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A

Caçada

ELIEL HENRIQUE
GADOTTI
Agradecimentos

Gostaria de agradecer a uma pessoa que


conheço desde quando pequeno, minha
querida amiga Amanda Dallagnolo, que foi a
primeira pessoa a ler a história e me incentivar
a continuar.
Prólogo
1950

Estava um tempo escuro, sombrio. Todas em


volta estavam nervosas, trocando olhares
umas com as outras. Podiam ouvir o som do
mover das folhas se arrastando pelo chão, e o
jeito assombroso que as árvores se
balançavam ao seu redor. Elas esperavam
inquietamente a Mestra dizer alguma coisa.
De mãos dadas, todas as mulheres presentes
formavam uma roda, agora olhando para a
Mestra que estava no centro, que dizia:

– A partir de agora, a vida de vocês terá um


sentido completamente diferente. Vocês
escolheram este caminho, e terão
consequências por causa disso. Mas
lembrem-se que as vantagens serão sempre
maiores.
A Mestra aparentava ser forte, mesmo com
uma idade tão avançada. Tinha rugas na pele,
e usava um manto roxo que ia além dos pés.
Pôs a mão em seu livro que se encontrava
logo a sua frente, um tanto quanto grande,
segurado por suas mãos brancas e gélidas.
Abriu-o e começou a ler. Neste momento,
todas as mulheres que estavam na roda
estenderam as mãos simbolizando um
juramento e repetindo vagarosamente o que a
Mestra lia no seu misterioso livro cinzento e
muito, muito antigo.

– Vocês devem ser leais a Ordem. –


começou a Mestra – Tudo o que fizerem a
partir de agora será unicamente para a
contribuição e principalmente o crescimento
da Ordem. Vocês vão casar, ter filhos, ou
filhas de preferência, e depois... Bom, vocês
sabem. – fez uma pausa para um suspense e
abriu um sorriso aterrorizante – Está feito.
Podem ir agora, vocês estão dispensadas.
Cuidem para que ninguém as veja sair deste
esconderijo.

As mulheres que agora faziam parte da


Ordem novamente trocaram olhares entre si e
saíram todas andando em fileira em destino à
Aldeia de Rahzar, caminhando por uma trilha
escondida e repleta de grandes árvores
agitadas ao redor. Voltaram à aldeia, e, com
muita cautela, não deixaram com que nenhum
aldeão pervertido as visse sair do esconderijo.

Entre elas, havia uma em especial.


I
1985

– Isto não existe mais, Annie. – afirmou


Patrick – Quantas vezes eu vou ter que lhe
dizer? Há séculos isso foi desfeito, nossa
aldeia vive em paz hoje. Além do mais, isso
são somente boatos, ninguém sabe se é
verdade.

Annie olhava de modo profundo para os olhos


azulados de Patrick, pensando em como seria
bom beijá-lo, abraça-lo. O pior de tudo isso é
que Annie não sabia se ele a amava. Era um
amor platônico, não correspondido. Conhecia
Patrick desde quando tinha quatro anos de
idade, quando seu pai foi encontrado morto ao
lado de um poço no centro da aldeia. Até hoje
ela se lembra do caos na aldeia, as pessoas
correndo em direção ao poço, para ver se a
morte do pai de Patrick era realmente
verdade. Annie também foi correndo ao lado
das outras pessoas. Quando chegou lá, todos
olhavam espantados, aterrorizados com o que
viam. A imagem de Patrick chorando ao lado
do corpo de seu pai foi inesquecível, triste
demais para ser apagada de sua mente. Era
um dia de muita neve, como quase todos os
dias na Aldeia de Rahzar. Foi neste momento,
olhando para Patrick ajoelhado ao lado de seu
pai, que Annie o conheceu. Uma poça de
sangue se destacava na neve com um
vermelho vivo, e marcas de facadas se
encontravam no cadáver.

– Eu queria poder acreditar em você, Patrick.


Mas, como você acha que seu pai foi morto
naquele dia? E todos os outros homens
mortos a facadas? Você sabe muito bem que
todos aqui na aldeia são inocentes
trabalhadores, que tem uma família para
sustentar. Ninguém teria coragem de fazer
aquilo com seu pai. Eu sei que não gosta de
tocar neste assunto, mas sei o que você
sente. Compartilhamos a mesma dor, lembra?
– Lhe entendo perfeitamente, Annie. Mas
acredito que sejam só coincidências. Essa tal
de Ordem já não existe mais, ou talvez nunca
tivesse existido.

– Espero que você esteja certo, pois eu tenho


medo, muito medo. Já faz algumas semanas
que mãe minha anda me fazendo as mesmas
perguntas.

– Não ligue, ela só está curiosa. – Patrick não


estava com vontade de discutir sobre este
assunto. Tinha mais coisas a fazer no restante
de seu dia, assim como todos os homens da
Aldeia de Rahzar, que todos os dias acordam
cedo e trabalham até o pôr do sol, enquanto
suas mulheres cuidam dos filhos e da casa.
Do mesmo modo, Patrick também precisava
continuar o seu trabalho, mas não sabia como
dizer isto de forma agradável a Annie. – Bom,
se me permite, preciso ir agora. O trabalho me
chama.

Patrick saiu, caminhando vagarosamente


sobre a neve. Enquanto andava, Annie o
observava caminhar. Seus cabelos negros ao
vento, sua roupa suja do trabalho duro. Ficou
ali, parada, somente olhando-o partir.
– Annie! – Zion estava parado logo atrás dela,
querendo saber o motivo de ela estar parada,
olhando para o vazio.

– Ah, irmão, desculpe-me. O que veio fazer


aqui? Você não deveria estar trabalhando?

– Vi você conversando com Patrick, então


vim lhe recordar do que mamãe lhe disse.

– Eu sei o que mamãe me disse, mas eu não


ligo. Ela não pode mandar na minha vida. Pelo
menos, não em quem eu amo.

– Você sabe que ela não aceita que você


goste dele. Você já foi avisada para não se
apegar de mais a ele, Annie. Por que insiste
em continuar?

– Escute-me, Zion. Você é meu irmão, e eu te


amo. Mas não quero que você se meta na
minha vida. Deixe-me em paz.

Zion permaneceu calado. Lançou um olhar


bruto para Annie de forma que ela pôde
entender o significado, depois se virou e saiu.

