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MUITO ALÉM

DE ASSIS
“Até quando a carne prevalecerá sobre o
espírito?”
01 CENA: VOCÊ E A MORTE

Entra Leão com uma lanterna na mão,


cantando “Lá vai São Francisco”. Ele
pendura a lanterna e abre luz geral. Leão
delicia-se com um pedaço de pão e guarda
algumas migalhas no bolso. Entra uma
jovem logo atrás:

LEÃO - Lá vai São Francisco, pelo caminho.


De pés descansos, tão pobrezinho...
JOVEM – Você é o senhor Leão?
LEÃO – Sim?!
JOVEM – Você era um dos companheiros
de Francisco?
LEÃO – Sim?!
JOVEM – Que esteve em nossa aldeia
recentemente?
LEÃO – Sim?!
JOVEM – (entregando um pão) Muito
obrigada senhor Leão! Muito obrigada!

A Jovem sai.

LEÃO - Sabe, irmã fome, Deus age mesmo


de forma inesperada, tanto que deixou
nascer sobre a Terra, tu, um trovador!

02 CENA: NASCIMENTO DE FRANCISCO

Abre foco de luz central. Entra em cena


Picalina e suas parteiras Geovana e Julia.
Geovana ascende as velas espalhadas pelo
cenário, enquanto Julia auxilia Picalina que
sente as contrações:

JÚLIA – Força, Picalina!


GEOVANA – Isso Senhora!
JÚLIA – Vamos, Picalina!
GEOVANA - Falta pouco!
JULIA - Vamos, Picalina! Respira! Falta
pouco!

A música cresce. Picalina dá a luz a


Francisco. Pega o menino nos braços
apoiada pelas parteiras:

JÚLIA – Nasceu, Picalina! O seu menino


nasceu!
PICALINA- Seu nome será João!
GEOVANA- Vou avisar ao senhor
Bernardone!

Geovana sai de cena. Black out.

03 CENA: TROVADOR FRANCISCO

Abre luz lateral. Leão muda o cenário.


Abre foco de luz geral.

LEÃO – “Francisco, Francisco, o


pequenino francês”. Enquanto eu vivia a
mendigar, você vivia aos versos e trovas.
“Francisco, Francisco, o pequenino
francês”.

Da coxia Silvestre e Bernardo chamam


por Francisco.

BERNARDO – Francisco?!
SILVESTRE - Francisco!

Entram Silvestre e Bernando


procurando por Francisco.

BERNARDO – Francisco?
SILVESTRE – Francisco?
BERNARDO - Cadê Francisco que não está
na loja de seu pai?
SILVESTRE - Se Francisco não está aqui,
deve estar a galantear alguma donzela por
ai!
BERNARDO - Do jeito que ele canta mal, só
deve receber pedradas!

Francisco aparece.
TODOS - Levantem as mãos, amigos
sinceros
Esqueçam suas preocupações.
Prestem atenção: Hoje já é ontem
Sorriam e fiquem contentes
Olhem para frente
Pois que amanhã
Seremos todos cavaleiros!
SILVESTRE – Vamos à taberna, Francisco!
BERNARDO – Vamos, Francisco! Bebidas!
SILVESTRE – Música!
BERNARDO – Danças!
SILVESTRE e BERNARDO – Donzelas!
FRANCISCO – Agora não posso! Alguém
tem que trabalhar!
BERNARDO – Deixa disso Francisco!
SILVESTRE- Vamos logo!
FRANCISCO - Vão vocês, me encontro com
vocês mais tarde!
SILVESTRE e BERNARDO – Te esperamos
lá!
Os amigos de Francisco saem de cena.
Entram Picalina e Pedro Bernardone
trazendo um baú

BERNARDONE: - Francisco!
BERNARDONE – Meu filho. Um
carregamento muito importante está para
chegar. Trata-se de uma encomenda
especial para você!
FRANCISCO – Uma encomenda?
BERNARDONE – Bem, é para você e seus
amigos! Deverá chegar ao entardecer.
FRANCISCO – Mas é necessário tanto
mistério? Do que se trata meu pai?!
BERNARDONE – Tenha paciência filho de
Bernardone! Pois em breve poderá realizar
o seu grande sonho: Tornar-se um
cavaleiro!
FRANCISCO – Um cavaleiro do reino!
BERNARDONE – Sim! Como esperei por
esse momento, meu filho um cavaleiro, um
nobre! Finalmente é chegada a sua
oportunidade, Francisco. Assis anunciará
em poucos dias os clarins do combate
contra Perúzia e você terá sua chance. A
chance de mostra-se um cavaleiro.
PICALINA – (preocupada) Perúzia é muito
poderosa e você, meu filho, nunca lutou...
Nunca empunhou uma espada!
BERNARDONE – Ora Picalina! Subestima
Francisco? É da natureza do homem lutar e
ele tem o sangue dos Bernardone em suas
veias. É um homem! Eu me orgulho de
você Francisco! Perúzia vai tombar diante
da vergonha de ter acolhido aqueles
gibelinos!

Leão entra em cena e fica entre os


tecidos.

PICALINA - Francisco, leve ao menos uma


manta para se aquecer. Nas cercanias de
Espoleto faz muito frio à noite.
BERNARDONE – Por favor, Picalina! As
armaduras já me custam uma fortuna...
Uma manta... Oras! Agora, venha
Francisco, me ajude a separar algumas
peças. É uma encomenda muito
importante! Francisco pegue os brocados e
as sedas.

Picalina sai. Pedro está debruçado sob


um baú. Francisco aproxima-se dos tecidos
enquanto Leão se acerca dele

LEÃO – Senhor, tenha a bondade de ajudar


a um pobre mendigo. Preciso comer e não
tenho nada. Poderia me dar uma dádiva de
pão?

Bernardone requisita a presença de


Francisco.

BERNARDONE – Francisco, onde estão os


tecidos?
FRANCISCO – Aqui estão pai.
BERNARDONE – Perfeito!
FRANCISCO - A propósito, aproveite para
comprar todos os tecidos que puder.
BERNARDONE – Por que? Não temos o
bastante no depósito?
FRANCISCO – Pai, me escute, após a
batalha os tecidos valerão o dobro do
preço.
BERNARDONE – Está certo disso Francisco?

Leão sai de cena.

FRANCISCO – Pode confiar em mim!


BERNARDONE – Esse é o meu menino!
Você vale ouro Francisco!

