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Coletâneas da ANPEPP

O uso da versão de sentido na formação e


pesquisa em psicologia

Mauro Martins Amatuzzi Pontificia Universidade Católica de Campinas

Resumo

Parte de una preocupação com a busca de caminhos para pesquisas de tipo


qualitativo, seja no contexto acadêmico da pós-graduação, seja no contexto da prática
profissional. Propõe-se a eximinı teoricamente um tipo de relato do vivido que vem sendo usado
como instrumento pratico tanto na formação como na pesquisa, denominado Versão de
Sentido (VS). Diz novamente em que consiste, conta um pouco de sua história, e busca uma
justificativa para seu uso. A VS é uma fala expressiva da experiència imediata da pessoa,
diante de um encontro recém-terninado. Quando registrada por escrito é um texto
breve, escrito JİYIC e espontaneamente, e como tal tem sido usada cm super visões, análises de
práticas, e descrições de processos. A experiencia mostrou que esse tipo de relato,
principalmente quando lido e discutido num grupo, tem um poder muito grande de
evocação do ocorrido e de presentificação do vivido, permitindo assim um acesso ao seu
sentido. Mostrou também que aprender a fazer versões de sentido equivale a una aprendizagem
de como lidar com significados vividos en relações humanas. A base para esse poder da VS pode
se encontrar na natureza simbólica da linguagem. Quanto mais auténtica uma fala, tanto mais ela
reúne o que estava disperso, cumprindo-se como símbolo. E quanto menos auténtica, major
a probabilidade do surgimento de elementos simbólicos inadvertidos no discurso. Quanto
mais auténtica for a produção desses relatos espontâneos, tanto mais eles poderão ser usados
na formação e na pesquisa, como uma via de acesso ao sentido vivido.

Apresentação
Tenho trabalhado há algum tempo com Versõcs de Sentido (VS), como
instrumento econômico e de uso fácil, no acompanhamento reflexivo de
atendimentos terapêuticos, de atividades educativas e docentes, e de trabalhos
com grupos. A experiência se espalhou, e hoje muitos colegas a praticam em
atividades de formação e supervisão, e
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começa também a ser usada em pesquisa. Contudo também não faltam os opositores,
argumentando que o termo é em si contraditório, ou que a VS não pode servir como
forma de acesso ao processo vivido. A experiência de quem já lidou com esse tipo
de relato do vivido, entretanto, fala a favor de sua fecundidade para a formação e
pesquisa, tanto no campo clínico como no educativo ou de assessoria a grupos.
O que me proponho aqui é: 1) redizer o que é exatamente uma VS, 2) contar um pouco
de sua história, fundamentando-a em uma
história anterior, e 3) buscar uma justificativa teórica para seu uso.
Gostaria de ter como pano de fundo o conjunto de desafios encontrados em uma iniciação
científica no campo de uma abordagem qualitativa, seja quanto à pesquisa, seja quanto à
prática profissional. Não vejo porque uma iniciação, para ser científica, deva começar pelo
manuseio de tabelas, frequências e testes estatísticos, quando o que se visa é um aprendizado
de penetração de significados. Não vejo porque, também, esse aprendizado deva ser separado
de uma iniciação à prática de atendimentos ou de uma experiência de envolvimento
com proces sos grupais.
Entendemos por versão de sentido um relato livre, que não tem a pretensão de
ser um registro objetivo do que aconteceu, mas sim de ser uma reação viva a isso,
escrito ou falado imediatamente após o ocorrido, e como uma palavra primeira. Consiste
numa fala expressiva da experiência imediata de seu autor, diante de um encontro
recém-ter minado.

