sempre: “Precisamos
de provas para acusar o criminoso, ou para salvar seu pai.
Suspeito dos dois, mas um está sobrando nesta história.”
E ambos iam com eles, às suas costas, calados e
mutuamente hostis. De repente, Mary perguntou-se se ainda
nutria pelo alemão o mesmo sentimento. A resposta foi
afirmativa: Não podia acreditar que fosse ele o assassino.
Por outro lado, não lhe parecia possível que Bebil fosse o
criminoso...
As suspeitas de Suits haviam nascido da revelação que
ela lhe fizera de que o pai falara a ambos, em sua presença,
sobre o invento de Prest. Estava embriagado, e não mais se
recordava do que dissera. Prest ignorava esse detalhe, de
modo que temia apenas Kimbell.
Suits e a jovem poderiam tê-lo declarado durante o
interrogatório, mas não o fizeram, pois, como argumentara
o agente, não dissipariam a convicção geral de que Patrick
era o criminoso, e poriam o assassino de sobreaviso.
Schulz inclinou-se para frente e apertou carinhosamente
um ombro de Mary.
— Você está bem, Mary? — perguntou em tom suave.
— Sim, sim, estou muito bem.
Agradava-lhe a solicitude de Frederick, como lhe
desagradavam as atenções de Bebil. Como eram diferentes
entre si! Quanto a Suits...
Virou a cabeça para o agente especial. Por que o incluirá
na comparação? Suits não significava nada em sua vida. Era
simplesmente o policial encarregado de investigar um
crime, a quem não tornaria a ver, quando aquilo terminasse.
Mas continuou a olhá-lo, enquanto ele guiava hábil e
velozmente no trânsito difícil da cidade. A calma e a
segurança que seus movimentos revelavam atraíam-na.
Começava a admirar aquele homem que mal conhecera, de
gestos comedidos, sem dureza. Chegou à conclusão de que
era muito diferente dos outros dois, e que talvez preferisse
tê-lo conhecido antes de encontrar Schulz...
Tornou a pensar em seu pai. Viu-o, na imaginação, sair
da sala do Palácio da Justiça, encolhido e trêmulo, ainda
mais envelhecido. Ela também tremeu, sacudida por um
calafrio repentino.
A imponente massa do antigo viaduto levantava-se
diante deles. A rua Cento-e-Setenta-e-Seis passava por
baixo de seus arcos, congestionada de tráfego e ruídos. O
carro parou e eles saltaram. Suits morava no andar térreo.
Havia uma porta que abria diretamente para seu
apartamento. Entraram.
O agente conduziu seus visitantes a uma salinha-de-estar
mobilada com simplicidade, cujas janelas davam para os
fundos do prédio. Bebil lançou um olhar casual para fora e
viu um telhado de zinco que chegava quase à altura das
janelas. Devia ser da garagem, dentro do amplo pátio que
separava o apartamento de Suits do muro traseiro.
— Não quer se sentar, senhor Bebil? — perguntou
Schulz.
— Sim, sim — respondeu-lhe, apressando-se a sentar
numa cadeira, o mais distante possível do alemão.
O agente especial abriu um balcãozinho e dele tirou uma
garrafa de uísque e quatro copos. Serviu generosamente a
todos.
Bebil e Schulz beberam seu uísque puro, enquanto Suits
e Mary o preferiram diluído em água. Ao terminarem de
beber, Suits repetiu a pergunta que lhes fizera antes, sem
tirar os olhos do maduro Bebil:
— Que me diriam se esses documentos não estivessem
desaparecidos?
— Eu não digo nada — resmungou Bebil. — Já falei
que não acredito na possibilidade de sintetizar-se o
diamante. Talvez o senhor Schulz tenha opinião formada...
Schulz limitou-se a rir e encolher os ombros. Em
seguida, entretanto, pareceu mudar de modo de pensar e
disse:
— Se quer que lhe diga a verdade, gostaria que esses
documentos aparecessem. Se for possível a fabricação de
diamantes, todos lucrariam com isso: a indústria, a nação...
— Que nação? — perguntou Suits, surpreendido.
— Os Estados Unidos. Qual havia de ser? Esta é minha
pátria. Os senhores sabem que desisti de voltar à Alemanha.
Mary Kimbell o escutava, calada. Que pretenderia o
agente com aquela comédia?
— Pois os documentos foram encontrados — esclareceu
Suits naquele instante — Patrick Kimbell não teve tempo de
encontrá-los. Teria chegado a descobrir o esconderijo, se
não tivéssemos aparecido quando estava procurando por
eles na garagem.
Fez uma pausa e pôs o cigarro no cinzeiro, com
exagerado cuidado. Arnold Bebil era quem parecia mais
interessado em seu relato. Não podia parar quieto em sua
cadeira. O alemão, pelo contrário, mantinha-se
imperturbável, rígido, com os braços cruzados sobre o peito
e o olhar vago. Mary Kimbell mordia os lábios, nervosa.
— A pasta estava na garagem — continuou Suits. —
Não nos foi difícil encontrá-la: bastou empurrar o carro e
levantar um ladrilho que ficara sob uma roda. Estão
comigo... — afirmou.
Bebil deixou escapar um balbuciar de assombro.
O alemão deixou de olhar com indiferença o vácuo e
fitou o agente com atenção. Depois sacudiu a cabeça e
aventurou, duvidoso:
— Não compreendo para que o senhor quer esses papéis.
— Para que os quero? Para nada. Suspeitei que
estivessem na garagem e fui procurá-los lá, hoje. Amanhã
mesmo vou entregá-los ao chefe.
Era uma mentira. A pasta de crocodilo e os documentos
estavam em seu poder há vários dias. Sucedera apenas que
preferira guardá-los do que comunicar seu achado aos
superiores. Todos acreditavam na culpabilidade de Kimbell,
de modo que julgara melhor guardar aquele trunfo para usá-
lo como isca para o criminoso.
Como afirmara, fora fácil encontrar a pasta. Lembrara-se
de que não havia procurado debaixo do automóvel, e voltara
à garagem para terminar a busca.
Se tivesse entregue os documentos, perderia aquela
oportunidade de testar os dois suspeitos. Para demonstrar
que um dos dois homens que estavam à sua frente era o
verdadeiro assassino, precisava provocar sua reação diante
dos documentos por cuja posse chegara ao crime.
Bebil pediu-lhe mais uma dose de uísque. Depois de
beber um gole, aventou:
— E se esses papéis não forem os de Prest? Digamos
que sejam falsos.
— São verdadeiros, tenho certeza — afirmou Suits. — O
senhor entende de física, senhor Schulz?
— Entendo — replicou o alemão, lacônico.
— Vou mostrá-los — disse o agente especial. A pasta
estava naquela mesma sala, dentro de uma pequena
escrivaninha. Bebil tentava inutilmente disfarçar sua
curiosidade. O alemão o conseguia, calado, tomando seu
uísque em pequenos goles.
Deliberadamente, Suits demorou a abrir a gaveta da
escrivaninha. Queria manter viva a curiosidade dos
suspeitos, para alterar-lhes os nervos com a espera.
— Eis a pasta de Robert Prest. Os papéis estão ai dentro.
Quer vê-los, Schulz?
O alemão assentiu, afetando displicência:
— Vamos ver...
