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Itamar Vieira Júnior, Torto Arado, romance, 2018 Literatura Contemporânea

1. O autor

Itamar Vieira Júnior nasceu em Salvador, Bahia, em 1979. É geógrafo e doutor em estudos
étnicos e africanos pela Universidade Federal da Bahia. Publicou os livros de contos Dias e A
oração do carrasco, além de outros textos ficcionais em diversas publicações nacionais e
estrangeiras. Seu romance Torto Arado recebeu vários prêmios.

2. O livro

Torto Arado é um romance sobre duas irmãs, Bibiana e Belonísia, de uma família de
trabalhadores rurais no interior da Bahia. O livro acompanha suas vidas desde a infância até a
idade adulta tendo como pano de fundo a vida coletiva da fazenda: a liderança espiritual
exercida pelo pai, o papel da mãe como parteira, as festas religiosas, o cotidiano de trabalho e
pobreza, a relação com os patrões, os sonhos de uma vida melhor e a luta por condições
justas.

O livro é dividido em três partes: “Fio de Corte” (15 capítulos), “Torto Arado” (24 capítulos) e
“Rio de Sangue” (14 capítulos). Cada parte é narrada em 1ª pessoa por uma personagem.

3. Enredo

Parte 1 - Fio de Corte (narrada em 1ª pessoa por Bibiana)

Bibiana e Belonísia eram irmãs. Seus pais trabalhavam na fazenda Água Negra, na Chapada
Diamantina (interior da Bahia). A família morava numa casa de barro com a avó Donana, que
passava o dia tomando conta das netas.

Ainda crianças, Bibiana e Belonísia entraram no quarto da avó e retiraram de uma velha mala
uma faca de prata embrulhada num pedaço de pano encardido com nódoas escuras de sangue
seco. Fascinadas com o brilho da faca, eles colocaram a faca na boca para sentir o gosto da
prata. Belonísia acabou acidentalmente cortando um pedaço da própria língua.

Quando seus pais Zeca Chapéu Grande e Salustiana voltaram da roça, a avó Donana estava
apavorada. Sutério, o gerente da fazenda, levou as meninas de carro para o hospital. Foi a
primeira vez que Bibiana e Belonísia entraram num automóvel. Foi também a primeira vez que
elas saíram da fazenda e viram uma cidade. Por causa do corte, Belonísia perdeu a capacidade
de falar.
Bibiana era apenas um ano mais velha que Belonísia. Depois do acidente, as duas se tornaram
mais próximas. Bibiana aprendeu a decifrar os gestos da irmã e a comunicar verbalmente o
que ela queria: “Foi assim que me tornei parte de Belonísia, da mesma forma que ela se tornou
parte de mim. Foi assim que crescemos, aprendemos a roçar, observamos as rezas de nossos
pais, cuidamos dos irmãos mais novos. Foi assim que vimos os anos passarem e nos sentimos
quase siamesas ao dividir o mesmo órgão para produzir os sons que manifestavam o que
precisávamos ser”.

A avó Donana nunca se recuperou do acidente com as netas. Andava pelas trilhas da mata,
falando sozinha, dirigindo-se à filha Carmelita, que tinha desaparecido há muito tempo. Um
dia Bibiana encontrou a avó morta, caída à beira do rio. Ninguém falou mais da faca de prata
nem se soube do seu paradeiro.

Zeca Chapéu Grande, pai de Bibiana e Belonísia, era muito respeitado pelos outros
trabalhadores da fazenda. Ele organizava o jarê (cerimônia religiosa de origem africana) e era
curandeiro. “Zeca Chapéu Grande era o pai espiritual de toda a gente de Água Negra”.

Zeca convidou seu irmão Servó para trabalhar e viver na fazenda. Servó trouxe a esposa
Hermelina e seis filhos. O mais velho se chamava Severo e já era quase um rapaz. Bibiana e
Belonísia, já moças, passaram a disputar a atenção do primo. Numa noite de festa, Bibiana viu
que Belonísia e Severo estavam juntos num lugar afastado, talvez se beijando. Bibiana sentiu
ciúme e, no dia seguinte, contou para a mãe o que tinha visto. Furiosa, a mãe deu uma surra
em Belonísia, mas não contou nada ao marido, por medo da reação dele. Belonísia passou
várias semanas sem falar com Bibiana. Todavia, quando esta machucou o pé perto do rio,
Belonísia a ajudou e se reconciliou com ela.

Belonísia contou a Bibiana que as vizinhas Crispina e Crispiana, que eram irmãs gêmeas,
brigavam amargamente por causa do mesmo homem que possivelmente tinha engravidado as
duas. Para Bibiana e Belonísia isso era um aviso sobre o risco que elas corriam.

