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ensurdecimento
Livro escrito por Christian Dunker e Cláudio Thebas propõe estratégias de
escuta em tempos de colonizadores de corações e mentes.
Com oferta rara e grande demanda, a escuta atravessa os dias como preciosidade
necessária à convivência. Especialmente em dias de conflitos verbais e sociais como os que
vivemos atualmente.
Uma fala espera se hospedar em uma escuta, mas a ela são apresentados destinos como o
exílio, o adoecimento psíquico, a negação ou, na mais branda das hipóteses, um bloqueio
nas redes sociais.
Com disposição e prática, é possível, a qualquer um, escutar o outro e, assim, reconhecê-lo.
Mas este é um processo complexo — uma arte, pontuam o psicanalista Christian Dunker e
o educador Cláudio Thebas, autores de O palhaço e o psicanalista – Como escutar
os outros pode transformar vidas (Editora Planeta).
Mas por onde anda a escuta em 2019? Do que se alimenta, onde vive?
Saiba tudo sobre este milenar esforço de convívio na nossa entrevista com Dunker e
Thebas:
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palavras, como antigamente existiam os polidores de lentes. Ao final o que se obtém é ver
mais nítido e ver melhor, e quanto mais esquecido e transparente o resultado, melhor o
efeito obtido. É difícil escutar porque esta arte demanda que renunciemos ao exercício do
poder sobre os outros, mas também da glória das obras bem feitas e reluzentes. O terceiro
motivo que torna escutar tão difícil é que a escuta começa pela escuta de si. Afinal este é o
grande legado que uma psicanálise deixa para alguém: a capacidade de escutar-se, no
melhor e o pior, na justa medida e em seus exageros, nos seus fantasmas e no cerne de seu
ser. Logo, aprender a escutar é como apender a perder, como disse Elizabeth Bishop, ou
seja, uma arte que não é difícil de dominar, mas é uma arte para viajantes corajosos.
Cláudio Thebas: Escutar é um ato de risco e coragem. É, fundamentalmente, a
experiência do encontro no que ele tem de mais essencial: o descontrole. Onde há controle
não há encontro. Dispor-se a escutar é ter disposição para experimentar uma aventura.
Segundo o educador espanhol Jorge Larrosa, a palavra experiência deriva de “periri”, que
significa perigo, mas também está na origem de pirata. Podemos concluir que escutar, por
ser uma experiência, é aventurar-se num oceano desconhecido. Isso não é nada fácil.
“O vazio da escuta é um espaço para que o outro nos habite. Dúvidas e hesitações são espaços
de vazio e silêncio. Certezas soterram esses espaços.”
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querendo nos dizer. O vazio é o oco essencial para que as palavras do outro reverberem e
ele possa escutar a si mesmo. Espaço para que as emoções também possam reverberar
encontrando ressonância comum entre quem fala e quem escuta. O vazio da escuta é um
espaço para que o outro nos habite. Dúvidas e hesitações são espaços de vazio e silêncio.
Certezas soterram esses espaços.
Dunker: A dúvida é o sinal psicológico da ética moderna. Não é por outro motivo que
Hamlet hesita longamente antes de vingar o assassino de seu pai, que Fausto recua diante
do pacto que faz com o Diabo Mefistófeles, ou que Robinson Crusoé cultiva sobre a
existência de outros estrangeiros em sua ilha. Só Dom Quixote não tem dúvida, este
paradigma da loucura moderna. Mas a hesitação toma tempo, mostra vulnerabilidade, adia
a ação. Na dúvida se infiltra o pior: as más influências, o desamparo e a possibilidade de
ser manipulado pelos outros. Escutar é colocar-se e criar-se dúvidas compartilhadas;
escutar é postergar juízos demandando mais fatos e evidências ou mais solidariedade e
convicção. Enquanto escutamos o trabalho da dúvida, partilhamos nosso destino com os
outros e generalizamos nossas inquietudes. Por isso, de todas as formas de divertimento,
de convívio e de uso do tempo, inclusive o entretenimento, a campeã indiscutível é a
conversa. Quando não há mais conversa no bar, sabemos que o alcoolismo venceu. Quando
consumimos em silêncio ocupacional, seja drogas, roupas, imagens ou palavras, sabemos
que a escuta perdeu.
“É difícil escutar porque esta arte demanda que renunciemos ao exercício do poder sobre os
outros.”
Como os pais podem escutar seus filhos? Quais desafios têm se apresentado
atualmente?
Dunker: Se você quer confiança, dê confiança; se você quer intimidade, ofereça
intimidade. A maior parte dos pais, especialmente de adolescentes, quer saber mais sobre
seus filhos sem oferecer nada de si. Para escutar é preciso entrar no mundo do outro como
um antropólogo entra em outra cultura: leia, aprenda, prepare-se, depois dispa-se de seu
etnocentrismo (adultocentrismo), encontre informantes, descubra se os etnólogos que o
antecederam nesta rota não foram comidos por canibais. O segundo desafio é que, para o
pais, escutar vai se tornando gradualmente sinônimo de obedecer. No começo a maior
parte do trabalho vai se concentrando nisso, mas se não os escutamos quando pequenos,
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valorizando a sua palavra, a sua opinião e o seu ponto de vista, não é depois que eles
aprenderão a escutar. A capacidade de escuta é proporcional ao cultivo de uma língua
estrangeira, a língua do outro, que mesmo que fale português, tem seu idioleto único. Por
isso toda tentativa de inclusão, inclusive em categorias como adolescente, jovem ou
criança, já é um problema se achamos que vamos entender alguma coisa do outro a partir
disso. O terceiro ponto é que os pais não ensinam seus filhos a escutar depois reclamam
que eles não os escutam. Escutar é sinônimo de conversa longa, complexa, difícil e
perigosa. Tudo de que fugimos e queremos que eles nos deixem em paz enquanto são
pequenos, depois eles não brincam conosco de nossa principal brincadeira, que é a de
escutarmos-nos uns aos outros.
