Você está na página 1de 46

1

MILKSHAKESPEARE
JULIO ZANOTTA VIEIRA

Prêmio Funarte de dramaturgia


2

COMO FOI ESCRITO


MILKSHAKESPEARE
Zanotta começou a escrever Milkshakespeare no interior da cidade de Viamão, num sítio onde vivia isolado. Terminou 10
anos depois, em São José, na grande florianópolis. Entre estes anos houve longos períodos de inatividade. Zanotta encontrava
sempre novos problemas que o bloqueavam.
Leitor ávido de fontes históricas, descobriu o verdadeiro Hamlet na obra de Saxo Grammaticus, historiador dinamarquês
oriundo da família nobre dos Lange, nascido em 1140 e morto na abadia de Roskilde em 1206. Foi a obra de Saxo que serviu de
fonte a Shakespeare. Alguns críticos modernos afirmam que a obra de Saxo não tem nenhum valor sob o ponto de vista histórico,
propriamente dito, mas as lendas que ele narra, misturadas com velhos cantos dinamarqueses e sagas irlandesas são tão importante
para a história literária e para o estudo dos costumes escandinavos primitivos quando o Velho Testamento para a história dos
hebreus. Sua principal obra, onde está narrada a verdadeira história do príncipe Hamlet, tem por título: “DANORUM
REGUNMQUE HEROUM HISTORIA”. Foi o latim elegante com que está escrita que valeu a Saxo o sobrenome Grammaticus. A
narrativa apresenta inúmeras diferenças em relação à versão de Shakespeare.
Macbeth também foi um personagem histórico. No século XI, Macbeth, ao matar Duncam I, retomou o trono que pertencia
a sua esposa, Gruach. Foi recebido pelo Papa Lúcio II na sala Clementina entre báculos e cálices brilhantes, sentado na “sedia
gestatória”, rodeado de camareiros suíços. Macbeth postergou-se e pediu perdão ao Papa pelo regicídio. O Papa absolveu-o, após
consultar um assessor, o jurista Gratianus, de Toscana, autor de um “Droit Eclésiastique” e um Código Civil. Este fato é
absolutamente histórico. Está registrado na “CRONIQUE OF ENGLAND, SCOTLAND AND IRELAND” (1578 ou 1577), de
Holinshed que, nos fatos relativos à Escócia, se apoia na versão dos “SCOTORUM HISTORIAE”, (1527), de Hector Boethius,
editado em Paris.
Zanotta fundiu os dois regidas, como linguagem objeto: Mac’Amlet - Mac’Let - Mac-Ham/Beth-Let. Pensou nos dois
como assassinos.
O autor de Milkshakespeare sempre teve uma atração por Hamlet & Macbeth e pela questão da verdadeira autoria da obra
de Shakespeare, levantada pelos críticos franceses. Esta é uma polêmica bem conhecida, que só tem crescido impulsionada por
pesquisadores modernos, apoiados em resultados tecnológicos. Zanotta estudou o assunto e decidiu-se por William Stanley que
reúne, de fato, algumas das qualificações para ter sido o autor da obra shakespeariana. A questão da autoria serviu-lhe de símbolo:
o que é realmente verdade na história?
O argumento de Milkshakespeare foi pensado para desdobrar-se em dois momentos, com uma ambientação gótica. Uma
época antiga, em ruínas, e um presente inquietante.
O primeiro ato começa com Stanley e seu criado James procurando a tumba do usurpador, num tom farsesco. Quando entra
Thelonius, um monge demoníaco, a farsa torna-se sombria e nos conduz ao mundo das trevas. No segundo ato, no interior da
lanchonete, o caráter dos personagens está alterado. No final, o soldado tecnológico que toma o fast-food num combate mortal é
um símbolo do militarismo contemporâneo.
Zanotta considera importante o trabalho de desmontagem (ele nunca usa a palavra desconstrução) dos dois textos de
Shakepeare, Hamlet e Macbeth. Cotejou muitas versões, com suas variantes e soluções. Separou as noções filosóficas e a visão de
mundo Elisabethana empregadas por Shakespeare e substituiu-as por conceitos das ciências do século XX, principalmente a física,
a matemática avançada e a cosmografia.
Realizar a dramaturgia e harmonizá-la ao bizarro argumento trabalhando com referências equivalentes foi um desafio. O
autor brinca, dizendo que Milkshakespeare é “um trezentos e sessenta avos do ciclo de uma corrente entrópica atuando em dois
campos polares consecutivos”. Com muita paciência, certamente...

LUIS ALAOR SEGREIRA


3

ARGUMENTO
PRIMEIRO ATO

Sir William Stanley é o verdadeiro autor das obras de Shakespeare. Como nobre, não podia rebaixar-
se e assinar a autoria de peças de teatro. Contratou um empregado da sua cocheira, filho de um açougueiro,
recém chegado a Londres, para assinar as peças.
Quatro séculos depois o nome de William Stanley caiu em esquecimento. Shakespeare, no entanto, brilha
como o maior dramaturgo de todos os tempos. A obra que ele assinou como sua exerce um estranho
fascínio sobre as pessoas cultas. Na companhia de seu criado, James Byron, sai da tumba disposto a
encontrar o vil cavalariço para um acerto de contas. Atravessam um pântano sombrio onde encontram duas
bruxas, Morgana e Lilith. Elas fazem um sortilégio em torno ao clássico caldeirão para permitir que Sir
William rompa o que está estabelecido no contrato, “até que os fundamentos matemáticos deste mundo, e
os cálculos da física que o mantém, se desfaçam completamente”.
Seguindo adiante, Sir William Stanley e seu criado, James Byron, penetram nas ruínas do sinistro
castelo de Elsinore. Encontram dois personagens hamletianos, Rosenkrants e Guildenstern, nobres
decadentes que vivem nas ruínas.
No cemitério do castelo, entre lápides caídas e mausoléus tomados pela hera, Stanley e James
procuram a tumba de William Shakespeare. Acham as tumbas de William Burroughs e de William Blake.
Um túmulo se abre e dele sai o espectro de Lady Macbeth, convertida numa piedosa senhora. Outra tumba
se abre. Surge novo espectro, Ofélia. É uma devassa, garota oportunista. As duas dão notícias de seus
amantes. Estão trabalhando para Thelonius, o monge negro.
Stanley e James vão até ao sinistro mosteiro de Thelonius. O monge sinistro propõe um negócio a
Stanley: tornar-se sócio na cadeia de fast-food MacDuncan’s. “Será o biombo de trevas atrás do qual se
esconderão as garras do irracional, contorcendo-se sobre a sórdida espectativa da... fatal extinção!” Stanley
aceita: “Administrarei a memória comum, fundindo-a com a glória, para alimentar-me dos mais suculentos
lampejos de vida.” Tudo será engolido pelas forças incontroláveis, pelas suas manifestações particulares do
horror. Kroc! Kroc! Kroc!

SEGUNDO ATO

Uma lanchonete da rede de fast-food MacDuncan’s. Os motivos da decoração são sórdidos e


perversos. Destaca-se o terrível logotipo em “M”.
Macbeth e Hamlet são balconistas da lanchonete. Vestem jeans e camisetas com o logotipo “M”. O
fantasma de Shakespeare aparece num monitor eletrônico e adverte Hamlet do perigo que significa Sir
William Stanley. Se ele realizar sua vingança acabará o fascínio por Shakespeare. O fantasma exorta
Macbeth a matá-lo, para tornar-se gerente: “Mata-o e serás o senhor da MacDuncan’s!”
Lady Macbeth e Ofélia são faxineiras. Lady Macbeth, boazinha, tenta demover Macbeth dos seus
propósitos. Ofélia vai com quem paga mais. Hamlet excita-se com os sapatos da outrora virtuosa dama.
Vestido com luxo, ou com lixo, é um lapso no tempo conhecido. Exclama: “Se és uma puta e és virtuosa não
deverias misturar as coisas. Onde chegamos?”
Macbeth assassina Sir William Stanley com uma pistola,
Como não consegue limpar a mancha de sangue que lhe deixou a mão direita completamente vermelha,
amputa o próprio braço. A partir de então, usará uma luva de pelica branca.
O fantasma eletrônico de Shakespeare aparece outra vez e Hamlet o deleta. Manda-o para o escuro:
“mantido em rigidez mecânica, longe da luz do sol”.
Ofélia assiste a tudo, enquanto banha-se no chuveiro. Hamlet, descontrolado, a esfaqueia através da
cortina do box. Questiona-se: “Quem sou? Um engenheiro da Renascença? Um escravo moderno?” E
pergunta: “Isto aqui é o Bates Motel?”
4
Macbeth e Hamlet tomam o poder na MacDuncan’s. No entanto, Thelonius, o Monge Negro, está
agindo. Suas tropas cercam a lanchonete e ele manda o Sargento Kelly atacar. “Sua especialidade é atuar
em qualquer parte do mundo. Foi construído cuidadosamente para dar a sensação de que é idêntico aos
humanos.” Macbeth e Hamlet defendem-se, com alusões às profecias das bruxas. Avançando em meio a
explosões e simulações de um feroz combate, o Sargento Kelly demonstra o seu valor: Lutou no
Afeganistão, limpou a Palestina e, em breve, vai terminar o serviço em Bagdá.
Hamlet é atingido. Com o seu corpo nos braços, Macbeth dá o monólogo final. Feixes luminosos,
disparados em todas as direções, informarão de “desejos mal compreendidos, que se exprimiram como
sentimentos inaceitáveis, e de estranhos interesses, que disfarçaram a sua significação profunda”.
Hamlet, morrendo, diz as últimas palavras:
“E o resto será silício...”

PERSONAGENS
SIR WILLIAM STANLEY
Conde de Derby. Na peça, o verdadeiro autor das obras atribuídas a William Shakespeare.
JAMES BYRON
Mordomo e guarda-costas.
MORGANA
Bruxa.
LILITH
Bruxa.
ROSENKRANTS
Conde. Último proprietário do Castelo de Elsinor.
GUILDENSTERN
Nobre. Amante do Conde Rosenkrants.
LADY MACBETH
Primeiramente, um espectro ressuscitado. Depois, faxineira da cadeia de fast-food MacDuncans.
OFÉLIA
Idem.
THELONIUS
O Monge Negro. Senhor Todo-Poderoso do Mundo das Trevas.
HAMLET
Primeiramente, personagem da obra do dramaturgo William Shakespeare. Depois, balconista da cadeia de fast-
food MacDuncans.
MACBETH
Idem. Depois chapista e gerente da cadeia de fast-food MacDuncans.
SHAKESPEARE
Um fantasma.
SARGENTO KELLY
Mariner Norte-Americano.
5

MILKSHAKESPEARE
EM DOIS ATOS

ATO PRIMEIRO
Encenado ao estilo do teatro clássico.
Recitativo e pomposo. A ação perde-se
na poeira dos séculos.
4 cenas

ATO SEGUNDO
Encenado com as técnicas do teatro contemporâneo.
Dinâmico, ágil. Época atual.
10 cenas e um final

GÊNERO: Sátira gótica


ÉPOCA: Primeiro ato: Antiga.
Segundo Ato: Contemporânea
NÚMERO DE ATORES: Pode ser montada com quatro atores.
QUANTIDADE DE PERSONAGENS: 13
6

MILKSHAKESPEARE

ATO PRIMEIRO

CENA 1

O PÂNTANO

Personagens:
SIR WILLIAM STANLEY
JAMES
MORGANA
LILITH

Cenário: UMA PAISAGEM DESOLADA, ÚMIDA, PANTANOSA. BRUMAS ESPESSAS


DESPRENDEM-SE DE CHARCOS NAUSEANTES E ENCOBREM A VEGETAÇÃO DOENTIA,
ESTÉRIL, RETORCIDA. TUDO É ESQUIVO E SOMBRIO.
AMANHECE. UM AMANHECER SINISTRO E AGOURENTO.