Nessa época houve uma grande festa do jarê em que o prefeito estava presente. Zeca Chapéu
Grande tinha curado o filho do prefeito, o qual tinha uma dívida de gratidão. Por isso, em
nome da orixá Iansã, Zeca exigiu que o prefeito mandasse construir uma escola na fazenda
para que os filhos dos trabalhadores fossem alfabetizados.

A escola começou a ser construída, mas a chegada da seca tornou a vida de todos mais difícil.
As roças quase nada produziam. Para conseguir algum dinheiro para a sobrevivência da
família, Bibiana colhia frutos de buriti para vender na cidade. Severo começou a acompanhá-la.
Eles passaram a se encontrar frequentemente na mata para colherem buritis. Apaixonados uns
pelo outro, acabaram fazendo sexo.

Bibiana ficou grávida aos 16 anos. Ela manteve a gravidez em segredo e continuava a
encontrar-se com Severo que lhe falava dos seus planos de sair da fazenda, estudar e tentar a
sorte em outro lugar. Aparentemente apenas Belonísia percebeu a relação entre Severo e
Bibiana.

Nessa época, durante o jarê, uma idosa chamada Dona Miúda começou a falar em nome de
uma “encantada” chamada Santa Rita Pesqueira, da qual ninguém jamais ouvira falar. Com voz
muito fraca Dona Miúda disse que Bibiana teria um filho e que iria correr o mundo a cavalo. “A
voz estava tão fraca que só eu pude escutar o que ela dizia. Aquela mensagem se inscreveu em
mim como uma marca esculpida na rocha e atravessou meu espírito durante o tempo que
tenho sobre a terra”.

Apesar da insistência de Severo para que fugissem juntos, Bibiana hesitava em partir e deixar
sua família. No entanto, um acontecimento acabou precipitando a decisão de Bibiana. Sutério,
o administrador da fazenda, entrou em sua casa e ao encontrar uma porção de batatas-doces,
pegou para si a maior parte delas, dizendo que era obrigação das famílias entregar um terço
do que era produzido. Nada adiantou explicar a Sutério que aquelas batatas-doces tinham sido
compradas porque a roça estava destruída pela seca. A mãe de Bibiana indignou-se, mas
conteve-se ao ver que o marido estava em silêncio resignado. Essa humilhação foi demais para
Bibiana. “A imagem de Sutério levando nosso pouco suprimento, e a fome e o improviso que se
seguiram para fazer a refeição mais tarde, me deram a firmeza necessária para prosseguir”.
No dia seguinte, ela se encontrou com Severo e fugiram da fazenda.

Parte 2 - Torto Arado (narrada em 1ª pessoa por Belonísia)

Durante muitos anos Belonísia sonhou com um homem bem-vestido, o punhal de prata da avó
e um rio de sangue que brotava do chão. “O único sentimento bom que essas imagens me
deixavam era que eu gritava, falava pelos cotovelos, coisa que havia muitos anos que não
fazia. Na noite em que Bibiana deixou nossa casa, o sonho se repetiu dessa exata forma.”

Apesar de ter visto Bibiana arrumar a mala, Belonísia não quis denunciá-la para a mãe. Ela não
teve vontade de vingar-se do dia em que foi acusada de beijar Severo no escuro (na verdade,
eles estavam apenas olhando os vaga-lumes). A fuga de Bibiana deixou a mãe desolada. O pai
passava muito tempo sozinho no quarto dos santos, talvez se comunicando com os encantados
para ter notícias da filha. A temporada de seca acabou. A escola finalmente foi inaugurada e
recebeu o nome de Antônio Peixoto, que diziam ser proprietário daquela fazenda, mas que
nunca apareceu por lá. Alguns membros da família Peixoto, que nunca tinham sido vistos na
fazenda, apareceram na cerimônia. Não houve nenhum agradecimento a Zeca Chapéu Grande
pelo seu esforço de trazer a escola.

Sem Bibiana por perto para ajudá-la, Belonísia logo parou de frequentar a escola. Ele preferia
passar seu tempo junto ao pai. “Com Zeca Chapéu Grande me embrenhava pela mata nos
caminhos de ida e de volta, e aprendia sobre as ervas e raízes. Aprendia sobre as nuvens,
quando haveria ou não chuva, sobre as mudanças secretas que o céu e a terra viviam.
Aprendia que tudo estava em movimento – bem diferente das coisas sem vida que a professora
mostrava em suas aulas. Meu pai não tinha letra, nem matemática, mas conhecia as fases da
lua.”

