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Missivas ao Silêncio:
Parte de uma experiência em aprender a escutar
Vitória da Conquista
Fevereiro de 2022
Universidade Estadual do Sudoeste da Bahia
Departamento de Filosofia e Ciências Humanas
Curso de Psicologia
Missivas ao Silêncio:
Parte de uma experiência em aprender a escutar
Vitória da Conquista
Fevereiro de 2022
“Se uma história é semente, então nós somos seu
solo.”
“Se lê
Silêncio
Escrito
Escuta
Se lê
Silêncio”
Arnaldo Antunes
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Resumo: Muito se fala da importância do silêncio para o processo terapêutico, assim como, o
silêncio do terapeuta. No entanto, essa produção surge diante do desconhecido e do que
incomoda, quais foram os impactos do silêncio em parte da minha experiência de aprender a
escutar as pessoas? Este ensaio teórico, prático, fotográfico e poético apresenta dois relatos de
escutas realizadas no Plantão Psicológico da Universidade Estadual do Sudoeste da Bahia
(UESB) e uma experiência, mais geral, que reúne recortes. Revisitei relatos dos atendimentos
no GestorPsi, plataforma utilizada no Núcleo de Práticas Psicológicas (NUPPSI) da UESB,
com o objetivo de resgatar essas impressões. Desta maneira, apresento a minha posição,
polissêmica, diante do silêncio, refletindo sobre vias teóricas do lugar da escuta, e sobre a
prática da mesma. Transformo em missivas, bilhetes escritos, direcionados ao silêncio e
convido o leitor para entender um pouco da minha experiência. Após essas construções, pode
ser compreendida a importância do silêncio, sua necessidade, suas diferenças, e também o
quanto pode ser incômodo. Assim, convido a pensar sobre o barulho que o silêncio faz em você.
1. Considerações Iniciais
“─ Nonada” (GUIMARÃES ROSA, 2019, p.13). Ao leitor que dedicará tempo para ler
esta construção, esclareço o uso da primeira palavra desse parágrafo, a primeira palavra de
Grande Sertão: Veredas, obra que me movimentou em direção ao Silêncio. Curioso começar
com a palavra nonada, que tem seus significados próximos da “coisa insignificante” ou “não é
nada”, mas que na obra de João Guimarães Rosa1 ganha sentido junto com a própria fala de
Riobaldo, personagem central do livro. A palavra me deixou no desconhecido, no
desconfortável, por isso é ponto de onde parto, do desconforto diante do Silêncio-palavra.
Ao construir um objeto esbarrei com um silêncio que, por sua vez, conduziu-me ao
Silêncio. Estava procurando coisas que mais me bateram no peito nestes anos de formação,
encontrando um lugar que ainda faz som de alegria ou de impotência. Assim, o que fez sentido
foi esse atravessamento não-sonoro, e por ser extremamente adepto aos barulhos foi surpresa
para mim. Resolvi, então, arriscar a falar sobre esse espaço, experimentando a revisitação de
pessoas e experiências que me fazem todos os dias, escrevo ao Silêncio que me fez tambor no
coração, de nervoso, minhas respostas em bilhetes, missivas.
1
Autor nascido no estado de Minas Gerais no ano de 1908. Um dos representantes do Modernismo no Brasil,
Guimarães Rosa apresenta obras literárias de muito prestígio como Grande Sertão: Veredas (1956), Sagarana
(1946), Primeiras Estórias (1962), entre outras.
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Contarei a você sobre três lugares dedicados ao Silêncio no processo de uma escuta
clínica, como um aprendedor2 da Psicologia. Para tanto, resgato dois momentos, com duas
pessoas que foram escutadas por mim, e uma experiência, esta última mais geral. O objetivo da
minha escrita é falar sobre como o Silêncio me afetou nos atendimentos clínicos. Para ser
antevisto, o leitor acompanhará uma apresentação teórica sobre o lugar da formação em
Psicologia; a delimitação do Silêncio no processo terapêutico; A Fotografia do Silêncio;
seguindo para as Missivas de fato: Do barulho da escrita; Da [im]potência diante do silêncio; e
Das reticências.
Destaco uma delimitação, a qual se fez brincante em mim pelos meus pensamentos
durante a escrita. A conversa do físico teórico, Marcelo Gleiser (2005) no material de Perdigão
(2005) constrói a definição da física de silêncio, postulando que para o som existir é preciso
meios de propagação, o ar por exemplo, e vibrando em ondas chegam aos ouvidos. Por essa
definição o silêncio só poderia existir em meio extraterrestre, visto a existência de matéria e ar
na terra. Essa descrição me fez pensar se eu estaria escrevendo sobre algo que nunca existiu nos
atendimentos, e sim, dei risada por isso.