Annie foi para sua casa. Era pobre e muito


humilde, pequena e feita de madeira, assim
como a maioria das casas da aldeia. Entrando
lá, avistou sua mãe em frente ao fogão. Era
uma bela mulher, sorridente e animada na
maioria das vezes. Demonstrava um imenso
amor e afeto por Annie, sua filha mais nova.
Exceto por Zion. Annie sempre se perguntou
por qual motivo Zion e sua mãe Vivian quase
nunca conversam. Raramente cumprimenta
Zion quando ele chega em casa cansado do
trabalho. Não trocam olhares, não se beijam,
não se abraçam, e não demonstram amor um
pelo outro. Annie cumprimentou sua mãe com
um beijo na bochecha e subiu rapidamente
para seu quarto no sótão. Ficou lá, lendo,
escrevendo e desenhando, que era o que
mais gostava de fazer. Tinha diversos livros, e
gostava de escrever os seus. Geralmente
escrevia sobre romance, sempre pensando
em Patrick. Grande parte de seus desenhos
era de Patrick, é claro. Sem dúvida ela o
amava. Às vezes, desenhava seu pai
biológico, e a saudade batia forte em seu
peito. Pegou um de seus livros debaixo da
cama, e abriu. Mal começou a ler e Vivian a
chamou:

– Filha! Desça aqui embaixo! – Vivian falou


com uma voz que soou um tanto quanto
preocupada.
Annie desceu as escadas, chateada por sua
leitura ter sido interrompida.

– Venha jantar. – disse Vivian.

– Não vai esperar Zion?

– Não.

As duas jantaram e dialogaram ao mesmo


tempo. Conversaram sobre diversos assuntos,
até que Annie conseguiu tocar em um assunto
que a perturbava muito.

– Mãe, por qual motivo você não gosta do


seu filho mais velho, o Zion? – Annie ousou
arriscar a pergunta, mas estava curiosa.

– Como assim, Annie? É claro que eu gosto


dele, afinal, ele é meu filho. Por que me
pergunta isso?

– Você sabe mãe. Não finja que não sabe.


Você o trata como se não fosse parte da
família. E as coisas só pioraram depois que
seu segundo marido morreu.

– Annie, acredite em mim, eu o trato como


trato você. – definitivamente Vivian não sabia
mentir. E Annie sabia disto. – Você não deve
pensar uma coisa dessas nunca, em hipótese
alguma. Entendeu?

– Sim, mãe. Mas saiba que, por mais que


você tente me convencer, e por mais que eu
me esforce, eu não consigo acreditar em
você. Sinceramente, você cuida melhor das
suas plantas do que Zion. Tenho pena dele.

– Você não deve se meter em minha vida


desse jeito, Annie. – Vivian estava ficando
furiosa. Na maioria das vezes era uma mulher
calma, exceto quando duvidavam dela. – Se
amo ou não ele, isso não é do seu interesse.

O silêncio prevaleceu na cozinha por um


longo tempo. Continuaram a jantar, enquanto
Annie olhava para todos os móveis velhos de
sua casa, menos para sua mãe. Vivian tinha
razão, Annie não deveria se meter em sua
vida, mesmo que estivesse apenas curiosa.
Depois dessa intensa conversa, Annie pôde
ter certeza que sua mãe definitivamente não
tinha nenhum sentimento de amor por Zion, só
não conseguia saber o porquê. Annie
levantou-se devagar e esgueirou-se até seu
quarto, sem dizer nenhuma palavra e nem
olhar para sua mãe. Sentiu um remorso
quando levantou da cadeira. Sabia que não
deveria falar sobre Zion, e sabia também que
Vivian estava certa em lhe dar uma bronca.
Ela a amava, e sabia que no outro dia tudo já
estaria certo entre ela e sua mãe.

Já no seu quarto, ela abriu a janela e olhou


afora para deixar que seus pensamentos
fluíssem. O que viu a partir deste momento
não foi nada normal. Avistou seu irmão
correndo pela neve no escuro, atrás de uma
mulher desesperada. Annie estranhou, mas
não podia fazer nada daquela distância.
Continuou observando, enquanto Zion corria
furiosamente atrás da mulher aparentemente
inocente. Alcançou-a com facilidade e,
enquanto todos da aldeia se alojavam em
suas casas, agarrou-a e levou para uma
floresta localizada na aldeia. Geralmente,
ninguém costumava ir naquela floresta, exceto
quando fosse para caçar, o que raramente
acontecia. O mais espantoso veio depois,
quando Zion tirou uma faca de seu bolso e
apontou para o pescoço da pobre mulher, que
momentos depois Annie reconheceu. Era
Ravel, uma comerciante da aldeia. Ninguém o
via, pois todos os homens iam para suas
casas logo depois do pôr do sol, exceto Annie,
é claro, que o observava aterrorizada da
janela de seu quarto. Zion infiltrou-se na
floresta adentro, sumindo na escuridão e
tampando a boca de Ravel para que ela não
gritasse. Annie fechou a janela e foi
rapidamente descendo as escadas, sem
palavras.

– Mãe? – gritou ela, agora cada vez mais


desesperada quando descobriu que Vivian
não estava mais em casa.

Tentou abrir a porta para sair e descobrir o


que estava havendo. A porta estava trancada.
Tentou mais uma vez. Não havia jeito. Quem
poderia ter trancado a porta? A única pessoa
que estava na casa além dela era sua própria
mãe, Vivian. Subiu as escadas para o seu
quarto e olhou janela afora novamente. Desta
vez viu Patrick, o homem que amava,
correndo para onde Zion levara a
comerciante. Mergulhou entre as árvores e
continuou correndo, sumindo de vista. Annie,
totalmente confusa, nada podia fazer. Não
adiantaria nada gritar, pois era muito provável
que ninguém escutaria um grito vindo de tão
longe. Olhou para baixo, e pensou em pular.
Não seria uma má ideia, afinal, o chão estava
coberto de neve. Calculou quantos metros
teria da janela ao chão. Apoiou-se com os
braços na janela e fez força para levantar-se.
Colocando os pés, olhou para baixo mais uma
vez e pulou. Caindo na neve, percebeu que
não foi tão difícil como imaginara. Annie era
uma garota frágil, mas pular da janela não foi
uma tarefa tão difícil. Quando levantou-se,
avistou sua mãe correndo da direção em que
Zion, Patrick e Ravel tinha ido. Ela estava lá,
com eles. O que poderia estar acontecendo?
Annie ficava cada vez mais confusa.

– Filha! O que você está fazendo? – Vivian


correu mais uma curta distância, até chegar
perto de sua filha para poder falar. – Eu
tranquei a porta para que você ficasse dentro
de casa. Como você saiu?

– Pulei a janela.