Depois que a escola abriu, chegou uma nova leva de trabalhadores à fazenda. Dentre eles
estava uma mulher franzina chamada Maria Cabocla, na companhia do marido e de seis filhos.
Chegou também um homem chamado Tobias, que fez amizade com Zeca Chapéu Grande e
passou a frequentar o jarê. Belonísia começou a se interessar por ele.

Zeca Chapéu Grande perguntou se Belonísia queria morar com Tobias. Pouco tempo depois
eles passaram a viver na casa dele. Belonísia passava muito tempo tentando arrumar a casa
imunda, mas não demorou para que Tobias começasse a reclamar de tudo que Belonísia fazia.
Ela tentava se controlar, mas sua raiva aumentava a cada dia.

Maria Cabocla, que morava ali perto, apareceu dizendo que era ameaçada pelo marido.
Belonísia passou a ajudá-la e entendeu que logo Tobias se tornaria tão violento quanto o
marido de Maria Cabocla. Certa manhã, assim que Tobias saiu para o trabalho, Belonísia foi
visitar a mãe e teve a surpresa de encontrar Bibiana, acompanhada do filho pequeno chamado
Inácio. Bibiana parecia bastante envelhecida. Ela contou que tinha estudado num supletivo e
que se preparava para ser professora. Severo havia se tornado um líder que não aceitava as
condições de trabalho na fazenda e denunciava a relação de servidão em que os trabalhadores
viviam. Belonísia se interessou pelos discursos do cunhado. “Queria ouvir de Severo as
explicações para o que vivíamos em Água Negra. Eram histórias que se comunicavam com
meus rancores, com a voz deformada que me afligia e por vezes me despedaçava, com todo o
sofrimento que nos unia nos lugares mais distantes. Que juntos, talvez, pudéssemos romper
com o destino que nos haviam designado.”

Tobias ficava cada vez mais agressivo e passava mais tempo fora de casa. Nessa época,
Belonísia teve a surpresa de reencontrar o punhal de prata de sua avó entre os pertences de
Tobias. Uma manhã um vaqueiro apareceu para avisar que Tobias tinha sido encontrado morto
na estrada. Maria Cabocla disse que a causa da morte era Tobias ter insultado a encantada
Santa Rita Pesqueira. Depois do enterro de Tobias, Belonísia passou a morar sozinha. Tinha
uma vida de trabalho muito dura. Um dia feriu o pé ao subir num buritizeiro e desde então
passou a mancar.

Maria Cabocla recorria a Belonísia quando era agredida pelo marido, porém ele fugiu assim
que Belonísia o ameaçou com o punhal. Belonísia sentia uma grande ternura por Maria
Cabocla, mas a relação entre ambas esfriou no momento que ela fez as pazes com o marido.

Alguns anos depois Bibiana e Severo, agora com quatro filhos, voltaram a morar na fazenda.
Nesse mesmo ano apareceu em Água Negra o primeiro aparelho de televisão. “Apesar das
mudanças lentas, muitas interdições impostas pelos fazendeiros ainda existiam. O dinheiro não
era usado para a melhoria das casas, que continuavam a ser de barro, não podíamos construir
casa de alvenaria. Mas o povo começou a melhorar o seu interior: colchões de espuma para
substituir os colchões de palha de milho, uma cama, mesa e cadeiras, remédios, roupas e
alimentos”.

Bibiana se tornara professora e Severo era membro do sindicato rural. Zeca Chapéu Grande, já
muito velho e fraco, teve um último ano de vida muito ativo e morreu serenamente.

(Nesse ponto conta-se em flashback a história de Zeca Chapéu Grande e de sua mãe Donana).

Donana nasceu logo depois da abolição da escravidão, mas cresceu como se ainda fosse cativa
na fazenda Caxangá. Na adolescência ficou muito doente e tinha visões horríveis. Um
curandeiro chamado José do Lajedo disse que ela tinha o poder de receber os encantados e a
ensinou a fazer remédios para muitas doenças.

Um dia apareceu na fazenda um homem pedindo emprego. Seu nome era José Alcino e usava
um chapéu muito grande, que chamava a atenção de Donana. Os dois passaram a viver juntos.
Quando Donana estava grávida do primeiro filho, foi avisada que José Alcino tinha sido
encontrado morto na beira da estrada (como acontecerá muito anos depois com o marido de
Belonísia). Tempo depois Donana entrou em trabalho de parto enquanto cortava cana, porque
não teve autorização para ter o filho em casa. O menino recebeu o nome do pai falecido, José
Alcino. Foi o primeiro dos onze filhos que ela teria com diferentes homens.