WILLIAM STANLEY
O primeiro raio de luz, recém a surgir, grava nas mentes penosa impressão. Aqueles que, antes de nós,
atravessaram este pântano, como vermes penetrando num crânio podre, não deixaram uma descrição
geográfica precisa, nem sequer um mapa.
JAMES
Deixaram um aviso: guia-te pelo instinto... E pelo faro!
Que fedor!
SIR WILLIAM STANLEY
A névoa doentia encobre a vegetação nociva e nenhum som perturba a face da terra.
JAMES
Só o zizz-zizz dos mosquitos, Sir!
ESPANTA OS MOSQUITOS.
SIR WILLIAM STANLEY
Abrem alas e zumbem suas cornetas para saudar nossa passagem.
JAMES
ESPINHA-SE NUM ARBUSTO.
Mas tem espinho prá caralho!
SIR WILLIAM STANLEY
Arbustos retorcidos que produzem estranhas peras envenenadas.
COLHE UMA PERA SILVESTRE.
JAMES
EXPERIMENTA UMA. COSPE FORA.
Credo! Que nojo!
SIR WILLIAM STANLEY
PROVANDO UMA.
Impossível comê-las, ardem na boca e queimam a garganta. Estão contaminadas pela seiva exaurida.
7
JAMES
E dão uma caganeira! Com licença, Sir, que eu vou ali atrás da moita...
SIR WILLIAM STANLEY
Ah... Nem mesmo o amanhecer sereno e a mais esplêndida aurora seriam capazes de, num assomo, juntar o
macho numa cópula com a fêmea para, no reino da botânica, tentar fertilizar esta vasta extensão de aridez e
desolação! O macho anularia a fêmea e só produziriam estéreis bagas como esta.
JAMES
ACOCADO ATRÁS DE UMA MOITA.
Arf!... Arf!... Que rojão! Quase me descarrego todo nas calças!
SIR WILLIAM STANLEY
E, no entanto, elas vivem aqui e, consta, tiram leite e mel desta paisagem repulsiva.
JAMES
Elas moram mais adiante, na boca duma caverna, como se fossem bicho!
SIR WILLIAM STANLEY
Lá, onde os ambiciosos participam de terríveis sabaths para, logo a seguir, medirem a eficácia das suas
artes negras.
JAMES
SAINDO DETRÁS DA MOITA, SE AJEITANDO.
Dizem que elas tem parte com o Coisa-pronta.
SIR WILLIAM STANLEY
Possuem um currículo invejável de crueldades. Causam asco e provocam desgraças, mas também rivalizam
com os que fazem o bem.
JAMES
Ué? De repente parou tudo! Até a mosquitama sumiu.
Olhe lá! Elas, Sir! As bruxas!
SIR WILLIAM STANLEY
Uma, iluminada pelo sol a surgir. Outra, oculta ainda pelas trevas.
A LUZ DA AURORA ILUMINA UMA PARTE DO PALCO. ENTRAM AS BRUXAS NUM RITUAL
EM TORNO DE UM LIQUIDIFICADOR GIGANTE ONDE BORBULHA TEMÍVEL MISTURA.
WILLIAM STANLEY E JAMES SE ESCONDEM ENTRE OS ARBUSTOS, ESPINHANDO-SE NOS
GALHOS PONTUDOS E TORTUOSOS. SUSSURRAM, À PARTE.
JAMES
Tão fazendo a salgação do feitiço.
SIR WILLIAM STANLEY
Já perceberam que estamos aqui. É com uma ação nicromântica de pura vidência, que exercem o seu... o
seu... O seu “modus operanti”.
JAMES
Minhas congratulações pelo latim, Sir.
AS BRUXAS CONTINUAM SUA ATUAÇÃO. MORGANA NA ZONA DE LUZ, LILITH NA
SOMBRA.
MORGANA
William Stanley! Se necessitas de proteção, finca um prego no chão.
JAMES
É bom que teja de corpo fechado, Sir. Não posso garantir nada contra este tipo de trabalho...
LILITH
William Stanley! Se tens sede de alguém, esconde uma tesoura embaixo do travesseiro.
SIR WILLIAM STANLEY
Prostituta de tetas secas.
JAMES
Chega pra lá, Sir. Preciso espiar se ela tem mesmo pés de coruja.
MORGANA
William! William!
8
LILITH
Stanley! Stanley!
JAMES
Tão lhe esconjurando, Sir. Pode ser quebranto! É melhor se benzer!
VAI FAZER O SINAL DA CRUZ.
SIR WILLIAM STANLEY
Pára! Este sinal está proibido para nós.
AS BRUXAS, EM TRANSE, EXERCEM SEU RITO EN TORNO DO LIQUIDIFICADOR, ONDE
BORBULHA A POÇÃO ESPUMANTE.
MORGANA
William, queres mudar um pacto que tem um misterioso cheiro de antiguidade!
LILITH
Este pacto... Este protocolo...
Já vai longe,
Já teve sua época.
MORGANA
William! O que queres desenterrar?
LILITH
VATICINANDO.
William!
Três vezes o morcego vai piar!
Então encontrarás,
Um prenúncio de males,
Um passado de intrigas.
MORGANA
Três vezes o rato vai guinchar!
Então encontrarás
Mulheres alucinadas,
Que vivem entre as tumbas.
LILITH
E depois
No antro da traição
Beijarás o rabo
Da mulher lobo,
Cabeça de lobo.
AS DUAS
E nunca mais dormirás
Nem de noite, nem de dia.
PREPARAM UMA NOVA MISTURA NO LIQUIDIFICADOR.
MORGANA
Críticos literários,
Linguarudos ou sisudos,
Fervendo no triturador.
LILITH
Historiadores e eruditos,
Falsos ou verdadeiros,
Batendo no liquidificador.
MORGANA
Tudo será em vão.
No final terás
Uma morte de cão.
JAMES
Tô apavorado com tantas mandingas!
9
SIR WILLIAM STANLEY
Tenho outro pedido para tratar com vocês...
MORGANA
Outra vez! Outra vez!
LILITH
O patife quer negociar!

MORGANA E LILITH
Tudo se mistura no colostro
Da estricnina de Cagliostro!
JAMES
Senti o pepino... Vão terminar é bufando no meu cangote...
LILITH
O que mais queres Conde de Derby, W de William?
SIRWILLIAM STANLEY
Quero acertar minhas contas com aquele que, entre gestos de deboche
e gargalhadas de escárnio, desprezou a camisa que lhe dei para vestir. Bêbado, nas tabernas que só a plebe
freqüenta, acompanhado de párias da mais baixa condição __ escritores, vigaristas e gente de teatro __
roubou as letras de ouro que escrevi.
Quero erguer-me fulminante e expelir sua presença! Com letras de fogo hei de atirá-lo no inferno!
JAMES
É isto aí, Sir! Arrasa, estraçalha!
MORGANA
Não vai demorar muito, Conde de Derby! Vão surgir em velhos arquivos, velhos documentos!
LILITH
E novas provas serão encontradas! Mas vai custar muito caro esta operação.
MORGANA
Este malefício!
SIR WILLIAM STANLEY
Tenho uma iguaria para vocês. Olhem só o que eu trouxe! O dedinho de uma criança que morreu
eletrocutada pela mãe prostituta.
JAMES
À PARTE.
Fú! Que lance mais encardido.
MORGANA
Falta de respeito!
Assim, deste jeito,
Não pode ser feito.

LILITH
Quem não tem medo
Fica com o dedo!
Ta escuro como breu,
Me dá que é meu!
Me dá que é meu!
AVANÇA E AGARRA COM AVIDEZ O DEDO. MORGANA TENTA IMPEDIR. BRIGAM. LILITH
FICA COM O DEDO, ENTRE GARGALHADAS.
LILITH
Passarei o dia remoendo... moendo... corroendo...
MORGANA
O trovão vai despertar um cogumelo sagrado!
Eu o comerei pelas orelhas!
Eu o comerei pelo umbigo!
10
Eu o comerei pelos olhos!
E, então, Sacerdote!
Eu e Lancelot
voltaremos para Camelot!
Ah, ah, ah, ah, ah!
LILITH
Vamos deixar que William Stanley rompa com o que está estabelecido no contrato...
MORGANA
Até que os fundamentos matemáticos deste mundo, e os cálculos da física que o mantêm, se desfaçam
completamente.Com a força das legiões de feiticeiras!
LILITH
Herméticas!
MORGANA
Heréticas!
LILITH
Abandonarei esta manhã caloteira! E quando anoitecer outra vez, atuarei! Com este dedo espetarei papai e
mamãe quando estiverem fazendo fuc, fuc, fuc!

MORGANA
Cuidado, para não acordar os nenês que estiverem rindo durante o sono, cuidado!
SAEM, COM GRITOS ESTRIDENTES.
SIR WILLIAM STANLEY
As bruxas falaram. E me prestaram um bom serviço.
JAMES
Fiquei de cara com o abracadabra delas! E agora, Sir? Qualé que é? Tô pronto pro que der e vier!
SIR WILLIAM STANLEY
Atravessaremos o pântano rumo ao norte. No alto de uma colina fica o Castelo de Elsinore. De um lado é
protegido pelo mar raivoso e gélido. Do outro, por um paredão de escarpas abruptas.
JAMES
Vamos nesta, Sir. E se pintar qualquer bronca, pode deixar comigo.
Eu seguro.
SIR WILLIAM STANLEY
Muito bem. Como meu guarda-costas, tu me seguirás.
JAMES
Mas... Sir! Se eu o perder de vista afundarei no lodo do pântano.
SIR WILLIAM STANLEY
Então irás na frente. Servirás de escudo.
INICIAM A CAMINHADA ATRAVÉS DO PÂNTANO.
O castelo resistiu a muitos sítios. Seu último proprietárioa, o Conde Rozenkrants, bebeu o sangue do seu
amante, Guildenstern, no bojo de uma caveira.
JAMES
Que barrinha! Morcego... Sangue na caveira! Qualé? E que fim levou o Conde, Sir?
SIR WILLIAM STANLEY
Suicidou num inverno particularmente frio. Desde então o castelo está abandonado e suas almas penadas o
habitam. Ao pé da colina há um extenso e lúgubre cemitério, nos fundos de um mosteiro, onde oficia
Thelonius, O Monje Negro. É ali que guincham os ratos.

JAMES
Não tenho medo de ratos... e nem desta mulherada, Sir. Nem sequer vacilei com o que as bruxas falaram.
SIR WILLIAM STANLEY
As bruxas falaram! E nem por isto a gravitação universal deixou de existir.
11
FAZEM MENÇÃO DE SAIR. AO PASSAR PELO LIQUIDIFICADOR, JAMES DÁ UMA ESPIADA NO
SEU CONTEÚDO, QUE IMEDIATAMENTE LHE CHAMA A ATENÇÃO.
JAMES
Sir! Olha só o que tem aqui no liquidificador!
SIR WILLIAM STANLEY
É a poção das chamanistas. Nunca imaginei que fosse um creme de
cor suave. Hum... E tem um aroma de jasmim? PROVA. Ou será cravo
da índia? PROVA. Hum... Também pode ser chá do Ceilão.
JAMES
PROVANDO.
É feito com leite e gelo, Sir. Faz um croc-croc que estraleja os beiço.
E dá uma baita satisfa no estômago.
SIR WILLIAM STANLEY
PROVA.
Uma mescla da mixórdia do século XVI com a promiscuidade do presente. Hum... Sem nenhuma dúvida,
afirmo que esta mistura tem o gosto emaranhado, porém seleto, de um eclético atrativo.
JAMES
Esta mistura, Sir, é um Milkshake de pera! Pear...
SIR WILLIAM STANLEY
Milk... to shake’s pear?
ESCUTA-SE O PIO DO MORCEGO E O GUINCHO DO RATO.
JAMES
Vamos dar no pé, Sir!
SIR WILLIAM STANLEY
Ato contínuo, JAMES! Desapareceremos entre estas brumas tão rápido quanto a fumaça da locomotiva.

CENA 2

O CASTELO

Personagens:
SIR WILLIAM STANLEY
JAMES
ROSENKRANTS
GUILDENSTERN

Cenário: AS RUÍNAS DO SOMBRIO CASTELO DE ELSINORE, COM SUAS TORRES E SINISTROS


PINÁCULOS, NO TOPO DE UM ESCARPADO E INEXPUGNÁVEL ROCHEDO.
SIR WILLIAM STANLEY E JAMES CAMINHAM PELA ESPLANADA DEVASTADA PELO TEMPO.
SIR WILLIAM STANLEY
O Castelo de Elsinor. Esta torre em ruinas pertence à esplanada onde se faziam as rondas. À noite, tochas
flamejantes desenhavam silhuetas nos seus muros de pedra.
Onde está a tapeçaria magnífica, com suas cenas de caça e guerra? Onde estão os retratos de reis e rainhas
que, entre a rica mobília, ornamentavam as paredes?
Só o vento responde... E seu estrépito tétrico penetra pelas janelas quebradas e percorre os corredores e as
salas realçando a pavorosa ruína.
JAMES
Cuidado, Sir! Não se apoie nos restos dos muros. Caiu lá embaixo já era!
12
SIR WILLIAM STANLEY
Espio as ondas dissolutas que quebram nos rochedos assustadores, como górgonas engolindo a luz das
estrelas.
ESCUTA-SE TRÊS VÊZES O PIO DO MORCEGO.
JAMES
O morcego, Sir! Piou três vezes!

