Você está na página 1de 18

VIDAS SECAS

Uma peça pelo 3° ano A

Escrito por

Elisa Paulovich

Baseado no romance Vidas Secas de Graciliano Ramos

Professora Caroline Colégio Adventista de São José dos


Giglio Campos
EXT. DESERTO DO SERTÃO - DIA

O FILHO MAIS NOVO entra se arrastando pela PORTA DOS FUNDOS


da Capela.

Quando ele chega no meio do caminho, ele CAI NO CHÃO.

SINHÁ VITÓRIA entra desesperada e corre até o filho gritando


pelo marido, deixando suas coisas para trás.

SINHÁ VITÓRIA
FABIANO! FABIANO! Vem acudir o
menino!

FABIANO entra no auditório, e vai até o filho mais novo.


Mexe com o pé. Agora vira ele.

FABIANO
(irritado)
Anda, excomungado.

Ele olha para a esposa.

FILHO MAIS NOVO


(fraco e cansado)
Eu acho que a gente tem que voltar.

O FILHO MAIS VELHO entra e recolhe as coisas da mãe do


corredor. Depois, ele corre pra perto da família, deixa as
coisas no chão e ajuda o pai a LEVANTAR O IRMÃO, o apoiando
nos ombros de ambos.

FILHO MAIS VELHO


(para FABIANO)
A gente não tá indo pro lugar
errado?

SINHÁ VITÓRIA
(pegando as suas coisas
no chão)
Eu já num aguento mais essa miséria
do cão.

Eles o levam para O PRIMEIRO DEGRAU.

FILHO MAIS NOVO


Tudo dói. Eu tô cansado.

A família se senta e decide comer os farelos que sobraram da


última refeição.

TUDO CONGELA.

O NARRADOR entra no palco.


2.

NARRADOR
Essa é a história de uma família
que vaga pelo sertão do Nordeste,
liderada por um homem bruto e rude,
Fabiano...

FABIANO
Eu num vou procurar içá pra a gente
não, Sinhá.

NARRADOR
Sua esposa Vitória, que sabe fazer
contas...

SINHÁ VITÓRIA
Não precisa disso, homem. A gente
ainda têm uma macaxeira.
(ela pega as mãos de
Fabiano)
Vai dar pra bastante tempo.

NARRADOR
E os filhos deles.

FILHO MAIS NOVO


E se o pai matar o papagaio pra
comer?

FILHO MAIS VELHO


Ele num vai fazer isso.

FILHO MAIS NOVO


Será?

FILHO MAIS VELHO


Eu não deixo.

FILHO MAIS NOVO


Melhor que painho decidir matar
Baleia.

FILHO MAIS VELHO


Falando nela, cadê Baleia?

BALEIA entra pela coxia, mas os meninos não a veem. Sinhá se


intromete na conversa.

SINHÁ VITÓRIA
(para o MAIS NOVO)
Painho não vai matar baleia.

NARRADOR
Ah, e a cachorrinha Baleia.
3.

Fabiano manda cada filho para um lado.

FABIANO
(para o MAIS VELHO)
Você vai pra lá.
(para o MAIS NOVO)
E você fica com a sua mãe.

FILHO MAIS VELHO


(pro MAIS NOVO)
Calma, cabra, num pensa nisso.
Painho e mainha sabem o que eles
fazem.

FABIANO
Eu num vou matar Baleia.

Os filhos fazem carinho na Baleia.

FABIANO (CONT'D)
Mas se precisar, eu mato o louro.

SINHÁ VITÓRIA
(brava com Fabiano)
Abibolô, foi? Espera mais um pouco.
Nós vamos achar uma casa nova.

Baleia vai até o lado de Sinhá. Os meninos a notam e vão até


ela.

FILHO MAIS NOVO


Baleia!

FILHO MAIS VELHO


Oi, Baleia, você sumiu...

FABIANO
Manda os meninos um pra cada lado,
Sinhá.

SINHÁ VITÓRIA
Vamos, meninos.
(para o MAIS NOVO)
Você vai comigo.

A família vai em direção à PORTA PRINCIPAL da Capela. Os


meninos e Sinhá andam cada um em um corredor. Fabiano fica
no palco.

