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Escrito por
Elisa Paulovich
SINHÁ VITÓRIA
FABIANO! FABIANO! Vá acudir o
menino!
Ele vai até o filho mais velho. Mexe com o pé. Vira o filho.
FABIANO
(irritado)
Anda, excomungado.
FABIANO
Eu já não aguento mais essa miséria
do cão.
(pausa, pro filho MAIS
NOVO)
Vamo, me ajude a carregá teu irmão,
vai.
Eles APOIAM o filho mais velho NOS OMBROS. Eles o levam para
as escadas.
2.
FABIANO
Vai pegá as folha, vai.
Tudo congela.
NARRADOR
Essa é a história de uma família.
Uma família formada por um homem
bruto, rude, e amargurado, chamado
Fabiano...
FABIANO
Eu num vô procurá içá pra gente
cumê não, Sinhá.
NARRADOR
Sua esposa Vitória, que sabe fazer
contas…
SINHÁ VITÓRIA
Num precisa disso, hómi. A genti
têm uma macaxêra ainda. Vai dá pra
bastante tempo.
NARRADOR
E os filhos deles.
FABIANO
Falando nela, cadê Baleia?
Sinhá se intromete:
SINHÁ VITÓRIA
(para o MAIS NOVO)
Painho num vai matá Baleia. Eu num
deixo.
NARRADOR
Ah, e a cachorrinha Baleia.
FABIANO
Matar Baleia não. Ainda num vô matá
Baleia.
FABIANO
Mas matá o piriquito num seria má
ideia.
FABIANO
(para o filho MAIS NOVO)
Vai catá a caixa, vai.
Então:
FABIANO (CONT'D)
Eu vô matá o piriquito, Sinhá.
SINHÁ VITÓRIA
(incomodada)
Abibolô, foi? Os minino num vai
gostá, Fabiano.
(MORE)
4.
FABIANO
Sinhá…
SINHÁ VITÓRIA
(para o MAIS VELHO)
Vamo, vem menino.
FABIANO
Manda os minino um pra cada lado,
Sinhá.
SINHÁ VITÓRIA
Meninos, vai um pra cada lado, e
encontra a mãe no fim do caminho.
FABIANO
Vô levá Baleia pra caçá um preá pra
você.
SINHÁ VITÓRIA
Fabiano, venha vê, eu achei uma
casa pra gente!
NARRADOR
Agora, apesar de algumas
inconveniências, eles estavam
contentes…
NARRADOR (CONT’D)
Até que o verdadeiro dono da
fazenda apareceu querendo
explicações.
PATRÃO
(furioso)
Saiam já daqui! O que vocês estão
fazendo aqui?
FABIANO
(apreensivo)
Sinhô, eu sô bom trabalhador.
PATRÃO
Não quero saber se é bom ou não,
esse terreno é meu e eu quero vocês
fora daqui!
FABIANO
(implorando)
Por favor, meus fio num tem teto.
Eu recebo poco, piedade.
PATRÃO
Se é assim, vai ser do meu agrado
você trabalhar aqui.
NARRADOR
Fabiano, que agora tem dinheiro,
pediu pra Sinhá Vitória fazer
contas e dizer quanto ela
precisaria que ele levasse a fim de
comprar as coisas.
SINHÁ VITÓRIA
Num sai do caminho e se perde,
Fabiano. Volta logo.
NARRADOR
Embora Fabiano tenha dito que iria
somente ao mercado, não foi isso
que ele fez. Sempre paranoico
achando que alguém o enganaria, ele
decide ir ao bar pra se livrar
desses pensamentos.
6.
SOLDADO AMARELO
Ei, vem jogar baralho. Vem, vamo.
NARRADOR
Sem pensar duas vezes, Fabiano
decide entrar no jogo, para ganhar
dinheiro por meio do jogo.
SOLDADO AMARELO
Fica esperto. Eu vou colocar uma
carta assim, ó.
NARRADOR
Na mesa se juntam mais jogadores, e
logo a partida se inicia. Fabiano
só observa os jogadores.
SOLDADO AMARELO
Vai homi! Joga a carta!
SOLDADO AMARELO
(animado)
BATI!
SOLDADO AMARELO
Onde cê pensa que vai, seu caipira
pé rapado?
FABIANO
Me solte, fi duma égua!
NARRADOR
Na cadeia, Fabiano tem tempo para
refletir o que tinha acontecido. Se
não fosse por sua esposa Vitória,
ele não estaria naquela situação.
Ele pensava na sua família, e se
estava fazendo o máximo que podia
para prover o que a família
precisava.
NARRADOR (CONT'D)
Fabiano foi liberado pela manhã, e
ele voltou para casa. Enquanto
Sinhá Vitória cuidava dos filhos,
pensava em Seu Tomás, o dono da
fazenda onde ficavam, um homem bem
de vida e que a família admirava,
que poucas vezes conversava com
Fabiano, que quando voltou pra
casa, se surpreendeu com o luxo da
família.
SINHÁ VITÓRIA
Que aconteceu, Fabiano? Cê tá uma
inhaca...