Compreendendo a VS a partir de sua história


Tudo começou com o convite, feito a alguns colegas recém-for mados, para uma
pesquisa em ação a respeito do desenvolvimento pessoal, isso se faria através de um grupo em
que discutiriamos semanalmente nossas experiências em atendimento psicológico ou psicoterapia,
Combinamos que essas discussões seriam feitas não a partir do relato da sessão, mas a
partir de um relato condensado do que, para o terapeuta, tinha sido o essencial do encontro
terapêutico. Houve basi camente dois motivos para isso. Um, bastante trivial. Estávamos todos
cansados de fazer relatórios mecânicos de sessão, como era exigido nos estágios. E o outro motivo
se referia a questão do sentido. O que "fazia
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sentido" estarmos conversando? E antes disso, o que fazia realmente sentido" para nós
estar escrevendo logo após um atendimento? A resposta parecia ser: o que de
primeiro nos vinha à mente, agora, com o distanciamento da presença face a face do
cliente, e antes que nos tivéssemos envolvido em uma nova atividade. E mais: algo que nos
desse uma visão de conjunto do que acabara de acontecer ali. Escrever isso foi
experimentado como significativo.
Fazendo isso, e discutindo nossos atendimentos a partir de tais relatos,
algumas coisas foram ficando mais claras. O que fazia sentido registrar era
diferente daquilo que escrevíamos quando, de memória, tentávamos
reproduzir a seqüência dos fatos de forma neutra. O que fazia sentido registrar era o
sentido vivo, presente no próprio ato de cscrever. E era csse sentido que expressava melhor o
andamento do processo.
Foi isso que nos levou à formulação de que o "sentido que interessa" é sempre
presente. Um registro mecânico não o pode captar, pois ele só contém o passado. É só
através de nosso presente que podemos estabelecer contato vivo com o sentido
de um encontro. E é o contato vivo que é útil na formação.
Mas isso equivale a dizer também que, se eu quiser ter um sentido vivo do
sentido vivido numa sessão terapêutica, este sentido vivo só poderá ser uma versão
atualizada no presente, do sentido vivido lá. O resto será tudo memória apenas, ou
esquecimento. O único acesso possível ao sentido vivo de um encontro se dá através de versões
atuais dele, no vivido de quem o reatualiza,
Aquele grupo de colegas, naqueles anos de 1989/90 na USP, havia realizado uma
exploração em ação da experiência do sentido. E isso foi publicado em 1991 em um artigo
que teve por título: "O sentido-que-faz-sentido: uma pesquisa fenomenológica no processo
terapêutico" (Amatuzzi, Solymos, Ando, Bruscagin & Costabile, 1991).
Gostaria de prolongar hoje aquelas reflexões para fazer face a algumas objeções
que surgiram depois, em encontros com outros colegas. E principalmente a duas delas: 1) o
sentido não tem versão (e portanto a VS nos distancia do sentido vivo), e, 2) a VS não nos dá
acesso ao que de fato aconteceu (e portanto não serve como instrumento científico de
pesquisa).
A VS é uma versão do sentido vivido de um encontro, através do sentido vivido
fogo depois e por isso mais facilmente sur preendido). Mas ela poderá ser também
apenas memória, se não for
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atualizada em outro diálogo vivo. Isso também foi experimentado naquele grupo. Ao
invés de a sessão ser trazida ao grupo como um objeto a ser analisado (através de
um relatório), era lida a VS, e a ela reagiamos com comentários livres, inclusive o
próprio terapeuta. Esses comentários foram se revelando ser de dois tipos, quando mais
úteis. No que diz respeito ao terapeuta (autor da VS) foi interessante constatar o poder de
evocação que a VS tinha. Era como um registro condensado do vivido, e que permitia à
pessoa não apenas lembrar-se de detalhes do ocorrido, mas também falar disso de
forma viva, atual, como pela primeira vez, explicitando detalhes do vivido. E por parte dos outros
membros do grupo constatamos que os raciocínios ou interpretações causais
