Você está na página 1de 33

DAYTONA

Bruno Bandido

PERSONAGENS:
DÉBI : Débora Sttér
MILA : Luísa Furtado
ISADORA : Livia Prestes
FRED : Bruno Bandido
JONAS : Kleber Félix
JULIO VERME : Rodrigo Linguinha
CARLITO ROCKS : Mário Mathias

0
DÉBI está tomando banho de sol. MILA sentada ao seu lado,
com roupas masculinas, ela também tem maneirismos e gestos
masculinos, enrola um fumo.

DÉBI – Isso é maconha?

MILA – Tabaco.

DÉBI – Ah. (pausa) Tô com uma puta vontade fumar maconha.


Cê não quer descer ali e perguntar se o Fred tem um pouco?

MILA – Daqui a pouco.

DÉBI – Pô, Mila, o que custa?

MILA – Relaxa, ô cuzona.

DÉBI – Cê devia aparecer mais vezes. Eu sinto sua falta.

MILA – É, né?

DÉBI – É.

MILA – A namorada do meu pai também falou isso. Eu te


contei que ele tá namorando né?

DÉBI – Não.

MILA – Ele tá.

DÉBI – Ela falou que sente sua falta?

MILA – Sabe a Vanessa? Que trabalha no Poupatempo?

DÉBI – Ah, eu faço as unhas da Vanessa. A Vanessa é ótima.

MILA – É. Então. Meu pai. A Vanessa.

DÉBI – A Vanessa tá namorando o seu pai?

MILA – Pois é.

DÉBI – Que é isso!

MILA – Pois é.

DÉBI – Eu vou falar com a Vanessa.

MILA – Cê acha que eu já não tentei? Ela tá na dele,


coitada. Não sei qual o problema dela.

1
DÉBI – Eu vou falar com a Vanessa.

MILA – Ela falou isso. Quando me viu fumando. Perguntou se


era maconha. Eu já te falei que eu tô morando na baia do
meu pai, né?

DÉBI – É sério?

MILA – Eu tô.

DÉBIO – Caralho, Mila...

MILA - É temporário. Eu tô sem grana total, Débi. Eu não


quero vender a camionete. Porra, é a única coisa que eu
tenho a porcaria daquela camionete.

DÉBI – Fica lá em casa, sua louca. Ou aqui na oficina. O


Fred deixa cê ficar aqui.

MILA – Eu já fiz um acordo com o Fred.

DÉBI – Um acordo?

MILA – Eu tenho dormido no sofá. É mó pequeno, o sofá do


meu pai. Até pra mim. Aí quando ele acorda, pra ir
trabalhar, eu passo pra cama dele, tá ligada? Eu sei. Mas,
porra, eu preciso de um pouco de cama. Esticar as pernas.
Só que esses dias, numa noite dessas, eu escutei ele
comendo a Vanessa. A vaca gemia mó alto. A cama, parecia
que eles iam quebrar a cama. A Vanessa tem dormido lá
seguido, desde antes de eu voltar. É claro que eles trepam
na porra da cama. Mas sei lá, ainda não tinha me passado
pela cabeça que eu ia toda manhã dormir na cama que eles
tinham trepado. Mano, eu peguei um nojo. Um nojo. Só
consegui dormir às seis da manhã. Meia hora depois meu pai
acordou, dizendo pra eu ir pro quarto. Ah, eu mandei ele à
merda, meu, tá ligada? A Vanessa veio da cozinha toda
surpresa perguntando o que tinha acontecido. Eu falei. Eu
ouvi vocês trepando a porra da noite toda na merda da cama.
Mó idiota, né? Pra que falar isso? Ela ficou toda sem
jeito. É claro que eles trepam, ué. Na cama! Onde mais iam
trepar? Um casal de velho? Na cama. Mas, sei lá, eu falei.
Falei mesmo. Peguei mó nojo.

As duas ficam quietas. Débi olhando pra cima. Mila fumando


seu cigarro.

Blecaute. Canción del Marinero, versão da banda Rialengo,


começa a tocar.

2
ISADORA está sentada em cima de FRED, espremendo cravos de
seu nariz.

JONAS está sentado ao lado, no chão, jogando videogame.

Fred coloca as mãos na bunda de Isadora.

ISADORA – Para, Fred. Deixa eu me concentrar.

FRED – Tá doendo, porra.

JONAS – Cês já perceberam como não existe fã de Paralamas


do Sucesso?

FRED – Ai, porra.

ISADORA – Deixa de ser chorão.

JONAS – Tipo, tem gente que gosta dos Paralamas. Eu não


acho ruim. Mas não tem fã, fã!

FRED – Isadora, deixa meus cravos quietos.

ISADORA – Eles têm cor de bicho. Esses que são bom de


tirar.

FRED – Eles tão aqui a miliano. Nunca me abandonam

ISADORA – Tão tudo morto.

FRED – Nada, nós até troca umas ideia. São meus


companheirinho.

JONAS – E Paralamas nem é pior que um monte bandas que tem


fã. Eu não acho. Mas não é uma banda de fã, sacam?

FRED - Ai, caralho!

ISADORA – Doeu mesmo foi?

FRED – Sim, porra.

ISADORA – Tem que tirar, Fred.

FRED – Me dá um beijo, Isadora. (coloca as mãos na bunda de


novo)

ISADORA – Para, Fred, eu preciso tirar esses cravos.

FRED – Na verdade, cê não precisa.

3
ISADORA – Eu gosto. Eu GOSTO de tirar os cravos. Eu tenho
um prazer, quase sexual, em tirar esses cravos de você.

FRED – A gente pode ter um prazer exclusivamente sexual


(aperta a bunda dela mais forte).

ISADORA – Eu não consigo transar com você com esses cravos


aí.

FRED – Como assim?

ISADORA – Não é que eu tenha nojo deles. Eu não tenho.


Ontem a gente tava transando. Eu queria... (espreme com
força)

FRED dor – Ai, caralho.

ISADORA – Eu olhei pra você, pra esses cravos, eu tinha que


tirar eles. Eu nem consegui gozar, porque eu só fiquei
pensando em tirar eles.

JONAS – Meu deus.

FRED – Cê viu, cara? Eu tenho que deixar ela tirar meus


cravos pra ela conseguir dar pra mim.

JONAS – Se eu fosse você eu não deixava.