Um simples olhar superficial bastou-lhe para constatar
que tinha diante de si um trabalho de excepcional valor. Os
conhecimentos de Prest eram surpreendentes.
Enquanto Schulz folheava os documentos, Bebil não lhe
tirava os olhos de cima.
— Senhor Schulz... Que valor têm esses papéis? —
perguntou ansiosamente.
O alemão virou a cabeça lentamente para ele e fitou-o
demoradamente. Sorriu e respondeu:
— Por seu azar, senhor Bebil, temo que seja a fórmula
para a fabricação de diamantes. Necessitaria estudá-las
detidamente para poder certificar-me, mas creio que o
senhor Suits não me permitiria. Não é verdade?
Suits também sorriu e afirmou:
— Claro que não, pois os documentos não me
pertencem. Como o pobre Prest não tinha herdeiros,
pertencem aos Estados Unidos.
Recolheu os papéis e enfiou-os novamente na pasta, que
pôs na gaveta da escrivaninha. Uma vez fechada a gaveta,
guardou a chave no bolso. Em seguida voltou-se para seus
convidados, dizendo:
— Bem, já os viram. Os documentos existem, e os
diamantes sintéticos serão uma realidade dentro em pouco.
Amanhã serão entregues a meus chefes — repetiu. — É
tarde para isso, hoje, pois o Cartório da Delegacia já está
fechado.
Bebil consultou seu relógio e ficou de pé de um salto.
— Preciso ir andando — grunhiu.
Schulz e Mary Kimbell o imitaram, mas sem
precipitação.
— Nós também vamos embora — disse ele.
Mary não falou. Calçou as luvas e saiu atrás deles. O
agente especial precedia-os, falando animadamente a Bebil.
— Adeus, senhorita Kimbell.
Estavam na porta, e Suits estendia-lhe a mão, sorridente.
Ela entregou-lhe a sua, que ele apertou com tamanha força
que Mary quase gritou de dor. Suits murmurou-lhe,
baixinho:
— Tenha confiança em mim.
Confiança nele? Mary desejaria poder perguntar-lhe por
que, mas a porta já havia sido fechada às suas costas.
Schulz, na calçada, chamava-a:
— Venha, Mary.
Desceu lentamente os poucos degraus. Confiança em
Suits? Ela a tivera até poucas horas atrás, quando seu pai
fora condenado. Deus! Num repente, ela compreendera por
que ele lhe pedira que tivesse confiança. Parou e olhou para
trás, tentada a recuar para pedir-lhe que entregasse
imediatamente os documentos a seus superiores,
desaparecendo da cidade até que a imprensa espalhasse a
notícia do aparecimento dos planos de Prest. No entanto,
não o fez. Percebeu que tinha confiança e fé absoluta
naquele homem.
Schulz tomou a chamá-la:
— Por que não vem de uma vez, Mary?
— Estou indo.
Sem saber por que, voltou a pensar que gostaria de ter
conhecido Suits antes de Schulz. O calor do aperto de mãos
ainda se conservava em sua mão dolorida.
— Quer que a leve para casa? — falou Schulz quase em
seu ouvido.
Pegou-a pelo braço. Uma mão fria, dura, que lhe
produziu uma impressão estranha e hostil.
— Sim, faça-me esse favor.
Arnold Bebil já havia desaparecido de vista...
CAPÍTULO OITAVO
A ISCA

O relógio da igreja próxima bombardeou o silêncio com


suas batidas. Suits contou-as. Na escuridão em que estava,
era-lhe impossível ver seu relógio de pulso. Três badaladas;
eram três horas da madrugada. Por um instante, o som
metálico do sino flutuou no ar, suspenso no silêncio da noite
fria. Depois, este voltou a dominar, cada vez mais denso:
um silêncio que começava a provocar-lhe sono, puxando-
lhe as pálpebras para baixo, forçando-o a fechar os olhos.
Faltavam poucas horas para o amanhecer e ninguém
mordera a isca. Bebil ou Schulz? Poderia vir qualquer um
dos dois, ou mesmo nenhum. Suits quase se convencia de
que estava perdendo tempo, embora estivesse certo de que
fora um dos dois. Segundo as informações que obtivera,
tanto a estada de Bebil no Brasil como a de Schulz em
Chicago não podiam ser verificadas dia a dia, havendo
possibilidade de que um ou o outro tivesse vindo a Nova
Iorque por ocasião do assassinato de Prest.
Outro policial julgaria logo que Bebil e Schulz fossem
cúmplices no crime. Suits, entretanto, tinha a convicção de
que seria impossível que se tivessem posto de acordo para
isso, por duas razões: Bebil odiava o alemão, no que era
plenamente correspondido, e, se fossem dois os criminosos,
teria sido muito fácil a escalada do muro, mudando-se
mutuamente, sem necessidade de tantas tentativas como as
que o assassino fizera.
A única certeza positiva que tinha era a de que um deles
matara Prest. Suits mostrara a ambos a pasta com os
documentos, para provocar uma decisão por parte do
culpado.
“Se um deles for o assassino, como creio, não poderá
fugir à tentação de se apoderar dos documentos que o
levaram ao crime, e que provocarão a morte de Kimbell se
eu não conseguir provar sua culpa antes da execução da
sentença” — pensou.
Mas o tempo passava e ninguém tentava apoderar-se da
pasta. Acocorado atrás de uma cortina, meio adormecido,
Suits já desesperava de prosseguir seu propósito, quando
ouviu um leve ruído na janela que dava para o pátio. Havia-
a deixado fechada propositadamente, para que o criminoso
não desconfiasse de nada, se tentasse entrar por ali. Ele
sabia que seria o caminho mais fácil, depois de alcançado o
telhado da garagem. Para alcançá-lo, era só lançar-se mão
de uma escadinha que estava bem à vista, no pátio.
O mais difícil seria o acesso ao pátio, mas bastaria, a
quem o desejasse, granjear a amizade do zelador noturno
convidando-o a beber até cair, coisa que acontecia com
demasiada frequência. Após isso, tudo se reduziria a
apanhar a escadinha, subir ao telhado e chegar à janela.
Bem, lá estava seu visitante noturno. Não podia ainda
vê-lo nem saber de quem se tratava, mas sabia que chegara.
O homem demonstrava saber agir. Suits ouviu o ruído do
vidro ao ser cortado por um diamante. Não conseguiu vê-lo,
nem sequer o braço que se enfiou pelo buraco cortado no
vidro e abria suavemente a janela.
Suits não era nervoso, mas naquele momento sentia-se
impaciente. Suas suspeitas estavam confirmadas. O homem
que abria a janela não podia deixar de ser o assassino de
Robert Prest, e vinha em busca dos documentos. Ouvia-o
respirar ruidosamente, ofegante pelo esforço de subir até ali.
Desceu da janela, devagar, postando-se de pé, imóvel, à
escuta.
Transcorreram alguns segundos, e então o intruso
acendeu uma pequena lanterna cuja luz abafara com um
lenço. Suits distinguiu sua silhueta, um vulto negro que se
recortava atrás do cone fracamente luminoso que percorria a
sala como um gigantesco vagalume curioso. A luz parou um
instante na cortina que escondia o agente especial, e este
conteve a respiração, apoiando-se com mais força à porta
que ela ocultava.