Francisco olha na direção onde Leão


estava, como não o vê começa a recolher
os tecidos que encontra, chamando a
atenção do pai

BERNARDONE – O que aconteceu,


Francisco?
FRANCISCO – Pai preciso sair! Lembrei-me
de algo muito importante que deveria ter
feito.
BERNARDONE – Vai meu filho. Mas,
lembre-se, ao entardecer!
Bernardone sai. Francisco movimenta-
se em cena girando o cenário. Mudança de
luz. Entra Leão e Francisco vai até ele,
ajoelha-se e o cobre com o tecido.

LEÃO – O senhor não deve se aproximar


muito de mim, as pessoas vão se zangar!
FRANCISCO – Mas por que as pessoas se
zangariam? Eu sou El Trovatori!
LEÃO – Não, não! Com o senhor não! É
comigo que elas se zangam!
FRANCISCO – Não se preocupe! Estamos
nos ânimos de uma batalha muito
importante...

Sons de guizos de leprosos. Francisco


interrompe sua fala.

LEÃO – O que foi?


FRANCISCO – Você ouviu isso? São
leprosos!
LEÃO – Devem estar a alguns quarteirões.
FRANCISCO – Me perdoe... Mas, eu tenho
que ir!
04 CENA: ALEGRIA VAZIA

Francisco sai. Mudança de luz, foco em


Leão que continua em cena e gira o
cenário.

LEÃO – Francisco, você era entusiasmado e


ingênuo como todo idealista... Mas, sabe,
aquele foi o melhor presente que eu já
havia ganhado. É claro que eu vendi todos
os tecidos para comprar comida... (pausa)
Eram tempos difíceis! Estávamos nos
ânimos de uma batalha muito importante.

Leão sai de cena. Entram os amigos de


Francisco. Eles conversam entre si

BERNARDO – O que foi Francisco, por quê


nos chamou aqui?
FRANCISCO – E eu lá preciso de motivos?
SILVESTRE – Francisco, já soube da
novidade? O Germanos estão encurralados
em Perúzia!
BERNARDO – A glória nos espera. Filhos de
Assis! O santo Papa nos convocou a lutar
contra o império infame de Frederico
Barba-Roxa. Vamos lutar e vencer pela paz!
FRANCISCO – Iremos lutar pela paz?
SILVESTRE – As aldeias estão em chamas
Francisco! Você deve escolher um lado. Ou
você está com os germânicos, ou você está
com o Santo Papa!
FRANCISCO - É claro, vocês tem toda
razão! Devemos fazer tudo que existe em
nosso alcance! Vamos defender as cores de
Assis! Aliás, eu tenho uma surpresa para
vocês!

Abre luz geral, as armaduras aparecem.


Francisco e os amigos as admiram.

SILVESTRE – (próximo das armaduras) Meu


Deus! Elas são lindas! - Qual delas eu posso
escolher, Francisco?
FRANCISCO – Naturalmente uma que seja
da sua altura. Avante filhos de Assis!

Todos gritam empunhando suas


espadas. Mudança de luz. As armaduras
transformam-se nos inimigos e cercam
Francisco e seus amigos com lanças. Eles
são abatidos em combate. Black out.

05 CENA: RESSURREIÇÃO DE FRANCISCO

Abre foco de luz em Francisco. Sons de


espadas tinindo, sons de pessoas sofrendo.

JESUS – Francisco! Quem é mais poderoso?


O servo ou o senhor?
FRANCISCO – O Senhor!
JESUS – Então porque vais seguir ao servo
e não ao senhor?

Black out. Abre luz lateral e Francisco e


os demais vão se levantando. Abre luz
geral. Todos saem de cena. Picalina e
Bernardone entram em busca do filho.

BERNARDONE – Francisco! Graças a Deus


você está vivo! A guerra acabou. Você está
livre meu filho! (pausa) Anime-se
Francisco! Você terá outras oportunidades
de tornar-se um cavaleiro! (pausa) Sabe o
conselho que me deu sobre os tecidos?
Você tinha razão, Francisco! Eles dobraram
de preço! Temos agora uma fortuna!
FRANCISCO – Você tinha razão mãe, eu
senti muito frio!

Saem todos. Picalina ampara Francisco.


Black out. (Mudança de cenário)

06 CENA: A FEBRE

Entram Picalina e Bernardone em cada


extremo do palco para rogar:
PICALINA – Senhor, meu Deus! Venho lhe
agradecer por meu filho Francisco, ter
retornado da guerra. E venho te pedir que
o auxilie. Ele está sofrendo, tem febres e
delírios.
BERNARDONE – Senhor, meu Deus! Eu não
tenho jeito para essas coisas, mas eu não
posso mais ver a agonia de meu filho e
minha esposa. Sempre fiz de tudo pela
minha família.
PICALINA – Permita que Francisco
melhore, que ele desperte, que volte a ser
o menino feliz que sempre foi.
BERNARDONE - Francisco ainda tem muito
a oferecer. Ele será um grande cavaleiro e
defenderá a tua igreja. Eu te peço, poupe
Francisco.
JUNTOS – Amém!

Ambos saem de cena. Black out

06 CENA: CASA DE CLARA


Abre Luz geral. Clara está bordando
com Inês.

INÊS – Clara! Clara! Já ouviu as novidades?


CLARA – Quais novidades?
INÊS – Que você e mamãe vão à loja dos
Bernardone para encomendar seu enxoval!
CLARA – E essas são as novidades então?!
INÊS – Clara! Não sei por que está tão
desapontada! Você irá realizar o sonho de
toda mulher!
CLARA - E que sonho é esse, Inês?
INÊS – Casar-se! Ter filhos... Dizem que
quem ama não dorme, não come, apenas
chora, chora sempre! Será isso mesmo
Clara?
CLARA – Bem, eu não sei. Mas se é assim,
não tenho nada a temer. Por sorte durmo
bem, como com gosto e se choro, choro de
rir (as duas dão risada)
INÊS – (olhando para os lados) Dizem que o
filho dos Bernardone não está nada bem.
Dizem que após ter retornado da guerra
passou por febres, delírios e quase
morreu... Mas que agora, após ter se
recuperado, chora e ri sem motivos e
caminha pela Úmbria cantarolando
músicas para o sol, para os pássaros...
Dizem também que o senhor Bernardone
está fazendo de tudo para que o filho volte
a combater!
CLARA – Cavaleiros sem causa! (pausa)
Mas você anda muito bem informada
sobre os assuntos da cidade, Inês!
INÊS – Você sabe o quanto Francisco é
popular, todos comentam o que está
acontecendo! Você poderá ver com seus
próprios olhos quando for escolher seu
enxoval!
CLARA – Inês, eu não manifestei o desejo
de me casar!
INÊS – E o que você fará, Clara?
CLARA – Eu não me casarei! A tanto que
meu coração me pede, que mesmo se eu
fosse surda ainda poderia ouvi-lo.

