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VIDAS SECAS

Uma peça pelo 3° ano A

Escrito por

Elisa Paulovich

Baseado no livro Vidas Secas de Graciliano Ramos

Professora Caroline Giglio Colégio Adventista de São José


dos Campos, 2023
EXT. DESERTO DO SERTÃO - DIA

O FILHO MAIS VELHO entra se arrastando pela PORTA DOS FUNDOS


da Capela.

Quando ele chega QUASE NO FINAL do caminho, ele CAI NO CHÃO.

SINHÁ VITÓRIA entra desesperada e derruba no chão a CAIXA DE


FOLHAS que levava na cabeça. Ela vai até ele, gritando por
Fabiano, seu marido.

SINHÁ VITÓRIA
FABIANO! FABIANO! Vá acudir o
menino!

FABIANO entra no auditório.

Ele vai até o filho mais velho. Mexe com o pé. Vira o filho.

FABIANO
(irritado)
Anda, excomungado.

Ele olha para Sinhá Vitória. Depois, de volta para o menino.

BALEIA entra discretamente no auditório e fica no corredor à


direita. Ela entra no banco vago e fica escondida lá.

O FILHO MAIS NOVO entra e Fabiano o chama com um gesto.

Eles param no meio do corredor.

FILHO MAIS VELHO


(fraco e cansado)
Eu acho que a gente tem que voltá.

Sinhá olha em volta.

FILHO MAIS NOVO


A gente num tá indo pro lugar
errado?

FABIANO
Eu já não aguento mais essa miséria
do cão.
(pausa, pro filho MAIS
NOVO)
Vamo, me ajude a carregá teu irmão,
vai.

Eles APOIAM o filho mais velho NOS OMBROS. Eles o levam para
as escadas.
2.

FILHO MAIS NOVO


Tudo dói. Eu tô cansado.

A família se senta e decide comer os farelos que sobraram da


última refeição. Fabiano manda o MAIS NOVO recolher as
FOLHAS e a CAIXA do chão.

FABIANO
Vai pegá as folha, vai.

Tudo congela.

O NARRADOR entra no palco.

NARRADOR
Essa é a história de uma família.
Uma família formada por um homem
bruto, rude, e amargurado, chamado
Fabiano...

FABIANO
Eu num vô procurá içá pra gente
cumê não, Sinhá.

NARRADOR
Sua esposa Vitória, que sabe fazer
contas…

SINHÁ VITÓRIA
Num precisa disso, hómi. A genti
têm uma macaxêra ainda. Vai dá pra
bastante tempo.

NARRADOR
E os filhos deles.

FILHO MAIS NOVO


E se o pai matá o papagaio pra
comer?

FILHO MAIS VELHO


Não.

FILHO MAIS NOVO


Seria bom--

FILHO MAIS VELHO


Eu num deixo.

Fabiano senta mais afastado da família, e Sinhá senta com os


filhos no chão.
3.

FILHO MAIS NOVO


Melhor que o painho decidir matá
Baleia.

FABIANO
Falando nela, cadê Baleia?

Sinhá se intromete:

SINHÁ VITÓRIA
(para o MAIS NOVO)
Painho num vai matá Baleia. Eu num
deixo.

NARRADOR
Ah, e a cachorrinha Baleia.

Fabiano para o que está fazendo e olha para os filhos.

FABIANO
Matar Baleia não. Ainda num vô matá
Baleia.

FILHO MAIS VELHO


(pro FILHO MAIS NOVO)
Calma, cabra. Num pensa nisso.
Painho e mainha sabem o que eles
faz.

FABIANO
Mas matá o piriquito num seria má
ideia.

FILHO MAIS VELHO


(para FABIANO)
Não, o senhor num vai matá o
papagaio.

Sinhá gesticula para Fabiano a fim de conversar num canto


reservado.

FABIANO
(para o filho MAIS NOVO)
Vai catá a caixa, vai.

Então:

FABIANO (CONT'D)
Eu vô matá o piriquito, Sinhá.

SINHÁ VITÓRIA
(incomodada)
Abibolô, foi? Os minino num vai
gostá, Fabiano.
(MORE)
4.

SINHÁ VITÓRIA (CONT'D)


Espera mais um pouquinho. Nós vamo
achá uma casa nova.
(ela pega as duas mãos
dele)
Só mais um pouquinho.