Suits empunhava firmemente a pistola, embora
pretendesse usá-la em caso de extrema necessidade.
Tencionava apanhar vivo o criminoso, para que ele
confessasse seu crime e livrasse Patrick Kimbell da cadeira
elétrica. Mas não podia permitir que o descobrisse. O
assassino parecia receoso. Tornou a percorrer a sala com o
facho de luz da lanterna. Deteve-o na cortina e avançou uns
passos...
Suits firmou a pistola em sua direção. Não podia ver se o
homem estava armado, embora fosse inevitável que ele
tivesse alguma arma. Era um criminoso que já havia
liquidado um homem pelas costas, e não hesitaria em matar
outro para salvar-se.
A luz aproximava-se com uma lentidão exasperadora. O
homem devia estar caminhando nas pontas dos pés, pois
Suits mal lhe ouvia os passos. Sua respiração ofegante, no
entanto, uma espécie de assobio prolongado e contínuo,
comum ao doente dos brônquios, denunciava sua posição.
A lanterna deixou de iluminar a cortina de repente para
girar em direção à escrivaninha. O intruso encaminhou-se
para lá, esquecido das precauções anteriores, movido pela
ânsia de apoderar-se dos documentos de Robert Prest.
Abaixou-se sobre a escrivaninha, tentando abrir a gaveta
com um puxão. Lembrou-se então, provavelmente de que o
agente a fechara à chave, e procurou alguma coisa nos
bolsos.
Guy percebeu que aquele era o momento propício ao
ataque. Saiu silenciosamente de trás da cortina e avançou
para ele. A fechadura acabara de saltar. A gaveta deslizou
para fora. Ao ininterrupto assobio da respiração do intruso
uniu-se grunhido de satisfação: a pasta de couro de
crocodilo estava em suas mãos. Abriu-a para examinar seu
conteúdo. Voltou-se repentinamente, do um ruído às suas
costas.
— Levante as mãos!
Com o susto, o intruso deixou a pasta escapar das
mãos, recuando alguns passos. Tropeçou na escrivaninha e
a lanterna rolou ao chão, desmontando-se e fazendo-se em
cacos o vidro e a lâmpada.
— Quieto. Não se mova! — ordenou Suits.
O invasor não obedeceu. A queda da lanterna o
favorecera, e, se andasse depressa, poderia fugir. Em dois
saltos chegou à janela. Agarrou-se ao peitoril e tentou
escalá-lo. Tentou somente, pois Suits estava às suas costas,
ameaçando-o:
— Pare, ou atiro!
Mas não atirou, nem o outro parou. O desespero e o
desejo de fugir emprestaram-lhe forças e coragem para
enfrentar o agente. Talvez não acreditasse que este
pretendia atirar. O único pensamento que lhe entrava na
cabeça era o de fugir.
Em vez de continuar tentando montar no peitoril,
deixou-se cair bruscamente ao solo e agarrou às pernas de
Suits. Foi um ato tão inesperado que o puxão o jogou para
trás. Ao cair, o agente bateu com a nuca na borda da
mesinha de centro, o bastante para fazê-lo perder
momentaneamente os sentidos.
O outro esperou alguns segundos, preparado para a
reação, mas, ao ver que Suits permanecia imóvel,
aproximou-se devagar, com receio. A sorte o acompanhara,
fazendo com que o agente batesse com a cabeça no móvel.
Mas não podia perder tempo. Precisava fugir.
Lembrou-se da pasta e dos documentos de Robert Prest,
e voltou a sentir o imperioso desejo de apoderar-se deles.
— Diamantes sintéticos! — murmurou.
Sim, precisava apoderar-se dos papéis. Não conseguia
encontrar a pasta, na escuridão reinante. A noite era escura,
e a lanterna estava inutilizada. Saiu à sua procura, de
gatinhas, tateando pelo solo. Não encontrou a pasta, e
começou a desesperar-se.
Teve a impressão de que Suits se movera. Temeu que
voltasse a si. Hesitou um instante, entre agir antes que o
agente despertasse e continuar procurando a pasta. A
cupidez levou-o a escolher a última alternativa. A pasta só
podia estar ali, talvez ao alcance de sua mão...
Avançou mais um pouco, e sentiu seus dedos roçarem
no couro. Apanhou-a febrilmente, pondo-a embaixo do
braço, como Robert Prest fizera ao subir no automóvel, na
noite em que foi assassinado.
Os papéis eram seus! Poderia fazer o que quisesse com
eles! Seus? Não de todo. Acabava de ver a silhueta de Guy
Suits na janela, tornando a impedir-lhe a fuga. Agira como
um idiota. Deveria ter tratado, inicialmente, de desfazer-se
dele, embora as coisas se complicassem se o matasse. Não
se atrevia a tomar uma resolução. O que ocorrera
anteriormente fora mera casualidade, e o agente não se
deixaria apanhar desprevenido outra vez. Estava apavorado.
Um ou dois minutos mais, e teria conseguido fugir com os
papeis! A maldita asma, como um fogo que lhe queimasse
constantemente a garganta, um peso que lhe oprimisse o
peito, asfixiando-o, não lhe deixava condições para uma
luta contra o agente especial.
Mas tinha de fugir. Lançou-se contra Suits, brandindo os
punhos. A pasta tornou a cair ao chão. Desta vez o agente
estava à sua espera com a cautela necessária. Bastou-lhe
estender o braço e aplicar-lhe um golpe de jiu-jitsu. Pegou-o
pela gola do casaco e levantou-o no ar, com a respiração
sibilante, afogado pelo desespero e pela tosse.
Pouco tardou em reduzi-lo à impotência. Um par de
socos bem aplicados foi suficiente para submergir no
mundo da inconsciência, a luz. Seu estratagema dera bom
resultado, a seus pés, estava o assassino de Robert Prest.
Patrick Kimbell não seria eletrocutado e Mary...
A recordação da jovem fê-lo contrair o cenho,
preocupado. Teve, naquele instante, a revelação de que a
amava, de que talvez a amasse desde o momento em que a
encontrara desmaiada à porta do quarto de seu pai, ou
mesmo desde o momento a vira pela primeira vez. Mas a
verdade lhe doeu: Mary não seria sua, jamais, pois estava
comprometida, há muito tempo...
O prisioneiro rolou no chão e abriu os olhos. Seu olhar
percorreu a sala, até encontrar o agente. Quis levantar-se e
não pôde. Estava amarrado como um fardo.
— Que vai fazer comigo? — murmurou.
Guy Suits sorriu e respondeu-lhe jocosamente:
— Você é esperto, Bebil. Quer que o solte, por acaso?
Não; você precisa tomar o lugar que estava reservado para
Patrick Kimbell na cadeira elétrica...
O assobio da respiração de Arnold Bebil fez-se mais
prolongado, mais agudo. Seu rosto, já pálido, assumiu um
tom cadavérico. Tentou protestar, palavras engasgaram-no
como se fossem bolas de farinha. Só pôde deixar escapar
uma espécie de ganido lastimoso.
— Você é um assassino — acusou o agente especial. —
Matou Robert Prest pelas costas, para roubar seus
documentos. Temia que ele pudesse fabricar diamantes
artificiais, o que o arruinaria. Sabendo que você não podia
resistir à tentação de apoderar-se desses documentos, eu o
trouxe aqui hoje à tarde.