Pavarone, ouvindo a conversa das


filhas, grita.
PAVARONE – Clara! De novo com
rebeldias! (Joga as cortinas da casa no
chão) Ortolana!!
ORTOLANA – Me chamou, Pavarone,
querido?

As meninas se escondem atrás da mãe

PAVARONE – Clara disse que não vai se


casar!
ORTOLANA – Calma, Pavarone, são
meninices, coisas da idade. Clara irá se
casar, não é, Clara?
CLARA – Pai, já disse que não quero me
casar!
PAVARONE – Se você soubesse como é
raro encontrar um bom casamento,
aprenderia a valorizar as oportunidades!
Nós pertencemos a mais alta aristocracia
de Assis, Clara! Somos nobres! Não é fácil
manter essa posição. Aprenderá a respeitar
e amar o seu futuro marido.
CLARA – Mas pai...
PAVARONE – Você irá agora mesmo à loja
dos Bernardone com sua mãe e irá
escolher o seu enxoval. Está decidido! Vá
se arrumar!
ORTOLANA – Claro, querido. Iremos agora
mesmo! Clara!

Ortolana e Clara saem de cena. Inês


recolhe os bordados. Os atores de coxia
mudam os cenários. Mudança de luz.

08 CENA: MATRIMÔNIO DE FRANCISCO

Francisco entra em cena contemplando


um passarinho. Som de pássaros cantando.
Entra o senhor Bernardone e o observa.

FRANCISCO – Leve passarinho, que zig-


zagueia pelo ar cantando esse malabarismo
mágico!
BERNARDONE – Meu filho, você não sabe
o quanto é bom vê-lo assim, cheio de
energia, ânimo, recuperado. Foram muitos
meses de agonia!
FRANCISCO – Eu me sinto muito feliz meu
pai!

Entram Clara e Ortolana.

BERNARDONE – Que prazer em recebê-las!


ORTOLANA – Olá Senhor Bernardone...
João! Nós viemos aqui para encomendar o
enxoval de casamento de minha filha,
Clara!
BERNARDONE – Sim! Francisco pegue
aquelas sedas!
FRANCISCO – Este tecido é idêntico ao
usado por Matilde de Canossa, quando se
encontrou com o imperador!
ORTOLANA – É muito bonito! O que acha,
Clara?
CLARA – Eu diria que é perfeito. Se
decidirem me casar com um imperador!
BERNARDONE – Senhora Ortolana, venha,
temos outros tecidos que sua filha pode se
interessar...
Bernardone e Ortolana seguem para o
fundo do palco. Clara observa Francisco
que segue novamente o passarinho. Som
de pássaros.

CLARA – Dizem que você chora e ri sem


motivo. Que sai a cantar para o sol e aos
pássaros.
FRANCISCO – Também acha que estou
louco?
CLARA – Não, achava que estava louco
antes.

Ortolana se volta para a filha.

ORTOLANA – Obrigada senhor Bernardone.


Agendaremos uma outra visita!
CLARA – Até logo! Que Deus abençoe seus
negócios, cavaleiro Francisco.
FRANCISCO – Que Deus abençoe a sua vida
de esposa!
As clientes saem. Bernardone se
aproximam de Francisco:

BERNARDONE – Francisco, sei que você


acabou de se recuperar, mas você não
gostaria de fazer aulas de esgrima? Ainda
ontem ouvi dizer que o melhor professor
ficará alguns dias em Assis...

Entram três amigos de Francisco


animadamente:

SILVESTRE - Francisco!
BERNARDO – Pegue seu alaúde, Francisco!
Hoje vamos celebrar!
FRANCISCO – Celebrar o que?
SILVESTRE – Ontem celebramos porque era
sexta, hoje celebramos porque é sábado e
amanhã celebraremos porque é domingo!
(todos dão risadas)
BERNARDONE – Isso mesmo, Francisco!
Um pouco de diversão lhe fará bem! Vá
meu filho! Distraia-se! Picalina, estou com
fome, o que tem para comer?
TODOS – Então vamos! Venha Francisco!

Bernardone sai por um lado e os


amigos de Francisco por outro, Francisco
permanece. Bernardo volta para chamá-lo.

BERNARDO – Francisco! (pausa) Por que


está mergulhado nessa melancolia?
FRANCISCO – É que estou pensando em
me casar.
BERNARDO – Casar-te? Volte Silvestre,
volte! Francisco tem uma surpresa!
SILVESTRE – O que foi?
FRANCISCO – Eu vou me casar!
SILVESTRE - Quem será essa diva que te
arrebatou o coração?
FRANCISCO – Será a dama mais bela, mais
pura... A senhorita pobreza!
BERNARDO – Com a pobreza? Francisco,
você ainda está doente?!
FRANCISCO – Não Bernardo! Vão, hoje eu
não irei com vocês!
BERNARDO – Vai sair e caminhar pela
Úmbria novamente?!
FRANCISCO – Isso mesmo, Bernardo! Hoje
vou visitar a velha igrejinha de São Damião!
BERNARDO – Você está muito diferente
Francisco.

Silvestre e Bernardo saem de cena.


Francisco caminha pelo palco e gira o
cenário. Mudança de luz.

08 CENA: CHAMADO DE FRANCISCO

Francisco vai até o centro do palco e se


ajoelha.

JESUS – Francisco, não vês que a minha


igreja está em ruínas? Olha Francisco, as
fendas, as raízes ousadas... Não vês,
Francisco, que a minha Igreja está em
ruínas? (pausa) Eu te quero pedir, para que
tu reergas a minha igreja.
Francisco corre pelo palco muda os
cenários. Pega os tecidos da loja e joga-os
para a coxia. O povo pede por tecidos na
coxia.

FRANCISCO – Venham! Venham! A preço


que todos podem comprar!
POVO – Panos tão baratos! Mais! Olhe a
seda! Tão lindos! Tecidos baratos vejam!
Venham!

Pedro Bernardone entra bruscamente.

BERNARDONE – Francisco, o que você está


fazendo?
FRANCISCO – Eu estou vendendo os seus
tecidos!
BERNARDONE – Venha aqui, Francisco! E
quem mandou você vende-los?
FRANCISCO – Estavam no estoque há
muito tempo.
BERNARDONE – (pausa) Sim, é verdade! E
quanto você conseguiu ganhar?
FRANCISCO – Bastante
BERNARDONE – E onde está o dinheiro?
FRANCISCO – Eu pretendo investir o
dinheiro para reconstruir a ermida de São
Damião!
BERNARDONE – O que? (pausa)
Reconstruir o que?
FRANCISCO – A igreja de São Damião! Que
fica...
BERNARDONE – Eu sei onde fica a igreja de
São Damião. Um monte de ruínas!
(ofegante) Meu Deus... Meu Deus... (pega
agressivamente Francisco pelos braços)
Como é que você pode pensar em fazer
uma coisa dessas? Você ficou
completamente louco! Louco! Isso foi
demais! Você perdeu o juízo! (acorrenta
Francisco) Você não vai sair daqui, até que
eu recupere o meu estoque! Francisco, eu
não vou te perder.