Sinhá dá as costas pra Fabiano e vai chamar os meninos.

FABIANO
Sinhá…

SINHÁ VITÓRIA
(para o MAIS VELHO)
Vamo, vem menino.

O mais novo levanta junto dele.

FABIANO
Manda os minino um pra cada lado,
Sinhá.

SINHÁ VITÓRIA
Meninos, vai um pra cada lado, e
encontra a mãe no fim do caminho.

Os meninos e Sinhá andam cada um em um corredor. Fabiano


fica no palco.

FABIANO
Vô levá Baleia pra caçá um preá pra
você.

Eles andam um pouco mais até que Sinhá chama Fabiano


animada.

SINHÁ VITÓRIA
Fabiano, venha vê, eu achei uma
casa pra gente!

Fabiano, Sinhá e os filhos OLHAM PARA O PALCO, como se


estivessem vendo a casa.

O filho MAIS NOVO corre na frente de todo o resto, chamando


Baleia. A família o segue.

EXT. FAZENDA - MAIS TARDE

NARRADOR
Agora, apesar de algumas
inconveniências, eles estavam
contentes…

O PATRÃO entra pela coxia.


5.

NARRADOR (CONT’D)
Até que o verdadeiro dono da
fazenda apareceu querendo
explicações.

PATRÃO
(furioso)
Saiam já daqui! O que vocês estão
fazendo aqui?

FABIANO se coloca na frente da família, e Sinhá Vitória


protege os filhos atrás dele, os abraçando.

FABIANO
(apreensivo)
Sinhô, eu sô bom trabalhador.

PATRÃO
Não quero saber se é bom ou não,
esse terreno é meu e eu quero vocês
fora daqui!

FABIANO
(implorando)
Por favor, meus fio num tem teto.
Eu recebo poco, piedade.

PATRÃO
Se é assim, vai ser do meu agrado
você trabalhar aqui.

O patrão vai embora.

NARRADOR
Fabiano, que agora tem dinheiro,
pediu pra Sinhá Vitória fazer
contas e dizer quanto ela
precisaria que ele levasse a fim de
comprar as coisas.

SINHÁ VITÓRIA
Num sai do caminho e se perde,
Fabiano. Volta logo.

Fabiano acena com a cabeça.

NARRADOR
Embora Fabiano tenha dito que iria
somente ao mercado, não foi isso
que ele fez. Sempre paranoico
achando que alguém o enganaria, ele
decide ir ao bar pra se livrar
desses pensamentos.
6.

Fabiano vai ao bar.

INT. BAR - TARDE

O SOLDADO AMARELO o chama.

SOLDADO AMARELO
Ei, vem jogar baralho. Vem, vamo.

NARRADOR
Sem pensar duas vezes, Fabiano
decide entrar no jogo, para ganhar
dinheiro por meio do jogo.

SOLDADO AMARELO
Fica esperto. Eu vou colocar uma
carta assim, ó.

O Soldado Amarelo mostra como deve ser feito, e Fabiano o


imita de um jeito amador. Outros jogadores entram no jogo.

NARRADOR
Na mesa se juntam mais jogadores, e
logo a partida se inicia. Fabiano
só observa os jogadores.

SOLDADO AMARELO
Vai homi! Joga a carta!

Fabiano joga a carta.

SOLDADO AMARELO
(animado)
BATI!

O soldado levanta de supetão e pega o dinheiro apostado.

Fabiano se levanta da mesa furioso e quando vai sair, o


soldado o puxa pelo ombro.

SOLDADO AMARELO
Onde cê pensa que vai, seu caipira
pé rapado?

Fabiano se vira abruptamente.

FABIANO
Me solte, fi duma égua!

Fabiano dá um SOCO no SOLDADO AMARELO. O soldado revida, e


chama outros policiais pra prendê-lo. Quando Fabiano se vira
pra dar o segundo soco, outros POLICIAIS puxam ele pelo
antebraço e pela camisa.
7.

Eles conseguem afastá-lo do soldado. Ambos os policiais dão


um soco na barriga e nas costas de Fabiano, e o jogam na
cadeia.

INT. CADEIA - NOITE

Fabiano está pensativo na cadeia, sentado no chão.