não ajudavam muito, pelo menos no primeiro momento. Mais valia simplesmente dizer,
de forma simples e presente, o que se tinha ouvido a partir da leitura da VS, e a reação
que isso havia provocado em si. A partir daí se iniciava un diálogo que cumpria
aquilo que, com Buber, poderíarnos chamar de "presentificação" do sentido ou dos
significados vividos (agora em novo contexto interlocucional). Só quando isso
estivesse realizado, é que outras formas de consideração ou raciocínio se faziam úteis
no acompanhamento reflexivo da ex periência.
Em um outro grupo posterior, tratando-se de uma experiência didática (desta vez na
PUCCAMP, em 1995), constatamos que aquilo que para o autor da VS podia inicialmente
parecer sem sentido se lido para terceiros, para os outros que ouviam de fato
transmitia muito exatamente a qualidade do vivido, mesmo que não houvesse ali infor
mações sobre o empírico do que tinha acontecido. Isso aconteceu mais ou menos assim. Numa
sala de aula do curso de pós-graduação em psicologia clínica, alguns alunos estavam
trabalhando com versões de sentido para acompanhar experiências semanais de
atendimento clinico, educativo ou de assessoria a grupos. Haviamos feito um rápido
"treino" para escrever VȘs no começo do curso. Quando um determi nado aluno foi ler sua VS
pela primeira vez, ele hesitava muito, e, com muitas explicações, dizia que não via
sentido em ler aquilo para outras pessoas. Por fim foi pedido que ele a lesse assim
mesmo, e, sem comentários, ouvisse o que os colegas tinham a dizer a cerca do que
tinham ouvido. Ao final dessas falas dos colegas, o primeiro declarou estarTecido que eles
tinhamn dito o essencial daquele encontro, mesmo sem saber nada de seu enredo.
Pessoalmente comecei a pensar que uma VS bem feita é uma espécie de radiografia
fenomenológica de um encontro.
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Até agora pretendo estar afirmando que: 1) Uma VS é uma forma de contato vivo
com o sentido de um
encontro, 2) O sentido para o qual aponta uma VS se torna atual
quando ela é colocada qum contexto de interlocução pre
sente. 3) Ela tem o poder de transportar o vivido de forma conden
sada. Ela evoca lembranças e desdobramentos de sentido em seu autor, e passa para
os ouvintes um sentido essencial,
mesmo quando não passa detalhes fatuais.
Mas outras coisas também pudemos constatar naquele primeiro grupo.
Vejamo-las.
4) Uma VS pode ser re-escrita pelo seu autor sem que ela
deixe de ser uma Vs. Verificamos que o seu autor pode torná-la atual, e nesse ato
poderá haver novas explicitações ou desdobramentos de sentido. Em suma, pode haver
versões de versões de sentido. Isso é importante do ponto de vista da
pesquisa. No fundo o método qualitativo de pesquisa consiste em re-escrever
sucessivamente a mesma coisa (ou fazer sucessivas leituras) até que se chegue a uma
depuração do significado que se procura. E quando é o próprio sujeito que faz isso (sozinho
ou em interlocução), não seria de estranhar que se acrescentassem eventualmente significados
novos do mesmo vivido. 5) Mas poderia ser uma VS re-escrita por outra pessoa?
Poderíamos talvez dizer que a transcrição feita por um pesquisador seria tão mais
apropriada quanto mais ele tivesse participado da re-criação do sentido
através de um grupo de interlocução, na medida do possível com a pre sença do
autor. Permanece válido, no entanto, que re-escrever (ou transcrever) é fazer uma
outra versão do mesmo sentido,
a partir do atual ponto de vista de quem o faz. 6) O trabalho com VSs em grupo (ou
numa dupla) pode ser
equivalente a uma supervisão. Isso também foi constatado por membros de grupo de
trabalho com VS, e que, por outro lado, estavam em supervisão com outra
pessoa. O que se dizia é que a discussão no grupo estava sendo mais
significativa do que aquela que a pessoa tinha em sua supervisão. Foi por causa
disso também que muitos colegas passaram a usar a VS
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como método de supervisão, e alguns chegaram a levar


