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MILKSHAKESPEARE
JULIO ZANOTTA VIEIRA
ARGUMENTO
PRIMEIRO ATO
Sir William Stanley é o verdadeiro autor das obras de Shakespeare. Como nobre, não podia rebaixar-
se e assinar a autoria de peças de teatro. Contratou um empregado da sua cocheira, filho de um açougueiro,
recém chegado a Londres, para assinar as peças.
Quatro séculos depois o nome de William Stanley caiu em esquecimento. Shakespeare, no entanto, brilha
como o maior dramaturgo de todos os tempos. A obra que ele assinou como sua exerce um estranho
fascínio sobre as pessoas cultas. Na companhia de seu criado, James Byron, sai da tumba disposto a
encontrar o vil cavalariço para um acerto de contas. Atravessam um pântano sombrio onde encontram duas
bruxas, Morgana e Lilith. Elas fazem um sortilégio em torno ao clássico caldeirão para permitir que Sir
William rompa o que está estabelecido no contrato, “até que os fundamentos matemáticos deste mundo, e
os cálculos da física que o mantém, se desfaçam completamente”.
Seguindo adiante, Sir William Stanley e seu criado, James Byron, penetram nas ruínas do sinistro
castelo de Elsinore. Encontram dois personagens hamletianos, Rosenkrants e Guildenstern, nobres
decadentes que vivem nas ruínas.
No cemitério do castelo, entre lápides caídas e mausoléus tomados pela hera, Stanley e James
procuram a tumba de William Shakespeare. Acham as tumbas de William Burroughs e de William Blake.
Um túmulo se abre e dele sai o espectro de Lady Macbeth, convertida numa piedosa senhora. Outra tumba
se abre. Surge novo espectro, Ofélia. É uma devassa, garota oportunista. As duas dão notícias de seus
amantes. Estão trabalhando para Thelonius, o monge negro.
Stanley e James vão até ao sinistro mosteiro de Thelonius. O monge sinistro propõe um negócio a
Stanley: tornar-se sócio na cadeia de fast-food MacDuncan’s. “Será o biombo de trevas atrás do qual se
esconderão as garras do irracional, contorcendo-se sobre a sórdida espectativa da... fatal extinção!” Stanley
aceita: “Administrarei a memória comum, fundindo-a com a glória, para alimentar-me dos mais suculentos
lampejos de vida.” Tudo será engolido pelas forças incontroláveis, pelas suas manifestações particulares do
horror. Kroc! Kroc! Kroc!
SEGUNDO ATO
PERSONAGENS
SIR WILLIAM STANLEY
Conde de Derby. Na peça, o verdadeiro autor das obras atribuídas a William Shakespeare.
JAMES BYRON
Mordomo e guarda-costas.
MORGANA
Bruxa.
LILITH
Bruxa.
ROSENKRANTS
Conde. Último proprietário do Castelo de Elsinor.
GUILDENSTERN
Nobre. Amante do Conde Rosenkrants.
LADY MACBETH
Primeiramente, um espectro ressuscitado. Depois, faxineira da cadeia de fast-food MacDuncans.
OFÉLIA
Idem.
THELONIUS
O Monge Negro. Senhor Todo-Poderoso do Mundo das Trevas.
HAMLET
Primeiramente, personagem da obra do dramaturgo William Shakespeare. Depois, balconista da cadeia de fast-
food MacDuncans.
MACBETH
Idem. Depois chapista e gerente da cadeia de fast-food MacDuncans.
SHAKESPEARE
Um fantasma.
SARGENTO KELLY
Mariner Norte-Americano.
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MILKSHAKESPEARE
EM DOIS ATOS
ATO PRIMEIRO
Encenado ao estilo do teatro clássico.
Recitativo e pomposo. A ação perde-se
na poeira dos séculos.
4 cenas
ATO SEGUNDO
Encenado com as técnicas do teatro contemporâneo.
Dinâmico, ágil. Época atual.
10 cenas e um final
MILKSHAKESPEARE
ATO PRIMEIRO
CENA 1
O PÂNTANO
Personagens:
SIR WILLIAM STANLEY
JAMES
MORGANA
LILITH
WILLIAM STANLEY
O primeiro raio de luz, recém a surgir, grava nas mentes penosa impressão. Aqueles que, antes de nós,
atravessaram este pântano, como vermes penetrando num crânio podre, não deixaram uma descrição
geográfica precisa, nem sequer um mapa.
JAMES
Deixaram um aviso: guia-te pelo instinto... E pelo faro!
Que fedor!
SIR WILLIAM STANLEY
A névoa doentia encobre a vegetação nociva e nenhum som perturba a face da terra.
JAMES
Só o zizz-zizz dos mosquitos, Sir!
ESPANTA OS MOSQUITOS.
SIR WILLIAM STANLEY
Abrem alas e zumbem suas cornetas para saudar nossa passagem.
JAMES
ESPINHA-SE NUM ARBUSTO.
Mas tem espinho prá caralho!
SIR WILLIAM STANLEY
Arbustos retorcidos que produzem estranhas peras envenenadas.
COLHE UMA PERA SILVESTRE.
JAMES
EXPERIMENTA UMA. COSPE FORA.
Credo! Que nojo!
SIR WILLIAM STANLEY
PROVANDO UMA.
Impossível comê-las, ardem na boca e queimam a garganta. Estão contaminadas pela seiva exaurida.
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JAMES
E dão uma caganeira! Com licença, Sir, que eu vou ali atrás da moita...
SIR WILLIAM STANLEY
Ah... Nem mesmo o amanhecer sereno e a mais esplêndida aurora seriam capazes de, num assomo, juntar o
macho numa cópula com a fêmea para, no reino da botânica, tentar fertilizar esta vasta extensão de aridez e
desolação! O macho anularia a fêmea e só produziriam estéreis bagas como esta.
JAMES
ACOCADO ATRÁS DE UMA MOITA.
Arf!... Arf!... Que rojão! Quase me descarrego todo nas calças!
SIR WILLIAM STANLEY
E, no entanto, elas vivem aqui e, consta, tiram leite e mel desta paisagem repulsiva.
JAMES
Elas moram mais adiante, na boca duma caverna, como se fossem bicho!
SIR WILLIAM STANLEY
Lá, onde os ambiciosos participam de terríveis sabaths para, logo a seguir, medirem a eficácia das suas
artes negras.
JAMES
SAINDO DETRÁS DA MOITA, SE AJEITANDO.
Dizem que elas tem parte com o Coisa-pronta.
SIR WILLIAM STANLEY
Possuem um currículo invejável de crueldades. Causam asco e provocam desgraças, mas também rivalizam
com os que fazem o bem.
JAMES
Ué? De repente parou tudo! Até a mosquitama sumiu.
Olhe lá! Elas, Sir! As bruxas!
SIR WILLIAM STANLEY
Uma, iluminada pelo sol a surgir. Outra, oculta ainda pelas trevas.
A LUZ DA AURORA ILUMINA UMA PARTE DO PALCO. ENTRAM AS BRUXAS NUM RITUAL
EM TORNO DE UM LIQUIDIFICADOR GIGANTE ONDE BORBULHA TEMÍVEL MISTURA.
WILLIAM STANLEY E JAMES SE ESCONDEM ENTRE OS ARBUSTOS, ESPINHANDO-SE NOS
GALHOS PONTUDOS E TORTUOSOS. SUSSURRAM, À PARTE.
JAMES
Tão fazendo a salgação do feitiço.
SIR WILLIAM STANLEY
Já perceberam que estamos aqui. É com uma ação nicromântica de pura vidência, que exercem o seu... o
seu... O seu “modus operanti”.
JAMES
Minhas congratulações pelo latim, Sir.
AS BRUXAS CONTINUAM SUA ATUAÇÃO. MORGANA NA ZONA DE LUZ, LILITH NA
SOMBRA.
MORGANA
William Stanley! Se necessitas de proteção, finca um prego no chão.
JAMES
É bom que teja de corpo fechado, Sir. Não posso garantir nada contra este tipo de trabalho...
LILITH
William Stanley! Se tens sede de alguém, esconde uma tesoura embaixo do travesseiro.
SIR WILLIAM STANLEY
Prostituta de tetas secas.
JAMES
Chega pra lá, Sir. Preciso espiar se ela tem mesmo pés de coruja.
MORGANA
William! William!
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LILITH
Stanley! Stanley!
JAMES
Tão lhe esconjurando, Sir. Pode ser quebranto! É melhor se benzer!
VAI FAZER O SINAL DA CRUZ.
SIR WILLIAM STANLEY
Pára! Este sinal está proibido para nós.