ISADORA – Jonas! Por quê?

JONAS – Tirar seus cravos parece ser um grande lance pra


ela. E se ela tirar todos? Ela não vai ver mais nada em
você.

ISADORA – Nada a ver.

FRED ao mesmo tempo – Ei, levanta.

ISADORA – Fred, olha esse seu nariz. Olha sua testa, cara.
Cê tem milhões de cravos, cara. Fica tranquilo. Eu vou te
amar pra sempre. Eles nunca vão acabar.

FRED – Tá, deu por hoje.

ISADORA - Fica quieto, deixa eu tirar só esse. Só esse.


Depois eu saio. (Fred fica quieto, Jonas segue jogando
videogame, ela fica tentando tirar).

FRED – Só esse.

4
ISADORA - Tá difícil esse, tem uma pinça? (pausa) Jonas,
tem uma pinça?

JONAS – Ali, na caixa de ferramenta, tem um alicate.

ISADORA – Eu tô falando sério, eu...

FRED – ...Cê tá viajando, brother. Claro que existe fã de


Paralamas do Sucesso.

JONAS – Não existe.

FRED – Claro que existe.

JONAS – Me diz um!

FRED – Não são tipos que frequentam exatamente o meu


círculo de amizade. Mas existem.

JONAS – Aposto que cê já viu um fã de Titãs, de Engenheiros


do Hawaii, deus me livre, de Legião Urbana, puta que pariu,
eles andam por aí, Los Hermanos, muito infelizmente. Essas
pessoas talvez não sejam do seu ‘círculo de amizade’, mas
você já viu. Mas fã de Paralamas eu duvido você ter visto.
Duvido. Enterro de anão, tá ligado? Filhote de pombo...

DÉBI e MILA entram falando.

DÉBI – Fred, tem um beque?

ISADORA – Não, tem que comprar.

Débi caminha até o lado de Isadora e Fred e fica olhando a


retirada de cravos.

MILA – Eu vou pedir pro Julio trazer. Ele falou que nos
ajuda no lance do fliperama.

JONAS – O Julio Verme?

MILA – O Julio Verme. Ele tem experiência na área já.

FRED – Em fliperama?

MILA – Em roubar.

JONAS – Que bosta o Julio Verme rouba?

MILA – Bebida, mano. Mercados. Eu bebo às custas do Julio


Verme desde sempre.

5
FRED – Ele não foi fichado por roubar mercados.

MILA – É porque ele foi roubar carne.

ISADORA – Carne?

DÉBI – Que bonitinho! O Fred bem comportadinho deixando


você tirar os cravos dele.

ISADORA – Comportadinho...

DÉBI – Quando a mãe tirava ele fazia um puta fiasco.

JONAS – Sua mãe tirava seus cravos?

FRED – Dá pra cês calarem a boca?

MILA – Uns bifes. Ele foi roubar uns bifes. Pra fazer
churrasco na casa da mãe dele. Fazer uma preza sei lá.
Desses que vem embalado de mercado, tá ligado? Ele
conseguiu roubar. Ele já tinha saído do mercado. Mas alguém
viu na câmera e avisou o segurança. O segurança foi até a
porta e gritou, mó de boa, “Ô, Julio, vem cá”.

DÉBI – O segurança conhecia ele?

MILA – Não, ele não gritou pelo nome, sei lá. Ele chamou o
Julio Verme, de algum jeito. E ele voltou. Sei lá o que deu
nele que ele não saiu correndo. Mas voltou pra falar com o
segurança. Acho que ele ia só devolver os bifes. O gerente
foi mó escroto. Fez questão de chamar os porco, tá ligado?

FRED – Muito esperto.

JONAS – Esse é o Julio Verme.

MILA – Ele tem um bom coração, seus cuzão. Calem a boca.

(PAUSA)

DÉBI – Tá pretão esse cravo aí, né?

ISADORA – Não é? Eu precisava duma pinça.

DÉBI – Sabe que eu acho que eu tenho uma? Na minha bolsa.

ISADORA – Claro que cê tem!

Fred empurra Isadora.

6
FRED – Chega, sai de cima, Isa.

ISADORA – Ai, grosso.

FRED – Grosso pra mim é elogio.

DÉBI (pegando a bolsa em algum canto) – Nossa, o pai que


falava isso.

FRED – Ô, Débi, vai botar uma roupa?

DÉBI – Eu vou voltar pro sol.

Mila senta ao lado de Jonas, pega o segundo controle.

MILA – Bota pra dois aí.

FRED – Então volta.

MILA – Já vou, tô procurando a pinça.

FRED – Que porra de pinça! Bota a merda duma roupa se for


ficar aqui. Daqui a pouco entra cliente e...

DÉBI – ...Mano, olha essas fotos na parede? Elas não tão


nem de biquíni.

FRED – É só foto de oficina.

DÉBI – Eu não tenho que lembrar de novo que isso é uma


oficina de BI-CI-CLE-TA né? Cês não são tão fodão assim.

JONAS – Fala por ti.

ISADORA – Essas foto são uma merda mesmo. Cês tem um monte
cliente mulher, porra. As menininha entram aqui com as
bicicletinha e vê isso!

MILA – Eu gosto das fotos.

JONAS – Eu não.

DÉBI – Aí, nem o Jonas gosta.

FRED – É claro que o Jonas não gosta.

DÉBI – Por quê?

FRED – Por quê???

JONAS – Porque não tem nenhum pinto nelas.

7
DÉBI – Ah tá.

ISADORA – Miga, ele é gay. De verdade.

DÉBI – Quê?

MILA – Até eu já sabia.

DÉBI – Jonas, cê é gay de verdade?

JONAS – Sou, ué. Não sabia?

DÉBI – Como eu ia saber?

MILA – Até eu já sabia.

ISADORA – Ele trabalha aqui há dois anos, Débi.

FRED – Ela tinha uma queda por ele.

DÉBI – Fred!

JONAS – Quer dizer que ela queria dar pra mim, você sabia
disso, e mesmo assim não contou pra ela?

FRED – Por isso mesmo que eu não contei pra ela.

ISADORA – Não acredito, Débi.

FRED – Cê também sabia, Jonas. Não te faz de otário não.


Ela vive se botando pra cima de você.

JONAS – É o jeito dela.

DÉBI – Não é o meu jeito!

ISADORA – Coitada...