SIR WILLIAM STANLEY


O primeiro pio é uma advertência. O segundo é o aviso de que a fatalidade está próxima. O terceiro pio é o
sinal da morte.
JAMES
APAVORADO.
Escapei do sanhudo e vim cair justo na toca da mula sem cabeça.
SIR WILLIAM STANLEY
Os teus pés estão chumbados no chão. Coragem!
JAMES
Que fria que eu entrei!
Desta vez tô fudido.
SIR WILLIAM STANLEY
Não sejas ingrato! Se quiseres, podes bater azas.
JAMES
O que eu quis dizer, milorde, é que tô curtindo demais...
A boquinha é barra pesada... mas tá legal.
SIR WILLIAM STANLEY
Nunca esqueças que és meu cão fiel.
JAMES
Pode deixar, Sir. Estou de coleira frouxa! Vou me cuidar pra não dar mancada.
ANIMANDO-SE AO OUVIR ALGO.
E esta marchinha que escuto ao longe? Nossa, Sir! Depressa, venha para cá! Está escutando este ruflar? Um
rataplã, rataplão, ratantã?
SIR WILLIAM STANLEY
É pouco provável que seja um trovejar distante ou as trombetas da meia noite. São gaitas de foles. As
mesmas que tocaram na inauguração do Castelo.
JAMES
Dois estranhos cavalheiros, Sir! Estão chegando!
ENTRAM ROZENKRANTS E GUILDENSTERN, PRECEDIDOS PELO SOM DE FANFARRA E
CORTEJO. AS VESTES DE SIR WILLIAM STANLEY ESVOAÇAM E ELE COBRE O ROSTO COM
A CAPA.
SIR WILLIAM STANLEY
Rosenkrants e Guildenstern! Seres alucinados que vivem à noite, seguindo uma estranha atração por
cadáveres. Trânsfugas que só encontram prazer na dor. Discípulos de Thelonius, o Monge Negro.
ROZENKRANTS
O que faz aqui, Milorde, no terraço do castelo de Elsinore?
SIR WILLIAM STANLEY
Caminho pela esplanada para meditar sobre a alma e suas materializações possíveis. Admiro os terríveis
rochedos e escuto o troar ameaçador do mar que nele rebenta. Percebem que as ondas, libertinas e imorais,
após efetuarem uma ascensão, logo declinam, encobertas e devassas, como se escorregassem para o
abismo, promovendo ora o esquecimento, ora a desgraça?
JAMES
Zumba! Zumba!
ROZENKRANTS
Aqui aconteceram fatos decisivos, que chocaram com a lei da honra.
13
GUILDENSTERN
Um repertório de erros e crueldades provocou a decadência do Castelo.
ROZENKRANTS
Foi o fim de uma era de amarguras.
GUILDENSTERN
O que você acha, querido?
E se for um inimigo maldoso, cujos desastrados efeitos de uma ação nociva não podemos calcular?
ROZENKRANTS
Usa uma linguagem culta, mas pode ser apenas um infeliz, que deixa em todos penosa impressão.
GUILDENSTERN
Vê lá, heim? Não fiques falando a torto e à direito!
ROZENKRANTS
Ui! Da minha boca não sai fofoca...
JAMES
DIRIGINDO-SE A ROZENKRANTS E A GUILDENSTERN:
Não o reconhecem? É o senhor da Ilha da Mann, o proprietário do teatro O Globo, de Londres. Até na
cueca ele usa o brasão da família.
SIR WILLIAM STANLEY
E este cochicho, James?
JAMES
Pronto! Já enfiei a viola no saco!
SIR WILLIAM STANLEY
Então chega de atordoar os ouvidos dos... cavalheiros.
JAMES
É a gagueira, Sir. No mais, sô mudo como estas pedras.
SIR WILLIAM STANLEY
Senta-te aí e contém a língua. Senão vou te meter uma focinheira na boca.!
ROZENKRANTS
PARA GUILDENSTERN.
Tirando a prova dos nove, afirmo que pode ser.. Ele!
GUILDENSTERN
Também estou convencido de que pode aquele que...
JAMES
À PARTE.
Não esquente Sir...
SIR WILLIAM STANLEY
Sou William Stanley! Escrevi para o teatro peças geniais. Sou o autor de uma dramaturgia de perturbador
encanto e maravilhosa estética.
JAMES
Agora sim, o Sir tomou ares de grande coisa!
SIR WILLIAM STANLEY
Ocultei meu nome para preservar os interesses familiares. A atividade teatral era considerada coisa da ralé.
Escrever era o mais vil dos ofícios.
BRADANDO:
Diga-lhes, James! Diga-lhes que duas das minhas obras, tornadas públicas com o nome certo de uma pessoa
incerta, são as mais importantes do teatro ocidental.
JAMES
O Sir tá falando daquelas duas, a do príncipe meio desmunhecado que ninguém sabe se é ou não é, e a do
safado que vai na onda da mina e apaga o rei a fim de se adiantar.
SIR WILLIAM STANLEY
Pintei os dois personagens com cores carregadas. Não os fiz canalhas, mas dei-lhes uma fisionomia
mordida pela degenerescência.
NUMA DANÇA EXULTANTE:
14
Hamlet, o estigma da vingança! Macbeth, a marca da ambição!
ROZENKRANTS
Hum... Ele dança galante e veste elegante túnica de veludo!
GUILDENSTERN
Tecido de grande luxo, muito apreciado pelos escritores.Numa das faces é uma urdidura simples, na outra a
trama se entrelaça.
SIR WILLIAM STANLEY
Não se façam de inocentes! Sabem a quem procuro!
ROZENKRANTS
Uma pessoa cujo nome está inscrito entre os dos grandes homens?
GUILDENSTERN
Cuja glória se envaidece com os aplausos da posteridade.
JAMES
Aquele que representava pequenos papéis femininos na companhia do Sir...
SIR WILLIAM STANLEY
Ele ostenta uma presunção que não posso perdoar!
ROZENKRANTS
Perdão... Doce palavra!
SIR WILLIAM STANLEY
Sinto que ele está aqui, ou muito perto daqui.
GUILDENSTERN
Pelas estridentes gargalhadas que escutamos, provenientes dos salões da fama...
Deve estar distraindo um grupo de fãs.
SIR WILLIAM STANLEY
Insisto! Ele está nesta esplanada ou muito perto daqui!
GUILDENSTERN
Neste terraço há, além de nós, apenas o vento. Ou os morcegos, que dormem durante o dia.
SIR WILLIAM STANLEY
Logo terei um ajuste de contas implacável com aquele plebeu infame, vil descendente de humilde prosápia.
Filho de um açougueiro!
JAMES
E pensar que, quando o cara de pau chegou em Londres, o Sir arrumou para ele um bico na sua cavalariça.
SIR WILLIAM STANLEY
Para encontrar as pistas que me trouxeram até aqui, percorri passagens secretas entre as estantes das
bibliotecas. Examinei à luz da lupa manuscritos e livros antigos.
ROZENKRANTS
PARA SIR WILLIAM STANLEY.
Se procuras o filho de um açougueiro... Se és William Stanley, o poderoso Conde de Derby...
GUILDENSTERN
Poderias ser o verdadeiro autor das obras assinadas por... Shakespeare?
JAMES
Acertaram na mosca!
ROZENKRANTS
Esta é uma afirmativa difícil de sustentar. A própria posteridade se tornaria viúva, num ato surpreendente.
SIR WILLIAM STANLEY
Códigos ocultos provam minha afirmação. O contrato celebrado entre nós está registrado em mensagens
criptográficas ao longo dos textos das peças.
GUILDENSTERN
Ah, ah, ah!
ROZENKRANTS
AMEAÇADOR.
Podemos exigir que esta revelação continue sendo segredo íntimo. Ela causaria tremenda comoção, pois se
trata de um fato maior.
15
Vamos dizer que blefas, afirmando como categórico o que não passa
de especulação.
SIR WILLIAM STANLEY
Não me desafiem, Rozenkrants, e tu, Guildenstern. Sei do que brincavam, quando eram crianças. Sei o que
escutavam, escondidos atrás das tapeçarias. Posso interpretar os seus sonhos.
ROZENKRANTS
Sempre tivemos uma participação coadjuvante. Mas nos aplaudem com entusiasmo, pois temos músculos
e... couraça!
JAMES
Não escute este papo enrolador, Sir.
SIR WILLIAM STANLEY
Vou mandar acorrentá-los na Torre de Londres.
SIR WILLIAM E JAMES AVANÇAM SOBRE ELES.
JAMES
Resolverei a parada na marra! Vou atirar uma granada nelas.
TIRA UMA GRANADA DO CINTO E PUXA O PINO.
GUILDENSTERN
Protege-te, Rozenkrants!
ROZENKRANTS
Desunha-te, querido!
GUILDENSTERN
Vamos nos por ao fresco! Antes que eu tenha que lhe dar um soco!
ROZENKRANTS
Melhor mostrar os calcanhares agora do que as ferraduras daqui a pouco.
SAEM, CORRIDOS.
SIR WILLIAM STANLEY
Correram para os bastidores! Fugiram!
JAMES
Até não entendi... estavam sorrindo.
SIR WILLIAM STANLEY
É que encontraram-se, por um instante,com uma evidência difícil de refutar.
TRANSIÇÃO COM MÚSICA DA ÉPOCA.

CENA 3

O CEMITÉRIO

Personagens:
SIR WILLIAM STANLEY
JAMES
LADY MACBETH
OFÉLIA

Cenário: O ANTIGO CEMITÉRIO DE ELSINOR, CERCADO POR UM MURO DE PEDRA, COM


LÁPIDES CAÍDAS E MAUSOLÉUS TOMADOS PELA HERA. ALGUMAS TUMBAS ESTÃO
REVOLVIDAS, OUTRAS ESTÃO ABERTAS.
ENTRAM SIR WILLIAM STANLEY E JAMES. CAMINHAM ENTRE AS TUMBAS.

SIR WILLIAM STANLEY


16
Eis o cemitério de Elsinore. Personagens imortais deixaram aqui seus restos respeitáveis. Eram enterrados
com solenidade e pompa. Uma orquestra de rabecas, alaúdes e tambores acompanhava o cortejo, puxado
por cavalos brancos magnificamente ajaezados de pompa púrpura.
JAMES
O que procuras, Sir, neste campo do sumiço?
SIR WILLIAM STANLEY
Talvez possa me dar ao luxo de escolher.
ESCUTAM-SE TRÊS GUINCHOS.
JAMES
Três guinchos, Sir... Os guinchos do rato.
SIR WILLIAM STANLEY
O primeiro é para uma louca e uma suicida. O segundo é para dois assassinos. O terceiro é para um falsário.
BATE NUMA TUMBA.
Quem está aí?
JAMES
Um rato, Sir. Tratando de encher o bucho.
SIR WILLIAM STANLEY
Tudo o que sorvem minhas narinas provém de exsudacões mal cheirosas.
JAMES REVIRANDO ENTRE AS TUMBAS, ENCONTRA UM MANUSCRITO.
JAMES
O que é isto?
EXAMINA.
Parece um couro de porco meio podre.
SIR WILLIAM STANLEY
ARREBATANDO-O.
É uma folha de pergaminho. Uma parte do manuscrito de Hamlet. Aqui, ao pé da página, está o meu
anagrama, o W e o S.
JAMES
Legal, Sir. É a sua marca.
SIR WILLIAM STANLEY
Em caracteres nítidos e de próprio punho. Isto é uma prova em qualquer tribunal do mundo.
REVIRA ENTRE AS TUMBAS. ENCONTRA OUTRO MANUSCRITO.
E esta página? Escrita cinco anos depois.
JAMES
Todo amassado, Sir. Mas é porreta!
SIR WILLIAM STANLEY
COMOVIDO.
Macbeth, página 11.
Eles estão por aqui, James.
JAMES
Como piolhos na costura das calças, Sir.
MOSTRANDO AS TUMBAS.
Nesta aqui... naquela... quem sabe lá...
OUVE-SE UM RUIDO SINISTRO.
JAMES
Que barulho estranho, Sir.
SIR WILLIAM STANLEY
Mais um guincho? Um lamento? Provoca-me um arrepio e faz gelar meus ossos.
JAMES
Credo! Uma tumba está se abrindo, tem uma coisa saindo de lá..
ABRE-SE UMA TUMBA E DELA SAI O ESPECTRO DE LADY MACBETH.
É uma maldição! Uma excomungada está voltando à vida!
SIR WILLIAM STANLEY
17
TENTANDO ESPANTAR A FIGURA.
Raios te partam! Vai pra longe de nós! Some-te!
JAMES
Tô me cagando de novo, Sir. Com licença, que vou ali, atrás do muro.
ENTRA LADY MACBETH.
LADY MACBETH
Oh! Vejo o céu outra vez e contemplo, extasiada, as suas admiráveis exibições de azul.
Comprimento-o, William Stanley, com uma vênia e uma mesura.
JAMES
ACOCADO ATRÁS DO MURO. TAPANDO O NARIZ.
Um aperto de mão já seria demais... e de longe, de longe...
SIR WILLIAM STANLEY
Sabes de quem se trata?
JAMES
Sei. A que fez a cabeça do cara que apagou o rei. Lady Macbeth.
LADY MACBETH
Me pintastes como uma perversa, descrevendo-me, ora como o motor de ações cruéis, insensatas ou
alienadas, ora como o resultado de criminosa paixão.
SIR WILLIAM STANLEY
Fiz apenas uma descrição tua, mas proliferastes em todos os gêneros.
LADY MACBETH
ESPANANDO O PÓ SECULAR QUE LHE RECOBRE A ROUPA.
Ah! Ah!Ah! Pertenço ao grande teatro do mundo.