AS BRUXAS, EM TRANSE, EXERCEM SEU RITO EN TORNO DO LIQUIDIFICADOR, ONDE
BORBULHA A POÇÃO ESPUMANTE.
MORGANA
William, queres mudar um pacto que tem um misterioso cheiro de antiguidade!
LILITH
Este pacto... Este protocolo...
Já vai longe,
Já teve sua época.
MORGANA
William! O que queres desenterrar?
LILITH
VATICINANDO.
William!
Três vezes o morcego vai piar!
Então encontrarás,
Um prenúncio de males,
Um passado de intrigas.
MORGANA
Três vezes o rato vai guinchar!
Então encontrarás
Mulheres alucinadas,
Que vivem entre as tumbas.
LILITH
E depois
No antro da traição
Beijarás o rabo
Da mulher lobo,
Cabeça de lobo.
AS DUAS
E nunca mais dormirás
Nem de noite, nem de dia.
PREPARAM UMA NOVA MISTURA NO LIQUIDIFICADOR.
MORGANA
Críticos literários,
Linguarudos ou sisudos,
Fervendo no triturador.
LILITH
Historiadores e eruditos,
Falsos ou verdadeiros,
Batendo no liquidificador.
MORGANA
Tudo será em vão.
No final terás
Uma morte de cão.
JAMES
Tô apavorado com tantas mandingas!
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SIR WILLIAM STANLEY
Tenho outro pedido para tratar com vocês...
MORGANA
Outra vez! Outra vez!
LILITH
O patife quer negociar!
MORGANA E LILITH
Tudo se mistura no colostro
Da estricnina de Cagliostro!
JAMES
Senti o pepino... Vão terminar é bufando no meu cangote...
LILITH
O que mais queres Conde de Derby, W de William?
SIRWILLIAM STANLEY
Quero acertar minhas contas com aquele que, entre gestos de deboche
e gargalhadas de escárnio, desprezou a camisa que lhe dei para vestir. Bêbado, nas tabernas que só a plebe
freqüenta, acompanhado de párias da mais baixa condição __ escritores, vigaristas e gente de teatro __
roubou as letras de ouro que escrevi.
Quero erguer-me fulminante e expelir sua presença! Com letras de fogo hei de atirá-lo no inferno!
JAMES
É isto aí, Sir! Arrasa, estraçalha!
MORGANA
Não vai demorar muito, Conde de Derby! Vão surgir em velhos arquivos, velhos documentos!
LILITH
E novas provas serão encontradas! Mas vai custar muito caro esta operação.
MORGANA
Este malefício!
SIR WILLIAM STANLEY
Tenho uma iguaria para vocês. Olhem só o que eu trouxe! O dedinho de uma criança que morreu
eletrocutada pela mãe prostituta.
JAMES
À PARTE.
Fú! Que lance mais encardido.
MORGANA
Falta de respeito!
Assim, deste jeito,
Não pode ser feito.
LILITH
Quem não tem medo
Fica com o dedo!
Ta escuro como breu,
Me dá que é meu!
Me dá que é meu!
AVANÇA E AGARRA COM AVIDEZ O DEDO. MORGANA TENTA IMPEDIR. BRIGAM. LILITH
FICA COM O DEDO, ENTRE GARGALHADAS.
LILITH
Passarei o dia remoendo... moendo... corroendo...
MORGANA
O trovão vai despertar um cogumelo sagrado!
Eu o comerei pelas orelhas!
Eu o comerei pelo umbigo!
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Eu o comerei pelos olhos!
E, então, Sacerdote!
Eu e Lancelot
voltaremos para Camelot!
Ah, ah, ah, ah, ah!
LILITH
Vamos deixar que William Stanley rompa com o que está estabelecido no contrato...
MORGANA
Até que os fundamentos matemáticos deste mundo, e os cálculos da física que o mantêm, se desfaçam
completamente.Com a força das legiões de feiticeiras!
LILITH
Herméticas!
MORGANA
Heréticas!
LILITH
Abandonarei esta manhã caloteira! E quando anoitecer outra vez, atuarei! Com este dedo espetarei papai e
mamãe quando estiverem fazendo fuc, fuc, fuc!
MORGANA
Cuidado, para não acordar os nenês que estiverem rindo durante o sono, cuidado!
SAEM, COM GRITOS ESTRIDENTES.
SIR WILLIAM STANLEY
As bruxas falaram. E me prestaram um bom serviço.
JAMES
Fiquei de cara com o abracadabra delas! E agora, Sir? Qualé que é? Tô pronto pro que der e vier!
SIR WILLIAM STANLEY
Atravessaremos o pântano rumo ao norte. No alto de uma colina fica o Castelo de Elsinore. De um lado é
protegido pelo mar raivoso e gélido. Do outro, por um paredão de escarpas abruptas.
JAMES
Vamos nesta, Sir. E se pintar qualquer bronca, pode deixar comigo.
Eu seguro.
SIR WILLIAM STANLEY
Muito bem. Como meu guarda-costas, tu me seguirás.
JAMES
Mas... Sir! Se eu o perder de vista afundarei no lodo do pântano.
SIR WILLIAM STANLEY
Então irás na frente. Servirás de escudo.
INICIAM A CAMINHADA ATRAVÉS DO PÂNTANO.
O castelo resistiu a muitos sítios. Seu último proprietárioa, o Conde Rozenkrants, bebeu o sangue do seu
amante, Guildenstern, no bojo de uma caveira.
JAMES
Que barrinha! Morcego... Sangue na caveira! Qualé? E que fim levou o Conde, Sir?
SIR WILLIAM STANLEY
Suicidou num inverno particularmente frio. Desde então o castelo está abandonado e suas almas penadas o
habitam. Ao pé da colina há um extenso e lúgubre cemitério, nos fundos de um mosteiro, onde oficia
Thelonius, O Monje Negro. É ali que guincham os ratos.
JAMES
Não tenho medo de ratos... e nem desta mulherada, Sir. Nem sequer vacilei com o que as bruxas falaram.
SIR WILLIAM STANLEY
As bruxas falaram! E nem por isto a gravitação universal deixou de existir.
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FAZEM MENÇÃO DE SAIR. AO PASSAR PELO LIQUIDIFICADOR, JAMES DÁ UMA ESPIADA NO
SEU CONTEÚDO, QUE IMEDIATAMENTE LHE CHAMA A ATENÇÃO.
JAMES
Sir! Olha só o que tem aqui no liquidificador!
SIR WILLIAM STANLEY
É a poção das chamanistas. Nunca imaginei que fosse um creme de
cor suave. Hum... E tem um aroma de jasmim? PROVA. Ou será cravo
da índia? PROVA. Hum... Também pode ser chá do Ceilão.
JAMES
PROVANDO.
É feito com leite e gelo, Sir. Faz um croc-croc que estraleja os beiço.
E dá uma baita satisfa no estômago.
SIR WILLIAM STANLEY
PROVA.
Uma mescla da mixórdia do século XVI com a promiscuidade do presente. Hum... Sem nenhuma dúvida,
afirmo que esta mistura tem o gosto emaranhado, porém seleto, de um eclético atrativo.
JAMES
Esta mistura, Sir, é um Milkshake de pera! Pear...
SIR WILLIAM STANLEY
Milk... to shake’s pear?
ESCUTA-SE O PIO DO MORCEGO E O GUINCHO DO RATO.
JAMES
Vamos dar no pé, Sir!
SIR WILLIAM STANLEY
Ato contínuo, JAMES! Desapareceremos entre estas brumas tão rápido quanto a fumaça da locomotiva.
CENA 2
O CASTELO
Personagens:
SIR WILLIAM STANLEY
JAMES
ROSENKRANTS
GUILDENSTERN
CENA 3
O CEMITÉRIO
Personagens:
SIR WILLIAM STANLEY
JAMES
LADY MACBETH
OFÉLIA
PAUSA.
OFÉLIA
O coveiro me ganhou num jogo de pôquer com o vigia noturno. Numa noite de tempestade, violou a lousa
tumular, fria e muda. Ao contato dos seus lábios minha carcaça desamparada voltou à vida e abandonou a
mansão da morte. Por ser suicida, eu estava enterrada do lado de fora. Ele me conseguiu uma vaga dentro
do cemitério.
Senhores! Não posso permanecer insepulta por mais tempo. Adeus! Há uma sentença necrológica rigorosa
e um réquiem imperativo que me levam de volta à tumba.
SIR WILLIAM STANLEY
Espera! Fica mais um pouco. Quero falar com... bem... com aqueles que sabes...