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Neologismo; aquele que aprende/se dispõe a aprender.
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trechos, minha atenção se volta para a palavra e às diferenças, imagino que seja bem-posto o
quanto falo da relação com o Silêncio e o meu grau de estranhamento com ele.
O segundo traço tem relação com a curiosidade por essa diversidade de experiência. E,
apesar de conduzir por questões de crenças e preconceitos, peço licença ao autor para uma
ampliação, e como emprestar a atenção e ouvidos ao outro deve ser também respeitar que aquele
outro tem uma forma distinta de processar suas experiências, em seu tempo, utilizando a palavra
da maneira que se faz possível. Penso que caberia, neste momento, outros pontos sobre a postura
do estudante/profissional da Psicologia e da prática clínica, mas que não atravessam a
experiência com os casos tratados aqui.
Fez-se importante trazer, assim, o aprendizado da escuta a partir desses lugares, por esta
produção apresentar parte desse processo. Dunker (2019, p.25) aponta algo que ilustra bem esse
lugar quando diz que “Escutar com qualidade é algo que se aprende. Depende de alguma técnica
e exercício, mas também, e principalmente, de abertura e experimentação”.
Começando por Hospitalidade, que é acolher o dito da outra pessoa, de forma a respeitar
seu tempo e linguagem. Hospital faz relação do cuidado com o que foi dito; Hospício, como
lugar de abrigo e acolhida, diferente de manicômio, como a permissão de ser quem se é,
abrindo-se ao que é estrangeiro. E por último, Dunker (2019) concebe Hospedeiro, dando o
sentido de compartilhamento e transmissão da experiência vivida.
Dentre esses “agás” está presente o cuidado com o escutar, com o acolher, com o tempo
e linguagem. O autor também propõe uma visão dessa escuta, e, dizendo respeito ao escutador,
ele salienta que a linguagem que vale, no processo terapêutico, é a linguagem da pessoa
escutada. Noção que concordo e refaço a pergunta: O silêncio não é também linguagem? E
sendo, não deve ser tomado com cuidado? E não sendo, não merece do mesmo modo?
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“A moeda soberana é a do analisante, por isso assumimos que seus valores, suas crenças
e disposições são ponto de partida e com relação a estes nós estaremos implicados” (DUNKER,
2019, p.39), assim é como o autor complementa a ideia anterior sobre a análise. Esse trecho faz
muito sentido para mim, quando penso que em primeiro momento, naquela relação, a moeda
única era o silêncio, e sendo, eu preciso acolhê-lo como a moeda válida. Mais adiante você verá
detalhes dessa moeda nos diferentes casos.
É curioso pensar que um dos bilhetes apresentados por Calligaris (2019) ilustra a
problemática sobre como o estudante pode apresentar o desejo de interferir na vida do outro,
assumindo a posição daquele que ensina, que sabe. E isso me fez pensar sobre o meu próprio
desejo em cogitar algumas vezes que “Falar é o melhor remédio, eu sei que é assim, então fale”,
e o quanto esse pensamento se apresenta invasivo e contrário ao acolhimento quando coloco o
meu tempo na fala do outro. Spinelli (2005) traz isso do ponto de vista da pessoa atendida
quando acredita que quanto mais ela falar, mais rápido haverá a cura, e que muitas vezes é
justamente o seu contrário.
Ao falar de seu primeiro paciente Calligaris (2019) também diz da expectativa que ele
tinha em não parecer inexperiente e isso me faz aproximação com o episódio citado por Dunker
(2019) sobre situações em que escuta fica tensa, com angústia presente, e pode nos conduzir ao
emudecimento ou a fala exacerbada. Apesar de serem dois lugares aparentemente distintos, o
que liga os dois, para mim, é a construção das expectativas do outro sobre o processo de tornar-
se terapeuta.
Explico. Na segunda situação, Dunker brinca, posso imaginar, ao dizer que o jovem
terapeuta se ajoelha para Lacan ou Freud e/ou pensa no seu supervisor, e fazendo isso, afasta-
se da escuta da pessoa e passa a escutar outros tantos. Ao dar espaço para que a expectativa do
lugar de um terapeuta eficiente entrasse em cena, escutei mais de fora do que me mantive no
atendimento. A imagem de que um terapeuta sempre sabe o que dizer, e que esse dito possa
ajudar o outro a perceber algo de forma diferente esteve presente. Muito ligado a isso que os
pensamentos dos que estão iniciando, como eu, são costumeiramente relacionados com um
dever de falar, interpretar, e não existindo, há a ideia de que não sou terapeuta (SAFRA, 2005).