NARRADOR
Na cadeia, Fabiano tem tempo para
refletir o que tinha acontecido. Se
não fosse por sua esposa Vitória,
ele não estaria naquela situação.
Ele pensava na sua família, e se
estava fazendo o máximo que podia
para prover o que a família
precisava.

Os soldados abrem a cela e liberam Fabiano.

NARRADOR (CONT'D)
Fabiano foi liberado pela manhã, e
ele voltou para casa. Enquanto
Sinhá Vitória cuidava dos filhos,
pensava em Seu Tomás, o dono da
fazenda onde ficavam, um homem bem
de vida e que a família admirava,
que poucas vezes conversava com
Fabiano, que quando voltou pra
casa, se surpreendeu com o luxo da
família.

INT. FAZENDA - MANHÃ

Fabiano volta pra casa.

SINHÁ VITÓRIA
Que aconteceu, Fabiano? Cê tá uma
inhaca...

FABIANO
Xinguei a mãe do soldado alesado
com a roupa da cor do canarinho.
Mas num fresque não. Não me amole
muié, vou esfriar a cabeça no
trabaio.

SINHÁ VITÓRIA
(impaciente)
Eu fiquei preocupada contigo, hómi.
Os menino também.

FABIANO
Eu só quero deitar numa cama.
8.

Fabiano nota Sinhá com uma SANDÁLIA BONITA e os filhos com


duas CAMISETAS em bom estado.

FABIANO
Que sapatos de papagaio são esses,
Sinhá? Ao invés de comprar uma cama
pra genti, compra esse sapato aí,
e--

SINHÁ VITÓRIA
(sobrepondo Fabiano)
É culpa sua que a genti tá sem
dinheiro, Fabiano.

FABIANO
Pódi sê que sim, pódi sê que não. E
a genti conseguiu saí do inferno
que a genti vivia, Sinhá, olha isso
aqui. Nós num temo cama, mas temo
teto pra morá.

NARRADOR
Sinhá se preocupava se Fabiano
sabia se aquilo nãõ era permanente,
e cria que dias melhores viriam
junto com a tão sonhada cama.

Sinhá e Fabiano vão um pra cada lado, e ela é seguida pelo


filho mais velho, e Fabiano, pelo mais novo.

NARRADOR
O menino mais velho estava
intrigado. Nunca tinha ouvido
aquilo antes. Camiseta. Ele gostava
de aprender palavras novas, mas era
difícil, porque os seus pais só
falavam o necessário, ou nem isso.
Um dia, ele resolveu perguntar uma
coisa pra sua mãe.

Sinhá está sentada com o filho mais velho num canto. O mais
novo se aproxima.

FILHO MAIS VELHO


Mainha, o que é o inferno?

SINHÁ VITÓRIA
Um lugar ruim, rim demais.
(pensa um pouco)
Quente.

FILHO MAIS VELHO


Você já viu o inferno?
9.

FILHO MAIS NOVO


(irritado)
Quê isso, cabra? Isso é pergunta de
se fazer pra mainha? Vai falá com
Baleia, vai, macho.

Ele faz o que o irmão diz.

FILHO MAIS VELHO


(conversando com Baleia)
Eu falei pra mainha do inferno… Ela
num me disse nadinha.

NARRADOR
Enquanto isso, Baleia pensava no
osso que roeria após o jantar.

FILHO MAIS NOVO


(refletindo)
Eu sei o que é o inferno Baleia. O
tempo ruim.

NARRADOR
O tempo ruim. O tempo da seca,
quando os seus pés doíam, e ele não
queria mais andar. Isso é o
inferno.

O irmão mais velho se junta aos dois. Sinhá puxa o menino


mais novo pra procurar piolhos no cabelo dele, e o mais
velho se afasta levemente deles.

NARRADOR (CONT’D)
Os meninos observavam os pais nas
atividades diárias. Pro mais novo,
a mãe era uma rainha, e ela mandava
em cada preá, em cada papagaio e em
cada uma das Baleias que eistiam no
mundo inteirinho. Para o mais
velho, Fabiano era um herói,
vestido um guarda-peito, botas com
esporas, chapéus e perneiras.
Quando ele subia num boi, o menino
imaginava o seu pai num alazão,
numa postura majestosa.

FILHO MAIS VELHO


(virando a cabeça pro
mais novo)
Que que você vai sê quando crescê?

FILHO MAIS NOVO


Painho.
10.