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OFÉLIA
Hamlet! Seus despojos mortais, restos movendo-se num simulacro apavorante de vida, foram-se pela
estrada seguindo os passos do outro coitado, Macbeth. Também foi ao Mosteiro, pedir um emprego a
Thelonius, o Monge Negro, no seu novo empreendimento.
ENTRA DE VOLTA NA TUMBA.
Quando o encontrarem, digam-lhe que meu amor pelo morto será sempre maior do que meu amor pelo
vivo.
GRITA, DE DENTRO.
Aqui há apenas pó, cinzas e argila. Oh! Quanto prazer!!!
A TUMBA FECHA-SE, COM O MESMO APAVORANTE ESTRÉPITO.
JAMES
Pavorosa, né Sir? E eu, que queria dar uma...Mas foi melhor assim. Garanto que fede como a urina de São
Gregório... E aquele bumbum deve ter mais mofo que a merda de São Tiago Apóstolo!!
SIR WILLIAM STANLEY
Deverias beijar a fímbria do seu manto de mulher deslumbrante, em vez de vomitar impropérios! Ela
ostenta viço e beleza. Deslumbra! Fascina! Seduz! Apresenta-se como uma Vênus, um tipo formosíssimo
de mulher, que personifica todas as graças e cativa o coração.
JAMES
Ué? Será que eu pisei na bola?
CENA 4
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O MOSTEIRO
Personagens:
SIR WILLIAM STANLEY
JAMES
THELONIUS, O MONGE NEGRO
THELONIUS
Huúuu! Huúuu!
JAMES
Nossa! Ou este tal de Monge Negro é um santo renegado ou é a última das maldições.
SIR WILLIAM STANLEY
É uma criatura paralela, contaminada talvez. Abandona qualquer fé e fica quieto, ou ele vai sugar o teu
sangue pelo dedo do pé.
ABRE-SE UMA PORTA DE FERRO E ENTRA THELONIUS, O MONGE NEGRO.
THELONIUS
Ora! Ora! O inglês chegou! Seja bem-vindo! Interrompi a confissão profana que praticava para recebê-lo.
Uúuuh! Uúuh! Uúh!
Estiveram no castelo? Contem-me, gostaram do mofo e da humidade?
SEUS OLHOS BRILHAM SINISTRAMENTE.
E das traças, atacando a tapeçaria? Úh!
EXULTANTE.
Desde que o teto desabou verdadeiros tesouros estão sendo destruídos!
Uúuh! Antiguidades, obras de arte...
JAMES
SUSSURRANDO.
Saquei qualé a dele! Ele banca o invisível, trocando o corpo pela sombra...
THELONIUS
E o cemitério, que lhes pareceu?
SIR WILLIAM STANLEY
Vimos as tumbas vazias de dois regicidas. E nos disseram que eles vieram para cá.
THELONIUS
Acabo de dar-lhes uma nova função. Mas sou magnânimo. Não lembro que rei eles mataram.
WILLIAM STANLEY
Um assassinou o Rei da Escócia. O outro matou o Rei da Dinamarca.
THELONIUS
Oportuníssimo, uúuuhh! Uúuuh!
GIRA PELA SALA.
Vamos ao que interessa... Macbeth e Hamlet, os regicidas! James Byrom... você vai limpá-los!
THELONIUS ESTALA OS DEDOS E, INSTANTÂNEAMENTE, HIPNOTISA JAMES.
Pega a bacia, o sabão grosso e a toalha. Eles estão na cripta do mosteiro. Esperam por ti. Vai até lá e limpa
as mãos deles.
HIPNOTISADO, JAMES SAI PARA CUMPRIR AS ORDENS. TOCA O TELEFONE DE BAQUELITE.
THELONIUS
ATENDE.
Sim, Senhor! Como não! Perfeitamente, Comandante!
DESLIGA.
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Era... o Imundo! A notícia é tão boa que podemos sentir o seu poder. É como se, à distância, o Rebelde
Decaído tivesse mandado um fax num papel fedorento. A encomenda chegou.
ABRE O FREEZER NEGRO E RETIRA UMA PORÇÃO DE BATATAS FRITAS, ACONDICIONADAS
NUMA EMBALAGEM NEGRA DA MCDUNCAN’S.
O pão dos anjos do mal. A refeição apóstata ultra rápida. Batatas fritas negras, industrializadas.
Descascadas. Cortadas em fatias. Lavadas com detergente. Fervidas em óleo borbulhante. Postas para secar.
Especialmente acondicionadas na embalagem negra da MacDuncan’s.
Segundo as prescrições de uma solenidade sórdida... Huúuuu! Que trará dor física e mutilação. A óstia
negra!... Huúuuu!
OFERECE UMA BATATA FRITA NEGRA A SIR WILLIAM STANLEY.
SIR WILLIAM STANLEY
Muito interessante o design das embalagens.
THELONIUS
Kroc, kroc, kroc! Batatas fritas, negras, mortificadas por três semanas para que seus açúcares viciosos se
convertam em turvos amidos venenosos.
Huúuu!
SIR WILLIAM STANLEY
Incrível! E ninguém pensou nisto antes.
THELONIUS
O mundo da Tradição e seus preciosos despojos é maior do que as nossas repugnantes ofertas de alimentos
congelados. Muitos fratricidas insepultos tentaram a mesma coisa. Mergulharam suas mãos em sangue, mas
foram empalados pelo marketing dos exterminadores!
Kroc, kroc, kroc! Não souberam disfarçar o bizarro e transformá-lo em moda. Huúuu! Kroc! Kroc! Kroc!
O curso intensivo que fiz, de administração de lanchonetes, huúu!, valeu mais do que os meus anos de
seminarista renegado estudando grego e latim. Reforçou a minha propensão de carnífice e carrasco.
Sou fera, não sou humano! Huuúuuu!!
Celebro os instintos cruéis e tenho uma especial fascinação por tudo o que é sinistro. Huúuu! Veja a lua
negra, sinta os seus efeitos! Os sacerdotes dizimados, apunhalados, escalpelados. Espalharemos o luto e a
dor em profusão horrorosa! As igrejas, a família e o estado serão engolidos. Kroc! Kroc! Kroc!
Pela névoa! Pela poeira! Huúuu!
É uma febre que atingirá a todos.
Chame de Império das sombras. E viva com ... a Morte! Huuúuu!!!
SIR WILLIAM STANLEY
São os tempos da vítrea palidez que estão voltando! E eu ainda me chamo William Stanley.
THELONIUS
Vou ser modesto e fatídico. Minhas realizações na área do "food service", huúu!, serão comparáveis às da
trágica heroína Elizabeth Bathory no treinamento de suas criadinhas. Huúuu!! E às do insaciável Henry
Ford, na criação de uma linha de montagem provedora de... sangue!
LENTÍSSIMAMENTE, HIPNOTISADO, ENTRA JAMES.
JAMES
Nunca vi sangue como aquele. Cortei as unhas, para não arranhar a pele das suas mãos. E esfreguei,
esfreguei, esfreguei!
O vermelho nem sequer desbotou.
THELONIUS
Huúu! Huúu! É a cor que Belzebu escolheu para pintar seu cú! Huú...!
JAMES
As malditas manchas não saíram!
THELONIUS
Mande tocar o sino do mosteiro, huúuu! E volte a esfregar as mãos deles. Livre-os destas acusações de
última hora.
Tudo pelas indulgências profanas... E por uma nova imagem.
JAMES SAI.
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THELONIUS ABRE O FREEZER NEGRO E RETIRA OUTRA EMBALAGEM NEGRA. PARA SIR
WILLIAM STANLEY.
Aceitas um milkshake?
SIR WILLIAM STANLEY
PEGA O MILK-SHAKE E CHUPA NO CANUDINHO.
Hum... É um interessante licor, sem dúvida. Completamente diferente daquele que provei hoje pela manhã.
CHUPA UM GOLE.
THELONIUS
O sabor deste é baunilha...
SIR WILLIAM STANLEY
Quem diria que uma planta tão vulgar seria empregada na pastelaria, na confeitaria e na perfumaria, ao
mesmo tempo e num só produto.
THELONIUS
RETIRA DO FREEZER UM CHISBURGER.
Aceitas um Big Black?
ALCANÇA-LHE UM.
SIR WILLIAM STANLEY
MASTIGANDO.
Não sabia que o pão era tão lustroso e polvilhado de gergelim.
Mas não tem gosto de nada!
THELONIUS
Este é o segredo. Antes eu dormia num caixão com fundo de areia, me embebedava com sangue e voava
transformado num morcego. Agora, moro nas suítes do Hilton, bebo Chandon e viajo num jato particular
com sauna à bordo .