– Filha, você não pode simplesmente pular a


janela e ir me procurar. Tem alguma ideia do
que está acontecendo? – Vivian foi até a porta
e abriu-a com a chave que guardava em seu
bolso. – Desta vez, vou deixar passar. Agora
entre. Vá para o seu quarto.

– Como assim, “vá para o seu quarto”? E isso


tudo que aconteceu agora, de repente, o que
foi? Acha que não mereço uma explicação?
– Sim, você merece. Mas não pode e nem
deve saber de nada.

Zion chutou a porta, quase a quebrando.


Segurava um corpo em seus braços, que
tanto Annie quanto Vivian reconheceram
imediatamente.

– Ravel! – gritou Annie – O que você fez com


ela, Zion?

– Você não entende agora, Annie, mas vai


entender, eu juro. Foi necessário. Trouxe o
corpo para casa, ninguém pode vê-lo.
Ninguém pode saber que ela foi morta. Ainda
mais Ravel, a comerciante da aldeia,
conhecida por todos.

– Está vendo, Annie? Seu irmão é um


assassino. Como quer que eu o ame? Eu
tentei defender Ravel, mas não tive sucesso.
Seu irmão é forte, mais forte que eu. Me
impediu de defendê-la, e depois a matou. Vi
com os meus próprios olhos.

– Não. Não pode ser. Porque você faria isso,


Zion? Existe algum motivo especial?
– Existir, existe sim. Mas você não pode
saber. Pelo menos, não agora.
II
1985

Uma frente fria chegou à Aldeia de Rahzar


mais uma vez. A neve caía intensamente sob
os telhados das casas. Nos becos, alguns
comerciantes vendiam seus objetos feitos em
casa. Os homens continuavam a trabalhar
enquanto seus filhos corriam pela aldeia. A
floresta coberta por neve embelezava a
pequena aldeia. Era um dia normal para todos
os aldeões. Exceto para Annie. Ela acordou e
abriu sua janela, olhando para a floresta.
Subitamente, memórias vieram em sua
cabeça da noite passada. Estava cheia de
dúvidas, mas preferiu esquecer os
acontecimentos recentes.

Olhou-se no espelho. Seus cabelos ruivos e


bagunçados combinavam perfeitamente com
sua pele branca e pálida. Sentia-se fraca,
exausta. Seus olhos castanhos pareciam
refletir toda a tristeza que sentia naquele
momento. Não parecia a mesma pessoa que
na noite passada. Olhou para o relógio
pendurado na parede de seu quarto. Eram
pouco mais do que seis horas da manhã.
Annie havia acordado cedo demais, pois não
conseguira dormir direito. Pensou em voltar
para a cama e ficar lá o dia inteiro. Mas não,
pensou ela, precisava ser forte. Descendo as
escadas, encontrou Patrick e seu irmão
conversando baixo, como se fosse um
segredo. Não fez nenhum barulho para que
não soubessem que ela havia acordado.
Então, parada ali na escada, ouviu Zion dizer:

– Não queria deixar você perto dela. Tinha


medo que você a revelasse coisas que... Bom,
você sabe ao que eu me refiro.

– Lhe entendo perfeitamente Zion. Mas você


pode confiar em mim, nunca ousaria contar
nada para Annie.

– Minha mãe Vivian não queria deixar você


perto dela. E você sabe muito bem por que.
Mas eu confesso que também não queria.
Não gostava de ver vocês dois dialogando.
Annie é minha irmã, e eu a amo. Eu achava
que você pudesse contar a verdade a ela, e
esse era meu maior medo. Mas agora, sei que
você não faria isso. Ajude-me a protegê-la,
Patrick, por favor.

– Será um prazer, Zion. Afinal, lutamos por


um objetivo em comum. Enquanto pudermos
protegê-la, é isso o que faremos. Mas, e
quando Vivian fizer a Proposta para Annie? É
inevitável que isto aconteça.

– Eu sei, é inevitável. Mas Annie não pode e


nem vai aceitar a Proposta. Claro, estou
ciente de que há mulheres que concordam e
fazem parte. Mas Annie não. Não posso
deixar que isso aconteça.

– Você precisa dizer a Annie a verdade, Zion.


Caso contrário, Vivian dirá a verdade a ela. E
você não quer que isto aconteça.

– Com certeza não é isto o que eu quero.


Não consigo nem imaginar eu ser obrigado a
matar minha própria irmã. Mas no tempo certo
eu direi a ela, Patrick. Tem a minha palavra.
– Assim espero, Zion. Os Caçadores
precisam prevalecer contra a Ordem. Assim
como nós, elas também têm um objetivo em
comum. São injustas, obscuras e vingativas.
São capazes de arrancar nossas cabeças e
abri-las, para depois comer nossos cérebros.

– Sei muito bem do que a elas são capazes,


Patrick. Annie nunca lhe perguntou nada
sobre a Ordem?

– Perguntou sim. Mas eu disse a ela que não


acredito. Todos aqui da aldeia conhecem pelo
menos um pouco da história da Ordem, mas
quase todos não acreditam. Annie, por outro
lado, insiste em acreditar, ainda mais depois
que ela viu meu pai morrer quando eu tinha
apenas quatro anos de idade. Sem contar a
morte dos seus dois pais. Ela tem medo, Zion,
muito medo.

Annie foi cautelosamente subindo a escada e


voltando para seu quarto. Assustada com tudo
o que ouviu, fechou a porta, fazendo um
barulho estrondoso.

– Droga! – ela disse, baixinho.

Assim que ouviram o barulho da porta,


Patrick e Zion subiram as escadas para saber
o motivo do barulho. Zion foi na frente, abrindo
a porta do quarto de sua irmã. Annie estava
dormindo tranquilamente, ou pelo menos
fingindo que estava. Felizmente, conseguiu
enganar Zion. Eles trocaram olhares
duvidosos e voltaram à cozinha.

– Foi muito bom ter essa conversa com você,


Patrick. Agora devo sair antes que minha mãe
chegue. Não posso mais viver aqui, preciso
escolher outro lugar para morar, o mais longe
possível desta casa, por mais que a aldeia
não seja lá tão grande. Minha mãe já não me
amava antes, quanto mais agora que descobri
o que ela é. Como nunca duvidei de nada
antes?

– Não sei, Zion, realmente não sei. Em todos


esses anos, você só descobriu agora. E sabe
agora porque ela não o ama. Você é
totalmente o oposto do que ela é. Não preciso
dizer o que, afinal, as paredes têm ouvidos.
Encontramo-nos mais tarde no trabalho. Até
mais Zion, e boa sorte.