FILHO MAIS VELHO


Eu vô sê um vaquêro, ninguém vai
rir de mim nunca mais.

Uma curta pausa. Sinhá puxa a cabeça do menino com força.

FILHO MAIS NOVO


Mainha, por que a sinhóra tá
tirando bixinho?

Sinhá fica quieta. Os dois olham pra ela.

NARRADOR
Então Sinhá finalmente disse.

SINHÁ VITÓRIA
Nóis vai numa festa.

FABIANO pega as roupas da família e traz pros meninos.

Sinhá libera os filhos para eles se trocarem, e ela vai à


coxia. Ela logo volta para o palco.

FABIANO
(impressionado)
Sinhá…

SINHÁ VITÓRIA
Avalie, hómi.

Sinhá dá dois passos pra trás se mostrando pra família.

A família, sai de casa e eles andam pelo corredor do meio.


Os filhos vão à frente dos pais, e Sinhá é a última, e
caminha com dificuldade.

FABIANO
(para os filhos)
Caminha com cuidado.

Eles andam mais um pouco.

INT. FESTA - MOMENTOS DEPOIS

Agora começam a conversar com a PLATEIA.

NARRADOR
Ao chegarem à festa, se deparam com
tanta gente que se perdem de vista.
As horas se passam e cada um se
encontra num lugar.

FABIANO e o MAIS VELHO conversam com o lado dos MENINOS, e


SINHÁ e o MAIS NOVO com o lado das MENINAS.
11.

NARRADOR (CONT’D)
Os meninos, Sinhá Vitória e Baleia,
sentados na calçada, observam as
luzes, as pessoas, e ouvem a
conversa, a música e pensam em tudo
o que nunca tinham visto.

Fabiano brinda com dois desconhecidos (SAMUEL ROSSETO e JOÃO


VIANA) e o SOLDADO AMARELO está sentado junto deles.

NARRADOR (CONT’D)
Fabiano, depois de ter bebido,
xinga e gesticula contra o soldado
amarelo. Amaldiçoa-o e então se
levanta, limpando as mãos nas
calças e procurando pela família a
passos trôpegos.

TODA A FAMÍLIA VOLTA PARA O PALCO.

EXT. FAZENDA - MANHÃ

Sinhá Vitória está contando o salário de Fabiano.

NARRADOR (CONT’D)
Dias depois, a família se encontra
na fazenda. Sinhá Vitória faz as
contas do pagamento do mês e diz
para Fabiano ir à cidade receber o
dinheiro.

SINHÁ VITÓRIA
(fazendo contas com GRÃOS
DE FEIJÃO)
É, são mil réis. Vai falar com o
patrão, ele vai pagar.

NARRADOR
Fabiano vai a cidade e ao passar
pela praça onde o encontrou, se
lembra do soldado mais uma vez.
Decide ignorar o pensamento e se
dirige ao escritório do patrão.

INT. ESCRITÓRIO DO PATRÃO - MAIS TARDE

Fabiano chega no escritório de Seu Tomás e se apresenta.

FABIANO
Boa tarde, sinhô. Vim buscar o
pagamento.
12.

PATRÃO
Certo. Tá aqui. Recolhe cinquenta
reais e entrega pro vaqueiro.

FABIANO
Com todos o respeito, mas não falta
nada?

PATRÃO
Não, não tem nada faltando. Eu
mesmo já tinha conferido antes. Não
tem a necessidade de consternar.

FABIANO
(não entendendo a última
palavra)
Tudo bem... Agradecido, patrão.

Fabiano sai da sala e então faz o caminho de volta à


fazenda.

INT. FAZENDA - TARDE

Fabiano entrega o dinheiro para Sinhá Vitória.

NARRADOR
Mais tarde, Vitória conta o
dinheiro que Fabiano recebeu.

Fabiano está nervoso, andando de um lado pro outro.

SINHÁ VITÓRIA
Calma, hómi. Se não vô mi perdê.

Fabiano se senta no chão.

SINHÁ VITÓRIA
Tá faltando.

Fabiano vai e começa a contar o dinheiro desesperado.

SINHÁ VITÓRIA
Pára, hómi, eu vô me perdê.

FABIANO
Eu num posso discuti com o patrão.

SINHÁ VITÓRIA
Pode.

FABIANO
Eu num posso não, Sinhá, intenda
isso di uma vez.
13.