PAUSA.
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Sou o guardião do último pacto de sangue.
RETIRA DE UM BAÚ UM ROLO DE PERGAMINHO.
E por falar em pacto, aqui está o contrato que assinastes com... Shakespeare. Tornou-se o maior
faturamento do turismo inglês.
SIR WILLIAM STANLEY
Terei problemas. Este cavalariço inepto permitiu que minha obra
caísse em domínio público.
THELONIUS
Terás que encontrar uma maneira de cobrar royalties pelo licenciamento das tuas peças. Huúuu! Ou
também serás engolido. Kroc! Kroc! Kroc!
SIR WILLIAM STANLEY
Há centenas de anos o que escrevi exerce um estranho fascínio sobre as pessoas cultas.
THELONIUS
Um mito literário nunca poderá ser um produto concreto. É ambíguo demais.
ENTRA JAMES, LENTÍSSIMAMENTE. HIPNOTIZADO.
JAMES
Estão limpos! Numa boa. Abriram os olhos, respiraram. Lavei com detergentes e solventes e esfreguei,
esfreguei, esfreguei.
SIR WILLIAM STANLEY
PARA THELONIUS.
Operação McDuncan’s! Não posso ficar de fora de um lance destes!
THELONIUS
A McDuncan’s estará dirigida para atormentar especialmente aqueles que levam uma vida banal. Huúuu!
Teremos prazer em admirar seus últimos paroxismos, seus arquejos finais!
JAMES
Quer mostarda, Sir? Gostou do tomate, da alface?
PROVANDO O RESTO DO MILK-SHAKE.
Hum... O que eu mais gostei foi a invenção do canudinho.
THELONIUS
Huúuu! Huúuu!... Huúuu! Huúuuu! Kroc! Kroc! Kroc!
SIR WILLIAM STANLEY
Isto merece uma comemoração.
JAMES
Terei prazer em servir um drink aos cavalheiros. Que tal um plasma
sanguíneo de canudinho?
THELONIUS
ABRE O FREEZER E RETIRA UMA COCA-COLA.
Eu só tomo Kroc-cola. Uuúuu!!!
BRINDAM.
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ATO SEGUNDO
CENA 1
Personagens:
MACBETH
HAMLET
FANTASMA DE SHAKESPEARE
ENTRA MACBETH.
MACBETH
Quem vem aí? Hamlet?
ENTRA HAMLET.
HAMLET
Eu mesmo. Salve, Macbeth!
MACBETH
Chegastes exatamente na hora.
HAMLET
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Então a imagem apareceu de novo?
MACBETH
Uma imagem fantasma, como um vírus no gestor de registros.Três vezes passou na tela diante dos meus
olhos aflitos, coberta por um véu magnético dos pés à cabeça. Três vezes foi detectada e eu, distraído, não
chequei nenhum canal de rotina.
HAMLET
Dissestes que a imagem estava coberta por um véu magnético?
MACBETH
Um véu magnético.
HAMLET
Da cabeça aos pés?
MACBETH
Da cabeça aos pés.
HAMLET
E como a reconhecestes?
MACBETH
A vibração era a mesma. Surgiu polarizada num circuito muito longo. Olha! Aí vem ela!
SURGE UMA SOMBRA ELETRÔNICA COM O PERFIL DE WILLIAM SHAKESPEARE.
Observa. Mas não tentes controlar o processo ou obter mais definição na imagem. Talvez não seja mais do
que uma projeção, um teste automático de circuito, quem sabe transmitido de algum satélite em órbita
distante.Não temos mais o que fazer. Macbeth vai jogar a toalha.
HAMLET
William Stanley é um empresário inspirado. Seus funcionários de operações são jovens tigres, ferozmente
leais e dedicados a sua missão.
MACBETH
Sir William tornou-se um operador inovador e esperto. Com a McDuncan’s só aumenta sua crucial
vantagem em relação a todos nós.
HAMLET
Os fornecedores não são novatos, mas grandes e poderosas corporações.
MACBETH
Eles promovem as pessoas da grelha para cima, desde que fascinados pela perfeição operacional.
Motivação não me falta e criatividade me sobra.
HAMLET
Hamlet será um descascador de batatas.
MACBETH
Terei um posto acima. Treiner. Com a função de preparar a carne.
EXIBE UMA FACA DE AÇOUGUEIRO.
Bem, tenho que ir agora. Vou aproveitar a noite para amolar o boi.
RI, SIGNIFICATIVAMENTE.
SAI.
ESCUTA-SE UM SOM CARACTERÍSTICO. ENTRA WILLIAM SHAKESPEARE. É UM SER
ELETRÔNICO. HAMLET PERTURBA-SE.
HAMLET
Porque me persegues com esta biofosforescência que procede de algum ponto anterior à minha memória? O
que escondes na estrutura incompreensível desta blindagem que parece feita do material com que se
constroem os sonhos?
WILLIAM SHAKESPEARE
Mal me recebes e já devo voltar... pelo rota do tempo elíptico... à fronteira das regiões imaginárias...
HAMLET
Ah! Pobre pai! Coitado! Posso ver os filamentos das suas células __ ou o que resta deles!
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WILLIAM SHAKESPEARE
Não tenha pena de mim... Mas de ti! Sou imagem finita... minha cadeia de caracteres ameaça... esvair-se
numa sequência inevitável de substituições...
HAMLET
Quase não consigo acreditar no que está acontecendo. Meu criador, cujo corpo era há séculos uma soma
inerte de partículas se decompondo, ressurge agora.
WILLIAM SHAKESPEARE
Escuta! Óh, escuta!
HAMLET
Com que talento me contruístes!
WILLIAM SHAKESPEARE
Não fui eu...
HAMLET
E aí estás, fechado numa redoma revestida de signos gravados em cristal líquido.
WILLIAM SHAKESPEARE
Está quase na hora em que devo voltar ao zero...
HAMLET
Óh! Pobre pai!
WILLIAM SHAKESPEARE
Não sou teu pai... Escuta, escuta sériamente o que tenho para dizer...
HAMLET
Fala!
WILLIAM SHAKESPEARE
Um figura de grande projeção... Chegou do passado, seguindo o meu rastro... Quando me encontrar, o que
fatalmente irá acontecer, haverá uma grande mudança... Seremos atingidos pelos efeitos de uma intriga
misteriosa... Será o fim de quatro séculos de fama...
HAMLET
Fama... Ah! esta aura popular...
WILLIAM SHAKESPEARE
Se não agirmos imediatamente... Os aplausos irão acabar...
HAMLET
Aplausos? Ah! Esta iluminação fulgurante que recebem os que se destacam na planície da história!
WILLIAM SHAKESPEARE
William Stanley é o seu nome... É um predador aristocrático, profano, recém saído do túmulo... Suas
maneiras são elegantes e ele fala em tom solene...
Quando ele apelar para a sensualidade reprimida dos simples mortais, todos entenderão... Haverá uma
fratura nas forças que mantém o fascínio por Shakespeare...
HAMLET
Sou filho de quem? Que pista transgênica, numa gota de sêmem ou num fio de cabelo, identifica a química
dos meus laços de família?
WILLIAM SHAKESPEARE
Não poderei me adaptar ao silêncio de um sepulcro anônimo...
Cuidado... Óh, cuidado!... Cuidado com a restauração da verdade... William Stanley tem por trás de si um
poderoso império... Eles te manipularão e farão de ti um marionete de íons migrantes... Cuidado... Óh!
Cuidado!
HAMLET
Sou a dúvida, intimidada por um ser envolto numa espiral de códigos indecifráveis. Óh! É superior ao meu
limite físico!
ENTRA MACBETH. CARREGA UM FARDO DE CARNE. ABRE O FARDO DE CARNE E COMEÇA
A PICAR UM GUISADO PARA PREPARAR UM CHISBURGUER.
MACBETH
Viva o rei do Big-Mac!
HAMLET
29
Rei não, príncipe!
SURPREENDIDO, WILLIAM SHAKESPEARE TORNA-SE AINDA MAIS DIFUSO.
MACBETH
Ah... então ele ronda por aí!
WILLIAM SHAKESPEARE
Hamlet! Macbeth!
MACBETH
Ele fala comigo! Isto é diferente de tudo o que aconteceu antes!
WILLIAM SHAKESPEARE
Macbeth! Tenho um pedido para te fazer!
MACBETH
Sai para longe! Já fui atormentado demais por aparições!
WILLIAM SHAKESPEARE
Continuas a ser um manda-chuva treinado em lutas e contrações nervosas. És o tigre feroz que necessito.