Patrick se despediu enquanto Zion fechava a


porta. Sentou-se na cadeira para pensar. Era
arriscado ficar ali naquela casa. Precisava sair
o mais rápido possível. Neste momento, Annie
apareceu.

– Olá, irmão. – Annie falava como se tivesse


esquecido que seu próprio irmão havia
cometido um assassinato.

– Olá, irmã. Como vai? Está melhor?

– Sim, estou. Um pouco confusa, é claro, mas


estou. Posso ir direto ao assunto? – Annie
sentou-se na cadeira em frente a Zion.

– Se for rápida, sim. Estou com pressa.

– O que foi aquilo ontem à noite? Por que


diabos você matou Ravel? Ela era apenas
uma comerciante, totalmente inocente.

– Ela não era nem um pouco inocente,


acredite você ou não. As aparências
enganam. Tive que matá-la, foi necessário.

– Ouvi a conversa entre você e Patrick. Então


é por isso que você não gosta de me ver perto
dele? Para que ele não me revele algum tipo
de segredo?

– Exatamente. Mas agora, sei que ele nunca


teria coragem de lhe contar nada que não
deve. Isso é um dever meu. Mas, mudando de
assunto, você não deveria estar ouvindo
nossa conversa. Não estava dormindo?

– Não. Sei fingir muito bem, acredite. Ouvi


vocês falarem alguma coisa relacionada a
Caçador. O que seria isso?

– Não se precipite Annie, tudo tem o seu


tempo. Por agora, é mais seguro que você
não saiba de muita coisa.

Inesperadamente, Vivian abriu a porta,


entrando de surpresa. Olhou de relance para
Annie, e depois para Zion.

– Mãe! Onde você estava? – disse Annie.

– Resolvendo algumas coisas pessoais,


minha filha.

– Acho melhor eu me retirar. – Zion olhou


seriamente para sua mãe e depois se
levantou da cadeira, passando pela porta e
saindo de casa.

– Como assim? Fique aqui, Zion. – Annie


tentou insistir, mas seu irmão já havia saído. –
O que está acontecendo, mãe?
– Não se preocupe, seu irmão só está aflito
pelo o que aconteceu ontem a noite.

– Ele me disse que foi necessário, e que


Ravel não era inocente.

– Digamos que Zion tem suas crenças, e eu


tenho as minhas. Mas gostaria que você
esquecesse isso agora. Hoje você faz vinte e
um anos de idade, lembra? E é uma data mais
especial para mim do que para você, acredite.
Hoje é o dia em que você, minha filha, terá um
objetivo para o resto de sua vida. – Annie até
havia se esquecido de que aquele dia era seu
aniversário. Tantos pensamentos perturbavam
sua mente, que simplesmente havia
esquecido. Mas agora, por um momento
apenas, havia ficado feliz de lembrar isso. –
Farei a Proposta, e se for do seu agrado, você
irá aceitá-la. Por enquanto, aproveite o dia e
não questione nada. Mais tarde voltamos a
conversar. Mas lembre-se de ficar longe de
Patrick, já te disse que ele não é o homem
certo para você. – ou talvez nenhum seja,
pensou Vivian.

Annie permaneceu calada. Não sabia o que


dizer, e não sabia mais em que palavra
confiar. Apenas acenou com a cabeça em
sinal de confirmação e abriu um sorriso sem
mostrar os dentes. Foi para seu quarto, pegou
um casaco e foi para a fora. Caminhou até o
centro da aldeia. Sentia muito frio, mas não
queria ficar em casa. De longe, conseguiu ver
Patrick carregando algumas tábuas de
madeiras pesadas. Sentou-se em um banco
ali perto, e ficou ali apenas pensando. Agora
nevava mais do que quando acordara, e
alguns homens foram chamados para tirar a
neve de cima das casas.

Olhou para a floresta, local onde seu irmão


havia assassinado Ravel, a aparentemente
inocente comerciante da aldeia. Lembrou-se
da cena que tinha visto da janela de seu
quarto. Zion apontando a faca para Ravel e
levando-a floresta adentro. Patrick correndo
para onde Zion estava, e sua mãe correndo
do mesmo local. Annie sacudiu a cabeça para
que os pensamentos ruins saíssem de sua
mente. Tentava pensar em coisas boas, mas
não conseguia. Pensou na tal Proposta de
que sua mãe havia falado. Qual seria o
significado disso?

– Irmã! – Zion gritou para Annie, enquanto


vinha andando em sua direção.
– Olá de novo Zion. Já é a segunda vez que
sai do seu trabalho para vir conversar comigo.
E a primeira vez foi inútil.

– Eu sei, eu sei. Mas dessa vez é importante.


Preciso que me fale sobre o que você e nossa
mãe conversaram assim que saí de lá.

– Porque quer saber?

– Logo você saberá, prometo. Mas preciso


que me diga.

– Conversamos sobre a morte de Ravel. Ela


disse algo sobre ela ter suas crenças, e você
as suas. Falou que hoje faço vinte um anos, e
que é uma data mais especial para ela do que
para mim, mas não entendi por que. Disse
que vou ter um objetivo para toda a vida, e
falou também sobre uma tal de Proposta, que
obviamente também não entendi. Disse para
eu não questionar nada, e ficar longe de
Patrick. Foi isso. Agora me diga, porque está
tão interessado?

– Você corre perigo, Annie. Preciso que


compreenda o que direi agora, é para sua
segurança. – Zion, totalmente preocupado,
segurava as mãos de sua irmã. De longe,
Vivian gritou pelo nome de sua filha:
– Annie! Venha já para casa!

– Preciso ir, Zion, desculpe-me. O que você


queria me dizer? – Vivian lançou um olhar
para Zion que seria capaz de amedrontar
qualquer um.

– Droga, isto não pode estar acontecendo!


Ouça-me, Annie, agora não tenho mais tempo
para lhe dizer, você precisa ir, mas lembre-se:
qualquer tipo de proposta que for feita a você,
recuse. Entendeu?

– O que? Que tipo de proposta? – Agora


Annie já estava de pé, e sua mãe gritava mais
uma vez pelo seu nome.

– Só mais uma coisa. – disse Zion, falando


baixinho, mas de modo que Annie pôde
entender. – Meus parabéns, eu te amo.

– Obrigada. Eu também.

Annie foi correndo em direção a sua mãe,


que chamava seu nome pela terceira vez.
Chegando lá, já não sentia mais tanto frio
quanto antes.

– Entre, minha filha. Aqui dentro está mais


quente. Sente-se, precisamos conversar.
– Estou ouvindo. – disse Annie, agora
assustada por lembrar-se do que Zion
acabara de lhe falar.