FABIANO
Xinguei a mãe do soldado alesado
com a roupa da cor do canarinho.
Mas num fresque não. Não me amole
muié, vou esfriar a cabeça no
trabaio.
SINHÁ VITÓRIA
(impaciente)
Eu fiquei preocupada contigo, hómi.
Os menino também.
FABIANO
Eu só quero deitar numa cama.
8.
FABIANO
Que sapatos de papagaio são esses,
Sinhá? Ao invés de comprar uma cama
pra genti, compra esse sapato aí,
e--
SINHÁ VITÓRIA
(sobrepondo Fabiano)
É culpa sua que a genti tá sem
dinheiro, Fabiano.
FABIANO
Pódi sê que sim, pódi sê que não. E
a genti conseguiu saí do inferno
que a genti vivia, Sinhá, olha isso
aqui. Nós num temo cama, mas temo
teto pra morá.
NARRADOR
Sinhá se preocupava se Fabiano
sabia se aquilo nãõ era permanente,
e cria que dias melhores viriam
junto com a tão sonhada cama.
NARRADOR
O menino mais velho estava
intrigado. Nunca tinha ouvido
aquilo antes. Camiseta. Ele gostava
de aprender palavras novas, mas era
difícil, porque os seus pais só
falavam o necessário, ou nem isso.
Um dia, ele resolveu perguntar uma
coisa pra sua mãe.
Sinhá está sentada com o filho mais velho num canto. O mais
novo se aproxima.
SINHÁ VITÓRIA
Um lugar ruim, rim demais.
(pensa um pouco)
Quente.
NARRADOR
Enquanto isso, Baleia pensava no
osso que roeria após o jantar.
NARRADOR
O tempo ruim. O tempo da seca,
quando os seus pés doíam, e ele não
queria mais andar. Isso é o
inferno.
NARRADOR (CONT’D)
Os meninos observavam os pais nas
atividades diárias. Pro mais novo,
a mãe era uma rainha, e ela mandava
em cada preá, em cada papagaio e em
cada uma das Baleias que eistiam no
mundo inteirinho. Para o mais
velho, Fabiano era um herói,
vestido um guarda-peito, botas com
esporas, chapéus e perneiras.
Quando ele subia num boi, o menino
imaginava o seu pai num alazão,
numa postura majestosa.
NARRADOR
Então Sinhá finalmente disse.
SINHÁ VITÓRIA
Nóis vai numa festa.
FABIANO
(impressionado)
Sinhá…
SINHÁ VITÓRIA
Avalie, hómi.
FABIANO
(para os filhos)
Caminha com cuidado.
NARRADOR
Ao chegarem à festa, se deparam com
tanta gente que se perdem de vista.
As horas se passam e cada um se
encontra num lugar.
NARRADOR (CONT’D)
Os meninos, Sinhá Vitória e Baleia,
sentados na calçada, observam as
luzes, as pessoas, e ouvem a
conversa, a música e pensam em tudo
o que nunca tinham visto.
NARRADOR (CONT’D)
Fabiano, depois de ter bebido,
xinga e gesticula contra o soldado
amarelo. Amaldiçoa-o e então se
levanta, limpando as mãos nas
calças e procurando pela família a
passos trôpegos.
NARRADOR (CONT’D)
Dias depois, a família se encontra
na fazenda. Sinhá Vitória faz as
contas do pagamento do mês e diz
para Fabiano ir à cidade receber o
dinheiro.
SINHÁ VITÓRIA
(fazendo contas com GRÃOS
DE FEIJÃO)
É, são mil réis. Vai falar com o
patrão, ele vai pagar.
NARRADOR
Fabiano vai a cidade e ao passar
pela praça onde o encontrou, se
lembra do soldado mais uma vez.
Decide ignorar o pensamento e se
dirige ao escritório do patrão.
FABIANO
Boa tarde, sinhô. Vim buscar o
pagamento.
12.
PATRÃO
Certo. Tá aqui. Recolhe cinquenta
reais e entrega pro vaqueiro.
FABIANO
Com todos o respeito, mas não falta
nada?
PATRÃO
Não, não tem nada faltando. Eu
mesmo já tinha conferido antes. Não
tem a necessidade de consternar.
FABIANO
(não entendendo a última
palavra)
Tudo bem... Agradecido, patrão.
NARRADOR
Mais tarde, Vitória conta o
dinheiro que Fabiano recebeu.
SINHÁ VITÓRIA
Calma, hómi. Se não vô mi perdê.
SINHÁ VITÓRIA
Tá faltando.
SINHÁ VITÓRIA
Pára, hómi, eu vô me perdê.
FABIANO
Eu num posso discuti com o patrão.
SINHÁ VITÓRIA
Pode.
FABIANO
Eu num posso não, Sinhá, intenda
isso di uma vez.
13.
SINHÁ VITÓRIA
Pode sim. Se cê num for, eu vô.