DÉBI – Né? Tanta insistência, tantas facadas na minha


autoestima.

ISADORA – Cê devia ter contado pra ela, Fred.

DÉBI para Jonas – E cê devia dar um pouco, pelo menos um


pouco, na porra da pinta, né Jonas?

JONAS – Ô loco.

FRED – Débi, vai te vestir.

8
DÉBI – Não entra ninguém nessa merda.

ISADORA – Deixa ela, bê.

JONAS – Bê?

FRED – Cala a boca.

JONAS – Débi...

DÉBI – O quê?

JONAS – Cê conhece alguém que é fã de Paralamas? Mas tem


que ser fã mesmo, fãzão.

DÉBI – Paralamas?

FRED – Do Sucesso.

MILA – Tem a Dani.

JONAS – Que Dani?

MILA – A DANIficada que eu dei no seu cu.

Todos riem, menos Jonas.

JONAS – Ô loco.

FRED – E aí, Mila, a camionete tá aí?

MILA – Não, né?

FRED – E aí?

MILA – Eu pego hoje de noite.

ISADORA – Não acredito que cês vão fazer isso.

MILA – Nem bota minhoca na cabeça dele, mina. Tá fechado.

ISADORA – Cê também gosta da merda desse jogo?

MILA – Claro que não.

ISADORA – Então?

FRED – Fica fria, Isadora. Vâmo comê um negócio lá em cima.

Fred sai com Isadora.

9
JONAS – Pega o controle aí, Débi.

DÉBI – Eu não sei jogar.

MILA – Eu te ensino, gata.

DÉBI – Eu vou botar uma roupa primeiro.

JONAS – Que botar roupa o caralho. Seu irmão que se foda.

Jonas vai consertar uma bicicleta.

MILA – Ele é chato né?

DÉBI – Ele é um bom irmão. É que tem umas coisa do pai na


cabeça dele. Poucas, ainda bem. Mas tem.

MILA – É, o véio de vocês não era de todo bem não.

DÉBI – Ô.

JONAS – Qual pai que é?

MILA – Ah, deve ter uns dois, né? (Jonas abre um sorriso,
Débi pega o segundo controle). Quando eu tiver meu moleque
vou ser mó brisa com ele, tá ligado? Ensinar a jogar bola.
A pegar umas mina.

JONAS – Meu pai bem que queria que eu jogasse bola, pegasse
umas mina.

DÉBI – Ele sabe que cê é viado?

JONAS – Viado. Ele é muito velho, coitado. Eu sou o mais


novo. Seis irmã na frente. Elas não deixam isso chegar nele
não. Mas ele deve saber. Claro. Teve uma época que ele tava
bem doente. Tipo, achando que ia morrer. Ele tinha umas
febres, uns delírios. No meio disso tudo, eu tava secando a
porra da testa dele, ele olhou pra mim e disse: a gente vai
pescar um dia, filho. Eu vou sair dessa e a gente vai
pescar um dia. Eu não tenho problema nenhum em pescar com
você.

DÉBI – Aí. Ele foi legal.

JONAS – Como se isso fizesse dele um cara decente. Puta que


pariu, né?

DÉBI – Sei lá. (pausa, para Jonas) Cê nunca namorou?

JONAS – Não.

10
MILA – Cê ficava com o Arthur, né?

JONAS – O Arthur.

DÉBI – Quem é?

JONAS – O filho da puta saiu dessa bosta de lugar e foi


morar na Noruega. Eu gostava mesmo do Arthur. Até hoje, foi
o único que eu gostava mesmo. Eu entendo porque a gente tá
aqui. A gente nasceu aqui. Mas que merda alguém vai fazer
na Noruega?

MILA – Formar uma banda de black metal. Queimar umas


igrejas, tá ligado?

JONAS – Só pode.

DÉBI – O pessoal se mata muito na Noruega.

MILA – Em qualquer lugar.

DÉBI – Cê foi pescar com seu pai?

JONAS – Claro que não.

DÉBI - Como joga essa porra, hein?

MILA – Aperta o quadrado. Que jogo é esse que o Fred tanto


quer?

JONAS – Corrida. De carro.

MILA – Credo.

DÉBI – Ele roubava as moeda da cestinha da igreja pra ir


jogar isso. Ele amava isso.

JONAS – Acho que ele ainda ama, né?

DÉBI – Não. Não. Ele ama o passado.

MILA – Pode crer.

DÉBI – Sei lá.

Jonas gira uma roda de bike ou uma ferramenta, o que quer


que esteja arrumando. Mila e Débi seguem no videogame.
Corte seco de luz, quando entra um foco é em Fred e
Isadora. Sentados em cima de caixotes, Fred fecha um pão

11
com mortadela e divide no meio, dá um pedaço para Isadora,
que o morde com vontade.

Fred olha pra ela e ri. Ela fica mastigando e olhando pra
ele.

ISADORA – O que foi? (Fred segue sorrindo) O que é?

FRED – Não tem nada mais bonito que uma mulher bonita
comendo pão com mortadela.

ISADORA – Sério? Esse é seu ideal de beleza?

FRED – Você, um sandubão de mortadela.

ISADORA – Romântico.

FRED – É romântico, pô.

ISADORA – Oh... Eu até...

FRED – ...A gente aqui em cima. Às quatro da tarde.


Dividindo um sanduíche. Sozinhos. Juntos... Meio que
livres, né?

ISADORA – O que cê tá tramando com a Mila?

FRED – Nada, ué.

ISADORA – É meio folgada essa mina.

FRED – Ela é de boa. Sempre foi. Ela só vai me ajudar a


pegar a máquina.

ISADORA – Tem certeza que isso não vai dar merda, Fred?

FRED – Claro que não vai dar merda.

ISADORA – Cê tá tramando alguma outra coisa com ela.

FRED – Bem, ciúmes cê não precisa ter.

ISADORA – Eu odeio quando cê não me conta as coisas.

FRED – Eu nunca te conto nada.

ISADORA – Então.

FRED – Eu não conto nada pra ninguém.

ISADORA – Eu sou ninguém...

12
FRED – Ah, cala a boca, Isadora.

ISADORA – Romântico...

FRED – O que cê quer?

ISADORA – Que cê pare de pensar em merda. De fazer merda.