MACBETH
Sou um tigre ferozmente dedicado a realizar minhas operações na MacDuncan’s.
WILLIAM SHAKESPEARE
Com a MacDuncn’s William Stanley só aumenta a sua crucial vantagem em relação a todos nós.
MACBETH
A MacDuncan’s promove as pessoas da grelha para cima. Se agora sou treiner, logo serei gerente de área.
WILLIAM SHAKESPEARE
Mata-o, Macbeth!... Ele ameaça nossa existência. Mata-o e subirás todos os postos. Mata-o e serás o
franqueador. Mata-o e serás o senhora da MacDuncan’s!
SOME.
MACBETH
Desta vez William Stanley vai pegá-lo! Que lhe destes? Mais bebida? Mais dinheiro? Mulheres, talvez?
HAMLET
Quem? Eu? Talvez há muito tempo. Talvez... Talvez não lembre...
MACBETH
Acabo de chegar da batalha em que o gado de raça, livre do carrapato comum, foi derrotado pela audácia de
Macbeth. Suas orelhas já não abanam, nem os seus mugidos debocham nas pastagens frias da Escócia!
HAMLET
Vejo que o emprego na McDuncan’s não intimidou Macbeth. Apesar de estarmos transformados em
assalariados, humilhados pelos termos implacáveis de um contrato de trabalho.
MACBETH
As dificuldades parece que decidiram minha sorte. Estou abrindo caminho em meu próprio benefício, e no
teu também. Somos parceiros.
HAMLET
Espero que, para agradar a Sir William Satanley, tenhas trazido do frigorífico a melhor carne, a que
apresenta mais equilíbrio entre a rusticidade e a precocidade.
É muito inquietante e perturbador. Ele me confunde.
MACBETH
William Stanley criou na Escócia a impressão de que a McDuncan’s é uma invenção escocesa.
HAMLET
Meu orgulho se transformou em humildade. Minha vaidade, modéstia. É como se minha força psíquica
estivesse sendo sugada.
MACBETH
Sir William Stanley não me forçará a baixar o olhar. Cago para os fastos da glória! Desprezo as intrigas
misteriosas que alicerçam a respeitabilidade e o prestígio.
30
HAMLET
Quero esquecer este assunto.
PREPARANDO A CARNE MOÍDA.
Vamos preparar a carne, quente ainda. É uma tarefa apressada, mas sempre silenciosa e eficiente.
MACBETH
É carne de um novilho recém abatido, criado num potreiro com boa aguada e cochos com sal, rações
selecionadas e suplementos dietéticos balanceados com vitaminas e minerais. Examine!
HAMLET
Hum... Os cuidados veterinários lhe garantiram pouca gordura de cobertura e um índice baixo de
colesterol.
MACBETH
FORÇANDO A ALEGRIA. COMO SE OFERECESSE CHISBÚRGUERES.
E então, o que vai? Um Big Black? Um McBad com McFritas? Um McNight?
HAMLET
Um hamburguer de 15 centavos, batatas fritas de 12 centavos e um milk shake de 20 centavos.
MACBETH
A refeição mais popular da história.
À PARTE, ENTRE DENTES.
Servida em 30 segundos, enquanto espero, camuflado e discreto, o plantão da história mudar de turno...
CENA 2
Personagens:
OFÉLIA
LADY MACBETH
OFÉLIA ESTÁ NUM CAIXÃO. MÃOS CRUZADAS NO PEITO, ROSTO LÍVIDO, OLHOS
FECHADOS. LADY MACBETH ESTÁ DEITADA NO CAIXÃO AO LADO.
OFÉLIA
Estou fria. Não sinto nem as mãos nem os pés. Entorpecida, rígida talvez, posso ainda movimentar os
lábios. Meu espírito se desprende e se desloca velozmente.
Além destas paredes, deste país, deste planeta.
Óh! o que encontro!
PARA LADY MACBETH.
Sabias que Ofélia é um asteróide, classificado com o número 171 no catálogo astronômico?
LADY MACBETH
Ora, minha pombinha! Foi uma homenagem dos astrônomos. Batizaram com o teu nome um corpo celeste
vagabundo e sem luz.
OFÉLIA
Vejo do alto, imóvel. Querem jogar o meu corpo nágua, na crença de que a terra não mais o tolerará.
LADY MACBETH
Tens água? Desejo, necessito, ardentemente, purificar-me.
OFÉLIA
Cretina! Como te atreves a me pedir água? Não aumentes o meu suplício...
LADY MACBETH ABRE UM OLHO, COMO QUEM DESPERTA DE PROFUNDO ESTADO DE
TORPOR.
LADY MACBETH
31
Foi um sono longo, denso e doloroso. Meus olhos, ocultos pelas pálpebras fechadas, se moveram
rapidamente de um acontecimento hediondo para outro ainda mais terrível.
OFÉLIA
Falastes enquanto dormias...
LADY MACBETH
ASSUSTADA.
O que disse?
OFÉLIA
Não quero repetir o que ouvi. Criaturas abjetas e ávidas dominam o universo.
LADY MACBETH
Este clima de fatalidade maldita está em tudo! Não consigo me livrar desta mancha.
LEVANTA-SE, A MEIO CORPO NO CAIXÃO, E LIMPA AS MÃOS.
Sai! Mancha maldita! Sai!
OFÉLIA
Não adianta! Não escaparás ao castigo eterno.
LADY MACBETH
Minhas recordações se misturam com o horror e a angústia. Meus olhos estão abertos?
OFÉLIA
Estão, mas é um disfarce.
LADY MACBETH
Sai, mancha maldita! Sai!
OFÉLIA
LEVANTANDO-SE.
Quem nos chama? É uma prestação de contas? Querem nomes?
LADY MACBETH
É melhor te fazeres de surda...
CENA 3
Personagens:
HAMLET
MACBETH
HAMLET
Viva Macbeth! Acabas de ser promovido!
MACBETH
Gerente de área!
HAMLET
William Stanley te deu esta promoção, ao saber da tua perícia na arte de amolar o boi. E ele, em pessoa,
estará em breve visitando esta lanchonete numa vistoria de rotina.
MACBETH
PARA SI.
Estará ao meu alcance...
HAMLET
32
O teu empenho já te coloca numa posição de liderança sem gerar, no momento, nenhum fator de incerteza.
Vês?
Tens novas atribuições e um poder delegado. Deixarás de preparar hambúrgueres, enquanto eu continuarei
descascando batatas.
MACBETH
PARA SI.
Neste processo de tomada de decisão, devo calcular com precisão o efeito da minha interferência.
HAMLET
DESCASCANDO BATATAS.
Oh! Se este corpo elástico, elástico demais!, pudesse fluir numa elípse, projetar-se, iluminado, e, então,
dissolver-se emitindo energia radiante...
CENA 4
Personagens:
OFÉLIA
HAMLET
OFÉLIA
Meu gatão! Que legal te ver!
HAMLET
Ofélia!
OFÉLIA
O príncipe das batatas fritas!
INSINUANDO-SE.
HAMLET
Chega pra lá! Eu ainda tenho muito sacos pra descascar!
OFÉLIA
Te deixaram numa furada, né?
HAMLET
Errado, errado. Eu estou numa boa.
OFÉLIA
Ah... uma boa foi eu te encontrar, depois de tudo o que passei.
Óh! Eu quero te mostrar. Olha os sapatos que eu ganhei de William Stanley. A forma é elegante e a
palmilha é tão macia!... É um sapato de senhora, de passeio...
HAMLET
Sapatos caros. Combinam contigo.
OFÉLIA
Mas em ti ficam melhor.
DESCALÇA OS SAPATOS.
Quero te ver com eles.
CALÇA OS SAPATOS EM HAMLET.
33
HAMLET
Ah! Estás me tratando bem?
CAMINHA COM OS SAPATOS.
Devo desconfiar? Devo sofrer?
OFÉLIA
Muito. Usas o presente que outro me deu, por serviços prestados...
HAMLET
Ah!... És uma moça de virtudes?
OFÉLIA
Sou apenas gentil com os superiores...
HAMLET
Então és um puta?
OFÉLIA
Vou com quem me agrada.
HAMLET
Se és uma puta e és virtuosa não deverias misturar as coisas. Onde chegamos?
HAMLET
E pensar na excitação que estes sapatos me provocam...
Sou uma eventualidade, entre a perturbação propagada e a responsabilidade inadequada. A culpa é um
ponto fixo em colapso. Vestido com lixo, sou um lapso no tempo conhecido.