FABIANO
(para SINHÁ)
Vou levar Baleia pra caçar um preá
pra você.
4.

Eles andam um pouco mais. O FILHO MAIS VELHO para no meio do


corredor e olha algo ao longe.

Fabiano, Sinhá e os filhos OLHAM PARA O PALCO, como se


estivessem vendo a casa.

FILHO MAIS VELHO


Mainha, eu achei uma casa pra
gente!

SINHÁ VITÓRIA
Fabiano, Fabiano, eu achei uma casa
pra nós! Venha cá, homem!

Fabiano vai até Sinhá e todos comemoram.

EXT. FAZENDA - MAIS TARDE

O casal e seus filhos entram na casa e se sentam numa


cadeira acolchoada.

NARRADOR
Agora, apesar de algumas
inconveniências, eles estavam
contentes…

O PATRÃO entra pela coxia.

NARRADOR (CONT'D)
Até que o verdadeiro dono da
fazenda apareceu querendo
explicações.

O patrão ignora totalmente a presença de Fabiano e avança em


Sinhá e nos meninos, mas Fabiano se coloca na frente da
família, e Sinhá Vitória protege os filhos atrás dele, os
abraçando.

PATRÃO (FURIOSO)
Saiam já daqui! O que vocês estão
fazendo na minha terra?

FABIANO
(apreensivo)
Senhor, eu sou bom trabalhador.

PATRÃO
Não quero saber se é bom ou não,
esse terreno é meu e eu quero vocês
fora daqui!
5.

FABIANO
(implorando)
Por favor, meus filhos não tem
teto. Eu recebo pouco, piedade.

PATRÃO
Se é assim, vai ser do meu agrado
você trabalhar aqui.

Fabiano e o novo patrão trocam um aperto de mão e o patrão


vai embora.

NARRADOR
Fabiano, que agora tem dinheiro,
pediu pra Sinhá Vitória fazer
contas e dizer quanto ela
precisaria que ele levasse a fim de
comprar os mantimentos para a
família.

SINHÁ VITÓRIA
Num sai do caminho e se perde,
Fabiano. Volta logo.

Fabiano acena com a cabeça.

NARRADOR
Embora Fabiano tenha dito que iria
somente ao mercado, não foi isso
que ele fez. Sempre paranoico
achando que alguém o enganaria, ele
decide ir ao bar pra se livrar
desses pensamentos.

Fabiano vai ao bar.

INT. BAR - TARDE

Chegando lá, o SOLDADO AMARELO o chama.

SOLDADO AMARELO
Ei, vem jogar baralho. Vem, vamos.

NARRADOR
Sem pensar duas vezes, Fabiano
entra no jogo.

SOLDADO AMARELO
Fica esperto. Eu vou colocar uma
carta assim, ó.

O Soldado Amarelo mostra como deve ser feito, e Fabiano o


imita de um jeito amador. Outros jogadores entram no jogo.
6.

NARRADOR
Na mesa se juntam mais jogadores, e
logo a partida se inicia.

Fabiano só observa os jogadores.

SOLDADO AMARELO
Vai, homem! Joga a carta!

Fabiano joga a carta.

SOLDADO AMARELO (CONT'D)


(animado)
TRUCO!

O soldado levanta de supetão e pega o dinheiro apostado.


Fabiano se levanta da mesa furioso e quando vai sair, o
soldado o puxa pelo ombro.

SOLDADO AMARELO (CONT'D)


Onde você pensa que vai, seu
caipira pé rapado?

Fabiano se vira abruptamente.

FABIANO
Me solte, fi duma égua!

Fabiano dá um SOCO no SOLDADO AMARELO. O soldado revida, e


chama outros policiais pra prendê-lo.

Quando Fabiano se vira pra dar o segundo soco, outros


POLICIAIS puxam ele pelo antebraço e pela camisa.

Eles conseguem afastá-lo do soldado. Ambos os policiais dão


um soco na barriga e nas costas de Fabiano, e o jogam na
cadeia.

INT. CADEIA - NOITE

Fabiano está pensativo na cadeia, sentado no chão.