SINHÁ VITÓRIA
Pode sim. Se cê num for, eu vô.

Fabiano dá as costas para Sinhá. Ela acena para os filhos


para eles irem embora.

NARRADOR
Ele sai da cozinha e volta a pensar
nas palavras difíceis que tinha
dito, sentindo-se envergonhado por
não ter entendido quase nada,
tentando até imitar algumas delas.

Sinhá e os filhos vão para a COXIA.

FABIANO
(teatralmente)
“Não tem a necessidade de infurná”.
Cozinhá. Iscarná. Cangalhá.
Cabritá… Não, isso num tá certo.

EXT. FAZENDA - SEMANAS DEPOIS

Fabiano ara a terra, e planta algumas sementes.

NARRADOR
Semanas depois, enquanto Fabiano
trabalha na fazenda, arando a
terra, ouve passos lentos e, ao
olhar pra cima, se depara com o
SOLDADO AMARELO. Ele quase não
acredita quando vê que o homem está
perido e assustado.

SOLDADO AMARELO
(desesperado)
Por favor, me ajude. Tenho que
voltar para a cidade, mas me perdi.

NARRADOR
Fabiano olha para ele e pensa em
matá-lo. Lembra-se da humilhação
que sofreu. Empunhando seu facão,
faz um movimento brusco que assusta
o soldado, e entra num conflito
profundo sobre manter sua honra e
deixá-lo ir embora.

O soldado tenta proteger-se atrás de um mandacaru. Fabiano o


tira de trás do mandacaru e ameaça o matar com o facão. Ele
pega o soldado amarelo pelo colarinho e o joga no chão.
14.

SOLDADO AMARELO
(assustado)
Por favor, não faça isso, me ajude,
eu prometo que nunca mais volto!

O soldado se arrasta mas Fabiano o alcança. Ele ameaça matá-


lo, mas joga a faca para longe. Vira as costas e vai para
casa.

O soldado se levanta e corre pelo corredor principal, saindo


pela PORTA PRINCIPAL da capela.

NARRADOR
O soldado vai embora, e Fabiano,
pensativo, recolhe suas ferramentas
de trabalho e volta pra casa
pensando no que aconteceu.
(pausa)
Tudo continua igual, exceto por
Baleia, que está doente. Fraca e
com feridas profundas pelo corpo,
distancia-se cada vez mais da
família.

EXT. FAZENDA - MEIO-DIA

FILHO MAIS NOVO


Mainha, Baleia vai melhorá?

Sinhá fica em silêncio.

FILHO MAIS VELHO


Vai.

FILHO MAIS NOVO


Painho disse que Baleia tá brava
com a genti. É verdade? Ela tá cum
raiva?

Silêncio.

SINHÁ VITÓRIA
(quase chorando)
Deus vai cuidá da Baleia agora.

Três tiros de espingarda são ouvidos. Os meninos assustam,


mas não fazem nada. Sinhá engole o choro.

O mais novo olha pra ela, e o MAIS VELHO corre de repente


para a porta principal da capela. O mais novo o segue.

Fabiano entra chorando, e toma o corredor da direita,


enquanto os meninos tomam o da esquerda.
15.

Sinhá junta as coisas de Baleia. Dois ossos roídos. Um galho


de uma árvorezinha, e um brinquedo velho de cachorro.

Eles enterram as coisas de Baleia no canto dos instrumentos.

NARRADOR
Os dias continuam passando para a
família, e com eles, os urubus vão
embora, e o corrupião e o pompeu
gritavam novamente por causa do sol
ardente. Fabiano tentava ignorar a
seca iminente, e Sinhá e os meninos
rezavam todas as manhãs e todas as
noites descontentes.

SINHÁ VITÓRIA
Sinhô…

FILHO MAIS NOVO


Abençoa a mainha…

FILHO MAIS VELHO


Painho arando…

FILHO MAIS NOVO


E Baleia que tá aí caçando preá com
o sinhô. Aí é cheio de preá.

FILHO MAIS VELHO


Dá um painho novo pra Baleia aí no
céu com o sinhô, e dêxa ela lambê
as mão grande do painho, brincando
no chiqueiro.

SINHÁ VITÓRIA
Em nome du pai…

FILHO MAIS VELHO


Du filho…

FILHO MAIS NOVO


Do Espírito Santo e da Baleia…

Sinhá ri.