SIR WILLIAM STANLEY


O teatro que apregoas me entra por um ouvido e sai pelo outro. Não há nada de novo?
LADY MACBETH
Há uma nova versão de Macbeth e Hamlet em cartaz.
SIR WILLIAM STANLEY
Não posso ouvir estes nomes. É como se infligisse a mim próprio um duro castigo corporal. São eles que
me tornam insensíveis às imponderáveis emanações fétidas deste cemitério.
LADY MACBETH
Eles estão juntos, fundidos numa só peça. Ah, ah, ah! O autor cassou os privilégios do príncipe Hamlet.
Apresentou-o como se fosse um homem desprezível.
E fez meu esposo descender de uma linhagem sem cetro nem púrpura,
numa linguagem sem metro nem ventura.
Ah, ah, ah! Entregou-os ao deboche da gentalha. Logo verão que Macbeth tornou-se Hamlet, enquanto que
Hamlet ficou sendoMacbeth! Mas, devido à superposição das frases, Macbeth virou Maclet, enquanto que,
por culpa da destruição da linguagem, Hamlet se transformou em Hambeth...
JAMES
Porra! Não entendi chongas!
LADY MACBETH
Pense como uma equação. Equivale à raiz quadrada da soma do volume elétrico de Hamlet mais o
coeficiente magnético de Macbeth multiplicado pela velocidade da luz no vácuo.
SIR WILLIAM STANLEY
O que ela quer dizer é que, na montagem do Globo, em Londres, Macbeth entrava a cavalo com Banquo,
ressaltando seus títulos, honrarias e distinções. Eu era o dono da companhia e não economizava nos gastos.
LADY MACBETH, RINDO, FAZ MENÇÃO DE VOLTAR PARA A
TUMBA.
LADY MACBETH
Não sinto mais a vertigem de antes ao descer para o túmulo. Deixo os séculos, amortalhada numa renúncia
ao mundo.
18
SIR WILLIAM STANLEY
Antes de te recolheres ao teu merecido repouso, dá-me uma informação. Onde posso encontrá-los?
LADY MACBETH
Ali, naquele condomínio igualitário.
INDICA DUAS SEPULTURAS BARATAS COM AS LÁPIDES CAÍDAS.
JAMES.
LIMPANDO AS LÁPIDES.
O tempo quase apagou os nomes, Sir. Mas dá pra ler. É o 302 b... e o 302 a
SIR WILLIAM STANLEY BATE NO TÚMULO COM A BENGALA.
SIR WILLIAM STANLEY
Saiam! Tenho certeza que o tempo os conservou intactos ! Quero ver de novo os corpos respeitáveis que
repousam nestes túmulos!
JAMES
Estão vazios, Sir!
SIR WILLIAM STANLEY
“Ignis fatuus”, James. Os túmulos foram recentemente abandonados!
LADY MACBETH
Eles se ergueram e, caminhando com dificuldade, foram até ao Mosteiro, confessar-se com Thelonius, o
Monge Negro. Mas não foram pedir perdão pelos regicídios que cometeram. Querem arrumar um emprego,
para deixar este cemitério. Desconfio que não voltarão...
FAZ MENÇÃO DE VOLTAR PARA A TUMBA. ACARICIA WILLIAM STANLEY, COM UMA
EROTICIDADE MÓRBIDA.
Nem o figurino, nem a maquiagem, nem a luz tornarão a ressaltar minha lascívia.
ENOJADO, STANLEY A AFASTA COM DIFICULDADE.
Ora, ora ! As minhas mãos te repugnam?
EXIBE AS MÃOS TREMENTES, MANCHADAS DE SANGUE.
Nelas está o que nelas deixastes. As marcas do desespero e do horror.
AGONIADA, TENTANDO LIMPAR AS MÃOS:
Se encontrarem meu esposo, apresentem-lhes minhas saudades. Digam-lhe que mudei. Tornei-me uma
senhora piedosa.
CONTINUA, FEBRILMENTE, A LIMPAR AS MÃOS.
Sai! Mancha maldita! Sai!
DESAPARECE, ENGOLIDA PELO TÚMULO.
DE DENTRO:
Sai, mancha maldita! Sai!

PAUSA.

ESCUTA-SE NOVAMENTE O RUÍDO DE UMA TUMBA ABRINDO-SE.


SIR WILLIAM STANLEY
Ai... De novo este ruído.
JAMES
Outra tumba está se abrindo. Calma. Eu lhe dou cobertura, na boa..
SIR WILLIAM STANLEY
Vou aparentar despreocupação e tolerância.
JAMES
NERVOSO.
Não fique aí, de bobeira, pasmo como um paspalho, Sir!
SIR WILLIAM STANLEY
Tentarei pensar na física, na química e na filosofia para não perder o controle de mim mesmo. Pronto! Que
surja o pior dos espectros!
JAMES
Deixa que eu seguro no osso do peito!
19
LENTAMENTE, OFÉLIA SAI DA TUMBA. É UMA MORTA-VIVA DE UMA BELEZA MAGNÍFICA.
OFÉLIA Ei, psiu!
JAMES
Quem chama?
SIR WILLIAM STANLEY
Mais uma flagelação...
OFÉLIA
FAZ UMA VÊNIA, AO APRESENTAR-SE.
Ofélia, filha de Polônio, Chanceler do Reino da Dinamarca. A preferida do príncipe.
JAMES
Que tesãozinho! E pensar que morreu cabaço...
OFÉLIA
Engano. Frequentei todos os quartos do palácio.
JAMES
Sei não! Tá com jeito é de ser uma piranha!
OFÉLIA
Óh! Meu vestido está num estado lamentável.
Foi minha mortalha em todos estes séculos em que eu, deitada nesta câmara apertada, permaneci como uma
cortezã de corpo gelado.
Não poderei receber-te com um abraço incestuoso, William.
SIR WILLIAM STANLEY
Continuas cativante, sutilmente irresistível.
OFÉLIA
Mesmo com os teus versos e o disfarce da tua arte eu tive uma existência aventureira.
Nos meus braços, às claras ou às escondidas, se nivelaram aristocratas e plebeus, feios e belos, jovens e
velhos, nobres e... guarda-costas.
SIR WILLIAM STANLEY
Da próxima vez tudo será diferente.
Seduzirás, às claras, mil homens, num turbilhão de noitadas, festins, saraus, cavalgadas, missas e
carnavais!...
OFÉLIA
Eu tive, depois de morta, uma única aventura.
JAMES
Tô nessa! Sô chegado num grelinho mimoso...
Que tal uma trepadinha atrás do muro?
SIR WILLIAM STANLEY
Afasta-te! Para ti foram feitas as criadas barrigudas e repulsivas.
JAMES
Pô... cortaram o meu barato!

OFÉLIA
O coveiro me ganhou num jogo de pôquer com o vigia noturno. Numa noite de tempestade, violou a lousa
tumular, fria e muda. Ao contato dos seus lábios minha carcaça desamparada voltou à vida e abandonou a
mansão da morte. Por ser suicida, eu estava enterrada do lado de fora. Ele me conseguiu uma vaga dentro
do cemitério.
Senhores! Não posso permanecer insepulta por mais tempo. Adeus! Há uma sentença necrológica rigorosa
e um réquiem imperativo que me levam de volta à tumba.
SIR WILLIAM STANLEY
Espera! Fica mais um pouco. Quero falar com... bem... com aqueles que sabes...
20
OFÉLIA
Hamlet! Seus despojos mortais, restos movendo-se num simulacro apavorante de vida, foram-se pela
estrada seguindo os passos do outro coitado, Macbeth. Também foi ao Mosteiro, pedir um emprego a
Thelonius, o Monge Negro, no seu novo empreendimento.
ENTRA DE VOLTA NA TUMBA.
Quando o encontrarem, digam-lhe que meu amor pelo morto será sempre maior do que meu amor pelo
vivo.
GRITA, DE DENTRO.
Aqui há apenas pó, cinzas e argila. Oh! Quanto prazer!!!
A TUMBA FECHA-SE, COM O MESMO APAVORANTE ESTRÉPITO.
JAMES
Pavorosa, né Sir? E eu, que queria dar uma...Mas foi melhor assim. Garanto que fede como a urina de São
Gregório... E aquele bumbum deve ter mais mofo que a merda de São Tiago Apóstolo!!
SIR WILLIAM STANLEY
Deverias beijar a fímbria do seu manto de mulher deslumbrante, em vez de vomitar impropérios! Ela
ostenta viço e beleza. Deslumbra! Fascina! Seduz! Apresenta-se como uma Vênus, um tipo formosíssimo
de mulher, que personifica todas as graças e cativa o coração.
JAMES
Ué? Será que eu pisei na bola?

SIR WILLIAM STANLEY


Ajoelha-te e me diz que tumba é esta, ao rés do chão, coberta pela erva daninha.
JAMES
AGACHADO, LENDO COM DIFICULDADE A LÁPIDE APAGADA.
É a tumba de William... William...
SIR WILLIAM STANLEY
O falsário!
POSSESSO, BATENDO NA LÁPIDE.
Para fora! Sai e enfrenta aquele que te deu um lugar na posteridade e recebeu em troca o esquecimento!
Sai! Eu vazarei os teus olhos com um ferro em brasa e te obrigarei a mergulhar no rio de Heráclito até que
pares de respirar!
JAMES
LIMPANDO A LÁPIDE.
Quase não dá para ler...William... William Blake!
SIR WILLIAM STANLEY
CONTROLANDO-SE.
Blake?! Era de supor! Blake! Parece que foi aqui que se realizaram as bodas do céu e do inferno...
JAMES
Quer que eu veja mais alguma tumba, Sir? Ali tem uma novinha...
William... William... William Burroughs!
SIR WILLIAM STANLEY DESCARREGA TODO SEU ÓDIO EM JAMES, ENCHENDO-O DE
BENGALAÇOS.
SIR WILLIAM STANLEY
Para afogar meu ódio, vou mandar-te ao oculista!!!
DEPOIS, FLEUGMÁTICO.
A arte dramática será felicitada por isto, e a história não terá porque lamentar...
SAEM.

CENA 4
21

O MOSTEIRO

Personagens:
SIR WILLIAM STANLEY
JAMES
THELONIUS, O MONGE NEGRO

Cenário: UMA SALA IMERSA NAS TREVAS, NO MOSTEIRO DE THELONIUS, O MONGE


NEGRO.
ARCOS E COLUNAS DE PEDRA ERGUEM-SE PARA O CÉU. GÁRGULAS, DESDE O ALTO,
PARECEM VIGIAR, AMEAÇADORAS.

O BRILHO DA LUA CHEIA, ATRAVÉS DOS VITRAIS, PROJETA UM MANTO SOMBREADO DE


CLAROS E ESCUROS SOBRE AS PAREDES DE ESTUQUE E OS MÓVEIS DE CARVALHO.

SIR WILLIAM STANLEY E JAMES ENTRAM NA SALA.

UM TELEFONE DE BAQUELITE E UM FREEZER NEGRO COM DOBRADIÇAS DE FERRO


BATIDO ESTÃO BEM À VISTA.

ESCUTA-SE UM UIVO DISTANTE, MELANCÓLICO E TENEBROSO.

UM SINO BATE DOZE BADALADAS.

SIR WILLIAM STANLEY


NOSTÁLGICO.
A lua cheia, sobre os telhados do Mosteiro, me faz refletir sobre o lado lascivo e obscuro do ser. Insondável
tristeza domina meus sentimentos, nesta hora duvidosa em que as trevas libertam forças incontroláveis e
espíritos sinistros animam os corpos dos mortos.
JAMES
À PARTE:
O manhoso está nos seus dias de lua...
PARA SIR WILLIAM STANLEY:
Que sala húmida! Então era nestes banco que os monges sentavam para rezar?
SIR WILLIAM STANLEY
É a Sala do Capítulo, onde eles discutiam assuntos de disciplina e faziam cumprir os castigos e as
mutilações. É aqui que Thelonius, o Monge Negro, oficia suas missas iconoclastas e revive a lembrança de
antigos pesadelos.
OUVE-SE UM GEMIDO LASCINANTE. UMA PEDRA DA PAREDE SE MOVE.
JAMES
Sir?...
SIR WILLIAM STANLEY
Retire a pedra. Está solta, é só puxar.
JAMES RETIRA A PEDRA E ENFIA A CABEÇA NO BURACO.
JAMES
Não enxergo nada!
SIR WILLIAM STANLEY
Espere seus olhos acostumarem-se com a escuridão. O que vê?
JAMES
Uma ossada. Ainda tem pedaços de carne seca pendurados nas costelas.
SIR WILLIAM STANLEY
22
São os restos de uma monja que foi emparedada viva. Por este buraco lhe alcançavam a comida.
Infelizmente, ela não pode esperar por nós.
ESCUTA-SE OUTRA VEZ O UIVO, AGORA BEM PRÓXIMO.
SIR WILLIAM STANLEY
Ao ouvir este uivo sombrio, temo que minha vida, ou a forma clandestina que ela assume, se desfaça como
sal na água.
JAMES
Toca pra frente, Sir, nem que seja a nado!
APROXIMA-SE THELONIUS,O MONGE NEGRO.

THELONIUS
Huúuu! Huúuu!
JAMES
Nossa! Ou este tal de Monge Negro é um santo renegado ou é a última das maldições.
SIR WILLIAM STANLEY
É uma criatura paralela, contaminada talvez. Abandona qualquer fé e fica quieto, ou ele vai sugar o teu
sangue pelo dedo do pé.
ABRE-SE UMA PORTA DE FERRO E ENTRA THELONIUS, O MONGE NEGRO.
THELONIUS
Ora! Ora! O inglês chegou! Seja bem-vindo! Interrompi a confissão profana que praticava para recebê-lo.
Uúuuh! Uúuh! Uúh!
Estiveram no castelo? Contem-me, gostaram do mofo e da humidade?
SEUS OLHOS BRILHAM SINISTRAMENTE.
E das traças, atacando a tapeçaria? Úh!
EXULTANTE.
Desde que o teto desabou verdadeiros tesouros estão sendo destruídos!
Uúuh! Antiguidades, obras de arte...
JAMES
SUSSURRANDO.
Saquei qualé a dele! Ele banca o invisível, trocando o corpo pela sombra...
THELONIUS
E o cemitério, que lhes pareceu?
SIR WILLIAM STANLEY
Vimos as tumbas vazias de dois regicidas. E nos disseram que eles vieram para cá.
THELONIUS
Acabo de dar-lhes uma nova função. Mas sou magnânimo. Não lembro que rei eles mataram.
WILLIAM STANLEY
Um assassinou o Rei da Escócia. O outro matou o Rei da Dinamarca.