OFÉLIA
Óh! Pára com esta retórica de almanaque!
CHORA.
ENTRA SHAKESPEARE, QUE SÓ HAMLET ENXERGA.
HAMLET
PARA SHAKESPEARE:
Que desejas, agora?
Estás fora de lugar, com as características de algo que não tem a função do que aparenta.
OFÉLIA
Ele faz um jogo anormal...
HAMLET
Viestes me repreender, decrescendo progressivamente em círculos de amplitude?
Vê? Ela transa com outros e eu uso os sapatos que ela ganha. Queres que me coloque entre ela e a platéia?
Entre ela e as câmaras de televisão?
OFÉLIA
Porque olhas para o vazio e ficas discutindo com o que não existe?
HAMLET
Não percebes a freqüência deste corpo ativo, a radiação e o comprimento das suas ondas?
OFÉLIA
Que figura alucinatória é esta?
HAMLET
Nada escutas, também?
OFÉLIA
Óh! Não aguento mais!
HAMLET
Por tua causa ele já vai se retirando!
Puta! Mil vezes puta!
ENTRA MACBETH NO MOMENTO EM QUE O FANTASMA ELETRÕNICO DE WILLIAM
SHAKESPEARE VAI SAINDO.
MACBETH
Devo executar a tua vontade, que se propaga em todas as direções menos no vazio?
34
CENA 5
Personagens:
MACBETH
LADY MACBETH
ENTRA MACBETH.
MACBETH
É uma pistola o que está neste coldre com um pente de balas. Potência ativa que modifica a escala de
valores da maneira desejada. Objeto de uso temerário que soluciona ou aumenta os problemas de quem o
usa. Superfície polida que, da coronha à alça de mira, indica o caminho a seguir para os que estão
decididos. É a atração sanguinária o que faz o dedo apertar o gatilho, impulso que não existiria, por sí,
neste fatal instrumento de metal.
Quando as bruxas celebraram seu ritual, a força dos seus poderes vaticinou o futuro.
Mas, quem fabrica o presente? Stanley? Shakespeare?
Eu?
Não.
A bala. Uma bala de prata.
Amêndoa mortal que rasga o espaço num milionésimo de segundo. Pedaço morto de um vivo que, uivando,
estilhaça o corpo vivo de um morto.
PERCEBE ALGUÉM ENTRANDO.
Quem está aí? Ei!
ENTRA LADY MACBETH.
LADY MACBETH
Uma amiga.
MACBETH
Querida esposa!
Chegas na hora terrível em que tudo se decide!
LADY
Não podes eliminar William Stanley! És seu auxiliar direto e ele deposita em ti sua confiança. Tens
responsabilidades delegadas e deverias contribuir para a sua perpetuidade.
Além disso ele tem te tratado com particular consideração. O teu frenesi, voando pelo espaço imaginário do
devaneio, se embebeda em falsas reflexões.
MACBETH
Minha vontade se destacará imperativa, como uma onda contínua nunca interrompida. No momento de
agir, farei com que se apague tudo o que devo esquecer.
Abandonarei qualquer relutância...
LADY MACBETH
INSINUANTE.
Escolhe um outro alvo... e uma outra arma...
MACBETH
Ah! Não ousarás opor tua vontade à minha!
LADY MACBETH
Eu ouso tudo o que permite o bom senso.
MACBETH
Mas as suas variações são limitadas.
LADY MACBETH
35
Vem!...
AFAGA MACBETH.
Desiste desta ação.
PARA SI:
Entidades murmurantes que estimulam os instintos da vida! Modifiquem este senhor e eliminem dele tudo
o que for crueldade.
MACBETH
EMPUNHANDO A PISTOLA.
Manipulação demencial, transforma o meu corpo vibrante. Que esta pistola seja a conexão entre o meu
desejo e a destruição histérica de um mundo mórbido!
LADY MACBETH
Pára! As coisas escaparão ao teu controle.
MACBETH
Drogarei o criado de William Stanley, James Byron, oferecendo-lhe um milk-shake preparado com
barbitúricos. Ele dormirá profundamente narcotizado.
Será fácil por a culpa nele. Mancharei as suas roupas com sangue e deixarei a pistola na sua mão. Com
outro revólver, usando outra bala de prata, eu o eliminarei. E o farei de tal maneira que todos pensem que
um matou o outro.
LADY MACBETH
Que nenhum eco duplique o som dos teus passos numa hora tão mal escolhida. Minha consciência se anula,
ante a força desta tua decisão voluntária!
UM SINO BATE DOZE BADALADAS.
MACBETH
Sis William Stanley já chegou!
Aproveitarei que ele estará no escritório, analisando o desempenho da MacDuncan’s.
LADY MACBETH
Não vás. Não faças.
MACBETH
Irei e estará feito!
EMPUNHA A PISTOLA E SAI, PARA ELIMINAR SIR WILLIAM STANLEY.
LADY MACBETH
Que sentimento é este que me assusta com seu conteúdo implacável? Que remorso é este?
DE DENTRO ESCUTA-SE UM TIRO.
MACBETH REGRESSA, COM UMA DAS MÃOS COMPLETAMENTE VERMELHA.
LADY MACBETH
Na tua mão está a prova indesejada!
MACBETH
ATORDOADO.
Porque trouxe comigo a pistola? Ela deveria ter ficado lá.
LADY MACBETH
Não há mais como voltar atrás.
MACBETH
Eu ainda não eliminei o criado.
LADY MACBETH
O que vale para um, vale para dois.
MACBETH
Para chegar no escritório, onde está caído, imerso em profundo torpor, tenho que passar por cima do corpo
de Sir William.
LADY MACBETH
Irás rever os seus olhos abertos.
MACBETH
TORNANDO A SAIR.
Sujarei com o sangue de Sir William o corpo de James Byron, o idiota, e depois o matarei.
36
SAI.
ESCUTAM-SE MAIS DOIS TIROS.
BLACK-OUT.
CENA 6
Personagens:
OFÉLIA
HAMLET
CENA 7
Personagens:
MACBETH
LADY MACBETH
MACBETH
COM A MÃO DIREITA COMPLETAMENT VERMELHA.
Que mão é esta que não consigo lavar?
37
Ah!... este tremor me faz reconhecer algo simples até demais. Nem toda a água capaz de jorrar desta
torneira poderá lavar este sangue e limpar esta mão. Esta cor é uma lesão muito grave, e será, além disto,
uma acusação irrefutável. Se nenhum líquido consegue eliminá-la, uma medida mais drástica deverá ser
tomada.
LADY MACBETH PEGA SEU BRAÇO.
LADY MACBETH
Deves amputar exatamente aqui, no antebraço, oito centímetros acima da linha onde começa a mancha
vermelha.
ABRE UMA MALETA, DE ONDE TIRA INSTRUMENTOS CIRÚRGICOS.
Secciono com o alicate cirúrgico as grandes veias, entre os ossos e o relevo dos músculos. Dou um corte
transversal, com o formão serrilhado de aço inoxidável, acompanhando a borda interna do tendão...
Com movimentos coordenados, deixo que a serra abra um sulco no longo eixo do braço...
Sinto a pulsação da artéria e com pequenos movimentos de meus próprios dedos, vou separando o tecido
que a protege.
SEPARA A MÃO DE MACBETH DO ANTEBRAÇO. AFASTA-SE, NERVOSA, ÁVIDA,
CARREGANDO O MEMBRO AMPUTADO.
MACBETH
COM UM SÓ BRAÇO.
Dois braços são como dois trilhos. Para não ficar fragmentado entre trens micro físicos que atravessam
simultaneamente o mesmo percurso, prefiro ficar com um só. Adeus! A partir de hoje usarás luvas de pelica
branca, que te absolverão de qualquer suspeita nesta vermelha acusação.
CENA 8
Personagens:
HAMLET
OFÉLIA
SHAKESPEARE
HAMLET
ENCONTRA SHAKESPEARE, QUE VEM ENTRANDO.
Percepções híbridas! Me ocultem na sombra dos seus compostos! William Shakespeare, outra vez!
OFÉLIA
Será que ele está realmente louco? Vou ver sem que me veja. Ficarei escondida no banheiro.
ESCONDE-SE NO BOX DO BANHEIRO.
HAMLET
PARA O FANTASMA ELETRÔNICO DE WILLIAM SHAKESPEARE.
Viestes para repreender ou para elogiar tua criatura? Trazes a pulverização dos sentidos ou uma carga de
equações canônicas?