trabalhos em congressos sobre essa experiência. 7) Posteriormente a esse grupo,
que durou aproximadamente um
ano, o trabalho prosseguiu de outras formas. Uma das formas mais significativas foi o
trabalho com seqüências inteiras. A conclusão foi que, a partir da análise de
séries de VSs, referentes a um mesmo processo, é possível descrever, de um
ponto de vista mais fenomenológico, a esse mesmo processo. As versões de
sentido, sessão por sessão, olhadas em conjunto depois de terminado o
processo, possibilitam uma visão mais condensada do todo, e ao mesmo tempo rica
em detalhes experienciais (embora não em detalhes fatuais). Um trabalho nesse
sentido já foi publicado (Amatuzzi, 1993),
e outros estão em andamento.
Uma questão importante que aqui se coloca é de se saber se é possível descrever um
processo do qual participaram pelo menos duas pessoas, a partir das V$s de apenas
uma delas.
Se entendemos por processo a seqüência de fatos ocorridos, objetivamente
considerados, e envolvendo todas as pessoas em relação, então certamente que a
descrição feita a partir de VSs seria muito parcial. Mas se processo se referir não a
fatos objetivos, e sim à seqüência de significados vividos de encontro para
encontro, e se esses significados forem entendidos como sendo do encontro, e não de
cada participante em separado, então podemos hipotetizar que a série de Vss nos
dê acesso ao desenho do processo. Cada VS será aqui realmente apenas uma "versão" do
sentido do encontro, e é como tal que ela deve ser analisada.
É claro que significado ou sentido do encontro é um conceito de dificil apreensão. O que é
isso na prática? No entanto é ele que mais interessa na avaliação de um processo: o
que cada encontro possibilitou em relação a um movimento de conjunto, e como
esses elos se articulam na cadeia. E no caso de um processo terapêutico, será
principalmente o significado que o encontro teve para o cliente que irá definir seu
sentido. Ora, o terapeuta como tal é uma pessoa voltada para isso, e é nesse papel
que ele faz suas versões de sentido. Elas podem ser, portanto, aqui de particular relevância.
Mais pesquisa seria aqui necessário, envolvendo comparati yamente VSs de
terapeutas e de clientes (ou de todos os participantes do grupo), sem dúvida. E já
existe um projeto de mestrado nessa direção. No entanto eu ousaria dizer,
teoricamente, que a natureza das
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coisas aqui em jogo é tal que as VSs de um participante apenas podem nos dar um
razoável acesso ao sentido do processo como um todo, desde que sejam lidas
sob esse ponto de vista.
8) Há uma outra conclusão a que pudemos chegar, no entanto,
que torna relativas todas as anteriores. É que a VS é uma coisa que se vai a
prendendo a fazer, assim como se aprende a chegar a uma fala autêntica a
partir de um hábito anterior de falas inautênticas, mecanizadas, e só
indiretamente ex pressivas. Não basta uma simples instrução para que a
pessoa esteja pronta para escrever uma VS. E comum que ela comece fazendo
relatos de observação neutra, ou mesmo elaborações lógicas a respeito do
ocorrido. E só pouco a pouco que a VS vai se aproximando de uma fala
expressiva da experiência
imediata,
Nossa história com esse instrumento pode nos dizer algumas coisas aqui. Uma
primeira é que justamente ir aprendendo a fazer VSs é ir aprendendo a lidar de forma viva
com o significado das coisas, e consequentemente, ir aprendendo a relação psicológica. Isso
parece importante no aspecto pedagógico da formação.
Em segundo lugar, se deve dizer que a VS não é tão variável em seu valor
expressivo quanto o seria a fala direta na presença do cliente. O recuo no qual ela é
feita (sob o clima do encontro, mas sem a presença do interlocutor) permite mais
facilmente seu caráter expressivo. Além disso ela é passível de "correções" no grupo
de acompanhamento reflexivo (supervisão).
E finalmente, é importante dizer que uma boa análise de qualquer
documento deve levar em conta as caraterísticas de seu valor heuristico.