– Você precisa saber algo sobre mim. Há


anos, desde 1950, eu dei um sentido para a
minha vida. Quando tinha sua idade, no dia do
meu aniversário, minha avó fez a Proposta
para mim, e eu aceitei. E agora, minha filha,
está na hora de eu passar isso adiante. Você,
Annie Lotharus, deseja, assim como eu
desejei, fazer parte da Ordem?
III
1965

Sebalos corria o mais rápido que podia.


Procurava um lugar para se esconder, mas
não achava nada que o favorecesse. Sua
única esperança naquele momento apareceu
diante de seus olhos. Olhou para a floresta a
sua frente, calma e silenciosa como sempre.
Esforçou-se para chegar nela. Chegando lá,
Sebalos sentiu-se cansado, exausto, estava
correndo fazia tempo. Com os braços,
empurrou para os lados as plantas que
impediam seu caminho e continuou correndo
entre as árvores da floresta
desesperadamente. Aquela floresta era agora
sua única chance de sobrevivência, esperava
ele. Não muito distante de Sebalos, uma
mulher o seguia correndo. Mas não era uma
mulher qualquer. Era sua mulher, cujos olhos
estavam cheios de fúria. Mesmo sem
entender o motivo daquilo, seguiu em frente,
desesperado. Como qualquer aldeão de
Rahzar, Sebalos já tinha ido naquela floresta
algumas vezes, mas nunca havia ido tão
distante. Desconhecia aquela parte da floresta
que se encontrava agora. Estava perdido, mas
não tinha outra opção.

Como se já não bastasse, sentia que dali pra


frente não iria conseguir mais correr de jeito
algum. Esforçou-se para correr um pouco
mais, mesmo estando tão exausto. Avistou
uma abertura no meio da floresta, formando
um círculo no chão logo à sua frente. O círculo
era coberto por árvores ao redor, e no centro
dele havia cerca de vinte mulheres. Sebalos
olhou para trás e viu sua mulher se
aproximando. Correu para perto das
mulheres, talvez pensando que elas fossem
lhe ajudar, mas estava errado. Duas delas o
seguravam seus pulsos, impedindo-o de fugir,
enquanto outra segurava uma corda em suas
mãos. Amarram-no preso em uma grande
árvore, enquanto sua mulher se aproximava
mais.
– Vivian? O que significa tudo isso? – disse
Sebalos, mais confuso do que amedrontado.

– Apenas fique em silêncio e peça a ajuda de


seus deuses, se acha que isso adiantará
alguma coisa.

Estava anoitecendo e a lua já começava a


brilhar no céu escuro. Ventos frios e fortes
balançavam os longos cabelos ruivos de
Vivian, enquanto ela tirava uma adaga
escondida em algum lugar no seu vestido.
Aproximando a adaga do coração de Sebalos,
enquanto ele estava amarrado e totalmente
indefeso, ela disse:

– Sei que você não entende o que está


acontecendo, mas este é meu dever como
membra da Ordem. Você não merece viver,
Sebalos.

– Sou seu marido, Vivian. Se me ama, porque


está fazendo isso comigo?

– A questão é que eu não te amo, seu inútil.

Antes que Vivian fizesse um movimento que


tiraria a vida de Sebalos, ele conseguiu dizer:

– Vivian, você está grávida.


Ela fingiu não ouvir as últimas palavras de
Sebalos, e enfiou com força a adaga em seu
peito. Sentiu prazer em ver o sangue escorrer.
Como se não bastasse tirar a sua vida, ela
cortou profundamente seu peito até conseguir
tirar seu coração com a própria mão.

– Conseguimos mais um. Leve o coração de


Sebalos para o nosso depósito. – disse Vivian
para as outras mulheres, olhando para a
Mestra e depois sorrindo ao olhar o coração
ensanguentado.

Ravel, a comerciante da aldeia, aproximou-se


de Vivian e disse:

– Vivian, você prestou atenção nas últimas


palavras dele? Você está grávida.

– Claro que sim, Ravel, e espero que seja


uma menina. Caso contrário, não terei dó
algum de matar o menino assim que ele
nascer. – Vivian observava a Mestra
aproximar-se, e notou que estava querendo
falar com ela. Ravel retirou-se, dando espaço
para a Mestra.

– Meus parabéns Vivian. Você está


contribuindo grandemente para o crescimento
da Ordem.
– Obrigada, Mestra. É um prazer.

– Em 1950, quando lhe tornei parte da


Ordem, tinha certeza que eu não iria me
arrepender. Mas agora, tenho uma nova
missão para você. Preciso que você case com
outro homem da aldeia, finja estar apaixonada
por ele, e faça com que ele o ame. Depois,
mate-o.

– Assim o farei, Mestra.

Assim como as outras mulheres, Vivian saiu


da floresta. Demorou um pouco até chegar à
aldeia, pois foram andando. Como sempre,
tomaram cuidado para que ninguém as visse.
Cada mulher foi para sua casa cumprir seus
afazeres, como se nada tivesse acontecido,
como se uma morte não acabasse de
acontecer.

1983
Todos na aldeia estavam felizes naquela
noite. A música tocava alto, os homens e as
mulheres bebiam e dançavam juntos.
Algumas pessoas preferiam ficar em volta da
fogueira, esfregando as mãos para se aquecer
naquela noite fria. Típico da Aldeia de Rahzar.
Todos os anos os aldeões se reuniam para
festejar em uma noite, sem motivos. Alguns
diziam que era para manter a união e
comunhão da aldeia. Algumas mulheres
diziam que era desculpa dos homens para
escapar do trabalho. De qualquer modo, todos
gostavam. Annie, com apenas dezoito anos
de idade, flertava com Patrick enquanto sua
mãe conversava com seu padrastro Locky.
Depois de ter conversado um bom tempo com
Patrick, Annie sentiu-se cansada. Havia
dançado e bebido um pouco, mesmo sendo
tímida. Despediu-se de Patrick com um beijo
em sua bochecha fria, e foi andando em
direção a sua casa. Já era tarde da noite e,
mesmo com todos os aldeões ainda
festejando sem parar, ela desejava dormir.

– Boa noite, então. – disse Patrick, triste


porque Annie já estava de saída. Não tinha
certeza se ela tinha ouvido ou não.
Chegando em casa, tirou seus sapatos e
jogou-os de lado, exausta. Deitou-se na cama
e em questão de minutos pegou no sono.
Enquanto isso, Vivian e seu padrasto Locky
continuavam conversando em meio à
multidão.