WILLIAM SHAKESPEARE
...porque aguentas as obcenidades desta ordináia que tão longe está da verdadeira Ofélia? ...já no século
XVII se perderam certas partes da tua história...
por culpa dos atores, que suprimiam umas cenas e acrescentavam outras ...com as descaracterizações
ocorridas aqui, todo o resto está ameaçado ...
HAMLET
38
Na lenda escandinava, Hamlet incendeia os tapetes do palácio, mata o tio usurpador e se faz coroar rei.
Porque o argumento original foi abandonado? Porque tive que morrer no último ato?
WILLIAM SHAKESPEARE
Em breve, nem a poderosa gramática de Oxford poderá te reconstruir.
HAMLET
O meu verdadeiro problema é anterior a qualquer reconstrução.
WILLIAM SHAKESPEARE
...William Stanley... necessariamente... quis assim ... ele te matou no final para ficar mais ao feitio da
época, mais ao gosto do público...
HAMLET
E o carácter que me deu, que atrativo posso encontrar nele?
WILLIAM SHAKESPEARE
...são características impossíveis de definir... às vêzes penso que, sem pretender, William Stanley te deu
vida própria... autonomia em relação aos outros personagens e à estrutura da tragédia...
HAMLET
Me deixou sósinho!
WILLIAM SHAKESPEARE
...sósinho... mas num ritmo com paroxismos febris!...
HAMLET
Sósinho, com alternâncias de júbilo e apatia.
WILLIAM SHAKESPEARE
...este é o teu mérito... o público adora isto ...se não fosse pelo talento de quem te criou... já terias te esvaido
nos arquivos do tempo e da memória...
HAMLET
Minha tragédia foi a que deu mais fama ao nome Shakespeare. Mas não é a melhor escrita.
WILLIAM SHAKESPEARE
...estou cansado... o século XXI me deixa sem forças ...minha materialização enfraquece pela dilatação e
compressão que coexistem no tempo...
William Stanley... finalmente... recebeu seu passaporte para o inferno...
HAMLET
Uma ação de Macbeth, bem ao feitio da época. Que atrativo posso encontrar nela?
WILLIAM SHAKESPEARE
Mata Macbeth e torna-te o único senhor...
HAMLET
Ah! Uma idéia simples segundo os padrões mais realistas...
WILLIAM SHAKESPEARE
Mata-o e brilharás eternamente...
HAMLET MANIPULA UM TECLADO DE COMPUTADOR E VAI, AOS POUCOS,
DESMATERIALIZANDO WILLIAM SHAKESPEARE.
WILLIAM SHAKESPEARE
...mas... o que estás fazendo?
HAMLET
Vou deixar-te no escuro! E espero que fiques nele, de onde nunca deverias ter saído. No teu teatro circular,
mantido em rigidez mecânica, longe da luz do sol.
WILLIAM SHAKESPEARE
...óh!... não! ...não apagues este ponto de luz!
A LUZ DIMINUI DE INTENSIDADE ATÉ SHAKESPEARE DESAPARECER NA ESCURIDÃO.
SUAS PALAVRAS, GRADATIVAMENTE, TAMBÉM DESAPARECEM COM ELE.
...fui morar em Londres aos vinte anos... arrumei um emprego na cavalariça de SIR WILLIAM
STANLEY... óh... como eu estava orgulhoso de mim... aprendi a ler algumas letras e até a escrever meu
nome... um dia ele mandou me chamar ao seu castelo... disse que eu assinaria as criações da sua pena...
39
relutei... mas não tive saída... ... foi assim que surgiu o William Shakespeare... as mesmas iniciais... um
dobrevê e um esse... no... castelo... no... inverno.... de... 1592... magnífico... era...
o... terraço... sobre... o... mar... caminhei... pela...
esplanada... batida.. pelo... vento...
e... c o m ... p r e e n d i... q u e.. . a q u e l a . . . e
r a . . . a m i n h a
c h a n c e de m e
t o r n a r. . . . i m o r t a l . . .
DESMATERIALIZA-SE.
OFÉLIA
ATRÁS DA CORTINA DO BOX, PARA HAMLET.
CANTA:
“Ele se ergueu, sorriu,
a porta do quarto abriu.
Entrou a moça no covil da fera,
e, ao sair, moça não era."
HAMLET
Morte na catedral...
Morte no chuveiro...
DESCONTROLADO, DESEMBAINHA O PUNHAL E ESFAQUEIA OFÉLIA ATRAVÉS DA
CORTINA.
HAMLET
O que fiz? Não sei, realmente não sei. Alguém estava cantando no chuveiro. Terei matado a faxineira? Ou
uma hóspede?
Quem sou?
Um engenheiro da renascença?
Um escravo moderno?
Isto aqui é o Bates Motel?
CENA 9
Personagens:
HAMLET
MACBETH
MACBETH
Me dá licença. Como vai o meu príncipe?
HAMLET
Confuso.
MACBETH
Sabes quem sou?
HAMLET
És o novo franqueador da McDuncan’s.
MACBETH
40
Perfeitamente.
HAMLET
Preferiria estar vendo o herói escocês.
MACBETH
Também comigo o velho William Stanley escamoteou a verdade... Ele eclipsou a verdadeira história de
Macbeth.
COM DISTANCIAMENTO:
Macbeth matou, no ano 1040, o rei Duncan I, em Dunsinane, recobrando o trono que pertencia a sua esposa
Gruach. Peregrinou a Roma, para pedir perdão ao Papa. Depois que Macbeth retornou, em 1054, Malcom,
ajudado pelo conde Siward de
Northumberland, usurpou de Macbeth uma parte do seu reino. Em 1057, Macbeth morreu lutando contra
Malcom em Lumphanan.
HAMLET
RETOMANDO.
Acabo de eliminar William Shakespeare. Sabes quem sou?
MACBETH
És um assassino igual a mim.
HAMLET
E com este punhal matei a faxineira...
MACBETH
E quantos mais ainda mataremos? Seja empregando a astúcia, seja diretamente?
HAMLET
Pois... se a luz pode ser negra numa radiação invisível, então... pode tornar-se, também, um zumbido
atravessando uma cortina de plástico numa tempestade equatorial.
As formações nervosas dos meus hemisférios cerebrais, nos quais os traumas são sempre graves, não
convivem tranqüilamente com a lembrança do assassinato. Acho que só poderei controlar a fissão que
ameaça pulverizar meus neurônios se tiver uma vida estritamente vegetativa: dormir, beber, comer,
evacuar.
MACBETH
Estás confuso como quarks e nuclídeos desvairados. Simetrias quebradas escurecem o teu holograma.
HAMLET
Mas os períodos histéricos que me deslocam da órbita sincrônica não são uma confusão. São acréscimos de
uma grandeza excitante.
MACBETH
E esta grandeza nos permite questionar a realidade e suas disposições implícitas?
HAMLET
Foi Hamlet quem matou a faxineira? Hamlet nunca.
MACBETH
Foi Macbeth quem eliminou William Stanley? Macbeth nunca.
HAMLET
Foi Hamlet quem fez com que William Shakespeare deixasse de ser um macaco?
MACBETH
Foi Macbeth quem eliminou a honra e inventou a traição?
HAMLET
Ultrapassamos a encruzilhada do que é natural e do que é impossível.
MACBETH
Óh! Nos distanciamos, como antropófagos, das frivolidades que estamos acostumados a ouvir! Não
seremos fragmentados por trens micro físicos que atravessam tragicamente, ao mesmo tempo, os mesmos
trilhos.
HAMLET
Tento dar legitimidade a sentimentos que cobrem a consciência com um véu de insensatez.
41
MACBETH
É incrível, é surpreendente! A consciência nos obriga a um gesto aparente, o gesto nos leva para a
representação, e a representação nos conduz até a mistificação.
HAMLET
É a mistificação que nos transporta para o absoluto?
MACBETH
Se for... Então é este mesmo absoluto nos traz de volta para a mediocridade quotidiana.
HAMLET
Tudo para nada.
CENA 10
Personagens:
MACBETH
HAMLET
THELONIUS
SARGENTO KELLY
MACBETH
Thelonius, o Monge Negro, está agindo! Seus peritos identificaram os corpos de William Stanley e seu
criado e começaram as autópsias.
HAMLET
Que meio produziu estas estranhas mortes? Veneno? Fogo? Explosivos? Asfixia?
MACBETH
Em breve seremos intimados.
HAMLET
Assim funciona a lei do mundo das trevas: a constância na variedade.
MACBETH
A presença do perigo te inquieta?
HAMLET
Precisamos ser espertos para guiar com segurança nossos corpos naturais pelos labirintos do que está
escrito.
MACBETH
Não precisas temer. Está aqui um franqueador maior que o medo.