Bernardone sai apressado. Foco de Luz


em Francisco. Picalina entra.

PICALINA - Meu filho!


FRANCISCO – Mãe!
PICALINA – O que se passa com você?
FRANCISCO – O Senhor falou mais alto que
o servo, mãe!
PICALINA – Meu filho... (pausa) Devem ter
sido as febres, você está desvairando!
FRANCISCO – Não, não, mãe! Eu nunca
estive mais lúcido em toda a minha vida!
PICALINA – Então desista dessa loucura de
reconstruir igrejas.
FRANCISCO – Mãe... Nós nos escondemos
sob nossas roupas bonitas e mentimos uns
para os outros para nos convencer de que
somos felizes. E nos esquecemos da única e
verdadeira razão pela qual ser feliz: que
Deus nos ama! Deus nos ama tanto mãe,
que está em todas as coisas, em todos os
lugares e também dentro de nós. Jesus me
chamou para relembrar o seu evangelho.

Picalina o liberta.

FRANCISCO – Mãe...
PICALINA – Vai ave de Deus! E canta o teu
hino ao teu Senhor! (levantando-se junto
de Francisco) Eu aguentarei a ira de seu
pai! (Abraça-o) Vai ave livre.

Mudança de luz. Entra Bernardone.


Abre luz geral

BERNARDONE – Picalina! Onde está


Francisco?!
PICALINA – Enquanto você esteve fora eu o
libertei Pedro!
BERNARDONE – Você fez o que?
PICALINA – Ele não podia mais ficar preso
como um animal!
BERNARDONE – Meu Deus! Estão todos
loucos! Esta família enlouqueceu...
PICALINA – Pedro ele é nosso filho!
BERNARDONE – Onde ele está?
PICALINA – Ele voltou a São Damião... E
vive a pedir coisas nas ruas de Assis para
reconstruir a igreja.
BERNARDONE – Isso não pode ser! Isso
não pode ser!
PICALINA – Pode parecer absurdo, mas ele
está feliz.
BERNARDONE – Chega!

Black out.

09 CENA: AUDIÊNCIA COM DOM GUIDO

Sons de pessoas rindo, gargalhando e


cochichando. Abre luz geral. Francisco está
no centro do palco rodeado por pessoas o
ridicularizando.

TODOS – (risos, insultos, piadas)


FRANCISCO – Aqui estou eu, meus amigos!
Quem é mais insensato, senão o homem
que gasta em excesso? Uma pequenina
ajuda é tudo o que eu peço.
TODOS – (risos, insultos, piadas)

Entra Pedro Bernardone e toma


Francisco pelo braço, arrastando-o para
frente do palco. Marcação com o elenco
em palco. Surge ao alto o Bispo Dom
Guido.

DOM GUIDO – Senhor Pedro Bernardone,


convoco essa Assembléia, em frente a
praça de São Jorge, para esclarecer por
definitivo o problema que surgiu entre o
senhor e o seu filho.

Povo dirige o olhar de Dom Guido para


Pedro Bernardone e congelam em poses de
crítica social.

BERNARDONE – Esclarecer, Senhor? Não


há nada para esclarecer! Meu filho é um
ingrato, não serve para nada! A única coisa
que sabe fazer é se aproveitar de seu pai. É
isso! Ele quer sair a noite, juntar-se com os
amigos para se divertir até o dia
amanhecer. O pai, paga. Ele precisa de
armas para ir às guerras e brincar de
cavaleiro. O pai, paga. É preciso tirá-lo da
cadeia? O pai, paga. E ele o que faz? Ele
esvazia o meu depósito. Vende todos os
meus tecidos para reconstruir uma igreja
sem importância. (pausa) Essa é a situação
Dom Guido.

Povo olha para Dom Guido.

DOM GUIDO – E você, Francisco? Que tem


a dizer em sua desculpa?

Todos dirigem o olhar inquisidor para


Francisco e congelam.

FRANCISCO – Eu digo que sou um filho


ingrato. Pedro Bernardone foi para mim o
melhor pai que eu poderia ter. Quando eu
o olhava ele me olhava. Quando eu pedia
benção ele me abençoava. Te agradeço pai,
mas agora renuncio a tudo que é seu: teu
nome, teus bens, tua honra. Porque de
agora em diante falarei pai nosso que estás
no céu! (Francisco retira sua camisa)

Black out.
10 CENA: O SALTO

Entra Leão. Abre luz geral

LEÃO – A senhora Pobreza. Mãe da


bonança, da riqueza, da fartura... De tão
generosa que é também acolhe a irmã
fome, o irmão frio, a irmã dor. (pausa)
Família grande essa sua Francisco! Eu
nunca soube quem eram meus pais... De
onde eu vim... Sou um indigente, mas você
me chamou e fez da sua a minha família
também. Feliz do dia em que te
reencontrei Francisco!

Leão pede esmolas de um lado do


palco. Francisco está pedindo do outro.
Ambos aproximam-se até trombarem de
costas.

FRANCISCO – Senhor, tenha a bondade de


ajudar a um pobre mendigo. Preciso comer
e não tenho nada. Poderia me dar uma
dádiva de pão?
LEÃO – (sem palavras)
FRANCISCO – Meu velho amigo mendigo,
por acaso tens uma migalha para dividir
comigo?
LEÃO – Tudo o que eu tenho são dois
olhos, dois ouvidos, um nariz e uma boca
faminta!
FRANCISCO – E um coração! Um coração
Leão!
LEÃO – Sim, um coração... Então é
verdade, você é o louco que abandonou
tudo para mendigar nas ruas?
FRANCISCO – Não me limito a pedir e
mendigar. Me exercito na arte de pedir e
na ciência de receber negativas.
LEÃO – E não tem fome?
FRANCISCO – Haa... A irmã fome, que não
tem moral e não tem religião, é uma
companheira fiel e dedicada. Não me
abandona em nenhum instante!
LEÃO – E como faz para comer?
FRANCISCO – Veja, meu amigo, olhe as
aves no céu! Elas não plantam nem
semeiam, no entanto, Deus tudo provê.
Deus está em toda a parte, antes eu estava
habituado a encontrar Deus na igreja, mas
agora... Eu vejo Deus em toda a parte. Isso
me alimenta.