– Vamos nos distanciar um pouco. – Vivian


disse com um sorriso malicioso no rosto para
Locky e depois olhou de relance para Ravel,
que estava escondida a poucos metros dali, e
fez um sinal com a cabeça. Ravel
imediatamente saiu da posição que estava.

Locky devolveu o sorriso e segurou a mão de


Vivian. Foram andando para longe de todos
que estavam ali, sumindo de repente. Alguns
minutos se passaram depois disso, e não
demorou muito até que todos ouviram um grito
desesperador. Annie acordou assim que
ouviu. Sentou-se na cama e colocou os
sapatos. Esgueirou-se até a cozinha e depois
até a porta de saída. Assim que abriu a porta,
viu diversas pessoas formando um amontoado
ao redor de uma árvore. Algumas pessoas
saíram do amontoado porque não gostaram
nada do que viram. A curiosidade falou mais
alto no ouvido de Annie, que decidiu juntar-se
ao amontado para saber o que estava
acontecendo. Mal sabia ela que o que veria a
partir daquele momento seria inesquecível
para ela. Uma estaca atravessava o corpo de
um homem e terminava do outro lado da
árvore, deixando-o preso e com as pernas
pendendo no ar. Estava inconsciente e
gritando de dor.

– Papai! – Annie não conseguia acreditar no


que estava vendo. Por um momento, parecia
estar em um sonho. Annie não aceitava que
seu segundo pai pudesse ter morrido de uma
forma tão trágica quanto o primeiro, a dezoito
anos atrás, antes mesmo de ela ter nascido.
Desde pequena, sofria com a morte de seu
pai biológico. Sua mãe lhe dissera que ele
tinha morrido cruelmente, mas nunca lhe disse
como.

Quando Locky se casou com sua mãe, Annie


o acolheu como se fosse seu verdadeiro pai,
como se ele tivesse curado sua ferida mais
profunda. Agora, vendo ele ali, preso a uma
árvore por uma estaca, sentiu seu mundo
desabar sobre ela. Amava Locky do mesmo
modo que amava sua mãe. Aquilo não podia
ser real. Depois de ficar ali, presa em seus
pensamentos, olhou para os lados a procura
de Vivian, mas não a achava. Viu apenas
Ravel em meio ao aglomerado de pessoas,
olhando seriamente para o cadáver, como se
não estivesse nem um pouco triste. Grande
parte dos aldeões olhavam para Annie
naquele momento, esperando-a chorar, mas
ela simplesmente virou-se e saiu. Caminhou
devagar até sua casa, com a cabeça baixa.
Foi até seu quarto, deitou-se na cama e
fechou os olhos. Queria evitar qualquer tipo de
pensamento ruim que pudesse tirar seu sono.
Depois disso, ela dormiu.
IV
1985

– Ainda existe, essa tal de Ordem? Pensei


que já estivesse extinta há séculos. – Annie
não estava gostando nada da ideia.

– Existe sim, com certeza. Você sabe o que


ela significa e quais são seus princípios?

– Na verdade, não muito.

– Então, acho que já está na hora de você


saber.

– Estou ouvindo.

– Há séculos atrás, as mulheres já estavam


cansadas de ser sempre o “sexo superior”,
conhecidas geralmente como as mais frágeis,
as mais delicadas, enfim, coisas do tipo.
Então, resolveram mudar isso, criando assim
a Ordem. No começo, era apenas uma
reunião de mulheres que acontecia
semanalmente. Tentavam mudar este fato,
mas não conseguiam. Algumas deixavam de
fazer o serviço de casa em protesto contra
seus maridos. A Ordem era algo inocente.
Mas, infelizmente, não estava adiantando.
Finalmente, uma mulher que era reconhecida
por ser a líder da Ordem, tomou uma medida
brusca. Matou seu marido e seu irmão. A
partir daí, a Ordem começou a ter outros
princípios. As mulheres já não queriam mais
só ser reconhecidas, queriam além de tudo o
poder. Para isso, precisavam eliminar cada
vez mais homens e incentivar mais mulheres
para a Ordem. Elas casavam, tinham filhos, e
depois matavam seus maridos. Se o filho
fosse menino, provavelmente seria eliminado
no seu primeiro dia de vida. Se fosse menina,
elas deixavam com que crescesse e assim a
tornaria membro da Ordem. A cada ano, mais
mulheres entravam para a Ordem, e mais
homens eram mortos. Seus corações erram
arrancados fora e guardados em um depósito
escondido da aldeia. A Ordem foi se
fortificando, até que...

– Até que? – Disse Annie extremamente


curiosa.
– Até que surgiram os Caçadores. Mas isso,
minha filha, não será contado agora. A
questão é que, por mais cruel que nós da
Ordem sejamos, somos justas. Não fazemos
nada mais do que provar para nós mesmas de
que temos tanto valor quanto os homens.
Com o passar do tempo, as mulheres da
Ordem passaram a detestar mais do que tudo
os homens, e isso acontece ainda hoje.
Casamos apenas para nos reproduzirmos.
Espero que você entenda Annie. Não
desejamos o mal, apenas fazemos a justiça.

Annie, assustada com tudo o que ouvira até


agora, simplesmente se levantou da cadeira,
abriu a porta e foi para fora.

– Annie! Volte aqui! – é claro que Annie não


iria voltar, mas Vivian tentou mostrar alguma
autoridade.

De cabeça baixa, ela foi caminhando


rapidamente pela neve encontrar Zion. Como
era de se esperar, ele estava trabalhando.
Annie fez um sinal com a mão chamando-o
para perto dela. Quem veio foi Patrick, e não
Zion.

– O que houve?
Ela levantou a cabeça, revelando as lágrimas
escorrendo em seu rosto.

– Vivian. Ela me revelou que faz parte da


Ordem, e me convidou para fazer parte dela. –
Annie estava envergonhada de chorar na
frente do homem que amava. Mas era
impossível conter as lágrimas.

– Me diga que você disse não a ela.

– O pior não é isso, Patrick. Se ela faz parte


da Ordem, então foi ela quem matou meu pai
biológico Sebalos e meu padrasto Locky.

– Bem, isto é verdade. Seu irmão e eu já


sabíamos disto, mas resolvemos não te
contar.

– O que faço agora, Patrick? Não quero fazer


parte da Ordem, discordo com os princípios
dela.

– Ainda bem, Annie, ainda bem. Fico aliviado


em saber disto. Zion e eu estávamos com
medo que sua mãe lhe convencesse a fazer
parte da Ordem.

– Como vocês sabem da existência dela?