42
HAMLET
Podemos subornar os peritos de Thelonius. Não serão Cumpridas certas práticas necessárias e tudo ficará
cheio de divergências. Não haverá minúcias, nem clareza, nem exatidão.
MACBETH
Lutaremos! Bate três vezes na madeira!
Nós os esperaremos protegidos atrás destes balcões e saudaremos a sua chegada com uma saraivada de
balas... de prata!
Toma posição!
A McDuncan’s fast-food não se entregará sem lutar!
HAMLET
Deixa-me escolher a arma que usarei.
EXAMINA VÁRIAS PISTOLAS.
Mauser, esta me agrada. Tentarei disparar a uma distância máxima de doze metros.
MACBETH
A menos de três sei que não errarás, mesmo que o alvo seja invisível.
HAMLET
Que armas eles usam?
MACBETH
Intimidação!
Mas eles nunca enfrentaram uma reação como a que os espera.
Que barulho é este?
HAMLET
Mulheres que choram num enterro.
OLHA PELA PORTA.
Tenho que te dizer o que vi, mas talvez não acredites.
MACBETH
Fala!
HAMLET
Olhei agora para o lado de fora e vi...
MACBETH
As árvores da praça se aproximando?
HAMLET
Vi um exército de demônios e espíritos malignos.
MACBETH
Atira, então! Atira! Com balas de prata! Balas de prata! Depressa!
HAMLET E MACBETH DISPARAM, NUMA COREOGRAFIA ALUCINANTE.
UM FULGOR ILUMINA A CENA.
HAMLET
O momento é crítico.
MACBETH
Ah! Nossas habilidades são inimagináveis!
DEPOIS, QUANDO O TIROTEIO CESSA.
HAMLET
Recuaram!
MACBETH
Eu sabia! Não estão acostumados com uma recepção em alto estilo. Acertei um no estômago! Vê como rola
no asfalto e a cara de pavor dos outros.
Me alcança um milk-shake. Durante o calor da luta, beberemos!
Cuidado!
43
Aí vem eles de novo!
DISPARA.
Acertei outra vez!
HAMLET
Acertado, acertado! Sou testemunha!
SARGENTO KELLY
É exatamente como se eu tivesse um computador na cabeça, programado por especialistas em
neurotecnologia.
THELONIUS
44
Kelly Boy, os seus coturnos vão pisar numa lanchonete McDuncan’s! Dois traidores tentam nos empurrar
de volta para o mundo triste onde vivíamos às cegas como seres desprezíveis.
Você vai entrar em ação. Huúu! Eles não poupam munição! Balas de prata, huúu!, abrem buracos em nossa
carne negra! Huúuu! Huúúuuu!
SARGENTO KELLY
AVANÇANDO EM MEIO A EXPLOSÕES E SIMULAÇÕES DE UM FEROZ COMBATE.
Me arrasto, sob o intenso fogo dos atiradores de tocaia. Controlo imagens hipersemióticas introjetadas.
LEVANTA-SE.
Não quero nem saber! Ataco!
THELONIUS
Tens uma arriscada tarefa, Kelly Boy. Avança até o bunker do Inimigo, focaliza as suas áureas filigranadas
e silencia as suas pistolas. Huúu!
SARGENTO KELLY
Atiro sem parar com o meu fuzil laser de fogo contínuo. Localizei dois seres hídrico-membranosos
rebeldes, um erotômano e um noctâmbulo. Vou mostrar-lhes que não sou um autômato. Vou mirar num
deles e prepara-lo para a liquidação cósmica!
DISPARA.
Acertei nele. Mas a sua permutação cíclica continua em pé. Dei mais cinco tiros e ele não caiu!
Minha arma esquentou tanto que engasgou. Óxidos! Tenho medo que um curto-circuito apague as minhas
vibrações luminosas. Que faço?
THELONIUS
Huuúuuuuu!!! Huuúúuuuu! Eles revidam da Mcduncan´s, Kelly.
SARGENTO KELLY
Ra-tá-tá-tá-tá-tá-tá!!! Bombardearei a zona de conflito sem atingir os civis. Um míssel químico...
Boommmm!!!
Explodiu bem onde eles estão...
THELONIUS
Huúuu!!! Nunca mais eles subirão ao palco! Huúuuu!!!!
A AÇÃO VOLTA AO PLANO ANTERIOR.
NO INTERIOR DA LANCHONETE.
HAMLET
Ai! Fui atingido!
CAMBALEIA.
MACBETH
Segura a minha mão. Te sentirás mais forte.
HAMLET
Enxergo teu rosto embaçado e distante.
MACBETH
Repousa.
HAMLET
É como se uma fenda se abrisse aos meus pés.
Me exponho aos olhos comuns, cheios de inveja.
Espero que as frases imortais que repeti sem cansaço em todos os palcos do mundo se tornem
incompreensíveis para sempre. Desejo que, no interior de uma gramática subitamente desorganizada, a
nitidez mensurável das sílabas desmorone comigo, apagando numa avalanche tudo o que foi escrito sobre
Hamlet.
Estou morto, Macbeth!
MACBETH
Que quatro balconistas carreguem Hamlet passo a passo num ritmo elástico. Ele é o número um!
Que os sonares e radares registrem sua passagem!
Mas... Porque soam estas sirenes?
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É a corrupta opinião pública, filha apenas do poder, que me espera do outro lado desta porta?
Não me renderei! Para não ser esmagado na rotina genérica!
Com as balas estilhaçantes das minhas pistolas de linhas brilhantes, mais facilmente enfrento os corpos de
carne negra, que se decompõem ainda em vida, do que os fatos da minha memória banida, colocada frente a
meus olhos como um espelho nulo.
ATIRA.
SARGENTO KELLY
Mais um dia uni cromático como os outros. Preciso confrontar a minha perpendicular inapetência com o
acoplamento do alargador de ranhuras helicoidais. A inércia se aproxima, confundida no crepúsculo
sangrento. Sinto que desperdicei a minha vitamina definitiva num estado de indolência insubstanciável.
THELONIUS
Isto significa inorgância?
SARGENTO KELLY
Não entendi, senhor.
THELONIUS
Vencemos a batalha da lanchonete, mas você deixou o calibrador ficar superaquecido. Veja só o estado das
correias! Você foi incompetente. Permitiu que o jogo comprimisse o cilindro!
SARGENTO KELLY
Desculpe, senhor. Sofro de hidrogenia. Deve ser minha genetização.
THELONIUS
Ora, não provoque minhas hidrofiláceas! Relaxe... Sua missão está cumprida.
SARGENTO KELLY
Por favor, senhor. Quero fazer meu último pedido. Permita, antes de me desligar, que eu consulte meu
hidróscopo?
THELONIUS
Que pedido mais hidropático! Negado.Sargento Kelly, não seja tão hidráulico!
CENA FINAL
DEPOIS DE UMA PAUSA, A LUZ SOBE LENTAMENTE. MESMO CENÁRIO. HAMLET ESTÁ
MORIBUNDO.
MACBETH
Aqui está o Príncipe da Dinamarca, morrendo.
Suas células perdem mais energia do que produzem e logo se transformarão numa cavidade com paredes
opacas. Um caráter subjugado, não por violentas paixões, mas por refinados sentimentos, que se lamentava
pelos corredores escuros e vagava pelos subterrâneos úmidos. Como Macbeth, ele também estava
humilhado por um peso que não podia suportar e do qual não conseguia livrar-se.
Vamos ver! Quem aponta onde erramos?
Que erros foram estes?
Os de personagens que, fugindo dos padrões, se deixaram levar por importantes reflexões?
Os de jovens fragilizados, obrigados a executar terríveis ações?
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Presos na teia de um poderoso duque que usava uma máscara para ocultar seu verdadeiro rosto, tudo o que
podemos dizer são palavras que oscilam entre a filosofia antiga e a vã literatura de um presente que não
sabe mais ler.
Acabam de assistir à transmutação de fatos sangrentos. Minha última vontade é que os cadáveres que aqui
se encontram tenham suas imagens transmitidas para todo o mundo. Leiseres transformarão seus espectros
em cor e seus pigmentos ficarão para sempre fixados em cilindros cobertos de selênio.
Emissores de alta velocidade transformarão o que aqui aconteceu em feixes luminosos disparados em todas
as direções. E os mais distantes povos, que ainda ignoram estes fatos, serão informados de desejos mal
compreendidos, que se exprimiram como sentimentos inaceitáveis, e de estranhos interesses, que
disfarçaram a sua significação profunda.
HAMLET
MORRENDO.
E o resto será silício...
FIM