NARRADOR
Na cadeia, Fabiano tem tempo para
refletir o que tinha acontecido.
Ele pensava na sua família, e se
estava fazendo o máximo que podia
para prover o que a família
precisava.

Os soldados abrem a cela e liberam Fabiano.


7.

NARRADOR (CONT'D)
Fabiano foi liberado de manhã. Ele
queria voltar pra casa, e
reencontrar a esposa e os filhos e
ver se Baleia estava bem. Quando
voltou pra casa, se surpreendeu com
o luxo da família.

INT. FAZENDA - MANHÃ

Fabiano volta pra casa.

SINHÁ VITÓRIA
Que aconteceu, Fabiano? Você tá uma
inhaca...

FABIANO
Xinguei a mãe do soldado alesado
com a roupa da cor do canarinho.
Mas num fresque não. Não me amole
mulher, vou esfriar a cabeça no
trabalho.
(pausa)
Eu só quero deitar numa cama.

SINHÁ VITÓRIA
(impaciente)
Eu fiquei preocupada contigo,
homem. Os menino também.

Fabiano nota Sinhá com uma SANDÁLIA BONITA e os filhos com


duas CAMISETAS em bom estado.

FABIANO
Ao invés de comprar uma cama pra
gente, compra essa sandália aí, as
camisetas dos meninos e--

SINHÁ VITÓRIA
(sobrepondo Fabiano)
É culpa sua que a gente tá sem
dinheiro, Fabiano.

FABIANO
Pode ser que sim, pode ser que não.
E a gente conseguiu saí do inferno
que a gente vivia, Sinhá, olha isso
aqui. Nós não temos cama, mas temos
teto pra morar.

NARRADOR
Sinhá se preocupava se eles
continuariam na fazenda.
(MORE)
8.

NARRADOR (CONT'D)
Se Deus quisesse, que assim fosse,
mas se não, rezava para que
conseguissem um lugar melhor.

Sinhá e Fabiano vão um pra cada lado, e ela é seguida pelo


filho mais velho, e Fabiano, pelo mais novo.

NARRADOR (CONT'D)
O menino mais novo estava
intrigado. Nunca tinha ouvido
aquelas palavras antes. Sandália...
Camiseta... Ele gostava de aprender
palavras novas, mas era difícil,
porque os seus pais só falavam o
necessário, ou nem isso. Um dia,
ele resolveu perguntar uma coisa
pra sua mãe.

Sinhá está sentada com o filho mais velho num canto.

O mais novo se aproxima.

FILHO MAIS NOVO


Mainha, o que é o inferno?

SINHÁ VITÓRIA
Um lugar ruim, rim demais.
(pensa um pouco)
Quente.

FILHO MAIS VELHO


Você já viu o inferno?

FILHO MAIS NOVO


(irritado)
Quê isso, cabra? Isso é pergunta de
se fazer pra mainha? Vai falar com
Baleia, vai, macho.

Ele faz o que o irmão diz.

FILHO MAIS VELHO


(conversando com Baleia)
Eu falei pra mainha do inferno… Ela
num me disse nadinha.

NARRADOR
Enquanto isso, Baleia pensava no
osso que roeria após o jantar.
9.

FILHO MAIS NOVO


(refletindo)
Eu sei o que é o inferno Baleia. O
inferno é o tempo ruim.

NARRADOR
O tempo ruim. O tempo da seca,
quando os seus pés doíam, e ele não
queria mais andar. Isso é o
inferno. O irmão mais velho se
junta aos dois.

Sinhá puxa o menino mais novo pra procurar piolhos no cabelo


dele, e o mais velho se afasta levemente deles.

NARRADOR (CONT'D)
Os meninos observavam os pais nas
atividades diárias. Pro mais novo,
a mãe era uma rainha, e ela mandava
em cada preá, em cada papagaio e em
cada uma das Baleias que existiam
no mundo inteirinho.
Para o mais velho, Fabiano era um
herói, vestindo um guarda-peito,
botas com esporas, chapéus e
perneiras. Quando ele subia num
boi, o menino imaginava o seu pai
num alazão, numa postura majestosa.