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Dunker (2019, p.190) também apresenta questões de sua primeira paciente, ainda na
graduação em Psicologia, e diz: “[...] aquilo que os iniciantes mais temem aconteceu comigo:
silêncio”. Compartilho com o autor esse receio do silêncio. Como eu poderia trabalhar com o
silêncio sendo que deveria, hipoteticamente, ter como matéria-prima a palavra dita? Essa foi
uma questão que me fiz diante daquela experiência inquietante. Espero poder aprofundar, mais
a frente, essa ideia.
Considero muito bonita a perspectiva da escuta como uma viagem, como Dunker (2019)
percebe, e guiada pela pessoa que está sendo atendida, e ao assumirmos a postura do
estrangeiro, é também preciso que abandonemos nossos interesses e pretensões, inclusive as de
agradar. Essa viagem também aponta que a qualidade do encontro, do estar-junto como “[...]
mais importante do que meramente chegar ao objetivo pretendido” (DUNKER, 2019, p.68).
Encontrei uma perspectiva muito interessante, aos meus ouvidos, quando Reik (2010),
ao esmiuçar o lugar do silêncio e a movimentação do paciente, concebe que o analista não
escuta apenas o dito. Mas deve escutar com a terceira orelha o que surge, acrescentando que
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parece “[...] bem mais importante detectar o que o discurso esconde e o que o silêncio revela”
(REIK, 2010, p. 23).
Penso em alguma ideia sobre a postura do terapeuta diante do silêncio quando vejo a
colocação de Zolty (2010, p.193) ao falar do psicanalista e o silêncio, diz que o silêncio é a
“[...]experiência cotidiana do não saber”, auxiliando, assim, na suspensão do saber e julgamento
por parte do analista. De modo parecido, Gleiser (2005) diz que o não-saber é o motor
indispensável da ciência, e bem, em se tratando de conhecer, o lugar terapêutico também é
assim. Acho intrigante essa união de áreas e objetos distintos. Será?
Isso me faz lembrar a perspectiva que Dunker (2019) constrói sobre a sessão e arte
cênica. O autor traz à superfície, a metáfora de um picadeiro, no qual quem fala ou quem cala
pode estar vivenciando seus personagens, roteiros, lutando contra leões ou dançando com
bailarinas. E seria neste espetáculo que a escuta deveria acontecer de forma implicada
(DUNKER, 2019).
Ainda nesse sentido, Dunker (IDEM) coloca o silêncio como uma das condições para
que alguém esteja em análise, mas não o silêncio com a preocupação constante de dizer algo.
Penso que o processo do habitar o silêncio é um desafio, seja pelo desconforto que existe ou do
desconforto possível. Assim, retomo uma questão quando Dunker (2019) fala de uma não
resistência diante da experiência do hospício, quando o terapeuta deve encará-lo como
redescoberta do mundo. Imagino que o silêncio ou a palavra não-dita, às vezes soou para mim
como receio de entrar em campo desconhecido, supervalorizando a palavra dita.
Tambara e Freire (1999) também dizem que o silêncio na relação terapêutica é dotado
de polissemia, podendo ser experienciado de diferentes formas. O silêncio pode significar
dificuldade da pessoa em se expressar verbalmente; uma defesa do terapeuta; um teste da pessoa
para o terapeuta; e ainda pode significar um momento rico e de grande produção em um espaço
seguro.
Suportar o silêncio, suspender a reação e dar tempo ao que foi dito, é com isso que
Dunker (2019) aposta bem no que o silêncio também pode ser, ao passo que me lembra sobre
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o respeito do tempo do outro, e é sob este que se constrói, segundo o autor, a função do silêncio
na escuta hospedeira. Perdigão (2005, p.31) aponta que “[...] o encontro terapêutico, ao meu
ver, pode ser palco dos mais íntimos silêncios, tanto doloridos quanto restauradores”.
4. Fotografia do Silêncio
Como já pôde constatar o leitor, convidei o Silêncio para que pudesse ser retratado em
situações que, apesar de não serem dentro de um processo terapêutico, ressoam na minha
experiência. Ao chamá-lo diante da câmera, perguntei à pessoa “Como você lida com o
Silêncio?”. Foram as mais variadas respostas, e todas seguiram do silêncio solicitado para a
fotografia.
A construção das imagens acabou por ocupar um lugar central, barulhento, neste
trabalho, de modo que as fotografias presentes aqui me causaram e causam sentimentos
diversos. Ao tentar retratar o rosto do silêncio, além do contato que tive com o que o silêncio
representa para as pessoas fotografadas, ressoou e continua ressoando em mim parte daquele
Silêncio de que falo.