THELONIUS
Oportuníssimo, uúuuhh! Uúuuh!
GIRA PELA SALA.
Vamos ao que interessa... Macbeth e Hamlet, os regicidas! James Byrom... você vai limpá-los!
THELONIUS ESTALA OS DEDOS E, INSTANTÂNEAMENTE, HIPNOTISA JAMES.
Pega a bacia, o sabão grosso e a toalha. Eles estão na cripta do mosteiro. Esperam por ti. Vai até lá e limpa
as mãos deles.
HIPNOTISADO, JAMES SAI PARA CUMPRIR AS ORDENS. TOCA O TELEFONE DE BAQUELITE.
THELONIUS
ATENDE.
Sim, Senhor! Como não! Perfeitamente, Comandante!
DESLIGA.
23
Era... o Imundo! A notícia é tão boa que podemos sentir o seu poder. É como se, à distância, o Rebelde
Decaído tivesse mandado um fax num papel fedorento. A encomenda chegou.
ABRE O FREEZER NEGRO E RETIRA UMA PORÇÃO DE BATATAS FRITAS, ACONDICIONADAS
NUMA EMBALAGEM NEGRA DA MCDUNCAN’S.
O pão dos anjos do mal. A refeição apóstata ultra rápida. Batatas fritas negras, industrializadas.
Descascadas. Cortadas em fatias. Lavadas com detergente. Fervidas em óleo borbulhante. Postas para secar.
Especialmente acondicionadas na embalagem negra da MacDuncan’s.
Segundo as prescrições de uma solenidade sórdida... Huúuuu! Que trará dor física e mutilação. A óstia
negra!... Huúuuu!
OFERECE UMA BATATA FRITA NEGRA A SIR WILLIAM STANLEY.
SIR WILLIAM STANLEY
Muito interessante o design das embalagens.
THELONIUS
Kroc, kroc, kroc! Batatas fritas, negras, mortificadas por três semanas para que seus açúcares viciosos se
convertam em turvos amidos venenosos.
Huúuu!
SIR WILLIAM STANLEY
Incrível! E ninguém pensou nisto antes.
THELONIUS
O mundo da Tradição e seus preciosos despojos é maior do que as nossas repugnantes ofertas de alimentos
congelados. Muitos fratricidas insepultos tentaram a mesma coisa. Mergulharam suas mãos em sangue, mas
foram empalados pelo marketing dos exterminadores!
Kroc, kroc, kroc! Não souberam disfarçar o bizarro e transformá-lo em moda. Huúuu! Kroc! Kroc! Kroc!
O curso intensivo que fiz, de administração de lanchonetes, huúu!, valeu mais do que os meus anos de
seminarista renegado estudando grego e latim. Reforçou a minha propensão de carnífice e carrasco.
Sou fera, não sou humano! Huuúuuu!!
Celebro os instintos cruéis e tenho uma especial fascinação por tudo o que é sinistro. Huúuu! Veja a lua
negra, sinta os seus efeitos! Os sacerdotes dizimados, apunhalados, escalpelados. Espalharemos o luto e a
dor em profusão horrorosa! As igrejas, a família e o estado serão engolidos. Kroc! Kroc! Kroc!
Pela névoa! Pela poeira! Huúuu!
É uma febre que atingirá a todos.
Chame de Império das sombras. E viva com ... a Morte! Huuúuu!!!
SIR WILLIAM STANLEY
São os tempos da vítrea palidez que estão voltando! E eu ainda me chamo William Stanley.
THELONIUS
Vou ser modesto e fatídico. Minhas realizações na área do "food service", huúu!, serão comparáveis às da
trágica heroína Elizabeth Bathory no treinamento de suas criadinhas. Huúuu!! E às do insaciável Henry
Ford, na criação de uma linha de montagem provedora de... sangue!
LENTÍSSIMAMENTE, HIPNOTISADO, ENTRA JAMES.
JAMES
Nunca vi sangue como aquele. Cortei as unhas, para não arranhar a pele das suas mãos. E esfreguei,
esfreguei, esfreguei!
O vermelho nem sequer desbotou.

THELONIUS
Huúu! Huúu! É a cor que Belzebu escolheu para pintar seu cú! Huú...!
JAMES
As malditas manchas não saíram!
THELONIUS
Mande tocar o sino do mosteiro, huúuu! E volte a esfregar as mãos deles. Livre-os destas acusações de
última hora.
Tudo pelas indulgências profanas... E por uma nova imagem.
JAMES SAI.
24
THELONIUS ABRE O FREEZER NEGRO E RETIRA OUTRA EMBALAGEM NEGRA. PARA SIR
WILLIAM STANLEY.
Aceitas um milkshake?
SIR WILLIAM STANLEY
PEGA O MILK-SHAKE E CHUPA NO CANUDINHO.
Hum... É um interessante licor, sem dúvida. Completamente diferente daquele que provei hoje pela manhã.
CHUPA UM GOLE.
THELONIUS
O sabor deste é baunilha...
SIR WILLIAM STANLEY
Quem diria que uma planta tão vulgar seria empregada na pastelaria, na confeitaria e na perfumaria, ao
mesmo tempo e num só produto.
THELONIUS
RETIRA DO FREEZER UM CHISBURGER.
Aceitas um Big Black?
ALCANÇA-LHE UM.
SIR WILLIAM STANLEY
MASTIGANDO.
Não sabia que o pão era tão lustroso e polvilhado de gergelim.
Mas não tem gosto de nada!
THELONIUS
Este é o segredo. Antes eu dormia num caixão com fundo de areia, me embebedava com sangue e voava
transformado num morcego. Agora, moro nas suítes do Hilton, bebo Chandon e viajo num jato particular
com sauna à bordo .

SIR WILLIAM STANLEY


Quero comprar, com exclusividade, a franquia, para explorar a marca McDuncan´s.
THELONIUS
Nunca esqueças que estarás vendendo chisbúrgueres. E não kits de plasma.
A operacão é muito diferente da missa. Nunca deixes os fiéis, digo, os fregueses, sentados em bancos de
madeira incômodos. Huúuu! E nada de freiras doentias, beatas em crise mística ou adolescentes sensitivas.
Contrata garçonetes vistosas e inteligentes. Mas, atenção. Não podem ser promíscuas! Huúuu!
SIR WILLIAM STANLEY
Não serão como as atrizes da minha época. E os atores, então! Representavam bêbados, não pagavam as
contas. Eram uns arruaceiros... Se bem que talentosos...
ENQUANTO FALA, STANLEY MASTIGA E, INVOLUNTÁRIAMENTE, COSPE RESTOS DO
CHISBURGUER.
E o público! Atiravam restos de comida no tablado, cuspiam no chão, urinavam ali mesmo, peidavam.
Interrompiam os atores com assobios e gritos.
THELONIUS
Huúuu! Terá que ser tudo muito diferente do Globe Theater. Gastaremos um bilhão de dólares por ano em
publicidade para promover a McDuncan’s. Será o biombo de trevas atrás do qual se esconderão as garras
do irracional, contorcendo-se sobre a sórdida expectativa da... fatal extinção!
Huúuuu!
SIR WILLIAM STANLEY
Planejarei detalhadamente a minha estratégia. Administrarei a memória comum, fundindo-a com a glória,
para alimentar-me com os mais suculentos lampejos de vida.
THELONIUS
Uúuuh! Não deixaremos testamento. Tudo será engolido pelas forças incontroláveis, pelas nossas
manifestações particulares do horror. Kroc! Kroc! Kroc!

PAUSA.
25
Sou o guardião do último pacto de sangue.
RETIRA DE UM BAÚ UM ROLO DE PERGAMINHO.
E por falar em pacto, aqui está o contrato que assinastes com... Shakespeare. Tornou-se o maior
faturamento do turismo inglês.
SIR WILLIAM STANLEY
Terei problemas. Este cavalariço inepto permitiu que minha obra
caísse em domínio público.
THELONIUS
Terás que encontrar uma maneira de cobrar royalties pelo licenciamento das tuas peças. Huúuu! Ou
também serás engolido. Kroc! Kroc! Kroc!
SIR WILLIAM STANLEY
Há centenas de anos o que escrevi exerce um estranho fascínio sobre as pessoas cultas.
THELONIUS
Um mito literário nunca poderá ser um produto concreto. É ambíguo demais.
ENTRA JAMES, LENTÍSSIMAMENTE. HIPNOTIZADO.
JAMES
Estão limpos! Numa boa. Abriram os olhos, respiraram. Lavei com detergentes e solventes e esfreguei,
esfreguei, esfreguei.
SIR WILLIAM STANLEY
PARA THELONIUS.
Operação McDuncan’s! Não posso ficar de fora de um lance destes!
THELONIUS
A McDuncan’s estará dirigida para atormentar especialmente aqueles que levam uma vida banal. Huúuu!
Teremos prazer em admirar seus últimos paroxismos, seus arquejos finais!
JAMES
Quer mostarda, Sir? Gostou do tomate, da alface?
PROVANDO O RESTO DO MILK-SHAKE.
Hum... O que eu mais gostei foi a invenção do canudinho.
THELONIUS
Huúuu! Huúuu!... Huúuu! Huúuuu! Kroc! Kroc! Kroc!
SIR WILLIAM STANLEY
Isto merece uma comemoração.
JAMES
Terei prazer em servir um drink aos cavalheiros. Que tal um plasma
sanguíneo de canudinho?
THELONIUS
ABRE O FREEZER E RETIRA UMA COCA-COLA.
Eu só tomo Kroc-cola. Uuúuu!!!
BRINDAM.
26

ATO SEGUNDO

Cenário: UMA LANCHONETE DA CADEIA DE FAST-FOOD MCDUNCAN’S. OS


MOTIVOS DA DECORAÇÃO SÃO SÓRDIDOS E PERVERSOS. DESTACA-SE O
SINISTRO LOGOTIPO EM “M”.

TODAS AS CENAS DO ATO SEGUNDO ACONTECEM NA MESMA LANCHONETE.

CENA 1

Personagens:
MACBETH
HAMLET
FANTASMA DE SHAKESPEARE

Cenário: O BALCÃO DE ATENDIMENTO DA LANCHONETE FAST-FOOD


MACDUNCAN’S.

MACBETH E HAMLET VESTEM JEANS, TÊNIS E CAMISETAS COM O LOGOTIPO


MCDUNCAN’S. TODO O FIGURINO É NEGRO.

ENTRA MACBETH.
MACBETH
Quem vem aí? Hamlet?
ENTRA HAMLET.
HAMLET
Eu mesmo. Salve, Macbeth!
MACBETH
Chegastes exatamente na hora.
HAMLET
27
Então a imagem apareceu de novo?
MACBETH
Uma imagem fantasma, como um vírus no gestor de registros.Três vezes passou na tela diante dos meus
olhos aflitos, coberta por um véu magnético dos pés à cabeça. Três vezes foi detectada e eu, distraído, não
chequei nenhum canal de rotina.
HAMLET
Dissestes que a imagem estava coberta por um véu magnético?
MACBETH
Um véu magnético.
HAMLET
Da cabeça aos pés?
MACBETH
Da cabeça aos pés.
HAMLET
E como a reconhecestes?
MACBETH
A vibração era a mesma. Surgiu polarizada num circuito muito longo. Olha! Aí vem ela!
SURGE UMA SOMBRA ELETRÔNICA COM O PERFIL DE WILLIAM SHAKESPEARE.
Observa. Mas não tentes controlar o processo ou obter mais definição na imagem. Talvez não seja mais do
que uma projeção, um teste automático de circuito, quem sabe transmitido de algum satélite em órbita
distante.Não temos mais o que fazer. Macbeth vai jogar a toalha.

HAMLET
William Stanley é um empresário inspirado. Seus funcionários de operações são jovens tigres, ferozmente
leais e dedicados a sua missão.
MACBETH
Sir William tornou-se um operador inovador e esperto. Com a McDuncan’s só aumenta sua crucial
vantagem em relação a todos nós.
HAMLET
Os fornecedores não são novatos, mas grandes e poderosas corporações.
MACBETH
Eles promovem as pessoas da grelha para cima, desde que fascinados pela perfeição operacional.
Motivação não me falta e criatividade me sobra.
HAMLET
Hamlet será um descascador de batatas.
MACBETH
Terei um posto acima. Treiner. Com a função de preparar a carne.
EXIBE UMA FACA DE AÇOUGUEIRO.
Bem, tenho que ir agora. Vou aproveitar a noite para amolar o boi.
RI, SIGNIFICATIVAMENTE.
SAI.
ESCUTA-SE UM SOM CARACTERÍSTICO. ENTRA WILLIAM SHAKESPEARE. É UM SER
ELETRÔNICO. HAMLET PERTURBA-SE.
HAMLET
Porque me persegues com esta biofosforescência que procede de algum ponto anterior à minha memória? O
que escondes na estrutura incompreensível desta blindagem que parece feita do material com que se
constroem os sonhos?
WILLIAM SHAKESPEARE
Mal me recebes e já devo voltar... pelo rota do tempo elíptico... à fronteira das regiões imaginárias...
HAMLET
Ah! Pobre pai! Coitado! Posso ver os filamentos das suas células __ ou o que resta deles!
28
WILLIAM SHAKESPEARE
Não tenha pena de mim... Mas de ti! Sou imagem finita... minha cadeia de caracteres ameaça... esvair-se
numa sequência inevitável de substituições...
HAMLET
Quase não consigo acreditar no que está acontecendo. Meu criador, cujo corpo era há séculos uma soma
inerte de partículas se decompondo, ressurge agora.
WILLIAM SHAKESPEARE
Escuta! Óh, escuta!
HAMLET
Com que talento me contruístes!
WILLIAM SHAKESPEARE
Não fui eu...
HAMLET
E aí estás, fechado numa redoma revestida de signos gravados em cristal líquido.
WILLIAM SHAKESPEARE
Está quase na hora em que devo voltar ao zero...
HAMLET
Óh! Pobre pai!
WILLIAM SHAKESPEARE
Não sou teu pai... Escuta, escuta sériamente o que tenho para dizer...
HAMLET
Fala!
WILLIAM SHAKESPEARE
Um figura de grande projeção... Chegou do passado, seguindo o meu rastro... Quando me encontrar, o que
fatalmente irá acontecer, haverá uma grande mudança... Seremos atingidos pelos efeitos de uma intriga
misteriosa... Será o fim de quatro séculos de fama...
HAMLET
Fama... Ah! esta aura popular...
WILLIAM SHAKESPEARE
Se não agirmos imediatamente... Os aplausos irão acabar...
HAMLET
Aplausos? Ah! Esta iluminação fulgurante que recebem os que se destacam na planície da história!
WILLIAM SHAKESPEARE
William Stanley é o seu nome... É um predador aristocrático, profano, recém saído do túmulo... Suas
maneiras são elegantes e ele fala em tom solene...
Quando ele apelar para a sensualidade reprimida dos simples mortais, todos entenderão... Haverá uma
fratura nas forças que mantém o fascínio por Shakespeare...
HAMLET
Sou filho de quem? Que pista transgênica, numa gota de sêmem ou num fio de cabelo, identifica a química
dos meus laços de família?
WILLIAM SHAKESPEARE
Não poderei me adaptar ao silêncio de um sepulcro anônimo...
Cuidado... Óh, cuidado!... Cuidado com a restauração da verdade... William Stanley tem por trás de si um
poderoso império... Eles te manipularão e farão de ti um marionete de íons migrantes... Cuidado... Óh!
Cuidado!
HAMLET
Sou a dúvida, intimidada por um ser envolto numa espiral de códigos indecifráveis. Óh! É superior ao meu
limite físico!
ENTRA MACBETH. CARREGA UM FARDO DE CARNE. ABRE O FARDO DE CARNE E COMEÇA
A PICAR UM GUISADO PARA PREPARAR UM CHISBURGUER.
MACBETH
Viva o rei do Big-Mac!
HAMLET
29
Rei não, príncipe!
SURPREENDIDO, WILLIAM SHAKESPEARE TORNA-SE AINDA MAIS DIFUSO.
MACBETH
Ah... então ele ronda por aí!
WILLIAM SHAKESPEARE
Hamlet! Macbeth!