Cê não é uma criança, Fred. Nem você. Nem a Mila. Nem a
Débi, ninguém aqui é a porra de uma criança. Pra que diabos
cê quer uma máquina de pinball ou sei lá?

FRED – É um jogo. Um puta jogo. Eu jogo Daytona desde


sempre. Antes de me livrar do colégio, antes da oficina,
antes de você.

ISADORA – Joga no videogame.

FRED – É diferente.

ISADORA - Isso é motivo pra roubo?

FRED – Não é como se eu fosse tirar o ouro de alguém. O


fliperama vai fechar. Ninguém vai comprar essa máquina pelo
preço que ele tá pedindo. Eu não vou tirar comida da mesa
da família dele. Eu coloquei. Muita merda de comida na mesa
dele enquanto ele manteve o lugar aberto.

ISADORA – Eu sei né.

FRED - Eu só vou ter o meu jogo. Comigo. Ele é meu já. De


qualquer forma.

ISADORA – Esquece.

FRED – Esqueço.

ISADORA – Vê se não faz merda.

FRED – Cê já viu eu fazer merda?

ISADORA um pequeno sorriso – Cê podia pelo menos roubar


aquela mesa de disquinho.

FRED – Air Hockey.

ISADORA – Lembra quando cê me levou lá? A primeira vez. Cê


perdeu feio pra mim nos disquinho.

FRED – Eu deixei cê ganhar.

13
ISADORA – Duvido.

FRED – Cê nunca mais ganhou de novo. Foi só pra te


conquistar. Te deixar mais leve. Cê era mó encrenca. Mó
climão.

ISADORA – Eu não sei que merda vai acontecer com a gente.


Uma hora elas acontecem né? Alguma merda que vai me fazer
odiar você. Alguma merda que vai me fazer querer matar
você, essas coisas. Ou você me matar, não sei. Uma hora
acaba assim né? O amor. Alguém querendo matar alguém. Ou os
dois querendo se matar. Eu não sei nem se precisa acontecer
uma merda. Vai ver a gente só começa a se odiar. Sei lá.
Coisas pequenas. Cê aí, comendo de boca aberta, falando com
a língua cheia de migalha, e isso comece a me irritar,
profundamente. (Fred começa a mastigar de boca fechada).
Guardando seus segredos... Eu já vi isso acontecer. Nas
três famílias que me criaram. Foi sempre de um jeito
diferente. Mas a hora chegou. Uns continuam juntos, se
odiando. Outros caem fora. Não sei...

FRED – Que é isso, Isadora...

ISADORA – Eu só quero dizer, não sei, valeu, cê é legal


comigo. Cê é legal com todo mundo. Eu sei que cê não é
bonzinho. Eu sei as merdas que cê pensa. Mas você consegue
ser legal. Não sei. Cê foi bom pra mim.

FRED – Fui?

ISADORA – É. Sei lá, desculpa.

FRED – Não vai ter merda, Isa. Hoje eu vou fazer o que
tenho que fazer. Amanhã eu vou adotar um cachorro.

ISADORA – Um cachorro?

FRED – É, eu vou ter minha máquina de Daytona, um cachorro,


a oficina, você. Não vai ter merda nenhuma. Eu como de boca
fechada. O resto da minha vida toda, falou?

ISADORA – Será?

(Pausa)

FRED – A Mila... Eu e ela. A gente vai matar o pai dela.

ISADORA – Quê?

FRED – Cê vai comer esse pedaço?

14
Isadora estende a mão com o pedaço do sanduíche devagar na
direção de Fred. Sua cara segue atônita. Ele pega da mão
dela, dá uma mordida, se prepara pra falar algo, com a boca
cheia. Blecaute.

Na Oficina, Débi e Mila seguem no videogame e Jonas no


conserto da bicicleta.

MILA – Cê vai ir com a gente, Jonas?

JONAS – Eu não.

MILA – Como não, cara? Tem que carregar.

JONAS – Cê e ele conseguem.

MILA – Mas a gente...

DÉBI -... O Fred não ficou puto que cê não quer ir?

JONAS – Não ué.

DÉBI – Mas cê ficou com medo de dizer pra ele?

JONAS – Claro que não. Eu fui direto. Não e pronto.

MILA – Cê devia ir, mano.

DÉBI – Ele não tentou nem convencer você?

JONAS – Não, ele não ficou puto. Eu fui direto. Se todo


mundo fosse direto uns com os outros ninguém ia se
machucar.

MILA – A bicha é filósofa.

JONAS – É que nem o lance de gozar na boca.

MILA – Quê?

JONAS – Gozar na boca. Tem que ser direto. Eu não tenho


problema em engolir. Até gosto. Mas se a pessoa não quer,
tudo bem, ela diz que não gosta, diz pra eu tirar na hora,
eu não vou ficar puto, perder tesão, nada. Agora, tem viado
que diz que gosta, que chega a pedir, “goza na minha boca”,
“goza na minha boca”, legal, maneiro, eu vou lá, encho a
boca dele e o que acontece? O fresco vai correndo cuspir no
banheiro, ah, porra, aí eu fico puto. Claro.

MILA – O Artur fazia isso é?

15
JONAS – Jamais.

DÉBI – Agora ele começa a falar essas coisas...

MILA – Deixa ele, cuzona. O cara sabe do que tá falando.

(PAUSA)

DÉBI – Eu tenho uma cliente, a dona Marta. Ela faz as unhas


do pé toda sexta-feira. Sempre vermelho. Vermelho desejo.
Ela é velha já. Gooorda. Tem uns setenta anos. Ela diz que
vai pralgum boteco aqui da vila e quando vê um meninão que
ela gosta, ela tira a sandália, coloca aqueles pés velhos,
gordos, em cima da mesa, as unhas chamativas (Julio Verme e
Carlito entram na oficina) e diz “vem cá, meu filho, faz
uma massagem na tia”.

MILA – Dá certo?

DÉBI – Diz ela que dá.

JULIO VERME – A dona Marta? Comi muito.

Todos olham pra trás.

Mila levanta, deixa o controle – E aí, meu!

Débi levanta, desliga o videogame.

CARLITO – Dona Marta?

Jonas levanta pra cumprimentar Julio, mas ele passa reto


por ele e Mila e dá um beijo em Débi.

JULIO – E aí, tudo bem?

Carlito vai na mesma direção, mas é interceptado por JONAS.

JONAS – E aí, tudo bem?