Bebil não o deixou prosseguir. Repentinamente, pôs-se a
gritar:
— Não fui eu! Não matei Prest! Eu... — Engasgou-se
outra vez. A tosse o afogava, apertando-lhe a garganta como
um monstro invisível.
— Você... — começou o agente especial.
Ao perceber que Bebil não estava passando bem, Suits
correu em busca de um copo de água.
— Beba — ofereceu-lhe.
Levantou-o ligeiramente e pôs o copo diante de seus
lábios. Bebil bebeu avidamente, e recomeçou a gritar:
— Não matei Prest! Não sou assassino! Vim roubar-lhe
os papéis, porque serão a minha ruína. Schulz disse a
verdade: perdi minha fortuna. Grande parte dela eu a
emprestara a Patrick Kimbell. Estou apaixonado por Mary e
queria casar-me com ela. Patrick prometia que ela seria
minha esposa, se eu tivesse paciência. Só deixei de lhe
emprestar dinheiro quando o alemão apareceu... De
qualquer modo — mudou repentinamente de assunto — se
eu quisesse, você agora estaria morto. Tive oportunidade,
quando perdeu os sentidos, mas não o fiz. Não sou
assassino!
Suits olhava-o fixamente, pensativo. Seu medo parecia
sincero, assim como o que dizia: poderia tê-lo assassinado e
não o fizera.
— Onde estava, quando Robert Prest foi morto? —
perguntou-lhe, de repente. — Averiguei que você
desapareceu do Rio de Janeiro e que demorou vários dias a
aparecer em Nova Iorque. Você tinha tempo para vir e
voltar para o Rio...
— Aqueles dias? — Bebil procurava lembrar-se, e
afirmou, depois de uns instantes: — Estive com uma
mulher. Ainda sou forte... Não devo satisfações a ninguém,
e não preciso andar a irradiar por aí o que ando fazendo.
Então, apesar de seu desagradável aspecto simiesco, o
velho Bebil andava de amores pelo Rio de Janeiro...
— Pode provar o que afirma?
Bebil apressou-se em relatar ao agente todos seus passos
durante a estada no Brasil.
— Bem, comprovaremos mais tarde — disso Suits,
depois de fazer algumas anotações. — Agora, vou levá-lo
comigo.
Bebil recomeçou a gritar:
— Não sou criminoso! Nunca matei ninguém! Queria
apanhar os documentos para destrui-los! Poderia tê-lo
morto, se eu fosse um assassino, mas não o fiz!
— Cale-se! — ordenou-lhe Suits, já impaciente. — Terá
tempo de dizer tudo isso ao juiz, quando chegar a ocasião.
Desamarrou-lhe os pés e o obrigou a levantar-se. Bebil
mal podia manter-se de pé. Estava esmagado pela derrota
que o agente lhe infligira, e sabia que seu último ato podia
levá-lo à cadeira elétrica.
Suits apanhou a pasta e a pistola, obrigando-o a ir à sua
frente.
— Vamos!
Bebil se deu por vencido. Calou-se, e começou a
caminhar como um autômato.
— Não fui eu! — tornou a insistir.
Desceram a escada. Ainda estava escuro, na madrugada
fria e desagradável. Arnold Bebil tiritava.
— Quer levantar a gola de meu casacão? — suplicou.
Suits levantou-a. Nenhuma alma circulava pela rua. Só
encontraram um cão vadio, que se pôs a ladrar contra eles,
tentando mordê-los. Com um pontapé o agente espantou-o,
e o animal fugiu ganindo.
— Não tente fugir, hem! — avisou ao prisioneiro.
Na realidade, Bebil deixara de pensar nisso. Ainda que o
quisesse, não teria conseguido fugir. A cabeça lhe pesava,
as pernas estavam muito fracas e trêmulas para correr. E
aonde poderia ir, com as mãos amarradas às costas?
— Suba!
Haviam chegado à garagem. Suits ajudou-o a sentar-se a
seu lado, e pôs o motor em movimento. Dava gosto guiar
àquela hora. Nem um só carro ou pedestre andava pelas
ruas, na aparência. Entretanto, não era o seu o único
automóvel que se punha em movimento na rua Cento-e-
Setenta-e-seis naquele instante.
Outro veículo começava a rodar, cinquenta metros atrás
do de Suits. Não o impedia de trafegar livremente, pois
seguia a mesma direção.

CAPÍTULO NONO
O DIA DA CAÇA...

— Aonde vamos?
Arnold Bebil, encolhido no banco, viu que o carro
dirigia-se à zona noroeste da cidade, reconheceu algumas
casas dos arredores de Westchester. Com efeito, em seguida
atingiram a avenida Stillwell, com seus imponentes
edifícios de escritórios e residências.
— Aonde vamos? — repetiu, intrigado e receoso.
Guy Suits olhou-o de relance e conservou-se em
silêncio. A avenida Stillwell termina na embocadura do rio
Eastchester, mas, dobrando-se à direita, chega-se ao Eastern
Boulevard. Daí, emenda-se à entrada de Pelham, passando
sobre a elevação de um pequeno cabo, por meio de uma
ponte dupla. À sua direita, veem-se os estaleiros do rio
Eastchester e os numerosos barcos atracados em ambas as
margens.
Nem Suits nem seu prisioneiro demonstravam interesse
pela paisagem. O primeiro, atento ao volante, não tirava o
olhar do caminho a não ser para relanceá-lo sobre Bebil, e
este, por motivos obvios só desejava saber para onde estava
sendo levado.
Cansado de perguntar inutilmente, Bebil procurou
orientar-se por si mesmo. Verificou que estrada conduzia ao
parque de Pelham, e percebeu para onde iam.
— Vamos para a casa de... Robert Prest! — gaguejou.
Suits tomou a olhá-lo de esguelha e comentou, ironia:
— Que dedução!...
Voltou ao silêncio anterior, Bebil havia acertado, pois
estava realmente dirigindo o veículo para a casa do falecido
inventor. Queria certificar-se de uma coisa que não lhe
parecia muito clara: se Bebil era, de fato, o assassino. Havia
mordido a isca da pasta, mas sua atitude, deixando-o vivo,
não condizia com o crime covarde que fora cometido. Além
disso, fora ao seu apartamento desarmado. Um assassino da
capacidade moral do que matara Prest seria incapaz de
arriscar-se a ser preso sem defender sua liberdade a tiros.
Bebil não parecia ser desse tipo. E sua asma, a respiração
entrecortada...
Suits lembrou-se nitidamente do momento em ele saltara
a janela, ofegando pelo esforço. Sua aparência, depois de
uma façanha tão singela, era a de um homem esgotado,
incapaz de...
— Escute — disse, tornando expressos os pensamentos.
— Diga-me, como conseguiu atingir meu apartamento?
Bebil remexeu-se no assento, pigarreou e respondeu:
— Por uma escada. Precisei apenas pagar uma garrafa
de uísque ao zelador. Disse-lhe que era seu amigo, Suits.
Convidei-o a tomar um traguinho. Bebeu a garrafa em
poucos minutos, e, quando adormeceu, apanhei uma
escadinha que havia no pátio...