MACBETH
Ele fala comigo! Isto é diferente de tudo o que aconteceu antes!
WILLIAM SHAKESPEARE
Macbeth! Tenho um pedido para te fazer!
MACBETH
Sai para longe! Já fui atormentado demais por aparições!
WILLIAM SHAKESPEARE
Continuas a ser um manda-chuva treinado em lutas e contrações nervosas. És o tigre feroz que necessito.
MACBETH
Sou um tigre ferozmente dedicado a realizar minhas operações na MacDuncan’s.
WILLIAM SHAKESPEARE
Com a MacDuncn’s William Stanley só aumenta a sua crucial vantagem em relação a todos nós.
MACBETH
A MacDuncan’s promove as pessoas da grelha para cima. Se agora sou treiner, logo serei gerente de área.
WILLIAM SHAKESPEARE
Mata-o, Macbeth!... Ele ameaça nossa existência. Mata-o e subirás todos os postos. Mata-o e serás o
franqueador. Mata-o e serás o senhora da MacDuncan’s!
SOME.
MACBETH
Desta vez William Stanley vai pegá-lo! Que lhe destes? Mais bebida? Mais dinheiro? Mulheres, talvez?
HAMLET
Quem? Eu? Talvez há muito tempo. Talvez... Talvez não lembre...
MACBETH
Acabo de chegar da batalha em que o gado de raça, livre do carrapato comum, foi derrotado pela audácia de
Macbeth. Suas orelhas já não abanam, nem os seus mugidos debocham nas pastagens frias da Escócia!

HAMLET
Vejo que o emprego na McDuncan’s não intimidou Macbeth. Apesar de estarmos transformados em
assalariados, humilhados pelos termos implacáveis de um contrato de trabalho.
MACBETH
As dificuldades parece que decidiram minha sorte. Estou abrindo caminho em meu próprio benefício, e no
teu também. Somos parceiros.
HAMLET
Espero que, para agradar a Sir William Satanley, tenhas trazido do frigorífico a melhor carne, a que
apresenta mais equilíbrio entre a rusticidade e a precocidade.
É muito inquietante e perturbador. Ele me confunde.
MACBETH
William Stanley criou na Escócia a impressão de que a McDuncan’s é uma invenção escocesa.
HAMLET
Meu orgulho se transformou em humildade. Minha vaidade, modéstia. É como se minha força psíquica
estivesse sendo sugada.
MACBETH
Sir William Stanley não me forçará a baixar o olhar. Cago para os fastos da glória! Desprezo as intrigas
misteriosas que alicerçam a respeitabilidade e o prestígio.
30
HAMLET
Quero esquecer este assunto.
PREPARANDO A CARNE MOÍDA.
Vamos preparar a carne, quente ainda. É uma tarefa apressada, mas sempre silenciosa e eficiente.
MACBETH
É carne de um novilho recém abatido, criado num potreiro com boa aguada e cochos com sal, rações
selecionadas e suplementos dietéticos balanceados com vitaminas e minerais. Examine!
HAMLET
Hum... Os cuidados veterinários lhe garantiram pouca gordura de cobertura e um índice baixo de
colesterol.

MACBETH
FORÇANDO A ALEGRIA. COMO SE OFERECESSE CHISBÚRGUERES.
E então, o que vai? Um Big Black? Um McBad com McFritas? Um McNight?
HAMLET
Um hamburguer de 15 centavos, batatas fritas de 12 centavos e um milk shake de 20 centavos.
MACBETH
A refeição mais popular da história.
À PARTE, ENTRE DENTES.
Servida em 30 segundos, enquanto espero, camuflado e discreto, o plantão da história mudar de turno...

CENA 2

Personagens:
OFÉLIA
LADY MACBETH

Cenário: A SALA DA FAXINA DA MACDUNCAN’S. DOIS CAIXÕES DE


DEFUNTO INCLINADOS. OFÉLIA ESTÁ NUM, LADY MACBETH NO OUTRO.

OFÉLIA ESTÁ NUM CAIXÃO. MÃOS CRUZADAS NO PEITO, ROSTO LÍVIDO, OLHOS
FECHADOS. LADY MACBETH ESTÁ DEITADA NO CAIXÃO AO LADO.
OFÉLIA
Estou fria. Não sinto nem as mãos nem os pés. Entorpecida, rígida talvez, posso ainda movimentar os
lábios. Meu espírito se desprende e se desloca velozmente.
Além destas paredes, deste país, deste planeta.
Óh! o que encontro!
PARA LADY MACBETH.
Sabias que Ofélia é um asteróide, classificado com o número 171 no catálogo astronômico?
LADY MACBETH
Ora, minha pombinha! Foi uma homenagem dos astrônomos. Batizaram com o teu nome um corpo celeste
vagabundo e sem luz.
OFÉLIA
Vejo do alto, imóvel. Querem jogar o meu corpo nágua, na crença de que a terra não mais o tolerará.
LADY MACBETH
Tens água? Desejo, necessito, ardentemente, purificar-me.
OFÉLIA
Cretina! Como te atreves a me pedir água? Não aumentes o meu suplício...
LADY MACBETH ABRE UM OLHO, COMO QUEM DESPERTA DE PROFUNDO ESTADO DE
TORPOR.
LADY MACBETH
31
Foi um sono longo, denso e doloroso. Meus olhos, ocultos pelas pálpebras fechadas, se moveram
rapidamente de um acontecimento hediondo para outro ainda mais terrível.
OFÉLIA
Falastes enquanto dormias...
LADY MACBETH
ASSUSTADA.
O que disse?
OFÉLIA
Não quero repetir o que ouvi. Criaturas abjetas e ávidas dominam o universo.
LADY MACBETH
Este clima de fatalidade maldita está em tudo! Não consigo me livrar desta mancha.
LEVANTA-SE, A MEIO CORPO NO CAIXÃO, E LIMPA AS MÃOS.
Sai! Mancha maldita! Sai!
OFÉLIA
Não adianta! Não escaparás ao castigo eterno.
LADY MACBETH
Minhas recordações se misturam com o horror e a angústia. Meus olhos estão abertos?
OFÉLIA
Estão, mas é um disfarce.
LADY MACBETH
Sai, mancha maldita! Sai!
OFÉLIA
LEVANTANDO-SE.
Quem nos chama? É uma prestação de contas? Querem nomes?
LADY MACBETH
É melhor te fazeres de surda...

CENA 3

Personagens:
HAMLET
MACBETH

Cenário: O BALCÃO DE ATENDIMENTO DA MACDUNCAN’S.

HAMLET
Viva Macbeth! Acabas de ser promovido!
MACBETH
Gerente de área!
HAMLET
William Stanley te deu esta promoção, ao saber da tua perícia na arte de amolar o boi. E ele, em pessoa,
estará em breve visitando esta lanchonete numa vistoria de rotina.
MACBETH
PARA SI.
Estará ao meu alcance...
HAMLET
32
O teu empenho já te coloca numa posição de liderança sem gerar, no momento, nenhum fator de incerteza.
Vês?
Tens novas atribuições e um poder delegado. Deixarás de preparar hambúrgueres, enquanto eu continuarei
descascando batatas.
MACBETH
PARA SI.
Neste processo de tomada de decisão, devo calcular com precisão o efeito da minha interferência.
HAMLET
DESCASCANDO BATATAS.
Oh! Se este corpo elástico, elástico demais!, pudesse fluir numa elípse, projetar-se, iluminado, e, então,
dissolver-se emitindo energia radiante...

CENA 4

Personagens:
OFÉLIA
HAMLET

Cenário: O DEPÓSITO DA MACDUNCAN’S.

HAMLET ESTÁ DESCASCANDO BATATAS. ENTRA OFÉLIA, COMO UMA FAXINEIRA.

OFÉLIA
Meu gatão! Que legal te ver!
HAMLET
Ofélia!
OFÉLIA
O príncipe das batatas fritas!
INSINUANDO-SE.
HAMLET
Chega pra lá! Eu ainda tenho muito sacos pra descascar!
OFÉLIA
Te deixaram numa furada, né?
HAMLET
Errado, errado. Eu estou numa boa.
OFÉLIA
Ah... uma boa foi eu te encontrar, depois de tudo o que passei.
Óh! Eu quero te mostrar. Olha os sapatos que eu ganhei de William Stanley. A forma é elegante e a
palmilha é tão macia!... É um sapato de senhora, de passeio...
HAMLET
Sapatos caros. Combinam contigo.
OFÉLIA
Mas em ti ficam melhor.
DESCALÇA OS SAPATOS.
Quero te ver com eles.
CALÇA OS SAPATOS EM HAMLET.
33
HAMLET
Ah! Estás me tratando bem?
CAMINHA COM OS SAPATOS.
Devo desconfiar? Devo sofrer?
OFÉLIA
Muito. Usas o presente que outro me deu, por serviços prestados...
HAMLET
Ah!... És uma moça de virtudes?
OFÉLIA
Sou apenas gentil com os superiores...

HAMLET
Então és um puta?
OFÉLIA
Vou com quem me agrada.
HAMLET
Se és uma puta e és virtuosa não deverias misturar as coisas. Onde chegamos?
HAMLET
E pensar na excitação que estes sapatos me provocam...
Sou uma eventualidade, entre a perturbação propagada e a responsabilidade inadequada. A culpa é um
ponto fixo em colapso. Vestido com lixo, sou um lapso no tempo conhecido.
OFÉLIA
Óh! Pára com esta retórica de almanaque!
CHORA.
ENTRA SHAKESPEARE, QUE SÓ HAMLET ENXERGA.
HAMLET
PARA SHAKESPEARE:
Que desejas, agora?
Estás fora de lugar, com as características de algo que não tem a função do que aparenta.
OFÉLIA
Ele faz um jogo anormal...
HAMLET
Viestes me repreender, decrescendo progressivamente em círculos de amplitude?
Vê? Ela transa com outros e eu uso os sapatos que ela ganha. Queres que me coloque entre ela e a platéia?
Entre ela e as câmaras de televisão?
OFÉLIA
Porque olhas para o vazio e ficas discutindo com o que não existe?
HAMLET
Não percebes a freqüência deste corpo ativo, a radiação e o comprimento das suas ondas?
OFÉLIA
Que figura alucinatória é esta?
HAMLET
Nada escutas, também?
OFÉLIA
Óh! Não aguento mais!
HAMLET
Por tua causa ele já vai se retirando!
Puta! Mil vezes puta!
ENTRA MACBETH NO MOMENTO EM QUE O FANTASMA ELETRÕNICO DE WILLIAM
SHAKESPEARE VAI SAINDO.
MACBETH
Devo executar a tua vontade, que se propaga em todas as direções menos no vazio?
34

CENA 5

Personagens:
MACBETH
LADY MACBETH

Cenário: O BALCÃO DA MACDUNCAN’S.