O curandeiro José do Lajedo insistia em que Donana deveria se tornar curandeira, mas ela se
recusava. Em consequência disso seu filho José Alcino - apelidado de Zeca Chapéu Grande -
enlouqueceu e fugiu de casa. Donana procurou Zeca por toda parte e acabou descobrindo que
ele vivia no mato, protegido por uma onça que parecia estar enfeitiçada. Donana conseguiu
capturar o filho e o trouxe para ser curado por José do Lajedo, prometendo que Zeca assumira
a função de curandeiro.

Zeca finalmente se curou. Nessa época houve uma seca terrível e ele ouviu falar de uma
fazenda chamada Água Negra, em que não faltava trabalho porque havia água em abundância.
Zeca se despediu da mãe e pediu emprego e moradia em Água Negra. Lá se tornou curandeiro,
formou família e anos mais tarde mandou buscar sua mãe. Ao longo dos quase setenta anos
em que Zeca Chapéu Grande viveu em Água Negra, exerceu uma grande liderança e fez muitas
curas. Por isso, muita gente compareceu ao seu velório. O seu enterro foi o último a acontecer
na Viração, o antigo cemitério da fazenda, pois a própria fazenda foi vendida poucos meses
depois da morte de Zeca.

O novo dono, que construiu uma casa bonita e vistosa, mandou avisar que ninguém mais seria
sepultado no cemitério da fazenda. “Aquela mensagem dizia muito mais sobre nossas vidas do
que sobre a morte em si. Se não pudéssemos deitar nossos mortos na Viração era porque, em
breve, também não poderíamos estar sobre a mesma terra.”

Severo se tornou um desafeto declarado do novo dono, que desejava remover os


trabalhadores e suas famílias. “Queremos ser donos de nosso próprio trabalho, queremos
decidir sobre o que plantar e colher além de nossos quintais. Queremos cuidar da terra onde
nascemos, da terra que cresceu com o trabalho de nossas famílias”. Ele fazia discursos sobre os
direitos dos moradores da fazenda e colhia assinaturas para fundar uma associação de
trabalhadores. Os moradores começaram a se mobilizar, apesar das ameaças feitas por
homens que à noite queimavam os galinheiros e destruíam as hortas.

Numa manhã Severo e Bibiana iriam sair de motocicleta para mais uma jornada em busca do
registro da associação de trabalhadores. Bibiana desceu por um momento da garupa para
buscar um documento que pertencera a seu pai. De repente ouviram-se tiros. Bibiana e
Belonísia saíram para ver. Junto da motocicleta “Severo estava caído. A terra aos seus pés
havia se tornado uma fenda aberta e nela corria um rio de sangue”.

Parte 3 - Rio de Sangue (narrada em 1ª pessoa pela “encantada” Santa Rita Pesqueira)

Depois da morte de Dona Miúda, a encantada conhecida como Santa Rita Pesqueira vagava
pela região porque não tinha mais ninguém em quem pudesse se manifestar. Foi assim que
presenciou o assassinato de Severo e o desespero de Bibiana. Severo era um líder admirado e
respeitado. Bibiana quis que o enterro fosse no cemitério da Viração, que estava fechado
desde o enterro do seu pai. O portão do cemitério foi derrubado pelo povo.

O novo dono da fazenda chamava-se Salomão. Ele pretendia transformar a fazenda num
santuário ecológico, por causa da abundância de águas e das matas bem preservadas. “Em
nenhum lugar dos seus planos o povo de Água Negra tinha lugar. Eram meros trabalhadores
que deveriam ser deslocados para dormitórios. Deveriam viver efetivamente longe da fazenda,
porque eram intrusos em propriedade alheia”.

Duas semanas antes da morte de Severo, Salomão e sua esposa partiram para uma viagem. No
dia do enterro, os moradores quiseram queimar a casa do proprietário, mas se contiveram. A
polícia apareceu para obter informações sobre o assassinato. Bibiana contou que ao ver o
corpo de Severo caído um veículo fugiu a toda velocidade. Contudo a polícia suspendeu as
investigações tão logo se mencionou que Severo tinha desentendimentos com o proprietário
da fazenda. Semanas depois o resultado do inquérito é que Severo tinha sido morto numa
disputa do tráfico de drogas por causa de uma suposta plantação de maconha na região.

Indignada, Bibiana resolveu reunir o povo da fazenda para falar. Ela não poderia deixar a
memória de seu marido ser caluniada. O dono da fazenda apareceu para intimidar Bibiana,
mas ela se mostrou corajosa: “Querem desonrar Severo, porque desonrando seu nome
enfraquecem nossa luta. Querem proteger os poderosos. Querem nos calar, nos retirar daqui a
qualquer custo. Querem nos dobrar, mas não vergaremos. Não deixaremos Água Negra”. O
fazendeiro Salomão se aproximou de Bibiana, dizendo que ela não podia acusá-lo. Bibiana
respondeu: “Quem fez isso com Severo irá pagar. A justiça dos homens pode até falhar, mas da
de Deus ninguém escapa”.