Sons de guizos. Um leproso entra


batendo com seu guizo indo em direção ao
centro do palco. Francisco e Leão vão para
o fundo do palco. O Leproso entra no
centro do palco e estende a mão. Francisco
entrega um pedaço de pão ao leproso que
continua com a mão estendida. Francisco o
abraça. Todos saem de cena. Black out.
Atores de coxia mudam o cenário.

11 CENA: FRANCISCO NA IGREJINHA DE


SÃO DAMIÃO

Abre luz geral. Clara e Inês entram com


uma cesta de pão:
INÊS – Clara, você é mesmo impossível! O
que tanto queria ver aqui?
CLARA – Com ou sem dinheiro, Inês,
Francisco está reconstruindo essa igreja.
INÊS – Mas porque reconstruir uma igreja
que ninguém mais freqüenta? Que
ninguém mais se lembra?!
CLARA – Por isso mesmo! Porque ninguém
mais se lembra.
CLARA – Não estamos fazendo nada de
errado!
INÊS – Você conhece papai, ele ficará
furioso se descobrir que você esteve aqui,
justamente onde Francisco mora!
Principalmente agora, que vêem Francisco
como um mendigo.

Francisco e Leão entram.

FRANCISCO – Estou dizendo Leãozinho de


Deus! O bispo Dom Guido virá aqui hoje!
Disse que tem urgência em falar conosco!
INÊS – (sussurrando para Clara) Vamos
embora!
LEÃO – Ai meu Deus do céu! (vendo Clara e
Inês)
FRANCISCO – Clara! Me desculpe, mas não
tenho mais tecidos para oferecer, nem
mesmo uma cadeira para se sentar.
CLARA – Mas não ficou sem as palavras,
pelo que ouvi dizer!
FRANCISCO – Uma pena nem todos a
apreciarem.
CLARA – Está enganado! Há alguém que as
aprecia muito!
INÊS – Temos que ir Clara! Vamos!

Clara entrega um pão a Francisco e sai


apressada com a irmã.

LEÃO – Eu não acredito! Passamos o dia


inteiro pedindo uma migalhinha que fosse
e, durante todo esse tempo, a comida
esteve aqui, esperando por nós!
FRANCISCO – Deus age de forma
inesperada, Leão.
LEÃO - Inesperadíssima!
FRANCISCO - Pedir não é a melhor forma...
LEÃO – E como vamos fazer?
FRANCISCO – Trabalhar! Seremos úteis!

Entra Dom Guido.

DOM GUIDO – Como está ficando belo


tudo isso aqui, Francisco! (cansado da
caminhada)
LEÃO – Há, Dom Guido, isso dá muito
trabalho!
FRANCISCO – Dom Guido! Seja bem vindo!
DOM GUIDO – Infelizmente eu não vim
aqui falar sobre isso... Irmão Francisco, eu
vim aqui, pois estou profundamente
preocupado! Você tem saído a pregar o
Evangelho nas praças, nas vilas, nas ruas
e... Francisco, você desmoraliza a igreja.
Você fala em nome de Deus assim,
Francisco!
FRANCISCO – Foi como o meu Senhor
falava de pés descalços e de braços nus.
DOM GUIDO – Mas Francisco, os tempos
são outros.
FRANCISCO – Então o Evangelho está
errado, porque ele foi dado para todos os
tempos! O senhor disse!
DOM GUIDO – Eu disse?! As pessoas têm
medo de você passar doenças para elas,
que você cuida dos leprosos.
FRANCISCO – Mas eu estou a serviço do
Pai. Sou a ovelha útil do rebanho!
DOM GUIDO – Então, a partir de hoje você
pregará por toda Assis, eu lhe dou a minha
benção! Agora, Francisco, me ajude a
voltar, pois para descer todo Santo ajuda,
mas na descida...

Mudança de luz.

12 CENA: PRIMEIROS COMPANHEIROS

Entram um soldado e os amigos de


Francisco.
SOLDADO – É aqui que Francisco se
encontra?
BERNARDO – Sim é aqui!
SOLDADO – Espero poder resolver essa
situação de forma pacífica.
SILVESTRE – Nós conhecemos Francisco.
Não será necessário violência.

Entram Francisco e Leão.

FRANCISCO – Amigos! Que bom vê-los.


Vieram celebrar comigo? Hoje eu celebro
porque é domingo, amanhã porque é
segunda... Trouxeram um amigo novo?!
Olá...
SOLDADO – Não é bem assim!
BERNARDO – Viemos por outro motivo.
SILVESTRE – Não podemos mais dizer que
somos seus amigos.
SOLDADO – Você é o perversor de Assis.
Você atrapalha a cidade.
SILVESTRE – Temos vergonha de ti.
BERNARDO – Todos comentam de você
Francisco!
SOLDADO – E se continuar dessa maneira,
terei de prendê-lo.
RUFINO e SILVESTRE – NÃO!

Todos andam em cena discutindo. Som


de burburinho. Marcação de cena. Sem
perceber começam a trabalhar.

FRANCISCO – Aqui é assim, dividimos o pão


e o trabalho. Sejam bem vindos.

Música “COMO É LOUCO ESSE


FRANCISCO” e entram em cena outros
franciscanos. Todos ajudam a montar o
novo cenário. Leão chama Francisco:

LEÃO - É irmão Francisco, estamos vendo


aqui a multiplicação dos irmãos.
FRANCISCO – É irmão Leão. Irmãos,
precisamos nos organizar, não podemos
mais fugir das ameaças, nos esconder dos
agressores. Iremos até Roma, pedir a
benção ao Papa!
LEÃO – Que ótimo Francisco! É isso
mesmo, vamos pedir... O QUE? Pedir a
benção ao Papa?! Você está louco?
FRANCISCO – É isso mesmo! Eu irei
pessoalmente ao Papa.
SILVESTRE – E o que faremos na tua
ausência?
FRANCISCO – Faremos o que temos feito,
cantar e exemplificar o Mestre. E você
Leão, vem comigo!

Todos saem de cena e ficam apenas


Leão e Francisco. Mudança de luz.

13 CENA: A PERFEITA ALEGRIA

Abre foco de luz em Francisco e Leão


no centro do palco.