ENTRA MACBETH.
MACBETH
É uma pistola o que está neste coldre com um pente de balas. Potência ativa que modifica a escala de
valores da maneira desejada. Objeto de uso temerário que soluciona ou aumenta os problemas de quem o
usa. Superfície polida que, da coronha à alça de mira, indica o caminho a seguir para os que estão
decididos. É a atração sanguinária o que faz o dedo apertar o gatilho, impulso que não existiria, por sí,
neste fatal instrumento de metal.
Quando as bruxas celebraram seu ritual, a força dos seus poderes vaticinou o futuro.
Mas, quem fabrica o presente? Stanley? Shakespeare?
Eu?
Não.
A bala. Uma bala de prata.
Amêndoa mortal que rasga o espaço num milionésimo de segundo. Pedaço morto de um vivo que, uivando,
estilhaça o corpo vivo de um morto.
PERCEBE ALGUÉM ENTRANDO.
Quem está aí? Ei!
ENTRA LADY MACBETH.
LADY MACBETH
Uma amiga.
MACBETH
Querida esposa!
Chegas na hora terrível em que tudo se decide!
LADY
Não podes eliminar William Stanley! És seu auxiliar direto e ele deposita em ti sua confiança. Tens
responsabilidades delegadas e deverias contribuir para a sua perpetuidade.
Além disso ele tem te tratado com particular consideração. O teu frenesi, voando pelo espaço imaginário do
devaneio, se embebeda em falsas reflexões.
MACBETH
Minha vontade se destacará imperativa, como uma onda contínua nunca interrompida. No momento de
agir, farei com que se apague tudo o que devo esquecer.
Abandonarei qualquer relutância...
LADY MACBETH
INSINUANTE.
Escolhe um outro alvo... e uma outra arma...
MACBETH
Ah! Não ousarás opor tua vontade à minha!
LADY MACBETH
Eu ouso tudo o que permite o bom senso.
MACBETH
Mas as suas variações são limitadas.
LADY MACBETH
35
Vem!...
AFAGA MACBETH.
Desiste desta ação.
PARA SI:
Entidades murmurantes que estimulam os instintos da vida! Modifiquem este senhor e eliminem dele tudo
o que for crueldade.
MACBETH
EMPUNHANDO A PISTOLA.
Manipulação demencial, transforma o meu corpo vibrante. Que esta pistola seja a conexão entre o meu
desejo e a destruição histérica de um mundo mórbido!
LADY MACBETH
Pára! As coisas escaparão ao teu controle.
MACBETH
Drogarei o criado de William Stanley, James Byron, oferecendo-lhe um milk-shake preparado com
barbitúricos. Ele dormirá profundamente narcotizado.
Será fácil por a culpa nele. Mancharei as suas roupas com sangue e deixarei a pistola na sua mão. Com
outro revólver, usando outra bala de prata, eu o eliminarei. E o farei de tal maneira que todos pensem que
um matou o outro.
LADY MACBETH
Que nenhum eco duplique o som dos teus passos numa hora tão mal escolhida. Minha consciência se anula,
ante a força desta tua decisão voluntária!
UM SINO BATE DOZE BADALADAS.
MACBETH
Sis William Stanley já chegou!
Aproveitarei que ele estará no escritório, analisando o desempenho da MacDuncan’s.
LADY MACBETH
Não vás. Não faças.
MACBETH
Irei e estará feito!
EMPUNHA A PISTOLA E SAI, PARA ELIMINAR SIR WILLIAM STANLEY.
LADY MACBETH
Que sentimento é este que me assusta com seu conteúdo implacável? Que remorso é este?
DE DENTRO ESCUTA-SE UM TIRO.
MACBETH REGRESSA, COM UMA DAS MÃOS COMPLETAMENTE VERMELHA.
LADY MACBETH
Na tua mão está a prova indesejada!
MACBETH
ATORDOADO.
Porque trouxe comigo a pistola? Ela deveria ter ficado lá.
LADY MACBETH
Não há mais como voltar atrás.
MACBETH
Eu ainda não eliminei o criado.
LADY MACBETH
O que vale para um, vale para dois.
MACBETH
Para chegar no escritório, onde está caído, imerso em profundo torpor, tenho que passar por cima do corpo
de Sir William.
LADY MACBETH
Irás rever os seus olhos abertos.
MACBETH
TORNANDO A SAIR.
Sujarei com o sangue de Sir William o corpo de James Byron, o idiota, e depois o matarei.
36
SAI.
ESCUTAM-SE MAIS DOIS TIROS.
BLACK-OUT.

CENA 6

Personagens:
OFÉLIA
HAMLET

Cenário: O DEPÓSITO DA LANCHONETE

HAMLET DESCASCA BATATAS, JOGANDO-AS RÍTMICAMENTE NUMA BACIA COM ÁGUA.


OFÉLIA
Darling muchacho! Como tem passado o meu usuário?
HAMLET
Suando frio, na expectativa de uma falha no esquema. E a garota tecnitron?
OFÉLIA
Semiconduzida pelas ruas. Os transistores interligados, os componentes caindo abaixo dos joelhos.
HAMLET
Ou seriam válvulas obsoletas substituídas por uma expressão de lástima.
OFÉLIA
Não sou mais uma encapsulada solitária. E nem procuro alguém que me molde num circuito impresso.
HAMLET
És um elemento do amor num circuito integrado.
OFÉLIA
Sou o passo seguinte!
HAMLET
Num único substrato temos um amor às vezes estéril, às vezes etéreo...
OFÉLIA
Ah!... Aprendi a levitar.
HAMLET
Óh! Ofélia!
OFÉLIA
Quem disse que eu me chamo Ofélia?

CENA 7

Personagens:
MACBETH
LADY MACBETH

Cenário: O BALCÃO DA MACDUNCAN’S.

MACBETH
COM A MÃO DIREITA COMPLETAMENT VERMELHA.
Que mão é esta que não consigo lavar?
37
Ah!... este tremor me faz reconhecer algo simples até demais. Nem toda a água capaz de jorrar desta
torneira poderá lavar este sangue e limpar esta mão. Esta cor é uma lesão muito grave, e será, além disto,
uma acusação irrefutável. Se nenhum líquido consegue eliminá-la, uma medida mais drástica deverá ser
tomada.
LADY MACBETH PEGA SEU BRAÇO.
LADY MACBETH
Deves amputar exatamente aqui, no antebraço, oito centímetros acima da linha onde começa a mancha
vermelha.
ABRE UMA MALETA, DE ONDE TIRA INSTRUMENTOS CIRÚRGICOS.
Secciono com o alicate cirúrgico as grandes veias, entre os ossos e o relevo dos músculos. Dou um corte
transversal, com o formão serrilhado de aço inoxidável, acompanhando a borda interna do tendão...
Com movimentos coordenados, deixo que a serra abra um sulco no longo eixo do braço...
Sinto a pulsação da artéria e com pequenos movimentos de meus próprios dedos, vou separando o tecido
que a protege.
SEPARA A MÃO DE MACBETH DO ANTEBRAÇO. AFASTA-SE, NERVOSA, ÁVIDA,
CARREGANDO O MEMBRO AMPUTADO.

MACBETH
COM UM SÓ BRAÇO.
Dois braços são como dois trilhos. Para não ficar fragmentado entre trens micro físicos que atravessam
simultaneamente o mesmo percurso, prefiro ficar com um só. Adeus! A partir de hoje usarás luvas de pelica
branca, que te absolverão de qualquer suspeita nesta vermelha acusação.

CENA 8

Personagens:
HAMLET
OFÉLIA
SHAKESPEARE

Cenário: O DEPÓSITO DA LANCHONETE. AO FUNDO HÁ UM BANHEIRO.

HAMLET
ENCONTRA SHAKESPEARE, QUE VEM ENTRANDO.
Percepções híbridas! Me ocultem na sombra dos seus compostos! William Shakespeare, outra vez!
OFÉLIA
Será que ele está realmente louco? Vou ver sem que me veja. Ficarei escondida no banheiro.
ESCONDE-SE NO BOX DO BANHEIRO.
HAMLET
PARA O FANTASMA ELETRÔNICO DE WILLIAM SHAKESPEARE.
Viestes para repreender ou para elogiar tua criatura? Trazes a pulverização dos sentidos ou uma carga de
equações canônicas?

WILLIAM SHAKESPEARE
...porque aguentas as obcenidades desta ordináia que tão longe está da verdadeira Ofélia? ...já no século
XVII se perderam certas partes da tua história...
por culpa dos atores, que suprimiam umas cenas e acrescentavam outras ...com as descaracterizações
ocorridas aqui, todo o resto está ameaçado ...
HAMLET
38
Na lenda escandinava, Hamlet incendeia os tapetes do palácio, mata o tio usurpador e se faz coroar rei.
Porque o argumento original foi abandonado? Porque tive que morrer no último ato?
WILLIAM SHAKESPEARE
Em breve, nem a poderosa gramática de Oxford poderá te reconstruir.
HAMLET
O meu verdadeiro problema é anterior a qualquer reconstrução.
WILLIAM SHAKESPEARE
...William Stanley... necessariamente... quis assim ... ele te matou no final para ficar mais ao feitio da
época, mais ao gosto do público...
HAMLET
E o carácter que me deu, que atrativo posso encontrar nele?
WILLIAM SHAKESPEARE
...são características impossíveis de definir... às vêzes penso que, sem pretender, William Stanley te deu
vida própria... autonomia em relação aos outros personagens e à estrutura da tragédia...
HAMLET
Me deixou sósinho!
WILLIAM SHAKESPEARE
...sósinho... mas num ritmo com paroxismos febris!...
HAMLET
Sósinho, com alternâncias de júbilo e apatia.
WILLIAM SHAKESPEARE
...este é o teu mérito... o público adora isto ...se não fosse pelo talento de quem te criou... já terias te esvaido
nos arquivos do tempo e da memória...

HAMLET
Minha tragédia foi a que deu mais fama ao nome Shakespeare. Mas não é a melhor escrita.
WILLIAM SHAKESPEARE
...estou cansado... o século XXI me deixa sem forças ...minha materialização enfraquece pela dilatação e
compressão que coexistem no tempo...
William Stanley... finalmente... recebeu seu passaporte para o inferno...
HAMLET
Uma ação de Macbeth, bem ao feitio da época. Que atrativo posso encontrar nela?
WILLIAM SHAKESPEARE
Mata Macbeth e torna-te o único senhor...
HAMLET
Ah! Uma idéia simples segundo os padrões mais realistas...
WILLIAM SHAKESPEARE
Mata-o e brilharás eternamente...
HAMLET MANIPULA UM TECLADO DE COMPUTADOR E VAI, AOS POUCOS,
DESMATERIALIZANDO WILLIAM SHAKESPEARE.
WILLIAM SHAKESPEARE
...mas... o que estás fazendo?
HAMLET
Vou deixar-te no escuro! E espero que fiques nele, de onde nunca deverias ter saído. No teu teatro circular,
mantido em rigidez mecânica, longe da luz do sol.
WILLIAM SHAKESPEARE
...óh!... não! ...não apagues este ponto de luz!
A LUZ DIMINUI DE INTENSIDADE ATÉ SHAKESPEARE DESAPARECER NA ESCURIDÃO.
SUAS PALAVRAS, GRADATIVAMENTE, TAMBÉM DESAPARECEM COM ELE.
...fui morar em Londres aos vinte anos... arrumei um emprego na cavalariça de SIR WILLIAM
STANLEY... óh... como eu estava orgulhoso de mim... aprendi a ler algumas letras e até a escrever meu
nome... um dia ele mandou me chamar ao seu castelo... disse que eu assinaria as criações da sua pena...
39
relutei... mas não tive saída... ... foi assim que surgiu o William Shakespeare... as mesmas iniciais... um
dobrevê e um esse... no... castelo... no... inverno.... de... 1592... magnífico... era...
o... terraço... sobre... o... mar... caminhei... pela...
esplanada... batida.. pelo... vento...
e... c o m ... p r e e n d i... q u e.. . a q u e l a . . . e
r a . . . a m i n h a
c h a n c e de m e
t o r n a r. . . . i m o r t a l . . .

DESMATERIALIZA-SE.

OFÉLIA
ATRÁS DA CORTINA DO BOX, PARA HAMLET.
CANTA:
“Ele se ergueu, sorriu,
a porta do quarto abriu.
Entrou a moça no covil da fera,
e, ao sair, moça não era."
HAMLET
Morte na catedral...
Morte no chuveiro...
DESCONTROLADO, DESEMBAINHA O PUNHAL E ESFAQUEIA OFÉLIA ATRAVÉS DA
CORTINA.
HAMLET
O que fiz? Não sei, realmente não sei. Alguém estava cantando no chuveiro. Terei matado a faxineira? Ou
uma hóspede?
Quem sou?
Um engenheiro da renascença?
Um escravo moderno?
Isto aqui é o Bates Motel?

CENA 9

Personagens:
HAMLET
MACBETH

Cenário: O BALCÃO DA LANCHONETE MCDUNCANS VISTO DE FRENTE,


COM TODO O SEU ESQUEMA TÍPICO. NEGRO.

HAMLET ESTÁ NO CAIXA. ENTRA MACBETH.

MACBETH
Me dá licença. Como vai o meu príncipe?
HAMLET
Confuso.
MACBETH
Sabes quem sou?
HAMLET
És o novo franqueador da McDuncan’s.
MACBETH
40
Perfeitamente.
HAMLET
Preferiria estar vendo o herói escocês.
MACBETH
Também comigo o velho William Stanley escamoteou a verdade... Ele eclipsou a verdadeira história de
Macbeth.
COM DISTANCIAMENTO:
Macbeth matou, no ano 1040, o rei Duncan I, em Dunsinane, recobrando o trono que pertencia a sua esposa
Gruach. Peregrinou a Roma, para pedir perdão ao Papa. Depois que Macbeth retornou, em 1054, Malcom,
ajudado pelo conde Siward de
Northumberland, usurpou de Macbeth uma parte do seu reino. Em 1057, Macbeth morreu lutando contra
Malcom em Lumphanan.

