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Vidas secas

Capítulo 5: O menino mais novo


Em Vidas Secas os meninos não têm nome, são apenas mencionados como o mais novo e o
mais velho. Nesta parte o foco se dá no mais novo, que por ter visto o pai amansar
uma égua brava, o admira muito e sonha em também ser um vaqueiro.

6 - O menino mais velho

Um dia o menino mais velho ouviu de Sinhá Terta, durante uma reza para curar uma
espinhela do pai, a palavra “inferno”. Daí surgiu na cabeça da curiosa criança a
dúvida: o que é “inferno”.

Perguntou à sua mãe. Distraída, disse que era “um lugar ruim demais”. O menino
insistiu, querendo mais, e foi desprezado.

Perguntou ao pai, nem obteve resposta.

Voltou à mãe e ela disse que havia lá espetos quentes e fogueiras. O garoto,
inocente, perguntou se ela já havia visto. A mãe zangou-se e deu-lhe um cocorote.

Indignado, o garoto saiu e pôs-se a chorar. A cachorra Baleia apareceu para


consolá-lo, pulando e agitando o rabo. Ele não acreditava que um nome tão bonito
como “inferno” poderia significar algo ruim. Aliás, não existia para ele lugar
ruim, o chiqueiro, o barreiro, o pátio, o bebedouro, tudo que conhecia era bom. Mas
lembrou-se de quando sua mãe carregava o baú e seu irmão sob o sol, e quando ele
desmaiou de tanto calor, e quando precisaram parar sob um juazeiro para aguentarem
a viagem. Talvez aquilo fosse “inferno”.

Preferiu parar de questionar, esquecer-se do cascudo que levara da mãe, ao mesmo


tempo em que outras questões surgiam-lhe à cabeça: como pode haver estrelas na
Terra? A palavra “inferno”, ainda que fosse bela para ele, já havia o prejudicado o
bastante. Tinha o apoio da Baleia, o que era o suficiente. Então o garoto abraçava
a cadela, que na verdade desgostava daquela carícia excessiva, pensava somente num
osso que uma hora haveria de roer.

8 - Festa

Fabiano, Sinhá Vitória e os meninos iam à festa de natal na cidade.

O pai e os meninos estavam vestidos de calças e paletós brancos feitos pela Sinhá
Terta. As roupas eram apertadas e remendadas. Fabiano deu pouco tecido para fazê-
las, desconfiando que Sinhá Terta roubava-lhe os retalhos. Sinhá Vitória, num
vestido vermelho, calçava saltos que a impediam de andar. Fabiano esforçava uma
postura diferenciada, ereta, mas a ele era incômoda.
Após andarem um pouco se desfizeram de toda fantasia, seriam três horas de
caminhada. Com roupas e sapatos às mãos receberam a presença de Baleia, que se unia
ao grupo. Fabiano a expulsaria caso ainda estivessem vestidos e com a postura
anterior, mas agora que estavam no mesmo nível da cachorra, sua presença era bem-
vinda.

Chegando à cidade a família foi à beira do rio lavar os pés e calçar os sapatos. As
botinas só entraram nos pés de Fabiano após muito esforço, e machucavam-no. Mas
eram necessárias. Ele iria à Igreja e, desde que se entende por gente, viu gente ir
à festas e à Igreja vestido dessa forma. Não podia quebrar a tradição, mesmo sem
saber bem o porquê.

Os meninos se amedrontaram com a multidão. Como poderia existir tanta gente? Tantos
mundos diferentes? Tantas cores, cheiros, luzes, casas, nomes. Tudo era estranho.

Na Igreja Fabiano se incomodava por não conseguir andar junto de Sinhá Vitória e
seus filhos, havia muita gente no lugar. Sentia-se preso, com tantas pessoas
encostando em seu corpo, por todos lados. Tão preso quanto no dia da briga com o
soldado amarelo.

Do lado de fora foram a algumas barracas, os meninos às de brincadeiras, o Fabiano


à de apostas e de bebidas. Sinhá Vitória o recriminava. Ele já estava bêbado,
desafiando a todos para enfrentá-lo, mas ninguém lhe dava atenção. Sentaram-se na
calçada. Fabiano deitou-se.

Os meninos, assim como Baleia, encheram-se de tudo. A mãe sentiu-se apertada, foi
até uma esquina onde outras mulheres se aliviavam. Voltou à calçada, Fabiano
roncava, sonhando com brigas com soldados amarelos. Sinhá Vitória lembrou-se da
seca, de quando caminhavam sem destino sob o sol. Concluiu que a vida não era má.
Só faltava a cama de couro de seu Tomás da bolandeira.