FRANCISCO – Irmão Leão! Por acaso, você


saberia me dizer o que é a perfeita
alegria?!
LEÃO – A perfeita alegria?! Seria por acaso,
o Papa nos dar a sua benção e recebermos
o reconhecimento de todos?
FRANCISCO – Não, essa não é a perfeita
alegria.
LEÃO – Seria então, a mais completa paz
no mundo, onde todos os homens se
respeitassem e se amassem?
FRANCISCO – Não, irmão Leão!
LEÃO – Olha irmão Francisco, para você eu
não sei, mas para mim a perfeita alegria é
um prato de comida. Poder matar toda a
minha fome, isso que é uma perfeita
alegria!
FRANCISCO – Ainda assim, essa não é a
perfeita alegria!
LEÃO – Então qual é a perfeita alegria?

Ambos são interrompidos por um


ladrão:

LADRÃO – Auto lá! Declare quem é!


FRANCISCO – O arauto do Rei!
LADRÃO – Mas que Rei miserável! Para ter
um arauto tão esfarrapado!

Black out. Francisco e Leão apanham


dos ladrões. Abre luz. Francisco e Leão
estão deitados no chão.

FRANCISCO – Irmão Leão!


LEÃO – hum...
FRANCISCO – Essa é a perfeita alegria. Não
ter nada, não ser ninguém perante aos Reis
do Mundo parar no meio da estrada para
receber uma surra e ainda assim, amar!
Amar de todo o coração! Essa é irmão
Leão, a perfeita alegria.
LEÃO – Francisco, eu não sei se agüentarei.
FRANCISCO – Força Leão! É preciso ter
coragem e a fé de quem pisa em serpentes
com a certeza de que elas não nos picarão.

Francisco ajuda Leão a levantar-se.


Mudança de luz.
FRANCISCO – É aqui, irmão Leão! Aqui é
Roma! Chegamos.

Black out. Francisco e Leão vão para o


público.

14 CENA: A BENÇÃO DO PAPA

Abre luz geral. O Papa está sentado


com dois obsessores ao seu lado. Entra o
Cardeal e anuncia o Papa.

CARDEAL – Anuncio o Papa dos Reis:


Inocêncio terceiro. (pausa)
CARDEAL – O que aconteceu Santo Papa?
PAPA – Tive um sonho... Sonhei que
Catedral de Latrão estava caindo e um
mendigo a segurava.

Entram Francisco e Leão indo até o


Papa

FRANCISCO – Santo Padre!


CARDEAL – Como esse mendigo entrou
aqui? Os guardas não o viram? Me
desculpe Santo Papa! Saia imediatamente!
Vamos! Retire-se daqui! Saia! Retire-se!

Francisco e Leão são expulsos.

CARDEAL – Me desculpe Santo Papa! Os


guardas não os viram...
PAPA – Mande-os chamar!
CARDEAL – Santo Papa! Vossa Santidade
não deve se dirigir a esses mendigos! Tu és
o Papa dos Reis, não fica bem...
PAPA – Mande-os chamar! Eu preciso falar
com eles.

Cardeal vai até a coxia e chama


Francisco

CARDEAL – O Santo Papa irá receber vocês.


PAPA – Eu lhe concedo a palavra.
FRANCISCO – Eu me chamo Francisco e
venho em nome dos Irmãos menores para
pedir a benção para criar uma nova ordem.
CARDEAL – E por que criar uma nova
ordem? Por que não se localizam numa
ordem austera já existente?
FRANCISCO – Porque a nossa ordem não
terá nada. Nossas regras são simples:
pobreza absoluta, humildade, amor a Deus
e a todos os seres... Deus vos chamou para
serem o que sois, mas Deu nos chamou
para sermos o que somos.
CARDEAL – Com todo respeito, Santo Papa,
mas essa situação é absurda. Qual a
doutrina que pretendem seguir?
FRANCISCO – A que está no evangelho,
conforme Jesus legou.
CARDEAL – Mas o evangelho não deve ser
aplicado com tanto rigor.
FRANCISCO – Então se não pode, ele
mentiu. Ou Jesus mentiu e o senhor está
certo ou o senhor esta mentindo e Jesus
está certo.
CARDEAL – É exatamente isso que os
hereges fazem, usam o evangelho contra
nós.
PAPA – (levantando-se) Crueldade!
Aristocratas! Hipócritas! Maliciosos!
Quando o evangelho é uma proposta de
amor e verdade. Hoje eu estou aqui, neste
trono, mas eu também já fui assim, puro.
Eu me perdi, Francisco, eu me perdi.
FRANCISCO – São as ruínas, Santo Papa.
São as ruínas das vidas, dos lares, dos
corações. Deus me chamou para reerguer
essas vidas, esses lares e esses corações.

O Papa levanta-se, ajoelha-se diante de


Francisco e se curva.

PAPA – (levantando-se) Eu abençôo a


ordem dos irmãos menores. Vou mandar
escrever a autorização.
FRANCISCO – Não necessitamos de nada.
Tua palavra nos basta.

O Papa volta para o trono, onde estão


os seus obsessores. Saem Francisco e Leão.
Black out. Atores de coxia mudam o
cenário.
15 CENA: FUGA DE CLARA

Abre foco de luz. Clara e Inês estão


conversando.

CLARA – Francisco recebeu a benção do


Papa, não há o que temer. Desde que
Francisco retornou de Roma, Dom Guido
permite que ele fale dentro da igreja.
INÊS – Para nosso pai isso não importará...
CLARA – Eles estão esperando por mim,
Inês. Farei os meus votos com a verdade...
Esse é o casamento que eu sempre sonhei!
INÊS – Você sabe que os guardas do papai
controlam todas as saídas.
CLARA – Vou fugir pela passagem secreta
INÊS – (silêncio)
CLARA – Minha querida irmã! Como posso
explicar o que sinto... Para mim, essa casa
não é mais a minha casa. Essa roupa, não é
mais a minha roupa. Quando me deito à
noite, esta não é mais a minha cama...
INÊS – (pausa) Vou sentir tantas
saudades...
CLARA – Eu também, Inês... Tenho certeza
que nos veremos em breve! Adeus.

Clara vai ao centro do palco. Foco de


luz se abre. Entram os franciscanos com as
lanternas. Francisco se aproxima do foco
de Clara.

FRANCISCO – Saudações a você, Clara!


Rainha humilde, irmã, mãe, filha e amiga
querida. Seja bem-vinda!
CLARA – Eu, Clara, filha do Altíssimo e
Celeste Pai, aceito viver conforme o
evangelho do nosso Mestre Jesus, em
todos os momentos de minha vida.
FRANCISCO – Eu, Francisco, filho do
Altíssimo e Celeste Pai, prometo por minha
parte e de meus frades, cuidar de você,
Clara, com especial solicitude.