CARLITO – Tudo bem, meu? Você que é o famoso Fred?

JULIO – Esse aí é o Jonas. Cê vai junto com a gente, Jonas?

DÉBI – Eu vou botar uma roupa.

JULIO – Não se sinta intimidada.

Débi sai.

JONAS olhando pra Carlito – É claro que eu vou. Você?

16
CARLITO – Claro, né mano. Tudo pra ajudar o grande
FreDaytona, meu. O Rei do Daytona!

JULIO VERME – Ele joga também. Quando contei que ia fazer


isso, insistiu pra vir junto.

MILA dá um tapa na cabeça de Julio – Não era pra cê contar


pra ninguém, meu.

JULIO – Eu tinha que contar. A gente vai precisar de...

FRED entrando - ...Contar o quê?

CARLITO – FreDaytona! O Rei do Daytona, mano. Muito prazer.

FRED – Quem é esse?

CARLITO – Carlito. Carlito Rocks. Lembra desse nome?

FRED – Não.

CARLITO – Eu fiquei em quarto no Ranking uma vez. Consegui


tirar você da hegemonia do top five. Ficou lá. FreDaytona,
FreDaytona, FreDaytona, (apontando pra si mesmo) Carlito
Rocks, FreDaytona.

FRED – Ah...

CARLITO – Claro que no outro dia cê já tinha me tirado de


novo, né meu. Ah, você é o rei, meu. Mas eu consegui ficar
lá, por um dia.

FRED – Parabéns. Mila, vâmo conversar.

MILA – Ah, nem vem torrar meu saco.

FRED – Não bastava o Julio Verme, cê trouxe esse outro...

CARLITO – Carlito Rocks.

FRED fala ao mesmo tempo – Verme.

MILA – Eu também chamei a Mara.

Fred balança a cabeça.

JONAS – Que Mara?

MILA – A MARAvilhosa cabeça do meu pau.

17
Todos riem, menos Jonas.

CARLITO – Não acredito que cê caiu nessa, meu!

Jonas ri, sem jeito.

JULIO VERME – Cê vai precisar de nós dois pra carregar a


máquina.

FRED – Jonas, cê vai junto, a gente carrega a máquina.

JULIO – Mas vai ser mais rápido. E a gente não vai levar só
o Daytona.

FRED – Ah, então é isso? Nem fudendo. Nem fu-den-do! Eu


sabia que não era só ajuda. A gente não vai fazer a limpa
no fliperama.

JULIO – Qual a diferença?

FRED – Na camionete da Mila só cabe o Daytona.

CARLITO – Meu pai é caminhoneiro, meu.

JULIO – A gente vai com uma carreta também.

JONAS – Ô loco.

MILA – Aí sim.

FRED – Aí sim o caralho. Mila, olha o que cê fez. A gente


tinha a merda de um acordo. EU e VOCÊ.

JULIO indo pra cima de Fred – Olha como fala com ela.

FRED indo pra cima de Julio – Cala a boca, seu filho da...

JONAS gritando – Parem. Os dois. (para Fred) Calma,


brother. O que tem, porra? Vai tu e a Mila na camionete. O
Julio, eu e o Carlito na carreta. A gente limpa o que der
pra limpar.

MILA – Julio, cê tem maconha.

JULIO – Aqui não.

MILA – Porra.

CARLITO – Eu tô me mijando.

FRED – Eu não tô gostando disso.

18
CARLITO – Tem banheiro aqui?

FRED – Mila, se der merda...

JULIO irritado – Onde é o banheiro?

DÉBI entrando – Aqui dentro, à esquerda.

JONAS para Carlito – Eu mostro pra você.

Os dois saem.

DÉBI – Pra que esse grito todo?

JULIO – Meu amigo tava se mijando. Ninguém merece ficar


segurando a porra do mijo.

DÉBI – Se você diz.

JULIO – Por que tirou o biquíni? Vâmo pro sol?

FRED – Julio, eu tô falando sério. Primeiro, tira o olho da


minha irmã. Segundo, cê não vai.

MILA – Ele precisa ir.

FRED – Por quê?

MILA – A gente não pode levar só o Daytona! Pensa bem, quem


é “o rei do Daytona”?

CARLITO entra, se desvencilhando de Jonas – FreDaytona.

JULIO – Cê não mijou?

CARLITO – Não consigo mijar com alguém me olhando (olha pra


Jonas).

JULIO – Caralho, deixa o cara mijar!

CARLITO – Eu vou mijar na rua. (sai, Jonas vai até a porta,


em cima, e fica olhando).

JULIO – Eu tava na casa da minha mãe esses tempos, lá em


Osasco, porque o bicho pegou pra mim por aqui.

DÉBI – A gente sabe.

FRED – Por que o bicho pegou?

19
JULIO – Eu tava roubando muito. Batendo muita bolsa.
Neguinho marcou.

FRED – Cê não foi pego no mercado lá de Osasco?

JULIO – O bicho também pegou pra mim lá.

DÉBI – Cê tem maconha?

JULIO – Agora não, linda, mas vou conseguir pra você.

MILA – Sim, era isso que cê ia contar?

JULIO – Eu ia falar que era de madrugada, eu recém tinha


voltado da rua, me mijando. Lá no AP da minha mãe só tem um
banheiro, é uma suíte, no quarto dela. Ela tava dormindo
com o namorado. (Mila e Débi se olham) Eu não ia entrar no
quarto deles pra mijar, né? Caralho. Eu tava me mijando
muito.

JONAS – Por que não mijou na pia da cozinha?

JULIO – Acha que eu não tentei. Eu fui na cozinha. A pia


tava cheia de louça. Eu cogitei lavar, toda aquela louça.
Eu cheguei a começar a fazer isso, mas o barulho da água.
Porra.

JONAS – Que fosse pra rua então.

JULIO – Eu não queria ir pra rua. Eu achava que ia me mijar


no elevador. Eu já subi ele me mijando.

MILA – Cê sabia que o banheiro era no quarto da sua mãe, ô


cuzão. Tinha que mijar antes de subir. Na rua.

