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Lugar escutadeiro- por que uma Ouvidoria no IIP? Questão para ficar ressoando entre nós...

Algumas distinções:

Ouvir é a ação de receber sons e ruídos através da audição, ou seja, tudo aquilo que o ouvido
capta. Escutar, por outro lado, é o ato de prestar atenção naquilo que se ouve.

Ouvir em psicanálise: Para Freud a escuta analítica chamada por ele de atenção flutuante vem
como uma contrapartida da associação livre. Freud inventa a psicanálise com as histéricas,
começando com a prática de limpeza de Chaminé, ideia que Anna O inicialmente lhe soprou.
Mas contou ainda com a ajuda de outras mulheres, silenciadas pela medicina, que não tinham
ouvidos para o inaudível de suas falas, seus sintomas. Elas, as histéricas, pediram que ele se
calasse para ouvir melhor. A medicina se fez dentro da tradição de uma leitura escópica dos
sintomas, da investigação aprendida na clínica do cadáver. E por mais que a prática do olhar
tenha se preocupado em auscultar os ecos sonoros do organismo, o que os médicos não
conseguiram ouvir, Freud escutou, pela via do amor e da linguagem, o real do corpo,
chamando de inconsciente o que emergiu de desconhecido e inventando o método
psicanalítico.

Ausculto vem do latim que quer dizer “ouvir com atenção”... mas com que atenção?

“Tomo o caminho de ouvir e não auscultar(...) o que escuto é por ouvir (entendement) mas
ouvir não é necessariamente entender. “ce que j’écoute est d’entendement. L’entendement ne
me force pas à comprendre.”1

“De todos os sentidos, o mais importante para a aprendizagem do amor, do viver juntos e da
cidadania é a audição. Rubem Alves em seu texto sobre a arte de ouvir retoma são João:

“No princípio era o Verbo”. Eu acrescento: “Antes do Verbo era o silêncio.” É do silêncio que
nasce o ouvir. Só posso ouvir a palavra se meus ruídos interiores forem silenciados. Só posso
ouvir a verdade do outro se eu parar de tagarelar.”2

Ocupar o ouvido do outro não deixa de ser um exercício de colonização, exercício de poder.
(O que explica o efeito de imperativo que tem sobre a massa o discurso de um Hitler aos
berros) Talvez por isso diz Rubem Alves citando Milan Kundera:

“Pois toda a vida do homem entre os seus semelhantes nada mais é do que um combate para
se apossar do ouvido do outro...”3 Sabemos (e Lacan não deixa de marcar a especificidade do
zona erógena que envolve o auricular) que o fato da orelha ser um orifício que não se fecha,
marca uma característica impar da pulsão invocante.

Rubem Alves lembra ainda que nas escolas, onde começa o aprendizado, muitas vezes ouvia-
se o comando do grito na imposição do poder: Nos diz ele:

“ O aprendizado do ouvir não se encontra em nossos currículos. A prática educativa


tradicional se inicia com a palavra do professor. A menininha, Andréa, voltava do seu primeiro
dia na creche. “Como é a professora?”, sua mãe lhe perguntou. Ao que ela respondeu: “Ela
grita...” Não bastava que a professora falasse. Ela gritava. Não me lembro de que minha
primeira professora, Dona Clotilde, tivesse jamais gritado. Mas me lembro dos gritos
esganiçados que vinham da sala ao lado. Um único grito enche o espaço de medo. Na escola a
1
Jacques Lacan, A direção do tratamento e os princípios de seu poder. In Escritos, p.622. Écrits, p.616.
2
Rubem Alves em “A arte de ouvir”. Crônica publicada na Folha de SP, 01/03/2012.
3
Rubem Alves, idem.
violência começa com estupros verbais. E nosso escritor emenda: “Talvez seja essa a razão
porque há tantos cursos de oratória, procurados por políticos e executivos, mas não haja
cursos de escutatória” (apesar de um livro já existir com este nome... A arte da escutatória)
Todo mundo quer falar. Ninguém quer ouvir.” 4

Lacan diz, e diz mais de uma vez, que o analista paga com sua pessoa, paga com suas palavras.
Ele Paga então não apenas por seu dizer, suas interpretações 5 mas ainda paga com isso que
podemos dizer que ele é, com aquilo que o identifica: seus desejos, seus nomes, seus
significantes. Pagar com sua pessoa é mais que não falar, significa que ele, o que funciona
como analista, silencia seu lado pessoal e se volta ao outro, à diferença e à fala do outro.
Nesse momento só existe um sujeito, o outro. Escutar nesse sentido é um ato ético. Podem
perceber que não defendemos aqui propriamente a empatia 6, que pode convocar por demais
a pessoa do ouvinte, nem a simpatia7 que pode condicionar por demais a escuta no agradar ou
não ao ouvinte. 8

E aí chegamos a um ponto importante, não de compreensão mas de opacidade: ouvir, para


analistas e para os que prezam a alteridade pode ser não entender, não compreender, mas
estar aberto ao estranho que nos chega do outro, ao vazio de quem se cala e aos ruídos
inaudíveis do silêncio. Ouvir pode ser estar atento à língua sempre estrangeira do outro que
nos surpreende e que também, e sempre, nos escapa mesmo nas melhores traduções.

O trabalho remoto, sabemos, restringe as trocas e pede outras formas de presença. Esperamos
que a palavra possa circular, que as questões de cada um possam tomar a palavra e que todos
ocupem seu espaço nesse lugar de fala e escuta, ou seja, de diálogo.

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4
Rubem Alves, Idem.
5
Lacan, A direção do tratamento. In Escritos, p.593. Écrits p., 587.. Seminário VII, p. 349.
6
faculdade de compreender emocionalmente um objeto (um quadro, p.ex.); capacidade de projetar a
personalidade de alguém num objeto, de forma que este pareça como que impregnado dela;
capacidade de se identificar com outra pessoa, de sentir o que ela sente, de querer o que ela quer, de
apreender do modo como ela apreende etc.
7
Simpatia (do grego sypatheia: syn, "junto" + pathos, "sentimento") é a percepção, compreensão e
reação ao sofrimento ou necessidade de outra forma de vida. Essa preocupação empática é
impulsionada por uma mudança de ponto de vista, de uma perspectiva pessoal para a perspectiva de
outro grupo ou indivíduo que está necessitado.
8
Diferença entre empatia e simpatia:
A simpatia é geralmente uma resposta intelectual, enquanto a empatia é uma fusão emotiva.
Enquanto a simpatia indica uma vontade de estar na presença de outra pessoa e de agradá-la, a empatia
faz brotar uma vontade de compreender e conhecer outra pessoa.
A simpatia, por exemplo, costuma unir as pessoas através das afinidades, ou seja, do que elas possuem
em comum. Já a empatia não costuma acontecer necessariamente por afinidade, já que ela ocorre por
um processo de compreensão da situação vivida pela outra pessoa.

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