Thebas: Podem abaixar-se pra escutá-los olho no olho; valorizar suas hipóteses,
incentivando-os a investigar, intuir, arriscar; jamais recriminá-los por sentir algo “ruim”,
como inveja ou raiva. Podem ajudá-los a ampliar seu repertório de percepções de si para
que, identificando com mais clareza o que sentem, eles consigam expressar melhor suas
necessidades. Um quinto ponto é a lei da reciprocidade: se quer que eles se sintam
confortáveis em se abrir com você, faça o mesmo. É importante pra criança perceber que o
adulto que sempre dá colo também pode precisar do seu colinho.
“A perda da empatia é nítida tanto na ansiedade quanto na depressão, e sua gradual
recuperação é um sinal clínico de que o paciente está melhorando.”
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meios e fins, nem o agente nem o paciente da ação. Neste grupo há dois saberes clássicos: a
política e a ética. Nos dois casos, estamos às voltas com a maneira como sustentamos nosso
desejo em situações atravessadas pelo poder, seja de exercê-lo, seja de ser seu objeto. Um
mundo sem escuta seria um mundo no qual o poder se exerceria sem resistência. A escuta
faz resistência ao mero funcionamento das coisas, e à mera facilitação das trocas, no
interior das quais, muitas vezes vamos nos transformando em pessoas-coisas. Renunciar
ao poder e encontrar o ponto de vulnerabilidade de um laço social é o ponto de partida da
escuta.
Thebas: Considerando que a política é (ou deveria ser) a arte do consenso, a escuta é
essencialmente a sua matriz. No livro dizemos que a etapa inicial da escuta é a
hospitalidade. Hospedar o outro em si, na língua dele, nos hábitos dele. É, portanto, ainda
que temporariamente, se deixar colonizar pelo outro. Isso é um ato político revolucionário
em tempos em que o que mais se vê é o contrário: a tentativa de sermos os colonizadores
de corações e mentes.
“Um mundo sem escuta seria um mundo no qual o poder se exerceria sem resistência.”
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Como podemos praticar a escuta em temas tão espinhosos quanto política,
religião, sexo e moral? Percebe-se que nesses assuntos há uma grande
dificuldade de se estabelecer uma interlocução...
Dunker: A política é curiosamente o campo fundado na palavra para substituir a violência
e reconhecer a diversidade produtiva. Mas quando a extensão de participantes aumenta e
quando as decisões se tornam mais complexas, começamos a ter que “reduzir” os assuntos
e as pessoas. Também no sexo ou na religião nos acreditamos fincados em solo sólido e
inamovível dos princípios que nos constituem, como somos. Quando isso é tocado, nossa
insegurança ontológica emerge indicando que nossa identidade não é tão perfeita quanto
gostaríamos. Mas é nesta vacilação de nosso ser que reside também a liberdade
desconhecida em nós mesmos. Uma liberdade da qual não queremos saber, porque ela
pode mostrar que nosso eu e que nossa identidade não deixam de ser apenas sintomas
mais estruturados e normalopáticos. Mas o fulcro da desescutação, quando a matéria em
questão é o sexo, diz respeito aos modos contingentes como cada um constrói sua
gramática de satisfações. Ignorar que outras pessoas têm outras fantasias é a razão e
princípio da desescutação da singularidade do outro, de sua decomposição em meros
particulares. O particular é um princípio de coletivização, assim como o singular é um
princípio de diferenciação. A escuta é um modo de acolher e destinar o conflito entre um e
outro simplesmente porque aspira à universalidade da linguagem.
Thebas: Creio que a resposta é uma soma de todas as anteriores, inclusive a que diz
respeito às crianças. Passa também por nos desarmarmos em relação ao outro para que
possamos trocar opor por compor. Enquanto vermos o outro como um oponente, não
conseguiremos ser componentes das coisas que a vida nos instiga e desafia a fazermos
juntos.
“Para se manter e se perpetuar, o poder precisa do silêncio dos descontentes.”
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engrandecimento de si e pela promessa fácil de que todo o mal pode ser erradicado de uma
vez, porque ele está nestas pessoas sem caráter que estão a mais neste mundo. Esse
método segregativo encontrou meios de expressão para tornar a nossa democracia, de
aspiração inclusiva em uma democracia de corte exclusivista, ou seja, funcional e eficaz
para cada vez menos pessoas. O autoritarismo é apenas uma exageração das práticas de
poder em detrimento da autoridade, uma aposta na prevalência do controle sobre o
cuidado, da violência sobre a educação.
“Escutar é um ato político revolucionário em tempos em que o que mais se vê é o contrário: a
tentativa de sermos os colonizadores de corações e mentes.”