JULIO – Eu não pensei isso, caralho. Eu não queria ficar


dando bobeira na rua também. É perigoso. (Jonas e Fred se
olham e riem.) Aí, pronto, eu pensei, vou mijar pela
janela. Cai lá no jardim do térreo, foda-se. Eu botei o pau
na janela, velho, tinha um monte de varal, em todos os
andares de baixo, tudo cheio de roupa. Geralmente, eu não
ligaria pra isso. Mas era o prédio da minha mãe. Iam
reclamar com ela. Eu era o único nóia da merda daquele
prédio. Eu já tava queimado com minha mãe.

DÉBI – A gente soube.

JULIO – Nesse ponto eu não me aguentava mais. Eu tava me


mijando muito. Eu corri até a cozinha, foda-se, eu ia mijar
na pia, depois eu lavava a louça, já tava suja mesmo, não

20
é? Aí eu vi uma garrafa PET, vazia, em cima da mesa.
Caralho, como eu não tinha pensado na garrafa PET.

DÉBI – Era essa a história? Cê mijou numa garrafa PET? Que


legal.

JULIO – Mais ou menos.

JONAS – O teu amigo tá demorando, né?

MILA – Mais ou menos o quê?

JONAS sai pra rua.

JULIO – Eu não queria respingar mijo no chão da cozinha.


Então, eu encostei bem a cabeça do meu pau na boca da
garrafa PET. Pra uretra ficar toda lá pra dentro. Só que
pra isso acontecer, a garrafa fica sem nenhuma entrada de
ar. Porque a cabeça do meu pau tá tapando tudo.

FRED – Não acredito.

MILA – O quê?

FRED – Como assim? Mano, que cara otário.

JULIO – Vai se fuder. Cê acha que eu conseguia pensar nas


porras das leis da física naquela hora!!!

DÉBI – Que lei da física?

JULIO – É uma lei da física! Não tinha entrada de ar, eu


comecei a mijar lá dentro, fez uma puta pressão na garrafa
e pfiu, ela voou da minha mão e eu mijei a porra da cozinha
inteira.

FRED – Que otário...

MILA – Mano!

DÉBI – Puta que pariu.

JULIO – Eu tive que limpar a cozinha toda, de madrugada.


Antes da velha ou do namorado dela acordarem.

MILA – Cara, eu não sei o que é mais engraçado. Cê ter


feito isso, ou nos contado isso.

DÉBI – Por que cê nos contou isso?

JULIO – A gente tava falando de mijo.

21
FRED – Você tava falando de mijo.

Jonas entra sozinho.

MILA – Cê chega aqui se botando pra cima da Débi e aí conta


essa história. Se cê tinha alguma chance, cara...

DÉBI – ... Ele já não tinha nenhuma chance.

JULIO - ... Eu sei que eu não vou pegar a Débi. Garotas


como a Débi não enxergam a minha pureza.

FRED – Nisso ele tem...

JONAS – ...Cê contou essa história pra Dona Marta?

DÉBI – A Dona Marta! (rindo)

MILA - Ela enxergou sua pureza?

JULIO para Jonas – Cadê o Carlito?

JONAS – Ele disse que ia te esperar lá fora. Fumando.

DÉBI – Maconha?

JONAS balança a cabeça negativamente.

JULIO – Eu vou te arrumar maconha, gata.

MILA – Jonas, como foi o passeio?

JONAS – Não foi bem um passeio, eu só fui ver se o...

MILA – Tô falando do outro passeio.

JONAS – Que passeio?

MILA – Passei-o meu pau no seu rabo.

Todos riem. Menos Jonas.

JONAS – Cê fala essas coisas porque queria ter um pinto?

FRED bravo com Jonas – Ei.

DÉBI brava também, ao mesmo tempo – Ô.

JULIO – Vou nessa. Vou lá pegar o caminhão com o Carlito.

22
MILA – A gente se encontra às nove.

JULIO – Falou.

Ele sai.

JONAS – Qual foi a história do mijo?

FRED para Mila – Cê não devia ter colocado ele na jogada.

MILA – Cê sabe que a gente precisa pegar outros. Se não


todo mundo vai saber que é você.

DÉBI – Faz sentido.

MILA – Débi, Jonas, podem deixar a gente sozinho?

Eles se olham e saem.

FRED – Que foi?

Mila fica mais introspectiva. Senta. Fecha o rosto, se


encolhe um pouco.

MILA – A gente vai essa madrugada mesmo. Depois de voltar


pra cá com a máquina.

FRED – Já?

MILA – Eu andei sondando umas coisas. A Vanessa não vai tá


lá hoje. O filho da puta vai tá sozinho. Isso é raro.

FRED – Certeza?

MILA – Sim, pô.

Fred caminha até ela, põe a mão em sua cabeça.

FRED – Mila.

MILA – Quê?

FRED – Certeza?

Ela ameaça responder algo e desiste. Luz vai caindo.

Quando volta, DÉBI e ISADORA estão sentadas, bebendo


cerveja.

ISADORA – Eu tô me sentindo aquelas mulheres de boxista,


sabe? Que ficam em casa nos filmes, assistindo a luta na

23
TV. Que fecham os olhos quando o marido delas tá levando
porrada?

DÉBI – Hein?

ISADORA – Mas nesse caso eu não tô vendo a luta... Ela não


passa na porra da TV.

DÉBI – Não viaja, Isa. Não é como se o Fred fosse a porra


do Rocky. Ou se ele tivesse levando porrada.

ISADORA – Parece que ele já levou, né? Milhões de socos na


cabeça. Até ficar retardado. Retardado o suficiente pra
roubar a porra de um fliperama.

DÉBI – Coitado. Ele gostava tanto de ir lá.

ISADORA – Idiota.

DÉBI – É foda eu falar que não era legal na nossa casa.


Perto da tua infância, da infância da Mila, nossa casa era
a droga de um paraíso. A Mila adorava ficar na nossa casa,
claro. Mas o Fred nunca se sentiu bem lá. Nosso pai, ele
era muito parecido e muito diferente do Fred, tudo ao mesmo
tempo.

ISADORA – Cê sabe o que eles vão fazer com o pai da Mila?

DÉBI – O pai da Mila?

ISADORA – É.

DÉBI – Eu imagino. (pausa) O Fred te contou?

ISADORA – O Fred me contou.

DÉBI – Ele merece.

ISADORA – Eu sei que ele merece. Eu só não sei porque o


Fred...

DÉBI - ... O Fred viu a Mila crescer. Eu também. Isso


basta. Dá pra não falar da Mila?

ISADORA – Por que ela não chamou esses amigos dela?