Pré-história e outras abordagens

Rogers, em 1951, em seu "Psicoterapia Centrada no Cliente", utilizou-se também de


relatos livres do próprio cliente para ilustrar o processo. Segundo ele, foi
espontaneamente que una determinada cliente escreveu após cada sessão. No fim do
processo de 8 sessões o terapeuta recebeu todos esses escritos que serviram, então, para
mostrar como as coisas se passaram “aos olhos do cliente". Eis como ele apresenta os
manuscritos:
Depois desta primeira entrevista, ela (a cliente) escreveu, de forma
bastante completa, szas impressões, e mostrou o relato ao conselheiro
antes do segundo
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encontro. O conselheiro a incentivou a continuar reali zando esses informes pessoais


depois de cada entrevista, para incrementar nosso conhecimento da terapia.
Disse a ela que quanto mais sincero fosse o informe, impli cando
afirmações positivas ou negativas, mais valioso seria o registro. Não se
voltou a mencionar o informe nas entrevistas seguintes, e o conselheiro só os
recebeu ao final dos contatos terapéuticas. - O relato é aten samente
auto-explicativo, mesmo que a autora o Inter rompe por momentos com
comentários. (Rogers,
1972/1951,p.88-89)
A cliente fez algo que algo que se aproxima um pouco de nossas VSs, e que foi
utilizado depois num estudo de caráter eminentemente qualitativo. Algumas
expressões chamam a atenção: informes pessoais, sinceros, para incrementar
nosso conhecimento.
Infelizmente essas sessões não foram gravadas para que se pudesse comparar
os informes escritos com as gravações, e evidenciar assim não só o que a
gravação tem a mais, mas também o que os infomes têm a mais, e que não
poderia nunca ser gravado.
Bastante cedo também nos Estados Unidos o videoteipe foi utilizado como
instrumento e técnica a serviço da terapia. Um dos usos consistiu em recapitular a
sessão, com sua ajuda, junto com o terapeuta ou o cliente, permitindo novos insights
sobre a relação. Isso era uma técnica de supervisão, a Interpersonal Process Recall
(IPR), surgida na década de 1970. Segundo um comentário de Bernard & Gooyear,
em seu livro sobre a supervisão (1992,p.26), embora o método pareça
comportamental, ele tem também um aspecto fenomenológico, pois assume que as
próprias pessoas são os melhores intérpretes de suas experiências. Eles dizem também que
paradoxalmente tal técnica per mitia um acesso mais livre ao vivido do que o da própria
sessão, pois diante do video o terapeuta permitia mais facilmente que os insights emergissem de
dentro de si mesmo. Ele fala de uma re-experienciação da sessão diante do video. E o
resultado presumível, podemos deduzir, é que os comentários assim feitos após a
sessão, com o distanciamento do contato imediato, mencionavam sentimentos ou
lembranças vividas lá, mas não verbalizadas, e que, portanto, nio apareciam na
gravação.
O mesmo pode ser constatado com o uso de questionários aplicados a clientes
e terapeutas logo após a sessão. As perguntas mencionadas em estudos como os
de Heppner, Rosemberg & Hedgespeth (1992) ou de Stiles, Reynolds, Hardy, Rees,
Barkham & Shapiro (1994) e que já constituem instrumentos padronizados visam
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colher dos clientes ou dos terapeutas, imediatamente após a sessão e já não na


presença um do outro, seus sentimentos, pensamentos ou avaliações acerca do encontro
recém-terminado. E claro que as res postas continham dados muitas vezes diferentes dos
que apareciam nas gravações.
A VS segue esse mesmo espírito, só que ela é feita de forma mais livre, não
padronizada, e a partir daquilo que a própria pessoa considera importante.
Tentativa de definição