Sirvo-me, nesse momento, do prólogo da entrevista feita por Perdigão (2005) com
Miguel Rio Branco, artista plástico, quando diz sobre sua atração pela fotografia justamente
pelo foco que há no silêncio. A autora apresenta
Um instante da vida tomado emprestado; um sapato velho e furado, por onde sai um
dedo sujo; as rugas expostas no rosto de uma velha senhora; uma faca suja de sangue
deixada sobre a terra; as roupas num varal, disformes pelo vento. O não-dito é
expresso pela imagem, evocando no observador impressões diversas e diálogos
mudos. (PERDIGÃO, 2005, p.189).
O que me deixa confortável em aproximar as fotos que desejei construir para estarem
presentes, é justamente a sensação de que o não-dito, ou a ausência de palavras expostas nelas,
pode ser retratada, mesmo que de forma metafórica. Posso soar pretensioso, mas, diante de uma
pergunta dedicada ao entrevistado por Perdigão, vi-me afoito para responder positivamente ao
dizer que acredito que o silêncio na obra de arte seria sim um silêncio prenhe, completo, fértil.
Seguimos.
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5. As Missivas
Lançarei mão, nesses pontos seguintes, dos relatórios, das impressões, reflexões,
experiências que fui costurando, supervisões e também do estudo teórico sobre o qual dediquei
atenção. Muito embora não seja o foco, trarei como alguns lampejos, dados mais significativos
do movimento das pessoas que escutei, tendendo a falar dos meus movimentos diante deles.
Trago um material que muito me ajudou na aproximação do Silêncio diante das mais
variadas óticas, Sobre o Silêncio (2005), livro produzido pela Andréa Bomfim Perdigão,
apresenta entrevistas ricas sobre o tema. Perdigão (2005) já na Introdução do livro mostra
questões sobre o silêncio especificamente aplicado ao humano ocidental, questionamentos
sobre como este humano lida como o silêncio, se há rejeição, desejo, se faz bem ou mal, e dentre
tantas interrogações importantes, “Se o silêncio pode ser uma coisa boa e prenha, por que às
vezes tenta-se tanto preenchê-lo?” (PERDIGÃO, 2005, p.13). Essas questões se uniram às
minhas reflexões pessoais quando analiso o impacto do Silêncio no processo terapêutico que
estive presente.
Será também notório perceber que utilizarei, deste material, partes significativas das
entrevistas com atores/atrizes e outros profissionais da arte ou de outros campos, além das
entrevistas com profissionais da área de Saúde Mental. Isto porque também o teatro me fez,
como a arte que aprecio, e o silêncio de arte também faz barulho, diferente, mas muito próximo,
do que o de um processo terapêutico.
Agora peço ao gentil leitor, que até aqui tem sido compreensivo e atento, para me
permitir puxar mais uma orelha, em vez de cadeira, para quem escrevo estes três bilhetes que
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Práticas de Intervenção em Fenomenológico-existencial e Humanista, realizada no semestre 2019.1, tendo o
Professor Ms Daniel Marinho Drummond (CRP 03/6338) como responsável.
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Plataforma utilizada para registros e demais dados dos atendimentos em Psicologia no NUPPSI.
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virão. O Silêncio, substantivo próprio, que esteve presente nas experiências que
cuidadosamente selecionei, toma seu posto de destinatário.
“Só outro silêncio. O senhor sabe o que o silêncio é? É a gente mesmo, demais.”
Guimarães Rosa
“Caro Silêncio caro,
Ao Silêncio que primeiro me fez roer as unhas. Eu me lembro que essa foi a primeira vez que
você se fez presente de uma maneira tão intensa. Não sei se eu gostaria que estivesse, mas
acredito que foi realmente muito importante estar. Em tempo, ocorreu-me a ideia silenciosa de
uma folha de papel, de uma caneta e de palavras que começaram a ser trocadas ali, no ponto
do desconforto. Recordo-me bem, não demorou muito até que sugeri que escrevêssemos, mas
o pouco tempo que você gritou, foi o suficiente para me dar medo. E tive medo todas as vezes
que você voltava, mas não há silêncio completo quando se põe desenho. Eu aprendi a receber
você nessa escuta. Foi barulho de escrita porque diante da ausência do verbal falado, fez-se
grafia. No final, foi possível ouvir um pedido de abraço, falado. Caro Silêncio caro, esta foi a
minha primeira missiva a você.”
Esta missiva tem relação com um atendimento que começou bem perto da pergunta
“Acha que você consegue escrever?”. Consulto o relatório desse primeiro momento para
recordar e me surpreendo com algumas coisas. A pessoa em questão era um adolescente, com
demandas diversas sobre relacionamentos e que escreveu sobre a dificuldade de falar sobre seus
sentimentos pois quase nunca o fazia.