O longo discurso de Bebil foi interrompido por um
violento acesso de tosse.
— E como subiu do telhado da garagem à janela?
— A pulso — respondeu Bebil. — Agarrei-me ao
peitoril e subi como pude.
— Chegamos.
Com efeito, estavam chegando ao sítio de Robert Prest.
Suits freou o carro. Ao mesmo tempo que eles, o automóvel
que os vinha seguindo desde a rua Cento-e-Setenta-e-Seis
parou a alguma distância. Um homem saltou do Cadillac
negro e avançou apressadamente para o chalé onde o agente
e seu prisioneiro haviam entrado. Parou para olhá-los
enquanto caminhavam pelo caminho do jardim, ignorando
que tinham sido segui- dos.
Suits levava a pasta debaixo do braço, pois não se
atrevera a deixá-la no carro. O homem que os seguia
avançou lentamente pelo caminho, deslizando como uma
sombra junto às árvores que o margeavam. O céu começava
a ganhar a luminosidade do novo dia, e o homem não
desejava ser visto por algum deles, se olhasse para trás. Não
temia ser visto, pois trouxera uma pistola que poria em ação
no momento oportuno. Entretanto, desejava averiguar a
intenção que levara Suits e Bebil até a casa do crime, antes
de liquidá-los.
A curiosidade espicaçava seu espírito. Seus planos
haviam sido mais simples, de início: esperar que Bebil
saísse do apartamento com a pasta roubada ou, se falhasse,
que Suits a levasse para entregá-la a seus chefes.
Provocaria, então, um acidente entre os dois carros e
aproveitaria a confusão para apoderar-se da pasta e
desaparecer.
O fracasso de Bebil determinara o inesperado, e o agente
especial mudara de itinerário. Que teria vindo fazer? O
homem espichou o pescoço no canto da garagem. Suits e
Bebil pararam junto ao muro, e o agente estava
desamarrando seu prisioneiro.
Compreendeu a intenção do agente: verificar se Bebil
tinha condições para escalar aquele muro.
— Vamos, procure subir por aqui — ouviu Suits ordenar
a Bebil.
O prisioneiro sentiu um corpo duro empurrando-lhes as
costas: o agente ameaçava-o com uma arma. Um suor frio
começou a lhe escorrer da testa, apesar do frio intenso.
— Por onde? — perguntou.
— Por qualquer lugar, agarrando-se como puder com as
mãos e os pés — grunhiu Suits, pressionando o cano da
pistola contra suas costas. — Suba, senão atirarei.
Falava seriamente, na aparência. Estavam sós, e, se
atirasse, ninguém viria em sua ajuda. O prisioneiro
assustou-se com essa perspectiva.
— Se conseguir saltar para o outro lado, não o impedirei
de fugir — prometeu Suits.
Bebil agarrou-se ao muro, metendo as pontas dos pés
nas fendas e enfiando os dedos nas saliências que
encontrava. Subia alguns centímetros e caía ao solo.
— Vamos, tente de novo — insistiu o agente, batendo-
lhe com o cano da arma nas costas.
Tentou-o repetidamente, até que Suits resolveu:
— Deixe isso; venha cá.
Arrastou-o até uma árvore, a mesma por onde estava
certo de que o criminoso alcançara o muro, e ordenou:
— Tente por aqui.
Arnold Bebil, chiando de asma e suando frio, abraçou o
tronco e tentou escalá-lo, sem resultado. Suits, já penalizado
com o estado físico do prisioneiro, mandou-o desistir do
intento, enquanto guardava a pistola no bolso.
— Basta. Agora sei que não foi você quem matou Prest
— afirmou.
Bebil teve a impressão de que lhe haviam tirado uma
tonelada de sobre os ombros. Desceu, deixando-se cair, da
pequena altura que alcançara, e permaneceu uns instantes
agarrado ao tronco da árvore. Mais do que nunca, sua
respiração soava em assobios prolongados e angustiosos.
Um forte acesso de tosse, repentinamente, lhe arranhou
o peito por dentro. As pernas se negavam a sustentá-lo. Para
voltar-se, foi obrigado a continuar agarrado a árvore e girar
o corpo lentamente.
Quando conseguiu virar o corpo de modo a apoiar as
costas no tronco, empalideceu: o que viu lhe cortou a fala.
Havia um homem no canto da garagem, espiando-os. Mas
não foi só o homem o que o assustou, mas principalmente a
pistola que empunhava.
Reconheceu-o e compreendeu o que pretendia: matar
Suits para apoderar-se dos documentos.
Ao matar Suits, seria forçado a matá-lo, também, para
que não o denunciasse. Sua vida corria perigo tão iminente
quanto a de Suits. Aquele homem era o assassino de Robert
Prest!
O criminoso não tinha pressa. Suits e o assustado
homenzinho eram presa segura, pois não havia outra saída
dali. Percebera que Bebil o E tinha visto, e divertiu-se com
seu terror.
Transcorreram alguns segundos. Arnold Bebil
continuava com uma mão apoiada no tronco da árvore e a
outra no ar, os olhos muito abertos e a boca igual à de um
peixe fora da água. Não conseguia gritar para avisar Suits;
por mais que o tentasse, só saia um silvo angustioso de sua
garganta. E o agente especial continuava sem perceber o
que ocorria às suas costas.
Suits raciocinava, pensando no que deveria fazer, agora
que sabia quem era o verdadeiro criminoso, por eliminação
de Bebil. Não possuía prova alguma para acusá-lo. Em
verdade, estava em um beco sem saída. Os elementos de
convicção que possuía eram somente dois. O álibi que a
viagem a Chicago fornecera a Schulz era inconsistente, pois
cobria apenas o dia do embarque de ida e o da volta, que
poderiam ser verificados. Os dias de permanência naquela
cidade haviam sido muitos, e Schulz poderia ter viajado a
Nova Iorque em segredo na véspera do crime, voltando
ainda em segredo no mesmo dia. Schulz soubera, por
Patrick Kimbell, da existência do invento de Prest. Mas
outros o sabiam, como Bebil e Mary; quem poderia afirmar
que o velho Kimbell não revelara o segredo a outras
pessoas?
Arnold Bebil olhava fixamente para frente.
Suits deu-se conta disso ao tirar os cigarros do bolso.
“Piorou da asma...” — pensou.
Observando-o melhor, notou que o ex-prisioneiro estava
aterrorizado, fitando algo às suas costas. Compreendeu o
que se passava, mesmo sem voltar-se. Dominou o desejo de
olhar para trás, e fingiu dedicar a atenção ao cigarro que ia
acender. Queria dar ao assassino a impressão de que não
percebera o terror de Bebil.
Este olhava alternadamente, com a angústia estampada
no rosto, para o criminoso e para Suits. Será que o agente
não percebia o que ia acontecer? Precisava avisá-lo, dar-lhe
a entender de algum modo que o assassino estava às suas
costas e que ia fazer-lhe o mesmo que fizera a Prest. Fez
nova tentativa para falar, mas conseguiu apenas aumentar o
acesso de sufocação.
O assassino levantava a pistola, centímetro a centímetro,
para mirar cuidadosamente. Não queria errar o primeiro
tiro, para não desperdiçar a vantagem que o acaso lhe
concedera.