Como produção, uma VS é a fala, o mais auténtica possível, que toma


como referência intencional um encontro vivido, pronun ciada logo após sua
ocorrência. Fala autêntica: é importante que seja uma fala expressiva da experiência imediata,
fala primeira, original, espontânea, e não necessariamente um raciocínio, teorização,
cumpri mento de instruções ou relatório. Referência intencional: esta fala é expressiva da
experiência imediata, diante de um encontro. A situação: uma relação interpessoal, uma
aula assistida, um grupo, ou mesmo qualquer encontro com um objeto significativo.
Esta fala é pronunciada logo após a ocorrência do encontro, e tendo-o como
referência. A situação interlocucional que define o encontro já não é exatamente a mesma; o
sujeito não está pressionado pela necessidade da resposta, e nesse sentido está mais livre
para um acesso à sua experiência imediata.
Como produto, a VS será um texto expressivo da experiência imediata,
escrito ou gravado por iniciativa da própria pessoa, ou solici tado por um interlocutor. A rigor
poderia ser qualquer tipo de produção simbólica.
Como poderíamos solicitar uma VS de um cliente, de um supervisionando, de
um auxiliar de pesquisa, ou de um participante de grupo? Uma possível maneira simples
seria pedir a ele que "logo após a atividade em questão, escreva, o mais espontânea e
sinceramente possível, baseando-se em seus próprios sentimentos neste momento, o
que lhe parccc ter sido o essencial deste encontro que acabou de acontecer", Ou:
"escreva livremente acerca do acabou de acontecer"; ou ainda: "escreva como você está,
diante desse encontro que termina". E importante que o próprio autor experiencie a
significância do que ele está escrevendo ou falando. Qualquer tentativa de "instrução" deve ser
apenas o começo de um processo em direção a um texto ou depoimento
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cada vez mais expressivo da experiência imediata ante o encontro, e que seja ao
mesmo tempo significativo para para quem escreve.
A um texto assim produzido, nós o denominamos uma versão de sentido" porque
ele pode ser um indicador indireto (mas o mais direto que podemos dispor) do sentido
do encontro. Ele é uma versão do sentido do encontro, tal como ele existe no
presente da experiência dessa pessoa. E é quando utilizada dessa forma que uma
VS pode ser um instrumento útil em pesquisa e formação.
Podemos então falar de versões de sentido como método. Con siste
essencialmente em versar e conversar sobre o sentido até que se chegue a uma
presentificação dele suficiente em relação ao que esperado daquela atividade, Versar e
conversar; fazer versões de sentido, e "con-versar" a partir delas fazendo novas versões.
Presenti ficação: palavra de estilo buberiano, que quer dizer, aqui, explicitar
experiencialmente os significados, isto é, não apenas dize-los concei tualmente, mas
torná-los presentes vivencialmente. Se se trata do acompanhamento crítico de uma
experiência (supervisão, por exem plo), a presentificação esperada é aquela que
toma o sujeito mais bem preparado e disponível para o próximo encontro. Se
se trata de pesquisa, a presentificação esperada é aquela que atende, em
linguagem cien tífica, a um objetivo ou intenção de conhecimento (ainda que esse objetivo faça
parte de uma ação).