NARRADOR
Ele sai da cozinha e volta a pensar
nas palavras difíceis que tinha
dito, sentindo-se envergonhado por
não ter entendido quase nada,
tentando até imitar algumas delas.
FABIANO
(teatralmente)
“Não tem a necessidade de infurná”.
Cozinhá. Iscarná. Cangalhá.
Cabritá… Não, isso num tá certo.
NARRADOR
Semanas depois, enquanto Fabiano
trabalha na fazenda, arando a
terra, ouve passos lentos e, ao
olhar pra cima, se depara com o
SOLDADO AMARELO. Ele quase não
acredita quando vê que o homem está
perido e assustado.
SOLDADO AMARELO
(desesperado)
Por favor, me ajude. Tenho que
voltar para a cidade, mas me perdi.
NARRADOR
Fabiano olha para ele e pensa em
matá-lo. Lembra-se da humilhação
que sofreu. Empunhando seu facão,
faz um movimento brusco que assusta
o soldado, e entra num conflito
profundo sobre manter sua honra e
deixá-lo ir embora.
SOLDADO AMARELO
(assustado)
Por favor, não faça isso, me ajude,
eu prometo que nunca mais volto!
NARRADOR
O soldado vai embora, e Fabiano,
pensativo, recolhe suas ferramentas
de trabalho e volta pra casa
pensando no que aconteceu.
(pausa)
Tudo continua igual, exceto por
Baleia, que está doente. Fraca e
com feridas profundas pelo corpo,
distancia-se cada vez mais da
família.
Silêncio.
SINHÁ VITÓRIA
(quase chorando)
Deus vai cuidá da Baleia agora.
NARRADOR
Os dias continuam passando para a
família, e com eles, os urubus vão
embora, e o corrupião e o pompeu
gritavam novamente por causa do sol
ardente. Fabiano tentava ignorar a
seca iminente, e Sinhá e os meninos
rezavam todas as manhãs e todas as
noites descontentes.
SINHÁ VITÓRIA
Sinhô…
SINHÁ VITÓRIA
Em nome du pai…
Sinhá ri.
SINHÁ VITÓRIA
‘Mém.
NARRADOR
Assim como os meninos pediram pra
Deus, Baleia dormiu, e acordaria
feliz, num mundo cheio de preás. E
lamberia as mãos de Fabiano, um
Fabiano enorme.
(MORE)
16.
NARRADOR (CONT'D)
As crianças se espojariam com ela,
rolariam com ela num pátio enorme,
num chiqueiro enorme. O mundo
ficaria todo cheio de preás,
gordos, enormes.
NARRADOR
Eles sabem que não há outra
alternativa a não ser recolher o
pouco que têm e dar início a outra
árdua trajetória pelo vasto chão de
terra seca.
SINHÁ VITÓRIA
Será que dessa vez a gente vai pra
cidade?
FABIANO
(ri sem esperança)
É, talvez. A gente encontra
trabalho lá e os meninos vão pra
escola, talvez.
NARRADOR
Ela se emociona com a ideia e,
juntos, vão murmurando pelo
caminho, pensando em como a vida
pode ser diferente e como o mundo
deve ser maior do que o que
conhecem dele. Agora, os fortes do
sertão almejam a chegada na cidade,
com a esperança de que possam
realizar seus objetivos num novo
lugar.
NARRADOR (CONT'D)
Pouco a pouco uma vida nova, ainda
confusa, se foi esboçando. Eles se
acomodaram num sítio pequeno, o
que parecia difícil pra Fabiano,
criado solto no mato. Cultivariam
um pedaço de terra. Mudar-se-iam
depois para uma cidade, e os
meninos frequentariam escolas,
seriam diferentes deles.
(MORE)
17.
NARRADOR (CONT'D)
Sinha Vitória esquentava-se.
Fabiano ria, tinha desejo de
esfregar as mãos agarradas à boca
do saco e a coronha da espingarda
de pederneira.
NARRADOR (CONT'D)
Não sentia a espingarda, o saco, as
pedras miúdas que lhe entravam nas
alpercatas, o cheiro de carniças
que empestavam o caminho. As
palavras de sinha Vitória
encantavam-no.
Iriam para diante, alcançariam uma
terra desconhecida. Fabiano
estavacontente e acreditava nessa
terra, porque não sabia como ela
era nem onde era.
NARRADOR (CONT'D)
Pausa.
NARRADOR (CONT'D)
Uma cidade grande, cheia de pessoas
fortes. Os meninos em escolas,
aprendendo coisas difíceis e
necessárias. Eles dois velhinhos,
acabando-se como uns cachorros,
inúteis, acabando-se como Baleia.
SINHÁ VITÓRIA
(cansada)
Fabiano… Acode o menino…
FABIANO
(com compaixão, mudado)
Vamo, filho. Acorda.
NARRADOR
Que iriam fazer? Chegariam a uma
terra desconhecida e civilizada,
ficariam presos nela. E o sertão
continuaria a mandar gente para lá.
O sertão mandaria para a cidade
homens fortes, brutos, como
Fabiano, sinha Vitória e os dois
meninos.