Suits, entretanto, sabia que o momento fatal se acercava
rapidamente. O rosto de Bebil, sua expressão de
irreprimível pavor, as pupilas mais e mais dilatadas pelo
espanto, diziam-lhe que precisava agir sem demora.
Não era preciso que Bebil falasse, pois sabia
perfeitamente o que havia às suas costas, e o lugar exato em
que se encontrava o criminoso ameaçando-os. Mas
precisava dominar os nervos, para agir com a precisão
necessária. A salvação de sua vida e da de Bebil dependia
de seu autodomínio.
O assassino não se apressava. A aparente tranquilidade
do agente especial tinha conseguido enganá-lo. Procurava
firmar bem a pontaria, para não falhar. Sabia que atirar em
Guy Suits não era o mesmo que atirar em Robert Prest. Se
tivesse errado o primeiro tiro em Prest, poderia desfechar-
lhe outros, pois o físico estava desarmado. Suits, pelo
contrário, possuía uma arma, e devia ter boa pontaria. Se
não acertasse em um ponto vital no primeiro tiro, a situação
poderia tornar-se difícil...
De qualquer modo, estava perdendo um tempo precioso.
O covarde Bebil terminaria dominando a asma para avisar o
agente. Suits, mesmo sem o aviso de Bebil, poderia
igualmente voltar-se para seu lado. Decidiu terminar de uma
vez.
Suits, imperturbável, com a pasta debaixo do braço
esquerdo e o cigarro na mão direita, aproximava-se de
Bebil, o único que parecia atemorizado. Mas os segundos
afiguravam-se lentos como horas, para os três homens.
O dia rasgava-se em um leque de luz e cores, ao surgir o
sol por sobre o horizonte, quando o assassino apertou o
gatilho de sua pistola.

CAPÍTULO DÉCIMO
...E O DO CAÇADOR

Tudo correu em uma fração de segundo: um tiro, um


grito e dois homens rolando pelo chão.
Mas a ordem cronológica era outra, e o rolar dos homens
não foi consequência do tiro.
A aparente despreocupação de Guy Suits havia levado o
criminoso a confiar demasiadamente item sua situação
vantajosa. Quando apertou o gatilho, já Suits dera um forte
e inesperado empurrão no apavorado Arnold Bebil,
jogando-se ao solo, juntamente com ele.
O tiro saiu, mas não alcançou o objetivo, indo incrustar-
se no tronco da árvore. Em vez de continuar atirando, o
criminoso mudou de tática. Por não confiar em sua pontaria,
e ainda menos na do adversário, que com rapidez incrível já
lhe apontava uma pistola, hesitou, protegendo-se atrás da
parede da garagem, Arnold Bebil, encolhido atrás da árvore,
continuava olhando a cena, sem piscar e ainda sem fala. O
agente especial aguardava uma oportunidade para disparar
contra o assassino, enquanto planejava o que faria a seguir.
A indecisão do criminoso não durou muito. Entre
enfrentar o agente e a cadeira elétrica, a diferença não era
muito grande, e as consequências não lhe convinham.
Preferiu, no entanto, arriscar-se contra Suits, pois a cadeira
elétrica nunca falha... Protegido pelo canto da garagem, não
podia ser atingido pelas balas do policial.
A vantagem ainda estava do seu lado.
Desatou a correr com assombrosa velocidade, saltando
por cima dos canteiros de plantas. Suits, ao ouvir seus
passos, percebeu num relance o que acontecia e pôs-se a
correr no mesmo instante.
A perseguição se iniciara com aparente vantagem para o
fugitivo. Ao dar a volta à casa, Suits viu-o transpor o gradil
do jardim.
Arnold Bebil seguiu-os, capengando, pois machucara
uma perna ao ser derrubado pelo agente. Sabia-se a salvo,
pois o policial e o criminoso não mais se ocupavam dele, e
podia empreender a fuga. Fugir? Uma boa ideia... Deteve os
passos por um momento, passeando o olhar em seu redor.
Terminou fixando-o nos dois homens que corriam. Não
fugiu, pois a curiosidade paralisou seus movimentos.
O assassino estava prestes a escapar. Chegava a seu
automóvel, e o agente acabava de cair ao solo, depois de
escorregar na calçada gelada e enfiar o pé num buraco.
Levantara-se em seguida, mas sem poder correr como antes.
Saltava quase num pé só, insistindo na perseguição.
O assassino já abria a porta do Cadillac quando o agente,
sentindo a impossibilidade de alcançá-lo, levantou a arma.
Outro tiro, o segundo que soava naquele amanhecer, fez o
criminoso cambalear e cair de joelhos. Levantou-se em
seguida, arrastando-se para dentro do automóvel entes que
Suits disparasse novamente.
O carro manobrava para voltar-se no sentido da cidade, e
o agente especial saltava num pé só em direção ao seu.
Arnold Bebil foi assaltado por uma série de tentações. Viu a
pasta de Prest caída junto ao buraco em que Suits
machucara o pé. Avançou para ela e apanhou-a.
— No dia em que fabricarem diamantes, você estará
arruinado — pareceu-lhe tornar a ouvir a voz zombeteira de
Schulz.
Apertou a pasta de couro de crocodilo firmemente contra
o peito. Como já o haviam feito Prest e Suits.
Este não o olhava, ocupado em alcançar o carro para
continuar a perseguição ao assassino. Bebil pensou em fugir
também, levando a pasta dos documentos. Não obstante,
não fugiu. Suits acabava de salvar sua vida, e necessitava de
ajuda para impedir que o assassino escapasse. Ninguém
poderia ajudá-lo, a não ser ele, que tinha sido seu
prisioneiro até há poucos momentos, e que provavelmente
voltaria a sê-lo quando a perseguição ao assassino
terminasse.
Decidiu-se logo. Não era um criminoso, embora
invadisse o apartamento de Suits para roubar-lhe os papéis.
Agira, no entanto, em um impulso de loucura,
impressionado pela previsão de ruína que o alemão sugerira.
Era um homem de bem que sucumbira a uma tentação
momentânea. Correu para junto de Suits e o ajudou a chegar
ao automóvel.
— Vamos logo — disse ao agente — se não ele escapa.
Experimentava repentinamente a necessidade de
colaborar para a captura do covarde e cruel assassino que
corria diante deles.
— Vamos, vamos — insistia. — Eu guiarei seu carro.
Suits não o permitiu e tomou o volante. O pé lhe doía
terrivelmente, mas não precisava usá-lo para dirigir. O
assassino ganhara boa dianteira e seria necessário correr à
máxima velocidade para alcançá-lo.
Manobrou rapidamente e ganhou a estrada com o pé
calcando o acelerador a fundo. Fechava as curvas numa
velocidade vertiginosa, roçando o meio-fio e as valetas.
— Seu pé dói muito? — perguntou-lhe Bebil, para
distrair-se do medo que começava a sentir por sua
segurança àquela velocidade.
— Doí, mas não importa. Precisamos apanhá-lo.
O carro do assassino apareceu à sua frente, um ponto
negro crescendo paulatinamente à medida que encurtava a
distância que os separava. Suits encostou o acelerador no
piso do carro. Precisava alcançar o outro veículo antes de
chegarem à confluência das estradas de Manor e da ilha de
Hunter, onde o trânsito congestionado facilitaria a fuga do
criminoso.