Para uma fundamentação teórica


Podemos buscar uma justificativa teórica para a versão de sen tido em uma
fenomenologia da linguagem inspirada em Martin Buber e Maurice Merleau-Ponty, Em
dois artigos reuni alguns elementos que preparam essa tarefa (Amatuzzi, 1991 e 1992).
Mas agora quero sugerir em que direções podemos desenvolver essa fundamentação.
Para além dos elementos simbólicos do discurso, a fala, como ato, é un símbolo. Quer
isso dizer que não apenas ela contém elementos que, advertida ou inadvertidamente,
remetem a outras coisas (elemen tos simbólicos), mas que em si mesma ela "reúne",
põe junto uma série de coisas que antes estavam separadas, e o faz intencionalmente
(sún bolo). Quanto mais a fala se cumpre como símbolo, menos importantes Serão seus
elementos simbólicos. Quanto mais ela exerce sua função simbólica, menos aparecem
elementos simbólicos inadvertidos.
A afirmação, como ato, reúne sujeito e predicado, permitindo um conhecimento
maior. A designação reúne sujeito e objeto num
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mesmo mundo de significados; sem ela o objeto permaneceria total mente estranho e
não integrado ao mundo de significados do sujeito. O anúncio reúne o ouvinte e o
arauto com aquilo que é anunciado, e que se faz, só então, intencionalmente presente aos dois,
Um pedido reúne a pessoa a quem ele se dirige com uma carência solicitante do sujeito, antes
ignorada. Mas há outras coisas que são postas juntas ao mesmo tempo nesses atos
todos. No pedido, por exemplo, a carência do sujeito podia até não ser ignorada, mas a outra
pessoa aguardava que a primeira o manifestasse para que elas duas se reunissem num
vínculo de provimento ou subordinação. O próprio pronunciamento do pedido para
quem o faz implica o reconhecimento de uma carência e de uma necessidade do
outro, ou seja, implica a decisão que assim seja. Isto é, é um ato que reúne no
sujeito uma série de coisas em seu mundo interior. E assim por diante. Em
vários niveis a fala reúne, e poderíamos dizer que ela põe junto esses níveis também.
E por isso, aliás, que ela leva adiante a experiência, desdobrando significados. É isso
também que significa estar en processo.
Pensando em nosso problema que é a fundamentação da versão de
sentido, podemos dizer que a fala, como ato, põe junto, reúne, coisas em 3
níveis.
Em primeiro lugar e basicamente, ela põe junto pessoas. A fala permite o
reconhecimento das pessoas em relação a um projeto. Quando falo e sou ouvido, minha fala me
dá a conhecer naquelas intenções que constituem meu existir nesse momento: e isso é
compartilhado em uma relação. Ao mesmo tempo, pois, que reúne pessoas no
reconhecimento da identidade, revela essa própria identidade no âmbito da interlocução (às
vezes até para o próprio falante sua fala tem essa função reveladora, isto é, reunidora
de niveis diferentes de identidade).
No caso de uma VS, como potencialmente ouvida por outras pessoas (ou pelo
menos pelo seu próprio autor), ela o dá a conhecer, em maior ou menor profundidade,
tomando disponível seu existir em relação ao projeto envolvido pelo encontro. No caso
de um terapeuta, ela ajuda a tomá-lo mais disponível para o próximo encontro na
medida em que foi ouvida por alguém (e compreendida), ou ao menos pronun ciada
conscientemente por seu autor. Em supervisão, pois, a VS "traz" seu autor, traz seu
projeto, dá-o a conhecer nesse novo contexto de interlocução. E esta é justamente uma das
finalidades da supervisão. Interessante lembrar que o distanciamento calculado no qual é
feita a VS facilita o aparecimento de aspectos até então mais ou menos escondidos do
projeto.
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Em segundo lugar a palavra também poe junto passado, pre sente e futuro. Ela
torna atual o projeto a partir de suas raízes no passado, e lançando-o em direção ao futuro.
Ela cunpre uma atuali zação, e tanto mais quanto mais compromete o falante. Daí
porque uma VS precisa ser escrita como fala auténtica, que compromete o falante como
numa tomada de posição. Quando fazemos uma VS trazemos para o presente um vivido,
atribuimos-lhe significado transformando-o de certa forma, e por isso disponibilizando nossa
pessoa em relação ao futuro. Como texto lido pelo autor, ela tem o poder de resgatar o todo do vivido,
trazendo-o para a possibilidade de uma nova re-experien ciação. E esse poder será tanto
maior quanto mais apropriado e facili tador for o contexto dialógico dessa
re-atualização.
Também em termos de espaço a fala autêntica reúne. Quanto mais genuina, mais
ela porá junto intencionalmente o lá e o aqui. E é interessante notar que se não for
autêntica, isto é, se não estiver exercendo plenamente sua função simbólica como ato de
fala, então ela o fará indiretamente pelos elementos simbólicos nela contidos inadver
tidamente. E o que acontece, por exemplo, quando, através de uma fala, estou tomando
posição em uma situação atual, mas sem permitir que tudo que nisso está implicado se
faça presente (se reúna). Meus modelos de relacionamento aprendidos em outras relações,
por exemplo, tendem a se fazer presentes nesta. Mas se não me dou conta disso (isto é,
se isso não é significado de alguma forma por mim), minha tomada de posição
perde em autonomia, e os relacionamentos anteriores tendem a se fazer
presentes inadvertidamente através de elementos simbólicos da fala (no mais das
vezes somente decifráveis por peritos).
Uma VS "traz" para o novo contexto de interlocução (o aqui)0 vivido anterior (no la).
E não é raro vermos uma verdadeira reedição das mesmas relações vividas lá, entre
essas pessoas aqui.
Em suma, o poder da VS se fundamenta no poder da fala. Quanto mais
autêntica ela for, tanto mais poder direto ela terá (isto é, aquele que decorre de sua
função simbólica como ato), e menos poder indireto (isto é, aquele que decorte de seus
elementos simbólicos inadvertidos).