9 - Baleia

A cachorra Baleia estava para morrer. Os pelos caíam, manchas negras surgiam em sua
pele, cheia de feridas e sangramentos. Sua boca inchada e com chagas dificultava
que bebesse ou comesse.

Fabiano entendeu que seria melhor matá-la de vez, para evitar mais sofrimento.
Sinhá Vitória entendia que o procedimento também era necessário.
Quando Fabiano começou a preparar sua espingarda os meninos perceberam o que iria
acontecer e ficaram alvoroçados… Ela era parte da família. A mãe levou-os ao quarto
e tapou-lhes os ouvidos.

Baleia percebeu o estranho movimento de seu dono, com a arma apontada. O tiro
atingiu somente a parte traseira da cachorra, que saiu se arrastando, latindo e
chorando. As crianças se desesperaram, Sinhá Vitória rezou, Fabiano se recolheu.

Baleia procurou chegar aos juazeiros, onde havia um lugar em que se sentia
confortável. Mas nem conseguiu. Parou no caminho. Surgiu uma névoa branca, em
seguida tudo se escureceu. Sentiu cheiro de preás, ouviu o barulho das cabras,
pensou em morder Fabiano mas logo desistiu, ele era seu mestre, fosse como fosse.
Em meio a diversas visões de sua vida, Baleia quis dormir para acordar num mundo
cheio de preás, gordos, enormes.

10 - Contas

Fabiano recebia, pelo seu trabalho, parcelas dos animais que criava. No entanto,
por não ter terra própria e pegar constantes empréstimos com seu patrão, sempre
vendia seus bezerros e cabritos para seu próprio patrão, por preço muito menor que
o de mercado. Vivia, então, endividado.

Certa vez tentou vender cortes de um porco na cidade, mas foi surpreendido por um
fiscal do governo que queria lhe cobrar imposto. Desistiu então de negociar, todos
o roubavam.

Com seu patrão iniciava a discutir quando via que as contas dele não batiam com as
de Sinhá Vitória, mas sob a mínima ameaça de ser expulso da fazenda se redimia,
aceitando que talvez sua mulher é que estivesse errada. No fim das contas, aceitava
seu destino: “Quem é do chão não se trepa”. Sabia que era roubado, mas também sabia
que não podia fazer nada quanto a isso.

Na cidade, após uma dessas discussões com o patrão, com os poucos trocados que
sobraram em suas mãos, Fabiano pensou em ir à bodega tomar uma pinga, mas esquivou-
se, lembrou-se da discussão arranjada na última vez que fez isso. Preferiu evitar.

Em casa, não conseguiu dormir. Queria pensar em um futuro, mas não havia.
Continuaria morando em casa de outros, trabalhando enquanto permitissem, até
precisar sair novamente pelo mundo para morrer de fome na caatinga seca. Tentava
lembrar fatos agradáveis, que poderiam tornar a vida menos má, mas nem isso
conseguia. Foi ver o céu, cada vez mais estrelado (primeiro sinal da volta da
seca). Pensou na Baleia, era como se ele tivesse matado alguém da família.

13 - Fuga

A fazenda secou, os animais morriam. Fabiano matou e salgou um bezerro. Prepararam


a nova viagem. Fabiano esperou até um último momento, quando a seca se tornada
definitiva, e partiu com a família. Dona Vitória lembrou-se de Baleia, que não os
acompanharia dessa vez, e chorou.

No caminho, enquanto Dona Vitória puxa uma conversa, como sempre monossilábica, com
seu marido, as crianças iam à frente. Fabiano achava bom aquilo, a conversa
distraía e fazia o caminho parecer menor, e era bom aproveitar o entusiasmo inicial
dos garotos.

O peso das bagagens fez Fabiano pensar que a égua seria de grande ajuda, mas ele a
deixou, pois pertencia a seu patrão. Mais uma vez é clara a inocente ignorância de
Fabiano: ele já deixava a fazenda sem avisar ao patrão, deixando uma dívida
imaginária impagável, qual seria o problema de levar a égua consigo, se mais cedo
ou mais tarde ela morreria na seca? O patrão é que não se importaria com ela.

Dona Vitória compartilhava seus planos com seu marido: queria viver num lugar fixo,
numa cidade, botar os meninos para estudar, para terem um destino melhor que o
deles. Isso incomodava Fabiano, que não se imaginava fazendo nada senão cuidando de
bois, e o mesmo futuro pensava para seus filhos.

Ao final, Fabiano aceitou a proposta de sua mulher. Seguiriam rumo ao sul, para
viverem numa terra civilizada, de gente forte, como eles.

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