Eu tinha assumido naquele momento, e agora isso fica ainda mais claro, que a pergunta
sobre a possibilidade da escrita fora um amparo para mim, como aprendedor, mas também para
a pessoa, pois se tornou uma alternativa para um outro tipo de expressão. Dessa forma, estou
de acordo com Spinelli (2005) quando apresenta que não vê mal em lançar uma boia, quando a
outra pessoa está em sofrimento por conta do silêncio, ao mesmo tempo que também não vê
mal em aguardar aquele silêncio. Essa perspectiva fica ainda mais respeitosa com a
singularidade do outro quando se assume que silenciar é a forma de ouvir o íntimo que não de
uma forma verborrágica (SPINELLI, 2005).
intervalo, enquanto a pessoa escrevia, eu esperava, com calma e ansiedade, afinal de contas, o
que será que poderia vir de um atendimento tão fora do habitual? Foi surpresa para mim,
perceber que nessa primeira escuta, eu pude ler bastante coisa e, por mais desconfortável que
fosse, assumir o silêncio e uma postura de cuidado diante dele. No final do atendimento já havia
algo diferente, no relatório comentei algo sobre o início de um vínculo desejado.
Ao sair da sala, encontrei a pessoa responsável e disse a ela apenas sobre a possibilidade
de retorno, caso a pessoa que foi escutada quisesse retornar. Como atendi na experiência de
plantão psicológico5, não deixaríamos agendado o próximo encontro, por isso, talvez, ele nem
aconteceria. De acordo com Mahfoud (2012) “plantão” está relacionado com um tipo de serviço
oferecido por profissionais dispostos para pessoas que precisem. O autor apresenta que essa
modalidade exige uma disponibilidade em lidar com o não-planejado. Cada encontro poderia
ser único, e por isso precisava dar o melhor de uma escuta com as atitudes facilitadoras, na
Terapia Centrada no Cliente, sendo elas: compreensão empática, congruência e consideração
positiva incondicional (TAMBARA e FREIRE, 1999).
É sobre esse tempo de espera e escuta atenta que o silêncio e o tempo voltam a se
encontrar, se é que se apresentam separados em algum momento. Safra (2005) aponta um
caminho que estou de acordo, o oferecimento de uma atitude de espera, não uma espera passiva,
mas que é atenta aos pequenos movimentos. É assim, portanto, que a posição de espera é tão
importante, como Safra (2005) completa sobre o grau de desastre quando o terapeuta tem
pressa, tendo isso em vista é que também defendo uma espera atenta. Tenho dito que procuro
fazer da minha escuta cada vez mais ligada às sutilezas e quando digo isso, desloco-me para o
que foi o desenho a seguir.
Temi o retorno silencioso e como agiria se ele se repetisse, na supervisão falei sobre
minha preocupação e dificuldade e construímos que as formas de expressão diversas seriam
bem-vindas e que a arte poderia ajudar. As próximas 6 semanas foram preenchidas com esse
silêncio que se apresentou de maneiras também distintas.
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O Plantão Psicológico como uma modalidade de atendimento em Psicologia de uma forma mais focada, sem ser
obrigatório o agendamento de outras sessões, no NUPPSI, os estagiários disponibilizam os horários que são
preenchidos no mesmo dia do atendimento. As pessoas atendidas, na realização presencial do plantão, deveriam
ter no mínimo 12 anos, e sendo menores de idade, contar com a presença de um responsável.
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sessão seguinte, dando trégua na próxima com a posição de que não queria escrever - naquele
dia ela gostaria de falar. Na última sessão o silêncio voltou, recebi como conhecido, e no final,
a surpresa foi o pedido de um abraço, não do silêncio, mas da pessoa que escutei. Poderia
explorar outros pontos desse atendimento, mas mantenho o foco.
O pedido de abraço pode significar outras coisas, mas considerei importante a fala ter
vindo de uma maneira construída, numa relação empática e, portanto, pautada no cuidado.
Veja, quando escrevia meus movimentos, toquei no silêncio em muitos dos registros,
percebendo minha rigidez, dificuldade e estranhamento, às vezes mais fácil e outras mais
ruidoso.
Dunker (2019, p.41) fala que o psicanalista, e que destaco aqui como
terapeuta/escutador, também se torna “[...] carteiro das cartas não escritas ainda ao cuidar do
silêncio e dos estados informulados do espírito, nos quais não encontramos nossas próprias
palavras”. Ao ler esse trecho, fui transportado para a lembrança dessa pessoa, e como
contraditoriamente pude ter as cartas de fato escritas, mas também as cartas silenciosas da
pessoa que pensava à minha frente.