Principios gerais para o uso da versão de sentido


O que resulta disso tudo para a análise de VSs para fins de pesquisa?
O contexto ideal para sua "interpretação" (compreensão do sentido que ela transporta)
é o de uma interlocução onde ela e seu autor
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se fazem presentes. É nessa nova interlocução que se reedita o


sentido, mesmo quando implicando novas falas mais explícitas. É isso que
acontece em supervisão, e é isso que pode também acontecer em
pesquisa. É preciso que se aceite entretanto a figura do parceiro" de pesquisa.
Nesse novo contexto se "versa e conversa", (tendo a mesma referência
intencional) até se chegar à explicitação pretendida.
Um outro ponto importante é que a VS pode ser "lida" em dois níveis. Ela
transmite primeiro a vivência de seu autor. Mas num segundo nivel, ela
transmite o sentido da relação vivenciada pela pessoa. E nesse segundo
nivel que ela merece, mais apropriadamente, o nome de "versão": ela será uma
versão do sentido da relação, ou seja, a versão desta pessoa. A leitura que se faz
depende do nível em que o pesquisador se coloca, o que por sua vez
depende do objetivo da pesquisa
Se nos colocarmos na perspectiva de Buber (1982/1953), o **sentido de uma
relação não se encontra propriamente em nenhum dos participantes. Em cada
um, segundo ele, existe apenas o "acompa nhamento secreto da própria
conversação", que é seu aspecto subjetivo ou psicológico. O sentido de uma
relação “encontra-se somente neste encamado jogo entre os dois, neste seu
Entre" (p.139). De nosso ponto de
vista, isso aponta para o fato de que o
sentido deve ser buscado numa leitura do segundo tipo acima citado, e ela
mesma inserida num contexto relacional.
Finalmente, quando se busca o sentido de processos, deve-se trabalhar com
séries de VSs. Elas permitem um olhar de síntese muito mais imediato e
rápido do que o que se poderia obter a partir de
gravações.
E o que resulta disso tudo para o uso de VSs na formação e na iniciação
científica?
É convicção minha que, apesar de as explicações serem aqui dificcis
(por que se referem a algo não convencional em pesquisa), se Se quer
iniciar alguém a uma abordagem do sentido, é preciso começar fazendo exatamente isso,
e não outra coisa. É preciso que a atividade de iniciação seja de mesma natureza que a
pretendida, e não diferente. O que pode diferir aqui, para uma iniciação, seria
o caráter de menor risco, digamos assim, da atividade pedagógica. Ora, é
exatamente isso que as VSs como método possibilitam. Antes de se atender un
cliente, por exemplo, pode-se iniciar fazendo versões de sentido da própria situação
grupal de formação e já estaremos lidando com algo da mesma
natureza do que aquilo que irá acontecer no atendimento. E a conversa
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que ocorre depois nas sessões de acompanhamento equivale a un "treinamento"


de lida com significados. Coisa análoga se pode dizer a propósito da iniciação científica,
quando se trata de pesquisa qualitativa ou fenomenológica, Em nossa experiência
pudemos perceber a fecundidade do uso de VSs para uma abordagem do sentido,
tanto na fomação como na pesquisa.

Referências Bibliográficas
AMATUZZI, Mauro; SOLYMOS, Gisela; ANDO, Cristiane; BRUS
CAGIN, Cláulia & COSTABILE, Cláudia o sentido-que-faz-sen tido: uma pesquisa
fenomenológica no processo terapéutico.
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