Mexendo na sacola de Belonísia, Bibiana ficou surpresa ao achar o antigo punhal de prata e
disse à irmã que sempre teve a curiosidade de saber por qual razão Donana embrulhava o
punhal num pano sujo de sangue.

(Neste ponto conta-se em flashback a história do punhal de Donana).

Aquele punhal tinha sido esquecido no alpendre da sede da fazenda Caxangá. Donana o
roubou para vendê-lo e conseguir assim alimentar os filhos, mas o temor de ser descoberta e
castigada fez com que ela enterrasse o punhal. Depois ela o desenterrou, mas desistiu de
vendê-lo, pois era um objeto muito bonito. Seu filho Zeca Chapéu Grande já tinha ido embora.
Donana passou a viver com um trabalhador novo da fazenda. Esse homem começou a abusar
sexualmente de Carmelita, a filha adolescente de Donana. Para castigá-lo, Donana o seguiu
uma noite, quando ele foi pescar. Com o punhal, ela o sangrou como quem sangra um porco e
jogou-o com os bolsos cheios de pedras para afundar no rio. Quando ela voltou para casa,
descobriu que Carmelita tinha fugido. Donana nunca descobriu o paradeiro da filha e estava
convencida de que Deus jamais a perdoaria.

(A narração volta para a história da morte de Severo).

Desde a morte de Severo, algo parecia ter se rompido dentro de Bibiana. Por vezes ela ficava
apática, outras vezes perambulava inquieta pela casa. À noite, pegava uma enxada e saía pelo
mato. Quando lhe perguntavam onde estivera, ela respondia que tinha ido mexer no quintal,
mas era evidente que nada tinha sido feito lá. Sua irmã Belonísia também passava muito
tempo fora andando pela fazenda. Ela voltava suja, com a roupa muito puída.

O fazendeiro Salomão foi encontrado degolado, caído numa vereda no meio da mata, ao lado
de uma cova grande. Sua esposa Estela ficou desvairada. Bibiana comentou: “É bom que ela
sinta na pele o que eu ainda sinto. Deveriam ter queimado a casa com a mulher e as crianças
dentro. Assim não haveria herdeiros para tentar retirar a gente daqui...”. Indignada com as
palavras da filha, Salustiana deu um tapa no rosto de Bibiana. A polícia apareceu para
investigar a morte de Salomão, mas os moradores de Água Negra duvidavam que algum deles
pudesse ter cometido aquele crime.

Pelo fato de que os moradores disputavam com o fazendeiro o direito de morar naquelas
terras e de que muitos já tinham construído casas de alvenaria contrariando as regras da
fazenda, a suspeita pela morte de Salomão recaiu sobre os moradores. Todavia chegaram
notícias de outras fazendas de Salomão informando das discórdias causadas por ele. O
inquérito não foi adiante. Estela e os filhos mudaram-se para a cidade.

Meses depois funcionários de órgãos públicos ouviram os moradores num processo de


reintegração de posse. Não havia prazo para a solução do problema, mas aquela
movimentação indicava que o governo já reconhecia a existência dos moradores de Água
Negra. Em meio a todas essas mudanças, Inácio, o filho de Bibiana e Severo, despediu-se para
ir estudar na cidade e preparar-se para entrar na universidade. Ele queria ser professor e
participar dos movimentos sociais como o pai havia feito.

No capítulo final, a encantada Santa Rita Pesqueira conta como fez com que Bibiana saísse
todas as noites para ir cavar uma cova e como fez com que Belonísia acreditasse matar uma
onça que rondava a fazenda, sangrando-a junto da cova feita por Bibiana. A onça sangrada
pelo punhal de prata era, na verdade, o fazendeiro Salomão. Belonísia e Bibiana haviam
vencido o opressor. O livro encerra dizendo que “Sobre a terra há de viver sempre o mais
forte”.

4. Aspectos importantes

a. Época dos acontecimentos

O livro narra, sem ordem cronológica, acontecimentos que vão desde o começo do
povoamento da Chapada de Diamantina no século XVIII, quando muita gente foi para a região
em busca de diamantes, até a idade de Inácio, filho de Bibiana, para a universidade.