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Dormir com esse barulho significou, para mim, levar ao supervisor e contar sobre minha
dificuldade e apreensão, concluímos, assim, que eu poderia ligar, excepcionalmente, pedindo
um novo encontro. Eu o fiz, convidando a pessoa a mais uma vez me permitir ouvi-la, e dessa
vez pedi que entrasse sozinho na sala. Lidei com um cenário muito parecido com a sessão
anterior, recebendo o “Não sei” em várias das provocações e perguntas. Seria aparentemente
fácil falar de como me senti mal diante desse lugar, não obstante, não consegui descrever com
maior riqueza de detalhes.
Pude ter contato com algumas dores pesadas da pessoa que as me confiou mesmo que
falas poucas, mas me senti incapaz em poder aprofundar e tentar outras formas de estabelecer
um encontro significativo. Este foi o último atendimento, a pessoa não retornou mais ao
NUPPSI e, portanto, não pude mais acompanhá-la. E, até o momento dessa escrita, também não
havia retornado com outra pessoa. Pensando em hipóteses, acredito que a pessoa foi ao NUPPSI
por ter sido levada por uma outra pessoa em busca de um acompanhamento psiquiátrico. No
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entanto, compreendo que respeitar a expressão da pessoa que esteve ali é também um dos papéis
que me cabia numa escuta empática.
Dunker (2019) apresenta que dentro da perspectiva da arte da escuta devemos estar na
hospitalidade, de um modo a equilibrar e desequilibrar o interlocutor buscando o ponto mais
produtivo. Percebo que busquei tatear esse ponto que o autor expressa, ao cutucar, dizer o que
se passava na minha cabeça diante do silêncio dele. Ainda assim, ao contrário de Gullar (2005),
para quem o silêncio é paz, nesses momentos, o silêncio se apresentou para mim como um
oposto a isso, veio em tensão.
Quando Safra (2005) diz desse silêncio ligado a um medo, posso perceber alguns
detalhes, o autor entende que um silêncio tenso é uma densidade, e que muitas vezes ele pode
observar esse tipo de silêncio em pessoas muito sofridas, tendo em sua biografia as dificuldades
em um encontro.
No entanto, também assumo um pouco da ideia de Franzini (2010, p.104) quando conta
de uma pessoa que acompanhou, o autor fala de um silêncio “[...] pesado, inamovível, difícil
de classificar.” falando de uma posição vegetativa. Sobre esta última ainda me causa estranheza,
por acreditar em muitos movimentos da pessoa que escutei. Por entender, assim como Pascoal
da Conceição (2005), ator, sobre a existência de uma produção silenciosa, que não podemos ou
não conseguimos ouvir, algo que se apresenta como latente.
Fico pensando também, sobre uma perspectiva que trouxe de materiais outros sobre o
silêncio para o ser ocidental. Assim, relembro a postura que Spinelli (2005) assume sobre o
quanto a nossa cultura combate o silêncio e tenta preenchê-lo. Segundo o médico, não há espaço
para o silêncio auditivo, visual e sensorial, construindo-se, a nossa sociedade, como repleta de
hiperestímulos. É dessa maneira que reflito o quanto esse meu incômodo diante do silêncio
também tem relação com o comportamento de suportar o silêncio.
E ainda existe um detalhe que considero relevante, o silêncio, como está expresso em
outros lugares neste trabalho, tem a ver com o tempo. Spinelli (2005) defende que o tempo é
vivido, muitas vezes, como uma tortura na mente ocidental/pós-moderna, que o faz negar a
espera. É aqui que se diz sobre o silêncio estar relacionado com o tempo das coisas e, sendo
assim, com a espera que elas apresentam.
tornou angústia de não saber por onde ir, mas que isso acabou por conduzi-lo às experiências
ricas. Percebo que esse fora também um aspecto do lugar que ocupei, percebi um impedimento
nessa escuta, um certo não-saber qual caminho tomar. Ainda reflito o que poderia ter feito de
diferente, e o quanto isso pode ajudar a minha prática. Bem, é importante destacar que percebi
um movimento da pessoa entre uma sessão e outra, o silêncio foi reformulado e pude ouvir um
pouco mais a palavra dita, muito embora, talvez, a minha expectativa com o desenvolvimento
de uma sessão esperada tenha me feito perceber apenas o lado da impotência.
O título desta missiva é da [im]potência justamente pelo meu sentimento de não poder
ter contribuído, e por isso o Silêncio fora o não quisto, não estimado, mas com jogo em dizer
não desejado.