FILHO MAIS VELHO


(virando a cabeça pro
mais novo)
Que que você vai ser quando
crescer?

FILHO MAIS NOVO


Painho.

FILHO MAIS VELHO


Eu vou ser um vaqueiro, ninguém vai
rir de mim nunca mais.

Sinhá puxa a cabeça do menino com força.

FILHO MAIS NOVO


Mainha, por que a senhora tá
tirando bixinho?

Sinhá fica quieta. Os dois olham pra ela.

NARRADOR
Então Sinhá finalmente disse.
10.

SINHÁ VITÓRIA
Nós vamos numa festa.

FABIANO pega as roupas da família e traz pros meninos. Sinhá


libera os filhos para eles se trocarem, e ela vai à coxia.
Ela logo volta para o palco.

FABIANO
(impressionado)
Sinhá…

SINHÁ VITÓRIA
Avalie, homem.

Sinhá dá dois passos pra trás se mostrando pra família. A


família, sai de casa e eles andam pelo corredor do meio. Os
filhos vão à frente dos pais, e Sinhá é a última, e caminha
com dificuldade.

FABIANO
(para os filhos)
Caminha com cuidado.

Eles andam mais um pouco.

INT. FESTA - MOMENTOS DEPOIS

Agora começam a conversar com a PLATEIA.

NARRADOR
Ao chegarem à festa, se deparam com
tanta gente que se perdem de vista.
As horas se passam e cada um se
encontra num lugar.

FABIANO e o MAIS VELHO conversam com o lado dos MENINOS, e


SINHÁ e o MAIS NOVO com o lado das MENINAS.

NARRADOR (CONT'D)
Os meninos, Sinhá Vitória e Baleia,
sentados na calçada, observam as
luzes, as pessoas, e ouvem a
conversa, a música e pensam em tudo
o que nunca tinham visto.

Fabiano brinda com dois desconhecidos (SAMUEL ROSSETO e JOÃO


VIANA) e o SOLDADO AMARELO está sentado junto deles.

NARRADOR (CONT'D)
Fabiano, depois de ter bebido,
xinga e gesticula contra o soldado
amarelo.
(MORE)
11.

NARRADOR (CONT'D)
Amaldiçoa-o e então se levanta,
limpando as mãos nas calças e
procurando pela família a passos
trôpegos.

TODA A FAMÍLIA VOLTA PARA CASA.

EXT. FAZENDA - MANHÃ

Sinhá Vitória está contando o salário de Fabiano.

NARRADOR (CONT’D)
Dias depois, a família se encontra
na fazenda. Sinhá Vitória faz as
contas do pagamento do mês e diz
para Fabiano ir à cidade receber o
dinheiro.

SINHÁ VITÓRIA
(fazendo contas com GRÃOS
DE FEIJÃO)
É, são mil réis. Vai falar com o
patrão, ele vai pagar.

NARRADOR
Fabiano vai a cidade e ao passar
pela praça onde o encontrou, se
lembra do soldado mais uma vez.
Decide ignorar o pensamento e se
dirige ao escritório do patrão.

INT. ESCRITÓRIO DO PATRÃO - MAIS TARDE

Fabiano chega no escritório de Seu Tomás e se apresenta.

FABIANO
Boa tarde, senhor. Vim buscar o
pagamento.

PATRÃO
Certo. Tá aqui.

Recolhe cinquenta reais e entrega pro vaqueiro.

FABIANO
Com todos o respeito, mas não falta
nada?

PATRÃO
Não, não tem nada faltando. Eu
mesmo já tinha conferido antes. Não
tem a necessidade de consternar.
12.

FABIANO
(não entendendo a última
palavra)
Tudo bem... Agradecido, patrão.

Fabiano sai da sala e então faz o caminho de volta à


fazenda.

INT. FAZENDA - TARDE

Fabiano entrega o dinheiro para Sinhá Vitória.

NARRADOR
Mais tarde, Vitória conta o
dinheiro que Fabiano recebeu.
Fabiano está nervoso, andando de um
lado pro outro.

FABIANO
(teatralmente)
“Não tem a necessidade de infurná”.
Cozinhá. Iscarná. Cangalhá.
Cabritá… Não, isso num tá certo.