Não há indicação direta do ano dos acontecimentos, mas algumas alusões permitem situar os
eventos no tempo. Zeca Chapéu Grande nasceu quase trinta anos depois da Abolição da
Escravidão (isto é, na década de 1910). Por volta da época da seca de 1932, ele chegou na
fazenda Água Negra. Bibiana e Belonísia devem ter nascido na passagem da década de 1940
para 1950. Durante a cerimônia do jarê em que o prefeito compareceu, ele tinha vindo num
automóvel Gordini, bastante popular no começo da década de 1960. Mais tarde a televisão e
as antenas parabólicas chegaram ao sertão, o que remete às décadas de 1970 e 1980. Por fim,
o livro menciona o número crescente de evangélicos entre os moradores da fazenda e ao
reconhecimento dos direitos dos quilombolas, o que alude aos anos 90 e 2000.

b. Os quatro níveis do livro

Os acontecimentos do romance Torto Arado podem ser lidos em quatro níveis:

- a reconstituição do povoamento da Chapada Diamantina e das relações de trabalho na região


(nível histórico e geográfico)

- a crônica dos costumes, crença e modo de vida dos moradores (nível antropológico)

- a denúncia da injustiças sofridas pelos pobres, pelos negros e pelas mulheres e sua
resistência diante da opressão (nível dos conflitos e lutas sociais)

- o relato dos sofrimentos e esperanças dos membros de uma família (nível psicológico)

c. A linguagem
Embora tenha aspectos regionalistas (com referências à flora e aos costumes), o livro evita
recriar a fala oral das pessoas sem instrução. Ao invés disso, a linguagem é sempre correta e
bem elaborada, frequentemente com orações longas e comparações extraídas da vida rural e
de elementos da natureza. Um exemplo:

“Quanto mais crianças via nascer, mais sentia como se meu corpo vibrasse, em movimento,
pedindo para parir, como a terra úmida parece pedir para ser semeada; e se não fosse
semeada, a natureza faz ela mesma o seu cultivo, dando a capoeira, o maracujá-da-caatinga e
folhas de toda sorte para curar os males do corpo e do espírito” (Parte 2, cap. 4).

O objetivo dessa linguagem elaborada é evidenciar a dignidade e a profundidade interior dos


personagens apesar de todas as dificuldades em que vivem.

O fato de que o livro seja narrado em 1ª pessoa pelas próprias personagens e não por um
narrador onisciente em 3ª pessoa mostra que o autor quer dar voz aos próprios personagens e
fazer deles protagonistas de sua própria história. Portanto o autor não assume o papel
paternalista e preconceituoso de mostrar os personagens como “pobres coitados” que não
sabem falar e por isso precisariam da voz e das explicações de um narrador culto.

d. As protagonistas

O livro tem como protagonistas-narradoras Bibiana, Belonísia e a encantada Santa Rita


Pesqueira.

Bibiana é a mais desejosa de aprender e ver o mundo. Ela representa o amor pelo
conhecimento e também o reconhecimento de que é preciso transformar as condições sociais
da região.

Belonísia é a mais apegada à terra, às tradições e a mais ligada à avó Donana, cuja lembrança é
sempre associada ao punhal de prata, que se torna uma arma de resistência das mulheres
(instrumento de defesa e de vingança).

As duas irmãs se complementam. Bibiana é a cultura e a voz, Belonísia é a natureza e os


gestos. O acidente com o punhal marcou a união entre as duas: “Foi assim que me tornei parte
de Belonísia, da mesma forma que ela se tornou parte de mim. Foi assim que crescemos,
aprendemos a roçar, observamos as rezas de nossos pais, cuidamos dos irmãos mais novos. Foi
assim que vimos os anos passarem e nos sentimos quase siamesas ao dividir o mesmo órgão
para produzir os sons que manifestavam o que precisávamos se”. (Parte 1, cap. 3)
A encantada Santa Rita Pesqueira representa a experiência coletiva de sofrimento e a
resistência do povo negro, especialmente das mulheres: “Sou uma velha encantada, muito
antiga, que acompanhou esse povo desde sua chegada das Minas, do Recôncavo, da África.
Talvez tenham esquecido Santa Rita Pescadeira, mas a minha memória não permite esquecer o
que sofri com muita gente, fugindo de disputas de terra, da violência de homens armados, da
seca. Atravessei o tempo como se caminhasse sobre as águas de um rio bravo. A luta era
desigual e o preço foi carregar a derrota dos sonhos, muitas vezes”. (Parte 3, cap. 3).