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“Imenso deve ser o silêncio em que há lugar para tais ruídos e movimentos”
Rainer M. Rilke
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Não quero passar a ideia de que o Silêncio me agrada, no entanto, fiquei feliz ao percebê-
lo sendo, em alguns espaços, bem-vindo. Nesta missiva não trouxe um caso específico, mas sim
um conjunto de experiências posteriores aos dois casos relatados anteriormente.
Estas experiências aconteceram em um período incomum por conta do afastamento
social protetivo em função da pandemia provocada pela Covid-19, no qual, também mantive a
minha prática ligada a projetos. Um deles, o Psicologia em Link, apresentado como pesquisa-
ação e que se dedicou na oferta de atendimentos na modalidade online e de forma gratuita
durante o período de distanciamento social (ALMEIDA et. al, 2020). E, do mesmo modo, da
minha experiência com estágio não-obrigatório6.
Acho importante destacar esses lugares por citar na missiva a frase “Oi, está me
ouvindo?” como parte de um silêncio resultado das alterações na estabilidade da conexão à
internet. Bem, nesse momento até posso dar uma risada, no entanto esse procedimento se fez
realidade durante a popularização dos atendimentos de maneira remota, incluindo as práticas
de extensão e estágio em Psicologia, regulamentadas pelos órgãos responsáveis.
Porém, não foco nesse silêncio de internet. Quando me veio a ideia de falar um pouco
disso chegou a pergunta “Como eu tenho lidado com ele?”. E foi quando Dunker (2019, p.59)
aponta que “Criar junto com o outro e deixar-se afetar pelo outro.” que comecei a construir
6
Na área da Psicologia Escolar no Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia da Bahia (IFBA), do
campus de Vitória da Conquista, sob supervisão da psicóloga Marcela Vieira Dantas (CRP 03/03915).
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respostas. Lidar com o silêncio em alguma dessas experiências foi estar junto, e criar junto, e
criar, inclusive silêncios, tempos necessários, acolhidas indispensáveis.
Posso relembrar de momentos que apreciei o encontro com sorriso no rosto, porque me
deixei afetar pela construção com a outra pessoa. Um pouco desse sentimento continua no
desconhecido, e que também me remete à viagem, como Dunker (2019) fala de um
redescobrimento de um país novo e diferente ao mesmo tempo pela possibilidade de não se
sentir ameaçado. No meu caso, ameaçado pela ausência das palavras ditas.
Um pouco disso faz parte do que Conceição (2005) diz sobre o silêncio vivido junto, o
quanto isso pode ser muito bom e além disso, o caráter que o silêncio tem de estar ligado com
a descoberta e a perplexidade. Ideia que se coaduna com a perspectiva de Calligaris (2019) que
apresentarei.
Bem, preciso concordar que escutar dá trabalho e demanda tempo como Dunker (2019)
nos diz, mas que ainda assim, é bom mantermos o espírito da debutante que Calligaris (2019)
rememora ao falar sobre a curiosidade e a vontade de escutar. E apesar dos desconfortos, esse
grau de curiosidade acredito estar relacionado com o mistério que Spinelli (2005) nos apresenta,
e como ele precisa ser tolerado para que sejam possíveis clarões de entendimento.
Quando o poeta Ferreira Gullar (2005) é questionado sobre o espaço do insight, ele
aponta o caminho de que há, no silêncio, possibilidade de descoberta de coisas que não haviam
sido percebidas, e que assim como é necessário para a poesia, para a ciência também. Assumo
essa postura ao acreditar que o silêncio se faz necessário em momentos importantes no processo
terapêutico.
Uma das definições mais bonitas que pude encontrar, e que venho defendendo como
promoção do cuidado do silêncio, foi a de Spinelli (2005) quando concebe como intimidade
esse silêncio compartilhado e, segundo o psiquiatra, talvez o momento mais bonito e amoroso
no encontro analítico. E sobre o amor, Gilberto Safra (2005), psicólogo, diz que para ele, se o
amor tinha uma face, a face era do silêncio, por se tratar de um silêncio-presença ou mais, uma
possibilidade, expectativa, um lugar. E entendo que essa postura tem a ver com suas relações
com o silêncio assim como, muitas vezes, para mim ele pode ser uma experiência incômoda.
É o que posso dizer, nessas recentes experiências foi possível que eu tricotasse algo a
quatro mãos, com linhas de muitas cores, no som da fala e na apreciação do silêncio, sem ao
menos saber manusear as agulhas físicas. Safra (2005) diz, sobre isso, que às vezes se caminha
por muito tempo para que o silêncio possa estar entre pessoa e pessoa-terapeuta, e que quando
isso acontece, no contexto da clínica, é sagrado. Bom, não sei se será sempre assim a minha
relação com o silêncio, porém penso que, agora, tenho mais contato com ele, Silêncio Presente.