DÉBI – O Julio Verme?

ISADORA – É, a porra do Julio Verme.

DÉBI – Quem cê chamaria?

24
ISADORA – Eu só... (desiste de falar, pausa, abre um
pequeno sorriso) O Fred me contou que quando cê nasceu, ele
morria de ciúmes. E que cê não parava de chorar, nunca. Ele
não aguentava mais. Aí ele pensou em matar você. (rindo)
Ele já te contou isso?

DÉBI – Não.

ISADORA – Ele disse que foi matar você. Ele pegou um


travesseiro. Ele ia enfiar ele no teu rosto. Até cê morrer.
E quando ele tava na frente do teu berço. Segurando o
travesseiro, cê parou de chorar e deu um sorriso pra ele. E
aí, bem, ele não matou você...

DÉBI – O Fred inventa essas coisas, Isa. Ele vive


inventando essas coisas.

ISADORA – Por que ele ia inventar isso? Ele só não te


contou, é claro. Mas é bonitinho, não é?

DÉBI – Esses dias ele me disse que eu peguei piolho no


colégio uma vez. Quando era bem pequenininha. E aí a nossa
mãe começou a me tirar os piolhos. Ele disse que ela
cantava: “menos um piolho. menos dois piolhos, menos
três...” e aí ela parou e disse “ih, Débi, tá cheio de
lêndea”. E que eu perguntei: ‘mãe, o que é lêndea?”. E ela
disse que eram ovos, que deles saiam os filhotinhos dos
piolhos, essas coisas. O Fred falou que eu comecei a
chorar. A mãe se assustou, perguntou o que tinha
acontecido, se tava doendo. E eu disse (imitando voz
chorosa) “pode matar o pai piolho, pode matar a mãe piolha,
mas não mata os filhinhos deles”.

ISADORA – Que amor!

DÉBI – Ele inventou isso também.

ISADORA – Como cê sabe, cê era criança, cê pode...

DÉBI irritada – A nossa mãe não... (desiste) Eu nunca nem


tive... Ele inventou, Isa. Ele é um...

ISADORA – Romântico.

DÉBI – Chama do que quiser, eu só acho que...

FRED gritando, de fora – ISADORA! ISADORA!

ISADORA levanta – Chegaram!

25
FRED – ISADORA! ISADORA!

Isadora vai caminhando até a porta.

DÉBI imitando o Rocky Balboa – Adrian! Adrian!

FRED entrando – Isa, vem ver o que a gente pegou!

ISADORA – Deu tudo certo?

FRED – Olha lá, eles tão descarregando.

Fred leva ela até a porta pra olhar pra fora.

ISADORA – Não acredito!

DÉBI – O que foi?

ISADORA feliz – A máquina de disquinho!

FRED – Air Hockey! Pra você, meu amor.

Eles se beijam.

DÉBI – Que romântico.

FRED – A gente fez a limpa lá. Coube tudo, tudo na merda do


caminhão. (enquanto a cena acontece, ouvimos as vozes de
Julio, Carlito e Mila em função de descarregar as coisas.)
A gente pode colocar lá em cima. Caralho. A gente pode
fazer churrasco e jogar Air Hockey sempre que a gente
quiser.

ISADORA – Com o nosso cachorro na volta.

FRED – Com a porra do nosso cachorro.

ISADORA - Fred.

FRED – Quê?

ISADORA – Valeu!

FRED – Cê merece, Isa. Cê merece. Eu já volto. Eu vou


ajudar eles a...

Barulho de coisa caindo e quebrando.

JULIO gritando de fora – Caralho, Carlito!

MILA gritando de fora – Puta que pariu!

26
FRED – O que esses animais... (caminha pra sair) Se for o
Daytona, eu...

Julio, Jonas, Carlito e Mila entram apressados mas com


caras ‘pra baixo’. Param quase na entrada, quando veem
Fred.

CARLITO – Fred, meu, me deu uma câimbra. Desculpa, brother,


mas ó... (Fred vai mais pra cima, ele para).

MILA – A tela quebrou mas a gente pode ver se foi só a...

Fred agarra Carlito começa a empurrar ele, bater nele, o


espreme em algum lugar, o derruba começa a chutar.

FRED – Você fez o quê? Seu idiota! Seu idiota. Eu não


acredito. Mila, olha o que esse babaca fez. Eu vou te
matar, seu imbecil. Filho duma puta. Eu vou...

DÉBI e ISA – Calma, Fred. FRED! Calma, por favor. (elas


ficam falando coisas assim)

MILA – Cê vai matar ele, meu, se liga.

Julio vai em direção a Fred, já pronto pra bater nele pelas


costas. Jonas o segura e o empurra.

JONAS – (para Julio) Calma, eu resolvo. (para Fred) Fred,


para Fred. (grita) Fred, a culpa foi minha.

FRED – Foi sua o quê? Cê só quer comer esse bosta (segue


batendo, Carlito só grita, geme, essas coisas). Eu deixo o
cu dele intacto pra você. Cê vai comer a porra de um rabo
morto.

Julio pega um canivete, abre e o coloca no pescoço Jonas.

JULIO – Para agora ou eu mato essa bicha aqui.

ISADORA – Meu deus, eles vão tudo se matar.

DÉBI – Mila, faz alguma coisa.

MILA – Relaxem, seus cuzão. Relaxem, porra! A gente....

JULIO – Eu vou matar ele, Fred.

MILA – Fred, ele tá com uma faca.

Fred para, olha para Julio. Carlito fica tossindo no chão.

27
JULIO – Eu conheço o cara que arrumava as máquinas do
fliper. Eu vou sair com o Carlito daqui. A gente vai atrás
do cara, conserta ela, se é que ela estragou mesmo! E cê
nunca, nunca mais, toca no meu amigo, seu filho duma puta.
(Aperta mais Jonas, com o canivete em seu pescoço)

MILA – Soltem eles, cuzões. Fred, faz isso. Ele vai


consertar a máquina.

JULIO – Se é que estragou.

JONAS – Quebrou a tela.

JULIO – Cala a boca!

FRED – Cê acha que o cara vai consertar um negócio roubado?


Ele vai é nos fuder.

JULIO – Ele vai comprar umas que eu roubei. Eu já tinha


combinado com ele. Eu faço mais barato. Ele conserta essa.
Deixa o Carlito levantar.