– Sua mãe por acaso comentou algo sobre os
Caçadores?

Annie fez que sim com a cabeça, esperando


uma resposta.

– Depois de alguns anos após o surgimento


da Ordem, alguns homens da aldeia
começaram a desconfiar. O caso foi
investigado por alguns meses, até que
resolveram tomar uma atitude. Numa
madrugada em que misteriosamente todas as
mulheres saíram de suas casas, um homem
foi enviado para segui-las. Ele as seguiu até
entrarem na floresta e chegarem ao centro de
um círculo no chão, coberto por árvores ao
redor. Atrás de uma árvore que o tampava
completamente, ele acabou ouvindo os
segredos da Ordem e descobrindo o
necessário. Foi aí então que este homem
voltou para a aldeia e espalhou o segredo
para os homens. Decidiram tomar uma atitude
imediata quanto a isto, criando assim a
Caçada. Os participantes dela eram os
Caçadores. Claro, não eram todos os homens
que acreditavam na Ordem. Mas os
Caçadores, desde o início, sabiam que, por
mais amedrontadora que a tal Ordem pudesse
ser, não deixava de ser verdade.
– Interessante. – era muita informação de
uma vez só para Annie, mas ela precisava
aceitar. – Então foi por isso que Zion matou
Ravel no outro dia. Ele é um Caçador, e Ravel
era da Ordem.

– Exatamente. É difícil acreditar nisto tudo, eu


sei. Mas a situação que você se encontra é
precária. Quando uma mãe convida uma filha
para entrar para a Ordem, faz parte da
tradição que ela aceite. Algumas aceitam por
concordarem, outras, por medo do que pode
acontecer se negarem.

– Então, o que eu faço agora?

– Você tem que entender que daqui para


frente, não será nada fácil. Ou está de um
lado, ou está de outro. Se você não concorda
com os princípios da Ordem, então está a
favor da Caçada. E sua mãe não vai gostar
nada disso.

– Então, o que eu faço agora? Entro em


desespero e começo a correr por aí como
uma louca? Pois é isso que tenho vontade de
fazer.

– Sim, entre em desespero e corra por aí


como uma louca. – Patrick achou graça da
sua própria piada e abriu um sorriso. Annie
abriu um sorriso forçado, mas foi o suficiente
para que Patrick pudesse notá-lo e perceber
como ele era lindo. – É melhor que você me
encontre hoje à noite, perto do poço. Vou
convocar os Caçadores, e nós iremos lhe
ajudar.

– E se minha mãe me perguntar algo? O que


eu digo a ela?

– Diga que você precisa de um tempo para


pensar, pelo menos até amanhã. Agora, vá
para sua casa, e me encontre assim que
anoitecer. Estarei torcendo por você, Annie.

Houve uma troca de olhares que durou por


alguns segundos. De repente, as lágrimas
sumiram do rosto de Annie. Ela abriu um leve
sorriso, dessa vez verdadeiro e não forçado.
Ele aproximou seu rosto dela, beijando-a na
boca devagar. De longe, Zion via tudo, mas
resolveu deixá-los em paz. Ele sabia que o
amor que Annie sentia por Patrick era
recíproco. No fundo, Annie torcia para que sua
mãe não estivesse vendo aquela cena.
Mesmo assim, ela estava gostando do beijo
dele.
Continuaram a se beijar por mais alguns
segundos, enquanto Patrick colocava as mãos
na cintura de Annie e aproximava o corpo dela
ao seu. Era um momento perfeito, que Annie
sempre esperou. Queria que durasse mais,
mas Patrick infelizmente não tinha o dia todo.

Ele desencostou os seus lábios do dela,


virou-se e partiu sem dizer nada, apenas
sorrindo para ela. Annie também saiu e foi
andando para sua casa, mais feliz do que
nunca. Sem dúvida era um dos melhores dias
de sua vida até então, senão o melhor.
Chegando em casa, abriu a porta e a primeira
coisa que viu foi sua mãe a olhando
seriamente, como se a tivesse esperando
chegar.

– Onde você estava? – seu olhar dizia mais


do que suas próprias palavras.

– Lá fora, dando uma volta.

– Dando uma volta? Espero que você não


tenha conversado com ninguém que não
deveria, se é que me entende. Aliás, você
pensou bem sobre o que conversamos?
Preciso de uma resposta imediata.
– Bem, preciso de mais tempo para pensar,
espero que me entenda. Pelo menos até
amanhã.

– Eu não deveria Annie, mas vou deixar.

– Ah, muito obrigada. Se me permite, vou


subir e ler algum livro. – Annie foi andando em
direção as escadas, mas foi impedida pela
mão de Vivian que agarrou fortemente seu
braço.

– O que foi? – disse Annie.

– Te darei o devido tempo para pensar, mas


você deve me dizer o que estava conversando
com Patrick. – desta vez, Annie se assustou.

– Patrick? Não, você está enganada. – assim


como sua mãe, Annie também não sabia
mentir.

– Você acha que me engana? – desta vez,


Vivian apertava mais forte o braço de Annie,
deixando-a com mais medo.
– Por que lhe interessa? – Vivian não
precisou dizer nada, apenas lançou mais um
de seus olhares.

– Não precisa me dizer, eu sei. Você não viu,


mas pedi para que uma integrante da Ordem
lhe seguisse. Afinal, agora que você fará parte
da Ordem, não há o que me esconder.

– Eu não disse que vou entrar para a Ordem.

– Você não precisa dizer nada Annie. Não sei


se você sabe ainda, mas quando uma mulher
é convocada, ela precisa dizer sim, pois é
uma honra. Fui informada de que Patrick
reunirá os Caçadores hoje à noite. Se você
tiver a ousadia de ir, eu também vou, mas não
sozinha. – Annie não conseguia reconhecer
sua mãe. Sabia que não era uma pessoa
paciente, mas nunca a vira neste nível. O que
Annie fez foi ignorá-la, mesmo com medo, e
subir para seu quarto, fingindo que estava
tudo bem.
V
1985

O sol se pôs e a noite finalmente estava


chegando à Aldeia de Rahzar. Ansiosa e com
medo, Annie não sabia como iria conseguir
sair de casa para encontrar os Caçadores.
Abriu de leve a porta de seu quarto, sem fazer
nenhum barulho. Dali conseguia ver uma
parte da cozinha, e pelo o que notou, não
havia ninguém nela. Desceu as escadas, mais
medrosa do que nunca. Olhou para todos os
lados e não viu ninguém. Ficaria contente por
sua mãe não estar? Ou com temor do que
poderia vir acontecer a seguir? Apavorada,
atravessou a cozinha até a porta e saiu. Não
tinha ideia do que estava fazendo. Naquele
momento, sabia que deveria voltar para seu
quarto, o lugar mais seguro agora. Foi
andando rápido até o poço, esperando já
encontrar os Caçadores lá. Ficou surpresa ao
ver que não havia ninguém. Como se por uma
intuição, olhou para trás e viu justamente o
que não queria: a Ordem. Estavam todas as
mulheres, achava ela, e eram muitas. Aldeãs
que ela já havia visto andando a toa por aí.
Algumas ela até havia conversado. Pensou
em correr, mas seria idiotice da parte dela.
Aquilo não era um filme de terror, era real.