SINHÁ VITÓRIA
Calma, homem. Se não eu vou me
perder.

Fabiano se senta no chão.

SINHÁ VITÓRIA (CONT'D)


Tá faltando.

Fabiano vai e começa a contar o dinheiro desesperado.

SINHÁ VITÓRIA (CONT'D)


Para, homem, eu vou me perder.

FABIANO
Eu num posso discuti com o patrão.

SINHÁ VITÓRIA
Pode.

FABIANO
Eu num posso não, Sinhá, entenda
isso de uma vez.

SINHÁ VITÓRIA
Pode sim. Se você num for, eu vou.

Fabiano dá as costas para Sinhá.


13.

NARRADOR
Ele sai da cozinha e volta a pensar
nas palavras difíceis que tinha
dito, sentindo-se envergonhado por
não ter entendido quase nada,
tentando até imitar algumas delas.

Sinhá e os filhos vão para a COXIA.

EXT. FAZENDA - SEMANAS DEPOIS

Fabiano ara a terra, e planta algumas sementes.

NARRADOR
Semanas depois, enquanto Fabiano
trabalha na fazenda, arando a
terra, ouve passos lentos e, ao
olhar pra cima, se depara com o
SOLDADO AMARELO. Ele quase não
acredita quando vê que o homem está
perdido e assustado.

SOLDADO AMARELO
(desesperado)
Por favor, me ajude. Tenho que
voltar para a cidade, mas me perdi.

NARRADOR
Fabiano olha para ele e pensa em
matá-lo. Lembra-se da humilhação
que sofreu. Ele têm a vontade de se
vingar, e entra num conflito
profundo sobre manter sua honra e
deixá-lo ir embora.

Ele pega o soldado amarelo pelo colarinho e o joga no chão.

SOLDADO AMARELO
(assustado)
Por favor, não faça isso, me ajude,
eu prometo que nunca mais volto!

Fabiano vira as costas e deixa o soldado ir pra casa.

O soldado se levanta e corre pelo corredor principal, saindo


pela PORTA PRINCIPAL da capela.

NARRADOR
O soldado vai embora, e Fabiano,
pensativo, volta pra casa pensando
no que aconteceu.
(pausa)
Tudo continua igual, exceto por
Baleia, que está doente.
(MORE)
14.

NARRADOR (CONT'D)
Fraca e com feridas profundas pelo
corpo, distancia-se cada vez mais
da família.

EXT. FAZENDA - MEIO-DIA

FILHO MAIS NOVO


Mainha, Baleia vai melhorar?

Sinhá fica em silêncio.

FILHO MAIS VELHO


Vai.

FILHO MAIS NOVO


Painho disse que Baleia tá brava
com a gente. É verdade? Ela tá com
raiva?

Silêncio.

SINHÁ VITÓRIA
(quase chorando)
Deus vai cuidá da Baleia agora.

Três tiros de espingarda são ouvidos. Os meninos assustam,


mas não fazem nada. Sinhá engole o choro.

O mais novo olha pra ela, e o MAIS VELHO dá alguns passos


pra trás.

Fabiano entra chorando, e toma o corredor do meio, enquanto


os meninos tomam o da esquerda.

Sinhá junta as coisas de Baleia. Dois ossos roídos, um galho


de um arbusto, e um brinquedo velho de cachorro. Eles
enterram as coisas de Baleia no canto dos instrumentos.

NARRADOR
Os dias continuam passando para a
família, e com eles, os urubus vão
embora, e o canarinho amarelo
gritava novamente por causa do sol.
Fabiano tentava ignorar a seca, e
Sinhá e os meninos rezavam todas as
manhãs e todas as noites
descontentes.

SINHÁ VITÓRIA
Sinhô…

FILHO MAIS NOVO


Abençoa a mainha…
15.

FILHO MAIS VELHO


Painho arando…

FILHO MAIS NOVO


E Baleia que tá aí caçando preá com
o senhor. Porque aí é cheio de
preá.

FILHO MAIS VELHO


Dá um painho novo pra Baleia aí no
céu com o senhor, e deixa ela
lamber as mãos grandes do painho
novo dela, brincando no chiqueiro.