No final do livro, as três protagonistas femininas se unem para matar o fazendeiro Salomão. A
encantada conduz os movimentos de Bibiana e de Belonísia, que sangra o fazendeiro com o
punhal assim como Donana tinha matado o homem que abusava da filha.

e. O elemento sobrenatural

O elemento sobrenatural tem um papel importante no livro de várias maneiras:

- Zeca Chapéu Grande era líder espiritual, curandeiro e elo com o mundo dos encantados (os
espíritos e entidades que associadas aos mortos, à natureza e às tradições): “O curador Zeca
Chapéu Grande tudo podia. Se transformava em muitos encantados nas noites de jarê.
Mudava de voz, cantava, rodopiava ágil pela sala, investido de poderes dos espíritos das
matas, das águas, das serras e do ar. Meu pai curava loucos e bêbados”. (Parte 2, cap. 8)

- A encantada Santa Rita Pesqueira é mencionada de maneira recorrente na narração de


Bibiana e Belonísia e se torna narradora da terceira parte do livro, onde tem um papel
fundamental, pois é ela que guia Bibiana e Belonísia para matarem o fazendeiro Salomão.

- Os pressentimentos e sonhos tem um grande papel no enredo:

“Não sei por que naquela hora me veio a imagem de Donana à cabeça. Minha avó surgiu em
meus pensamentos com sua brabeza, com seu chapéu grande, com seu punhal com cabo de
marfim, com as histórias que me contavam sobre ela.” (Parte 2, cap. 5)

“Durante anos acordei, no meio da noite pesada, molhada de suor, com esse mesmo sonho,
contado de muitas maneiras, mas sempre com o homem bem-vestido, a cerca, o punhal de
Donana e o sangue que brotava do chão”. (Parte 2, cap. 1)

- Muitas situações se repetem de maneira misteriosa. A principal é a situação do homem


encontrado morto ao lado do cavalo. Isso acontece com o primeiro marido de Donana, depois
com Tobias, marido de Belonísia, depois com Severo, marido de Bibiana (caído ao lado da
motocicleta, que é um cavalo motorizado) e no final com o fazendeiro Salomão.

Obs.: A presença de elementos sobrenaturais mostra que o autor procurou ser fiel às crenças e
tradições de origem africana presentes entre os trabalhadores rurais da Chapada Diamantina.
Daí o grande destaque que ele dá para a cerimônia do jarê e para o gradual esquecimento
dessa cerimônia com as mudanças sociais e culturais na região.

f. O título

A figura do arado torto aparece em duas passagens do livro, ambas ligadas a Belonísia.

A primeira passagem está no meio do livro. Quando Belonísia estava sozinha, às vezes ela
tentava praticar a fala e para isso escolheu uma palavra para pronunciar em voz alta:

“Ainda recordo da palavra que escolhi: arado. Me deleitava vendo meu pai conduzindo o arado
velho da fazenda carregado pelo boi (...) Gostava do som redondo, fácil e ruidoso que tinha ao
ser enunciado (...) O som que deixou minha boca era uma aberração, como se no lugar do
pedaço perdido da língua tivesse um ovo quente. Era um arado torto, deformado, que
penetrava a terra de tal forma a deixá-la infértil, destruída, dilacerada (...) como se a faca de
Donana pudesse me percorrer por dentro, rasgando toda a força que tentei cultivar desde
então. Como se o arado velho e retorcido percorresse minhas entranhas, lacerando minha
carne”. (Parte 2, cap. 8)

Na segunda passagem, perto do final do livro, Belonísia relembra o arado torto:

“Os pesadelos recorrentes quando se sentia acuada e perseguida, onde o punhal de Donana
era a lâmina que mais uma vez dividia o corpo, o mundo, a terra e nela fazia correr um rio de
sangue. Você recorda seu pai arrastando o arado antigo de ferro retorcido, pesado, rasgando a
terra em linhas tortas. Aquele arado sobre o qual ninguém falava, um objeto da paisagem,
que chegou muito antes dos pioneiros, que ninguém sabia de onde tinha vindo, manejado
pelas mãos dos trabalhadores mais antigos, dos que vieram de muito longe e sobre os quais
não havia nenhuma história. Dos que abriram a mata muito antes e em suas mãos conduziram
o arado para preparar o campo para a semeadura. Com suas mãos que talvez tivessem os
mesmos nós, as mesmas feridas que o povo da fazenda escondia”. (Parte 3, cap. 11)

Em ambas as passagens a expressão “torto arado” é polissêmica. O arado torto remete à


ligação com a terra, aos esforços do pai e dos trabalhadores antigos. Todavia, na mente de
Belonísia, o arado torto remete também ao punhal (o arado corta a terra, o punhal corta a
carne) e ao rio de sangue (o efeito da carne cortada); remete ao sofrimento interior de
Belonísia (que se sentia cortada por dentro) e à sua incapacidade de falar (o arado torto
representa a deformação da fala de Belonísia). O fato de o arado ser torto remete, por fim, à
ideia de situação injusta (“linhas tortas”). Em resumo, o “torto arado” é imagem da identidade
dos trabalhadores rurais e dos seus sofrimentos individuais e coletivos.