Francisco pega-lhe os cabelos. Black


out. Os frades com suas lanternas ao fundo
saem em fila. Inês entra em cena com uma
lanterna na mão e chama por Clara. Abre
luz geral.

INÊS – Clara! Clara! (pausa) Eu vim ficar


com você!

Black out. Pavarone em off:

PAVARONE – Inês!

16 CENA: A CRUZADA E O SULTÃO

Abre luz lateral. Entram Elias e todos os


irmãos andando rapidamente de um lado
ao outro do palco. Em seguida entram
Francisco e Leão:

TODOS – Francisco não pensou direito!


Mulheres na ordem! Os pais virão buscá-
las! Isso não está certo!
FRANCISCO – Meus irmãos?
ELIAS – Francisco! Isso não está certo!
Aceitar mulheres na ordem? Os pais virão
buscá-las e este povo se revoltará contra
nós!
FRANCISCO – Meus irmãos, cada um tem a
sua função e deve aceitá-la com
humildade. Vejam a grama, tão bela e útil,
mas pela sua função aceita humildemente
ficar abaixo dos nossos pés.
ROBERTO – Francisco, Francisco... Chamo-
me Roberto... (confunde Francisco)
Desculpe! (Indo até Francisco) Francisco! É
uma honra poder conhecê-lo, a sua fama
chegou a Terra Santa e é por isso que o
Papa me pediu para vir aqui.
FRANCISCO – E o que esperam que eu
faça?
ROBERTO – Como eu disse Francisco. Sua
fama chegou até a Terra Santa. Uma nova
cruzada está para partir, para combater
mais uma vez o sultão no Egito e o Papa lhe
chama, para ajudar a manter a ordem e
inspirar os soldados. (entrega a carta)
ELIAS – Essa é nossa chance de servir ao
Papa! Aceite!
FRANCISCO – Sinto muito, mas
confundiram as minhas habilidades. Diga
ao Papa que apenas posso encorajar
pássaros a voar, pais a amarem seus filhos,
filhos a amarem seus pais e apenas posso
inspirar a paz.

Roberto sai e Francisco continua:

FRANCISCO – Meus irmão! É chegada a


hora de nos colocarmos em trabalho. As
pessoas estão esquecendo-se dele.
Devemos ir para todas as direções, dois a
dois, anunciando os ensinamentos de
nosso Mestre. E aqui será o nosso porto
seguro! Vamos irmãos! Irmão Leão, você
vem comigo!
LEÃO - E que direção iremos tomar,
Paizinho Seráfico?
FRANCISCO – Iremos em direção a
Bolonha, depois passaremos o
mediterrâneo, cruzaremos o deserto até
chegar ao Egito.
LEÃO – Mas, irmão Francisco, eu acabo de
ouvir você recusando-se a ir para a
Cruzada!
FRANCISCO - A nossa viagem será sem
privilégios!

Black out.

CENA 17 – CONVERSA COM SULTÃO

FRANCISCO – Sultão! Eu sou Francisco


SULTÃO - A quem representam?
FRANCISCO – A Jesus.
SULTÃO – Eu li sobre Jesus no Santo
Alcorão. Está escrito que Jesus disse para
não responder ao mal com o mal...
FRANCISCO – A perdoar as ofensas...
SULTÃO - Mas, vocês chegaram aqui, com
seus navios e suas espadas e nos fazem a
guerra!
FRANCISCO – O senhor pode evitar um mal
maior. Sultão, esses que aqui estão
matando estão errados, mas o senhor que
está matando também está errado. Peço
sinceras desculpas por todo o sofrimento
que o meu povo provocou ao seu. Peço
que adote uma postura de paz e negocie a
libertação desses lugares tão sagrados para
todos nós.
SULTÃO – Reconheço a sua coragem. Mas
aqueles que estão lá fora não estão aqui
para defender os lugares sagrados, eles
estão aqui para nos matar e nos roubar. Há
muitos que buscam a paz. Raras, porém,
são as pessoas que tentam segui-la.
FRANCISCO – A paz legítima resulta do
equilíbrio entre os nossos desejos e os
propósitos de Deus, na posição em que nos
encontramos. Se os homens fossem mais
perfeitos não precisariam de da sua
compaixão e misericórdia. Nem o nosso
Deus nem o seu Deus estão na espada que
tira a vida, mas sim em dar a vida. Pois
tanto o meu Deus, quanto o seu Deus é um
Deus de amor.
SULTÃO – Pois bem, Francisco! Firmo um
compromisso contigo, enquanto eu viver
meu povo buscará a paz. Não atacaremos o
seu povo, apenas iremos nos defender! Vá
em paz irmão Francisco e peça a Jesus para
que Alá me dê o discernimento para fazer
o que é certo.
FRANCISCO – Que Jesus nos abençoe!

Sultão sai de cena. Abre foco de luz em


Francisco e Leão.

LEÃO – Francisco?!
FRANCISCO – Pergunte, Leãozinho de
Deus.
LEÃO – Você acha que a guerra acabará?
FRANCISCO – Não, ela não acabará!
LEÃO – E por quanto tempo ela ainda vai
persistir?
FRANCISCO – Quando o Cristo sair das
palavras e entrar nos corações.
LEÃO – E o que vai acontecer com o
Sultão?
FRANCISCO – Ele fará a parte dele.
LEÃO – Francisco... Agora que estamos
perto de casa, após termos passado tantos
meses fora, o que pretende fazer em
seguida?
FRANCISCO – Continuar fazendo o que
temos feito: anunciar e viver o evangelho.
Vamos, vamos para casa!

Saem Leão e Francisco.

18 CENA: A DESPEDIDA

Voz de Elias em off. Abre luz lateral.