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Neste ponto da minha produção também fui atravessado pela declaração da Fernanda
Montenegro (2005), também entrevistada no material Sobre o Silêncio, quando diz “Eu acho
que o silêncio não existe. Eu acho que não há nada mais tonitruante do que o chamado silêncio”
(2005, p. 203). Assim, arrisco concordar, diante do barulho que faz o coração e das definições
físicas de som, que já destaquei anteriormente, sem expectativas de que isso desdiga o que
discorri sobre o Silêncio e os silêncios.
Ao construir essa seção com o que de mais importante fica das experiências, as quais
apresentei, sinto a necessidade de resgatar a ideia de Safra (2005) e a perspectiva do silêncio
como presença, e não como um lugar. O silêncio-presença é uma oportunidade de estar junto
em escuta e atenção. Há, de um outro lado, essa experiência do silêncio como um buraco, e
assim ele é recebido com terror e ansiedade de entupir. Percebo meu itinerário entre os dois
lugares nas duas primeiras missivas, o silêncio incômodo e o silêncio acolhido.
Penso, ao visitar as missivas e as fotos, que o silêncio ainda pode me incomodar, mas
que ele se faz necessário. Nas duas primeiras missivas apresentei os relatos sobre quem pude
escutar, e apesar de falar sobre o Silêncio como um, foram distintos, chegando em mim da
mesma maneira. É possível perceber a importância desses lugares de silêncio dentro do
processo terapêutico, mas continuo a acreditar que identificar o meu incômodo diante disso, foi
ainda parte importante para o início de uma jornada de conhecimento.
O que é consenso entre poetas, atrizes, médicos ou psicólogas e eu, que me apresento
como um aprendedor, é que o silêncio pode proporcionar experiências, duras, interessantes,
boas e difíceis. O Silêncio como realidade, mas como presença, este como uma atitude de
respeito que começo a ter, mesmo que, muitas vezes, o barulho seja minha escolha.
encontro com o silêncio pode ser de inúmeras maneiras, e até parecido com a minha, mas nunca
será igual.
E dentro de uma escuta clínica há diversos compromissos, seja com a pessoa atendida,
com a instituição e com a sociedade. Como Calligaris (2019) aponta, que o compromisso é de
prestar o melhor serviço possível.
A experiência com o silêncio, ao meu ver, é a experiência com o tempo do outro. E isso
diz bastante coisa, não? É do pedido falado de abraço, mas antes dele escrito, que eu disse. É
também do meu medo e da minha incerteza, e do meu processo de maturação constante, que
assumi os sentimentos diante do Silêncio. Espero ter podido expressar esses lugares, caminhos
dessa experiência. Ao leitor/leitora que me escutou até aqui, muito obrigado por sua atenção
sonora. Mas antes do fim, qual é o barulho que o Silêncio faz em você?
“Assim é como conto. Antes conto as coisas que formaram passado para mim com mais
pertença. Vou lhe falar. Lhe falo do sertão. Do que não sei. Um grande sertão! Não sei.
Ninguém ainda não sabe. Só umas raríssimas pessoas – e só essas poucas veredas,
veredazinhas. O que muito lhe agradeço é a sua fineza de atenção.”
Guimarães Rosa
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“Narrei ao senhor. No que narrei, o senhor talvez até ache mais do que eu, a minha verdade.
Fim que foi.
Aqui a estória se acabou.
Aqui a estória acabada.
Aqui a estória acaba.”
Guimarães Rosa
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Referências Bibliográficas
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BARROS, M. Concerto a céu aberto para solos de ave. Rio de Janeiro: Record, 1998.
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de Janeiro: Rocco, 2018.
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Tradução de Martha Prada e Silva. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2010.
NASIO, J-D. O silêncio na Psicanálise. J-D Nasio (org); Tradução de Martha Prada e Silva.
Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2010.
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REIK, T. No início é o silêncio. In: NASIO, J-D (org). O silêncio na Psicanálise. Tradução
de Martha Prada e Silva. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2010.
RILKE, R. M. Cartas a um jovem poeta. 4ª ed. Tradução: Paulo Rónai e Cecília Meireles.
São Paulo: Globo, 2013.
ROSA, J. G. Grande Sertão: Veredas. 22ª ed. São Paulo: Companhia das Letras, 2019.
SUED, E. Pintar com os ouvidos. In: PERDIGÃO, A. B. Sobre o Silêncio. São Paulo: Pulso,
2005.