SINHÁ VITÓRIA
Em nome do pai…

FILHO MAIS VELHO


Du filho…

FILHO MAIS NOVO


Do Espírito Santo e da Baleia…

Sinhá ri.

SINHÁ VITÓRIA
‘Mém.

NARRADOR
Assim como os meninos pediram pra
Deus, Baleia dormiu, e acordaria
feliz, num mundo cheio de preás. E
lamberia as mãos de Fabiano, um
Fabiano enorme.

NARRADOR (CONT'D)
As crianças se espojariam com ela,
rolariam com ela num pátio enorme,
num chiqueiro enorme. O mundo
ficaria todo cheio de preás,
gordos, enormes.

A família vai para a COXIA e volta com suas coisas.

NARRADOR (CONT'D)
Eles sabem que não há outra
alternativa a não ser recolher o
pouco que têm e dar início a outra
árdua trajetória pelo vasto chão de
terra seca.

SINHÁ VITÓRIA
Será que dessa vez a gente vai pra
cidade?
16.

FABIANO
(ri sem esperança)
É, talvez. A gente encontra
trabalho lá e os meninos vão pra
escola. Talvez.

EXT. DESERTO DO SERTÃO - OUTRO DIA

Fabiano lidera a família. Ele vai pelo corredor do meio, o


filho MAIS VELHO pelo corredor esquerdo e o MAIS NOVO e
SINHÁ pelo esquerdo.

NARRADOR
Ela se emociona com a ideia e,
juntos, vão murmurando pelo
caminho, pensando em como a vida
pode ser diferente e como o mundo
deve ser maior do que o que
conhecem dele. Agora, os fortes do
sertão almejam a chegada na cidade,
com a esperança de que possam
realizar seus objetivos num novo
lugar.

NARRADOR (CONT'D)
Pouco a pouco uma vida nova, ainda
confusa, se foi esboçando. Eles se
acomodaram num sítio pequeno, o que
parecia difícil pra Fabiano, criado
solto no mato. Cultivariam um
pedaço de terra. Mudar-se-iam
depois para uma cidade, e os
meninos frequentariam escolas,
seriam diferentes dele.

NARRADOR (CONT'D)
Sinhá Vitória esquentava-se. Iriam
para diante, alcançariam uma terra
desconhecida. Fabiano estava
contente e acreditava nessa terra,
porque não sabia como ela era nem
onde era.

NARRADOR (CONT'D)
Repetia docilmente as palavras de
Sinhá Vitória, as palavras que
Vitória murmurava porque tinha
confiança nele. E andavam para o
sul, metidos naquele sonho.

Pausa.
17.

NARRADOR (CONT'D)
Uma cidade grande, cheia de pessoas
fortes. Os meninos em escolas,
aprendendo coisas difíceis e
necessárias. Eles dois velhinhos,
acabando-se como uns cachorros,
inúteis, acabando-se como Baleia.

A primeira cena se repete, mas dessa vez, o filho MAIS NOVO


se arrasta pela porta dos fundos da Capela. Quando ele chega
quase na metade do caminho, ele CAI NO CHÃO.

SINHÁ VITÓRIA
(cansada)
Fabiano… Acode o menino…

FABIANO entra no auditório.

Ele vai até o filho MAIS VELHO, ao lado da mãe. Eles se


olham. O filho acena para o pai em direção ao MAIS NOVO.

Fabiano mexe com o pé. Vira o filho.

FABIANO
(com compaixão, mudado)
Vamos, filho. Acorda.

Ele olha para Sinhá Vitória. Depois, de volta para o menino.


Sinhá senta ao lado da cabeça do filho e faz cafuné nele.
Fabiano se abaixa e levanta a cabeça do filho, e coloca os
pés dele em cima da espingarda.

NARRADOR
O que eles iriam fazer? Chegariam a
uma terra desconhecida e
civilizada, ficariam presos nela. E
o sertão continuaria a mandar gente
para lá. O sertão mandaria para a
cidade homens fortes, brutos, como
Fabiano, Sinhá Vitória e os dois
meninos.

Você também pode gostar