ELIAS – Nós precisamos crescer. Somos


muitos, precisamos de propriedades.
Necessitamos estabilizar a nossa ordem.
Precisamos de mosteiros para estudar, de
estruturas. Para sermos reconhecidos
precisamos de posses... Para impor o nosso
meio de vida temos que ser respeitados. O
que Francisco fez foi muito bom, mas agora
os tempos são outros, precisamos estar de
acordo com o mundo nos exige. Não
sobreviveremos vivendo dessa forma.
RUFINO – Francisco! Francisco voltou!
Vejam!
SILVESTRE – Francisco! Vejam, é Francisco!
RUFINO – Como foi a viagem? Francisco!
Fale!
FRANCISCO – Nossa viagem a Terra Santa
foi muito longa e Deus nos mostrou que
todas as terras são Santas. Que cada casa é
Belém. Cada cidade é Jerusalém.
RUFINO – Realmente, Francisco, você ficou
muito tempo longe e nesse tempo muitos
vieram por causa de tua fama, mas não
compreendem o que significa realmente
ser um frade.
ELIAS – Exatamente, somos muitos.
FRANCISCO – Irmão Elias.
ELIAS – Irmão Francisco. Na tua ausência
percebemos que é necessário
organizarmo-nos. Termos leis e
hierarquias... Os padres de São Bento
querem nos dar uma propriedade para
estabelecermos estudos...
FRANCISCO – Mas não vamos aceitar, não
é irmão Elias?!
ELIAS – Por que não, Francisco?
FRANCISCO – Se a ordem tiver alguma
coisa vai ter que ter empregados, se tiver
empregados vai ter que trabalhar para
ganhar. Se ganhar muito vai comprar mais
propriedade. Se tiver mais propriedade vai
ter soldados para defender e para
defender nos teremos que matar... Em
nome do amor? Não Elias, a nossa regra é
o evangelho, do que mais precisamos?
ELIAS – Mas Francisco, o nosso futuro é
esse e você não pode impedir. Você não
poderá impedir.
FRANCISCO – Não, irmão Elias. Eu não
poderei impedir.
Os frades saem de cena lentamente.
Abre foco de luz em Francisco e Leão:

LEÃO – Francisco! O que faremos?


FRANCISCO – Continuaremos fazendo,
Leão o que temos feito!
LEÃO – Mas, e a ordem? E os frades?
FRANCISCO – Eles terão propriedades.
LEÃO - E depois?
FRANCISCO – Terão empregados.
LEÃO – E depois?
FRANCISCO – Terão mais propriedades...
LEÃO – O que você quer que eu faça, irmão
Francisco?!
FRANCISCO – Há, Leão! Meus olhos doem
muito... Preciso falar com a irmã Clara! Por
favor Leão vá chamá-la!

Entra Clara.

CLARA – Francisco!
FRANCISCO – Irmã Clara!
CLARA – Os seus olhos?
FRANCISCO – Eles estão cansados. Viram
muitas coisas bonitas.
CLARA – Vejo que está preocupado,
Paizinho Seráfico!
FRANCISCO – A ordem, Clara... Eu não sei o
que fazer.
CLARA – Não te preocupe, irmão Francisco,
com a ordem. Tu ainda tens a ordem,
então tu não és pobre. Tu ainda tens a tua
ordem. Tu não és pobre, pois a pobreza
absoluta é não ter nada, é não se
preocupar com nada. É somente buscar
Deus. Deus Tu. Deus Ser.

Abre foco de luz central. Francisco vai


para o centro do palco. Três frades entram
chegam e o enfaixam.

CLARA – Senhor faça-me instrumento de


Vossa paz... Fazei de mim, ó Pai,
instrumento da Tua paz. Quando os meus
olhos já não puderem mais ver, que seja
bem-vindo o irmão fogo para acalmar as
minhas dores. Quando estiver frente a um
lobo feroz, que eu possa amá-lo e conduzi-
lo como uma ovelha. Que eu mesmo seja
uma das ovelhas produtivas do Seu
rebanho, meu Pai, a produzir a lã que
aquece o frio. Fazei de mim, ó Pai,
instrumento da Tua paz. Que minha boca
prefira calar a dizer uma ofensa. Que
minhas mãos prefiram o trabalho à
violência. Que minhas pernas prefiram o
caminho das pedras ao atalho sem rumo.
Que eu possa consolar, a ser consolado.
Compreender, que ser compreendido. E
mesmo com as dores, com as chagas do
caminho e cego eu possa sorrir quando a
irmã morte chegar. Amar mais, que ser
amado, pois nada, nada, nada, compara-se
ao amor que Tens por todos nós e que eu
possa, eternamente, lembrar-me disso.

Francisco sai amparado pelos amigos.


Clara sai de cena junto.

19 CENA: O REENCONTRO
Foco de luz em Leão.

LEÃO – A irmã morte... Não faz mal a


ninguém. Não é mesmo irmão Francisco?
“A irmã morte, não faz mal”, é o que você
sempre diz. (pausa) Eu te amo tanto,
Paizinho Seráfico. Dentre tantos
afortunados no caminho, tu amaste os
mendigos, os leprosos, aos simples animais
e plantas. Acolheu as nossas dores com tua
suave melodia e quando você nos olhava,
você nos via. (pausa) Confesso que não sou
como você, Francisco, ainda não sinto a
perfeita alegria, mas não consigo esquecer
os teus olhos... E uma dúvida insiste em
mim, Paizinho. Se a morte viesse lhe bater
a porta e dissesse que você deveria partir,
o que você faria?
FRANCISCO – Eu continuaria fazendo o que
tenho feito, irmão Leão! Viver o evangelho
de Jesus.
Os dois se abraçam e todos entram na
penumbra com lamparinas.

FRANCISCO – (abrindo os braços)


Altíssimo, onipotente, bom Senhor. Teus
são o louvor, a glória, a honra. E toda a
benção. E homem algum é digno de
mencionar o Seu nome.

Abre luz geral e todos se aproximam


lentamente

FRANCISCO - Louvado sejas, meu Senhor


com todas as tuas criaturas, especialmente
o senhor irmão Sol, que clareia o dia e com
sua luz nos alumia. E ele é belo e radiante
com grande esplendor: De ti, Altíssimo, é a
imagem.
Louvado sejas, meu Senhor, pela irmã
Lua e as Estrelas, que no céu formaste as
claras q preciosas e belas.
Louvado sejas, meu Senhor, pelo irmão
Vento, pelo ar, ou nublado ou sereno e
todo o tempo, pelo qual às tuas criaturas
dás sustento.
Louvado sejas, meu Senhor, pela irmã
Água, que é muito útil e humilde e preciosa
e casta.
Louvado sejas, meu Senhor, pelo irmão
Fogo, pelo qual iluminas a noite, e ele é
belo e jucundo, vigoroso e forte.
Louvado sejas, meu Senhor, por nossa
irmã a mãe Terra, que nos sustenta e
governa e produz frutos diversos e
coloridas flores e ervas.
Louvado sejas, meu Senhor, pelos que
perdoam por teu amor e suportam
enfermidades e tribulações. Bem-
aventurados os que as sustentam em paz,
que por Ti, Altíssimo, serão coroados.
Louvado sejas, meu Senhor, por nossa
irmã a Morte corporal, da qual homem
algum pode escapar. Ai dos que morrerem
em pecado mortal! Felizes os que ela achar
conformes à tua santíssima vontade,
porque a morte segunda não lhes fará mal!
Louvai e bendizei ao meu Senhor, e dai-
lhe graças e servi-o com grande humildade.

FIM

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