g. A denúncia das condições injustas vividas pelos trabalhadores rurais

O legado da escravidão: a condição dos trabalhadores na fazenda era semelhante à servidão

“O gerente queria trazer gente que trabalhe muito e que não tenha medo de trabalho para dar
seu suor na plantação. Podia construir casa de barro, nada de alvenaria, nada que demarcasse
o tempo de presença da família na terra. Podia colocar roça pequena para ter abóbora, feijão,
quiabo, nada que desviasse da necessidade de trabalhar para o dono da fazenda, afinal era
para isso que se permitia a morada. Podia trazer mulher e filhos, melhor assim, porque quando
eles crescessem substituiriam os mais velhos. Seria gente de estima, conhecida, afilhados do
fazendeiro. Poderia ficar naquelas paragens, sossegado, sem ser importunado, bastava
obedecer às ordens que lhe eram dadas. Vi meu pai dizer para meu tio que no tempo de seus
avós era pior, não podia ter roça, não havia casa, todos se amontoavam no mesmo espaço, no
mesmo barracão”. (Parte 1, cap. 7)

“Naquela terra hostil de sol perene e chuva eventual, de maus-tratos, onde gente morria sem
assistência, onde vivíamos como gado, trabalhando sem ter nada em troca, nem mesmo o
descanso, e as únicas coisas a que tínhamos direito era morar lá até quando os senhores
quisessem e a cova que nos esperava fosse cavada na Viração, caso não deixássemos Água
Negra”. (Parte 2, cap. 8)

Os fazendeiros estavam quase sempre ausentes

“A família Peixoto queria apenas os frutos de Água Negra, não viviam a terra, vinham da
capital apenas para se apresentar como donos, para que não os esquecêssemos, mas, tão logo
cumpriam sua missão, regressavam.” (Parte 1, cap. 9)

Os trabalhadores da fazenda tinham uma relação profunda com a terra, a família e a


comunidade
Salustiana, mãe de Bibiana e Belonísia, diz: “Cheguei aqui moça e jovem. Aqui vivi, criei meus
filhos, labutei com meu marido, vi meus vizinhos e compadres serem enterrados lá no
cemitério que vocês fecharam. Fui parida, mas também pari esta terra” (Parte 3, cap. 7)

A questão da terra: direito dos trabalhadores rurais

“Um dia, meu irmão Zezé perguntou ao nosso pai o que era viver de morada. Por que não
éramos também donos daquela terra, se lá havíamos nascido e trabalhado desde sempre. Por
que a família Peixoto, que não morava na fazenda, era dita dona. Por que não fazíamos
daquela terra nossa, já que dela vivíamos, plantávamos as sementes, colhíamos o pão. Se dali
retirávamos nosso sustento”.

“Queremos ser donos do nosso próprio trabalho, queremos decidir sobre o que plantar e colher
além de nossos quintais. Queremos cuidar da terra onde nascemos, da terra que cresceu com o
trabalho de nossas famílias, completou Severo”. (Parte 2, cap. 21)

A comunidade quilombola e o seu direito à propriedade da terra

[Meu irmão Zezé] “vivia com Severo para cima e para baixo, entre um trabalho e outro, para
ganhar a atenção dos moradores. Não podemos mais viver assim. Temos direito à terra. Somos
quilombolas”. (Parte 2, cap. 21)

“Severo fez discursos sobre os direitos que tínhamos. Que nossos antepassados migraram para
as terras de Água Negra porque só restou aquela peregrinação permanente a muitos negros
depois da abolição. Que havíamos trabalhado para os antigos fazendeiros sem nunca termos
recebido nada, sem direito a uma casa decente, que não fosse de barro, e precisasse ser refeita
a cada chuva. Que se não nos uníssemos, se não levantássemos nossa voz, em breve
estaríamos sem ter onde morar”. (Parte 2, cap, 24)

“Minha avó contava que os negros de Lagoa Funda chegaram num tempo que ninguém sabia
dizer. Cada um tinha sua tapera, tinham suas roças, plantavam na vazante do rio São
Francisco. Os filhos iam nascendo e iam fazendo suas casinhas e botando suas roças onde os
pais já tinham. Eram só o povo e Deus. (...) Lagoa Funda deve ter começado com o povo que
fugiu de alguma fazenda ou ganhou liberdade de algum fazendeiro. Mas ali ninguém quis falar
sobre isso. Todo mundo nascia livre, sem dono. Apagaram essa lembrança do cativeiro”. (Parte
3, cap, 7)

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