SINHÁ VITÓRIA
‘Mém.

NARRADOR
Assim como os meninos pediram pra
Deus, Baleia dormiu, e acordaria
feliz, num mundo cheio de preás. E
lamberia as mãos de Fabiano, um
Fabiano enorme.
(MORE)
16.

NARRADOR (CONT'D)
As crianças se espojariam com ela,
rolariam com ela num pátio enorme,
num chiqueiro enorme. O mundo
ficaria todo cheio de preás,
gordos, enormes.

A família vai para a COXIA e volta com suas coisas.

NARRADOR
Eles sabem que não há outra
alternativa a não ser recolher o
pouco que têm e dar início a outra
árdua trajetória pelo vasto chão de
terra seca.

SINHÁ VITÓRIA
Será que dessa vez a gente vai pra
cidade?

FABIANO
(ri sem esperança)
É, talvez. A gente encontra
trabalho lá e os meninos vão pra
escola, talvez.

EXT. DESERTO DO SERTÃO - OUTRO DIA

Fabiano lidera a família. Ele vai pelo corredor do meio, o


filho MAIS VELHO pelo corredor esquerdo e o MAIS NOVO e
SINHÁ pelo esquerdo.

NARRADOR
Ela se emociona com a ideia e,
juntos, vão murmurando pelo
caminho, pensando em como a vida
pode ser diferente e como o mundo
deve ser maior do que o que
conhecem dele. Agora, os fortes do
sertão almejam a chegada na cidade,
com a esperança de que possam
realizar seus objetivos num novo
lugar.

NARRADOR (CONT'D)
Pouco a pouco uma vida nova, ainda
confusa, se foi esboçando. Eles se
acomodaram num sítio pequeno, o
que parecia difícil pra Fabiano,
criado solto no mato. Cultivariam
um pedaço de terra. Mudar-se-iam
depois para uma cidade, e os
meninos frequentariam escolas,
seriam diferentes deles.
(MORE)
17.

NARRADOR (CONT'D)
Sinha Vitória esquentava-se.
Fabiano ria, tinha desejo de
esfregar as mãos agarradas à boca
do saco e a coronha da espingarda
de pederneira.

NARRADOR (CONT'D)
Não sentia a espingarda, o saco, as
pedras miúdas que lhe entravam nas
alpercatas, o cheiro de carniças
que empestavam o caminho. As
palavras de sinha Vitória
encantavam-no.
Iriam para diante, alcançariam uma
terra desconhecida. Fabiano
estavacontente e acreditava nessa
terra, porque não sabia como ela
era nem onde era.

NARRADOR (CONT'D)

Repetia docilmente as palavras de


Sinhá Vitória, as palavras que
sinha Vitória murmurava porque
tinha confiança nele. E andavam
para o sul, metidos naquele sonho.

Pausa.

NARRADOR (CONT'D)
Uma cidade grande, cheia de pessoas
fortes. Os meninos em escolas,
aprendendo coisas difíceis e
necessárias. Eles dois velhinhos,
acabando-se como uns cachorros,
inúteis, acabando-se como Baleia.

A primeira cena se repete, mas dessa vez, o filho MAIS NOVO


se arrasta pela porta dos fundos da Capela.

Quando ele chega quase na metade do caminho, ele CAI NO


CHÃO.

SINHÁ VITÓRIA
(cansada)
Fabiano… Acode o menino…

FABIANO entra no auditório.

Ele vai até o filho MAIS VELHO, ao lado da mãe. Eles se


olham. O filho acena para o pai em direção ao MAIS NOVO.
Mexe com o pé. Vira o filho.
18.

FABIANO
(com compaixão, mudado)
Vamo, filho. Acorda.

Ele olha para Sinhá Vitória. Depois, de volta para o menino.

Sinhá senta ao lado da cabeça do filho e faz cafuné nele.


Fabiano se abaixa e levanta a cabeça do filho, e coloca os
pés dele em cima da espingarda.

NARRADOR
Que iriam fazer? Chegariam a uma
terra desconhecida e civilizada,
ficariam presos nela. E o sertão
continuaria a mandar gente para lá.
O sertão mandaria para a cidade
homens fortes, brutos, como
Fabiano, sinha Vitória e os dois
meninos.

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