Faltavam menos de dois quilômetros para a confluência.
Se não o alcançassem naquele minuto escasso que levariam
para atingi-la, talvez nunca mais o apanhassem. A agulha do
velocímetro atingia o limite e o carro de Suits ganhava
terreno aos poucos, mas não poderia aumentar a velocidade.
Bebil temia que a velocidade diminuísse repentinamente
numa daquelas curvas alucinantes...
— Vamos capotar — gaguejou, numa volta mais
fechada.
Suits não respondeu. Para que? Arriscava sua vida e a de
Bebil para salvar a de Patrick Kimbell, além de cumprir o
seu dever de entregar o verdadeiro criminoso à Justiça.
Inclinado sobre o volante, com o cenho franzido e os lábios
apertados, dedicava-se atentamente às manobras arriscadas
que precisava efetuar.
— Vamos capotar, deste jeito — repetiu Bebil, num
queixume.
— Cale-se! — ordenou Suits, exasperado.
O homenzinho calou-se, pensando no que faria o agente
para capturar o assassino, pois estavam atingindo o
entroncamento. O mesmo ia pensando Suits. Queria apanhar
o assassino vivo para forçá-lo a confessar o crime, mas
como o faria? Não conseguiria ultrapassar o carro do outro
antes do cruzamento, e em seguida muitos veículos se
interporiam entre os dois. Atirando nos pneus do Cadillac?
Impossível, pois provocaria sua capotagem e, àquela
velocidade, o assassino dificilmente sobreviveria ao
acidente.
Mas... que acontecera ao fugitivo? Bebil chamou a
atenção de Suits, batendo-lhe no braço:
— Veja, veja! — exclamou:
O assassino fora atingido num músculo da perna direita
pelo tiro do agente especial e perdia muito sangue por uma
veia dilacerada. A principio sentira apenas um golpe seco,
como uma chicotada na perna, que o lançara de joelhos ao
chão. A dor era muito pouca, e a perna principiava a
formigar, dormente. Passou a mão sobre o local, retirando-a
cheia de sangue. Percebeu que o ferimento era grave, mas
como precisava fugir a todo custo, subira ao carro e o
lançara na estrada.
A dor foi-se tornando mais aguda à medida que o tempo
passava, e começou a perder as forças pela hemorragia.
Pensou em aplicar um torniquete acima do ferimento, com o
cinto; impossível fazê-lo sem parar o carro. Só lhe restava,
pois, apertar o acelerador e resistir à dor.
Controlava constantemente pelo espelho retrovisor o
outro carro, que se aproximava do seu. De repente,
compreendeu que ia perder os sentidos. A estrada se
alongava estranhamente a seus olhos, como uma fita
esbranquiçada povoada de sombras de ambos os lados.
O trepidar do motor de seu carro misturava-se ao do
perseguidor, num ruído monocórdio que parecia hipnotizá-
lo. Sem dar por isso, começou a descrever ziguezagues pela
estrada, diminuindo insensivelmente a velocidade. Seu pé já
não sentia o acelerador, e a cabeça começava a pender,
Levantou a mão e passou-a pelos olhos, provando afastar
a nuvem que lhe toldava a visão. Subitamente, teve a nítida
impressão de que estava morrendo, e foi o instinto de
conservação que o levou a deter o veículo. Suits parou o
seu, poucos metros atrás do Cadillac.
— Cuidado, que pode ser um truque — avisou a seu
acompanhante.
Aviso desnecessário, porque Bebil acabava de agachar
prudentemente atrás do painel de instrumentos, escondendo
a cabeça. Estava certo de que o tiroteio ia começar.
Esperaram alguns segundos. Suits, mantendo a pistola
firmemente na mão, preparado para qualquer eventualidade,
e Bebil em seu refúgio. Mas assassino não dava sinais de
vida. As portas do Cadillac parado no meio da estrada
conservavam-se fechadas.
— Espere aqui — disse Suits, dispondo-se a avançar.
Desceu do carro e caminhou cuidadosamente, apoiando-
se na ponta do pé ferido e reprimindo os gemidos de dor
que lhe subiam à garganta.
— Desça com as mãos para o alto! — gritou, dirigindo-
se ao assassino.
Ainda dessa vez o fugitivo não deu sinal de vida. Suits
continuou a avançar, disposto a atirar ao menor movimento.
Afinal, pôde ver o criminoso: jazia de bruços sobre o
volante, com a cabeça pendida para o lado direito. Suits não
se precipitou, pois podia ser um estratagema para apanhá-lo
desprevenido.
Redobrou de precauções, adiantando-se lentamente, sem
aliviar a pressão do dedo indicador no gatilho da arma. Já
estava tão próximo que quase poderia tocar o assassino com
a mão, quando este fez um movimento brusco. Suits não
disparou a arma. Qualquer outro o teria feito, mas ele tinha
os nervos muito bem temperados; reprimiu a tempo o
instinto de apertar o gatilho. O assassino estava sem
sentidos, e escorregara de cima do volante, caindo de bruços
no piso do automóvel.
— Dê um pulo aqui para ajudar-me — gritou Suits a
Bebil.
O homenzinho demorou um pouco a espiar pelo para-
brisa. Não perdera ainda o medo, mas convenceu-se de que
o perigo passara, porque o agente o havia chamado. Correu,
e ao chegar junto ao outro carro não pôde reprimir uma
exclamação de assombro:
— Matou-o? Não ouvi estampido algum...
Era certo que não ouvira nenhum tiro, mas não menos
certo que o fugitivo jazia imóvel sobre um lago de sangue.
— Ajude-me — insistiu o agente especial, sem
responder à sua pergunta.
Tiveram de arrastar o ferido para o carro de Suits,
porque nenhum dos dois estava em condições de levantá-lo.
Bebil ofegava com sua asma, e Suits saltava num só pé,
com o outro machucado.
Embarcaram novamente e retomaram a marcha. Não
correram tanto como antes, é claro, mas Suits guiou seu
veículo em direção à cidade numa velocidade além do que a
prudência permitia.
Levava o assassino de Robert Prest e a pasta de couro de
crocodilo com seu precioso conteúdo. Bebil a devolvera.
Durante a perseguição, Suits mal percebera do gesto do
homenzinho, o que agora compreendia em toda a sua
significação.
Guardara silêncio por largo tempo, até que ocorreu a
Bebil perguntar:
— Para que quereria ele esses documentos?
Suits virou a cabeça e olhou de relance para o assassino
que jazia no banco traseiro do carro. Frederick Schulz
continuava desacordado. O agente encolheu os ombros e
respondeu:
— Não sei, mas imagino que a intenção dele era o
inverso da sua. Qualquer nação ou grande indústria pagaria
uma fortuna por esses papéis. Você os destruiria, mas ele
pretendia vendê-los. Você agiu exatamente como Schulz
queria. Se conseguisse apoderar-se da pasta, não teria tempo
de destruir os papéis, pois ele estava à sua espera para matá-
lo pelas costas.