HAMLET
RETOMANDO.
Acabo de eliminar William Shakespeare. Sabes quem sou?
MACBETH
És um assassino igual a mim.
HAMLET
E com este punhal matei a faxineira...
MACBETH
E quantos mais ainda mataremos? Seja empregando a astúcia, seja diretamente?
HAMLET
Pois... se a luz pode ser negra numa radiação invisível, então... pode tornar-se, também, um zumbido
atravessando uma cortina de plástico numa tempestade equatorial.
As formações nervosas dos meus hemisférios cerebrais, nos quais os traumas são sempre graves, não
convivem tranqüilamente com a lembrança do assassinato. Acho que só poderei controlar a fissão que
ameaça pulverizar meus neurônios se tiver uma vida estritamente vegetativa: dormir, beber, comer,
evacuar.
MACBETH
Estás confuso como quarks e nuclídeos desvairados. Simetrias quebradas escurecem o teu holograma.
HAMLET
Mas os períodos histéricos que me deslocam da órbita sincrônica não são uma confusão. São acréscimos de
uma grandeza excitante.
MACBETH
E esta grandeza nos permite questionar a realidade e suas disposições implícitas?
HAMLET
Foi Hamlet quem matou a faxineira? Hamlet nunca.
MACBETH
Foi Macbeth quem eliminou William Stanley? Macbeth nunca.
HAMLET
Foi Hamlet quem fez com que William Shakespeare deixasse de ser um macaco?

MACBETH
Foi Macbeth quem eliminou a honra e inventou a traição?
HAMLET
Ultrapassamos a encruzilhada do que é natural e do que é impossível.
MACBETH
Óh! Nos distanciamos, como antropófagos, das frivolidades que estamos acostumados a ouvir! Não
seremos fragmentados por trens micro físicos que atravessam tragicamente, ao mesmo tempo, os mesmos
trilhos.
HAMLET
Tento dar legitimidade a sentimentos que cobrem a consciência com um véu de insensatez.
41
MACBETH
É incrível, é surpreendente! A consciência nos obriga a um gesto aparente, o gesto nos leva para a
representação, e a representação nos conduz até a mistificação.
HAMLET
É a mistificação que nos transporta para o absoluto?
MACBETH
Se for... Então é este mesmo absoluto nos traz de volta para a mediocridade quotidiana.
HAMLET
Tudo para nada.

CENA 10

Personagens:
MACBETH
HAMLET
THELONIUS
SARGENTO KELLY

Cenário: A FRENTE DA LANCHONETE MACDUNCAN’S. AO FUNDO, O


BALCÃO E AS INSTALAÇÕES.

MACBETH
Thelonius, o Monge Negro, está agindo! Seus peritos identificaram os corpos de William Stanley e seu
criado e começaram as autópsias.
HAMLET
Que meio produziu estas estranhas mortes? Veneno? Fogo? Explosivos? Asfixia?
MACBETH
Em breve seremos intimados.
HAMLET
Assim funciona a lei do mundo das trevas: a constância na variedade.
MACBETH
A presença do perigo te inquieta?
HAMLET
Precisamos ser espertos para guiar com segurança nossos corpos naturais pelos labirintos do que está
escrito.
MACBETH
Não precisas temer. Está aqui um franqueador maior que o medo.
42

HAMLET
Podemos subornar os peritos de Thelonius. Não serão Cumpridas certas práticas necessárias e tudo ficará
cheio de divergências. Não haverá minúcias, nem clareza, nem exatidão.
MACBETH
Lutaremos! Bate três vezes na madeira!
Nós os esperaremos protegidos atrás destes balcões e saudaremos a sua chegada com uma saraivada de
balas... de prata!
Toma posição!
A McDuncan’s fast-food não se entregará sem lutar!
HAMLET
Deixa-me escolher a arma que usarei.
EXAMINA VÁRIAS PISTOLAS.
Mauser, esta me agrada. Tentarei disparar a uma distância máxima de doze metros.
MACBETH
A menos de três sei que não errarás, mesmo que o alvo seja invisível.
HAMLET
Que armas eles usam?
MACBETH
Intimidação!
Mas eles nunca enfrentaram uma reação como a que os espera.
Que barulho é este?
HAMLET
Mulheres que choram num enterro.
OLHA PELA PORTA.
Tenho que te dizer o que vi, mas talvez não acredites.
MACBETH
Fala!
HAMLET
Olhei agora para o lado de fora e vi...
MACBETH
As árvores da praça se aproximando?
HAMLET
Vi um exército de demônios e espíritos malignos.

MACBETH
Atira, então! Atira! Com balas de prata! Balas de prata! Depressa!
HAMLET E MACBETH DISPARAM, NUMA COREOGRAFIA ALUCINANTE.
UM FULGOR ILUMINA A CENA.
HAMLET
O momento é crítico.
MACBETH
Ah! Nossas habilidades são inimagináveis!
DEPOIS, QUANDO O TIROTEIO CESSA.
HAMLET
Recuaram!
MACBETH
Eu sabia! Não estão acostumados com uma recepção em alto estilo. Acertei um no estômago! Vê como rola
no asfalto e a cara de pavor dos outros.
Me alcança um milk-shake. Durante o calor da luta, beberemos!
Cuidado!
43
Aí vem eles de novo!
DISPARA.
Acertei outra vez!
HAMLET
Acertado, acertado! Sou testemunha!

NOUTRO PLANO, ENTRA THELONIUS, O MONGE NEGRO.


THELONIUS
Sargento Kelly! Huúuu, huúuuu! Onde está você, Kelly Boy?
NO MESMO PLANO, ENTRA O SARGENTO KELLY, UM MARINER NORTE-AMERICANO COM
FARDAMENTO DE COMBATE COMPLETO. SEUS DENTES CANINOS, PROEMINENTES, SE
DESTACAM.
THELONIUS
Senhores, apresento-lhes o Sargento Kelly. Sua especialidade é atuar em qualquer parte do mundo. Foi
construído cuidadosamente para dar a sensação de que é idêntico aos humanos.
KELLY EXIBE, NO PEITO, A MEDALHA DE HONRA.
SARGENTO KELLY
Hei! Sou blindado!
THELONIUS
Apresenta as tuas coordenadas!
SARGENTO KELLY
Sou um soldado profissional especializado. Não guardo batatas na minha marmita. Como todos os dias na
hora certa. Sei como evitar as lesões musculares e a fadiga. Demonstrei o meu valor na batalha pelo
Afeganistão. Limpamos a Palestina e, em breve, vamos terminar o serviço em Bagdad.
THELONIUS
Como está o teu barômetro aneróide?
SARGENTO KELLY
Com a barra de secção destravada.
THELONIUS
Bismutina?
SARGENTO KELLY
Não. Benzina crua.
UM TREMOR SACODE A CENA.
THELONIUS
Cuidado! Abaixe-se!
SARGENTO KELLY
Processado. São apenas atmosferas.
THELONIUS
Hidrogênio?
SARGENTO KELLY
Hidrogênio.
Tenho dois ferrões venenosos nos dentes caninos. Posso usá-los ao morder, ou ao beijar.
THELONIUS
O Sargento Kelly tem um minúsculo explosivo implantado na base do couro cabeludo. Seu eu detectar
algum erro grave na sua conduta, explodirei seu cérebro, o que o tornará um organismo cibernético inútil
para o inimigo.

SARGENTO KELLY
É exatamente como se eu tivesse um computador na cabeça, programado por especialistas em
neurotecnologia.
THELONIUS
44
Kelly Boy, os seus coturnos vão pisar numa lanchonete McDuncan’s! Dois traidores tentam nos empurrar
de volta para o mundo triste onde vivíamos às cegas como seres desprezíveis.
Você vai entrar em ação. Huúu! Eles não poupam munição! Balas de prata, huúu!, abrem buracos em nossa
carne negra! Huúuu! Huúúuuu!
SARGENTO KELLY
AVANÇANDO EM MEIO A EXPLOSÕES E SIMULAÇÕES DE UM FEROZ COMBATE.
Me arrasto, sob o intenso fogo dos atiradores de tocaia. Controlo imagens hipersemióticas introjetadas.
LEVANTA-SE.
Não quero nem saber! Ataco!
THELONIUS
Tens uma arriscada tarefa, Kelly Boy. Avança até o bunker do Inimigo, focaliza as suas áureas filigranadas
e silencia as suas pistolas. Huúu!
SARGENTO KELLY
Atiro sem parar com o meu fuzil laser de fogo contínuo. Localizei dois seres hídrico-membranosos
rebeldes, um erotômano e um noctâmbulo. Vou mostrar-lhes que não sou um autômato. Vou mirar num
deles e prepara-lo para a liquidação cósmica!
DISPARA.
Acertei nele. Mas a sua permutação cíclica continua em pé. Dei mais cinco tiros e ele não caiu!
Minha arma esquentou tanto que engasgou. Óxidos! Tenho medo que um curto-circuito apague as minhas
vibrações luminosas. Que faço?
THELONIUS
Huuúuuuuu!!! Huuúúuuuu! Eles revidam da Mcduncan´s, Kelly.
SARGENTO KELLY
Ra-tá-tá-tá-tá-tá-tá!!! Bombardearei a zona de conflito sem atingir os civis. Um míssel químico...
Boommmm!!!
Explodiu bem onde eles estão...

THELONIUS
Huúuu!!! Nunca mais eles subirão ao palco! Huúuuu!!!!
A AÇÃO VOLTA AO PLANO ANTERIOR.
NO INTERIOR DA LANCHONETE.

HAMLET
Ai! Fui atingido!
CAMBALEIA.
MACBETH
Segura a minha mão. Te sentirás mais forte.
HAMLET
Enxergo teu rosto embaçado e distante.
MACBETH
Repousa.
HAMLET
É como se uma fenda se abrisse aos meus pés.
Me exponho aos olhos comuns, cheios de inveja.
Espero que as frases imortais que repeti sem cansaço em todos os palcos do mundo se tornem
incompreensíveis para sempre. Desejo que, no interior de uma gramática subitamente desorganizada, a
nitidez mensurável das sílabas desmorone comigo, apagando numa avalanche tudo o que foi escrito sobre
Hamlet.
Estou morto, Macbeth!
MACBETH
Que quatro balconistas carreguem Hamlet passo a passo num ritmo elástico. Ele é o número um!
Que os sonares e radares registrem sua passagem!
Mas... Porque soam estas sirenes?
45
É a corrupta opinião pública, filha apenas do poder, que me espera do outro lado desta porta?
Não me renderei! Para não ser esmagado na rotina genérica!
Com as balas estilhaçantes das minhas pistolas de linhas brilhantes, mais facilmente enfrento os corpos de
carne negra, que se decompõem ainda em vida, do que os fatos da minha memória banida, colocada frente a
meus olhos como um espelho nulo.
ATIRA.

NOUTRO PLANO, THELONIUS E O SARGENTO KELLY .

SARGENTO KELLY
Mais um dia uni cromático como os outros. Preciso confrontar a minha perpendicular inapetência com o
acoplamento do alargador de ranhuras helicoidais. A inércia se aproxima, confundida no crepúsculo
sangrento. Sinto que desperdicei a minha vitamina definitiva num estado de indolência insubstanciável.
THELONIUS
Isto significa inorgância?
SARGENTO KELLY
Não entendi, senhor.
THELONIUS
Vencemos a batalha da lanchonete, mas você deixou o calibrador ficar superaquecido. Veja só o estado das
correias! Você foi incompetente. Permitiu que o jogo comprimisse o cilindro!
SARGENTO KELLY
Desculpe, senhor. Sofro de hidrogenia. Deve ser minha genetização.
THELONIUS
Ora, não provoque minhas hidrofiláceas! Relaxe... Sua missão está cumprida.
SARGENTO KELLY
Por favor, senhor. Quero fazer meu último pedido. Permita, antes de me desligar, que eu consulte meu
hidróscopo?
THELONIUS
Que pedido mais hidropático! Negado.Sargento Kelly, não seja tão hidráulico!

CENA FINAL

DEPOIS DE UMA PAUSA, A LUZ SOBE LENTAMENTE. MESMO CENÁRIO. HAMLET ESTÁ
MORIBUNDO.

MACBETH
Aqui está o Príncipe da Dinamarca, morrendo.
Suas células perdem mais energia do que produzem e logo se transformarão numa cavidade com paredes
opacas. Um caráter subjugado, não por violentas paixões, mas por refinados sentimentos, que se lamentava
pelos corredores escuros e vagava pelos subterrâneos úmidos. Como Macbeth, ele também estava
humilhado por um peso que não podia suportar e do qual não conseguia livrar-se.
Vamos ver! Quem aponta onde erramos?
Que erros foram estes?
Os de personagens que, fugindo dos padrões, se deixaram levar por importantes reflexões?
Os de jovens fragilizados, obrigados a executar terríveis ações?
46
Presos na teia de um poderoso duque que usava uma máscara para ocultar seu verdadeiro rosto, tudo o que
podemos dizer são palavras que oscilam entre a filosofia antiga e a vã literatura de um presente que não
sabe mais ler.
Acabam de assistir à transmutação de fatos sangrentos. Minha última vontade é que os cadáveres que aqui
se encontram tenham suas imagens transmitidas para todo o mundo. Leiseres transformarão seus espectros
em cor e seus pigmentos ficarão para sempre fixados em cilindros cobertos de selênio.
Emissores de alta velocidade transformarão o que aqui aconteceu em feixes luminosos disparados em todas
as direções. E os mais distantes povos, que ainda ignoram estes fatos, serão informados de desejos mal
compreendidos, que se exprimiram como sentimentos inaceitáveis, e de estranhos interesses, que
disfarçaram a sua significação profunda.
HAMLET
MORRENDO.
E o resto será silício...
FIM

Viamão, 24 de março de 1992.


Florianópolis, julho de 2001.
São José, outubro de 2002.

Você também pode gostar