Você está na página 1de 6

O PALHAÇO E O PSICANALISTA

Como escutar os outros pode transformar vidas

Christian Dunker e Cláudio Thebas

30. Sete escutas da língua tupi1

Enquanto os filhos do “homem branco” estão trancados em


salas aprendendo que a diretora é um monstro e que escutar é uma
coisa menor, indígenas da etnia tupi exercitam suas escutas do
mundo.
Para a sabedoria tupi, nós temos sete formas distintas e
complementares de escutar. Elas estão em todos nós e cada um
costuma nascer com uma dessas escutas mais desenvolvida, como

1
Fazendo pós-graduação em Pedagogia da Cooperação e Metodologias Colaborativas
(Projeto de Cooperação), conheci Kaka Verá, que ministrava o módulo “Princípios da
Comum-Unidade”. Fui totalmente captado por sua fala mansa e suas histórias. Quando
decidimos que escreveríamos este livro, entrei em contato e pedi para ele me contar de novo
um pouco do seu conhecimento sobre escuta dos povos tupi. Kaka Verá é escritor,
empreendedor social, professor universitário com foco na difusão da cultura e dos saberes
indígenas.
WERÁ Kaká. O trovão e o vento: um caminho de evolução pelo xamanismo tupi-guarani. São
Paulo: Polar Editorial, 2016.

1
uma característica pessoal. Desde pequenos, conforme seu modo
de criação, eles são levados a reconhecer e praticar a escuta de si e
do outro como um processo contínuo e evolutivo. A regra geral
pode ser chamada de “perspectivismo”, ou seja, minha escuta deve
reconhecer a perspectiva do outro na qual estou incluído. Ser visto
e reconhecer minha posição no olhar do outro e, a partir disso,
concluir qual a perspectiva que me cabe, parece uma atitude
compatível com o que aqui estamos chamando de escuta empática.
Dentro disso distinguem-se sete forma de escuta:

1. Ouvido direito (WaK’Mie): É um modo de escuta associada


ao masculino, não como gênero, mas como atitude
propositiva, ativa e impulsiva.
2. Ouvido esquerdo (Kat’Mie): Escuta associada à energia
feminina, tida como passiva, apreciativa ou sem filtros, no
sentido de maior acolhimento e abertura, pois não
seleciona ou dirige a fala do outro. É o ouvido de quem
gosta de “assuntar”.
3. Ouvido terra: Forma de escuta baseada no corpo e na

2
receptividade global, mais tátil e concreta do que a que se
pratica com os ouvidos. Percebe o ambiente com ênfase
em suas pequenas diferenças.
4. Ouvido água: É a escuta dos pescadores de afetos,
emoções e sentimentos. Ela flui como a água, ora formando
cascatas, ora em corredeiras intensas, ou ainda em
vagarosa morosidade e até mesmo formando lagoas ou
poças pantanosas.
5. Ouvido ar: É a escuta reflexiva ou filosófica, que nós
entendemos como demais curadores de alma. Disposta a
acolher aquilo que é mais reflexivo ou argumentativo
construindo cenários e futuros possíveis assim como
histórias imprevistas.
6. Ouvido fogo: É a escuta intuitiva ligada às narrativas
imagéticas. É uma forma de escuta que convida para a
ação, para a decisão, assim como para a solidariedade e
comunidade entre as pessoas em torno de uma história ou
de um sentimento comum. Ela se faz valer de paisagens e
cenários sonoros que aguçam a curiosidade em busca das

3
possibilidades escondidas de uma determinada situação ou
pessoa.
7. Todos os ouvidos integrados: Escuta ampla e totalmente
integrada, acessada por poucos, envolve coordenar os
sucessivos movimentos cooperativos e competitivos, em
um esforço simultâneo de acolher e transformar a situação
pela ação conjunta dos participantes. Aproxima-se do que
chamamos neste livro de escuta empática e lúdica do líder
escutados.

Os tupis aprendem a escutar nas trocas cotidianas em


comunidade, transmitindo histórias e fazendo perguntas.
Treinados desde sempre a perceberem e exercitarem suas escutas,
os indivíduos da tribo vão igualmente reconhecendo qual a
característica de escuta de cada integrante da aldeia. Esse
conhecimento permite que num diálogo usem expressões e verbos
que vão “acender” a escuta do outro, ao modo de “iscas” para a
curiosidade.
Por exemplo, se reconheço no outro a escuta terra

4
(concreta, tátil) posso, por exemplo, iniciar a conversa dizendo:
“Sabe o que me toca em você?”. Se meu interlocutor possui uma
escuta fogo, (visão, imaginação), eu posso instigá-lo empregando
expressões como “veja só...” ou “imagina uma coisa...”. quando
reconheço a escuta predominantemente água (afetiva, emocional),
ajusto minha abordagem fática para expressões como “Eu sinto
que...”. Assim como se me percebo diante de alguém que me
escuta de forma reflexiva ou mental (escuta ar), posso utilizar algo
como “quero que você reflita sobre um assunto”.
Fazer o diagnóstico da escuta é um passo muito
importante. Perceber que seu líder tem uma escuta mais terra, tipo
“pão-pão queijo-queijo”, você encurtaria o caminho chegando com
informações concretas, trazendo dados. Eventualmente, você se
sente que ele não lhe dá a devida atenção, mas isso pode ser
apenas e tão somente um desencontro de modos preferenciais de
escuta.
Reconhecer que a pessoa em quem você está interessado
tem uma escuta mais “aérea”, ou seja reflexiva ou mental, pode
evitar abordagens que a deixariam com a impressão de que você é

5
ou está sendo muito terreno e concreto, ou até mesmo chato. Mas
não imagine apenas que você deveria se adequar ao tipo de escuta
do outro. É muito importante ler em si mesmo qual o seu tempo de
escuta preferencial, ou pelo menos qual está em vigor ou
preponderância naquele dia e naquela situação. A regra é
recíproca, pois alguém que não consegue ou não se interessa por
ler seu estilo de escuta, talvez não seja mesmo a melhor companhia
para você.
A importância da escuta para os povos tupis se traduz no
termo que utilizam para designar o cacique: Acanguatara. Esta
palavra significa Cabeça Boa de Escutar. Aqui se tornaria irresistível
fazer uma comparação com os “homens brancos” que admiram
líderes que “falam bem” enquanto nossas populações ancestrais
consideram líder aquele que melhor lhes escuta.

Você também pode gostar