Ficou parada, apenas observando. Para sua


sorte, elas estavam longe, e ainda não a
tinham visto. Olhou para o lado, e avistou uma
casa escondida ali perto por árvores que a
tampavam. Nunca havia notado aquela casa
antes, embora não parecesse uma. Foi
correndo até ela tomando cuidado para que
ninguém a visse. Chegando lá, tentou abrir a
porta, mas estava trancada. As mulheres se
aproximavam, e não viu outra saída a não ser
chutar com força. E foi o que fez. Chutou
algumas vezes seguidas até conseguir
quebrar e passar por ela. Olhou pelo buraco
da porta e dessa vez viu a Ordem chegando
mais perto do poço em encontro a alguns
homens, que Annie logo reconheceu como os
Caçadores. Entre eles havia Patrick e Zion, os
dois procurando por Annie.

– Queremos ver a Annie. – disse Patrick.


Annie observava e ouvia a conversa deles,
sem saber o que fazer.

– Digo o mesmo para você, meu jovem. –


Vivian falou e aproximou-se de Patrick.

– Não estou brincando, Vivian. Onde ela


está?

– Também gostaria de saber. Afinal,


precisamos dela para que ela entre para a
Ordem o mais cedo possível.

– Você não pode obrigar a sua filha a fazer


isso. Se ela não quer, deixe-a em paz, deixe-a
ser livre. Ela optou por não fazer parte da
Ordem.

– A questão é que não existe opção.

Enquanto isso, Annie continuava observando,


sem saber o que fazer. Evitou olhar para eles.
Gritou no momento em que olhou para trás e
viu uma pilha de corações ensanguentados.
Eram muitos, ocupavam quase metade do
espaço. Annie percebeu que havia gritado alto
de mais, chamando a atenção tanto da Ordem
quanto dos Caçadores. Zion e Vivian foram
correndo em direção ao grito. Por ser mais
jovem, Zion chegou primeiro e agarrou Annie,
levando-a para perto dos Caçadores e depois
a largando no chão.

– O que havia lá dentro... Eram... Corações.


Eram muitos.

– Sei disso Annie. Você entrou no depósito


da Ordem. Lá que essas malfeitoras guardam
os corações de todos os homens que já
mataram. – Zion fez questão de falar alto para
que as mulheres da Ordem ouvissem.

– Exijo que me entregue ela agora. É minha


filha, não sua.

– É minha irmã. Eu a protegerei, nem que


minha vida dependa disso.

– Peguem-na! – a Mestra da Ordem surgiu


em meio às mulheres, gritando alto. – Chega
disso. Nem que tenham que machucá-la para
isso, mas peguem-na.

Algumas mulheres avançaram em Zion,


enquanto ele recuava segurando forte o braço
de Annie. Uma das mulheres, obedecendo à
ordem da Mestra, tirou uma faca de
arremesso e mirou no braço de Annie.
Enquanto a faca cortava os ventos em direção
a Annie, Patrick olhou de relance e viu que ela
seria atingida. Pulou para empurrar Annie
para o chão, mas acabou sendo atingido pela
faca.

Annie, olhando para Patrick no chão, surtou.


Gritou alto, um grito de fúria, como se
declarasse guerra. Tirou a faca do peito de
Patrick e foi caminhando devagar ao lado de
sua mãe, enquanto alguns Caçadores lutavam
bravamente contra as mulheres da Ordem,
sem perceber o que Annie estava fazendo.
Algumas gritavam de dor, enquanto homens
caíam no chão, mortos. Mesmo sendo jovens
e fortes, as mulheres tinham mais experiência.

– Ótimo, minha filha. Venha e junte-se para a


Ordem.
Annie discretamente levantou a faca sem que
Vivian a visse, e a enfiou devagar no seu
pescoço.

– Isso é por todos os homens que você e sua


Ordem nojenta mataram e arrancaram os
corações inocentes. – Annie não conseguia
acreditar no que acabara de fazer.

– Pensei que me amasse, minha filha, assim


como eu sempre te amei. – Vivian conseguiu
dizer antes de se encontrar com a morte.

– Falou certo. Eu a amava. Não amo mais. –


sua mãe caiu no chão coberto por neve e
Annie chorou. Chorou muito, como uma
criança. Sabia que devia sair dali antes que a
pegassem. Por sorte, Zion conseguiu puxá-la
para perto dos Caçadores.

– Não chore irmã. Eu gostei do que fez, você


foi corajosa. Sabe que era o certo a se fazer.

Vendo Vivian caída no chão com a faca ainda


enfiada no pescoço, as mulheres da Ordem
recuaram assustadas.

– Este dia será lembrado para sempre na


Ordem. Não pensem que acabou. Um dia, nós
os caçaremos, e vamos matar um por um,
para encher de vez o nosso depósito. E você,
Annie, está inclusa na nossa lista agora. Você
ousou matar uma integrante da Ordem, e será
caçada também, sem dó. Não há desculpas e
nem retorno para o que você fez. – disse a
Mestra da Ordem, agora se virando e saindo
dali.

– Não ligue para o que ela diz, Annie. O que


você fez foi o correto. – Disse Zion, abraçando
sua irmã.

– E agora, o que eu vou fazer? – Olhou para


Patrick no chão, vendo que a faca havia
atingido seu coração. Seria difícil para ela
superar aquilo, mas ela iria conseguir.

– Você, Annie Lotharus, minha querida irmã,


corajosa e destemida, deseja ser a primeira e
única mulher a fazer parte dos Caçadores?

Annie era mais forte e corajosa do que


imaginara. Além do mais, o que tinha a
perder?

– Sim, eu desejo.
Sobre o autor

Eliel Henrique Gadotti nasceu em Itajaí, em


Santa Catarina, onde mora ainda hoje. Com
quinze anos de idade, vive com seus pais e
está cursando o Ensino Médio na instituição
de ensino E.E.B Feliciano Pires.

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