Fred olha Julio por um tempo. Olha pra si mesmo. Sai fora e
se senta longe de todos. Julio solta Jonas. Jonas ajuda
Carlito a se levantar. Mila fica mexendo nos cabelos,
nervosa. Isadora vai sentar ao lado de Fred.

DÉBI – Eu preciso muito de maconha.

JULIO – Eu vou trazer pra você. (Pega Carlito e sai


carregando o amigo).

ISADORA – Caralho, Fred. Viu a merda? Cê ia matar o cara?


Porque ele quebrou um fliperama?

FRED – Um fliperama?

ISADORA – É, a porra de um fliperama. Antigo. Fudido.

DÉBI – Calma, Isa. Deixa ele quieto um pouco.

Isadora levanta, senta onde estava bebendo cerveja. Bebe um


longo gole. Débi também.

DÉBI – O Jonas tá suando, coitado. Vem beber, Jonas.

Ele senta e bebe também.

28
JONAS depois de um longo gole e um silêncio contemplativo –
Mila, sabe quem pode consertar isso também? (Mila não
responde, ela está olhando para Fred). O Mario Louco.

MILA – Que Mario Louco?

JONAS – Aquele que te comeu atrás do hospício.

Ninguém ri. Mila começa a caminhar em direção a Fred. Para


atrás dele.

MILA – Fred...

FRED – Que foi?

MILA – A gente demorou muito lá. E aqui.

FRED – É.

MILA – A gente tem que ir.

FRED – Já?

MILA – Já.

Fred levanta. Os dois se olham nos olhos. Depois caminham


devagar até a porta.

JONAS – Cês querem ajuda? Eu posso ajudar vocês.

FRED – Não, brother. Vai descansar.

ISADORA – Eu não vou tentar convencer vocês a nada. Mas


pensem, pelo amor de deus...

MILA – ...A gente já pensou, mina. A gente pensa desde


criança.

Eles se aproximam de porta. Débi levanta.

DÉBI – Eu vou junto.

FRED – Não vai nada.

DÉBI – Eu tenho que ir, Fred.

FRED – Débi, eu...

ISADORA – Débi!

DÉBI – Cala a merda da boca. Pelo amor de Deus!

29
Fred para. Volta a andar e sai. Mila olha pra Débi e a
chama. As duas saem juntas.

Alguma música começa a tocar. Jonas levanta, caminha e se


deita no chão para dormir em algum canto. Isadora levanta e
bebe a cerveja que sobrou no copo de Débi e no copo de
Jonas e então pega a garrafa e senta no sofá. Bebe todo o
resto dela e a coloca no chão. Fica olhando para o nada por
um tempo.

Por porta diferente da qual saíram, Débi e Fred entram


tensos e calados. Fred tem sangue na camisa. Isadora olha
pra eles, levanta. Jonas também senta no chão e fica
olhando os dois. Isadora abraça Fred, que não devolve o
abraço, apenas fica parado.

Débi senta ao lado de Jonas, afunda a cabeça em seu peito e


começa a chorar. Mila entra depois, também tem sangue na
roupa. Ela não parece tão abalada quanto eles. Carrega,
inclusive, um leve sorriso no rosto.

ISADORA – O que houve? Aconteceu algo que não... Ou foi


só... (Fred se vira de costas pra ela. Isadora caminha até
Jonas e Débi.) Débi? Vocês...

FRED para Mila, irritado – Cê sabe o que você fez hoje? Sua
merda. Sua fudida irresponsável.

MILA – Relaxa, cara. Não vai acontecer nada de diferente.

FRED – Nada de diferente?

MILA – É, fazer o quê. Ela disse que não ia tá lá. O que eu


posso fazer? O que a gente ia fazer? Deixar ela...

ISADORA – Ela quem?

Jonas começa a levantar devagar.

FRED incrédulo – A Vanessa.

ISADORA – Quem é a Vanessa?

JONAS depois de levantar, em tom apático, em choque – Eu


não acredito que...

MILA – Cala a boca, cara.

ISADORA – Jonas? (Jonas olha pra Isadora e baixa o rosto.


Mila começa a enrolar um tabaco, Débi está com a cabeça

30
afundada no chão). Eu falei, porra. Eu falei que ia dar
merda. A minha mãe de criação. A minha terceira mãe. Ela me
disse. Você é muito pessimista, Isadora. Você atrai essas
coisas. Você fica pensando e atrai. Eu... Eu era assim
mesmo. Tal família não vai dar certo. Eles não vão me
aguentar. Eu...

Isadora caminha pra sair.

Fred – Isadora?

Isadora – Vai se fuder, Fred.

Quando ela fala isso e sai, esbarra com Julio Verme que
está entrando.

JULIO – Uou. (pausa) Que houve? Fiquem tranquilos, porra, o


cara tá lá, consertando o Daytona. Eu falei com ele.
(ninguém responde. Fred se descabela. Débi segue atônita.
Mila acende seu cigarro). Eu trouxe baseado. Eu falei que
ia trazer. (Tira um enrolado do bolso, dá pra Débi) Já tá
até bolado. (Débi pega, coloca na boca) O que houve, gata?
(ela fica procurando por um isqueiro, ele pega e acende pra
ela). Alguém fez algo com você? Foi o Fred?

MILA – Acho melhor cê ir embora, Julio.

JULIO tirando outro baseado do bolso – Outro bolado! (leva


até Mila, coloca na boca dela, ela acende o beck com o
cigarro aceso em sua mão, ele olha o sangue na roupa dela)
O que houve? (olha pra Fred, também pro sangue) Cês tão
bem? Fred?

MILA – Julio, por favor.

Pequena pausa.

JULIO – Eu preciso tirar a mesa de hockey do caminhão.


(para Jonas) Me ajuda lá.

Jonas caminha até a porta, ainda muito atônito.

JULIO – Que merda rolou aqui?

JONAS – O Carlito não veio?

JULIO – Claro que não.

Os dois saem. Fred senta ao lado de Débi, ela fuma, os


olhos cheios de lágrima. Passa pra ele, mas ele não pega.
Ela fica com a mão parada, na frente dele, com o cigarro.

31
Mila dá uma tragada no seu. Ela assopra a fumaça e suspira
fundo. Seu sorriso vai cada vez ficando maior. Fim.

32

Você também pode gostar