Fez uma pausa enquanto dobrava uma esquina e
continuou:
— Sua sorte foi ter sido surpreendido por mim. Se saísse
sozinho de meu apartamento... No fundo, Schulz é covarde,
e foi isso que o perdeu. Teve medo de atirar em mim no
jardim de Prest, temendo falhar e levar a pior. Preferiu
confiar em suas pernas, o que salvou a você e a mim, pois
nossa situação seria insustentável contra um adversário
corajoso e decidido.
Nova pausa. Bebil perguntou, preocupado consigo
mesmo:
— E agora... que acontecerá comigo?
Guy Suits até esquecera que Bebil também era seu
prisioneiro. Olhou-o de soslaio, refletindo. Apesar de tudo,
Arnold Bebil não era mau sujeito. Era-lhe grato. Bebil o
tivera à sua mercê, mas não abusara daquela superioridade.
Ajudara-o também a prender o assassino, na medida de sua
reduzida capacidade. Se não fosse esse inesperado auxilio,
talvez o bandido houvesse escapado.
— Bem, podemos fazer uma coisa: você virá comigo,
pois precisa prestar depoimento...
Bebil arregalou os olhos, assustado, e começou a tremer
violentamente. Ia abrir a boca para falar quando Suits
continuou:
— Mas seu depoimento não precisa ser exato, no que se
refere à visita ao meu apartamento. Por exemplo, pode dizer
que foi avisar-me de que suspeitava de Schulz... Quanto a
mim, não farei comentários a respeito. Afinal, você
colaborou comigo...
O homenzinho suspirou fundo, pôs uma pílula na boca e
disse:
— Muito obrigado!
Seu alivio fora tão grande que a asma havia diminuído
antes mesmo que o remédio fizesse efeito. De repente, a
preocupação voltou a transparecer em sua face. Perguntou:
— Você acha que terei tempo de vender minhas ações
da mina de diamantes, antes de...
— Suits interrompeu-o com uma gargalhada. Era
cômico aquele homem, a pensar em suas finanças no
mesmo instante em que soubera estar livre da prisão. Como
esperava uma resposta, o agente disse:
— Creio que não deve preocupar-se. Os diamantes
naturais sempre valerão muito mais que os sintéticos.
Lembre-se do que aconteceu com as pérolas: no primeiro
momento, foi uma correria, mas hoje uma pérola natural
vale muitas vezes o preço de uma cultivada, embora com a
mesma aparência. E ignoramos se Robert Prest cometeu
algum engano em suas fórmulas...
Estavam chegando à Delegacia. Suits deteve o carro e
cortou o assunto.
— Acompanhe-me — pediu. — Esse aí não pode
escapar.
Os transeuntes viram-no subir a escada apoiado ao
ombro de Bebil e levando uma pasta de couro debaixo do
braço, ambos sujos de barro e com as roupas em desalinho.
Dirigiram-se logo ao gabinete do inspetor Lyon King,
que os recebeu com espanto ao vê-los entrar naquele estado.
— De onde vêm desse jeito e a esta hora? — gritou,
olhando o agente e seu companheiro de alto a baixo.
Suits largou-se sobre uma poltrona e indicou outra ao
homenzinho.
— Sente-se, Bebil — disse-lhe.
Bebil sentou-se na borda da poltrona, desajeitado ante o
inspetor gritão. Este insistiu na pergunta:
— Não vai dizer-me, Suits, o que aconteceu? — bradou.
— Acabo de prender o assassino de Robert Prest.
Conhece esta pasta?
King arrebatou de suas mãos a famosa pasta de couro de
crocodilo e exclamou:
— Você está louco, Suits? Kimbell não pode ter fugido
da cela da morte.
— Nada disto, inspetor — replicou o agente. — Kimbell
continua na cela da morte, mas não é o assassino. Mande
dois homens lá em baixo com uma padiola: o verdadeiro
criminoso está em meu carro, ferido em uma perna. Vai
precisar de cuidados médicos, também, de modo que avise o
médico de plantão.
King abriu a boca de espanto, revirando a pasta em suas
mãos, sem se decidir a agir, até ver a expressão de dor de
Suits ao aferrar os dedos no braço da poltrona.
— Que é que você tem?
— Pouca coisa, creio: um pé quebrado.
O inspetor não hesitou mais. Começou a tocar
campainhas à direita e à esquerda, enquanto resmungava:
— Se é verdade que Kimbell não é o assassino de Prest,
vai haver uma confusão dos diabos! Este Suits me arranja
cada uma...
Entrementes, Arnold Bebil, encolhido na poltrona,
procurava passar despercebido, meio espantado com a
repentina vitalidade do inspetor.
CAPÍTULO DÉCIMO-PRIMEIRO
EPÍLOGO

O erro judicial, que poderia ter custado uma vida


inocente, provocou enorme comoção, principalmente pela
relação do caso com a descoberta da fórmula de fabricação
de diamantes artificiais. Os jornais deram tiragens especiais,
espalhando o noticiário pelos quatro cantos da terra.
Mas, como sempre sucede, depois da tempestade veio a
bonança. Frederick Schulz foi julgado e condenado à morte,
depois de confessar minuciosamente seu crime. Queria o
segredo de Robert Prest para vendê-lo a uma potência
estrangeira, para a qual já trabalhava ao vir para os Estados
Unidos.
Iniciou-se um movimento popular no sentido de ser
proposto o Prêmio Nobel de Física, postumamente para o
inditoso inventor. Foi feita uma coleta para a ereção de um
monumento à sua memória.
Depois disso, o caso foi caindo aos poucos no
esquecimento do público, substituído por outros
acontecimentos mais atuais, até que desapareceu
completamente do noticiário jornalístico e das palestras...
— Meu pai teria sido executado se você não percebesse
que ele não tinha condições físicas para escalar o muro do
jardim de Prest...
Suits mal escutava o que Mary Kimbell dizia, absorto
em contemplá-la. Como estava bonita com aquele vestido!
Ou não era o vestido, e sim ela própria, o que o
impressionava tanto? Sim, era ela, apenas ela! Via-a quase
todos os dias, desde que inocentara seu pai, e cada vez a
admirava mais.
— Ouça-me, Mary — interrompeu-a. — Você gostava
muito de Frederick Schulz?
Ela enrubesceu. Ele lhe perguntava se amava o alemão?
Não, agora percebia que nunca o amara. Tivera apenas uma
admiração exagerada por sua incomum beleza masculina e
pela finura com que a tratava. Compreendia que amava pela
primeira vez, e que o alvo de seu amor era Guy Suits.
Respondeu:
— Você sabe que não, e que...
Ele não a deixou terminar. Ainda não podia ficar de pé
devido à perna engessada, mas atraiu-a para si, puxando-a
por um braço.
— E será de mim que você gosta?
Ansiava por ouvi-la dizei que sim. Conservou-a muito
perto de si, sem largar seu braço.
— Sim, é de você! É de você! — gritou ela.
Ele a puxou novamente, forçando-a a baixar a cabeça ao
nível da sua. Quando seus lábios iam unir-se, Arnold Bebil
assomou à porta da sala, piscou repetidas vezes e deu meia
volta, pondo uma pílula na boca.

A seguir:
ANATOMIA DE UM ATENTADO, novela trepidante,
escrita dentro de uma técnica especial, cheia de lances
imprevisíveis, com amor, petróleo, cobiça e ironia. Não
perca! Em todas as bancas?

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